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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLI CA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DOUTORADO EM HISTÓRIA Porto Alegre 2013 LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN ENTRE A MOBILIDADE E AS INOVAÇÕES: A PRESENÇA DE MÉDICOS ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL (1892-1938) Profa. Dra. Núncia Maria Santoro de Constantino Orientadora

Tese Leonor

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    DOUTORADO EM HISTRIA

    Porto Alegre

    2013

    LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN

    ENTRE A MOBILIDADE E AS INOVAES:

    A PRESENA DE MDICOS ITALIANOS NO

    RIO GRANDE DO SUL (1892-1938)

    Profa. Dra. Nncia Maria Santoro de Constantino Orientadora

  • LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN

    ENTRE A MOBILIDADE E AS INOVAES: A PRESENA DE

    MDICOS ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL (1892-1938)

    Tese apresentada como requisito para

    obteno do grau de Doutor em Histria pelo

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    da Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul.

    Orientador: Profa. Dra. Nncia Maria Santoro de Constantino

    Porto Alegre

    2013

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    S399e Schwartsmann, Leonor Carolina Baptista

    Entre a mobilidade e as inovaes: a presena de mdicos

    italianos no Rio Grande do Sul (1901-1938) / Leonor Carolina

    Baptista Schwartsmann. Porto Alegre, 2013. 284 f. : il.

    Tese (Doutorado em Histria) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, PUCRS.

    Orientadora: Prof. Dr. Nncia Santoro de Constantino.

    1. Histria. 2. Rio Grande do Sul Histria Sculo XX.2. Medicina Rio Grande do Sul - Histria. 3. Imigrantes Italianos -Rio Grande do Sul. I. Constantino, Nncia Santoro de. II. Ttulo.

    CDD 981.65

    Ficha Catalogrfica elaborada por

    Vanessa Pinent

    CRB 10/1297

  • LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN

    ENTRE A MOBILIDADE E AS INOVAES: A PRESENA DE

    MDICOS ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL (1892-1938)

    Tese apresentada como requisito para

    obteno do grau de Doutor em Filosofia pelo

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    da Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul.

    Aprovada em 18 de outubro de 2013.

    BANCA EXAMINADORA

    Dra. Nncia Maria Santoro de Constantino (PUCRS)

    Orientadora Profa.

    Dr. Jaime Larry Benchimol (Fundao Oswaldo Cruz)

    Examinador Prof. Dr.

    Dra. Maria do Rosrio Rolfsen Salles (Anhembi Morumbi)

    Examinadora Profa.

    Dra. Lorena Almeida Gill (UFPel)

    Examinadora Profa.

    Dra. Ruth Maria Chitt Gauer

    Examinadora Profa.

  • [Rodrigo Cambar] Felicitava-se por ter tido a idia de

    trazer aquele italiano para Santa F. O diabo do gringo

    tinha mos de mago: era indubitavelmente o maior

    operador que aparecera no Rio Grande do Sul. Outra

    grande idia fora a de construir no quintal da farmcia

    aqueles pavilhes de madeira com os quartos onde

    ficavam os doentes para as operaes. Era uma espcie

    de pardia de sua sonhada casa de sade... E esse

    hospital improvisado vivia sempre cheio e no raro

    tinham de acomodar precariamente os operados nos

    corredores em cima de colches estendidos no soalho.

    De todos os pontos de Santa F e dos municpios

    vizinhos afluam doentes. O Dr. Carbone trabalhava

    desde o raiar do dia e s vezes tinha de continuar

    operando noite dentro.

    (O retrato. O tempo e o vento II, segundo tomo. Porto

    Alegre: Globo, 1975, p. 431).

    Dizem, e muitos ainda acreditam, que a imigrao

    italiana, que como em outras partes, composta

    somente por camponeses, trabalhadores braais e

    operrios; e mesmo quando se quer falar bem de nossa

    Colnia, vem trazida a tona a frase estereotipada do

    braccio italiano. Mas, ainda querendo desconhecer a

    parcela da contribuio cientfica e artstica que os

    italianos trouxeram para o benefcio do pas, seria justo

    e tambm exato afirmar que da Itlia vieram para aqui

    somente trabalhadores: trabalhadores do pensamento e

    braais. Tanto uns como os outros tiveram e tm uma

    nobre e til misso para desenvolver neste pas, que de

    braos e mentes sempre teve escassez.

    (CINQUANTENARIO della colonizzazione italiana nel

    Rio Grande Del Sud (1875-1925), Porto Alegre:

    Livraria do Globo, 1925, p. 440-441).

  • AGRADECIMENTOS

    professora Nncia Maria Santoro de Constantino, pelo acompanhamento durante a

    preparao de minha dissertao de mestrado e, agora, pela orientao dedicada de minha

    tese de doutorado, pelo carinho e amizade que foram desenvolvidos durante todos estes

    anos.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Histria da PUCRS, pelo

    interesse e pela contribuio terica, em especial, Ruth Chitt Gauer, Ren Gertz e Cludia

    Musa Fay.

    historiadora Angela Beatriz Pomatti, pela parceria durante as pesquisas realizadas.

    Aos funcionrios tcnico-administrativos do Programa de Ps-Graduo em

    Histria, em especial Carla Helena Pereira, pela ateno e pelo auxlio.

    professora Rejane Penna, pela contribuio terica e amizade.

    professora Lorena Gill, pelas crticas no exame de qualificao.

    professora Vra Barroso, por sua solicitude.

    professora Juliane Serres, pelas orientaes e discusses.

    Ao historiador Everton Quevedo, pelo acesso documentao do Museu de Histria

    da Medicina do Rio Grande do Sul.

    Aos depoentes, que me auxiliaram em seus conhecimentos e experncias, Maria

    Toffoli Baptista, Walter Koff, Geraldo Mainardi, Giovanni Baruffa e, in memoriam, Jos

    Baptista Neto, Joo Constantino e Ana Maria Sparvoli.

    Aos historiadores Joo Luz, pela lembrana em me enviar notcias sobre mdicos

    italianos e Priscila Silveira Baum pela colaborao na pesquisa.

    Ao grupo dos garibaldinos, que me proporcionaram discusses e muita satisfao

    durante os eventos realizados de temtica da imigrao italiana.

    Aos alunos Luiz Paulo Barros de Moraes e Alana Dariva, pelo apoio na pesquisa.

    professora Margarteh Chwartsmann, pela colaborao na reviso do texto.

    Ao revisor Lus Augusto Lopes, pela reviso final do texto.

    Ao Adalberto Mocelin e Luciane Zarpelon Ribeiro, pela presteza no atendimento.

  • revisora Rosa Velho, pelo apoio tcnico.

    Aos amigos e familiares, que me apoiaram neste perodo.

    Ao Gilberto, Guilherme, Laura e Denis todo o meu carinho.

  • RESUMO

    No final do sculo XIX e nas dcadas iniciais do sculo XX, um contingente de

    mdicos italianos radicou-se no Rio Grande do Sul, amparados pelas facilidades que a

    legislao estadual propiciou para o seu exerccio profissional. Sua vinda para a Amrica do

    Sul foi caracterizada por uma mobilidade que incluiu vrios pases deste continente, e pela

    constituio de redes sociais de acolhimento, includas as redes e as cadeias imigratrias.

    Nesta tese, a autora tem por objetivo analisar os fatores que ocasionaram a imigrao deste

    grupo de profissionais liberais, a maneira como se integraram na nova sociedade e os aportes

    que trouxeram para o Estado. So destacadas as caractersticas da formao mdica na Itlia e

    no Brasil. So discutidas as legislaes pertinentes ao exerccio profissional, os registros nas

    instituies pblicas e a questo da revalidao do diploma de mdicos estrangeiros. Os

    mdicos italianos trouxeram uma srie de inovaes que ajudaram a modificar a Medicina

    deste Estado, a qual passava por um momento de reconhecimento e de consolidao de seu

    campo. Construram hospitais, casas de sade, maternidades e enfermarias. Foram

    introdutores de especialidades como a oftalmologia. Destacaram-se no campo cirrgico, na

    obstetrcia e na radiologia, bem como no tratamento de tuberculose e sfilis. Atuaram como

    representantes de seu grupo tnico em vrias oportunidades. Sua presena em Porto Alegre,

    capital do Estado, alcanou a cifra de 10% do total de mdicos nas primeiras duas dcadas do

    sculo passado.

    Palavras-chave: Imigrao italiana; redes sociais; inovaes na sade; histria da Medicina;

    mdicos italianos.

  • ABSTRACT

    By the end of the XIX century and during the first decades of the XX century, a

    significant number of Italian doctors have settled in the State of Rio Grande do Sul, in

    Southern Brazil. By that time, the state law facilitated the exercise of the medical profession

    in the region. Their presence was characterized by a high geographic mobility, which included

    several South American countries and the establishment of strong bonds of social networking

    along the migratory process. In this study, the author evaluated the conditions that caused this

    flow of foreign doctors to the region, how they were integrated in society and their

    contribution to development of the region. The way medical profession was structured in both

    Brazil and Italy is discussed. Legal issues that were related to medical practice, their

    registration in public institutions and the question of medical diploma revalidation in the State

    of Rio Grande do Sul are discussed. Italian doctors introduced a series of innovations into

    medical practice, during a period in which the profession was still gaining formal recognition.

    They have built hospitals, health care units, maternities and general infirmaries, being

    instrumental in the development of various specialities. Italian doctors became recognized in

    several fields, such as surgery, obstetrics, ophthalmology and radiology. They were also

    experts in the management of very prevalent and challenging diseases at that time, like

    syphilis and tuberculosis. They also conquered high positions in society, being representatives

    of their ethnic group in political and social events. During the first two decades of the XX

    century, Italian doctors comprised about 10% of the total population of doctors in the city of

    Porto Alegre, the capital of the State of Rio Grande do Sul.

    Key-words: Italian immigration; social networks; innovations in health; medical history;

    Italian medical doctors.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - De Patta, mulher, filhos e bab em 1916 ................................................................ 40

    Figura 2 - Dr. Jos Ravelli ....................................................................................................... 54

    Figura 3 - Mapa da distribuio geogrfica de Mdicos (1943).............................................. 61

    Figura 4 - Farmcia Popular .................................................................................................... 75

    Figura 5 - Comisso do Comit Colonial Italiano ................................................................... 87

    Figura 6 - Composto do Dr. Rocco ....................................................................................... 143

    Figura 7 - Farmcia Providncia em Garibaldi ..................................................................... 151

    Figura 8 - Palombini (centro) com filho e empregados ......................................................... 160

    Figura 9 - De Patta e o Hospital So Carlos .......................................................................... 182

    Figura 10 - Arrigo Cini .......................................................................................................... 203

    Figura 11 - Diploma conferido na Exposio Internacional de Higiene Social. Roma......... 216

    Figura 12 - Corpo mdico do Hospital Santa Casa de Rio Grande 1935 Sentados, Duprat, Diretor do Hospital, 1 esq., Sparvoli, 3 esq. Bertoni, em p, ao centro. .... 219

    Figura 13 - Sanatrio Santo ngelo das Misses, inaugurado por Enzo Salaroli ................. 224

    Figura 14 - Tacchini depositando a pedra fundamental do Hospital Tacchini ...................... 224

    Figura 15 - Casa de Sade do Dr. C. Anella.......................................................................... 227

    Figura 16 - Hospital de Santa Maria na dcada de 1920 ....................................................... 229

    Figura 17 - Corpo mdico do Hospital de Caridade de Santa Maria na dcada de 1920.

    Sentados, Nicola Turi, 1 esq., Astrogildo de Azevedo, 2 esq., Arthur

    Filose, 3 esq. ................................................................................................... 235

    Figura 18 - Sanatrio de Jaguari, incio do sculo XX .......................................................... 236

    Figura 19 - Diploma de Mdico de Riego Sparvoli, Roma, 1907 ......................................... 240

    Figura 20 - Diploma de Mdica de Ana Maria Sparvoli, Roma, 1939.................................. 241

    Figura 21 - Dr. Carbone atendendo os feridos da Revoluo de 1923 .................................. 253

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 - Caractersticas dos mdicos italianos constantes no livro Panteo Mdico

    Riograndense ......................................................................................................... 60

    Quadro 2 - Municpios de atuao dos mdicos em 1943 ....................................................... 62

    Quadro 3 - Origem dos diplomas dos mdicos que solicitaram revalidao na Faculdade

    de Medicina de Porto Alegre (1900-1939) ......................................................... 115

    Quadro 4 - Universidades italianas de registro dos diplomas ............................................... 115

    Quadro 5 - Caractersticas dos mdicos que fizeram seus registros na D. H. S. ............ 121,122

    Quadro 6 - Dcadas de formatura dos mdicos que registraram seus diplomas na DHS

    (1932-1934) ......................................................................................................... 122

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 - Dcadas de formatura dos mdicos italianos ......................................................... 63

    Tabela 2 - Universidades italianas ........................................................................................... 64

    Tabela 3 - Regio geogrfica da Itlia de localizao das universidades ................................ 64

    Tabela 4 - Relao de mdicos italianos e nacionais presentes nos Livros de Registro de

    Impostos sobre Profisses (1898-1920) ................................................................. 79

    Tabela 5 - Medianas dos anos de registro na Lista de Impostos sobre Profisses .................. 80

  • SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................... 13

    1 O CONTEXTO DA PROFISSO MDICA NA ITLIA NA PASSAGEM DO SCULO

    XIX PARA O XX .............................................................................................................. 29

    1.1 A TRADIO DA MOBILIDADE GEOGRFICA DOS MDICOS ITALIANOS .... 29

    1.2 O ESTADO DA PROFISSO MDICA E AS POSSIBILIDADES DE ATUAO NA

    ITLIA .............................................................................................................................. 32

    1.2.1 A Condotta Medica ........................................................................................................ 34

    1.2.2 O estado da cirurgia na Itlia ...................................................................................... 37

    1.3 AS CARACTERSTICAS DA FORMAO UNIVERSITRIA E A ESPECIALIZAO

    MDICA ............................................................................................................................ 38

    1.3.1 O acesso Faculdade de Medicina .............................................................................. 38

    1.3.2 A especializao ps-lurea acadmica ...................................................................... 41

    1.4 O EXCESSO E/OU PLETORA DE MDICOS ............................................................... 43

    1.5 POLTICAS ITALIANAS REFERENTES AO PROCESSO MIGRATRIO........................ 48

    1.6 ESTUDO DE UM GRUPO DE MDICOS ITALIANOS NO PANTEO MDICO

    RIO-GRANDENSE ............................................................................................................ 57

    2 CARACTERSTICAS DO EXERCCIO DA MEDICINA POR MDICOS

    ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL NAS DCADAS INICIAIS DO

    SCULO XX ................................................................................................................................. 72

    2.1 A PRESENA DOS MDICOS ITALIANOS EM PORTO ALEGRE ........................... 77

    2.2 LEGISLAO PERTINENTE AO EXERCCIO DA MEDICINA POR MDICOS

    ESTRANGEIROS NO BRASIL E NO RIO GRANDE DO SUL ................................... 90

    2.2.1 As legislaes federais e estaduais e a Faculdade de Medicina de Porto Alegre .... 92

    2.3 REVALIDAO DE DIPLOMA DE MDICOS ESTRANGEIROS NA

    FACULDADE DE MEDICINA DE PORTO ALEGRE ................................................ 112

    2.3.1 Exame de Revalidao de diploma de Fausto Agostini (1924-1925) ...................... 116

    2.4 O REGISTRO DE MDICOS ITALIANOS NA DIRETORIA DE HIGIENE E

    SADE DO RIO GRANDE DO SUL ............................................................................ 119

    2.4.1 O mandado de segurana de 1938 ............................................................................. 123

    3 REGISTROS DE MDICOS: A ESCRITA DE SI COMO FONTE PARA O

    ESTUDO DA INSERO DOS MDICOS ITALIANOS .......................................... 126

    3.1 RICARDO DELIA E SEU ITINERRIO POR DIFERENTES PASES DA AMRICA DO SUL ....................................................................................................... 129

  • 3.1.1 Caractersticas dos escritos de DElia ....................................................................... 130

    3.1.2 Uma longa viagem ...................................................................................................... 133

    3.2 LUIGI CARDELLI E O RELATRIO OFICIAL SOBRE DOIS ESTADOS

    BRASILEIROS ................................................................................................................ 145

    3.2.1 A experincia profissional em So Paulo .................................................................. 146

    3.2.2 A experincia profissional no Rio Grande do Sul .................................................... 150

    3.3 GIOVANNI PALOMBINI E A PROPAGANDA PARA A IMIGRAO ................... 158

    3.3.1 O relato de viagem e a geografia mdica .................................................................. 164

    3.3.2 Aspectos da sade da populao ............................................................................... 167

    3.4 DE PATTA: ENTRE INCNDIOS E DISPUTAS PELO CONTROLE DAS

    PRTICAS DE CURA ................................................................................................... 178

    3.4.1 Leoni di Calabia in terra Riograndense ..................................................................... 180

    3.4.2 A tradio oral de Anta Gorda .................................................................................. 188

    3.4.3 A verso do mdico Vicente Modena ........................................................................ 190

    3.4.4 Documentos de Virgilio Silva .................................................................................... 192

    3.5 A RETRATAO DE UMA COMUNIDADE ............................................................. 197

    4 O PAPEL DE INOVADOR ............................................................................................. 199

    4.1 MDICOS OFTALMOLOGISTAS: A INTRODUO DA ESPECIALIDADE

    NO ESTADO .................................................................................................................. 202

    4.2 A FEBRE AMARELA E O DR. BELLINZAGHI: DE RIO GRANDE PARA

    MXICO, EUA E CUBA ................................................................................................ 205

    4.3 PESTE BUBNICA, UM DIAGNSTICO NO DESEJADO .................................... 209

    4.4 O TRATAMENTO DA TUBERCULOSE ..................................................................... 214

    4.5 A CRIAO DE HOSPITAIS E A CIRURGIA ............................................................ 219

    4.5.1 Hospital de Caridade de Santa Maria e a presena de mdicos estrangeiros ....... 228

    4.5.2 Sparvoli e a Santa Casa de Rio Grande: o desenvolvimento da ginecologia e

    obstetrcia ..................................................................................................................... 238

    4.5.3 Sparvoli e Tacchini: o caso da osteomielite e o reconhecimento cientfico por

    seus pares ..................................................................................................................... 244

    4.5.4 De Patta e a construo de hospitais ......................................................................... 246

    4.5.5 Dr. Carbone, um personagem de fico e da realidade .......................................... 250

    CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 255

    REFERNCIAS .................................................................................................................. 262

  • INTRODUO

    A investigao da histria da imigrao de mdicos italianos para o Brasil, em especial

    para o Rio Grande do Sul, destaca os processos pelos quais estes imigrantes, individual e

    coletivamente, se estabelecem em uma nova regio ou pas, e pelas maneiras em que as redes

    sociais e os estilos de vida do local de origem so recriados e modificados no novo mundo. A

    imigrao de mdicos carrega consigo um valor agregado econmico, social e cultural aos

    espaos de recepo, que merece ser estudado. Dessa maneira, o conhecimento da experincia

    deste grupo profissional no seu local de destino um elemento necessrio compreenso da

    prpria histria da medicina em um momento de consolidao dessa profisso em nosso Estado.

    A mobilidade internacional de elites no um fenmeno recente, os mdicos so

    herdeiros desta antiga tradio migratria. Exemplos de profissionais que aqui aportaram

    sugerem que a presena de mdicos italianos bem mais precoce que aquela sugerida pela

    imigrao colonizadora oficial, iniciada em 1875.

    Sabe-se que um dos primeiros doutores em medicina a atuar no Rio Grande do Sul foi

    Jlio Csar Muzzi, que assumiu como Fsico-mor das tropas da Capitania em 9/3/1809. O

    registro do decreto de sua nomeao na Junta da Real Fazenda estipulava um ordenado anual

    de 400 mil ris. Muzzi foi encarregado da introduo da inoculao da vacina nos habitantes

    brancos e pretos daquela capitania1. Muzzi chegou ao Rio Grande do Sul em 1809, com a

    determinao de introduzir a vacinao antivarilica. Conforme Franco, esta tarefa comeou a

    ser desenvolvida em 1820, segundo o plano apresentado ao Governador Conde de Figueira,

    datado de 25/7/1820, para o Continente de So Pedro. Para o encargo de vacinadores,

    indicava cirurgies-mores em Porto Alegre, Vila de Rio Pardo e Vila de Cachoeira. Para a

    Vila de Santo Antnio, foi proposto o cirurgio Marcos Cristino Fioravanti, recebendo um

    ordenado de 150$00 anuais2. Muzzi foi tambm juiz delegado em comisses examinadoras de

    mdicos para exercerem sua profisso nesta provncia. Em 1825, examinou o doutor Amrico

    Cabral de Mello, que havia se formado em Medicina na Inglaterra3.

    Constantino registra a presena precoce de mdicos italianos em Porto Alegre. Na

    dcada de 1840, foram batizadas duas crianas filhas do mdico milans Francisco Friziani. O

    1 FRANCO, Srgio da Costa. Os primrdios da Medicina no Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histrico e

    Geogrfico do RGS, Porto Alegre, ano 84, n. 138, p. 160, out. 2003. 2 Ibidem, p. 160-161. 3 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Documento n 85. Coleo Varela.

  • 14

    assentamento foi feito no livro de batismos da Parquia Nossa Senhora Me de Deus desta

    capital4. Em 1885, O jornal A Federao noticiou o falecimento do dr. Fernando Suzini,

    mdico italiano que h muitos anos residia em Santa Vitria do Palmar5.

    Entre o final do sculo XIX e incio do XX, ocorreu um grande fluxo de pessoas da

    Europa em direo ao Novo Mundo. Artistas, arquitetos, msicos, professores e comerciantes

    trouxeram suas habilidades para o Brasil. Entre os profissionais liberais, destaca-se um grupo

    especial composto por mdicos italianos que se radicaram no Rio Grande do Sul.

    ***

    O que um imigrante? Para Sayad, um imigrante essencialmente uma fora de

    trabalho, e uma fora de trabalho provisria, temporria, em trnsito. A imigrao encontra-

    se dividida entre duas representaes, ou seja, um estado provisrio que se prolonga

    indefinidamente, e um estado mais duradouro que vivido com um intenso sentimento de

    provisoriedade. Desse modo, a imigrao oscila entre o estado provisrio que a define de

    direito e a situao duradoura que a caracteriza de fato6.

    Gradualmente, com o passar dos anos, a considerao da condio do imigrante como

    a de trabalhador estrangeiro, com suas posies, situaes e condies sociais e de trabalho,

    vem sofrendo uma reformulao. Torna-se mais visvel a disposio de valores, normas e

    crenas de que eles so portadores, e que, regendo seu comportamento, determinam o seu

    modo de instalao e suas relaes com os habitantes locais7.

    Para Devoto, a noo de ser imigrante tanto no carter jurdico, literrio e sociolgico

    modificou-se nos ltimos anos. O autor considera que podem existir duas definies que

    conceituam o imigrante. A primeira uma definio restrita que situa o objeto de estudo em

    torno ao tipo humano mais frequente, que composto por homens jovens de procedncia rural

    com habilidades (skills) manuais. A segunda uma definio mais ampla e que permite

    perceber melhor a riqueza e a variedade do fenmeno. Ela inclui uma variedade de situaes e

    ocupaes destes personagens; uma multiciplidade de motivos que ocasionaram a imigrao e

    que podem incorporar o caso dos exilados e os refugiados; e, por ltimo, considera a insero

    4 CONSTANTINO, Nncia S. O italiano da esquina. Imigrantes na sociedade porto-alegrense. Porto Alegre:

    E.S.T, 1991, p. 39. 5 EM SANTA Vitria do Palmar. Federao, Porto Alegre, 13 de fevereiro de 1885, p. 1. 6 SAYAD, Abdelmalek. A imigrao ou os paradoxos da alteridade. So Paulo: Editora da Universidade EDUSP,

    p. 45-47, 54. 7 SANTAMARA, Enrique. Lugares comuns e estranhamento social: a problematizao sociolgica das mobilidades

    geogrfica. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel. Polticas e poticas da diferena. Belo

    Horizonte: Autntica, 2001, p. 99.

  • 15

    e participao dentro do mundo dos imigrantes e de sua comunidade tnica. So exemplos os

    engenheiros e empregados de empresas estrangeiras, os padres que se deslocam para assistir

    s suas comunidades, mdicos e farmacuticos interessados em uma clientela tnica, tcnicos,

    artesos e comerciantes8.

    O entendimento da noo de rede fundamental quando se almeja compreender as

    migraes histricas ou contemporneas como um processo social. Desta maneira, a

    anlise do fluxo imigratrio de mdicos italianos pode ser considerada a partir da utilizao

    das cadeias e das redes migratrias. Segundo Truzzi, a utilizao dos termos cadeias e de

    redes migratrias refora o fato de que muitos decidiram emigrar aps informarem-se do

    sucedido com imigrantes anteriores. Essas informaes apontaram sobre perspectivas de

    emprego, alojamentos iniciais e recursos financeiros necessrios para a viabilizao da

    viagem. Os emigrados influenciaram o comportamento de novos migrantes em potencial,

    estimulando ou refreando seus projetos9.

    As migraes em cadeia surgiram como decorrncia do fluxo migratrio para aqueles

    que no so os pioneiros. Truzzi utiliza as definies de cadeia de Macdonald e Macdonald

    (1964) como sendo o movimento pelo qual os futuros migrantes se inteiram das

    possibilidades de trabalho existentes, recebem os meios para se deslocar e resolvem como se

    alojar e como se empregar por meio de suas relaes sociais primrias com emigrantes

    anteriores10; e a de Baily (1985), que, ao analisar o caso da imigrao italiana na Argentina,

    definiu o termo cadeia como sendo os contatos pessoais, as comunicaes e os favores entre

    famlias, amigos e paesani (conterrneos de um mesmo paese, ou aldeia) em ambas as

    sociedades, emissora e receptora, fatores que determinariam quem emigrava, o destino

    escolhido, e com quem os imigrantes se relacionavam11.

    Devoto demonstrou que as cadeias migratrias possuem um carter de aldeia ou

    microrregional maior que aquele familiar ou de parentela. Este fator decorre de uma

    revalorizao da comunidade como campo de interao social. A centralizao na aldeia

    8 DEVOTO, Fernando. Historia de la inmigracin en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p. 41-42. 9 TRUZZI, Oswaldo. Redes em processos migratrios. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, So Paulo,

    v. 20, n. 1, p. 199-200, 2008. 10 MAC DONALD, L.; MAC DONALD, J. S. Chain migration, ethnic Neighborhood formation and social

    networks. The Milbank Memorial Fund Quartely, XLII (1), p. 82, 1964, apud TRUZZI, Oswaldo. Redes em

    processos migratrios. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, So Paulo, v. 20, n. 1, p. 202, 2008. 11 TRUZZI, op; cit., p. 202-203.

  • 16

    projeta, desse modo, o espao social da cadeia migratria, visto como um deslocamento no

    qual ocorre a rede de relaes primria12.

    Truzzi salienta que a expresso redes migratrias mais abrangente na atualidade.

    Essas podem ser definidas como as ligaes entre os migrantes e no migrantes nos locais de

    destino atravs de vnculos de parentesco, amizade ou conterraneidade. Em sua funo social,

    as redes so agrupamentos de indivduos que mantm contatos recorrentes entre si atravs de

    relaes ocupacionais, culturais ou de amizade, que se utilizam de informaes13.

    Dessa maneira, a utilizao das redes e das cadeias migratrias permite a anlise do

    fenmeno dos fluxos imigratrios internacionais desde a perspectiva das estratgias

    empregadas pelos prprios imigrantes. Esta abordagem possibilita interpretar a constante

    redefinio das relaes de conflito e de solidariedade entre os imigrantes da rede e entre os

    lugares que formam parte dos itinerrios dos mesmos. O transitar dos migrantes entre dois

    mundos culturais, a circulao de bens materiais e simblicos entre os lugares de origem e de

    destino criam, assim, um novo espao sociocultural e econmico que transcende os limites

    nacionais14.

    Nas narrativas dos imigrantes, as redes de sociabilidade so mostradas como um

    aspecto importante da experincia da migrao, no momento em que os imigrantes chegam

    em novas cidades, pois proporcionam um crculo social de apoio. Thomson cita Isabelle

    Bertaux-Wiame, em seu estudo pioneiro da migrao de pessoas das provncias francesas para

    Paris, no perodo entreguerras, ao afirmar que as histrias de vida esclarecem as relaes

    sociais que esto por trs dos processos emigratrios, como tambm as redes de relaes entre

    pessoas que no deixaram um vestgio escrito15.

    De acordo com os registros deixados por mdicos, em relatos de viagens, dirios ou

    relatrios oficiais, nota-se que as trajetrias de vida destes mdicos so caracterizadas por

    uma grande mobilidade. Foram frequentes os casos de deslocamentos sustentados pela

    procura de posies profissionais mais adequadas. O caso do mdico Michele de Patta pode

    12 DEVOTO, Fernando. Historia de la inmigracin en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p. 127. 13 TRUZZI, Oswaldo. Redes em processos migratrios. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, So

    Paulo, v. 20, n. 1, p. 203, 2008. 14 PEDONE, Claudia. Cadenas, redes migratrias y redefinicin de lugares. In: ZUSMAN, Perla; LOIS, Carla;

    CASTRO, Hortnsia (Orgs.). Viajes y geografas. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007, p. 244-246. 15 BERTAUX-WIAME, Isabelle. The life history approach to the study of internal migration. In: Oral history v.

    7, n. 1, 199, p. 26-32, 1979, apud THOMSON, Alistair. Histrias (co)movedoras: histria oral e estudos da

    imigrao. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 22, n. 44, 2002 On-line version. ISSN 1806-9347

    Dispomvel em: . Acesso em: 7 mar. 2013.

  • 17

    exemplificar questes como a mobilidade geogrfica, a introduo de inovaes mdicas, os

    constrangimentos sofridos, as disputas entre outras pessoas provedoras de cuidados de sade,

    as redes sociais utilizadas na recepo no sul do pas, o papel social e a notabilidade

    adquirida. O mdico atuou em vrios ncleos urbanos situados no Rio Grande do Sul e em

    Santa Catarina e notabilizou-se pela criao de hospitais e/ou casas de sade em seu itinerrio

    por esta regio.

    A estratgia de mobilidade propicia o entendimento dos processos envolvidos na

    mobilidade. Ela viabilizada atravs de opes feitas pelo conhecimento de uma rede de

    itinerrios possveis, constitudos historicamente, e de locais que adquiriram notoriedade16.

    Deve ser considerada a partir das condies fsicas, de infraestrutura e institucionais que lhe

    ocasionam e que desvelam os movimentos de pessoas, de objetos, de imagens e de ideias.

    Estes so traados a partir das tenses entre aes pessoais e constrangimentos estruturais, ou

    modificados por atos de agentes individuais. Ela percebida como uma ameaa, uma fora

    pela qual a tradio, os rituais e as crenas desaparecem ou se perdem17.

    O termo notvel pode ser utilizado para a percepo das vrias situaes em que um

    indivduo exerce sua influncia. Esta pode se localizar no campo econmico, poltico, social

    ou cultural. Sua legitimidade e seu poder de ao situam-se sobre sua influncia mltipla

    nestes ltimos. Tudesq constata que um indivduo pode, desta maneira, se posicionar em um

    determinado campo ao mobilizar elementos patrimoniais, como bens imobilirios, ou bens

    simblicos, como linhagem e cultura. Vrios fatores combinados podem ser empregados para

    ser o mediador entre uma sociedade local e a sociedade global. Essa mediao pode ser de

    carter tecnolgico (introduo de novas tecnologias); de mediao poltica com um poder

    central, ou demonstrada pelo poder de persuaso sobre os indivduos. O notvel se caracteriza

    ento: pela sua importncia (importncia de sua riqueza, de suas atividades), sua visibilidade

    (visibilidade de bens, de seu nome, de suas aes) e sua utilidade (utilidade para seus clientes

    ou protegidos). O notvel uma ligao entre o poder central e os indivduos; ele funda sua

    legitimidade na relao que mantm com o outro polo18 19.

    16 PVOA, Helion. Itinerarios de la movilidad garimpeira. In: ZUSMAN, Perla; LOIS, Carla; CASTRO, Hortnsia

    (Org.). Viajes y geografas. Buenos Aires: Prometeo, 2007, p. 236. 17 GREENBLATT, Stephen. A mobility studies manifesto. In: _______. (Org.). Cultural mobility - a manifesto.

    Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 250-251. 18 TUDESQ, A. J. Les grands notables em France (1840-1849). tude historique dune psycologie sociale. Paris:

    PUF, 1964, apud LAMBERT, David. Notables des colonies. Une lite de circonstance en Tunisie et au

    Maroc (1881-1939). Rennes: Presses Universitaies de Rennes, 2009, p. 21-22.

  • 18

    Vrias foram as situaes que podem ser exemplificadas como caractersticas da

    notabilidade de mdicos italianos dentro e externamente ao seu grupo tnico. As situaes

    citadas a seguir podem ser reconhecidas como sendo as caractersticas que um notvel possui

    conforme foi estudado por Lambert, ao identificar a atuao dos membros da elite colonial

    francesa no Marrocos e na Tunsia no final do sculo XIX e nas dcadas iniciais do sculo

    passado20.

    As informaes sobre suas atuaes so obtidas em listagens de boletins, em

    dicionrios ilustrados, em lbuns comemorativos e nas descries de cidades importantes do

    Estado. Sua presena visvel em relatrios consulares, nas cerimnias ligadas recepo e

    instalao de embaixadas estrangeiras quando so escolhidos para recepcionar os convidados

    e proferir discursos pelo protocolo. Mdicos foram escolhidos como conselheiros e agentes

    consulares, ou seja, como intermedirios nas relaes entre o governo local e a comunidade

    italiana. Ocupam cargos pblicos destacados. Aparecem em registros mdicos e em textos

    jornalsticos de carter educativo, relacionados s informaes sobre sade e difuso de novos

    tratamentos mdicos.

    So presenas assduas no espao urbano, em locais emblemticos de reunio de

    grupos tnico, nos projetos de construo de edifcios, sendo os mais destacados aqueles de

    criao de hospitais. Os mdicos esto presentes em comemoraes de datas expressivas,

    como no Cinquentenrio ou no Centenrio da Imigrao Italiana, em inauguraes de

    esttuas e de monumentos comemorativos a datas marcantes da Itlia ou da Revoluo

    Farroupilha, que, por casualidade do destino, so comemoradas conjuntamente, em destaque

    as esttuas que homenageiam Garibaldi21. Citam-se, tambm, as comemoraes da paz talo-

    19 Marcos Antonio Witt cunhou o termo exponencial para designar os colonos alemes das regies de So

    Leopoldo e do Litoral Norte no Rio Grande do Sul que se destacaram no plano scio-econmico-poltico no

    sculo XIX. Segundo o autor, so personagens de uma camada mdia que negociava interesses prprios, entremeados com as solicitaes dos que estavam socialmente abaixo, com a elite culta e rica tanto nacional

    como alem. O autor infere que o mundo colonial era ilimitado para os exponenciais. Eles relacionavam-se com advogados, juzes, funcionrios de bancos e professores que ocupavam cargos na administrao da

    colnia ou da provncia. Seu objetivo primeiro era a busca por um lugar de destaque em uma sociedade que os

    via preferencialmente como estrangeiros. Entretanto, as limitaes tnico-culturais no impediram o seu

    crescimento econmico ou a sua insero poltica na sociedade nacional. Ver: WITT, Marcos Antnio. Sob a

    contagem de outro tempo: organizao social e estratgias polticas (Imigrao Alem- Rio Grande do Sul-

    sculo XIX). In: MARTINS, Ismnia de Lima; HECKER, Alexandre. (Org.). E/imigraes: histrias,

    culturas, trajetrias. So Paulo: Expresso e Arte Editora, 2010, p. 269-270. 20 LAMBERT, David. Notables des colonies. Une lite de circonstance en Tunisie et au Maroc (1881-1939).

    Rennes: Presses Universitaies de Rennes, 2009, p. 242-261. 21 Ver: SCHWARTSMANN, Leonor Baptista. Representantes da elite e o mito de Garibaldi: o papel do mdico

    italiano Palombini entre imigrantes no Brasil. In: CONSTANTINO, Nncia Santoro de; FAY, Claudia Musa

    (Org.). Garibaldi, histria e literatura: perspectivas internacionais. Porto Alegre: PUCRS, 2011.

  • 19

    turca, realizadas pela colnia italiana em Porto Alegre, quando o mdico Biaggio Rocco e seu

    irmo Stefano aparecem em posies destacadas.

    A nota interessante da festa foi o corso de carruagem em que tomaram parte muitos

    cavalheiros e famlias. O prstito organizou-se na rua Moinhos de Vento e

    compunha-se de 170 veculos, sendo 72 automveis e 98 carros. Abria o corso o

    automvel landau, ocupado pelo cavalheiro Beverini, professor Della Regione, sr.

    Stefano Rocco [representante das Federaes Italianas] e dr. Biaggio Rocco. O

    prstito pos-se de marcha depois das 7 horas da noite, apresentando belo aspecto.

    Todos que nele tomaram parte empunhavam lanternas venezianas e fogos de

    bengala22.

    Conforme Herzlich e Pierret, no final do sculo XIX, o mdico tornou-se um notvel

    respeitado, com status invejado, e possuidor de certa influncia na coletividade. Sua imagem

    pblica idealizada, centrada especialmente na sua caridade e dedicao. O mdico aquele

    que alivia, consola e conforta. No imaginrio coletivo, afirmado o poder intrnseco de sua

    presena. A resposta ao chamado do doente aparece como a conduta tpica do mdico, mesmo

    se ela ainda est longe de ser eficaz. Alm disso, o mdico encarna, acima de tudo, a cincia e

    o seu poder, sua ligao quase religiosa, fazendo com que o sacerdcio do mdico faa parte

    das ideias percebidas concernentes medicina23.

    Pode-se considerar que estas representaes (fotos, documentos, discursos, atividades

    sociais e profissionais) so estratgias interessadas de manipulao simblica que, apoiadas

    em Bourdieu, tm em vista determinar a representao mental que os outros podem ter destas

    propriedades e de seus portadores24. Dessa maneira, as propriedades simblicas dos mdicos e

    sua representao mental podem ser utilizadas estrategicamente para algum fim instrumental,

    que pode ser o reconhecimento afirmativo da identidade tnica, ou tambm para a insero na

    comunidade nacional.

    Os mdicos trouxeram inovaes ao Estado. Segundo Faure e Boudelais, a inovao

    a difuso de atitudes, de novas prticas, ou de novos objetos. A propagao do novo, das

    novas prticas, se inscreve na longa durao, mas tambm no espao geogrfico, social e

    imaginrio. Uma inovao no s material, ela supe uma informao, uma tomada de

    deciso e uma assimilao. Ela compreende a difuso de novos objetos, novos gestos, quando

    o papel dos atores individuais e institucionais afirmado. Contudo, as prticas, os objetos, e

    22 O CORSO. Correio do Povo, Porto Alegre, 12 nov. 1912, p. 1. 23 HERZLICH, Claudine; PIERRET, Janine. Malades dhier, malades daujourdhui. De La mort coletive au

    devoir de gurison. Paris: ditions Payot, 1991, p. 238. 24 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 112.

  • 20

    os gestos novos que podem ser a consulta mdica, os medicamentos e sua ingesto, o ato

    cirrgico praticado no hospital, ficaram margem dos trabalhos e no foram pouco estudados.

    Os autores consideram que os estudos at agora realizados esto mais centrados nos saberes

    do que nas prticas, como o observado nos estudos da literatura e da produo impressa que

    definem uma concepo estreita da difuso do novo no domnio mdico. Constata-se que a

    difuso das prticas est praticamente excluda desses estudos, uma vez que a medicina, alm

    de um saber, a arte de curar e prtica profissional25.

    A difuso de inovao em medicina complexa, pois envolve mltiplos pblicos com

    diferentes nveis de conhecimento, incluindo mdicos e doentes, os quais podem responder,

    em diversas formas, s novas teorias ou tcnicas. Ramsey emprega o conceito de apropriao

    na histria cultural, definido por Roger Chartier, como a utilizao diferenciada e contrastante

    de mesmas coisas, mesmos textos e mesmas ideias, pois este captura melhor o processo do

    que o termo adoo, considerando que o significado das coisas, prticas e crenas se modifica

    com o contexto, e, nesse sentido, no so mais as mesmas. Esta observao se aplica tanto

    persistncia de prticas tradicionais como introduo de inovaes. Dessa maneira, deve ser

    enfatizado que tanto a difuso de uma inovao como o abandono de antigas crenas e

    prticas podem ser tardios e/ou incompletos26.

    Nncia Constantino considera o imigrante como agente de mudanas, o introdutor de

    novidades. Nos seus estudos sobre a imigrao italiana para as cidades brasileiras, observou

    que esta ocasionou a introduo de tecnologias e de valores relativos ao trabalho, que se

    coadunaram s ideias de progresso que norteavam as elites brasileiras. As caractersticas de

    economia e os modelos citadinos trazidos pelo imigrante colaboraram com a introduo de

    mudanas nas mentalidades e nas condutas, as quais facilitaram a modernizao das cidades27.

    Foi considervel o nmero de mdicos italianos estabelecidos no Rio Grande do Sul.

    Eles colaboraram para disseminar o conhecimento mdico em um tempo em que havia

    notvel carncia desses profissionais.

    25 BOURDELAIS, Patrice; FAURE, Olivier. Le nouveau dans le domaine mdical et sanitaire: objets, pratiques,

    logiques sociales. In: BOURDELAIS, Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de sant (XVIII-XX

    sicles). Paris: ditions Belin, 2005, p. 7-9. 26 RAMSEY, Matthew. Uroscopy and urinalysis: tradition and innovation in diagnostic practices. In: BOURDELAIS,

    Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de sant (XVIII-XX sicles). Paris: ditions Belin, 2005, p. 49. 27 CONSTANTINO, Nncia S. de. Italiano na cidade: a imigrao itlica nas cidades brasileiras. Passo Fundo:

    Editora da UPF, 2000, p. 78-81.

  • 21

    ***

    Este estudo d continuidade temtica da dissertao de mestrado que foi defendida

    em 2007. A dissertao intitulou-se Olhares do mdico viajante italiano Giovanni Palombini

    (1901-1914) e baseou-se no estudo do relato de viajante que Palombini produziu, quando

    percorreu o sul do pas28. O projeto, ora desenvolvido como tese de doutorado, teve como

    objetivo principal identificar a presena dos mdicos italianos no Rio Grande do Sul, nas

    dcadas iniciais do sculo passado e a repercusso dessa presena na medicina regional. Com

    este projeto, pretendeu-se ampliar os estudos sobre a participao desses mdicos no

    desenvolvimento da medicina gacha, analisando os fatores que favoreceram a sua integrao

    nesta sociedade e o papel ativo que desempenharam no desenvolvimento da medicina no Rio

    Grande do Sul, no perodo de sua consolidao.

    O recorte temporal do presente trabalho inicia-se em 1892, quando ocorreu a primeira

    tentativa conhecida de multa de um mdico estrangeiro por exerccio ilegal da medicina no

    Rio Grande do Sul no perodo republicano. Ele estende-se at o ano de 1938, quando um

    grupo de mdicos estrangeiros impetrou um mandado de segurana perante o Tribunal de

    Apelao do Estado que os permitiu continuar a exercer a medicina.

    A pesquisa foi realizada em uma srie de instituies existentes no Rio Grande do Sul,

    como tambm em centros localizados no Uruguai e na Frana.

    No Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyss Velinho, foram consultados os Livros

    de Cobranas de Impostos sobre Profisses, que se iniciam no final do sculo XIX e se

    estendem at a terceira dcada do sculo XX. Esse arquivo possui as colees dos jornais A

    Federao e Correio do Povo. Esses jornais e o jornal A Reforma esto tambm disponveis

    no Museu de Comunicao Social Hiplito da Costa.

    Os Livros de Registro de Exames de Suficincia da Faculdade de Medicina e o Livro

    de Registro de Solicitao de Revalidao de Diploma da Faculdade de Medicina da

    Faculdade de Medicina de Porto Alegre esto depositados no Arquivo da Faculdade de

    Medicina da UFRGS. Permitem conhecer as caractersticas dos mdicos estrangeiros e/ou

    nacionais que procederam revalidao dos seus diplomas. A Biblioteca da Faculdade de

    Medicina da UFRGS possui um acervo de livros mdicos raros, como as revistas Archivos

    28 SCHWARTSMANN, Leonor C. Baptista. Olhares do mdico-viajante Giovanni Palombini (1901-1914). Dissertao

    (Mestrado em Histria) - Ps-Graduao em Histria, Pontitifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul,

    Porto Alegre, 2007. Disponvel em: . Acesso

    em: 10 mar. 2013.

  • 22

    Rio-grandenses de Medicina, publicao da Sociedade de Medicina e a Revista dos Cursos,

    publicada pela Faculdade de Medicina.

    A Biblioteca Central da PUCRS destaca-se pelo extenso acervo bibliogrfico sobre

    histria, literatura, antropologia e sociologia. Nota-se a curiosa presena de um livro italiano

    sobre as caractersticas e as normas da profisso do medico condotto, sua legislao e

    jurisprudncia.29

    Foi consultado o acervo do Museu da Histria da Medicina do Rio Grande do Sul, que

    contm os relatrios antigos da Sociedade Beneficncia Portuguesa, bem como material

    referente ao movimento de seu hospital. As teses dos mdicos formados na antiga Faculdade

    de Medicina e Farmcia, depois Faculdade de Medicina de Porto Alegre, e a revista Archivos

    Riograndenses de Medicina serviram de suporte para o estudo.

    Os relatrios da Irmandade da Santa Casa de Misericrdia de Porto Alegre, os livros

    de internao e de alta hospitalar de seu hospital esto guardados no Centro Histrico-Cultural

    Santa Casa de Misericrdia de Porto Alegre. Em seu acervo de livros raros, a biblioteca deste

    hospital possui uma importante coleo de textos de medicina que datam de meados do sculo

    XIX, sendo franceses em sua quase totalidade.

    O Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul guarda a correspondncia epistolar trocada

    entre Julio de Castilhos e seu secretrio Aurlio Bittencourt e as listas de notificaes

    obrigatrias de doenas contagiosas da Prefeitura de Porto Alegre. Entre as sries

    documentais, destacam-se os Documentos Consulares e a documentao da Diretoria de

    Higiene. Os registros de mdicos na Diretoria de Higiene no foram encontrados neste

    arquivo e nem no Arquivo Pblico do Rio Grande do Sul. Podem ser considerados como

    perdidos at o momento. A documentao indita sobre o caso do mdico Michelle de Patta

    em Anta Gorda (1923), municpio de Encantado, est disponvel no Instituto Histrico e

    Geogrfico do Rio Grande do Sul. Constitu-se em uma srie documental composta por

    missivas e depoimentos oficiais.

    Foi consultada a Biblioteca Pblica de Rio Grande. Seu acervo contm a coleo do

    jornal Echo do Sul e os relatrios da Intendncia dessa cidade. Foram pesquisados os jornais

    realtivos a primeira dcada do sculo XX, buscando observar a presena dos mdicos

    italianos nessa cidade em propagandas, textos educativos, atividades institucionais ou notas

    29 Ver: BUZANO, Ernesto. La condotta medica in Itlia: appunti, dottrina, legislazione e giurisprudenza. Milano;

    Turim; Roma: Fratelli Bocca, 1910.

  • 23

    sociais. Os relatrios do Hospital da Santa Casa de Rio Grande esto disponveis em sua

    biblioteca, no havendo outra documentas documentao antiga preservada. Foram

    investigados os relatrios das trs primeiras dcadas do sculo passado.

    Em Pelotas, foram consultados os relatrios da Santa Casa de Pelotas nas duas

    dcadas iniciais do sculo XX e documentos pertencentes a esta instituio, que se encontram

    na Biblioteca Pblica dessa cidade.

    A Santa Casa de Caridade de Jaguaro no preservou seu acervo histrico.

    O Museu e Arquivo Histrico Municipal de Garibaldi possui acervo iconogrfico e

    documentao de mdicos italianos.

    Na Biblioteca Central da UNISINOS, em So Leopoldo, encontram-se textos ligados a

    temtica religiosa, que informam sobre mdicos italianos. Seu acervo relacionado imigrao

    italiana foi transferido para a UCS, Universidade de Caxias do Sul.

    A Biblioteca do Departamento de Histria da Medicina, Faculdade de Medicina,

    Universidade da Republica, em Montevidu, Uruguai, possui acervo de textos antigos

    relacionados temtica mdica. L, buscaram-se evidncias da presena de mdicos italianos

    que participaram nos estudos da febre amarela e depois se deslocaram para o Brasil, como foi

    o caso de Angelo Bellinzaghi. Na Biblioteca Nacional de Montevidu, encontrou-se a notcia

    de que um antigo hospital pertencente ao exrcito brasileiro durante a Guerra do Paraguai

    transformou-se no Hospital Italiano de Montevidu. Esse hospital no preservou a

    documentao da instituio ou os arquivos mdicos do incio do sculo passado.

    Documentao consular referente aos imigrantes franceses, italianos e ingleses que

    residiram no Rio Grande do Sul est disponvel nos Arquivos Consulares do Ministrio das

    Relaes Exteriores em Nantes, Frana. Foi realizada pesquisa bibliogrfica sobre

    notabilidade e sobre mobilidade de elites na Biblioteca da Faculdade de Histria da

    Universidade de Grenoble, na Frana.

    Foi empregada a Metodologia da Anlise textual discursiva e a Metodologia da

    Histria Oral. Foram desenvolvidos estudos de anlise estatstica descritiva.

    Uma das formas de se identificar os aportes destes imigrantes feito pelos

    conhecimentos fornecidos pela Histria Oral. Infere Constantino que a utilizao da histria

    oral pressupe uma transformao radical na forma de pensar o objeto da histria e no seu

    modo de investigao. O historiador, colhendo depoimentos, transforma-os em documentos

  • 24

    que precisa interpretar. Ao interpretar um depoimento, precisa conhecer mais do que o

    significado das palavras, precisa ler nas entrelinhas e nos silncios dos depoentes. Alm

    disso, pode captar a experincia dos narradores, suas tradies, mitos, narrativas de fico,

    assim como as crenas existentes no seu grupo30. No processo de construo e anlise das

    fontes orais, segundo Vangelista, fora de questo no mbito historiogrfico a natureza

    interdisciplinar da entrevista. A importncia social e cultural do pesquisador em sua pesquisa

    de campo um aspecto que constitui parte integrante da anlise sociolgica e antropolgica,

    e graas ao dilogo interdisciplinar que ser possvel enriquecer nesta direo o estudo

    histrico da entrevista31.

    No processo de construo e anlise das fontes orais, segundo Vangelista, fora de

    questo no mbito historiogrfico a natureza interdisciplinar da entrevista. A importncia

    social e cultural do pesquisador em sua pesquisa de campo um aspecto que constitui parte

    integrante da anlise sociolgica e antropolgica, e graas ao dilogo interdisciplinar que

    ser possvel enriquecer nesta direo o estudo histrico da entrevista32. A utilizao da

    histria oral, conforme Constantino, pressupe uma transformao radical na forma de pensar

    o objeto da histria e no seu modo de investigao. O historiador colhendo depoimentos

    transforma-os em documentos que precisa interpretar. Ao interpretar um depoimento, precisa

    conhecer mais do que o significado das palavras, precisa ler nas entrelinhas e nos silncios

    dos depoentes. Alm disso, poder captar a experincia dos narradores, suas tradies, mitos,

    narrativas de fico, assim como as crenas existentes no seu grupo33.

    Em busca de conhecimentos sobre as experincias dos mdicos italianos no Estado,

    foi produzida uma srie de entrevistas orais que contaram com depoimentos de familiares,

    pacientes, pessoas que tiveram contato com mdicos italianos. O primeiro entrevistado, Joo

    Constantino, advogado, natural de Rio Grande, conviveu e foi paciente de Pedro Bertoni.

    Informou sobre a vida desse mdico e sua atividade no Hospital de Santa Casa de Rio

    Grande, onde residiu at falecer. A segunda depoente, a mdica Ana Maria Sparvoli,

    30 CONSTANTINO, Nncia S. Teoria da histria e reabilitao da oralidade: convergncia de um processo. In:

    BARRETO, Maria Helena M. A aventura (auto) biogrfica. Teoria & Empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS,

    2004, p. 63-4. 31 VANGELISTA, Chiara. Lindividual e il colletttivo nelle interviste biografiche. Note a margine di

    umesperienza brasiliana. In: BARRETO, Maria Helena M. A aventura (auto) biogrfica. Teoria & Empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 496 e 499.

    32 Ibidem, p. 496 e 499. 33 CONSTANTINO, Nncia S. Teoria da histria e reabilitao da oralidade: convergncia de um processo. In:

    BARRETO, Maria Helena M. A aventura (auto) biogrfica. Teoria & Empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS,

    2004, p. 63-4.

  • 25

    professora universitria, era filha do mdico Riego Sparvoli. Nasceu no Brasil e fizera sua

    formao mdica em Roma, juntamente com seu irmo. Durante as entrevistas, relatou a

    trajetria de seu pai no Brasil, e a sua vivncia na Itlia, que ocorreu no perodo

    imediatamente anterior Segunda Guerra Mundial. Em Porto Alegre, foram entrevistados os

    primos Wanda Palombini e o mdico Bruno Palombini, netos de Giovanni Palombini. Wanda

    teve contato com os avs quando criana. Informou sobre a vida privada de sua famlia,

    fornecendo detalhes do cotidiano familiar. Bruno Palombini no conheceu seu av, mas o

    descreveu de forma laudatria e pica, conforme a tradio oral de sua famlia. A famlia

    acreditava que o mdico tinha sido o introdutor dos aparelhos de Raio X no Rio Grande do

    Sul. Jos Baptista Neto, advogado, era filho de um mdico formado em 1909, que fora colega

    de graduao de Jos Ricaldone. O depoente conheceu vrios mdicos italianos que residiam

    em Porto Alegre, sendo que possua familiares que eram seus pacientes.

    Utilizou-se a Metodologia da Anlise textual discursiva. Conforme Roque Moraes,

    No contexto da anlise textual [...] interpretar construir novos sentidos e

    compreenses afastando-se do imediato e exercitando uma abstrao em relao s

    formas mais imediatas de leitura de significados de um conjunto de textos.

    Interpretar um exerccio de construir e de expressar uma compreenso mais

    aprofundada, indo alm da expresso de construes obtidas dos textos e de um

    exerccio meramente descritivo. nossa convico de que uma pesquisa de

    qualidade necessita atingir essa profundidade maior de interpretao, no ficando

    numa descrio excessivamente superficial dos resultados da anlise34.

    Entre o corpus documental utilizado nesse estudo, encontram-se relatos de viagem,

    textos autobiogrficos, relatrios oficiais, missivas, diplomas, lbuns comemorativos, notas e

    propagandas de jornais, correspondncias e depoimentos feitos perante juzo.

    ngela Gomes afirma que relatos de viagens, autobiografias e dirios integram um

    conjunto de modalidades do que se convencionou chamar de produo de si, a partir de uma

    relao estabelecida entre o indivduo e seus documentos. Atravs desses tipos de prticas

    culturais, o indivduo moderno est constituindo uma identidade para si, atravs de seus

    documentos. Estes registros de memria so, de forma geral, subjetivos e ordinrios, como as

    prprias vidas de seus autores. Seu valor como documento histrico identificado justamente

    nestas caractersticas35.

    34 MORAES, Roque. Uma tempestade de luz: a compreenso possibilitada pela anlise textual discursiva.

    Cincia & Educao, v. 9, n.21, p. 191-211, 2003, p. 204. 35 GOMES, ngela de Castro. Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004, p. 11-13.

  • 26

    importante destacar que o discurso presente nos textos escritos pelos mdicos

    caracteriza-se por ser um dispositivo, isto , um conjunto heterogneo de elementos que

    envolvem leis, instituies, enunciados cientficos, aspectos filosficos e medidas

    administrativas. Tal discurso pode aparecer como elemento que permite justificar e mascarar

    uma prtica que permanece muda; pode, ainda, funcionar como reinterpretao dessa prtica,

    dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade36.

    A utilizao dos textos citados acima para interpretao uma forma de permitir que

    um homem do passado fale por si prprio, a fim de que se observe que muitas de suas idias

    so compartilhadas pelos seus contemporneos. Desta maneira, atravs do seu estudo, pode-

    se descobrir uma classe de idias que condicionam o pensamento formal desses mdicos.

    Estas idias, segundo Franklin Baumer, podem desvelar o pensamento mais ntimo de uma

    poca37. Neste sentido, o mdico, como intelectual, reflete as idias de seus contemporneos

    e tambm as aperfeioa e as esclarece.

    Destacam-se, entre a biografia utilizada neste estudo, os livros Panteo Mdico Rio-

    Grandense (1943), o lbum Cinquantenario della colonizzazione italiana nel Rio Grande Del

    Sud (1875-1925) e o captulo escrito por Mainardi (1996) sobre a presena dos mdicos

    italianos no Rio Grande do Sul. Estes textos serviram como fonte e auxiliaram com os perfis

    biogrficos de uma srie de mdicos que se radicaram no Rio Grande do Sul.

    Os textos de Maria do Rosrio Salles (1997) e de Carlos da Silva Lacaz (1989)

    descrevem a participao dos mdicos italianos no Estado de So Paulo. Permitem inferir que

    o fenmeno imigratrio destes profissionais apresentou caractersticas distintas nas duas

    regies. A sua experincia socioprofissional ressaltada, na medida em que se constituram

    como um grupo particular de imigrantes em So Paulo. Este fator ocorreu em um momento da

    estruturao da profisso mdica naquele Estado, e que foi, tambm, um momento

    particularmente importante para a medicina e para a pesquisa cientfica no Brasil. Afirmaram-

    se profissionalmente como mdicos de clnica privada e benemritos, tendo alcanado

    destacadas posies na Faculdade de Medicina, centros de pesquisa e instituies hospitalares.

    Foram professores universitrios e pesquisadores ao lado de brasileiros.

    A documentao utilizada neste trabalho teve a grafia atualizada. Fontes e livros em

    lngua estrangeira (francs, espanhol, ingls e italiano) foram livremente traduzidos.

    36 FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 244. 37 BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno: sculos XVII e XVIII. Lisboa: Edies 70, 1977, v. 1,

    p. 23.

  • 27

    ***

    O trabalho foi estruturado em quatro captulos. O primeiro, O contexto da profisso

    mdica na Itlia na passagem do sculo XIX para o XX, trata de contextualizar a situao

    da profisso mdica na Itlia para os recm-formados. Salientam-se a tradio de

    mobilidade geogrfica desses mdicos e a procura de posies de trabalho que podem

    envolver passagens por pases europeus, africanos e americanos. So abordadas as

    caractersticas da formao universitria italiana, o perodo pslurea e o sentimento

    corrente de um excesso de mdicos (a pletora mdica). Sero discutidas as origens e a

    finalidade da condotta medica, uma das posies profissionais mais acessveis aos jovens

    recm-formados e que estava na base da sade pblica italiana, e as razes da partida para o

    Brasil. A anlise das biografias do grupo de mdicos italianos, constantes no livro Panteo

    Mdico Rio-grandense (1943), permite desvelar dados referentes ao local de formao

    acadmica, s viagens de estudo e/ou de especializao, ao itinerrio percorrido at o

    estabelecimento definitivo no Rio Grande do Sul.

    O segundo captulo, intitulado Caractersticas do exerccio da medicina no Rio Grande

    do Sul por mdicos italianos nas dcadas iniciais do sculo XX, discute a presena desses

    mdicos em Porto Alegre, entre os anos de 1898 e 1920. Para tanto, foram avaliadas as suas

    entradas nas Listas de Registro dos Impostos sobre profisso de Porto Alegre. feita uma

    abordagem referente legislao pertinente ao exerccio da medicina por mdicos nacionais

    e estrangeiros no Brasil, com nfase nas caractersticas peculiares da legislao do Rio

    Grande do Sul, at o final da dcada de 1930. Destaca-se o mandado que os mdicos

    estrangeiros impetraram em 1938, para poderem trabalhar neste estado. O papel da

    Faculdade de Medicina de Porto Alegre como local das revalidaes dos diplomas de

    estrangeiros avaliado.

    O terceiro captulo, Registros de mdicos: a escrita de si como fonte para o estudo da

    insero dos mdicos italianos, apresenta uma discusso sobre os escritos de memria de

    Ricardo DElia, o relato de viagem de Giovanni Palombini e os textos ainda no trabalhados

    de Luigi Cardelli e Michele De Patta. Destaca-se a grande mobilidade que estes mdicos

    tiveram pelo Brasil e por outros pases da Amrica do Sul. So identificadas questes de

    sade da populao, como nutrio, presena de doenas, condies do atendimento dos

    doentes, as disputas pelo controle da prtica de cura e abordagens teraputicas realizadas.

  • 28

    No quarto captulo, O papel de inovador, ensaia-se uma abordagem relativa ao

    reconhecimento das inovaes proporcionadas pelo grupo dos mdicos italianos. Destacam-

    se uma srie de especialidades mdicas, o reconhecimento da participao destes

    profissionais no diagnstico, tratamento e preveno de certas doenas, e sua influncia na

    construo e nos aspectos arquitetnicos de instituies hospitalares.

  • 29

    1 O CONTEXTO DA PROFISSO MDICA NA ITLIA NA PASSAGEM DO SCULO

    XIX PARA O XX

    1.1 A TRADIO DA MOBILIDADE GEOGRFICA DOS MDICOS ITALIANOS

    A mobilidade internacional de membros de elite intelectual no um fenmeno

    recente na histria da Itlia: os mdicos so herdeiros desta antiga tradio migratria.

    Vrios foram os intelectuais italianos que viveram no exterior e influenciaram

    politicamente os pases de recepo. Gramsci cita o Dicionrio dos italianos no exterior, de Leo

    Benvenuti, escrito em 1890. Nessa obra, as categorias dos intelectuais subdividiam-se, entre

    outras, em embaixadores, antiqurios, arquitetos, artistas, astrnomos, botnicos, juristas,

    engenheiros, historiadores, mdicos e viajantes. O autor nota que as classes dirigentes (polticas e

    intelectuais) de uma srie de pases foram reforadas por elementos italianos, os quais

    contriburam para criar uma civilizao nacional em tais pases. Alm disso, os intelectuais

    influenciam a cultura de um outro pas e a dirigem. Uma emigrao de trabalhadores coloniza

    um pas sob a direo direta ou indireta de sua prpria classe econmica e poltica dirigente,

    exprimindo consciente e organicamente um bloco social nacional38.

    Segundo Cenni, muitos mdicos peninsulares se radicaram no Brasil ao final do sculo

    XIX e incio do XX. Ele credita tal fenmeno ao fato de no haver leis que impedissem

    semelhante afluxo ou que regulamentassem o exerccio desta profisso para os estrangeiros,

    alm da falta de escolas nacionais especializadas39.

    Exemplos de mdicos atuando em diversas regies do Brasil sugerem que a presena

    de mdicos italianos bem mais precoce que aquela indicada pela imigrao oficial iniciada

    em 1875.

    Lycurgo Santos Filho (1947), no clssico livro Histria da Medicina no Brasil (Do

    sculo XVI ao XIX), registra que alguns cirurgies e entendidos de medicina de

    nacionalidade italiana estiveram no Brasil no sculo XVIII. Cita Antonio Cialli e Joo

    Agostinho Guido que experimentaram e atestaram as virtudes curativas das guas da Lagoa

    Santa, em Minas Gerais. Ele considera que foram muito poucos os italianos, contabilizou

    38 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1995,

    p. 67-75. 39 CENNI, Francisco. Italianos no Brasil. Andiamo in Merica. So Paulo: Editora da EDUSP, 2003, p. 373.

  • 30

    doze mdicos que atuaram no Brasil no perodo do Imprio, sendo os mais conhecidos Lus

    de Simoni e Lbero Badar, este mais por sua trgica morte40.

    Lus De Simoni nasceu no Ducado de Gnova, em 1792, formou-se pela Universidade

    de Gnova e imigrou para o Brasil no ano de 1817. Atuou como mdico na Santa Casa de

    Misericrdia do Rio de Janeiro e, aps, partiu para Moambique, onde foi Fsico-Mor. Ao

    retornar para o Rio de Janeiro, foi diretor mdico daquela instituio, trabalhando como

    mdico dos alienados nesse hospital e na enfermaria do Convento de Santo Antnio. O

    mdico liderou com o cirurgio brasileiro Joaquim Cndido Soares de Meirelles a criao da

    Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829, futura Academia Nacional de Medicina,

    onde recebeu o ttulo e o cargo de Secretrio Perptuo, que ocupou durante 37 anos. Simoni e

    Meirelles foram acompanhados por dois mdicos franceses, Jos Franciso Xavier Sigaud e

    Joo Maurcio Faivre e pelo brasileiro Jos Martins da Cruz Jobim. Os trs fundadores

    estrangeiros imigraram devido a perseguies polticas. Compartilhavam com os mdicos

    nacionais a experincia europeia (Meirelles e Cruz Jobim formaram-se na Faculdade de

    Medicina de Paris) e tinham os mesmos ideais cientficos. Simoni foi, tambm, professor de

    italiano e latim no Colgio Pedro II e professor de italiano das filhas de Dom Pedro II41.

    Joo Batista Lbero Badar (1798-1830), formado pelas Universidades de Pvia e

    Turim, imigrou para o Brasil onde se dedicou ao jornalismo. Influenciado pelo pensamento

    liberal, fundou o jornal O Observador Constitucional. Seus artigos criticavam o absolutismo e

    o conservadorismo. Foi assassinado, e este acontecimento desencadeou na campanha que

    resultou na abdicao do Imperador Dom Pedro I42.

    Entre os outros mdicos peninsulares que atuaram no Brasil, no perodo imperal, esto

    Casanova, mdico particular do irmo da Imperatriz Dona Amlia, mulher de Dom Pedro I;

    Lus Bompani, formado em Modena, tendo sido auxiliar de De Simoni no Rio de Janeiro;

    Ignazio Bertoldi, jornalista polmico que imigrou para o Brasil em 1831, tendo trabalhado em

    Santa Catarina, Rio de Janeiro, Campinas e So Paulo43; Carlos boli, que criou um

    40 SANTOS FILHO, Lycurgo. Histria da medicina no Brasil (Do sculo XVI ao sculo XIX). So Paulo: Brasiliense,

    1947, p. 370. 41 AGUINAGA, Srgio dvila. Painis da Academia Nacional de Medicina. Histria e personagens. Rio de

    Janeiro: Academia Nacional de Medicina, 2006, p. 67-68. 42 FLORES, Moacyr. Dicionrio de Histria do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 62-63. (Coleo

    Histrica). 43 Em So Paulo, Bertoldi atuou em prol da organizao dos italianos que chegavam em massa, e na busca de

    solues para os problemas originados por este grande deslocamento populacional. Ver: CONSTANTINO,

    Nncia S. de. Italiano na cidade: a imigrao itlica nas cidades brasileiras. Passo Fundo: Editora da UPF,

    2000, p. 64.

  • 31

    estabelecimento hidroterpico em Nova Friburgo, em 1874, e Afonso Lomonaco, autor do

    livro Al Brasile, relato de sua viagem pelo Brasil realizada entre 1885 e 188744. No h a

    informao de que algum deles tenha estado no Rio Grande do Sul.

    Luis Finotti um dos primeiros mdicos que se tem notcia oficial de atuao no Rio

    Grande do Sul, no perodo republicano, conforme a documentao presente no Arquivo

    Histrico do Rio Grande do Sul. Seu nome surge em Porto Alegre quando multado por

    exerccio ilegal de medicina (1892). H a interferncia do cnsul italiano que redige um ofcio

    para o presidente do Estado, General Barreto Leite (1891-1892), em prol do sdito italiano45.

    Nessa correspondncia, o cnsul informa que o Dr. Luis Finotti mdico-cirurgio,

    formado pelas universidades dos reinos da Itlia e da Blgica. Trabalhou no estado de Minas

    Gerais e, no momento, trabalhava em Caxias onde auxiliava na Inspetoria de Terras e

    Colonizao46. Ao decidir exercer a medicina nesta capital, e, antes de abrir o seu consultrio

    mdico-cirrgico, o mdico quis que seus diplomas e outros atestados de benemerncia

    adquiridos no Brasil fossem conhecidos, por deferncia a autoridade de higiene deste

    estado.

    O cnsul ficou surpreso em saber da publicao no jornal da capital, por um

    expediente da Inspetoria de Higiene que, com base no artigo 7 9 de um antigo regulamento

    sanitrio, multava o Dr. Finotti em 200$000 ris, pelo exerccio ilegal de medicina. Conforme

    o cnsul:

    O dr. Finotti exercita nesta capital a sua profisso de mdico cirurgio em base do

    artigo 71 5 e 17 da constituio do estado que declara livre todas as profisses

    morais intelectuais e industriais e garantem em todo o estado o seu exerccio

    pacfico e intelectual.

    princpio absoluto de direito, comum a todos os povos civis, que as leis

    fundamentais de um estado, ou seja, a prpria constituio, no pode ser em

    qualquer de seus artculos limitada, diminuda ou suspendida se no pela legislao

    mesma da Nao que a compilaram e por essa razo nenhum regulamento pode

    44 SANTOS FILHO, Lycurgo. Histria da medicina no Brasil (Do sculo XVI ao sculo XIX). So Paulo: Brasiliense,

    1947, p. 370-372. 45 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Consulados. Consulado da Itlia. Documento n 109.

    Ofcio dirigido ao Gal. Barros [sic] Leite. 46 A Inspetoria Geral de Terras e Colonizao tinha em seu cargo a fiscalizao e imediata direo de servios

    relativos distino das terras pblicas das do domnio particular, medio, demarcao, diviso, descrio

    e registro das terras devolutas, legitimao de posses e revalidao de concesses e sesmarias; e bem

    assim, a colonizao e imigrao compreendendo o estabelecimento de imigrantes e em geral todos os

    servios desta espcie como tambm as hospedarias para imigrantes. Podiam ser criadas delegacias da

    Inspetoria Geral de Terras e Colonizao nos Estados de recebimento de imigrantes estrangeiros possuidores

    de ncleos coloniais e naqueles possuidores de terras devolutas. Cabia aos delegados propor ao Inspetor Geral

    a nomeao dos mdicos dos ncleos coloniais e hospedarias. Ver: IOTTI, Luiza Horn (Org.). Imigrao e

    colonizao. Legislao de 1747-1915. Porto Alegre: Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do

    Sul. Caxias do Sul: EDUSC, 2001, p. 460, 466 e 472.

  • 32

    modificar a substncia, tanto mais quando este regulamento a que se refere

    Inspetoria de Higiene anterior a promulgao da constituio do estado e baseado

    na constituio menos liberal do Imprio irrevogavelmente abolida no Brasil47.

    Solicita, ainda, que fosse imediatamente declarada nula a multa infligida ao mdico

    pela Inspetoria de Higiene e que o citado sdito real italiano pudesse pacificamente gozar dos

    benefcios dos artigos 71 5 e 17 da Constituio do Estado do Rio Grande do Sul.

    Sabe-se que Finotti se estabeleceu como mdico em Porto Alegre. As informaes

    obtidas no Livro de Registros de Impostos sobre Profisses de Porto Alegre acusam a sua

    presena no perodo de 1897 a 1901. Conforme o registro, ele trabalhou em trs locais

    diferentes nesta cidade, a saber: Rua dos Andradas, Rua Marechal Vitoriano e Rua General

    Justo48.

    A influncia precoce da Medicina italiana pode ser observada na participao do cnsul

    italiano em agosto de 1893, quando encaminhou um ofcio ao Presidente do Estado, sr. Julio de

    Castilhos, solicitando a divulgao do XI Congresso Mdico Internacional aos mdicos e aos

    cultores da cincia mdica, o qual seria realizado em outubro daquele ano, em Roma49. Nessa

    cidade, haveria tambm uma exposio de Medicina e Higiene. Na correspondncia, estava

    includo um modelo de formulrio a ser preenchido pelos interessados. A comisso central

    representante deste evento no Brasil era composta pelo Visconde de Alvarenga, decano da

    Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e pelos agentes diplomticos de Sua Majestade, o Rei

    da Itlia, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em Porto Alegre50.

    1.2 O ESTADO DA PROFISSO MDICA E AS POSSIBILIDADES DE ATUAO NA

    ITLIA

    As modificaes sofridas no papel e na atuao do mdico na sociedade italiana

    ocorreram em grande parte sob a influncia das exigncias do mercado profissional no final

    do sculo XIX e no incio do sculo XX. Entre os fatores que as ocasionaram, podem ser

    elencados o crescimento numrico dos mdicos e a tendncia urbanizao (a chamada

    47 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Consulados. Consulado da Itlia. Documento n 109.

    Ofcio dirigido ao Gal. Barros [sic] Leite. 48 ARQUIVO HISTRICO DE PORTO ALEGRE MOYSS VELINHO. Livro de Registro de Impostos sobre

    Profisses anos 1897/1898, p. 12, 1899, p. 10, 1900, p. 11, 1901, p. 11. Porto Alegre. 49 ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Consulados. Consulado da Itlia. Documento n

    1020. 16 de agosto de 1893. 50 Idem. Consulados. Consulado da Itlia. Documento impresso.

  • 33

    pletora mdica); o crescimento da demanda de prestao sanitria devido seguridade social

    do Estado e a consequente direo do mercado da sade para a empresa privada, farmacutica

    e hospitalar no perodo ps-Primeira Guerra Mundial; e a desestruturao da categoria devido

    s dificuldades geradas por um mercado mais especializado, com os corolrios do recurso

    especializao, da utilizao da publicidade e do compadrio.

    Cincia e humanidade eram as palavras de ordem que relacionavam a medicina e seus

    representantes no perodo situado entre o tero final do sculo XIX e incio do XX, na Itlia.

    A figura dos mdicos destacava-se em um clima cultural caracterizado pela sequncia de

    conquistas mdico-cientficas, como assepsia e antissepsia, as descobertas microbiolgicas e a

    inveno dos raios X, que celebravam a unio da cincia e da tcnica. A identidade

    profissional era acompanhada por atributos de valores que exaltavam o humanismo, a

    filantropia, a religiosidade laica e o compromisso mdico-social51.

    A Itlia, durante todo o sculo XIX, passou por uma situao de profunda dificuldade

    socioeconmica. Malatesta chama a ateno para o fato de que a pobreza significava, acima

    de tudo, um mercado de sade reduzido. A utopia burocrtica dos mdicos deste sculo

    respondia, em primeiro lugar, necessidade de haver um emprego pblico, ainda que na

    ausncia de um real mercado de sade. O emprego pblico torna-se, assim, o local de

    construo da legitimao profissional. O discurso mdico reforou a relao entre a sade e a

    nao, desta maneira, a melhoria das condies higinicas e sanitrias dos paesi implicava

    confirmar a centralidade da figura do mdico na construo da nao52.

    O perodo era caracterizado pela influncia da ideologia positivista. Nesta poca,

    segundo Soresina, a medicina modela o seu paradigma cientfico no contexto da cincia que

    ambiciona ser, e o mdico assume o papel de promotor do progresso humano. A medicina

    atinge uma posio dominante entre os sculos XIX e XX, quando, em sua forma de sade

    pblica, assume uma configurao estvel na Itlia e nos outros pases do mundo ocidental.53

    Os mdicos, influenciados pela mentalidade positivista, buscam uma base de certeza coerente

    sobre como validar a situao sanitria da Itlia na coleta sistemtica de dados. Isso possibilita

    obter os elementos necessrios para solicitar a interveno governamental54.

    51 COSMACINI, Giorgio. La religiosit della medicina. Dallantichit a oggi. Bari: Laterza, 2007, p. 123. 52 MALATESTA, Maria. Professionisti e gentiuomi. Storia delle professioni nellEuropa contempornea. Torino:

    Einaudi, 2006, p. 174. 53 SORESINA, Marco. I medici tra stato e societ. Studi su professione medica e sanit pubblica nellItalia

    contemporanea. Milo: Franco Angeli, 1998, p. 14. 54 Ibidem, p. 256.

  • 34

    Lima e Verdi destacam que a primeira reforma sanitria que ocorreu na Itlia aps a

    sua unificao permitiu melhorar a sade dos italianos, pois associou a medicina social aos

    preceitos da bacteriologia. Emergiu tambm a biopoltica, estratgia que tinha por objetivo a

    manuteno da ordem do corpo social55.

    Cosmacini destaca que um dos marcos significativos da histria da medicina italiana

    foi a criao da Ordem Provincial, em 1910. Ela originou-se no clima de construo moral e

    material presente na Itlia, no incio do sculo XX. Os mdicos, conscientes da sua elevada

    funo na sociedade, consideravam que, alm de seu saber tcnico-cientfico, o seu poder de

    persuaso e de controle era til no posicionamento contra a ilegalidade do exerccio

    profissional, a legtima defesa de seus prprios interesses e direitos, ao esforo contra a

    imoralidade e a defesa dos direitos dos doentes e dos interesses sanitrios de toda a

    populao. Para Cosmacini, a classe mdica passou a ter duas possibilidades de ao: ser a

    conscincia moral da sade italiana, marcada por um vigor tico unitrio, enraizado na

    religiosidade do ofcio; ou ser uma organizao de profissionais, apoiada na camaradagem, na

    disciplina, na validao e na autodefesa56.

    Primeira Guerra, intitulada de ltima epidemia, seguiu-se o fascismo. Nesse perodo

    desenvolveu-se a poltica sanitria higienista de Mussolini. Caracterizava-se por ser uma

    poltica centralizada e direcionada para a desinfeco pblica57.

    1.2.1 A Condotta Medica

    O medico condotto estava na base dos servios de sade pblica italianos. Vinculado

    formao da assistncia sanitria, sua origem remonta Roma antiga. Fragmentado o Imprio

    Romano e com o surgimento das comunas livres (liberi comuni) no perodo medieval, a

    assistncia populao, at ento conduzida pelas organizaes eclesisticas, passa a ser

    responsabilidade dos citadinos. O mdico, a servio de instituio pblica, recebeu esse nome

    devido ao contrato (condotta) por ele estipulado. Esta iniciativa representa, pois, a primeira

    tentativa planificada para reduzir as desigualdades entre as cidades e o campo. A utilizao

    55 LIMA, Rita de Cssia G S; Verdi, Marta Inez. A solidariedade na medicina de famlia no Brasil e na Itlia:

    refletindo questes ticas e desafios contemporneos. Interface Comunic., Sade, Educ., v. 13, n. 29, p. 273, abr./jun. 2009.

    56 COSMACINI, Giorgio. La religiosit della medicina. Dallantichit a oggi. Bari: Laterza, 2007, p. 133-134. 57 LIMA, Rita de Cssia G S; Verdi, Marta Inez. A solidariedade na medicina de famlia no Brasil e na Itlia:

    refletindo questes ticas e desafios contemporneos. Interface Comunic., Sade, Educ., v. 13, n. 29, p. 273, abr./jun. 2009.

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    desses mdicos tornou a Medicina acessvel aos mais pobres. A condotta foi instalada

    oficialmente na Toscana, em 163058.

    O medico condotto era responsvel pela assistncia gratuita aos pobres e tinha a

    obrigao de prestar esse tipo de atendimento a todos os habitantes da comuna, no

    importando as causas nem os gneros de doena59. As esposas dos mdicos cooperavam para

    aumentar a renda familiar, auxiliando no fornecimento de medicamentos aos doentes, no

    dispensrio local como fora destacado pelo mdico Giovanni Palombini em seu relato de

    viagem60. O edital publicado no ano de 1910, em Zeri, para concurso de medico condotto,

    informava que, entre as obrigaes solicitadas aos mdicos, estes deveriam propiciar

    tratamento gratuito aos habitantes e aos pobres que se encontrassem de passagem pelo

    territrio desta localidade. O salrio estipulado era de 2.200 liras por ano, acrescido de 500

    liras para a caleche obrigatria, mais 200 liras para o custo e para a gesto do dispensrio61.

    Os mdicos da elite chamavam o medico condotto de jovem e pobre mdico das

    comunas. Tinham para ele um projeto positivo, que consistia em civilizar as camadas mais

    modestas da sociedade. O mdico proletrio, alm de ser um tcnico que aliviava as dores

    das pessoas, era considerado como um operador social que se ocupava dos problemas da

    coletividade, servindo como intermedirio entre as camadas populares e o poder pblico.

    Ainda no final do sculo XIX, o trabalho desses mdicos da assistncia pblica era mal

    remunerado; eram responsveis por grande nmero de pacientes e acumulavam funes que

    implicavam visitas domiciliares, manuteno de dispensrios, aplicao de vacinao, redao

    de estatstica mdica e verificao de mortes. Reconheciam-se como refugos sociais, como

    profissionais abandonados pelo Estado62.

    Esses mdicos possuam um conhecimento real das condies de vida da populao

    que estava sob sua tutela, construda a partir de relaes de confiana. Nas consideraes

    relativas vida das grandes cidades da Itlia, constata-se que as anotaes feitas por

    58 FAURE, Olivier. Les stratgies sanitaires. In: GRMEK, Mirko Drazen (Org.). Histoire de la pense mdicale

    en Occident. Paris: ditions Seuil, 1997, p. 293. (De la Renaissence aux Lumires; v. 2). 59 BUZANO, Ernesto. La condotta medica in Itlia: appunti, dottrina, legislazione e guirisprudenza. Milano; Turim;

    Roma: Fratelli Bocca, 1910, p. 49-55. 60 SCHWARTSMANN, Leonor C. B. Olhares do mdico-viajante Giovanni Palombini (1901-1914). Porto

    Alegre: EDIPUCRS, 2008, p. 147. 61 CRONACA di un Secolo in Lunigiana. 1910. Disponvel em: . Acesso em: 5 mar. 2007. 62 NONNIS, Serenella. Le cure dans la ville, novateur malgr lui, Italie, XIXe-Xxe sicles. In: BOURDELAIS,

    Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de sant (XVIII-XX sicles). Paris: ditions Belin, 2005, p.

    253-254.

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    Palombini so carregadas de emoo referentes sade das famlias que ele acompanhou. Sua

    experincia como medico condotto na Itlia o habilitou a externar opinies: Quantas dores, e

    quantas desiluses, quantas humilhaes, quanta fome, quantos delitos e quantos

    suicdios!63. Ao se recordar da vida em seu pas nestes locais, a famlia desestruturada, a

    mulher possui um papel negativo, verificado quando acompanha nas noites os bbados nos

    teatros, nas biscas, nos bailes e nas orgias, os pais se abastecem dos lixos nas ruas e os seus

    filhos so escrofulosos64.

    Nas pequenas cidades da Itlia, conforme as memrias escritas por Ricardo DElia, o

    medico condotto, juntamente com o prefeito, com o secretrio, com o farmacutico, com o

    mariscalo, com o barbeiro e com o vigrio, compunham a cpula das autoridades e das

    pessoas mais influentes. Era frequente se reunirem na farmcia local. Ele faz uma comparao

    ao chegar Vila de So Vicente no Rio Grande do Sul, nos anos iniciais do sculo XX. O

    autor constata, impressionado, essa mesma situao, ao presenciar a reunio de homens no

    albergue onde estava hospedado, que jogavam e confabulavam sobre as ltimas notcias65.

    Apesar do reconhecimento social citado anteriormente, podem-se identificar as

    dificuldades que Palombini sofrera no exerccio de sua profisso, em sua terra natal, Ascoli

    Piceno, de acordo com suas recordaes anotadas em seu relato de viagem, j no Brasil:

    [...] voei, com o pensamento, queles penosos tempos, durante os quais fui medico

    condotto (municipal) na Itlia; poesia (parece-me que) de Fusinato: arte mais msera, arte mais rota, no h, que a do mdico