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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    AS ILHAS DA ENCANTARIA:O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL NUTRINDO

    IMAGINÁRIOS

    Claudicélio Rodrigues da Silva

    2010

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    AS ILHAS DA ENCANTARIA:O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL NUTRINDO

    IMAGINÁRIOS

    Claudicélio Rodrigues da Silva

    2010

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    AS ILHAS DA ENCANTARIA: O REI SEBASTIÃO NAPOESIA ORAL NUTRINDO IMAGINÁRIOS

    PorClaudicélio Rodrigues da Silva

    Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto

    Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do Títulode Doutor em Ciência da Literatura (Poética).

    Examinada por:

    __________________________________________________________________________Presidente: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto (Departamento de Ciência da Literatura, UFRJ)

    ___________________________________________________________________________Prof. Dra. Jacqueline Hermann (Departamento de História, UFRJ)

    __________________________________________________________________________Prof. Dra. Martha Alkmin (Departamento de Ciência da Literatura, UFRJ)

    ___________________________________________________________________________Prof. Dr. Eduardo Coutinho (Departamento de Ciência da Literatura, UFRJ)

    ___________________________________________________________________________Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause (Departamento de Literatura Comparada, UERJ)

    ___________________________________________________________________________

    ___________________________________________________________________________

    Rio de Janeiro

    Junho de 2010

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    Silva, Claudicélio Rodrigues da.

    As ilhas da Encantaria: o rei Sebastião na poesia oralnutrindo imaginários/ Claudicélio Rodrigues da Silva. – Riode Janeiro: UFRJ, 2010.

    xiii, 387 f.; Il.; 30cm.Orientador: Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto.Tese (Doutorado) – UFRJ/ Programa de Pós-Graduação

    em Ciência da Literatura, 2010.Referências Bibliográficas: f. 269-2781. Sebastianismo. 2. Maranhão. 3. Mito. 4. Poesial Oral. 5.

    Performance. I. Neto, Alberto Pucheu. II. UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de

    Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.

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    O mytho é o nada que é tudo.O mesmo sol que abre os céusÉ um mytho brilhante e mudoO corpo morto de Deus,Vivo e desnudo.

    (Fernando Pessoa, Mensagem)

    Rei, ê rei, Rei SebastiãoRei, ê rei, Rei SebastiãoSe desencantar LençóisVai abaixo o Maranhão.

    (doutrina para o Rei Sebastião)

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    RESUMO

    AS ILHAS DA ENCANTARIA:

    O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL NUTRINDO IMAGINÁRIOSPor

    Claudicélio Rodrigues da Silva

    Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto

    Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência daLiteratura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para aobtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura, Poética.

    O rei Sebastião, monarca português do século XVI, viveu apenas 24 anos e se tornou nãoapenas símbolo da nação portuguesa, mas ícone da cristandade. Antes mesmo de nascer,recebera o epíteto de “O desejado”, e após sua possível morte, na batalha de Alcácer Quibir,em 1578, passou a ser “O encoberto”. O sebastianismo- a crença na volta do rei - foitransplantado para todas as colônias portuguesas, suscitando na gente simples a promessa deser para sempre livre do jugo da opressão. Passados cinco séculos, o rei ainda é esperado elembrado com muito vigor. No Brasil, duas ilhas maranhenses dizem abrigar o corpo místicodo encoberto: a Ilha de São Luís e a Ilha de Lençóis. O rei surge metamorfoseado num touroou num pássaro, trajando uma veste real abrasileirada, e convida todos para o seudesocultamento. Para ele são entoados doutrinas, cantos e toadas, no rito afro-brasileiro dotambor de Mina e na manifestação popular do bumba meu boi. O reino sebastiânico éapresentado na poética da Encantaria. Esta tese constitui um estudo fronteiriço em que várioscampos do saber convergem para o mito sebastiânico, no cerne do poético. Como umamitopoética é construída para dar conta da vida, morte e destino? Como o rei Sebastião,símbolo da saudade, sai da história e torna-se mito? De que modo, em pleno século XXI, o reié reverenciado por uma comunidade pré-letrada, onde a oralidade e a memória são a estruturada manutenção do legado cultural? De que modo a cultura letrada se apropria desse discurso para reapresentar o mito sebastiânico?

    Palavras-chave: Sebastianismo, Maranhão, Mito, Poesia Oral, Performance.

    Rio de JaneiroJunho de 2010

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    ABSTRACT

    MYTHICAL ISLANDS:

    KING SEBASTIAN IN THE ORAL POETRYPor

    Claudicélio Rodrigues da Silva

    Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto

    Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência daLiteratura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para aobtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura, Poética.

    King Sebastian, XVI century Portuguese monarch, lived only 24 years and became not only asymbol of the Portuguese nation, but an icon of Christianity. Even before he was born, he wascalled “the desired”, and, after his possible death at theAlcácer Quibir battle in 1578, theycalled him “the uncovered”. Sebastianism- the belief in the king's return – was widelytransplanted throughout the Portuguese colonies, making humble people believe in the promise of always being free from oppression. Five centuries later, the king is still expectedand remembered with much vigor. In Brazil, two islands in Maranhão are known forsheltering his mystical body: Ilha de São Luís and Ilha de Lençóis. The king emerges in ametamorphose of a bull or a bird, in a Brazilian royal vest and invites all to his uncover. In his behalf the people sing religious chants, with the afro-Brazilian Mina Drum and in the populardemonstration of the bumba meu boi folklore. The sebastianic kingdom is presented inside a poetic conjure. The present thesis constitutes in a study dealing with a borderline betweenmany fields that converge to the sebastianic myth, in it's poetic heart. How is poetic myth built to take over life, death and destiny? How does king Sebastian, symbol of longing(missing someone), leave history to become a myth? How can the king, in the XXI century bereverenced by a pre-literate community, where speach and memory are the maintenancestructure of the cultural legacy? In which ways does the literate culture appropriate itself ofthis speech to reintroduce the sebastianic myth?

    Key Words: Sebastianism, Maranhão, Myth, Oral Poetry, Performance.

    Rio de Janeiro

    Junho de 2010

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    RESUMEE – UEBERBLICK

    ILHAS MÍTICAS: O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORALPor

    Claudicélio Rodrigues da Silva

    Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto

    Der Koenik Sebastian, portugiesischer Monarch im XVI (sechzehnten Jahrhundert), lebte nur24 (vierundzwanzig) Jahre und ist nicht nur ein Symbol der portugiesischen Nation geworden,sondern auch Ikone des Christentums. Noch bevor er geboren wurde, bekam er denSpitznamen der Gewuenschte“ und nach seinem moeglichen Tod, im Kampf zu AlcácerQuibir, 1578, wurde er der Versteckte“. Der Sebastianismus – der Glaube an die Wiederkunftdes Koenigs – wurde in allen portugiesischen Kolonien implantiert, um so in den einfachenLeuten das Versprechen hervorzurufen, fuer immer von der Unterdrueckung befreit zuwerden. Nach fuenf Jahrhunderten wird der Koenig immer noch erwartet und man erinnertsich noch sehr an ihn. In Brasilien wird von zwei Inseln berichtet, die den mystischenKoerper des Versteckten“ beherbergen: die Insel São Luis und die Insel der Lenções(Duenen). Der verwandelte Koenig taucht auf einem Stier oder auf einem Vogel mit einemverbrasilianischten, koeniglichem Gewandt auf und laedt alle zu seiner Entschleierung ein. Zuseiner Ehre werden Lehren, Lieder und Weisen im afro-brasilianischen Rythmus der Mina – Trommel, sowie durch den Bumba meu Boi“, ein volkstuemlicher Brauch, eingestimmt. Dassebastianische Reichwird in der Poetik der Verzauberung dargeboten. Diese These stellt einGrenzstudium dar, bei welchem verschiedene Wissensfelder zum sebastianischen Mythus im poetischen Kern zusammen laufen. Wie wird ein poetischer Mythos aufgebaut, um vomLeben, Tod und Schicksal Rechenschaft ab zu geben? Wie kann der Koenig Sebastian,Symbol der Sehnsucht, aus der Geschichte hervorgehen und zum Mythos werden? Auf welcheArt und Weise wird der Koenig, mitten im XXI Jahrhundert, von einer ungebildetenGemeinde, wo die muendliche Ueberlieferung und die Erinnerung Struktur undAufrechterhaltung des kulturellen Vermaechtnisses sind , verehrt? Auf welche Art und Weise

    eignet sich die gebildete Kultur diesen Bericht an, um um den sebastianischen Mythos neuvorzustellen?

    Schluesselworte: Sebastianismus; Maranhão; Mythos; muendliche Poesie; Auffuehrung.

    Rio de JaneiroJunho de 2010

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    Ao Pucheu,que me ajudou a pensar os sebastianose foi âncora e leme.

    Aos pescadores da Ilha de Lençóis- homens, mulheres, jovens, crianças, idosos -que me apontaram onde fica a Encantaria,embora eu nunca tenha chegado lá.

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    SUMÁRIO

    LISTA DE FIGURAS

    INTRODUÇÃO – TRAÇAR ROTAS E RESERVAR PASSAGENS................................18

    ROTA I – BARCO SEGURO, LEVANTAR ÂNCORA, IÇAR VELA, RUMONORTE....................................................................................................................................30

    1. PANORAMA.......................................................................................................................31

    1.1 NATUREZA E SENTIDO DO IMAGINÁRIO MÍTICO..................................................41

    1.2 MITOPOÉTICA – ESPAÇO SAGRADO DA POESIA....................................................46

    1.3 CORPOREIDADE E PERFORMANCE: DA VOZ COMO GESTO................................52

    ROTA II – A HISTÓRIA VIRA MITO COM OS FIOS DA SAUDADE E ATESSITURA DA ESPERANÇA............................................................................................67

    2. O MITO DA SAUDADE: DO SONHO DO IMPÉRIO AO IMPÉRIO DO SONHO..68

    2.1 SOB O SIGNO DA CRUZ: PAIXÃO, MORTE E RESSURREIÇÃO. DE QUEM?.......742.1.1 Kyrie Eleison para o rei desejado.....................................................................................762.1.2 Te Deum laudamus para o rei cristão...............................................................................782.1.3 Hoc est enim Corpus meum: exéquias para um corpo ausente.......................................812.1.4 Réquiem para o rei mitificado.........................................................................................84

    ROTA III – DICÇÕES MITOPOÉTICAS DAS ILHAS SEBASTIÂNICAS..................94

    3. CARTOGRAFIAS IMAGINÁRIAS DE UMA ILHA....................................................95

    3.1 AS ILHAS SEBASTIÂNICAS, A POÉTICA DA ENCANTARIA E A CONSTRUÇÃODAS HETEROTOPIAS..........................................................................................................102

    3.2 A ILHA DE SÃO LUÍS: A SAUDADE SE FAZ CANTO E DANÇA..........................112

    3.3 ILHA DE LENÇÓIS: PASSAPORTE PARA A ENCANTARIA..................................123

    3.4 MITOPOÉTICA DOS ELEMENTOS PRIMORDIAIS.................................................153

    3.5 A QUADRATURA DO CÍRCULO: TEMPO QUE SE CUMPRE E SE RENOVA.......186

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    ROTA IV - DAS VOZES PARA AS LETRAS: PRESENÇA DO SEBASTIANISMOMARANHENSE NA CULTURA LETRADA....................................................................207

    4. QUANDO A LITERATURA VAI BEBER NAS FONTES DO ORAL........................2084.1 A visão do rei Sebastião como presságio de morte no romanceCais da Sagração.........2094.2 A visão do navio dos mortos emO dono do mar..............................................................2124.3 O prenúncio do reino da justiça em Ferreira Gullar..........................................................2174.4 Releitura do encanto na poesia de Augusto Cassas...........................................................2204.5 O profundo mistério das ilhas em Bandeira Tribuzi.........................................................2234.6 A corte que fantasmeia no romanceiro de Stella Leonardos.............................................232

    4.7 O encantado galope à beira-mar no poema de Bandeira de Mello...................................2444.8 Visagens viventes no conto de Nagib Jorge Neto.............................................................2494.9 Faces do mito em outras poéticas.....................................................................................255

    CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIAGEM OU POSSESSÕES DA ILHA......................265

    BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................269

    DOSSIÊ SEBÁSTICO..........................................................................................................279

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    Figura 20. Dona Teresa. A narradora ri e o relato assume o tom de conversa, p. 169.

    Figura 21. Dona Nini começa a cantar e seu semblante evoca uma saudade, p. 170.

    Figura 22. Dona Nini. A mão gesticula ao narrar as visões da ilha, p. 171.Figura 23. Dona Nini. O braço se ergue e aponta os lugares onde aconteceram as visões, p.171.

    Figura 24. Dona Nini. O dedo indica firmemente que o rei está querendo tomar de volta ailha, p. 171.

    Figura 25.Telma. A narradora aponta com energia, ao falar das visões, p. 172.

    Figura 26. Telma descreve como o rei aparece, p. 173.

    Figura 27.Telma. A descrição da grandiosidade do palácio real é visível nesse quadro, p. 173.

    Figura 28. Telma. Os dedos enumeram a riqueza doada pelo rei, p. 173.

    Figura 29. Maneco, o novo pajé é também amo do boi, p. 175.

    Figura 30. Maneco. Enquanto fala sobre o auto, intercala a fala com toadas, p. 175.

    Figura 31. Maneco. De repente, quando o assunto é desviado para o rei Sebastião, suaaparência muda, p. 176.

    Figura 32. Maneco, indicando a origem do encanto, p.176.Figura 33. Maneco. Sua mão também dá indicação para onde o rei se mudou, p. 176.

    Figura 34.Ribamar. Redes de pesca ao fundo indica o ofício do narrador, p. 177.

    Figura 35. Ribamar. Os dedos ágeis promovem o ritmo no instrumento de improviso, p. 178.

    Figura 36. Ribamar. Até a argola de arame, presa à bacia, torna-se indispensável àssonoridades obtidas, p. 178.

    Figura 37. Dunga olha para a câmera e se prepara para entoar, p. 180.

    Figura 38. Dunga toca o maracá, após a primeira parte à capela, p.180.

    Figura 39. Dunga sopra o apito, avisando que a toada acabou, p. 180.

    Figura 40. Seu Chico. O olhar do narrador encara o ouvinte, impõe respeito, p. 181.

    Figura 41.Seu Chico indica a referência do lugar onde sua família morava, p. 181.

    Figura 42. Seu Chico faz gestos para dizer como a ilha foi fundada, p. 182.

    Figura 43. Seu Chico descreve o palácio do rei, p. 182.

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    Figura 44. Seu Chico. A mão coçando a fronte indica retomada no relato, p. 182.

    Figura 45. Seu Chico. Braços erguidos indicam a areia levantando para formar um muro eesconder o rei, p.183.

    Figura 46. Seu Chico. O dedo indicador atesta que a visão trouxe mal estar, p.183.

    Figura 47. Ouroboros. Manuscrito alquímico, Theodoros Pelecanos, 1478, Bibliothèque Nationale, Paris, p.196.

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    LEGENDA

    Este ícone ao lado de um texto, relato ou canto, significa que o trecho faz parte doDVD documentário “Sebastianos: os narradores de Lençóis”, parte integrante datese.

    Este ícone indica que o texto da canção, toada, doutrina ou relato faz parte doCD de áudio que acompanha a tese. Logo abaixo deste ícone, há um quadro com onúmero da faixa no CD.

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    INTRODUÇÃO- TRAÇAR ROTAS E RESERVAR PASSAGENS

    É mais difícil interpretar interpretações do que as coisas.Montaigne

    O mistério – isto é, a “inacessibilidade absoluta” – não ésenão a expressão da “outridade”, desse Outro que seapresenta como algo por definição alheio ou estranho anós. O Outro é algo que não é como nós, um ser que étambém um não ser. E a primeira coisa que sua presençadesperta é a estupefação.

    (Octavio Paz, O arco e a lira, 1982, p. 156)

    Do inapreensível.Sendo impossível apalpar um corpo constituído de névoa e vislumbrar sua

    pulsação, já que ele é pura evanescência, de que maneira deve-se apresentar um estudo cujo

    objeto é da ordem do velado e cujo desvelamento, a voz, é também de natureza efêmera?Diante do inapreensível, o mundo do saber secularizado desaba, incrédulo de sua

    limitação e ao pesquisador parece restar apenas a exposição de suas restrições frente à

    iminente ineficácia de um enfoque teórico. Afinal, precisa salvaguardar seu estudo. O que

    dirão os examinadores diante de um trabalho acadêmico assim construído? Onde se

    sustentaria seu trabalho? Qual seria o chão dele? A estrutura do estudo estaria fundamentada

    numa base teórico-científica? O percurso teria consistência? Projetei-me num pulo, saindo do

    chão da teoria e ainda não consegui tocar o solo. No entanto, sequer tateei o objeto, alto

    demais. Como percorrer um caminho impossível, visto que os pés não estão no chão e o corpo

    não tem asas? Nessa situação, todo método é ineficaz, porque aponta para algo que não é

    sensível, uma fissura. Porém, sendo o método um percurso, pensar em caminhar já é pôr-se a

    caminho. Uma saída seria resgatar o começo, tecendo um discurso sobre o processo, que

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    fragmentos de pesquisador, possa entrever melhor os passos dados, a fim de que meu trabalho

    seja compreendido a partir do não-lugar que lhe é próprio.

    Não seria incorreto assegurar que o meu objeto de estudo congrega diferentes áreas doconhecimento e, no entanto, não se sustenta em nenhuma isoladamente. Vejamos: falar de um

    rei que perdeu uma guerra é convocar a História. Mas se esse rei virou lenda e mito a ponto de

    suscitar a criação de narrativas por diferentes nações, isso pertence à Mitologia. E se a

    memória desse rei se encarna no rito e vira culto, isso é da ordem da Teologia. Se a figura do

    rei modifica o cotidiano de pessoas simples, que explicam os fenômenos com base no

    sobrenatural, isso compete à Antropologia. Se a presença do rei suscita a construção de um

    legado artístico (dança, canto, gesto, pintura, cinema), isso interessa à Arte. Se a palavra

    congrega canto e conto no ecoar da voz, isso é de natureza da Poesia. Este estudo evoca tudo

    isso e não tem pretensão de dar conta de nada que não seja o instante das narrativas, as

    simultaneidades e temporalidades da palavra que se faz mito, que um dia foi História. Sei

    onde estou, num abismo. Abismar-se é experimentar a sensação desconfortável de projeção

    para um lugar desconhecido, de forma brusca, sem a velha segurança. É entregar-se diante do

    novo, como quem se atira de um precipício, certo de que será amparado no fim. Ou não.

    Uma palavra que poderia, ainda que sem muito mérito, amparar o sentido dessa

    congregação das diferentes áreas em torno de um assunto é a interdisciplinaridade3 (ou talvez

    a noção de metadisciplinaridade, pensando não mais em disciplinas, mas para além delas).Entretanto, não foi meu objetivo entrar nas questões de cada área, percorrendo seu horizonte

    reflexivo. Meu lugar sempre foi e é a literatura, ou melhor, a poesia, naquilo que ela tem de

    mais originária, uma reunião de eventos, pela palavra. É a linguagem o meu esteio, meu ponto

    de partida, meu ponto de chegada e, sempre, um porto de passagem. E aqui sinalizo para a

    noção também da linguagem como o ressoar do silêncio. Já sei onde é meu lugar: preciso

    assegurar que estou partindo da poesia para chegar nela. Nesse percurso, vou apenas acenando

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    para outras áreas, sem ultrapassar a fronteira. Este estudo é e deve ser pensado como uma

    zona fronteiriça, que não se sustenta fora desse limiar e precisa ficar na borda de certos

    conhecimentos para ser livre.

    Da necessidade de uma etnografia.Era necessário transformar minhas experiências em

    narrativas. Assumindo o lugar de narrador sei que corro riscos ao tomar partido e fazer

    escolhas. Mas esta postura não teria como ser diferente, pois é a partir da interpenetração das

    vozes do eu e do outro que o discurso se tece e se mostra, num processo dialógico e

    polifônico (BAKHTIN). Além disso, este estudo quer ser entendido menos como um produtoteórico-reflexivo e mais como uma rapsódia tecida com as vozes de muitos narradores. Assim,

    “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos

    outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (BENJAMIN, 1985, p.

    201). Não pode o pesquisador ser neutro, nem conseguirá fazer emergir a voz do outro

    isolando a sua. Ir ao encontro do outro, conviver com ele, ainda que por pouco tempo,

    entrevistá-lo, fazer-se presença na vida dele, assumir a condição de um curioso que a tudo

    pergunta e que não sabe de nada, anotar, gravar, filmar: eis as funções de um pesquisador de

    campo. Na volta para casa, o que resta? Inúmeras anotações, horas de gravações a serem

    transcritas e depois interpretadas com o olhar aguçado e puramente engajado. Não, não parece

    que estou descrevendo uma atividade comum ao pesquisador da Literatura, e, sim, da

    Antropologia. Refiz todo o caminho do etnógrafo, até agora.

    O pesquisador da área de Letras não seria aquele que se lança noutra viagem, a saber,

    o texto já impresso, sobre o qual se debruça para construir teorias? No entanto, quando o livro

    que se quer estudar ainda não foi escrito no papel, mas está inscrito nos corpos dos falantes,

    que tecem com a voz um discurso sobre um lugar e personagens existentes concretamente na

    tradição, que é por excelência de base oral, o pesquisador volta-se para o cerne da literatura,

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    que é o acontecer poético. Foi assim que li as pessoas com quem convivi. À medida que

    realizava o meu trabalho, minha cabeça ia ficando povoada daqueles seres excelsos que tanto

    interferem na vida de pessoas reais. Cada entrevistado se configurava para mim na página deum livro que vem sendo escrito/inscrito há mais de um século no espaço oval de uma ilha

    literalmente isolada. Ao conviver com aqueles pescadores, naquele lugar, era como se eu

    estivesse inserido numa enciclopédia viva, e as palavras ganhavam força maior nos espaços

    mitificados da ilha a ponto de qualquer ruído soar para mim com um alerta. Ali tudo tem

    sentido, nada acontece ao acaso, naquele lugar em que a condição do homem é ser prisioneiro

    de um continente-oval e subserviente ao tempo da natureza se quiser usufruir dela. Foi preciso

    perceber o tempo sob outra expectativa. Quando um pescador dizia que ia pescar à noite, não

    era à hora do relógio que ele obedecia, mas à lua. Para partir da ilha, é preciso esperar a maré

    subir e se coadunar com o estuário, assim como para desembarcar às vezes é necessário

    esperar a maré secar. Até as festas do lugar só podem acontecer no quarto-crescente, que é

    quando os homens voltam da pesca. Quando o sol em união com a brancura da areia me

    obrigava a ficar escondido em casa entre 10 da manhã e 4 da tarde, refém da claridade, uma

    claridade desconcertante, eu percebia o quanto o homem estava atrelado às forças da natureza

    e a ela obedecia piamente. A natureza dita as ordens, domina, coloca o homem no seu devido

    lugar.

    Eu não queria ser o etnógrafo para fazer o papel do antropólogo, aquele que tudodescreve, ancorado numa pretensa autoridade. Ao tentar retratar uma situação, o antropólogo

    não estaria também assumindo uma posição similar à do intérprete literário, trazendo para a

    cena do seu texto as intersubjetividades e se mostrando como autor ou narrador, numa perfeita

    heteroglossia, como indicava Bakhtin em sua teoria dialógica?! (1953). Se na antropologia

    interpretativa o pesquisador adquire a função de um narrador-observador ou personagem,

    também o intérprete literário, ao tomar para si a prática etnográfica, não se torna neutro diante

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    da leitura que faz. Ambos são narradores e a finalidade da leitura é que direciona os caminhos.

    Literatura e Antropologia caminham lado a lado, tateiam os mesmos espaços, olham a cultura

    com os mesmos olhos interessados; mas enquanto uma tende a transformar pessoas em personagens e fatos em enredos, a outra preocupa-se em mapear o sentido dos ritos, da vida,

    das representações. Seguem de mãos dadas, no limite de suas fronteiras. No entanto, penso

    que a melhor aproximação para esse mapeamento que fiz seria o termo etnopoética, que me

    permite apresentar a poesia no seu cerne, inebriada das vozes, bocas e corpos dos narradores.

    Da urgência do uso da imagem-movimento para apreensão da performance.Desde o

    início do projeto de doutorado, eu sabia que se quisesse trabalhar com a voz e o corpo,

    deveria pensar na dificuldade de analisar as vozes dos narradores sebastiânicos de modo

    satisfatório. Tal empecilho poderia ter uma solução no mínimo desconfortável, a saber, o

    estudo com base no material transcrito. Quando a palavra é entronizada no papel, perde um

    pouco de sua aura e magnitude, passando a ser representação da representação.

    A ideia inicial foi trabalhar com gravação de áudio, a voz capturada no tempo-espaço

    de uma performance e presa ao eterno momento de sua enunciação gravada, como diria Paul

    Zumthor. Além dos registros sonoros já coletados por outros pesquisadores (em entrevistas,

    curta-metragens e pesquisas etnográficas), também quis fazer minhas próprias coletas. O

    primeiro contato físico com a ilha de Lençóis, que eu conhecia há oito anos das pesquisas

    bibliográficas e videográficas, deu-se em janeiro de 2007, quando fiz as primeiras entrevistas.

    Munido de um notebook com programa de áudio e microfone, apresentava-me aos ilhéus e

    lhes explicava o objetivo da pesquisa. Só depois marcava a entrevista, que poderia acontecer

    logo em seguida ou apenas no outro dia.

    De posse das entrevistas, o trabalho seguinte foi ouvir pacientemente cada gravação

    para fazer as transcrições. Aqui, um novo impasse surgiu, pois era imprescindível escolher

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    entre realizar a transcrição literal (aproximada da fala, com as pausas, indicações de risos, uso

    do registro fora do padrão gramatical) ou adaptada à escrita, sobretudo com cortes de

    repetições, supressões de palavras de retomada (anafóricas). E nesse momento percebi quenunca estaria no meu texto o texto tal qual fora dito. Tampouco resgataria e transmitiria ao

    leitor o momento, o lugar, as expressões corporais, as modulações verbais tão significativas

    no instante único da entrevista.

    Foi a partir daí que senti a urgência de também filmar os espaços da ilha e as

    entrevistas. Assim, eu poderia ver, quantas vezes quisesse, os gestos, as entonações, os ruídos

    dos entrevistados, elementos muito importantes na leitura, e sem os quais a palavra seria

    destituída de suas marcas de temporalidades e espacialidades. É isto, portanto, o que constitui

    o termo performance no meu estudo: o corpo da voz no corpo do narrador, no corpo da terra

    em que ele habita. A captura da imagem e do som, decerto, acaba por interferir na

    apresentação de tudo isso, pois a escolha da modulação da cor, a tomada de cena, os cortes na

    edição, o volume do áudio, enfim, alteram significativamente a percepção do olhar. Mas é aí

    que também está o meu papel de narrador. Não há neutralidade nesse tipo de trabalho. Nunca

    houve. Deixar que o leitor/espectador leia a partir de minha leitura é um caminho possível.

    Não sei se é seguro, mas é meu caminho que ofereço generosamente e sem esperar outra coisa

    que não seja a vontade de oferecer o narrado. Abertura para um espaço virtual, a imagem na

    tela é pura heterotopia, termo impresso por Foucault, mundo projetado para além do real eque espelha outros espaços simultaneamente.

    De posse de uma câmera HDV, a minha preocupação ao chegar a Lençóis era com a

    reação dos entrevistados. Afinal, não é qualquer pessoa que se mostra à vontade na frente de

    um quase desconhecido portando uma câmera nada discreta, além de outros materiais. No

    entanto, para minha surpresa, ao montar o aparelho e começar a conversar, percebia que o

    entrevistado sequer notava a câmera, diante do que tinha para contar. A mim parecia que cada

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    um entrava numa espécie de transe, pela palavra que proferia e, de modo muito natural, a

    entrevista tornava-se a captura de um momento mágico, sagrado, ritualizado na confluência

    da narração e do canto.O documentárioSebastianos: os narradores da Ilha de Lençóis é a minha versão da

    lenda do Rei Sebastião. Nele há a palavra, a imagem e o silêncio. Talvez o espectador possa,

    durante sua exibição, vislumbrar o sentido do termo Encantaria, quando toda a ilha deixa de

    ser simplesmente uma ilha paradisíaca e passa a ser narrada como morada do Encoberto.

    Embora ache que a tese apresenta uma nuance de rapsódia na medida em que cantos e

    contos foram costurados para dar conta de uma unidade narrativa, ela deve ser percebida mais

    como um livro de viagem, um diário de bordo ou relato de viagem. Logo no início, entrego a

    você a carta náutica número 400, que corresponde aos espaços que iremos visitar. A seguir, os

    capítulos apresentam as rotas que percorreremos, navegantes, rumo a um lugar que não fica

    em lugar algum. Para ler performaticamente ao longo do texto aquilo que está documentado

    no CD e no DVD, ícones indicam que o texto ao lado corresponde a um arquivo de áudio ou

    vídeo.

    Dos desdobramentos da pesquisa.Ultrapassando os limites acadêmicos, dois produtos

    surgiram como consequência da minha pesquisa: um livro infantojuvenil e uma casa de

    cultura para a Ilha de Lençóis (memorial e biblioteca)4. Não estavam nos meus planos, mas

    surgiram, culminando meu projeto. Prova de que o conhecimento acadêmico deve mesmo é

    suscitar uma mudança na sociedade. Nada mais justo devolver o conhecimento ao verdadeiro

    dono.

    O texto do livroO rei que virou lenda (Editora A Girafa, 2009), ilustrado por Eloar

    Guazzelli, nasceu num momento em que eu andava atormentado, com dificuldade para

    organizar os relatos dos entrevistados em linguagem acadêmica sem lhes silenciar. Queria

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    está ficando escasso, garantindo que as crianças reconheçam a herança cultural mítica e

    sintam o desejo de perpetuar esse imaginário. É resultado do esforço de muitos amigos que

    me ajudaram com doações e campanhas. A comunidade de Lençóis também deu sua parcelade ajuda e no dia 20 de janeiro de 2010 (dia do aniversário do nascimento do rei Sebastião e

    dia de São Sebastião) a casa foi inaugurada com muita festa. O espaço cumpre três propósitos:

    abre-se ao morador para que ele reconheça sua história nos objetos ali presentes, oferece ao

    turista a riqueza cultural da ilha e acolhe o pesquisador interessado sobretudo no

    sebastianismo. Trata-se de um espaço múltiplo de apresentação, preservação e construção de

    saberes. Fundado por voluntários, também está sendo gerenciado por voluntários.

    Resta agora dizer que, antes da viagem, eu era o inexperiente, a ilha era o

    desconhecido; as rotas, percursos incertos. Então me pus no caminho das rotas que me foram

    possíveis. Se o objetivo era experienciar o novo, aquilo que para mim soava distante, aqui

    revelo não a experiência que tive, mas aquela que não me foi dada enquanto lá estive. Na

    qualidade de um ex-viajante que, revendo suas imagens, as anotações dos diários, as

    passagens e bilhetes, só quando a viagem já não existe é que a linguagem dela começa a

    vigorar. Só quando não há mais viagem é que podemos pensar o que ocorreu. E desse ponto

    em diante, as imagens reminiscentes adquirem seu poder simbólico, dizível, posto que durante

    a viagem, estávamos cegos pelo êxtase puro do viajante deslumbrado. Nem por isso, deixei de

    ser inexperiente.

    Que venham outras viagens!

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    NOTAS

    1 Portanto, uma teoria que trabalha a negatividade, tal qual se configura no projeto de Agamben, é que me dá

    segurança neste trabalho. A ideia da experiência da linguagem como a falta, o negativo, se mostra de modo preciso no ensaio de Pucheu sobre o Estâncias, do Agamben:“Da linguagem que deseja falar o não-linguístico,recusado, chega-se a uma vivência da linguagem que traz em si o negativo, a rachadura que impõe uma falta nãosó entre a realidade não-linguística e a linguagem, como entre o homem e a linguagem, em uma infância que,desde sempre e para sempre, nos constitui em todas as idades. Do mesmo modo em que se fala de um objeto perdido, poder-se-ia falar de um sujeito perdido. Ao homem, falta o próprio homem, e, nesta falta, destituído desi, suprimido justamente disso que o conserva, lançado numa vacância indizível, o lugar do homem se mistura aum não-lugar, o homem se confunde com o inumano. O homem é um vivente divorciado de si pela linguagemque, nele, abre o negativo” (PUCHEU, 2008, p. 26)

    2 “Nesta ambiência da experiência da linguagem do ser negativo do homem que, „assim‟, faz emergir o vazio dofundamento, realizando-o, se apresenta uma „poesia pura‟, uma filosofia pura e uma crítica pura [...]” (PUCHEU,2008, p. 26).

    3 O rei Sebastião e o bumba meu boi são temas maranhenses pesquisados nas mais diversas áreas acadêmicas. Sealguns estudiosos focalizam aí o histórico, outros querem dar conta da indumentária ou da organização do rito eda brincadeira. Outros, ainda, se fixam na recepção dessas manifestações pela mídia do passado e do presente .Há também quem investiga a apropriação da linguagem e do discurso popular para fazer uma releitura nas artesvisuais. Temas interdisciplinares por excelência, que obrigam o pesquisador a aventurar-se por outras fronteiras.Além das obras que fazem parte da bibliografia, cito como exemplo alguns trabalhos acadêmicos relevantessobre o sebastianismo no Maranhão, além, é claro, das obras literárias, teatrais, midiáticas e plásticas inspiradasno imaginário sebastiânico maranhense e mencionadas ao longo da tese. Os cursos estão sublinhados, para ser ternoção da amplitude do tema estudado e do interesse de áreas distintas:a) SANTOS, Tânia Lima dos. Do mito sebastianista à lenda de D. Sebastião no Maranhão. Mestrado em Letras,Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 1999.

    b) GODOY, Márcio Honório de. Dom Sebastião no Brasil: fatos da cultura e da comunicação em tempo/espaço.Mestrado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2000.c) PEREIRA, Madian de Jesus Frazão.O imaginário fantástico da Ilha dos Lençóis: estudo sobre a construçãoda identidade albina numa ilha maranhense. Mestrado em Antropologia. Universidade Federal do Pará, UFPA,Brasil, 2000.d) FELIZOLA, Ana Alice de Melo. Rei Sebastião: o mito narrando nações. Curso de Mestrado em Letras,Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Pará, Belém, 2001.e) PEREIRA, Rosuel Lima.O Sebastianismo e o imaginário brasileiro. Mestrado em Letras. Bordeus, França,2001. (Atualmente está desenvolvendo tese sob o título:O papel das Ordens religiosas na divulgação do sentimento sebastianista nos séculos XVI e XVII no Brasil -Maranhão.Universidade Michel de Montaigne -Bordeaux III Bordeus. Departamento de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos).

    f) ANDRADE, Joel Carlos de Souza. Os filhos da lua: Poéticas sebastianistas na Ilha dos Lençóis – MA.Dissertação de Mestrado em História. UFCE. Fortaleza, 2002g) SILVA, Claudicélio Rodrigues da.Uma estética da oralidade: Problemática da poética oral . Mestrado emTeoria Literária. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005 (Aqui eu já menciono o mito sebastiânico efaço um elenco do que viria a ser analisado no doutorado).h) PEREIRA, Madian de Jesus Frazão.O Patrimônio da ilha encantada do rei Sebastião: bens simbólicos enaturais no cenário do ecoturismo e das unidades de conservação. Doutorado em Sociologia. UniversidadeFederal da Paraíba, 2007.i) GODOY, Márcio Honorio de. Dom Sebastião no Brasil: Das Oralidades Tradicionais à Mídia. Doutorado emComunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, 2007.Além desses trabalhos acadêmicos, cito dois outros que me chegaram após a conclusão da tese. O primeiro é umespetáculo de dança chamado A dança do Encoberto, de autoria de Larissa Malty, de Brasília, 2001, com músicacomposta por Marcello Linhos, violeiro, instrumentista e compositor. O espetáculo foi apresentado em São Luís,

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    Brasília e Madri. O outro trabalho é o documentário A Ilha de Dom Sebastião, de Ivan Canabrava e Marcya Reis,Brasília, 2002.

    4 O texto original do livro e a ata de inauguração do memorial, bem como fotos da construção e inauguraçãoestão nos anexos.

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    ROTA I

    BARCO SEGURO, LEVANTAR ÂNCORA, IÇAR VELA,RUMO NORTE.

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    1. PANORAMA

    Na segunda metade do século XIX, pesquisas sobre oralidade tentavam desvendar a dinâmica

    da poesia oral, tomando como produção modelar os epítetos da composição grega arcaica dos

    séculos XII-VIII a.C. (Ilíada, Odisseia, Teogonia, por exemplo). Numa sociedade

    eminentemente oral, a poesia era o fundamento, e por ela as leis eram dispostas, os ritos

    celebrados, o passado presentificava-se e se designava o universo. Na voz dos aedos e

    rapsodos, a poesia congregava deuses e homens na ação/germinação da palavra. Todas essas

    pesquisas tomavam como ponto de partida a poesia de comunidades pré-letradas

    contemporâneas aos pesquisadores para se chegar à dinâmica da poesia grega arcaica, num

    método comparativo. As diversas áreas (Antropologia, Literatura, Artes Cênicas, História,

    etc.) estudavam o mesmo objeto oral sem perceber que era a performance o termo comum e

    integrador de tais estudos.

    Século XVI d.C. - Portugal espera um rei ardentemente. O desejado nasce, e o reino não cai

    em mãos espanholas. Aos 24 anos, na África, numa batalha contra os mouros, o rei perece,

    tornando-se “o Encoberto”, e só resta a Portugal voltar a sonhar com o seu retorno, para a

    fundação do Quinto Império. Metrópole e colônias constroem e passam a alimentar o mito do

    ocultamento, propagando-o através de narrativas orais, trovas, cantos, cartas, sermões e

    relatos da vida e da morte do rei.

    Século XXI. Passados quatro séculos, o rei ainda é esperado nas nações lusófonas e ressurge

    nas artes verbais faladas, cantadas e escritas. É assim que, no Maranhão, a figura do Rei

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    Sebastião ressoa familiar tanto na Ilha de São Luís (capital), quanto na Ilha de Lençóis, uma

    comunidade de cerca de 300 habitantes, a oeste do estado, na região das reentrâncias

    maranhenses. Numa prosa informal, nas doutrinas entoadas por mineiros (representantes dorito afro-maranhense do Tambor de Mina), nas manifestações populares, na música e na

    literatura, o rei aguarda o grande dia: quando seu reino emergirá do fundo do oceano, para

    fundar, no Maranhão, o novo Império.

    Esses percursos se unem na minha pesquisa, convergindo para o fundamento da

    palavra, o cerne desse caminhar. Palavra oralizada e oralizante, corporificada. Vejamos o ponto de partida. Da Grécia, busco nos deuses, aedos, rapsodos e nas vozes das Musas uma

    elucidação da função da Poesia, para a análise mais fecunda das narrativas sebastiânicas

    faladas e cantadas nas ilhas maranhenses. Como a Poesia os inspirava a narrar as grandezas

    do mundo sagrado, uma vez que não havia o registro escrito? Dos deuses, desejo que sua

    cosmogonia me sirva de sustentação na tese da construção de um mundo pela palavra; mundo

    sagrado, mítico e místico que na Poesia tem o poder de irromper. Isso é capaz de me acenar

    para o quê? Por enquanto, vislumbro a estruturação de uma mitopoética das ilhas

    maranhenses que, à semelhança do mundo grego ágrafo, explicaria seu cotidiano e os

    fenômenos naturais a partir de uma cosmovisão mítica, cujo centro é a figura de Dom

    Sebastião. E é nesse caminho que se põe meu passo.

    Sobre o alicerce da memória oral, no Maranhão, uma mesma narrativa é costurada de

    diferentes modos, com distintos materiais. Nas vozes dos cantadores e contadores, as palavras

    tecem fios multicoloridos, construindo uma colcha rendada e enredada de lendas e mitos. Pelo

    poder da palavra professada e cantada, essas vozes trazem constantemente ao presente o

    passado e o futuro, através dos ritos e da brincadeira.

    Tal criação poética, unindo-se à memória e à história, concretiza-se nas vozes dos

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    coletava material para o estudo, deparava-me com uma diversidade de textos que nem sequer

    caberiam naquilo que se costumou nomear de“literatura oral”. Na verdade, o que se

    convencionou designar“literatura oral” não teria muito sentido ao ser aplicado a esse corpus, pois incorreria numa abordagem dicotômica, por oposição à literatura escrita, sempre vista

    como superior, erudita, enquanto a outra seria destituída de valor autoral por ser fruto da gente

    iletrada2. Essa lacuna em termos teóricos e a dificuldade de encontrar teoria que não tratasse o

    objeto de forma díspar entre cultura ágrafa e cultura letrada, canônica ou não, erudita ou

    popular, me fez tentar pensar a poesia oral sem ter que justificar na polarização a defesa de

    uma ou outra forma de representação do imaginário. Por essa razão, desloquei o foco da

    pesquisa, procurando inicialmente percorrer o caminho dos teóricos da oralidade, no intuito

    de encontrar uma estética da poesia oral. Porém, ao agir desse modo, também não estaria eu

    incidindo numa abordagem dicotômica? Se o foco da minha pesquisa consistia em mostrar o

    vigor poético do oral e seu discurso mítico absorvido pelo escrito, minha preocupação não

    deveria ser no contraste oralidade/escritura, mas na tentativa de buscar um caminho viável

    para apresentar essa poética sebastiânica sem incidir numa análise folclorizada por um lado,

    ou, por outro, num estudo com base na tradição escrita, ambas culminando no uso do termo

    “literatura oral”. Por isso, achei mais coerente percorrer o caminho das controvérsias da

    poesia oral e da literatura, apresentando uma dissertação que apontava a problemática da

    poética oral para estar mais seguro (e, sobretudo, mais liberto) no doutorado.Resumindo: cunhado no século XX por oposição a literatura escrita, não suportando o

    hibridismo das produções verbais, o termo“literatura oral”3 nunca abarcou a diversidade de

    gêneros constituintes de uma poesia oral, preterida pela academia, e somente estudada na área

    das ciências sociais como artefato folclórico. Fora essa exclusão do mundo das letras, há que

    se levar em conta a dificuldade de classificação de uma tipologia oral, em meio a uma

    variedade de gêneros. A pequena lista a seguir apresenta a dimensão da produção oral e o

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    problema de conceituar tal objeto em estudos tradicionalmente da ambiência da escritura:

    a) pequenos relatos de fatos reais alimentados com a imaginação do prosador;

    b) ditos e provérbios;c) cantos de natureza lúdica ou de trabalho;

    d) cantos litúrgico-religiosos, originários do culto oficial ou provenientes das

    manifestações populares e sincréticas (misturas de cultos e ritos populares marcados por cores

    locais) como pontos e doutrinas;

    e) trovas populares e cordéis produzidos inicialmente para declamação ou para o canto

    em praça pública, acompanhados de viola, que mais tarde foram adaptados para folhetos

    impressos numa linguagem coloquial (herança dos romanceiros europeus).

    f) lendas, mitos e relatos fantásticos envolvendo personagens do passado ou memórias

    de fatos cotidianos, ampliados pelo fundo sobrenatural e com traços cômicos, satíricos ou

    dramáticos;

    g) repentes, desafios e cantorias, acompanhados de viola;

    h) toadas de manifestações populares de rua;

    i) a produção nos grandes centros urbanos doshappenings e canções representativas

    populares nacionais que usam como suporte outras mídias, como o vídeo e o cd;

    j) releituras urbanas de cancioneiros, cordéis e repentes, através de uma roupagem

    rítmico-performática contemporânea.Através desses caminhos diversos, múltiplos e divergentes, e para além das querelas

    dicotômicas, pude constatar que o único acesso a uma poética da voz pressupõe um retorno

    ao sentido originário da poesia, gestão de mundo, fundamento de um universo, quando tudo

    era descrito e narrado poeticamente, no rito performático, e por isso sacro. Quando a cultura

    era eminentemente oral, a poesia produzia o livro vivo nas vozes dos anciãos, numa

    enciclopédia oral, desenvolvida no cotidiano social, político, religioso e de lazer.

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    Dois modelos arquetípicos desses narradores são o camponês que, cuidando da terra, morre

    ali no seu lugar; e o marinheiro, que percorre terras distantes, comercializando. Ambos têm o

    que contar uma vez que, suas experiências, por mais dolorosas que sejam, aguçam umaescuta. Nesses dois narradores residem duas formas de narrar: um traz ao seu lugar as

    experiências de lugares distantes, enquanto o outro traz de um tempo distante, pela memória,

    uma tradição passada de geração a geração. Benjamim associa essa arte de narrar à arte de

    tecer, o trabalho manual propiciava o desenrolar da prosa, lenta e calma, no ritmo preciso da

    agulhada na rede, ou da martelada no sapato, ou ainda, no preparo do alimento. Os artífices,

    portanto, foram os herdeiros dessa experiência narrativa dos dois arquétipos de narradores

    (BENJAMIN, 1985, p. 199). Se as experiências de narrar estão em baixa, isto se deve pelo

    fato de que acordamos todos os dias simplesmente cheios de notícias, repletos de cobertura

    dos fatos, e assim passamos o dia, sendo bombardeados pela informação, mas essas

    informações não estão a serviço da narrativa, continuamos “pobres em histórias

    surpreendentes” (BENJAMIN, 1985, p. 203). Enquanto a informação só é útil na sua

    efemeridade, e uma vez que é lançada já não terá mais serventia, a narrativa continua resoluta,

    “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”

    (BENJAMIN, 1994, p. 204).

    À parte isso, principalmente na segunda metade do século XX, ao mesmo tempo em

    que as cidades se avolumaram, incharam, e o campo se despopularizou, pôs-se em evidência ouniverso rural, analfabeto, marginal e popular nosmass media que culminou numa verdadeira

    enxurrada de pesquisas acadêmicas sobre o tema. O mundo ficou pequeno, do tamanho das

    novas tecnologias, que reduzem os espaços e fundem as paisagens, dando ao homem a falsa

    impressão de conhecer todos os lugares ao mesmo tempo em que lhe tira o direito à

    exploração não-virtual dos territórios. As subjetividades foram então ameaçadas pela

    homogeneização do sujeito. Os ciberespaços promovem, segundo Guattari, uma

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    desterritorialização do ser humano:

    O ser humano contemporâneo é fundamentalmente um serdesterritorializado. Seus territórios, existências originais – corpo, espaço

    doméstico, clã, culto – não estão mais plantados em solo estável, masintegram-se – desde agora – em um mundo de representações precárias e emconstante movimento (1994, p. 9)

    A crise do racionalismo exacerbado aponta para essa necessidade de uma volta às

    origens, como foi a revolução romântica em fins do século XVIII e início do século XIX. O

    autoritarismo da razão, conduzindo a humanidade à visão cronológica, não possibilitou uma

    abertura do pensar, ao contrário, preparou-nos para uma totalização do pensamento, e nos fez

    chegar ao Terceiro Milênio com o bojo acumulado e nos sentindo vazios, conforme assegura

    Portella:

    Século vespertino vem a ser século de acumulação e de vazio. Todas asconquistas, os afazeres e as tarefas, os relacionamentos, as instituições, osgrupos e os indivíduos, tudo enfim é protegido, promovido e favorecido. Aomesmo tempo em que hipoteca a liberdade e paralisa a criatividade. Estamosfalando do amparo que subjuga. Impera por toda parte um espaço saturado pelas dependências de ter e não ter.1

    Esse século vespertino, uma metáfora para o que Portella denomina de modernidade

    tardia, está repleto de ambivalência e ambiguidade, quebrando qualquer paradigma, inclusive

    o lugar da História e seu olhar carrancudo para a narrativa. E um recomeço é esboçado pelo

    homem. Estamos sempre num recomeço.

    Talvez, preocupado com a perda do sonho, o homem desterritorializado busca resgatar

    sua ancestralidade, procura fincar os pés no chão de um caminho possível. As pesquisas

    etnográficas, a Etnomusicologia, a Antropologia, a Etnocenologia, a serviço de uma

    transdisciplinaridade, têm colaborado para um caminho que culmine não mais numa

    polarização bem à moda racionalista do erudito/popular, letrado/iletrado, centro/margem, etc.,

    1 Palestra proferida em 10 de fevereiro de 1999, por ocasião das instalações do Comitê Caminhos do pensamentohoje, Paris: UNESCO/colégio do Brasil (ORDECC), sob o título Revisitando o começo da História.

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    mas a uma recondução dos espaços subjetivos. Nessa perspectiva, o corpo se insere como a

    ponte viável, e cobra seu espaço, seu território. Mais próximo do que Guattari denomina

    ecosofia, essa expectativa vigente na atualidade procura destituir o totalitarismo do pensamento, inserindo uma “escolha ético-política da diversidade, do dissenso criador, da

    responsabilidade frente à diferença e à alteridade” (1994, p. 10). É preciso, pois, buscarnovos

    caminhos para o pensamento, espaços onde as mentalidades sejam reterritorializadas. Guattari

    aponta um itinerário:

    Recuperar o olhar da criança e da poesia, ao invés do olhar cego e seco parao sentido da vida, próprios dos especialistas e tecnocratas. Não se trata deopor aqui a utopia de uma nova „Jerusalém Celeste‟, como aquela doApocalipse, face às urgências de nossa época, mas de instaurar uma nova„Cidade subjetiva‟ no coração mesmo de suas necessidades, reorientando asfinalidades tecnológicas, científicas, econômicas, as relações internacionais[...] e as grandes máquinas dos mass mídia” (GUATTARI, 1994, p.11).

    Ensaiando passos no caminho apontado por Guattari, minha reflexão não mira o olhar

    para os habitantes do coração da cidade, mas àqueles que formam um corpo na união dos seus

    corpos, e celebram um novo começo, ou um recomeço: os habitantes da margem, os isolados,

    no sentido mais etimológico que a palavra isolar possa ter, a saber, o habitante ilhado, ou

    tornado ilha. Os espaços periféricos da urbe servem agora de cenário para uma polifonia que

    se apresenta aos olhares acadêmicos, vindos do centro da cidade, para beber da fonte, e

    resgatar o novo homem na voz mitopoética. Não se trata de um olhar antropológico,

    sociológico ou, ainda, de natureza folclorizante. Tampouco constitui um olhar isolado. Trata-se de olhares plurais, caleidoscópicos, destituídos daquele saber arrogante que ia ao primitivo

    para especular, interpretar. O objetivo agora é buscar no outro o pedaço de nós que ficou

    perdido, já que ele é a fonte primária desse conhecimento.

    Portanto, interessa perceber a linguagem poética que funda o sagrado (tomado aqui

    não como suporte da religião, mas como essência formadora do homem), denuncia a história e

    instaura o novo pelo vigor poético. O território do sagrado não se limita, pelo contrário,

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    1.1 NATUREZA E SENTIDO DO IMAGINÁRIO MÍTICO

    Vida. Morte. Destino. Três palavras fortes. Tão densas que não suportam o peso do

    próprio sentido. Mas elas só têm esse peso para quem foi agraciado com a capacidade de

    experienciar a linguagem. Elas só causam medo para quem se pergunta sobre elas. O que é a

    vida para um animal? O que significa morrer para uma planta? E que ideia uma rocha faz do

    destino? Se apenas o homem tem a capacidade de transcender, isso significa que não há

    escapatória. Todo o pensamento humano se esforça para entender o conteúdo dessas três

    palavras. Para que nascer? E, se nascemos, por que devemos acabar? Somos destinados a quê?

    Esse pensamento é privilégio apenas de filósofos, cientistas e poetas? Não, todo homem está

    em contato o tempo todo com uma voz que o guia por caminhos ou rios de questionamentos.

    Percursos tortuosos que às vezes dão em algum lugar e muitas vezes em lugar algum. Desde

    que o homem é homem, para além das divergências da escala evolutiva da espécie humana,

    desde que o homem pensa, não há nada mais desafiador do que o conteúdo dessa tríade. O

    pensamento fez o homem buscar uma outra experiência da realidade, para além do físico, do

    sensível. Há um mundo inteligível, abstrato, que ultrapassa nossa finitude, nossa limitação

    física.

    Por que nascemos? Essa indagação surge quando nos damos conta de que a vida é

    transcorrer e esse desenrolar nos cobra ações. E quanto mais nos aproximamos da morte, mais

    a ideia da vida ferve em nossas veias. Com ela nos apegamos. Não queremos desistir dela. Por

    que devemos morrer, se nos foi permitido saborear o gosto da existência? Se pudéssemos

    subverter a natureza e mudar o curso... Se pudéssemos ser donos do nosso próprio caminho...

    E não somos? Não escolhemos entre variantes infindas? Não existe o infinito para o vivente.

    Um dia vamos morrer e tudo poderá estar acabado. O ser passou para a categoria do não-ser.

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    Aquilo que o homem acha mais bonito, a vida, será aniquilada. É nesse momento que lá

    dentro começa a rebentar uma revolta, uma vontade de pedir retratação à existência, um

    desejo enorme de justiça. Não é justo dar o gostinho da vida para tirá-lo em seguida. Não édireito não dar possibilidades de escolha diante da morte. Não é ético que um ser sozinho, a

    natureza, resolva brincar com os seres. Mas o que é justiça, o que é direito e o que é ética?

    Outras palavras que o homem criou para ajudá-lo a suportar a carga pesadíssima daquela

    tríade.

    O que fazer, então, diante de tão desafiadoras questões? Desde que o homem teve o

    seu primeiro espasmo diante de um trovão e saiu a imitar o barulho, e o raio flamejante

    possuiu o galho despertando neste homem uma paixão, e a água borbulhante conduziu este

    homem a um balbucio, e o bisonte despertou o desejo de captura através da tintura na caverna;

    desde que esses arroubos de consciência habitaram o homem, foi descoberta a passagem para

    o mundo paralelo e inteligível. Basta que analisemos as descobertas arqueológicas sobre os

    homens pré-históricos para chegarmos à conclusão de que lá, bem no começo, o medo girava

    em torno da tríade vida, morte, destino. O impulso do desejo é o medo. Mas não o medo

    paralisante.

    Por que enterrar o morto? Ainda mais: por que enfeitá-lo, velá-lo, construir para ele

    um templo, enchê-lo de recomendações, rodeá-lo de presentes, cercá-lo de lamentos ou festa?

    Por que preocupação com aquilo que já não é mais, que não tem mais sentido no mundosensível? É que morto está o ser, mas não a morte. Ela está ali presente, com toda sua

    majestade, com toda sua grandeza. Ela estáali dizendo para quem quiser ouvir: “Derrotei a

    vida. Derrotarei sempre. Não há como fugir. Eu sou o teu destino”. Mas, paradoxalmente, é

    também ali, num funeral, realizado há milênios, que está a fraqueza da morte. No momento

    em que se valoriza a fraqueza, o homem se descobre grande perante o inevitável. Diante do

    morto, é urgente que se celebre a vida, que seja lembrada uma trajetória, prodígios e

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    conquistas. Não é apenas pelo morto que se chora, senão também pelos vivos, para que

    continuem vivos, para que sejam mais fortes ainda diante da ameaça constante. Os mortos não

    escutam a sua história4, mas os vivos precisam dela para dizer tudo o que a existência é capaz

    de permitir e, enfim, sonharem com uma possível eternidade.

    Eis a instauração do mito. Estava fundada a mitologia, a religião e tudo o que somos

    hoje enquanto pensamento. Imaginar é o poder de ampliação do horizonte humano, já que o

    horizonte que divide o mundo sensível do inteligível é ilusório. A imaginação é construção do

    sentido da existência, mas não significa que esta faculdade se apoia no irreal apenas porque

    tenta tornar o imaterial palpável. Não está absorto no irracional esse horizonte. Narrar os

    prodígios do morto e elaborar pela palavra outros feitos é responder àquela questão tão velha

    que nasceu junto com o pensamento: como domar vida, morte e destino?

    Como então pensar que o mito leva ao irracional? Que ele não dá conta das questões,

    já que é mera invenção? O mito nos aproxima ainda mais do mundo real, porque nos dá força

    para o enfrentamento do nosso dilema. Assim, não deve ser encarado como natureza

    alienante, pois se servindo do concreto nos faz tocar o indizível. Volve nossa face para o

    mundo em que habitamos, enquanto projeta-nos para o mundo paralelo, pura doação. Como

    dizer que o mito é a grandeza da divindade apontando nossa pequenez, se somos nós os

    construtores dos deuses, se eles são o reflexo da nossa pergunta primordial?

    Domínio do fogo, domínio da caça, domínio da representação... Sempre a tríadeincitando o homem. Sem fogo, a morte se fortalece; sem caça, a fome é a morte; sem

    representação, acontece a morte da memória. O medo fez o homem criar o rito para ter

    domínio sobre si. E o rito é a liturgia, um ato de libação e oblação para a existência. O mito

    vislumbra o desconhecido do cimo da montanha da linguagem, e descobre que tudo é um,

    tudo-um. Por isso, toda experiência mítica é da ordem do excepcional. Além do que somos e

    temos, somos desafiados a avançar ao desconhecido, numa experiência extrema em prol da

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    vitória da vida. O mito reconfigura a vida, recriando-a, restaura o poder do homem que, tendo

    consciência de sua finitude, celebra a vida enquanto fita a morte com probidade.

    Tudo era um. Para os homens do passado, deuses, fenômenos meteorológicos,elementos da natureza, animais e pessoas não só habitavam o mesmo espaço como também

    estavam ligados emocionalmente. As respostas para problemas cotidianos, um mínimo

    problema que fosse, podiam vir de um relâmpago, do sereno, do cheiro da terra, das folhas

    caindo, da mudança das estações... A natureza falava diretamente ao homem, quando ouvi-la

    era capacidade primordial para garantia da sobrevivência. Esse sentido congregava os outros.

    Se tudo é substância de algo infinitamente maior que não consegue ser explicado, as mesmas

    leis regem os seres visíveis e invisíveis, palpáveis e impalpáveis. Desse modo, atitudes e

    sentimentos não seriam muito diferentes das árvores, da água, da rocha e das nuvens, pois

    também estariam impregnados da força necessária para modificar o mundo. Uma simples dor

    mata, uma simples inveja corrói, uma simples atração pode virar tormenta. Se as forças

    subjacentes aos homens, e que se concretizam nas atitudes e qualidades, têm o poder de

    engrandecê-los ou derrotá-los, então é justo construir um roteiro de normas para ensinar a

    comunidade a entender o mundo, as emoções, os medos e alegrias. Portanto, quando o mito

    mostra o comportamento dos deuses, que não têm características distantes dos homens, está

    indicando, na verdade, o caminho para as relações humanas, na melhor pedagogia possível,

    que é a pedagogia do prazer (acaso existe uma pedagogia eficaz sem o prazer?). Foi essaforma de ver e sentir o mundo que moldou o homem primitivo, instituiu as civilizações e

    mesmo após o advento da ciência, na idade da razão, não foi sucumbido de todo, mas

    continuou e continua organizando a trajetória humana.

    O tempo do mito, por conseguinte, não opera na linearidade cronológica, nem se

    sustenta aí. Uma vez que mundo interior, mundo exterior e mundo do transcendente se

    irmanam, não é possível associar eventos de naturezas tão distintas na sucessão e transcorrer

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    históricos. Se os eventos da natureza, as emoções e os fatos estão num mesmo nível de

    importância, o tempo que abraça e beija todas essas instâncias é o da graça benevolente, que

    traz à superfície do presente o acontecido e o que ainda virá, para a celebração da vida. A palavra é entronizada no rito para promover a catarse que opera a cura. Todo mito é procura.

    Todo mito evoca uma saudade intemporal do mundo perfeito porque uno. Essa noção de

    intemporalidade é muito complexa para o homem de hoje que caiu nas artimanhas do

    cronômetro e há tempos não consegue explicar sua existência no mundo sem a necessidade da

    linearidade do transcurso, ordenadamente, do antigo para o novo, do passado para o presente.

    Isso é tão caro ao homem que o relógio do novo milênio tem a precisão atômica. Mas não foi

    a teoria quântica que veio quebrar a noção de causa e efeito, como o fato de dois corpos não

    poderem ocupar o mesmo espaço? Que relógio mede o tempo de um pensamento? Qual a

    medida de tempo das emoções? Por que o relógio biológico não segue o mesmo esquema do

    relógio-objeto? E por que o relógio-objeto precisa, de tempos em tempos, ser adiantado em

    relação aos movimentos dos astros? Os homens do passado resolveram muitos problemas

    quando instituíram a fundação do mito no tempo do rito. Assim, o que já ocorrera, continuaria

    a ocorrer sucessivas vezes. Ritualizar é, pois, re-atualizar a vida, livrando-a das artimanhas do

    tempo linear.

    O mito promove um jogo utilizando-se da poesia e da música, da dança, do gesto,

    enfim, do corpo, para operar uma epifania, manifestação do inexprimível. Mito é engajamento para uma possibilidade. Essa possibilidade não aniquila as verdades sabidas, só projeta para

    outros modos de vê-las. O mito só quer ter eficácia na irrupção de um imaginário.

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    1.2 MITOPOÉTICA: ESPAÇO SAGRADO DA POESIA

    A natureza e o sentido do imaginário mítico permitem que o vejamos apenas de modo

    rarefeito. Sendo vivência, o mito se oculta e só consente ser vislumbrado por imagens

    moventes. Como uma tentativa de ver além da cortina, na busca de um sentido para a sua

    existência, o humano concebe arquétipos cujas referências primárias possibilitam interpretar

    fenômenos, fatos, destinos.

    Este estudo pretende constituir a reunião de um imaginário e não propriamente a

    interpretação de uma mitologia. Sendo o mito um impulso originário, criação por excelência,

    o interesse se dá em observar o como e o porquê dessas expressões imagéticas, tomando como

    modelo o mito sebastiânico. Num imaginário, são estruturadas leis, ideais se efetivam em

    sonhos, instituem-se os ritos e se dá sentido à vida. Não havendo separação entre ação e

    pensamento, já que a manifestação da palavra é ação e o mito, a presença do ausente, a

    experiência mítica da linguagem não suporta a redução interpretativa, pois se fundamenta a

    partir de experiências múltiplas.

    Segundo Bachelard, a imaginação é menos a possibilidade de formar imagens do que a

    faculdade de deformá-las, ou seja, a capacidade de mudar a imagem presente numa ausente.

    Assim, “o vocábulofundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas

    imaginário” (2001, p.1). Imaginação é sempre uma abertura do/para o imaginário, oinesperado deflagrado pelo esperado. Isso acontece numa mobilidade, não há imaginário no

    repouso, na inércia, pois é no movimento que as imagens se processam. Mito é imagem que

    não cessa de acontecer, através do anúncio da fala, do gesto, do corpo. O mito suscita um rito

    que é a abertura para o imaginário.

    Para percorrer um caminho mais seguro, é preciso delimitar o conceito de mito, já que

    a palavra assume historicamente inúmeras acepções, algumas até bem distanciadas do

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    originário grego Mythos. Ao conceito de Mito costumou-se contrapor o de Logos,

    pressupondo divergência, um abismo. Mito é constantemente apresentado como sendo uma

    narrativa de origem, ou seja, um relato de ordem cosmogônica. A explicação do surgimento deum mundo pela palavra constituiria o sentido de mito. Enquanto logos assumiria a realidade, o

    mito seria a ficção, portanto, não-realidade.

    Se tanto logos quanto mito querem dizer a palavra por excelência, o mito poderia se

    configurar como o outro do logos, mas não o oposto. Na vertente deste pensamento, Vernant

    afirma:

    Os mitos são outra coisa: são relatos aceitos, entendidos, sentidos como taisdesde nossos mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem,uma dimensão de “fictício”, demonstrada pela evolução semântica do termomythos, que acabou por designar, em oposição ao que dá ordem do real porum lado, e da demonstração argumentada por outro, o que é do domínio daficção pura: a fábula. Esse aspecto de narração [...] relaciona o mito gregoao que chamamos de religião, assim como ao que é hoje para nós a literatura.(1996, p. 230).

    Essa distinção entre mito e logos surge justamente a partir da introdução da cultura

    grafocêntrica, em virtude do domínio do pensamento lógico. Outra dubiedade apontada por

    Vernant é a que coloca o mito em posição oposta à História. Enquanto a História dá conta do

    passado marcadamente factual e recente, ancorando-se inclusive no testemunho e nos

    vestígios documentais, o mito refere-se ao passado remoto, numa esfera distante, atemporal e

    por isso difícil de ser compreendida, ficando sua verdade condicionada à palavra. Tanto pela

    palavra oral quanto pelo caráter libertário do tempo, o mito mostra-se no plano do fabuloso,

    da ficção, enquanto a história se pretende verdadeira5.

    O que se observa atualmente é a produção de mitos, a necessidade deles, mesmo em

    meio a tentativas de desmitificação da experiência humana. Para Carneiro Leão (2002) é

    necessária uma análise originária para se entender por que esse interesse pelo retorno ao mito.

    A própria ciência constrói os seus, numa atitude aparentemente contraditória, demonstração

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    de que a racionalidade não é suficiente para o processo de elaboração do pensamento. A

    verdade original encerrada no mito está sendo consumida nas narrativas cotidianas, nos

    mecanismos de produção de cultura, nos sistemas financeiros virtuais e até na banalização dosanseios do homem atual mergulhado no mundo não definido do ciberespaço.

    Na Grécia antiga, o mito não se confundia com poesia, pois era a própria poesia.

    Podemos dizer que os gregos tinham como suporte para sua história política, educacional e

    religiosa toda uma enciclopédia oral mitopoética.

    Todo mito opera uma realidade, sua finalidade é ter eficácia, produzindo um mundo

    pela narrativa. Por isso se sustenta de atemporalidade e universalidade. Sua geografia também

    é outra. Entendido como uma narrativa que enumera ações, o mito conta como alguma coisa

    surgiu, como se deu esse aparecimento. É, pois, em princípio, uma narrativa de fundação.

    Todas as coisas que apareceram nesse mundo, apareceram também através da narrativa, nesse

    fluir poético. Pode-se então falar em termos de uma coletividade mítica ou sociedade mítica

    em que as ações de seres sobrenaturais acontecem numa temporalidade e espacialidade não-

    humanos. A mitopoética funde esses mundos para que o homem possa sentir-se parte de uma

    esfera numinosa, maior que ele e suas forças. Se o tempo mítico não é cronológico, é a

    narrativa que instaura um momento original, onde algo vem a ser a partir de tempo e lugar

    sagrados. É o tempo mágico da origem. Essa geografia também é descontínua e tênue porque,

    embora opere uma realidade com eficácia, sua função transcende o real, aponta para outromapeamento da percepção da vida. Está-se sempre na origem, celebrando-a, revivendo-a,

    ritualizando-a. portanto, o mito não apenas aponta para um passado primordial, como também

    presentifica esse instante o tempo todo.

    O homem, então, precisa do rito para sentir esse êxtase criador. Nesse sentido, também

    uma mitopoética é sempre uma teopoética. A mensagem do mito ou sua hermenêutica

    (hermeneuein= transmitir = interpretar) é concebida na vivência e na sua expressão dinâmica:

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    Nem toda interpretação é uma hermenêutica. Somente aquela que descer atéà dinâmica do destino que estrutura a história. Nesse contexto o mito assumeum outro sentido. Deixa de ser uma lenda – isto é, um relato de estórias semverdade – para reaver toda a força de sua palavra. Poisho mythos exprime odestino que se lega historicamente à existência.” (CARNEIRO LEÃO, 2002, p. 196)

    Para Cassirer, ao oferecer uma origem, o mito também assinala um vir-a-ser, não se

    restringindo apenas numa criação confundida com um passado remoto e não-datável, a não

    ser pela marca de origem, como o momentum primordial em que algo nasce:

    O verdadeiro mito não nasce simplesmente no momento em que a intuição

    do universo com suas partes e forças se configura em certas imagens efiguras de deuses e demônios, mas no momento em que se atribui a taisfiguras, uma emergência, um via-a-ser, uma vida no tempo (1987, p. 129).

    O mito assinala não somente o rito de criação, mas nos insere num tempo alheio ao

    cronômetro da História (quer esse tempo seja linear ou cíclico). Apresenta, pois, uma outra

    dimensão. Segundo Freitag6 (2002), o conceito de tempo subjacente no mito não pode ser

    entendido como um desenrolar, próprio do tempo histórico, em que fatos e eventos se

    sucedem. O mito lança-nos para o tempo original (Urzeit ), um tempo efetivo (eingtliche Zeit )

    ou sagrado (heilige Zeit ): “Essa passagem corresponderia a um „rito de passagem‟ para uma

    nova qualidade de vida, em que é dado o salto qualitativo no tempo, do tempo profano para o

    tempo sagrado (ou não)” (FREITAG, 2002, p.118).

    Desse modo, podemos dizer que o mito é a saga que não se esgota no discurso, mas se

    constrói múltiplo e poeticamente. A mitopoética, assim, apresenta-se como o impulso para a

    criação ao mesmo tempo em que reúne e dá sentido ao corpo de imagens resultantes das

    experiências do pensar, dizer e fazer.

    Como se dá a experiência mítica da linguagem? Ou melhor, como a linguagem é capaz

    de ser o próprio fazer mítico? Pelo rito o mito se move, sublimando as ações humanas. Daí a

    dificuldade de pensar o mito teoricamente sem um retorno à sua constituição original, lá onde

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    a razão nem se anunciava ainda, e as leis só eram entendidas pela saga do fazer-dizer.

    Há que se penetrar na narrativa do mito e experimentá-la para vislumbrar sua voz.

    Digo vislumbrar porque o mito é duplamente manifestação e ocultação e sua aparência émistério para a linguagem. Mas se o Mito é origem que se funda no discurso, então aí se

    encontra o Logos, palavra fundante e instauradora que cobra do dizer uma postura, e do

    ouvido, a plena atenção, já que ambos vigoram na ordenação da vida pela linguagem:

    [...] o Logos é linguagem ontológica da vida, no mais elevado grau de suaexplosão na história humana, por isso, a vigência criadora do Logosrevoluciona não apenas a fala e o discurso, mas também o ouvido e o ouvir. Nas peripécias da criação, ouvir é escutar o Logos, seguindo o advento desua dinâmica de reunião no curso da história. (CARNEIRO LEÃO, 2002, p.140)

    Tudo que é de alguma forma o é porque foi ordenado na consciência cósmica do

    mundo. O dizer constitui esse realizar pleno e ontológico, conjuntura estrutural e força de

    congregar. Na casa do dizer tudo é coesão e estrutura, aí impera a totalidade deste mundo que

    se organiza na operação da linguagem. Não há espaço para a desordem e conflitos

    (CARNEIRO LEÃO, 2002 , p.140). Embora se pense na Linguagem como um meio, e meio

    natural, instrumental, ela não define o homem de modo reducionista, pelo contrário, só o

    define na sua essência. Os limites do mundo passam necessariamente pelos limites da

    linguagem, as fronteiras da linguagem sinalizam sempre possibilidades infinitas de aberturas,

    nunca fechamento.

    Por isso a experiência da Linguagem é, antes de tudo, a abertura do ser para o mundo,

    seja no êxtase provocado pela voz das Musas, ou escutando e auscultando a voz originária do

    dizer. Essa voz poderosa é o âmago da existência ou da ideia de existência, corpo do poético,

    pura construção e doação. A poesia neste trabalho quer ser vista liberta do estético, além do

    sentido religioso e do lúdico. A poesia congrega tudo isso, mas é livre para ser mais, no reino

    do mundo que lhe é próprio, o imaginário. No imaginário somos e não somos, mitificamos e

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    mistificamos a vida para que ela seja grandiosa, libertando-se das amarras do físico e do

    tempo. Buscar destituir a noção que temos de poesia é o primeiro passo para a leitura deste

    trabalho, que não se enquadra em área alguma do pensamento cartesiano academicista. É ele,o poético, que deve vigorar no seu rito próprio, na harmonia de sua música, no fulgor obscuro

    de sua voz que quer ser palavra, mas nem sempre a palavra a compreende. É por isso que a

    poética aqui apresentada é a poética da Encantaria, como feitiço, liturgia, profecia e

    adivinhação, é encanto lançando seu grito atemporal, extemporal, atópico e inebriando o

    ouvinte atento7.

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    1.3 CORPOREIDADE E PERFORMANCE: DA VOZ COMO GESTO.

    No princípio era a voz, emanação original do ser no mundo. Só muito depois é que

    veio a palavra, tentativa de concretização do pensamento. Na noite da evolução, a palavra

    vestiu-se da voz e foi para o baile flertar com o mundo. E a voz emudeceu pelo concretismo

    da palavra? Talvez. Mas quando a palavra não consegue abarcar o mundo, que se torna

    indizível, inexprimível, só a voz é que se exprime soberanamente, ecoando sons primitivos, a

    música da origem que deve ser sentida, não explicada. A voz é experiência plena do ser aqui e

    agora. Mas o que seria essa voz que é instrumento do jogo poético e objeto de si mesma,

    emanada de um corpo? (ZUMTHOR, 1993, p. 240). A voz que ressoa palavras, que emudece,

    que ecoa ruídos não linguísticos, que evoca sons primitivos, silvos, gritos, grunhidos? Que

    voz é essa que precisamos escutar e que é carne e ar? Onde está a linguagem aí, anterior ao

    homem que fala, ou a partir da história oral dele?

    Essa é a questão que a Linguística vem se debruçando há muito tempo para tentar

    entender a experiência do homem com a linguagem. A experiência que somos capazes de

    realizar se dá na linguagem ou a antecede? Onde acaba o entendimento, poder-se-ia perceber

    o quê? Não é o mito uma forma de apresentar uma experiência que dispensaria a linguagem

    por ela mesma? De qualquer modo, houve sempre um confronto de posicionamentos sobre a

    origem da linguagem: invenção humana ou dom divino? Essas questões são feitas por

    Agamben, ao retomar as posições benjaminianas sobre a pobreza da experiência e as

    indagações de Benveniste a respeito do sujeito que enuncia o eu. Para Agamben, ao se buscar

    um início da linguagem, uma origem, um momento que a antecede, recuperar-se-ia nessa

    infância do homem, uma dimensão transcendental, o lugar primordial da experiência (2008, p.

    54-78). Assim, o homem é sempre um infante para a experiência da linguagem, pois onde

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    acaba o humano e começa o linguístico? E onde se dá a ruptura da linguagem para que possa

    emergir a experiência? Agamben aponta: “O inefável é, na realidade, infância” (2008 , p. 62);

    e ainda: “experienciar significa necessariamente, neste sentido, reentrar na infância como pátria transcendental da história” (2008, p. 65).

    É por não assegurar a natureza da voz que ecoa do corpo e se projeta para outros

    corpos que a performance talvez seja uma via para se entender uma poética da voz. Voz que é

    constituída pelo pensamento e se corporifica; voz que se lança ao mundo, sendo também

    corpo da palavra ou destituída dela. Voz primitiva, nesse intermédio da linguagem que não

    consegue dizer, e do humano, que não pode dizer. O corpo é concebido como a via do dizer

    projetante e poético, onde o homem realiza-se como obra plena.

    É difícil para nós, herdeiros do alfabeto, pensar na palavra sem que deixemos de lado a

    sua visualidade, a pseudoconcretude do significante. Por isso, para voltar a uma cultural oral,

    torna-se imprescindível pelo menos perceber o abstracionismo presente na palavra. De que me

    serve a palavra se permaneço em silêncio? Palavra quer ser doação. É isto a palavra. A força

    daquilo que não se vê, calando fundo na alma. Algo entre o físico e o extrafísico, o pedaço do

    outro que chega até mim. A alteridade tornada concretude. A porção sensível e invisível capaz

    de trocar de corpo e preencher o outro. Tomar a palavra é sempre um rito de evocação e

    invocação. Evocá-la pressupõe tirá-la de um lugar onde ela nunca esteve e para o qual nunca

    mais voltará. E, no entanto, toma os corpos, é continente de um conteúdo, percorre caminhossem se atrelar a um tempo, porque ela própria constitui o evento. Daí porque, desde que os

    homens se reuniram e formaram grupos de convivência, a palavra tem sido encarada como

    uma força poderosa capaz de mudar os destinos da humanidade e dar sentido às coisas, muito

    diferente das sociedades grafocêntricas, que vêem as palavras não como algo real, eventual,

    mas como rótulo, etiqueta das coisas que nomeiam (ONG, 1998, p. 43).

    Os sentidos nos põem em contato com o mundo, ou melhor, o mundo interior encontra

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    o exterior na tradução contínua. Como um feixe simultâneo de troca de informações e

    sensações, enxergamos no interior o exterior e vice-versa. Responsáveis por essa tradução

    simultânea que faz o reconhecimento do abstrato no concreto, os sentidos físicos atuam demodo a nos presentear de mundificação. Dos sentidos, a experiência do som nos traduz o

    mundo exterior plenamente. Tato, paladar, olfato e visão, ainda que intrínsecos, fazem um

    recorte do exterior, dando-nos uma parcela. O som não:“a vista isola; o som incorpora”

    (ONG, 1998, p. 85). Ele penetra em nós, força viva, para nos fazer estremecer. Ele nasce de

    nós, sopro vivo, e parte para o outro. Somos a nossa própria ponte, limite. Ouvir e falar são,

    pois, atos de congregação de mim mesmo e do mundo. A natureza do som é ser unificador:

    “Quando ouço, no entanto, reúno o som ao mesmo tempo de qualquerdireção, imediatamente: estou no centro do meu mundo auditivo, que meenvolve, estabelecendo-me em uma espécie de âmago da sensação e daexistência.” (1998, p. 86)

    Para reconhecer que há um interior e um exterior, temos que nos conceber como

    corpo. Ele não deve ser negado, nada nele deve ser negligenciado. E, no entanto, não passa

    de fronteira, região limítrofe, ponto de referência espacial: “O corpo é uma fronteiraentre

    mim mesmo e tudo o mais. O que quero dizer com „interior‟ e „exterior‟ pode ser comunicado

    somente com referência à experiência da corporalidade” (ONG, 1998, p. 86). É então que

    surge a necessidade de pensar o corpo como arte. Estaria aí esboçado o desejo da construção

    do conceito do corpo performático.Se fossemos traçar uma arqueologia dos estudos da performance, precisaríamos partir

    de caminhos comuns, mas não iguais, nas artes, e percorreríamos a evolução do pensamento

    sobre o corpo em cada um desses percursos até que os feixes dessa evolução se cruzassem ou

    convergissem. Essencialmente, precisaríamos partir de dois pontos: da evolução dos estudos

    acadêmicos sobre as artes, especialmente a literatura e a linguística; da revolução do conceito

    de arte que surge nos trabalhos de intervenção investigativa do teatro, da dança e da pintura

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    do final do século XIX e início do século XX. Esses dois pontos vão percorrer um traçado

    comum para, finalmente, convergir, na década de 60, na ideia da performance como eixo

    integrador das linguagens e saberes. Resumindo, teríamos então:a) Em primeiro lugar, os estudos da oralidade, sobretudo a partir da segunda metade do

    século XIX, vão se mostrar interessados nos estudos comparativos de textos orais da

    atualidade com as obras épicas gregas homéricas, passando pelos movimentos de vanguarda

    do Modernismo, nas primeiras décadas do século XX, e culminando no estudo das

    vocalidades ou artes verbais e suportes midiáticos, da década de 1960 em diante, sob

    influência dos poetas que realizam vocalmente sua poesia. As contribuições das ciências

    sociais, sobretudo dos métodos de pesquisa da sociologia e antropologia, o uso da etnografia,

    etnologia para entender as culturas foram a dinâmica dos trabalhos do final do século XIX e

    início do século