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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
DOUTORADO EM HISTRIA
Porto Alegre
2013
LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN
ENTRE A MOBILIDADE E AS INOVAES:
A PRESENA DE MDICOS ITALIANOS NO
RIO GRANDE DO SUL (1892-1938)
Profa. Dra. Nncia Maria Santoro de Constantino Orientadora
LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN
ENTRE A MOBILIDADE E AS INOVAES: A PRESENA DE
MDICOS ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL (1892-1938)
Tese apresentada como requisito para
obteno do grau de Doutor em Histria pelo
Programa de Ps-Graduao em Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
da Pontifcia Universidade Catlica do Rio
Grande do Sul.
Orientador: Profa. Dra. Nncia Maria Santoro de Constantino
Porto Alegre
2013
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
S399e Schwartsmann, Leonor Carolina Baptista
Entre a mobilidade e as inovaes: a presena de mdicos
italianos no Rio Grande do Sul (1901-1938) / Leonor Carolina
Baptista Schwartsmann. Porto Alegre, 2013. 284 f. : il.
Tese (Doutorado em Histria) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, PUCRS.
Orientadora: Prof. Dr. Nncia Santoro de Constantino.
1. Histria. 2. Rio Grande do Sul Histria Sculo XX.2. Medicina Rio Grande do Sul - Histria. 3. Imigrantes Italianos -Rio Grande do Sul. I. Constantino, Nncia Santoro de. II. Ttulo.
CDD 981.65
Ficha Catalogrfica elaborada por
Vanessa Pinent
CRB 10/1297
LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN
ENTRE A MOBILIDADE E AS INOVAES: A PRESENA DE
MDICOS ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL (1892-1938)
Tese apresentada como requisito para
obteno do grau de Doutor em Filosofia pelo
Programa de Ps-Graduao em Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
da Pontifcia Universidade Catlica do Rio
Grande do Sul.
Aprovada em 18 de outubro de 2013.
BANCA EXAMINADORA
Dra. Nncia Maria Santoro de Constantino (PUCRS)
Orientadora Profa.
Dr. Jaime Larry Benchimol (Fundao Oswaldo Cruz)
Examinador Prof. Dr.
Dra. Maria do Rosrio Rolfsen Salles (Anhembi Morumbi)
Examinadora Profa.
Dra. Lorena Almeida Gill (UFPel)
Examinadora Profa.
Dra. Ruth Maria Chitt Gauer
Examinadora Profa.
[Rodrigo Cambar] Felicitava-se por ter tido a idia de
trazer aquele italiano para Santa F. O diabo do gringo
tinha mos de mago: era indubitavelmente o maior
operador que aparecera no Rio Grande do Sul. Outra
grande idia fora a de construir no quintal da farmcia
aqueles pavilhes de madeira com os quartos onde
ficavam os doentes para as operaes. Era uma espcie
de pardia de sua sonhada casa de sade... E esse
hospital improvisado vivia sempre cheio e no raro
tinham de acomodar precariamente os operados nos
corredores em cima de colches estendidos no soalho.
De todos os pontos de Santa F e dos municpios
vizinhos afluam doentes. O Dr. Carbone trabalhava
desde o raiar do dia e s vezes tinha de continuar
operando noite dentro.
(O retrato. O tempo e o vento II, segundo tomo. Porto
Alegre: Globo, 1975, p. 431).
Dizem, e muitos ainda acreditam, que a imigrao
italiana, que como em outras partes, composta
somente por camponeses, trabalhadores braais e
operrios; e mesmo quando se quer falar bem de nossa
Colnia, vem trazida a tona a frase estereotipada do
braccio italiano. Mas, ainda querendo desconhecer a
parcela da contribuio cientfica e artstica que os
italianos trouxeram para o benefcio do pas, seria justo
e tambm exato afirmar que da Itlia vieram para aqui
somente trabalhadores: trabalhadores do pensamento e
braais. Tanto uns como os outros tiveram e tm uma
nobre e til misso para desenvolver neste pas, que de
braos e mentes sempre teve escassez.
(CINQUANTENARIO della colonizzazione italiana nel
Rio Grande Del Sud (1875-1925), Porto Alegre:
Livraria do Globo, 1925, p. 440-441).
AGRADECIMENTOS
professora Nncia Maria Santoro de Constantino, pelo acompanhamento durante a
preparao de minha dissertao de mestrado e, agora, pela orientao dedicada de minha
tese de doutorado, pelo carinho e amizade que foram desenvolvidos durante todos estes
anos.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Histria da PUCRS, pelo
interesse e pela contribuio terica, em especial, Ruth Chitt Gauer, Ren Gertz e Cludia
Musa Fay.
historiadora Angela Beatriz Pomatti, pela parceria durante as pesquisas realizadas.
Aos funcionrios tcnico-administrativos do Programa de Ps-Graduo em
Histria, em especial Carla Helena Pereira, pela ateno e pelo auxlio.
professora Rejane Penna, pela contribuio terica e amizade.
professora Lorena Gill, pelas crticas no exame de qualificao.
professora Vra Barroso, por sua solicitude.
professora Juliane Serres, pelas orientaes e discusses.
Ao historiador Everton Quevedo, pelo acesso documentao do Museu de Histria
da Medicina do Rio Grande do Sul.
Aos depoentes, que me auxiliaram em seus conhecimentos e experncias, Maria
Toffoli Baptista, Walter Koff, Geraldo Mainardi, Giovanni Baruffa e, in memoriam, Jos
Baptista Neto, Joo Constantino e Ana Maria Sparvoli.
Aos historiadores Joo Luz, pela lembrana em me enviar notcias sobre mdicos
italianos e Priscila Silveira Baum pela colaborao na pesquisa.
Ao grupo dos garibaldinos, que me proporcionaram discusses e muita satisfao
durante os eventos realizados de temtica da imigrao italiana.
Aos alunos Luiz Paulo Barros de Moraes e Alana Dariva, pelo apoio na pesquisa.
professora Margarteh Chwartsmann, pela colaborao na reviso do texto.
Ao revisor Lus Augusto Lopes, pela reviso final do texto.
Ao Adalberto Mocelin e Luciane Zarpelon Ribeiro, pela presteza no atendimento.
revisora Rosa Velho, pelo apoio tcnico.
Aos amigos e familiares, que me apoiaram neste perodo.
Ao Gilberto, Guilherme, Laura e Denis todo o meu carinho.
RESUMO
No final do sculo XIX e nas dcadas iniciais do sculo XX, um contingente de
mdicos italianos radicou-se no Rio Grande do Sul, amparados pelas facilidades que a
legislao estadual propiciou para o seu exerccio profissional. Sua vinda para a Amrica do
Sul foi caracterizada por uma mobilidade que incluiu vrios pases deste continente, e pela
constituio de redes sociais de acolhimento, includas as redes e as cadeias imigratrias.
Nesta tese, a autora tem por objetivo analisar os fatores que ocasionaram a imigrao deste
grupo de profissionais liberais, a maneira como se integraram na nova sociedade e os aportes
que trouxeram para o Estado. So destacadas as caractersticas da formao mdica na Itlia e
no Brasil. So discutidas as legislaes pertinentes ao exerccio profissional, os registros nas
instituies pblicas e a questo da revalidao do diploma de mdicos estrangeiros. Os
mdicos italianos trouxeram uma srie de inovaes que ajudaram a modificar a Medicina
deste Estado, a qual passava por um momento de reconhecimento e de consolidao de seu
campo. Construram hospitais, casas de sade, maternidades e enfermarias. Foram
introdutores de especialidades como a oftalmologia. Destacaram-se no campo cirrgico, na
obstetrcia e na radiologia, bem como no tratamento de tuberculose e sfilis. Atuaram como
representantes de seu grupo tnico em vrias oportunidades. Sua presena em Porto Alegre,
capital do Estado, alcanou a cifra de 10% do total de mdicos nas primeiras duas dcadas do
sculo passado.
Palavras-chave: Imigrao italiana; redes sociais; inovaes na sade; histria da Medicina;
mdicos italianos.
ABSTRACT
By the end of the XIX century and during the first decades of the XX century, a
significant number of Italian doctors have settled in the State of Rio Grande do Sul, in
Southern Brazil. By that time, the state law facilitated the exercise of the medical profession
in the region. Their presence was characterized by a high geographic mobility, which included
several South American countries and the establishment of strong bonds of social networking
along the migratory process. In this study, the author evaluated the conditions that caused this
flow of foreign doctors to the region, how they were integrated in society and their
contribution to development of the region. The way medical profession was structured in both
Brazil and Italy is discussed. Legal issues that were related to medical practice, their
registration in public institutions and the question of medical diploma revalidation in the State
of Rio Grande do Sul are discussed. Italian doctors introduced a series of innovations into
medical practice, during a period in which the profession was still gaining formal recognition.
They have built hospitals, health care units, maternities and general infirmaries, being
instrumental in the development of various specialities. Italian doctors became recognized in
several fields, such as surgery, obstetrics, ophthalmology and radiology. They were also
experts in the management of very prevalent and challenging diseases at that time, like
syphilis and tuberculosis. They also conquered high positions in society, being representatives
of their ethnic group in political and social events. During the first two decades of the XX
century, Italian doctors comprised about 10% of the total population of doctors in the city of
Porto Alegre, the capital of the State of Rio Grande do Sul.
Key-words: Italian immigration; social networks; innovations in health; medical history;
Italian medical doctors.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - De Patta, mulher, filhos e bab em 1916 ................................................................ 40
Figura 2 - Dr. Jos Ravelli ....................................................................................................... 54
Figura 3 - Mapa da distribuio geogrfica de Mdicos (1943).............................................. 61
Figura 4 - Farmcia Popular .................................................................................................... 75
Figura 5 - Comisso do Comit Colonial Italiano ................................................................... 87
Figura 6 - Composto do Dr. Rocco ....................................................................................... 143
Figura 7 - Farmcia Providncia em Garibaldi ..................................................................... 151
Figura 8 - Palombini (centro) com filho e empregados ......................................................... 160
Figura 9 - De Patta e o Hospital So Carlos .......................................................................... 182
Figura 10 - Arrigo Cini .......................................................................................................... 203
Figura 11 - Diploma conferido na Exposio Internacional de Higiene Social. Roma......... 216
Figura 12 - Corpo mdico do Hospital Santa Casa de Rio Grande 1935 Sentados, Duprat, Diretor do Hospital, 1 esq., Sparvoli, 3 esq. Bertoni, em p, ao centro. .... 219
Figura 13 - Sanatrio Santo ngelo das Misses, inaugurado por Enzo Salaroli ................. 224
Figura 14 - Tacchini depositando a pedra fundamental do Hospital Tacchini ...................... 224
Figura 15 - Casa de Sade do Dr. C. Anella.......................................................................... 227
Figura 16 - Hospital de Santa Maria na dcada de 1920 ....................................................... 229
Figura 17 - Corpo mdico do Hospital de Caridade de Santa Maria na dcada de 1920.
Sentados, Nicola Turi, 1 esq., Astrogildo de Azevedo, 2 esq., Arthur
Filose, 3 esq. ................................................................................................... 235
Figura 18 - Sanatrio de Jaguari, incio do sculo XX .......................................................... 236
Figura 19 - Diploma de Mdico de Riego Sparvoli, Roma, 1907 ......................................... 240
Figura 20 - Diploma de Mdica de Ana Maria Sparvoli, Roma, 1939.................................. 241
Figura 21 - Dr. Carbone atendendo os feridos da Revoluo de 1923 .................................. 253
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Caractersticas dos mdicos italianos constantes no livro Panteo Mdico
Riograndense ......................................................................................................... 60
Quadro 2 - Municpios de atuao dos mdicos em 1943 ....................................................... 62
Quadro 3 - Origem dos diplomas dos mdicos que solicitaram revalidao na Faculdade
de Medicina de Porto Alegre (1900-1939) ......................................................... 115
Quadro 4 - Universidades italianas de registro dos diplomas ............................................... 115
Quadro 5 - Caractersticas dos mdicos que fizeram seus registros na D. H. S. ............ 121,122
Quadro 6 - Dcadas de formatura dos mdicos que registraram seus diplomas na DHS
(1932-1934) ......................................................................................................... 122
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Dcadas de formatura dos mdicos italianos ......................................................... 63
Tabela 2 - Universidades italianas ........................................................................................... 64
Tabela 3 - Regio geogrfica da Itlia de localizao das universidades ................................ 64
Tabela 4 - Relao de mdicos italianos e nacionais presentes nos Livros de Registro de
Impostos sobre Profisses (1898-1920) ................................................................. 79
Tabela 5 - Medianas dos anos de registro na Lista de Impostos sobre Profisses .................. 80
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................... 13
1 O CONTEXTO DA PROFISSO MDICA NA ITLIA NA PASSAGEM DO SCULO
XIX PARA O XX .............................................................................................................. 29
1.1 A TRADIO DA MOBILIDADE GEOGRFICA DOS MDICOS ITALIANOS .... 29
1.2 O ESTADO DA PROFISSO MDICA E AS POSSIBILIDADES DE ATUAO NA
ITLIA .............................................................................................................................. 32
1.2.1 A Condotta Medica ........................................................................................................ 34
1.2.2 O estado da cirurgia na Itlia ...................................................................................... 37
1.3 AS CARACTERSTICAS DA FORMAO UNIVERSITRIA E A ESPECIALIZAO
MDICA ............................................................................................................................ 38
1.3.1 O acesso Faculdade de Medicina .............................................................................. 38
1.3.2 A especializao ps-lurea acadmica ...................................................................... 41
1.4 O EXCESSO E/OU PLETORA DE MDICOS ............................................................... 43
1.5 POLTICAS ITALIANAS REFERENTES AO PROCESSO MIGRATRIO........................ 48
1.6 ESTUDO DE UM GRUPO DE MDICOS ITALIANOS NO PANTEO MDICO
RIO-GRANDENSE ............................................................................................................ 57
2 CARACTERSTICAS DO EXERCCIO DA MEDICINA POR MDICOS
ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL NAS DCADAS INICIAIS DO
SCULO XX ................................................................................................................................. 72
2.1 A PRESENA DOS MDICOS ITALIANOS EM PORTO ALEGRE ........................... 77
2.2 LEGISLAO PERTINENTE AO EXERCCIO DA MEDICINA POR MDICOS
ESTRANGEIROS NO BRASIL E NO RIO GRANDE DO SUL ................................... 90
2.2.1 As legislaes federais e estaduais e a Faculdade de Medicina de Porto Alegre .... 92
2.3 REVALIDAO DE DIPLOMA DE MDICOS ESTRANGEIROS NA
FACULDADE DE MEDICINA DE PORTO ALEGRE ................................................ 112
2.3.1 Exame de Revalidao de diploma de Fausto Agostini (1924-1925) ...................... 116
2.4 O REGISTRO DE MDICOS ITALIANOS NA DIRETORIA DE HIGIENE E
SADE DO RIO GRANDE DO SUL ............................................................................ 119
2.4.1 O mandado de segurana de 1938 ............................................................................. 123
3 REGISTROS DE MDICOS: A ESCRITA DE SI COMO FONTE PARA O
ESTUDO DA INSERO DOS MDICOS ITALIANOS .......................................... 126
3.1 RICARDO DELIA E SEU ITINERRIO POR DIFERENTES PASES DA AMRICA DO SUL ....................................................................................................... 129
3.1.1 Caractersticas dos escritos de DElia ....................................................................... 130
3.1.2 Uma longa viagem ...................................................................................................... 133
3.2 LUIGI CARDELLI E O RELATRIO OFICIAL SOBRE DOIS ESTADOS
BRASILEIROS ................................................................................................................ 145
3.2.1 A experincia profissional em So Paulo .................................................................. 146
3.2.2 A experincia profissional no Rio Grande do Sul .................................................... 150
3.3 GIOVANNI PALOMBINI E A PROPAGANDA PARA A IMIGRAO ................... 158
3.3.1 O relato de viagem e a geografia mdica .................................................................. 164
3.3.2 Aspectos da sade da populao ............................................................................... 167
3.4 DE PATTA: ENTRE INCNDIOS E DISPUTAS PELO CONTROLE DAS
PRTICAS DE CURA ................................................................................................... 178
3.4.1 Leoni di Calabia in terra Riograndense ..................................................................... 180
3.4.2 A tradio oral de Anta Gorda .................................................................................. 188
3.4.3 A verso do mdico Vicente Modena ........................................................................ 190
3.4.4 Documentos de Virgilio Silva .................................................................................... 192
3.5 A RETRATAO DE UMA COMUNIDADE ............................................................. 197
4 O PAPEL DE INOVADOR ............................................................................................. 199
4.1 MDICOS OFTALMOLOGISTAS: A INTRODUO DA ESPECIALIDADE
NO ESTADO .................................................................................................................. 202
4.2 A FEBRE AMARELA E O DR. BELLINZAGHI: DE RIO GRANDE PARA
MXICO, EUA E CUBA ................................................................................................ 205
4.3 PESTE BUBNICA, UM DIAGNSTICO NO DESEJADO .................................... 209
4.4 O TRATAMENTO DA TUBERCULOSE ..................................................................... 214
4.5 A CRIAO DE HOSPITAIS E A CIRURGIA ............................................................ 219
4.5.1 Hospital de Caridade de Santa Maria e a presena de mdicos estrangeiros ....... 228
4.5.2 Sparvoli e a Santa Casa de Rio Grande: o desenvolvimento da ginecologia e
obstetrcia ..................................................................................................................... 238
4.5.3 Sparvoli e Tacchini: o caso da osteomielite e o reconhecimento cientfico por
seus pares ..................................................................................................................... 244
4.5.4 De Patta e a construo de hospitais ......................................................................... 246
4.5.5 Dr. Carbone, um personagem de fico e da realidade .......................................... 250
CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 255
REFERNCIAS .................................................................................................................. 262
INTRODUO
A investigao da histria da imigrao de mdicos italianos para o Brasil, em especial
para o Rio Grande do Sul, destaca os processos pelos quais estes imigrantes, individual e
coletivamente, se estabelecem em uma nova regio ou pas, e pelas maneiras em que as redes
sociais e os estilos de vida do local de origem so recriados e modificados no novo mundo. A
imigrao de mdicos carrega consigo um valor agregado econmico, social e cultural aos
espaos de recepo, que merece ser estudado. Dessa maneira, o conhecimento da experincia
deste grupo profissional no seu local de destino um elemento necessrio compreenso da
prpria histria da medicina em um momento de consolidao dessa profisso em nosso Estado.
A mobilidade internacional de elites no um fenmeno recente, os mdicos so
herdeiros desta antiga tradio migratria. Exemplos de profissionais que aqui aportaram
sugerem que a presena de mdicos italianos bem mais precoce que aquela sugerida pela
imigrao colonizadora oficial, iniciada em 1875.
Sabe-se que um dos primeiros doutores em medicina a atuar no Rio Grande do Sul foi
Jlio Csar Muzzi, que assumiu como Fsico-mor das tropas da Capitania em 9/3/1809. O
registro do decreto de sua nomeao na Junta da Real Fazenda estipulava um ordenado anual
de 400 mil ris. Muzzi foi encarregado da introduo da inoculao da vacina nos habitantes
brancos e pretos daquela capitania1. Muzzi chegou ao Rio Grande do Sul em 1809, com a
determinao de introduzir a vacinao antivarilica. Conforme Franco, esta tarefa comeou a
ser desenvolvida em 1820, segundo o plano apresentado ao Governador Conde de Figueira,
datado de 25/7/1820, para o Continente de So Pedro. Para o encargo de vacinadores,
indicava cirurgies-mores em Porto Alegre, Vila de Rio Pardo e Vila de Cachoeira. Para a
Vila de Santo Antnio, foi proposto o cirurgio Marcos Cristino Fioravanti, recebendo um
ordenado de 150$00 anuais2. Muzzi foi tambm juiz delegado em comisses examinadoras de
mdicos para exercerem sua profisso nesta provncia. Em 1825, examinou o doutor Amrico
Cabral de Mello, que havia se formado em Medicina na Inglaterra3.
Constantino registra a presena precoce de mdicos italianos em Porto Alegre. Na
dcada de 1840, foram batizadas duas crianas filhas do mdico milans Francisco Friziani. O
1 FRANCO, Srgio da Costa. Os primrdios da Medicina no Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histrico e
Geogrfico do RGS, Porto Alegre, ano 84, n. 138, p. 160, out. 2003. 2 Ibidem, p. 160-161. 3 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Documento n 85. Coleo Varela.
14
assentamento foi feito no livro de batismos da Parquia Nossa Senhora Me de Deus desta
capital4. Em 1885, O jornal A Federao noticiou o falecimento do dr. Fernando Suzini,
mdico italiano que h muitos anos residia em Santa Vitria do Palmar5.
Entre o final do sculo XIX e incio do XX, ocorreu um grande fluxo de pessoas da
Europa em direo ao Novo Mundo. Artistas, arquitetos, msicos, professores e comerciantes
trouxeram suas habilidades para o Brasil. Entre os profissionais liberais, destaca-se um grupo
especial composto por mdicos italianos que se radicaram no Rio Grande do Sul.
***
O que um imigrante? Para Sayad, um imigrante essencialmente uma fora de
trabalho, e uma fora de trabalho provisria, temporria, em trnsito. A imigrao encontra-
se dividida entre duas representaes, ou seja, um estado provisrio que se prolonga
indefinidamente, e um estado mais duradouro que vivido com um intenso sentimento de
provisoriedade. Desse modo, a imigrao oscila entre o estado provisrio que a define de
direito e a situao duradoura que a caracteriza de fato6.
Gradualmente, com o passar dos anos, a considerao da condio do imigrante como
a de trabalhador estrangeiro, com suas posies, situaes e condies sociais e de trabalho,
vem sofrendo uma reformulao. Torna-se mais visvel a disposio de valores, normas e
crenas de que eles so portadores, e que, regendo seu comportamento, determinam o seu
modo de instalao e suas relaes com os habitantes locais7.
Para Devoto, a noo de ser imigrante tanto no carter jurdico, literrio e sociolgico
modificou-se nos ltimos anos. O autor considera que podem existir duas definies que
conceituam o imigrante. A primeira uma definio restrita que situa o objeto de estudo em
torno ao tipo humano mais frequente, que composto por homens jovens de procedncia rural
com habilidades (skills) manuais. A segunda uma definio mais ampla e que permite
perceber melhor a riqueza e a variedade do fenmeno. Ela inclui uma variedade de situaes e
ocupaes destes personagens; uma multiciplidade de motivos que ocasionaram a imigrao e
que podem incorporar o caso dos exilados e os refugiados; e, por ltimo, considera a insero
4 CONSTANTINO, Nncia S. O italiano da esquina. Imigrantes na sociedade porto-alegrense. Porto Alegre:
E.S.T, 1991, p. 39. 5 EM SANTA Vitria do Palmar. Federao, Porto Alegre, 13 de fevereiro de 1885, p. 1. 6 SAYAD, Abdelmalek. A imigrao ou os paradoxos da alteridade. So Paulo: Editora da Universidade EDUSP,
p. 45-47, 54. 7 SANTAMARA, Enrique. Lugares comuns e estranhamento social: a problematizao sociolgica das mobilidades
geogrfica. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel. Polticas e poticas da diferena. Belo
Horizonte: Autntica, 2001, p. 99.
15
e participao dentro do mundo dos imigrantes e de sua comunidade tnica. So exemplos os
engenheiros e empregados de empresas estrangeiras, os padres que se deslocam para assistir
s suas comunidades, mdicos e farmacuticos interessados em uma clientela tnica, tcnicos,
artesos e comerciantes8.
O entendimento da noo de rede fundamental quando se almeja compreender as
migraes histricas ou contemporneas como um processo social. Desta maneira, a
anlise do fluxo imigratrio de mdicos italianos pode ser considerada a partir da utilizao
das cadeias e das redes migratrias. Segundo Truzzi, a utilizao dos termos cadeias e de
redes migratrias refora o fato de que muitos decidiram emigrar aps informarem-se do
sucedido com imigrantes anteriores. Essas informaes apontaram sobre perspectivas de
emprego, alojamentos iniciais e recursos financeiros necessrios para a viabilizao da
viagem. Os emigrados influenciaram o comportamento de novos migrantes em potencial,
estimulando ou refreando seus projetos9.
As migraes em cadeia surgiram como decorrncia do fluxo migratrio para aqueles
que no so os pioneiros. Truzzi utiliza as definies de cadeia de Macdonald e Macdonald
(1964) como sendo o movimento pelo qual os futuros migrantes se inteiram das
possibilidades de trabalho existentes, recebem os meios para se deslocar e resolvem como se
alojar e como se empregar por meio de suas relaes sociais primrias com emigrantes
anteriores10; e a de Baily (1985), que, ao analisar o caso da imigrao italiana na Argentina,
definiu o termo cadeia como sendo os contatos pessoais, as comunicaes e os favores entre
famlias, amigos e paesani (conterrneos de um mesmo paese, ou aldeia) em ambas as
sociedades, emissora e receptora, fatores que determinariam quem emigrava, o destino
escolhido, e com quem os imigrantes se relacionavam11.
Devoto demonstrou que as cadeias migratrias possuem um carter de aldeia ou
microrregional maior que aquele familiar ou de parentela. Este fator decorre de uma
revalorizao da comunidade como campo de interao social. A centralizao na aldeia
8 DEVOTO, Fernando. Historia de la inmigracin en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p. 41-42. 9 TRUZZI, Oswaldo. Redes em processos migratrios. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, So Paulo,
v. 20, n. 1, p. 199-200, 2008. 10 MAC DONALD, L.; MAC DONALD, J. S. Chain migration, ethnic Neighborhood formation and social
networks. The Milbank Memorial Fund Quartely, XLII (1), p. 82, 1964, apud TRUZZI, Oswaldo. Redes em
processos migratrios. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, So Paulo, v. 20, n. 1, p. 202, 2008. 11 TRUZZI, op; cit., p. 202-203.
16
projeta, desse modo, o espao social da cadeia migratria, visto como um deslocamento no
qual ocorre a rede de relaes primria12.
Truzzi salienta que a expresso redes migratrias mais abrangente na atualidade.
Essas podem ser definidas como as ligaes entre os migrantes e no migrantes nos locais de
destino atravs de vnculos de parentesco, amizade ou conterraneidade. Em sua funo social,
as redes so agrupamentos de indivduos que mantm contatos recorrentes entre si atravs de
relaes ocupacionais, culturais ou de amizade, que se utilizam de informaes13.
Dessa maneira, a utilizao das redes e das cadeias migratrias permite a anlise do
fenmeno dos fluxos imigratrios internacionais desde a perspectiva das estratgias
empregadas pelos prprios imigrantes. Esta abordagem possibilita interpretar a constante
redefinio das relaes de conflito e de solidariedade entre os imigrantes da rede e entre os
lugares que formam parte dos itinerrios dos mesmos. O transitar dos migrantes entre dois
mundos culturais, a circulao de bens materiais e simblicos entre os lugares de origem e de
destino criam, assim, um novo espao sociocultural e econmico que transcende os limites
nacionais14.
Nas narrativas dos imigrantes, as redes de sociabilidade so mostradas como um
aspecto importante da experincia da migrao, no momento em que os imigrantes chegam
em novas cidades, pois proporcionam um crculo social de apoio. Thomson cita Isabelle
Bertaux-Wiame, em seu estudo pioneiro da migrao de pessoas das provncias francesas para
Paris, no perodo entreguerras, ao afirmar que as histrias de vida esclarecem as relaes
sociais que esto por trs dos processos emigratrios, como tambm as redes de relaes entre
pessoas que no deixaram um vestgio escrito15.
De acordo com os registros deixados por mdicos, em relatos de viagens, dirios ou
relatrios oficiais, nota-se que as trajetrias de vida destes mdicos so caracterizadas por
uma grande mobilidade. Foram frequentes os casos de deslocamentos sustentados pela
procura de posies profissionais mais adequadas. O caso do mdico Michele de Patta pode
12 DEVOTO, Fernando. Historia de la inmigracin en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p. 127. 13 TRUZZI, Oswaldo. Redes em processos migratrios. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, So
Paulo, v. 20, n. 1, p. 203, 2008. 14 PEDONE, Claudia. Cadenas, redes migratrias y redefinicin de lugares. In: ZUSMAN, Perla; LOIS, Carla;
CASTRO, Hortnsia (Orgs.). Viajes y geografas. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007, p. 244-246. 15 BERTAUX-WIAME, Isabelle. The life history approach to the study of internal migration. In: Oral history v.
7, n. 1, 199, p. 26-32, 1979, apud THOMSON, Alistair. Histrias (co)movedoras: histria oral e estudos da
imigrao. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 22, n. 44, 2002 On-line version. ISSN 1806-9347
Dispomvel em: . Acesso em: 7 mar. 2013.
17
exemplificar questes como a mobilidade geogrfica, a introduo de inovaes mdicas, os
constrangimentos sofridos, as disputas entre outras pessoas provedoras de cuidados de sade,
as redes sociais utilizadas na recepo no sul do pas, o papel social e a notabilidade
adquirida. O mdico atuou em vrios ncleos urbanos situados no Rio Grande do Sul e em
Santa Catarina e notabilizou-se pela criao de hospitais e/ou casas de sade em seu itinerrio
por esta regio.
A estratgia de mobilidade propicia o entendimento dos processos envolvidos na
mobilidade. Ela viabilizada atravs de opes feitas pelo conhecimento de uma rede de
itinerrios possveis, constitudos historicamente, e de locais que adquiriram notoriedade16.
Deve ser considerada a partir das condies fsicas, de infraestrutura e institucionais que lhe
ocasionam e que desvelam os movimentos de pessoas, de objetos, de imagens e de ideias.
Estes so traados a partir das tenses entre aes pessoais e constrangimentos estruturais, ou
modificados por atos de agentes individuais. Ela percebida como uma ameaa, uma fora
pela qual a tradio, os rituais e as crenas desaparecem ou se perdem17.
O termo notvel pode ser utilizado para a percepo das vrias situaes em que um
indivduo exerce sua influncia. Esta pode se localizar no campo econmico, poltico, social
ou cultural. Sua legitimidade e seu poder de ao situam-se sobre sua influncia mltipla
nestes ltimos. Tudesq constata que um indivduo pode, desta maneira, se posicionar em um
determinado campo ao mobilizar elementos patrimoniais, como bens imobilirios, ou bens
simblicos, como linhagem e cultura. Vrios fatores combinados podem ser empregados para
ser o mediador entre uma sociedade local e a sociedade global. Essa mediao pode ser de
carter tecnolgico (introduo de novas tecnologias); de mediao poltica com um poder
central, ou demonstrada pelo poder de persuaso sobre os indivduos. O notvel se caracteriza
ento: pela sua importncia (importncia de sua riqueza, de suas atividades), sua visibilidade
(visibilidade de bens, de seu nome, de suas aes) e sua utilidade (utilidade para seus clientes
ou protegidos). O notvel uma ligao entre o poder central e os indivduos; ele funda sua
legitimidade na relao que mantm com o outro polo18 19.
16 PVOA, Helion. Itinerarios de la movilidad garimpeira. In: ZUSMAN, Perla; LOIS, Carla; CASTRO, Hortnsia
(Org.). Viajes y geografas. Buenos Aires: Prometeo, 2007, p. 236. 17 GREENBLATT, Stephen. A mobility studies manifesto. In: _______. (Org.). Cultural mobility - a manifesto.
Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 250-251. 18 TUDESQ, A. J. Les grands notables em France (1840-1849). tude historique dune psycologie sociale. Paris:
PUF, 1964, apud LAMBERT, David. Notables des colonies. Une lite de circonstance en Tunisie et au
Maroc (1881-1939). Rennes: Presses Universitaies de Rennes, 2009, p. 21-22.
18
Vrias foram as situaes que podem ser exemplificadas como caractersticas da
notabilidade de mdicos italianos dentro e externamente ao seu grupo tnico. As situaes
citadas a seguir podem ser reconhecidas como sendo as caractersticas que um notvel possui
conforme foi estudado por Lambert, ao identificar a atuao dos membros da elite colonial
francesa no Marrocos e na Tunsia no final do sculo XIX e nas dcadas iniciais do sculo
passado20.
As informaes sobre suas atuaes so obtidas em listagens de boletins, em
dicionrios ilustrados, em lbuns comemorativos e nas descries de cidades importantes do
Estado. Sua presena visvel em relatrios consulares, nas cerimnias ligadas recepo e
instalao de embaixadas estrangeiras quando so escolhidos para recepcionar os convidados
e proferir discursos pelo protocolo. Mdicos foram escolhidos como conselheiros e agentes
consulares, ou seja, como intermedirios nas relaes entre o governo local e a comunidade
italiana. Ocupam cargos pblicos destacados. Aparecem em registros mdicos e em textos
jornalsticos de carter educativo, relacionados s informaes sobre sade e difuso de novos
tratamentos mdicos.
So presenas assduas no espao urbano, em locais emblemticos de reunio de
grupos tnico, nos projetos de construo de edifcios, sendo os mais destacados aqueles de
criao de hospitais. Os mdicos esto presentes em comemoraes de datas expressivas,
como no Cinquentenrio ou no Centenrio da Imigrao Italiana, em inauguraes de
esttuas e de monumentos comemorativos a datas marcantes da Itlia ou da Revoluo
Farroupilha, que, por casualidade do destino, so comemoradas conjuntamente, em destaque
as esttuas que homenageiam Garibaldi21. Citam-se, tambm, as comemoraes da paz talo-
19 Marcos Antonio Witt cunhou o termo exponencial para designar os colonos alemes das regies de So
Leopoldo e do Litoral Norte no Rio Grande do Sul que se destacaram no plano scio-econmico-poltico no
sculo XIX. Segundo o autor, so personagens de uma camada mdia que negociava interesses prprios, entremeados com as solicitaes dos que estavam socialmente abaixo, com a elite culta e rica tanto nacional
como alem. O autor infere que o mundo colonial era ilimitado para os exponenciais. Eles relacionavam-se com advogados, juzes, funcionrios de bancos e professores que ocupavam cargos na administrao da
colnia ou da provncia. Seu objetivo primeiro era a busca por um lugar de destaque em uma sociedade que os
via preferencialmente como estrangeiros. Entretanto, as limitaes tnico-culturais no impediram o seu
crescimento econmico ou a sua insero poltica na sociedade nacional. Ver: WITT, Marcos Antnio. Sob a
contagem de outro tempo: organizao social e estratgias polticas (Imigrao Alem- Rio Grande do Sul-
sculo XIX). In: MARTINS, Ismnia de Lima; HECKER, Alexandre. (Org.). E/imigraes: histrias,
culturas, trajetrias. So Paulo: Expresso e Arte Editora, 2010, p. 269-270. 20 LAMBERT, David. Notables des colonies. Une lite de circonstance en Tunisie et au Maroc (1881-1939).
Rennes: Presses Universitaies de Rennes, 2009, p. 242-261. 21 Ver: SCHWARTSMANN, Leonor Baptista. Representantes da elite e o mito de Garibaldi: o papel do mdico
italiano Palombini entre imigrantes no Brasil. In: CONSTANTINO, Nncia Santoro de; FAY, Claudia Musa
(Org.). Garibaldi, histria e literatura: perspectivas internacionais. Porto Alegre: PUCRS, 2011.
19
turca, realizadas pela colnia italiana em Porto Alegre, quando o mdico Biaggio Rocco e seu
irmo Stefano aparecem em posies destacadas.
A nota interessante da festa foi o corso de carruagem em que tomaram parte muitos
cavalheiros e famlias. O prstito organizou-se na rua Moinhos de Vento e
compunha-se de 170 veculos, sendo 72 automveis e 98 carros. Abria o corso o
automvel landau, ocupado pelo cavalheiro Beverini, professor Della Regione, sr.
Stefano Rocco [representante das Federaes Italianas] e dr. Biaggio Rocco. O
prstito pos-se de marcha depois das 7 horas da noite, apresentando belo aspecto.
Todos que nele tomaram parte empunhavam lanternas venezianas e fogos de
bengala22.
Conforme Herzlich e Pierret, no final do sculo XIX, o mdico tornou-se um notvel
respeitado, com status invejado, e possuidor de certa influncia na coletividade. Sua imagem
pblica idealizada, centrada especialmente na sua caridade e dedicao. O mdico aquele
que alivia, consola e conforta. No imaginrio coletivo, afirmado o poder intrnseco de sua
presena. A resposta ao chamado do doente aparece como a conduta tpica do mdico, mesmo
se ela ainda est longe de ser eficaz. Alm disso, o mdico encarna, acima de tudo, a cincia e
o seu poder, sua ligao quase religiosa, fazendo com que o sacerdcio do mdico faa parte
das ideias percebidas concernentes medicina23.
Pode-se considerar que estas representaes (fotos, documentos, discursos, atividades
sociais e profissionais) so estratgias interessadas de manipulao simblica que, apoiadas
em Bourdieu, tm em vista determinar a representao mental que os outros podem ter destas
propriedades e de seus portadores24. Dessa maneira, as propriedades simblicas dos mdicos e
sua representao mental podem ser utilizadas estrategicamente para algum fim instrumental,
que pode ser o reconhecimento afirmativo da identidade tnica, ou tambm para a insero na
comunidade nacional.
Os mdicos trouxeram inovaes ao Estado. Segundo Faure e Boudelais, a inovao
a difuso de atitudes, de novas prticas, ou de novos objetos. A propagao do novo, das
novas prticas, se inscreve na longa durao, mas tambm no espao geogrfico, social e
imaginrio. Uma inovao no s material, ela supe uma informao, uma tomada de
deciso e uma assimilao. Ela compreende a difuso de novos objetos, novos gestos, quando
o papel dos atores individuais e institucionais afirmado. Contudo, as prticas, os objetos, e
22 O CORSO. Correio do Povo, Porto Alegre, 12 nov. 1912, p. 1. 23 HERZLICH, Claudine; PIERRET, Janine. Malades dhier, malades daujourdhui. De La mort coletive au
devoir de gurison. Paris: ditions Payot, 1991, p. 238. 24 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 112.
20
os gestos novos que podem ser a consulta mdica, os medicamentos e sua ingesto, o ato
cirrgico praticado no hospital, ficaram margem dos trabalhos e no foram pouco estudados.
Os autores consideram que os estudos at agora realizados esto mais centrados nos saberes
do que nas prticas, como o observado nos estudos da literatura e da produo impressa que
definem uma concepo estreita da difuso do novo no domnio mdico. Constata-se que a
difuso das prticas est praticamente excluda desses estudos, uma vez que a medicina, alm
de um saber, a arte de curar e prtica profissional25.
A difuso de inovao em medicina complexa, pois envolve mltiplos pblicos com
diferentes nveis de conhecimento, incluindo mdicos e doentes, os quais podem responder,
em diversas formas, s novas teorias ou tcnicas. Ramsey emprega o conceito de apropriao
na histria cultural, definido por Roger Chartier, como a utilizao diferenciada e contrastante
de mesmas coisas, mesmos textos e mesmas ideias, pois este captura melhor o processo do
que o termo adoo, considerando que o significado das coisas, prticas e crenas se modifica
com o contexto, e, nesse sentido, no so mais as mesmas. Esta observao se aplica tanto
persistncia de prticas tradicionais como introduo de inovaes. Dessa maneira, deve ser
enfatizado que tanto a difuso de uma inovao como o abandono de antigas crenas e
prticas podem ser tardios e/ou incompletos26.
Nncia Constantino considera o imigrante como agente de mudanas, o introdutor de
novidades. Nos seus estudos sobre a imigrao italiana para as cidades brasileiras, observou
que esta ocasionou a introduo de tecnologias e de valores relativos ao trabalho, que se
coadunaram s ideias de progresso que norteavam as elites brasileiras. As caractersticas de
economia e os modelos citadinos trazidos pelo imigrante colaboraram com a introduo de
mudanas nas mentalidades e nas condutas, as quais facilitaram a modernizao das cidades27.
Foi considervel o nmero de mdicos italianos estabelecidos no Rio Grande do Sul.
Eles colaboraram para disseminar o conhecimento mdico em um tempo em que havia
notvel carncia desses profissionais.
25 BOURDELAIS, Patrice; FAURE, Olivier. Le nouveau dans le domaine mdical et sanitaire: objets, pratiques,
logiques sociales. In: BOURDELAIS, Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de sant (XVIII-XX
sicles). Paris: ditions Belin, 2005, p. 7-9. 26 RAMSEY, Matthew. Uroscopy and urinalysis: tradition and innovation in diagnostic practices. In: BOURDELAIS,
Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de sant (XVIII-XX sicles). Paris: ditions Belin, 2005, p. 49. 27 CONSTANTINO, Nncia S. de. Italiano na cidade: a imigrao itlica nas cidades brasileiras. Passo Fundo:
Editora da UPF, 2000, p. 78-81.
21
***
Este estudo d continuidade temtica da dissertao de mestrado que foi defendida
em 2007. A dissertao intitulou-se Olhares do mdico viajante italiano Giovanni Palombini
(1901-1914) e baseou-se no estudo do relato de viajante que Palombini produziu, quando
percorreu o sul do pas28. O projeto, ora desenvolvido como tese de doutorado, teve como
objetivo principal identificar a presena dos mdicos italianos no Rio Grande do Sul, nas
dcadas iniciais do sculo passado e a repercusso dessa presena na medicina regional. Com
este projeto, pretendeu-se ampliar os estudos sobre a participao desses mdicos no
desenvolvimento da medicina gacha, analisando os fatores que favoreceram a sua integrao
nesta sociedade e o papel ativo que desempenharam no desenvolvimento da medicina no Rio
Grande do Sul, no perodo de sua consolidao.
O recorte temporal do presente trabalho inicia-se em 1892, quando ocorreu a primeira
tentativa conhecida de multa de um mdico estrangeiro por exerccio ilegal da medicina no
Rio Grande do Sul no perodo republicano. Ele estende-se at o ano de 1938, quando um
grupo de mdicos estrangeiros impetrou um mandado de segurana perante o Tribunal de
Apelao do Estado que os permitiu continuar a exercer a medicina.
A pesquisa foi realizada em uma srie de instituies existentes no Rio Grande do Sul,
como tambm em centros localizados no Uruguai e na Frana.
No Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyss Velinho, foram consultados os Livros
de Cobranas de Impostos sobre Profisses, que se iniciam no final do sculo XIX e se
estendem at a terceira dcada do sculo XX. Esse arquivo possui as colees dos jornais A
Federao e Correio do Povo. Esses jornais e o jornal A Reforma esto tambm disponveis
no Museu de Comunicao Social Hiplito da Costa.
Os Livros de Registro de Exames de Suficincia da Faculdade de Medicina e o Livro
de Registro de Solicitao de Revalidao de Diploma da Faculdade de Medicina da
Faculdade de Medicina de Porto Alegre esto depositados no Arquivo da Faculdade de
Medicina da UFRGS. Permitem conhecer as caractersticas dos mdicos estrangeiros e/ou
nacionais que procederam revalidao dos seus diplomas. A Biblioteca da Faculdade de
Medicina da UFRGS possui um acervo de livros mdicos raros, como as revistas Archivos
28 SCHWARTSMANN, Leonor C. Baptista. Olhares do mdico-viajante Giovanni Palombini (1901-1914). Dissertao
(Mestrado em Histria) - Ps-Graduao em Histria, Pontitifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2007. Disponvel em: . Acesso
em: 10 mar. 2013.
22
Rio-grandenses de Medicina, publicao da Sociedade de Medicina e a Revista dos Cursos,
publicada pela Faculdade de Medicina.
A Biblioteca Central da PUCRS destaca-se pelo extenso acervo bibliogrfico sobre
histria, literatura, antropologia e sociologia. Nota-se a curiosa presena de um livro italiano
sobre as caractersticas e as normas da profisso do medico condotto, sua legislao e
jurisprudncia.29
Foi consultado o acervo do Museu da Histria da Medicina do Rio Grande do Sul, que
contm os relatrios antigos da Sociedade Beneficncia Portuguesa, bem como material
referente ao movimento de seu hospital. As teses dos mdicos formados na antiga Faculdade
de Medicina e Farmcia, depois Faculdade de Medicina de Porto Alegre, e a revista Archivos
Riograndenses de Medicina serviram de suporte para o estudo.
Os relatrios da Irmandade da Santa Casa de Misericrdia de Porto Alegre, os livros
de internao e de alta hospitalar de seu hospital esto guardados no Centro Histrico-Cultural
Santa Casa de Misericrdia de Porto Alegre. Em seu acervo de livros raros, a biblioteca deste
hospital possui uma importante coleo de textos de medicina que datam de meados do sculo
XIX, sendo franceses em sua quase totalidade.
O Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul guarda a correspondncia epistolar trocada
entre Julio de Castilhos e seu secretrio Aurlio Bittencourt e as listas de notificaes
obrigatrias de doenas contagiosas da Prefeitura de Porto Alegre. Entre as sries
documentais, destacam-se os Documentos Consulares e a documentao da Diretoria de
Higiene. Os registros de mdicos na Diretoria de Higiene no foram encontrados neste
arquivo e nem no Arquivo Pblico do Rio Grande do Sul. Podem ser considerados como
perdidos at o momento. A documentao indita sobre o caso do mdico Michelle de Patta
em Anta Gorda (1923), municpio de Encantado, est disponvel no Instituto Histrico e
Geogrfico do Rio Grande do Sul. Constitu-se em uma srie documental composta por
missivas e depoimentos oficiais.
Foi consultada a Biblioteca Pblica de Rio Grande. Seu acervo contm a coleo do
jornal Echo do Sul e os relatrios da Intendncia dessa cidade. Foram pesquisados os jornais
realtivos a primeira dcada do sculo XX, buscando observar a presena dos mdicos
italianos nessa cidade em propagandas, textos educativos, atividades institucionais ou notas
29 Ver: BUZANO, Ernesto. La condotta medica in Itlia: appunti, dottrina, legislazione e giurisprudenza. Milano;
Turim; Roma: Fratelli Bocca, 1910.
23
sociais. Os relatrios do Hospital da Santa Casa de Rio Grande esto disponveis em sua
biblioteca, no havendo outra documentas documentao antiga preservada. Foram
investigados os relatrios das trs primeiras dcadas do sculo passado.
Em Pelotas, foram consultados os relatrios da Santa Casa de Pelotas nas duas
dcadas iniciais do sculo XX e documentos pertencentes a esta instituio, que se encontram
na Biblioteca Pblica dessa cidade.
A Santa Casa de Caridade de Jaguaro no preservou seu acervo histrico.
O Museu e Arquivo Histrico Municipal de Garibaldi possui acervo iconogrfico e
documentao de mdicos italianos.
Na Biblioteca Central da UNISINOS, em So Leopoldo, encontram-se textos ligados a
temtica religiosa, que informam sobre mdicos italianos. Seu acervo relacionado imigrao
italiana foi transferido para a UCS, Universidade de Caxias do Sul.
A Biblioteca do Departamento de Histria da Medicina, Faculdade de Medicina,
Universidade da Republica, em Montevidu, Uruguai, possui acervo de textos antigos
relacionados temtica mdica. L, buscaram-se evidncias da presena de mdicos italianos
que participaram nos estudos da febre amarela e depois se deslocaram para o Brasil, como foi
o caso de Angelo Bellinzaghi. Na Biblioteca Nacional de Montevidu, encontrou-se a notcia
de que um antigo hospital pertencente ao exrcito brasileiro durante a Guerra do Paraguai
transformou-se no Hospital Italiano de Montevidu. Esse hospital no preservou a
documentao da instituio ou os arquivos mdicos do incio do sculo passado.
Documentao consular referente aos imigrantes franceses, italianos e ingleses que
residiram no Rio Grande do Sul est disponvel nos Arquivos Consulares do Ministrio das
Relaes Exteriores em Nantes, Frana. Foi realizada pesquisa bibliogrfica sobre
notabilidade e sobre mobilidade de elites na Biblioteca da Faculdade de Histria da
Universidade de Grenoble, na Frana.
Foi empregada a Metodologia da Anlise textual discursiva e a Metodologia da
Histria Oral. Foram desenvolvidos estudos de anlise estatstica descritiva.
Uma das formas de se identificar os aportes destes imigrantes feito pelos
conhecimentos fornecidos pela Histria Oral. Infere Constantino que a utilizao da histria
oral pressupe uma transformao radical na forma de pensar o objeto da histria e no seu
modo de investigao. O historiador, colhendo depoimentos, transforma-os em documentos
24
que precisa interpretar. Ao interpretar um depoimento, precisa conhecer mais do que o
significado das palavras, precisa ler nas entrelinhas e nos silncios dos depoentes. Alm
disso, pode captar a experincia dos narradores, suas tradies, mitos, narrativas de fico,
assim como as crenas existentes no seu grupo30. No processo de construo e anlise das
fontes orais, segundo Vangelista, fora de questo no mbito historiogrfico a natureza
interdisciplinar da entrevista. A importncia social e cultural do pesquisador em sua pesquisa
de campo um aspecto que constitui parte integrante da anlise sociolgica e antropolgica,
e graas ao dilogo interdisciplinar que ser possvel enriquecer nesta direo o estudo
histrico da entrevista31.
No processo de construo e anlise das fontes orais, segundo Vangelista, fora de
questo no mbito historiogrfico a natureza interdisciplinar da entrevista. A importncia
social e cultural do pesquisador em sua pesquisa de campo um aspecto que constitui parte
integrante da anlise sociolgica e antropolgica, e graas ao dilogo interdisciplinar que
ser possvel enriquecer nesta direo o estudo histrico da entrevista32. A utilizao da
histria oral, conforme Constantino, pressupe uma transformao radical na forma de pensar
o objeto da histria e no seu modo de investigao. O historiador colhendo depoimentos
transforma-os em documentos que precisa interpretar. Ao interpretar um depoimento, precisa
conhecer mais do que o significado das palavras, precisa ler nas entrelinhas e nos silncios
dos depoentes. Alm disso, poder captar a experincia dos narradores, suas tradies, mitos,
narrativas de fico, assim como as crenas existentes no seu grupo33.
Em busca de conhecimentos sobre as experincias dos mdicos italianos no Estado,
foi produzida uma srie de entrevistas orais que contaram com depoimentos de familiares,
pacientes, pessoas que tiveram contato com mdicos italianos. O primeiro entrevistado, Joo
Constantino, advogado, natural de Rio Grande, conviveu e foi paciente de Pedro Bertoni.
Informou sobre a vida desse mdico e sua atividade no Hospital de Santa Casa de Rio
Grande, onde residiu at falecer. A segunda depoente, a mdica Ana Maria Sparvoli,
30 CONSTANTINO, Nncia S. Teoria da histria e reabilitao da oralidade: convergncia de um processo. In:
BARRETO, Maria Helena M. A aventura (auto) biogrfica. Teoria & Empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004, p. 63-4. 31 VANGELISTA, Chiara. Lindividual e il colletttivo nelle interviste biografiche. Note a margine di
umesperienza brasiliana. In: BARRETO, Maria Helena M. A aventura (auto) biogrfica. Teoria & Empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 496 e 499.
32 Ibidem, p. 496 e 499. 33 CONSTANTINO, Nncia S. Teoria da histria e reabilitao da oralidade: convergncia de um processo. In:
BARRETO, Maria Helena M. A aventura (auto) biogrfica. Teoria & Empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004, p. 63-4.
25
professora universitria, era filha do mdico Riego Sparvoli. Nasceu no Brasil e fizera sua
formao mdica em Roma, juntamente com seu irmo. Durante as entrevistas, relatou a
trajetria de seu pai no Brasil, e a sua vivncia na Itlia, que ocorreu no perodo
imediatamente anterior Segunda Guerra Mundial. Em Porto Alegre, foram entrevistados os
primos Wanda Palombini e o mdico Bruno Palombini, netos de Giovanni Palombini. Wanda
teve contato com os avs quando criana. Informou sobre a vida privada de sua famlia,
fornecendo detalhes do cotidiano familiar. Bruno Palombini no conheceu seu av, mas o
descreveu de forma laudatria e pica, conforme a tradio oral de sua famlia. A famlia
acreditava que o mdico tinha sido o introdutor dos aparelhos de Raio X no Rio Grande do
Sul. Jos Baptista Neto, advogado, era filho de um mdico formado em 1909, que fora colega
de graduao de Jos Ricaldone. O depoente conheceu vrios mdicos italianos que residiam
em Porto Alegre, sendo que possua familiares que eram seus pacientes.
Utilizou-se a Metodologia da Anlise textual discursiva. Conforme Roque Moraes,
No contexto da anlise textual [...] interpretar construir novos sentidos e
compreenses afastando-se do imediato e exercitando uma abstrao em relao s
formas mais imediatas de leitura de significados de um conjunto de textos.
Interpretar um exerccio de construir e de expressar uma compreenso mais
aprofundada, indo alm da expresso de construes obtidas dos textos e de um
exerccio meramente descritivo. nossa convico de que uma pesquisa de
qualidade necessita atingir essa profundidade maior de interpretao, no ficando
numa descrio excessivamente superficial dos resultados da anlise34.
Entre o corpus documental utilizado nesse estudo, encontram-se relatos de viagem,
textos autobiogrficos, relatrios oficiais, missivas, diplomas, lbuns comemorativos, notas e
propagandas de jornais, correspondncias e depoimentos feitos perante juzo.
ngela Gomes afirma que relatos de viagens, autobiografias e dirios integram um
conjunto de modalidades do que se convencionou chamar de produo de si, a partir de uma
relao estabelecida entre o indivduo e seus documentos. Atravs desses tipos de prticas
culturais, o indivduo moderno est constituindo uma identidade para si, atravs de seus
documentos. Estes registros de memria so, de forma geral, subjetivos e ordinrios, como as
prprias vidas de seus autores. Seu valor como documento histrico identificado justamente
nestas caractersticas35.
34 MORAES, Roque. Uma tempestade de luz: a compreenso possibilitada pela anlise textual discursiva.
Cincia & Educao, v. 9, n.21, p. 191-211, 2003, p. 204. 35 GOMES, ngela de Castro. Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004, p. 11-13.
26
importante destacar que o discurso presente nos textos escritos pelos mdicos
caracteriza-se por ser um dispositivo, isto , um conjunto heterogneo de elementos que
envolvem leis, instituies, enunciados cientficos, aspectos filosficos e medidas
administrativas. Tal discurso pode aparecer como elemento que permite justificar e mascarar
uma prtica que permanece muda; pode, ainda, funcionar como reinterpretao dessa prtica,
dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade36.
A utilizao dos textos citados acima para interpretao uma forma de permitir que
um homem do passado fale por si prprio, a fim de que se observe que muitas de suas idias
so compartilhadas pelos seus contemporneos. Desta maneira, atravs do seu estudo, pode-
se descobrir uma classe de idias que condicionam o pensamento formal desses mdicos.
Estas idias, segundo Franklin Baumer, podem desvelar o pensamento mais ntimo de uma
poca37. Neste sentido, o mdico, como intelectual, reflete as idias de seus contemporneos
e tambm as aperfeioa e as esclarece.
Destacam-se, entre a biografia utilizada neste estudo, os livros Panteo Mdico Rio-
Grandense (1943), o lbum Cinquantenario della colonizzazione italiana nel Rio Grande Del
Sud (1875-1925) e o captulo escrito por Mainardi (1996) sobre a presena dos mdicos
italianos no Rio Grande do Sul. Estes textos serviram como fonte e auxiliaram com os perfis
biogrficos de uma srie de mdicos que se radicaram no Rio Grande do Sul.
Os textos de Maria do Rosrio Salles (1997) e de Carlos da Silva Lacaz (1989)
descrevem a participao dos mdicos italianos no Estado de So Paulo. Permitem inferir que
o fenmeno imigratrio destes profissionais apresentou caractersticas distintas nas duas
regies. A sua experincia socioprofissional ressaltada, na medida em que se constituram
como um grupo particular de imigrantes em So Paulo. Este fator ocorreu em um momento da
estruturao da profisso mdica naquele Estado, e que foi, tambm, um momento
particularmente importante para a medicina e para a pesquisa cientfica no Brasil. Afirmaram-
se profissionalmente como mdicos de clnica privada e benemritos, tendo alcanado
destacadas posies na Faculdade de Medicina, centros de pesquisa e instituies hospitalares.
Foram professores universitrios e pesquisadores ao lado de brasileiros.
A documentao utilizada neste trabalho teve a grafia atualizada. Fontes e livros em
lngua estrangeira (francs, espanhol, ingls e italiano) foram livremente traduzidos.
36 FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 244. 37 BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno: sculos XVII e XVIII. Lisboa: Edies 70, 1977, v. 1,
p. 23.
27
***
O trabalho foi estruturado em quatro captulos. O primeiro, O contexto da profisso
mdica na Itlia na passagem do sculo XIX para o XX, trata de contextualizar a situao
da profisso mdica na Itlia para os recm-formados. Salientam-se a tradio de
mobilidade geogrfica desses mdicos e a procura de posies de trabalho que podem
envolver passagens por pases europeus, africanos e americanos. So abordadas as
caractersticas da formao universitria italiana, o perodo pslurea e o sentimento
corrente de um excesso de mdicos (a pletora mdica). Sero discutidas as origens e a
finalidade da condotta medica, uma das posies profissionais mais acessveis aos jovens
recm-formados e que estava na base da sade pblica italiana, e as razes da partida para o
Brasil. A anlise das biografias do grupo de mdicos italianos, constantes no livro Panteo
Mdico Rio-grandense (1943), permite desvelar dados referentes ao local de formao
acadmica, s viagens de estudo e/ou de especializao, ao itinerrio percorrido at o
estabelecimento definitivo no Rio Grande do Sul.
O segundo captulo, intitulado Caractersticas do exerccio da medicina no Rio Grande
do Sul por mdicos italianos nas dcadas iniciais do sculo XX, discute a presena desses
mdicos em Porto Alegre, entre os anos de 1898 e 1920. Para tanto, foram avaliadas as suas
entradas nas Listas de Registro dos Impostos sobre profisso de Porto Alegre. feita uma
abordagem referente legislao pertinente ao exerccio da medicina por mdicos nacionais
e estrangeiros no Brasil, com nfase nas caractersticas peculiares da legislao do Rio
Grande do Sul, at o final da dcada de 1930. Destaca-se o mandado que os mdicos
estrangeiros impetraram em 1938, para poderem trabalhar neste estado. O papel da
Faculdade de Medicina de Porto Alegre como local das revalidaes dos diplomas de
estrangeiros avaliado.
O terceiro captulo, Registros de mdicos: a escrita de si como fonte para o estudo da
insero dos mdicos italianos, apresenta uma discusso sobre os escritos de memria de
Ricardo DElia, o relato de viagem de Giovanni Palombini e os textos ainda no trabalhados
de Luigi Cardelli e Michele De Patta. Destaca-se a grande mobilidade que estes mdicos
tiveram pelo Brasil e por outros pases da Amrica do Sul. So identificadas questes de
sade da populao, como nutrio, presena de doenas, condies do atendimento dos
doentes, as disputas pelo controle da prtica de cura e abordagens teraputicas realizadas.
28
No quarto captulo, O papel de inovador, ensaia-se uma abordagem relativa ao
reconhecimento das inovaes proporcionadas pelo grupo dos mdicos italianos. Destacam-
se uma srie de especialidades mdicas, o reconhecimento da participao destes
profissionais no diagnstico, tratamento e preveno de certas doenas, e sua influncia na
construo e nos aspectos arquitetnicos de instituies hospitalares.
29
1 O CONTEXTO DA PROFISSO MDICA NA ITLIA NA PASSAGEM DO SCULO
XIX PARA O XX
1.1 A TRADIO DA MOBILIDADE GEOGRFICA DOS MDICOS ITALIANOS
A mobilidade internacional de membros de elite intelectual no um fenmeno
recente na histria da Itlia: os mdicos so herdeiros desta antiga tradio migratria.
Vrios foram os intelectuais italianos que viveram no exterior e influenciaram
politicamente os pases de recepo. Gramsci cita o Dicionrio dos italianos no exterior, de Leo
Benvenuti, escrito em 1890. Nessa obra, as categorias dos intelectuais subdividiam-se, entre
outras, em embaixadores, antiqurios, arquitetos, artistas, astrnomos, botnicos, juristas,
engenheiros, historiadores, mdicos e viajantes. O autor nota que as classes dirigentes (polticas e
intelectuais) de uma srie de pases foram reforadas por elementos italianos, os quais
contriburam para criar uma civilizao nacional em tais pases. Alm disso, os intelectuais
influenciam a cultura de um outro pas e a dirigem. Uma emigrao de trabalhadores coloniza
um pas sob a direo direta ou indireta de sua prpria classe econmica e poltica dirigente,
exprimindo consciente e organicamente um bloco social nacional38.
Segundo Cenni, muitos mdicos peninsulares se radicaram no Brasil ao final do sculo
XIX e incio do XX. Ele credita tal fenmeno ao fato de no haver leis que impedissem
semelhante afluxo ou que regulamentassem o exerccio desta profisso para os estrangeiros,
alm da falta de escolas nacionais especializadas39.
Exemplos de mdicos atuando em diversas regies do Brasil sugerem que a presena
de mdicos italianos bem mais precoce que aquela indicada pela imigrao oficial iniciada
em 1875.
Lycurgo Santos Filho (1947), no clssico livro Histria da Medicina no Brasil (Do
sculo XVI ao XIX), registra que alguns cirurgies e entendidos de medicina de
nacionalidade italiana estiveram no Brasil no sculo XVIII. Cita Antonio Cialli e Joo
Agostinho Guido que experimentaram e atestaram as virtudes curativas das guas da Lagoa
Santa, em Minas Gerais. Ele considera que foram muito poucos os italianos, contabilizou
38 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1995,
p. 67-75. 39 CENNI, Francisco. Italianos no Brasil. Andiamo in Merica. So Paulo: Editora da EDUSP, 2003, p. 373.
30
doze mdicos que atuaram no Brasil no perodo do Imprio, sendo os mais conhecidos Lus
de Simoni e Lbero Badar, este mais por sua trgica morte40.
Lus De Simoni nasceu no Ducado de Gnova, em 1792, formou-se pela Universidade
de Gnova e imigrou para o Brasil no ano de 1817. Atuou como mdico na Santa Casa de
Misericrdia do Rio de Janeiro e, aps, partiu para Moambique, onde foi Fsico-Mor. Ao
retornar para o Rio de Janeiro, foi diretor mdico daquela instituio, trabalhando como
mdico dos alienados nesse hospital e na enfermaria do Convento de Santo Antnio. O
mdico liderou com o cirurgio brasileiro Joaquim Cndido Soares de Meirelles a criao da
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829, futura Academia Nacional de Medicina,
onde recebeu o ttulo e o cargo de Secretrio Perptuo, que ocupou durante 37 anos. Simoni e
Meirelles foram acompanhados por dois mdicos franceses, Jos Franciso Xavier Sigaud e
Joo Maurcio Faivre e pelo brasileiro Jos Martins da Cruz Jobim. Os trs fundadores
estrangeiros imigraram devido a perseguies polticas. Compartilhavam com os mdicos
nacionais a experincia europeia (Meirelles e Cruz Jobim formaram-se na Faculdade de
Medicina de Paris) e tinham os mesmos ideais cientficos. Simoni foi, tambm, professor de
italiano e latim no Colgio Pedro II e professor de italiano das filhas de Dom Pedro II41.
Joo Batista Lbero Badar (1798-1830), formado pelas Universidades de Pvia e
Turim, imigrou para o Brasil onde se dedicou ao jornalismo. Influenciado pelo pensamento
liberal, fundou o jornal O Observador Constitucional. Seus artigos criticavam o absolutismo e
o conservadorismo. Foi assassinado, e este acontecimento desencadeou na campanha que
resultou na abdicao do Imperador Dom Pedro I42.
Entre os outros mdicos peninsulares que atuaram no Brasil, no perodo imperal, esto
Casanova, mdico particular do irmo da Imperatriz Dona Amlia, mulher de Dom Pedro I;
Lus Bompani, formado em Modena, tendo sido auxiliar de De Simoni no Rio de Janeiro;
Ignazio Bertoldi, jornalista polmico que imigrou para o Brasil em 1831, tendo trabalhado em
Santa Catarina, Rio de Janeiro, Campinas e So Paulo43; Carlos boli, que criou um
40 SANTOS FILHO, Lycurgo. Histria da medicina no Brasil (Do sculo XVI ao sculo XIX). So Paulo: Brasiliense,
1947, p. 370. 41 AGUINAGA, Srgio dvila. Painis da Academia Nacional de Medicina. Histria e personagens. Rio de
Janeiro: Academia Nacional de Medicina, 2006, p. 67-68. 42 FLORES, Moacyr. Dicionrio de Histria do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 62-63. (Coleo
Histrica). 43 Em So Paulo, Bertoldi atuou em prol da organizao dos italianos que chegavam em massa, e na busca de
solues para os problemas originados por este grande deslocamento populacional. Ver: CONSTANTINO,
Nncia S. de. Italiano na cidade: a imigrao itlica nas cidades brasileiras. Passo Fundo: Editora da UPF,
2000, p. 64.
31
estabelecimento hidroterpico em Nova Friburgo, em 1874, e Afonso Lomonaco, autor do
livro Al Brasile, relato de sua viagem pelo Brasil realizada entre 1885 e 188744. No h a
informao de que algum deles tenha estado no Rio Grande do Sul.
Luis Finotti um dos primeiros mdicos que se tem notcia oficial de atuao no Rio
Grande do Sul, no perodo republicano, conforme a documentao presente no Arquivo
Histrico do Rio Grande do Sul. Seu nome surge em Porto Alegre quando multado por
exerccio ilegal de medicina (1892). H a interferncia do cnsul italiano que redige um ofcio
para o presidente do Estado, General Barreto Leite (1891-1892), em prol do sdito italiano45.
Nessa correspondncia, o cnsul informa que o Dr. Luis Finotti mdico-cirurgio,
formado pelas universidades dos reinos da Itlia e da Blgica. Trabalhou no estado de Minas
Gerais e, no momento, trabalhava em Caxias onde auxiliava na Inspetoria de Terras e
Colonizao46. Ao decidir exercer a medicina nesta capital, e, antes de abrir o seu consultrio
mdico-cirrgico, o mdico quis que seus diplomas e outros atestados de benemerncia
adquiridos no Brasil fossem conhecidos, por deferncia a autoridade de higiene deste
estado.
O cnsul ficou surpreso em saber da publicao no jornal da capital, por um
expediente da Inspetoria de Higiene que, com base no artigo 7 9 de um antigo regulamento
sanitrio, multava o Dr. Finotti em 200$000 ris, pelo exerccio ilegal de medicina. Conforme
o cnsul:
O dr. Finotti exercita nesta capital a sua profisso de mdico cirurgio em base do
artigo 71 5 e 17 da constituio do estado que declara livre todas as profisses
morais intelectuais e industriais e garantem em todo o estado o seu exerccio
pacfico e intelectual.
princpio absoluto de direito, comum a todos os povos civis, que as leis
fundamentais de um estado, ou seja, a prpria constituio, no pode ser em
qualquer de seus artculos limitada, diminuda ou suspendida se no pela legislao
mesma da Nao que a compilaram e por essa razo nenhum regulamento pode
44 SANTOS FILHO, Lycurgo. Histria da medicina no Brasil (Do sculo XVI ao sculo XIX). So Paulo: Brasiliense,
1947, p. 370-372. 45 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Consulados. Consulado da Itlia. Documento n 109.
Ofcio dirigido ao Gal. Barros [sic] Leite. 46 A Inspetoria Geral de Terras e Colonizao tinha em seu cargo a fiscalizao e imediata direo de servios
relativos distino das terras pblicas das do domnio particular, medio, demarcao, diviso, descrio
e registro das terras devolutas, legitimao de posses e revalidao de concesses e sesmarias; e bem
assim, a colonizao e imigrao compreendendo o estabelecimento de imigrantes e em geral todos os
servios desta espcie como tambm as hospedarias para imigrantes. Podiam ser criadas delegacias da
Inspetoria Geral de Terras e Colonizao nos Estados de recebimento de imigrantes estrangeiros possuidores
de ncleos coloniais e naqueles possuidores de terras devolutas. Cabia aos delegados propor ao Inspetor Geral
a nomeao dos mdicos dos ncleos coloniais e hospedarias. Ver: IOTTI, Luiza Horn (Org.). Imigrao e
colonizao. Legislao de 1747-1915. Porto Alegre: Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do
Sul. Caxias do Sul: EDUSC, 2001, p. 460, 466 e 472.
32
modificar a substncia, tanto mais quando este regulamento a que se refere
Inspetoria de Higiene anterior a promulgao da constituio do estado e baseado
na constituio menos liberal do Imprio irrevogavelmente abolida no Brasil47.
Solicita, ainda, que fosse imediatamente declarada nula a multa infligida ao mdico
pela Inspetoria de Higiene e que o citado sdito real italiano pudesse pacificamente gozar dos
benefcios dos artigos 71 5 e 17 da Constituio do Estado do Rio Grande do Sul.
Sabe-se que Finotti se estabeleceu como mdico em Porto Alegre. As informaes
obtidas no Livro de Registros de Impostos sobre Profisses de Porto Alegre acusam a sua
presena no perodo de 1897 a 1901. Conforme o registro, ele trabalhou em trs locais
diferentes nesta cidade, a saber: Rua dos Andradas, Rua Marechal Vitoriano e Rua General
Justo48.
A influncia precoce da Medicina italiana pode ser observada na participao do cnsul
italiano em agosto de 1893, quando encaminhou um ofcio ao Presidente do Estado, sr. Julio de
Castilhos, solicitando a divulgao do XI Congresso Mdico Internacional aos mdicos e aos
cultores da cincia mdica, o qual seria realizado em outubro daquele ano, em Roma49. Nessa
cidade, haveria tambm uma exposio de Medicina e Higiene. Na correspondncia, estava
includo um modelo de formulrio a ser preenchido pelos interessados. A comisso central
representante deste evento no Brasil era composta pelo Visconde de Alvarenga, decano da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e pelos agentes diplomticos de Sua Majestade, o Rei
da Itlia, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em Porto Alegre50.
1.2 O ESTADO DA PROFISSO MDICA E AS POSSIBILIDADES DE ATUAO NA
ITLIA
As modificaes sofridas no papel e na atuao do mdico na sociedade italiana
ocorreram em grande parte sob a influncia das exigncias do mercado profissional no final
do sculo XIX e no incio do sculo XX. Entre os fatores que as ocasionaram, podem ser
elencados o crescimento numrico dos mdicos e a tendncia urbanizao (a chamada
47 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Consulados. Consulado da Itlia. Documento n 109.
Ofcio dirigido ao Gal. Barros [sic] Leite. 48 ARQUIVO HISTRICO DE PORTO ALEGRE MOYSS VELINHO. Livro de Registro de Impostos sobre
Profisses anos 1897/1898, p. 12, 1899, p. 10, 1900, p. 11, 1901, p. 11. Porto Alegre. 49 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Consulados. Consulado da Itlia. Documento n
1020. 16 de agosto de 1893. 50 Idem. Consulados. Consulado da Itlia. Documento impresso.
33
pletora mdica); o crescimento da demanda de prestao sanitria devido seguridade social
do Estado e a consequente direo do mercado da sade para a empresa privada, farmacutica
e hospitalar no perodo ps-Primeira Guerra Mundial; e a desestruturao da categoria devido
s dificuldades geradas por um mercado mais especializado, com os corolrios do recurso
especializao, da utilizao da publicidade e do compadrio.
Cincia e humanidade eram as palavras de ordem que relacionavam a medicina e seus
representantes no perodo situado entre o tero final do sculo XIX e incio do XX, na Itlia.
A figura dos mdicos destacava-se em um clima cultural caracterizado pela sequncia de
conquistas mdico-cientficas, como assepsia e antissepsia, as descobertas microbiolgicas e a
inveno dos raios X, que celebravam a unio da cincia e da tcnica. A identidade
profissional era acompanhada por atributos de valores que exaltavam o humanismo, a
filantropia, a religiosidade laica e o compromisso mdico-social51.
A Itlia, durante todo o sculo XIX, passou por uma situao de profunda dificuldade
socioeconmica. Malatesta chama a ateno para o fato de que a pobreza significava, acima
de tudo, um mercado de sade reduzido. A utopia burocrtica dos mdicos deste sculo
respondia, em primeiro lugar, necessidade de haver um emprego pblico, ainda que na
ausncia de um real mercado de sade. O emprego pblico torna-se, assim, o local de
construo da legitimao profissional. O discurso mdico reforou a relao entre a sade e a
nao, desta maneira, a melhoria das condies higinicas e sanitrias dos paesi implicava
confirmar a centralidade da figura do mdico na construo da nao52.
O perodo era caracterizado pela influncia da ideologia positivista. Nesta poca,
segundo Soresina, a medicina modela o seu paradigma cientfico no contexto da cincia que
ambiciona ser, e o mdico assume o papel de promotor do progresso humano. A medicina
atinge uma posio dominante entre os sculos XIX e XX, quando, em sua forma de sade
pblica, assume uma configurao estvel na Itlia e nos outros pases do mundo ocidental.53
Os mdicos, influenciados pela mentalidade positivista, buscam uma base de certeza coerente
sobre como validar a situao sanitria da Itlia na coleta sistemtica de dados. Isso possibilita
obter os elementos necessrios para solicitar a interveno governamental54.
51 COSMACINI, Giorgio. La religiosit della medicina. Dallantichit a oggi. Bari: Laterza, 2007, p. 123. 52 MALATESTA, Maria. Professionisti e gentiuomi. Storia delle professioni nellEuropa contempornea. Torino:
Einaudi, 2006, p. 174. 53 SORESINA, Marco. I medici tra stato e societ. Studi su professione medica e sanit pubblica nellItalia
contemporanea. Milo: Franco Angeli, 1998, p. 14. 54 Ibidem, p. 256.
34
Lima e Verdi destacam que a primeira reforma sanitria que ocorreu na Itlia aps a
sua unificao permitiu melhorar a sade dos italianos, pois associou a medicina social aos
preceitos da bacteriologia. Emergiu tambm a biopoltica, estratgia que tinha por objetivo a
manuteno da ordem do corpo social55.
Cosmacini destaca que um dos marcos significativos da histria da medicina italiana
foi a criao da Ordem Provincial, em 1910. Ela originou-se no clima de construo moral e
material presente na Itlia, no incio do sculo XX. Os mdicos, conscientes da sua elevada
funo na sociedade, consideravam que, alm de seu saber tcnico-cientfico, o seu poder de
persuaso e de controle era til no posicionamento contra a ilegalidade do exerccio
profissional, a legtima defesa de seus prprios interesses e direitos, ao esforo contra a
imoralidade e a defesa dos direitos dos doentes e dos interesses sanitrios de toda a
populao. Para Cosmacini, a classe mdica passou a ter duas possibilidades de ao: ser a
conscincia moral da sade italiana, marcada por um vigor tico unitrio, enraizado na
religiosidade do ofcio; ou ser uma organizao de profissionais, apoiada na camaradagem, na
disciplina, na validao e na autodefesa56.
Primeira Guerra, intitulada de ltima epidemia, seguiu-se o fascismo. Nesse perodo
desenvolveu-se a poltica sanitria higienista de Mussolini. Caracterizava-se por ser uma
poltica centralizada e direcionada para a desinfeco pblica57.
1.2.1 A Condotta Medica
O medico condotto estava na base dos servios de sade pblica italianos. Vinculado
formao da assistncia sanitria, sua origem remonta Roma antiga. Fragmentado o Imprio
Romano e com o surgimento das comunas livres (liberi comuni) no perodo medieval, a
assistncia populao, at ento conduzida pelas organizaes eclesisticas, passa a ser
responsabilidade dos citadinos. O mdico, a servio de instituio pblica, recebeu esse nome
devido ao contrato (condotta) por ele estipulado. Esta iniciativa representa, pois, a primeira
tentativa planificada para reduzir as desigualdades entre as cidades e o campo. A utilizao
55 LIMA, Rita de Cssia G S; Verdi, Marta Inez. A solidariedade na medicina de famlia no Brasil e na Itlia:
refletindo questes ticas e desafios contemporneos. Interface Comunic., Sade, Educ., v. 13, n. 29, p. 273, abr./jun. 2009.
56 COSMACINI, Giorgio. La religiosit della medicina. Dallantichit a oggi. Bari: Laterza, 2007, p. 133-134. 57 LIMA, Rita de Cssia G S; Verdi, Marta Inez. A solidariedade na medicina de famlia no Brasil e na Itlia:
refletindo questes ticas e desafios contemporneos. Interface Comunic., Sade, Educ., v. 13, n. 29, p. 273, abr./jun. 2009.
35
desses mdicos tornou a Medicina acessvel aos mais pobres. A condotta foi instalada
oficialmente na Toscana, em 163058.
O medico condotto era responsvel pela assistncia gratuita aos pobres e tinha a
obrigao de prestar esse tipo de atendimento a todos os habitantes da comuna, no
importando as causas nem os gneros de doena59. As esposas dos mdicos cooperavam para
aumentar a renda familiar, auxiliando no fornecimento de medicamentos aos doentes, no
dispensrio local como fora destacado pelo mdico Giovanni Palombini em seu relato de
viagem60. O edital publicado no ano de 1910, em Zeri, para concurso de medico condotto,
informava que, entre as obrigaes solicitadas aos mdicos, estes deveriam propiciar
tratamento gratuito aos habitantes e aos pobres que se encontrassem de passagem pelo
territrio desta localidade. O salrio estipulado era de 2.200 liras por ano, acrescido de 500
liras para a caleche obrigatria, mais 200 liras para o custo e para a gesto do dispensrio61.
Os mdicos da elite chamavam o medico condotto de jovem e pobre mdico das
comunas. Tinham para ele um projeto positivo, que consistia em civilizar as camadas mais
modestas da sociedade. O mdico proletrio, alm de ser um tcnico que aliviava as dores
das pessoas, era considerado como um operador social que se ocupava dos problemas da
coletividade, servindo como intermedirio entre as camadas populares e o poder pblico.
Ainda no final do sculo XIX, o trabalho desses mdicos da assistncia pblica era mal
remunerado; eram responsveis por grande nmero de pacientes e acumulavam funes que
implicavam visitas domiciliares, manuteno de dispensrios, aplicao de vacinao, redao
de estatstica mdica e verificao de mortes. Reconheciam-se como refugos sociais, como
profissionais abandonados pelo Estado62.
Esses mdicos possuam um conhecimento real das condies de vida da populao
que estava sob sua tutela, construda a partir de relaes de confiana. Nas consideraes
relativas vida das grandes cidades da Itlia, constata-se que as anotaes feitas por
58 FAURE, Olivier. Les stratgies sanitaires. In: GRMEK, Mirko Drazen (Org.). Histoire de la pense mdicale
en Occident. Paris: ditions Seuil, 1997, p. 293. (De la Renaissence aux Lumires; v. 2). 59 BUZANO, Ernesto. La condotta medica in Itlia: appunti, dottrina, legislazione e guirisprudenza. Milano; Turim;
Roma: Fratelli Bocca, 1910, p. 49-55. 60 SCHWARTSMANN, Leonor C. B. Olhares do mdico-viajante Giovanni Palombini (1901-1914). Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2008, p. 147. 61 CRONACA di un Secolo in Lunigiana. 1910. Disponvel em: . Acesso em: 5 mar. 2007. 62 NONNIS, Serenella. Le cure dans la ville, novateur malgr lui, Italie, XIXe-Xxe sicles. In: BOURDELAIS,
Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de sant (XVIII-XX sicles). Paris: ditions Belin, 2005, p.
253-254.
36
Palombini so carregadas de emoo referentes sade das famlias que ele acompanhou. Sua
experincia como medico condotto na Itlia o habilitou a externar opinies: Quantas dores, e
quantas desiluses, quantas humilhaes, quanta fome, quantos delitos e quantos
suicdios!63. Ao se recordar da vida em seu pas nestes locais, a famlia desestruturada, a
mulher possui um papel negativo, verificado quando acompanha nas noites os bbados nos
teatros, nas biscas, nos bailes e nas orgias, os pais se abastecem dos lixos nas ruas e os seus
filhos so escrofulosos64.
Nas pequenas cidades da Itlia, conforme as memrias escritas por Ricardo DElia, o
medico condotto, juntamente com o prefeito, com o secretrio, com o farmacutico, com o
mariscalo, com o barbeiro e com o vigrio, compunham a cpula das autoridades e das
pessoas mais influentes. Era frequente se reunirem na farmcia local. Ele faz uma comparao
ao chegar Vila de So Vicente no Rio Grande do Sul, nos anos iniciais do sculo XX. O
autor constata, impressionado, essa mesma situao, ao presenciar a reunio de homens no
albergue onde estava hospedado, que jogavam e confabulavam sobre as ltimas notcias65.
Apesar do reconhecimento social citado anteriormente, podem-se identificar as
dificuldades que Palombini sofrera no exerccio de sua profisso, em sua terra natal, Ascoli
Piceno, de acordo com suas recordaes anotadas em seu relato de viagem, j no Brasil:
[...] voei, com o pensamento, queles penosos tempos, durante os quais fui medico
condotto (municipal) na Itlia; poesia (parece-me que) de Fusinato: arte mais msera, arte mais rota, no h, que a do mdico