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Tese: (PER)CURSOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE SURDOS CAPIXABAS: CONSTITUIÇÃO DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO Autora: Lucyenne Matos da Costa Vieira Machado Referência Bbliográfica: “A ordem do discurso” (2005) é o texto compilado da primeira aula de Foucault no início de sua carreira no Collége de France, com uma conferência em que discute justamente a pertinência e a potência do discurso no processo das análises teóricas e apresenta suas inquietações: “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (FOUCAULT, 2005a, p. 8).O perigo está justamente no que esses discursos criam quando são produzidos. Falamos constantemente de mudanças discursivas na área da educação de surdos, de mudanças em discursos que capturam de forma aparentemente definitiva os conceitos sobre surdez, surdos e educação bilíngue. Segundo Foucault (2005, p. 8-9): Eis a hipótese que gostaria de apresentar [...] suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Focando ainda o discurso da “Educação para todos” que hoje captura os conceitos sobre surdos e surdez, em uma sociedade como a nossa, segundo Foucault (2005), contamos com o mais familiar princípio de exclusão, que é o procedimento de interdição discursiva. “Sabe-se bem que não se pode dizer tudo, que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2005, p. 9).

Tese - Lucyenne Vieira Machado

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Tese: (PER)CURSOS NA FORMAO DE PROFESSORES DE SURDOS CAPIXABAS: CONSTITUIO DA EDUCAO BILNGUE NO ESTADO DO ESPRITO SANTOAutora: Lucyenne Matos da Costa Vieira MachadoReferncia Bbliogrfica:

A ordem do discurso (2005) o texto compilado da primeira aula de Foucault no incio de sua carreira no Collge de France, com uma conferncia em que discute justamente a pertinncia e a potncia do discurso no processo das anlises tericas e apresenta suas inquietaes: Mas, o que h, enfim, de to perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, est o perigo? (FOUCAULT, 2005a, p. 8).O perigo est justamente no que esses discursos criam quando so produzidos. Falamos constantemente de mudanas discursivas na rea da educao de surdos, de mudanas em discursos que capturam de forma aparentemente definitiva os conceitos sobre surdez, surdos e educao bilngue. Segundo Foucault (2005, p. 8-9):

Eis a hiptese que gostaria de apresentar [...] suponho que em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade.

Focando ainda o discurso da Educao para todos que hoje captura os conceitos sobre surdos e surdez, em uma sociedade como a nossa, segundo Foucault (2005), contamos com o mais familiar princpio de excluso, que o procedimento de interdio discursiva. Sabe-se bem que no se pode dizer tudo, que no se tem o direito de dizer tudo, que no se pode falar de tudo em qualquer circunstncia, que qualquer um, enfim, no pode falar de qualquer coisa (FOUCAULT, 2005, p. 9).

Essa interdio no discurso est no apenas associada ao discurso maior que rege as polticas de educao especial na perspectiva da incluso adotada pelo Ministrio da Educao, mas, tambm, h uma interdio nos movimentos sociais dos sujeitos surdos, quando chamam pra si, e somente para si, o direito de questionar, de se colocarem num procedimento de resistncia relativa ao discurso maior. Ou seja, trs interdies expostas: o objeto a que se refere, a circunstncia em que dito e a exclusividade de quem diz.Outro princpio de excluso a rejeio do discurso. Vimos isso o tempo todo,quando o discurso do surdo, historicamente, tensionado pelo discurso audista. Afinal, no tem a mesma circulao. Tomando como referncia as palavras de Foucault (2005) sobre a loucura, podemos afirmar que a palavra do surdo rejeitada automaticamente, considerada nula, no tendo verdade ou importncia histrica. Pode, tambm, diferente da rejeio, ser considerada uma palavra com estranhos poderes, ou capaz de [...] dizer uma verdade escondida, de pronunciar o futuro, de enxergar com toda ingenuidade o que os outros no percebem. Capaz de cair no nada ou de ser enaltecida(FOUCAULT, 2005, p. 10, 11).

Em todo tempo de produo de diferentes discursos sobre a surdez e sobre os surdos, nunca se deu tanto valor a palavra ao surdo como hoje. Ele tambm tem tomado para si o propsito srio de constituir seus prprios discursos em meio a tantas possibilidades e nomes criados em nossa atualidade.A criao do discurso e das formas como se compe (com seus princpios de excluso), est relacionada diretamente com o desejo e o poder. Nada mais espantoso, j que as suas interdies esto diretamente ligadas a isso. Afinal elas existem...

[...] visto que o discurso [...] no simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; , tambm, aquilo que o objeto do desejo; e visto que - a histria no cessa de ensinar- o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar (FOUCAULT, 2005, p. 10).

Captulo I: CONTORNOS TERICO-METODOLGICOS DESTE TRABALHO: CAMINHOS PERCORRIDOS

Afinal, numa pesquisa de inspirao terica foucaultiana, no h espao para respostas fechadas e certezas absolutas. O prprio Foucault vive suas pesquisas sempre numa recusa de adotar um mtodo fechado a fim de definir procedimentos e encontrar resultados. Essa recusa de modo algum traduz um trabalho como este num trabalho sem mtodo. E muito menos num trabalho menor ou deficitrio neste ponto. Essa recusa constitui a produtividade prpria do trabalho, mesmo porque Foucault forja seus elementos de anlise com as ferramentas tericas de que dispe.

No tenho nenhum mtodo que se aplicaria, de mesmo modo, a domnios diferentes. Ao contrrio, diria que o mesmo campo de objetos, um domnio de objetos que procuro isolar, utilizando instrumentos encontrados ou forjados por mim, no exato momento em que fao minha pesquisa, mas sem privilegiar de modo algum o problema do mtodo (FOUCAULT, 2006, p. 229).

Isso tambm significa que, ao fazer esta opo terica, segundo Santos (2006, p. 46):

[...] que aqueles que realizam estudos foucaultianos no contam nem querem contar - com instrumentos tericos e metodolgicos que assegurem, antecipadamente, a linearidade do caminho a ser percorrido e a verdade definitiva como ponto de chegada.

Comecei perguntando sobre como a formao dos professores de surdos poderia constituir saberes especficos que seriam teis para a consolidao de uma educao bilngue no Estado.

Como a formao dos professores de surdos capixabas constitui o percurso da educao bilngue no Estado do Esprito Santo? E como esses professores, ao praticarem, enunciarem, experienciarem a educao bilngue, se constituem professores de surdos?

Para responder a essas perguntas, percorri um caminho de leituras, discusses e narrativas.A anlise dessas falas ser feita levando em conta o momento presente em que foram proferidas e so fundamentais para percebermos como as prticas e os enunciados constituem a educao bilngue.

Segundo Larrosa (2004), Foucault qualifica seu trabalho como ensaio. Afirma que o que o impulsiona a curiosidade, a possibilidade de se refletir sobre o prprio pensamento, a necessidade de pensar no em como descobrir um saber ou um conhecimento pronto, mas em trabalho crtico sobre o prprio pensamento.

Trabalhar com Foucault pode nos fazer apaixonar de tal forma que nos cegamos diante dos cuidados metodolgicos necessrios para evitar o equvoco. Por isso, Rosa Maria Bueno Fischer escreveu dois textos que me chamaram muito a ateno sobre o fato de escolher trabalhar com Foucault.No texto A paixo de trabalhar com Foucault (FISCHER, 2002), a autora traa seu incio como pesquisadora e seus primeiros contatos com o autor em questo. Ao contar sua experincia em pesquisa, relata seus equvocos e suas aprendizagens com ele. E deixa claro que: Trabalhar com um autor , em primeiro lugar, fazer todas as leituras possveis de seus textos, estud-los seriamente, traduzi-los para si mesmo, falar deles, expor as dvidas e as iluminaes aos colegas, no temer publicar ideias e ensaios de incorporao (FISCHER, 2002, p. 41).

Fica claro nesse texto o olhar metdico de Foucault para a busca da origem do conceito loucura. Todavia, quando Foucault embarca nas leituras de Bataille, Blanchot e Nietzsche, ele formula a ideia da experincia como experincia-limite, algo que arranca o sujeito de si mesmo; o sujeito se dissolve; impede de ser o mesmo. E, finalmente, o conceito de experincia, que ganha uma elaborao foucaultiana propriamente: a forma histrica de subjetivao, ou seja, os focos de experincia, tratados anteriormente nesse mesmo texto. Para Foucault, segundo Nicolazzi (2004, p. 105):

Para a definio de tais regies da experincia, Foucault permite nos pensar que os indivduos, no processo de constituio de si mesmos enquanto sujeitos de uma experincia singular, encontram maneiras diferentes de se conduzir, ou seja, de agir em relao a um cdigo de ao que define os contornos de uma experincia possvel.

Se pensarmos em experincia como algo que transpassa a extrao do sujeito de si prprio por meio de uma atitude histrico-crtica, as narrativas dos professores passam a ser fundamentais na composio desse olhar, no sobre os comportamentos corretos, ou saberes corretos, mas olhares sobre as representaes de si mesmos, sobre as tcnicas de subjetivao, sobre os discursos produzidos. Afinal, segundo Nicolazzi ( 2004, p. 106):

[...] o processo de subjetivao no se limita a uma tomada de conscincia de si segundo a frmula cartesiana do cogito, mas tambm implica uma problematizao do processo ao qual se sujeitado: no simplesmente a constatao do pensamento que garante a existncia, mas tambm a necessidade de se problematizar aquilo sobre o que se pensa e mesmo sobre a forma como se pensa.

Quando converso com os sujeitos professores, muito mais do que discutir sobre como eles se subjetivam, para alm disso, este texto tem a inteno de transpassar sobre o como so produzidos esses sujeitos.

Por isso, no primeiro momento, fiz um breve estudo do processo histrico da formao de professores de surdos capixabas e os prprios saberes envolvidos a fim de situar historicamente as narrativas desses sujeitos, at como dispositivo de subjetivao das suas prticas nesse processo. Este estudo foi realizado por meio de uma anlise dos currculos desenvolvidos em vrios cursos de formao de professores de surdos, dos discursos sustentados nesses cursos por materiais tericos, avaliando constantemente o impacto dessas formaes, desses saberes constitudos tanto socialmente, quanto na poltica educacional no Estado do Esprito Santo. Tambm utilizei as narrativas dos profissionais dos diferentes grupos de professores que atuam com surdos (professores oralistas, professores bilngues) at mesmo pelo fato de haver pouco registro escrito sobre esses cursos.