Tese Luiz Eduardo Figueira

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O RITUAL JUDICIRIO DO TRIBUNAL DO JRI: O CASO DO NIBUS 174

LUIZ EDUARDO FIGUEIRA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Antropologia

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, aos meus pais, Joo e Isla, pelo apoio e amor incondicionais. Para ser mais justo, obrigado por tudo, absolutamente tudo. Aos meus irmos, Roberto, Ivan e Maria Alice, pelo amor compartilhado em famlia. Ao meu orientador, Roberto Kant de Lima, pelas orientaes preciosas e pelo exemplo de combatividade profissional. Aos professores Michel Misse, Marco Antonio da Silva Mello e Simoni Lahud Guedes, pelas importantes orientaes dadas no Exame de Qualificao. s amigas Ktia Sento Mello e Brgida Rinoldi, que compartilharam comigo as alegrias e angstias do processo de elaborao da tese. juza Maria Anglica, figura mpar, que tornou possvel este trabalho. Aos meus informantes, sem os quais nada disso existiria. Aos colegas do NUFEP, pelo ambiente profissional estimulante. Ao professor Geraldo Prado, pelas aulas dadas no Mestrado em Direito e pelas orientaes jurdicas imprescindveis. professora Georgina, pelo apoio e ensinamentos de vida. Ao meu bom e querido amigo Adrian Sgarbi. querida amiga Guiomar Lemos. Mrcia, pelo carinho, companheirismo, paixo, apoio, enfim, por tudo o que cabe na palavra amor.

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LUIZ EDUARDO DE VASCONCELLOS FIGUEIRA

SUMRIOINTRODUO O CASO /5 O ACONTECIMENTO (NA MDIA) /5 O ACONTECIMENTO (NOS AUTOS DO INQURITO POLICIAL) /8 PROBLEMATIZAO /11 METODOLOGIA /15

I) A CONSTRUO DO ACONTECIMENTO PELO OLHAR DO CAMPOJURDICO: a produo de um mundo parte e de uma verdade prpria. A PROVA O CORAO DO PROCESSO /18 A CONSTRUO JURDICA DO FATO: DOS FATOS DO MUNDO AO MUNDO DOS FATOS (JURDICOS) /25 A IMPORTNCIA DO INQURITO POLICIAL - A forma de produo da verdade no inqurito policial /27 - A converso lingstica /28 - A transcrio da oralidade e a questo da escriturao /28 O PROMOTOR DE JUSTIA E A CONSTRUO JURDICA DOS FATOS /29 - Como feita a denncia /35 - O promotor de justia e a formao de seu convencimento /38 - O promotor de justia e a construo narrativa do fato criminoso /42 - O promotor de justia: classificando juridicamente o fato e produzindo sua tese jurdica /45 - nibus 174: denncia do promotor de justia /50

II) O JUIZ, O ACUSADO E O SEU DEFENSOR E AS TESTEMUNHAS /59- A defesa em cena /61 - Ru e testemunha: a construo das personagens /64 - A mentira como uma tcnica especfica de defesa /69 - Os atores judicirios e a ordem axiolgica do campo jurdico /75 - O papel de juiz /79 - O juiz, os interrogandos e os depoentes: a trama discursiva nos rituais de inquirio/83 - nibus 174: o interrogatrio /87 - nibus 174: os depoimentos das testemunhas /100 - nibus 174: alegaes finais e deciso de pronncia /101

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III) O PROCESSO DE SELEO DOS JURADOS E UM POUCO DAHISTRIA DO JRI. - O processo de seleo dos jurados /115 - A pauta de julgamento /126 O TRIBUNAL DO JRI E ALGUNS ASPECTOS DE SUA HISTRIA: o passado como parte do presente /128 - A ordem jurdica do Brasil Imperial /132 - A organizao do jri sob o Cdigo de Processo Criminal (de 1832) /133 - A Reforma de 1841 /137 - O Estado Novo e a supresso da soberania do jri /142

IV) OS DEBATES ORAIS NO PLENRIO DO JRI- A ordem do discurso jurdico /145 - Contando uma histria: fatos e provas no discurso da acusao /150 - O lugar do inqurito policial e da percia criminal /153 - O lugar das imagens no ritual judicirio /162 - Violncia e criminalidade no discurso dos atores judicirios /163 - Os argumentos morais, as biografias em cena e outras estratgias do embate contraditrio /166 - Pausa para uma anlise: a) Construo discursiva da violncia e da criminalidade /175 b) Construo biogrfica e acusao/defesa moral /177 c) Produo da inteno do agente nos discursos das partes /183 d) Outras estratgias discursivas e no-discursivas /191

V) A DECISO DOS PROFANOS NO TEMPLO DA JUSTIA: entre fatos,provas e teses. -Tese jurdica da acusao /199 -Tese jurdica da defesa /205 - A interpretao dos fatos e sua articulao com as provas e com as teses jurdicas /206 - A construo da deciso dos jurados /214 - A compreenso do ritual judicirio pelos jurados /220 - O veredicto dos jurados /223 CONCLUSO /224 BIBLIOGRAFIA /229

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INTRODUO O CASO No mbito das prticas judicirias criminais brasileiras, o presente trabalho objetiva descrever e analisar a lgica de construo da verdade no tribunal do jri. Partindo do estudo do processo criminal relativo ao evento que ficou conhecido como caso do nibus 1741, procurei dar indicaes de algumas especificidades da cultura jurdica brasileira. Apresentarei, inicialmente, o caso do nibus 174, na forma como foi veiculado por um importante meio de comunicao (Folha on line) e pela maneira como foi incorporado, por meios dos termos de declaraes, aos autos do inqurito policial. A partir da, veremos como os atores judicirios (promotores, advogados, juzes, etc) constroem o evento por meio da linguagem e do sistema de classificao jurdicos, operando, assim, um complexo processo de jurisdicizao do fato e de produo da verdade jurdica.

O ACONTECIMENTO (NA MDIA) FOLHA ON LINE. 12/06/2000 15 hs 19. ASSALTANTE SEQESTRA NIBUS E BLOQUEIA RUA NO JARDIM BOTNICO, NO RIO. Da Folha online. O assaltante que mantm um nibus na zona sul do Rio de Janeiro acaba de colocar a cabea para fora do veculo e gritou para os policiais que a ao no se tratava de um filme. Ele disse que perdeu o pai e a me e ameaou tambm arrancar a cabea de uma mulher que ele mantm constantemente sob a mira de um revlver. Ele afirmou que vai atirar na refm. Aps essa ameaa, a Polcia Militar retirou os jornalistas de perto do nibus. As ameaas do assaltante foram feitas para os reprteres. Pouco antes, um homem havia sido liberado. Ele estava vestindo bermuda e camiseta listrada. O homem saiu do nibus por uma das janelas.1

Crime de homicdio, de grande repercusso, que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em junho de 2000.

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Segundo o comandante do policiamento de rea, esse o segundo refm a ser liberado. Ainda no se sabe ao certo quantas pessoas ainda esto dentro do veculo. Outras duas mulheres, dentro do nibus, esto em estado de pnico. Agora h pouco, sob a mira de um revlver, uma das mulheres escreveu com um batom, em um dos vidros do nibus, a seguinte frase: Ele tem pacto com o diabo, e mostrou no brao dele um punhal e um diabo desenhado, que me assustou muito. O assaltante, alm de apontar um revlver para a cabea da mulher, est dando uma gravata no pescoo dela. Ele caminha pelo veculo arrastando a refm. O assaltante est exigindo armas para liberar o veculo e tambm que os policiais militares se afastem do local. Quatro PMs esto negociando neste momento com o assaltante. O nmero de refns no est confirmado, varia de quatro a oito. O seqestro j dura quase duas horas. Em determinados momentos, o assaltante aponta a arma para fora do nibus, em direo a policiais, jornalista e curiosos. Ele j deu um tiro para fora do veculo. O nibus est na Rua Jardim Botnico, no bairro de mesmo nome. O 23 Batalho de Polcia Militar informou que cerca de 200 homens esto no local. A rua est interditada. O desvio dos carros est sendo feito pela Lagoa Rodrigo de Freitas. O CTPA (Controle de Trfico por rea) aconselha os motoristas a no se dirigirem para a regio. O nibus da linha 174 faz o percurso entre o bairro da Gvea e a Central do Brasil, no centro da cidade. O Jardim Botnico considerado um dos bairros mais nobres da zona sul da cidade. Prximo de pontos tursticos, como a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Parque Jardim Botnico. O local considerado uma das reas mais tranqilas do Rio por no ficar prximo de morros e favelas.

12/06/2000 - 16 hs 34. ELE TEM PACTO COM O DIABO, ESCREVE REFM EM VIDRO DE NIBUS SEQESTRADO. 12/06/2000 - 17 hs 43 LADRO ATIRA EM NIBUS, MULHER GRITA QUE UMA REFM MORREU; PM NO CONFIRMA. 12/06/2000 - 18 hs 54. NO HOUVE MORTE DE REFM EM SEQESTRO DE NIBUS NO RIO; LADRO PODE TER SIDO BALEADO. 12/06/2000 - 22 hs 06. SEQESTRADOR DE NIBUS MORRE NO RIO.

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12/06/2000 - 22 hs 25. REFM MORRE NO HOSPITAL DEPOIS DE LEVAR TRS TIROS. 13/06/2000 - 12 hs 42. SEQESTRADOR ERA FORAGIDO DA POLCIA. 13/06/2000 - 12 hs 55. LAUDO DE HOSPITAL CONFIRMA QUE REFM TOMOU TRS TIROS. 13/06/2000 - 15 hs 35. GAROTINHO DEMITE COMANDANTE DA PM. 13/06/2000 - 15 hs 55. GAROTINHO DIZ QUE SEQESTRADOR FOI ASFIXIADO POR POLICIAIS. 13/06/2000 - 22 hs 31. AMIGOS DE REFM MORTA EM SEQESTRO PROTESTAM NA FRENTE DO IML DO RIO. 14/06/2000 - 10 hs 56. CORPO DE VTIMA DO SEQESTRO NO RIO VELADO EM FORTALEZA. 14/06/2000 - 19 hs 26. COMISSO FEDERAL DE DIREITOS HUMANOS IR AO RIO DISCUTIR SEQESTRO DO NIBUS. 16/06/2000 11 hs 34. CORONEL DO BOPE EST DEPONDO NA 15 DP DO RIO. 19/06/2000 12 hs 10. COMANDANTE EXONERA CORONEL QUE LIDEROU OPERAO NO RIO. 13/07/2000 13 hs 53. JUSTIA DO RIO AUTORIZA ENTERRO DE SEQESTRADOR DO NIBUS 174. 7

14/07/2000 13 hs 50. SEQESTRADOR DO NIBUS ENTERRADO COMO INDIGENTE NO RIO. 09/08/2000 19 hs 51. CINCO PMs SO INDICIADOS COMO ASSASSINOS DO SEQESTRADOR DO NIBUS NO RIO. 10/08/2000 19 hs 29. PROMOTORA DECIDIR SOBRE DENNCIA DE POLICIAIS DO CASO DE SEQESTRO DE NIBUS NO RIO NA SEGUNDA. 15/08/2000 20 hs 00. JUSTIA DO RJ REJEITA DENNCIA CONTRA DOIS DOS SETE ACUSADOS NO CASO 174. 18/08/2000 10 hs 02. POLICIAIS DO SEQESTRO DE NIBUS NO RIO DEPEM HOJE.

O ACONTECIMENTO (NOS AUTOS DO INQURITO POLICIAL) Estado do Rio de Janeiro Secretaria de Estado de Segurana Pblica Chefia de Polcia Civil 15 Delegacia Policial - Gvea. Data: 12/06/2000. Nome e cargo da autoridade: Jos de Moraes Ferreira Delegado. Nome do escrivo: Wiliam de Assis Mendes.

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TERMO DE DECLARAES Nome: 3 Sargento PMERJ Reginaldo Martins Rutiliano. (...) Inquirido disse: que hoje, cerca de 14:15 horas, quando em patrulhamento, quando foi solicitado por populares, os quais informavam que um nibus da linha 174 estava sendo assaltado; que os mesmos, tambm, informaram que o nibus havia seguido em direo ao Humait, pela rua Jardim Botnico; que conseguiram interceptar o nibus do lado direito em direo ao Humait, em frente ao nmero 391, tendo de um lado o Parque Laje e do outro o Clube Militar; que o declarante fez sinalizao com o farol e o nibus parou; que o declarante entrou pela porta dianteira e seu colega Sargento Nascimento pela porta traseira e a um homem levantou-se, sacou um revlver da cintura e primeiro apontou para o declarante e, em seguida, tomou uma mulher como refm e apontou o revlver engatilhado para sua cabea; que como o declarante estava mais prximo do criminoso resolveu descer, temeroso que o mesmo causasse mal maior refm; que seu colega continuou dentro do nibus tentando dialogar a fim de evitar danos maiores aos refns; que quando o declarante saltou, no sabendo se por ordem do criminoso ou por reflexo, fechou a porta dianteira e saltou pela janela; que o cobrador o declarante no viu, nem mesmo do lado de fora; que o declarante acionou reforos e auxlios; que at o presente momento, o declarante no sabe dizer quantos refns ficaram dentro do nibus; que quando chegaram os reforos e auxlios, o criminoso fez um disparo no pra-brisa do nibus; que foram liberados dois homens que eram mantidos como refns, entre um e outro cerca de duas horas; que tais refns foram trazidos para esta D.P.; que esclarece acima onde disse cerca de duas horas, para dizer com intervalo de duas horas entre um e outro; que cerca de quinze minutos que liberou o segundo refm, o mesmo liberou outra refm, a qual em estado de choque foi levada para o Hospital Miguel Couto; que at o presente momento, cerca de 18:30 horas, o criminoso permanece com cerca de quatro refns, tendo feito mais um disparo de arma de fogo, no sabendo dizer se feriu um dos refns; que ao que se pode notar so mantidos trs mulheres e um homem, este de muletas, mas tal informe no preciso, podendo existir mais refns, j que o criminoso ordenou que todos ficassem deitados no cho; que o criminoso, a cada instante, troca de refm, o qual mantm agarrado em seu corpo; que um dos dois que foram liberados como sendo refns, temse a suspeita que seja parceiro do criminoso que se mantm dentro do coletivo. E mais no, DIGO, coletivo, aguardando-se que os refns ou um dos refns o reconhea ou no. E mais no disse. E nada mais havendo, mandou a autoridade encerrar o presente, que lido e achado conforme assina com o declarante. (...)

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15 Delegacia Policial - Gvea. Data: 12/06/2000. Nome e cargo da autoridade: Jos de Moraes Ferreira Delegado. Nome do escrivo: Wiliam de Assis Mendes. TERMO DE DECLARAES Qualidade: Vtima Nome: Janana Lopes Neves (...) Inquirido disse: que hoje, cerca de 14:30 horas, a declarante ingressou em um nibus da linha 174, na PUC; que em frente ao Parque Laje um homem de cor parda levantou-se, mostrou um revlver e disse que era um assalto; que tudo foi muito, j que de imediato surgiram dois policiais militares dentro do nibus; que assim que os policiais entraram, o criminoso fez uma passageira de refm e os policiais tiveram que descer; que a declarante nada mais fez e sentou-se no cho do nibus; que a declarante s ouvia o rudo de muitas sirenes; que o tempo todo o criminoso dizia que tinha matado a me dele, a irm dele e o pai dele; que tudo que fazia e falava apresentava-se agarrado a um refm, com o revlver apontado para o ouvido deste; que no interior do nibus havia seis mulheres, um senhor com muletas e mais dois rapazes, sendo um inclusive o rapaz que aqui se encontra; que esse rapaz era um passageiro comum, no tendo envolvimento com o criminoso; que reconhece a arma que ora apresentada como sendo aquela a que todo momento o criminoso usou no interior do nibus; que a todo momento o criminoso trocava de refm e tomando sempre mulheres como tal; que gritava a todo momento que iria matar a todos; que liberou o rapaz mencionado e mais um outro; que liberou, tambm, uma senhora que estava passando mal; que, de incio, logo que os policiais desceram, o criminoso fez um disparo de arma de fogo no prabrisa do nibus; que em dado momento, o criminoso desistiu de uma refm, a qual estava muito mal e a trocou pela declarante; que a enforcava em uma gravata e dizia que iria mat-la; que fez a declarante fechar todos os vidros do nibus e disse-lhe que iria faze-la andar cem vez e a, ento, iria mat-la; que em dado momento, o criminoso f-la ajoelhar e disse que iria atirar e que era para todos que estavam no nibus fingirem que haviam acertado a declarante; que assim foi feito e o disparo foi prximo ao p da declarante; que a todos passaram a gritar; que o criminoso fez colocar um lenol em cima da declarante simulando que a mesma estivesse morta; que a declarante ficou deitada com o lenol por cima de seu corpo e por tal situao, a declarante no observou o momento do resgate, tendo, porm, ouvido um disparo de arma de fogo e o envolvimento por parte dos policiais em torno do criminoso; que quer esclarecer que ficou como refm por cerca de uma hora ou mais, sendo que teve o cano da arma em seu ouvido e em sua boca; que aps o resgate veio para esta Delegacia Policial. E mais no disse (...).

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PROBLEMATIZAO O tribunal do jri, conforme j destacou Kant de Lima2, uma das lgicas de produo da verdade presentes no sistema jurdico brasileiro. O Cdigo de Processo Penal brasileiro (CPP) regula trs formas de produo da verdade: o inqurito policial, o processo judicial e o tribunal do jri. O inqurito policial, segundo a doutrina jurdica, um procedimento administrativo, logo, no judicial, que objetiva a apurao do crime e de seu autor. O inqurito judicial (ou processo judicial, como denominado pelos denominados operadores do direito), segundo a doutrina jurdica, inicia-se com a formalizao da acusao denncia por parte do promotor de justia, e segue com uma srie de procedimentos legais (interrogatrio do acusado, depoimento das testemunhas etc) at o desfecho com a sentena do juiz, momento no qual, esta autoridade judicial, aps ter feito uma avaliao das provas produzidas no processo criminal, toma uma deciso: absolve ou condena o ru. Com esse ato, temos a enunciao da verdade jurdica realizada por um tcnico do direito. Essa deciso judicial , segundo o ordenamento jurdico brasileiro, pautada pelos princpios da motivao racional, da fundamentao (jurdica) das decises judiciais e do livre convencimento (as provas podem ser apreciadas livremente pelo juiz; no h um critrio legal de hierarquia entre as provas). Finalmente, ns temos o tribunal do jri. Trata-se de uma forma de produo da verdade jurdica com duas fases (em conformidade com o ordenamento jurdico). A primeira inicia-se com a denncia do promotor de justia, e termina com a sentena de pronncia. A deciso de pronncia , segundo a doutrina jurdica, um juzo de valor, realizado pelo magistrado, quanto existncia de indcios e/ou provas de que o acusado tenha cometido o crime objeto da acusao formal do promotor. Estando o juiz convencido da existncia desses indcios e/ou provas, ele pronuncia o ru, ou seja, ele (o magistrado) toma uma deciso que envia o acusado para julgamento pelo tribunal do jri ou jri popular. Essa definio de jri popular refere-se a uma crena na qual o tribunal do jri uma instituio democrtica e popular, como disse um promotor para os jurados durante um dos julgamentos que acompanhei: o tribunal do jri o povo julgando. Neste sentido, temos uma nfase na ideologia legal brasileira, segundo a qual o jri

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Kant de Lima, 1995, 1995a e 1997.

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uma instituio popular e, como diz a prpria Constituio Federal: todo poder emana do povo (artigo 1, pargrafo nico). Roberto Kant de Lima3 j chamou a ateno para o fato desse mito da representatividade popular do jri no resistir a uma anlise do processo de seleo de jurados no Brasil, como terei, posteriormente, oportunidade de demonstrar. A segunda fase dos procedimentos legais do tribunal do jri inicia-se com o denominado libelo crime acusatrio. Trata-se de uma pea processual feita pelo promotor que expe de modo articulado a acusao que ser feita em plenrio, perante os jurados, podendo indicar at o mximo de cinco testemunhas. Aps esse procedimento, temos o plenrio do jri onde o ru ser julgado pelos sete jurados selecionados por sorteio. Aps a seleo dos sete jurados4, o juiz interroga o ru e, em seguida, ouve as testemunhas de acusao e de defesa. Esse procedimento seguido pela leitura do libelo e de um relatrio feito pelo juiz das peas mais importantes do processo penal. Feita a leitura do relatrio, para os jurados terem uma compreenso do processo, inicia-se os debates orais entre a acusao e a defesa. Os debates esto previstos na lei (CPP) da seguinte forma: o promotor de justia expe os fatos, ou seja, a sua verso dos fatos e sustenta sua tese jurdica, durante at duas horas. Depois fala o defensor do acusado, tambm por at duas horas, dando a sua verso dos fatos e sustentando sua tese jurdica. possvel que ocorra, ainda, uma rplica por parte do promotor (durao de at 30 minutos), seguida de uma trplica por parte do defensor (durao de at 30 minutos). Findos os debates, o juiz l os quesitos de julgamento, por ele elaborado, para os jurados. Os quesitos so perguntas elaboradas aos jurados, por meio de questionrio, as quais sero por eles respondidas, secretamente, na forma de sim ou no, na denominada sala secreta. Nesta sala, o juiz submete os quesitos, um a um, votao dos jurados, sendo vencedor o quesito que obtiver a maioria dos votos. De acordo com essa votao, o ru ser absolvido ou condenado. Por fim, o juiz l, em plenrio, com todos de p, a sentena condenatria ou absolutria. Os procedimentos legais do tribunal do jri sero, posteriormente, retomados e analisados de forma pormenorizada.

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Kant de Lima, 1995, 1995a. O processo de seleo dos jurados ser abordado posteriormente.

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O campo jurdico brasileiro est inserido numa tradio jurdica5 na qual a descoberta da verdade uma questo importante. Descobrir a verdade do que ocorreu; de quem cometeu o delito ou falta para que possa pagar, ser punido, penitenciado pelo que fez. Estamos inseridos numa sensibilidade jurdica (Geertz, 1997) denominada sistema de inqurito. Trata-se de uma forma de saber e, consequentemente, de exerccio de poder , de descobrir a verdade. Neste sentido, e, no mbito da presente pesquisa, o Estado, por meio do processo penal, quer descobrir a verdade dos fatos (interpretados como crime); e em nossa tradio jurdica descobrir a verdade um dos critrios para realizao da Justia. Como irei destacar ao longo deste trabalho, a verdade (enquanto categoria nativa) possui uma operacionalidade muito especfica no contexto das prticas judicirias criminais. Trata-se no de uma verdade qualquer, mas da verdade do crime. E essa verdade produzida por meio do contraditrio. Pelo princpio do contraditrio, toda prova admite a contraprova, no sendo admissvel a produo de uma delas sem o conhecimento da outra parte6. O contraditrio um princpio que estabelece parmetros jurdico-normativos de elaborao das provas no processo penal. Consequentemente, a ao social do advogado e do promotor no mbito das prticas judicirias de produo da verdade encontra-se submersa numa lgica calcada nesse princpio. O campo jurdico e o seu respectivo ordenamento jurdico estatal apresenta-se como uma estrutura que remete os atores advogado e promotor para um contexto de oposio enunciativa. Descobrir a verdade do que aconteceu uma questo central da cultura jurdico-criminal brasileira; e to forte que, segundo a doutrina jurdica7, um dos princpios bsicos do processo penal brasileiro a busca da verdade real, ou seja, por meio dos procedimentos legais deve-se buscar a reconstituio do acontecimento pretrito. O jurista Nelson Hungria, um dos autores do atual Cdigo de Processo Penal (de 1941), pouco antes de sua entrada em vigor, concedeu uma entrevista Revista Forense acerca do projeto (do atual) do Cdigo. Disse esse jurista:5

Segundo Merryman, uma tradio jurdica no se reduz a um conjunto de regras, procedimentos e instituies jurdicas. Trata-se, mais adequadamente, de um conjunto de atitudes profundamente arraigadas, historicamente condicionadas, sobre a natureza do direito, sobre o papel do direito na sociedade, sobre a organizao de um sistema legal. Enfim, a tradio legal relaciona o sistema legal (compreendido como um conjunto de regras, procedimentos e instituies) com a cultura, da qual uma expresso parcial (Merryman, 1969, p.2). 6 Mirabete, 2003, p.477. 7 Mirabete, 1993; Capez, 2001; Greco Filho, 1997.

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O novo Cdigo rompe com certos tradicionalismos emperrantes da Justia Penal, procurando integrar a nossa legislao dentro do evoludo princpio do Direito. A comisso francamente hostil s demasias do formalismo processual, que tm vindo, at agora, imolando ao tabu da liberdade e da defesa social contra o crime. Nada de frmulas rgidas, - que tantas vezes exigem o sacrifcio da verdade substancial. (...) O que procuramos assegurar a verdade real, o reconhecimento integral dos fatos. O projeto desconhece fices ou presunes legais de verdade. O juiz criminal no depara outro limite na consecuo da verdade, alm da impossibilidade concreta de apur-la. Nenhuma regra prefixa restringir a liberdade do seu convencimento em face das provas coligadas (Hugria, 1938, p.137). Obviamente, que para um profissional do direito, as palavras de Nelson Hungria so um tanto exageradas, uma vez que existem limites legais acerca do conhecimento dos fatos, no processo penal. Entretanto, essas palavras materializam as concepes que estavam em jogo no momento histrico de elaborao do atual Cdigo de Processo Penal. Segundo Foucault (1996), o inqurito, esta forma de saber produzida pelos gregos e baseada na lembrana, no testemunho, ficou esquecida durante muitos sculos, e ressurge na Europa nos sculos XII e XIII. O sistema de inqurito, segundo Foucault, um meio de se estabelecer a verdade atravs das pessoas que tiveram conhecimento dos fatos; um saber por testemunho. Possui suas origens na Antiguidade e resgatado na Idade Mdia pela prtica de inqurito da Igreja Catlica denominada visitatio. Tratava-se de visitas peridicas que o bispo deveria fazer em suas dioceses. Ao chegar na localidade, o bispo institua a inquisitio generalis questionando as pessoas mais reputadas (notveis, sbios, mais idosos) sobre o que havia ocorrido na sua ausncia, principalmente, se havia ocorrido algum crime, falta etc. Caso esse inqurito obtivesse resposta positiva, passava-se segunda fase: a inquisitio specialis, que se consubstanciava na apurao do ato e da autoria. O sistema de inqurito est preocupado com a busca da verdade: qual foi o fato? Quem o cometeu? Esse sistema veio, historicamente, substituir o sistema de provas, caracterstico do direito feudal. No sistema de provas, os procedimentos eram elaborados no para provar a verdade, mas a fora, a importncia de quem dizia. O que caracterizava a ao penal era uma espcie de duelo, uma oposio entre indivduos, grupos (Foucault, 1996). O inqurito um meio de exerccio de poder e tambm uma forma de se autenticar a verdade. Por meio de um conjunto de procedimentos legitimados, obtm-se como produto final a enunciao da verdade. O inqurito uma forma de construir e autenticar a verdade.

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Segundo Foucault (1996), o inqurito entra no direito por meio da Igreja e, consequentemente, encontra-se impregnado de categorias religiosas; e observa-se, tambm, uma conjuno entre crime e pecado. Neste sentido, poderemos perceber, mais adiante, de que maneira o discurso jurdico explicita uma cultura jurdica transpassada por categorias, tais como: culpa, arrependimento, confisso. Vou apresentar, ento, as questes centrais que norteiam a presente pesquisa: 1) partindo da categoria nativa verdade (a verdade dos fatos, a verdade nos autos), qual a operacionalidade dessa categoria no processo social que estou estudando? 2) O que significa produzir a verdade (jurdica) no mbito das prticas judicirias de julgamento pelo tribunal do jri? 3) Como essa verdade produzida: seus aspectos jurdico-formais, as prticas sociais dos atores sociais envolvidos; 4) Em outras palavras, quais so as condies institucionais, discursivas e simblicas necessrias sua construo? 5) Quais so as estratgias utilizadas pelos atores sociais no processo social de produo da verdade? 6) Como se articulam as relaes entre moral e direito nas prticas sociais de julgamento pelo tribunal do jri?

METODOLOGIA Tendo por base que o objeto desta pesquisa a descrio e anlise da lgica de produo da verdade no tribunal do jri, concentrei o trabalho de campo no IV Tribunal do Jri da Comarca da Capital (cidade do Rio de Janeiro). Mas a pesquisa de campo no se restringiu apenas a esse tribunal, pois tive oportunidade, de forma menos freqente, de acompanhar algumas prticas sociais presentes em outros tribunais do jri. O estudo de caso que me proponho desenvolver (nibus 174) traz a vantagem (sobre outras metodologias) de pesquisar em detalhes os aspectos de uma dada realidade social que de outra forma no poderia alcanar. Como o presente trabalho encontra-se estruturado em torno de um estudo de caso, pretendo restringir a pesquisa ao crime de homicdio (que representa a quase totalidade, conforme entrevistas com juzes e promotores, dos casos levados julgamento pelo tribunal do jri). O mtodo de estudo de caso caracteriza-se por um tipo de anlise que considera qualquer unidade social como um todo. Pode-se estudar um indivduo, uma famlia, uma associao, uma instituio etc. 15

O mrito desse mtodo de pesquisa caracteriza-se no esforo para descobrir todas as variveis significativas para determinado caso. Tenta-se compreender o fenmeno social estudado por meio de sua descrio completa e anlise detalhada, contextualizando-o em sua realidade cultural. O estudo de caso possibilita desenvolver declaraes tericas mais gerais sobre regularidades do processo e estruturas sociais (Becker, 1994). Compreendo a produo da verdade nas prticas judicirias criminais como um processo social, no qual no existem pontos de vista certos ou errados. Estes pontos de vista representam diferentes grupos de interesses, personalidade, status etc. Como conseqncia, o pesquisador deve se documentar o mximo que for possvel sobre o contexto geral (os casos devem ser apresentados situacionalmente), os atores devem ser especificados (Van Velsen, 1986). A pesquisa de campo foi realizada, principalmente, nos anos de 2003 a 2005. Entrevistei durante a pesquisa: - 18 promotores de justia - 11 advogados criminalistas - 07 juzes de direito - 06 defensores pblicos - 22 jurados - 04 oficiais de justia - 01 escrivo Acompanhei, de forma integral ou parcial, aproximadamente 80 (oitenta) julgamentos. Acompanhei, tambm, inmeras audincias de interrogatrio (do ru) e de depoimento de testemunhas. Alm das entrevistas, realizei conversas informais, nos corredores do frum, que me permitiram perceber as nuances e diferenas existentes entre a estrutura jurdicoformal do tribunal do jri e as prticas sociais dos atores judicirios envolvidos nesse processo social de produo da verdade. Realizei, tambm, pesquisa bibliogrfica. Mapeei a analisei as categorias centrais de estruturao simblica e os valores que esto determinando as representaes e aes dos atores envolvidos com as prticas do jri. Com esse objetivo, alm das entrevistas e observao direta, consultei obras jurdicas sobre o tribunal do jri e analisei diversos autos de processos criminais que estavam em andamento. 16

Minha insero no campo se deu atravs de contatos com colegas de trabalho que me abriram as portas do IV Tribunal do Jri da cidade do Rio de Janeiro. Ministro, h 07 anos, aulas no Curso de Direito da Universidade Estcio de S, campus Centro e, nessa condio, tive a oportunidade de conhecer diversos promotores, defensores pblicos, advogados e juzes que trabalham em tribunais do jri, o que facilitou muito a minha insero no campo. No IV Tribunal do Jri, por exemplo, tive a sorte de ter como colegas de faculdade, tanto um dos promotores, como o prprio juiz presidente desse tribunal. O ambiente acolhedor e informal da sala de professores da faculdade de direito, tambm propiciou um bom espao para conversas e entrevistas com os oficiantes do jri, e isso se constituiu numa oportunidade muito boa para obter preciosas informaes para a presente pesquisa.

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I) A CONSTRUO DO ACONTECIMENTO PELO OLHAR DO CAMPOJURDICO: a produo de um mundo parte e de uma verdade prpria.

A PROVA O CORAO DO PROCESSO (fala de um juiz). No incio do trabalho de campo, enquanto percorria atento os corredores do Frum, ouvi um comentrio de um juiz com outra pessoa. Dizia esse magistrado: a prova o corao do processo. Fiquei durante vrias horas repetindo essa frase mentalmente: a prova o corao do processo, do processo... A partir desse fragmento de discurso, resolvi mapear o que os profissionais do direito particularmente os que atuam na rea criminal entendem por prova; como eles utilizam essa categoria em suas prticas discursivas. Iniciei minha pesquisa pelos livros doutrinrios utilizados nas faculdades de direito e na preparao para concursos pblicos e por meio de entrevistas e conversas informais com promotores, juzes, advogados criminais. Procurei, tambm, observar o contexto de utilizao da categoria prova nos autos dos processos criminais que analisei e durante as sesses de julgamento no plenrio do tribunal do jri. Para minha surpresa, essa categoria central de estruturao simblica do campo jurdico (prova), no possui uma estabilidade semntica, diferentemente, por exemplo, da categoria apelao8. No contexto das prticas discursivas dos oficiantes do direito, percebi que a categoria prova possui variaes de sentidos. Talvez a diferena mais expressiva nesses usos do termo prova esteja, por um lado, na afirmao unnime de que os discursos na forma de depoimentos ou confisses na fase do inqurito policial no podem ser considerados provas e, por outro lado, que esses mesmos profissionais do direito, quando esto apresentando as provas para os jurados no plenrio do jri durante a sesso de julgamento referem-se aos depoimentos e as confisses em sede policial como sendo provas: s h prova produzida em sede policial; a nica prova que temos a confisso extrajudicial do ru9. As

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Apelao. Termo originado do latim appelatio, que utilizado no mesmo sentido originrio: recurso interposto de um juiz inferior para superior. Mantm, ainda, a apelao a mesma significao: designa um dos recursos de que se pode utilizar a pessoa prejudicada pela sentena, a fim de que, subindo a ao superior instncia, e, conhecendo esta de seu mrito, pronuncie um nova sentena, confirmando ou modificando, a que se proferiu na jurisdio de grau inferior (Silva, 2002, p.69). 9 Estas frases so recorrentes nas prticas discursivas da defesa, conforme pude observar.

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especificidades dos usos da categoria prova no tribunal do jri sero tratadas posteriormente. Por outro lado, ora os profissionais do direito dizem que prova e indcio so coisas diferentes; ora dizem que so a mesma coisa, apenas que o indcio seria uma espcie de prova fraca ou tnue. Ento, vejamos alguns discursos mapeados. Para a pergunta o que prova? obtive dos atores as mais variadas respostas. Ento vejamos. Pesquisador (eu): o que significa prova? Promotor G: s prova o que submetido ao contraditrio. O que apurado no inqurito policial elemento de convico, no prova. Pesquisador: as percias realizadas durante o inqurito no podem ser consideradas provas? Promotor G: a prova pericial prova porque ela no pode ser repetida em juzo, mediante o contraditrio. Por outro lado, ela prova porque feita por um perito oficial. O perito oficial tem f pblica10. Pesquisador: e os indcios? Promotor G: indcio no prova. O indcio no Cdigo de Processo Penal est entre os meios de prova. Vou lhe dar um exemplo de indcio: um indivduo que visto andando em volta de uma casa carregando um galo de gasolina e, pouco depois, essa casa encontra-se em chamas. Na prtica do frum, 50% das condenaes esto baseadas em indcios. Os casos tpicos de condenao por indcios so os estupros e os incndios. O promotor H disse: para denunciar preciso prova da materialidade existncia do crime e indcios de autoria. No inqurito policial ns s temos indcios. O indcio no prova. O que produzido no inqurito s deveria ser utilizado para realizar a denncia. Mas o inqurito policial produz provas relativas materialidade do delito. Por exemplo: no crime de leses corporais, o exame de corpo de delito uma prova da materialidade. No pode haver condenao com base s em indcios, pois viola o contraditrio. O indcio vai ser repetido no processo penal, por meio do contraditrio, para virar prova. Mas comum falar que o indcio uma prova fraca, tnue.

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F pblica o valor probatrio que se atribui ao documento emanado de rgos pblicos no desempenho de sua atividade especfica (Enciclopdia Saraiva do Direito. Vol. 36. So Paulo: Saraiva, 1977).

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O promotor I disse: a prova serve para fundamentar a condenao ou a absolvio. Depoimento e confisso na polcia no so provas, pois no esto submetidos ao contraditrio. O juiz C disse: indcio prova. Indcio e prova tm a mesma hierarquia. A prova para condenar ou absolver tem que ser colhida em juzo; a no ser aquelas que no podem ser repetidas, como as periciais. Em minha opinio, a prova pericial tem mais valor; dificilmente se contesta um laudo pericial. Segundo o juiz D, s prova aquilo que submetido ao contraditrio. O inqurito policial no prova porque no est submetido ao contraditrio. A informao do inqurito policial serve para formar a convico do promotor, com o objetivo de iniciar a ao penal. Durante uma entrevista11, o promotor F disse: Se h nos autos do processo dois depoimentos divergentes, ns temos duas provas. O indcio tratado legalmente pelo Cdigo de Processo penal como uma prova. Mas o indcio uma prova fraca, precria. Segundo Fernando Capez, prova (...) o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz (...) e por terceiros por exemplo, peritos , destinados a levar ao magistrado a convico acerca da existncia ou inexistncia de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmao. (...). O objeto da prova toda circunstncia, fato ou alegao referente ao litgio sobre os quais pesa incerteza e que precisam ser demonstrados perante o juiz para o deslinde da causa. So, portanto, fatos capazes de influir na deciso do processo, na responsabilidade penal e na fixao da pena ou medida de segurana, necessitando, por essa razo, de adequada comprovao em juzo (Capez, 2001, p.246). De acordo com Camargo Aranha (2006, p.5): Prova origina-se de latim probatio, podendo ser traduzida como experimentao, verificao, exame, confirmao, reconhecimento, confronto etc, dando origem ao verbo probare (probo, as, are). usada em sentidos diversos. Num sentido comum ou vulgar (verificao, reconhecimento etc) significa tudo aquilo que pode levar ao conhecimento de um fato, de uma qualidade, da existncia ou exatido de uma coisa. Como significado jurdico representa os atos e os meios usados pelas partes e reconhecidos pelo juiz como sendo a verdade dos fatos alegados.11

Entrevista concedida em 21/10/2004

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Contudo, em quaisquer de seus significados, representa sempre o meio usado pelo homem para, atravs da percepo, demonstrar uma verdade.

Com o objetivo de definir o que prova, o jurista Julio Fabbrini Mirabete diz o seguinte: A fim de decidir o processo penal, com a condenao do acusado, preciso que o juiz esteja convencido de que so verdadeiros determinados fatos e a apurao deles feita durante a instruo. Essa demonstrao a respeito da veracidade ou falsidade da imputao, que deve gerar no juiz a convico de que necessita para o seu pronunciamento o que constitui a prova (Mirabete, 2003, p.453). Segundo Moacyr Amaral Santos, Destina-se a prova a levar o juiz ao conhecimento da verdade dos fatos da causa. Esse conhecimento ele obtm atravs dos meios de prova. Costuma-se, assim, conceituar prova, no sentido objetivo, como os meios destinados a fornecer ao juiz o conhecimento da verdade dos fatos deduzidos em juzo. Mas a prova, no sentido subjetivo, aquela que se forma no esprito do juiz, seu principal destinatrio, quanto verdade dos fatos. A prova, ento, consiste na convico que as provas produzidas no processo geram no esprito do juiz quanto existncia ou inexistncia dos fatos. Esta, a prova no sentido subjetivo, se forma do conhecimento e ponderao das provas no sentido objetivo, que transplantam os fatos para o processo (Amaral Santos, 1991, p.329). Conforme podemos observar, a prova no discurso jurdico apresentada: a) como um conjunto de atos praticados pelos atores judicirios com o objetivo de formar a convico da autoridade judiciria acerca da existncia ou inexistncia de um fato ou da veracidade ou falsidade de uma afirmao; meio utilizado pelos atores judicirios para demonstrar a verdade dos fatos; b) aquilo que se forma no esprito do juiz, seu principal destinatrio, quanto verdade dos fatos; c) s prova aquilo que submetido ao contraditrio. Talvez essas formas de delimitar conceitualmente o que prova no sejam excludentes, mas complementares. De qualquer forma interessante pensar que dos promotores e juzes indagados acerca do significado de prova, nenhum deles apresentou uma definio especfica, mas quase todos afirmaram que para algo ser considerado uma prova necessita estar submetido lgica do contraditrio. O campo jurdico brasileiro ao dividir o processo de construo da verdade judiciria criminal em dois inquritos o inqurito policial e o inqurito judicial possibilitou: a) a produo de uma hierarquia, dizendo: as declaraes afirmadas na fase

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do inqurito policial devem ser corroboradas, confirmadas mediante o contraditrio na fase judicial; pois, afinal, o inqurito policial um mero instrumento administrativo logo, no judicial para apurao da existncia e autoria do crime. Segundo o discurso jurdico, o que produzido pelo inqurito policial so apenas elementos de convico que servem para formar o convencimento do promotor, com o objetivo de iniciar uma ao penal (por meio da denncia); b) o estabelecimento de uma proteo simblica do Judicirio, na medida em que a Polcia a responsvel final pela aplicao desigual da lei constitucionalmente universalizante a uma sociedade hierarquizada. Segundo Kant de Lima (1995, p.8), (...) encurralada entre dois critrios formais ao exercer suas funes a administrativa e a judiciria , encontra-se a polcia permanentemente ameaada pelo sistema judicial. Qualquer ao policial pode ser classificada como legal ou ilegal (ou, pelo menos, arranhando a lei). O efeito prtico da resultante que o sistema judicial e sua ideologia ficam intactos e puros. A polcia a responsvel final pela aplicao desigual da lei. O sistema legal permanece no controle ltimo do poder de polcia, livre para caracterizar a ao policial como legal ou como corrupo da aplicao democrtica e liberal da lei. Consequentemente, a polcia o bode expiatrio da ideologia jurdica elitista na ordem poltica teoricamente igualitria. Ao aplicar desigualmente a lei, a polcia evita, por um lado, que os criminosos em potencial, os marginais, beneficiem-se dos dispositivos constitucionalmente igualitrios. Por outro lado, em certos casos, especialmente quando as pessoas envolvidas pertencem s classes mdia e alta, a polcia, ao aplicar a lei e atuar de maneira compatvel com os princpios constitucionais igualitrios, restabelece a f dos no-marginais nos princpios democrticos igualitrios do sistema poltico brasileiro. A instituio instituir algum ou algo num espao simblico do discurso policial e da prpria corporao policial numa posio simblica inferior, trao marcante do campo jurdico brasileiro, parece no corresponder importncia desempenhada pela instituio policial por meio do inqurito policial no contexto do processo social de construo da verdade nas prticas judicirias criminais. A chamada polcia judiciria responsvel, via de regra, pela produo da matria prima que ser objeto de apreciao dos promotores de justia e dos advogados e dos juzes. O inqurito policial a fonte de informao que est na base do trabalho do promotor de justia. Com base nos elementos fornecidos por esse inqurito o representante do Ministrio Pblico ter condies de oferecer a denncia (acusao formal). No podemos nos esquecer que as instituies e os atores sociais pertencentes ao mundo do direito esto submersos numa ordem axiolgica. A cultura jurdica

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organiza as autoridades judicirias numa hierarquia de saberes supostos12 e de poderes. Tendo por base segundo o discurso jurdico que o processo penal objetiva descobrir a verdade dos fatos, a verdade real, a figura do juiz, nesse contexto, torna-se absolutamente central. Pois, afinal, como representante imparcial do Estado na persecuo penal, o juiz pode, de ofcio, produzir as provas necessrias para formar o seu convencimento acerca da verdade do crime. De acordo com os atores do campo, o juiz utiliza os seus poderes instrutrios para realizar uma operao de reconstituio histrica dos fatos delituosos. Retomemos, ento, questo da prova. Refletindo sobre as diversas utilizaes do vocbulo prova, Gustavo H. R. Ivahy Badar expe em sua obra: Do ponto de vista jurdico, o vocbulo prova possui diferentes acepes, podendo ser usado como sinnimo da atividade probatria, como resultado da prova e como meio de prova. (...) Num primeiro sentido, a prova se identifica com a atividade probatria, isto , com a produo dos meios e atos praticados no processo visando a convencer o juiz sobre a veracidade ou a falsidade de uma alegao sobre um fato. a ao de provar o conjunto de atos praticados pelas partes e pelo juiz para verificao da veracidade de uma afirmao de fato. (...) Noutra acepo, prova o resultado da atividade probatria, identificando-se com o convencimento que os meios de prova levaram ao juiz sobre a existncia ou no de um determinado fato. (...) Por fim, tambm possvel identificar a prova com o meio de prova em si mesmo. Fala-se, por exemplo, em prova testemunhal ou prova por indcios. Aps analisar as diversas acepes do vocbulo prova, de se destacar que o objeto da prova sempre a alegao de um fato e no o fato em si mesmo. (...) Os fatos debatidos no processo so enunciados sobre os fatos do mundo real (Badar, 2003, p.157-159). Seja a categoria prova utilizada como um conjunto de atos praticados pelos atores judicirios com o objetivo de formar a convico da autoridade judiciria acerca da existncia ou inexistncia de um fato ou da veracidade ou falsidade de uma afirmao; ou utilizada como um meio para os atores judicirios demonstrarem a verdade dos fatos..., o objeto da prova um discurso. O que temos nos autos dos inquritos policial e judicial so discursos acerca da existncia ou no do crime e acerca de sua autoria.12

Trata-se de uma observao do prof. Kant de Lima que eu concordo plenamente. Nos dizeres desse mestre, h uma hierarquia de saberes supostos ou seja, no demonstrados entre os profissionais do direito. Neste sentido, o delegado sabe conhecimentos jurdicos menos que o promotor; este sabe menos que o juiz; este sabe menos que o desembargador; e este sabe menos que os ministros dos tribunais superiores.

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Nessa busca de reconstituio histrica do que ocorreu, algumas questes so colocadas: o que aconteceu? Qual a verdade do crime? Qual a verdade dos fatos interpretados como transgresso a uma regra? A tradio do sistema inquisitrio est preocupada em descobrir a verdade como pressuposto para aplicar a correo, a punio, ou numa perspectiva mais crist o castigo. Quando o Ttulo VII do Cdigo de Processo Penal (CPP) dispe: DA PROVA, est se referindo aos meios que podem ser utilizados para demonstrar a veracidade ou a falsidade de uma afirmao. Neste sentido, o CPP elenca como meios de prova (formas de demonstrao do que afirmado no processo penal): o exame de corpo de delito, as percias em geral, o interrogatrio do acusado, a confisso, as perguntas ao ofendido, os depoimentos das testemunhas, o reconhecimento de pessoas ou coisas, a acareao, os documentos, os indcios, a busca e apreenso. Esses denominados meios de prova consubstanciam-se em formas discursivas que se materializam por meio da escriturao ou da oralidade que veiculam contedos propriamente discursivos que, por sua vez, sero ou no interpretados como prova, no mbito das prticas judicirias. Como afirmado por parte da doutrina jurdica: o objeto da prova no so os fatos, mas os enunciados sobre os fatos (Badar, 2003, p.159; Abelln, 2004, p.83). Como disse, o objeto da prova um discurso. Mas no um discurso qualquer. Trata-se de um discurso qualificado pela autoridade interpretativa como sendo capaz de produzir efeitos jurdicos. Produzir provas significa, no contexto do campo jurdico, elaborar discursos que tenham aptido para formar a convico ou o convencimento das autoridades interpretativas e das autoridades enunciativas (da verdade jurdica). A prova um elemento de persuaso num campo de disputas argumentativas e de atribuio de sentidos, ou seja, num campo de relaes de poder, cuja estratgia central construir um discurso eficaz para obter daquele que julga, que d o veredicto uma deciso judicial favorvel. Como base no exposto, podemos concluir que uma das primeiras operaes que realizada nas prticas judicirias a produo de conhecimento acerca dos denominados fatos. Os fatos precisam ser apresentados, descritos, expostos, provados, classificados juridicamente. Faz-se necessria a descoberta da verdade dos fatos. Fatos e prova dos fatos esto interligados numa profunda comunho. Por fim, os fatos precisam ingressar nos sistemas de classificao do campo jurdico. Indo um pouco mais alm, demonstrarei nas pginas seguintes , que os fatos tais quais 24

apresentados nas prticas judicirias criminais so uma construo discursiva do campo jurdico. A CONSTRUO JURDICA DO FATO: DOS FATOS DO MUNDO AO MUNDO DOS FATOS (JURDICOS). Segundo Geertz, a descrio de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defend-lo, ao juiz ouvi-lo e aos jurados solucion-lo, nada mais que uma representao (...) o argumento aqui (...) que a parte jurdicado mundo (...) parte de uma maneira especfica de imaginar a realidade. Trata-se, basicamente, no do que aconteceu, e sim do que aconteceu aos olhos do direito (Geertz, 1998, p.259). O que denominado crime, de um ponto de vista jurdico, um acontecimento a que o ordenamento jurdico atribui conseqncias propriamente jurdicas. O crime no est na natureza do fato, mas na interpretao do fato como transgresso de uma regra. Ento, o acontecimento conhecido como Seqestro do nibus 174 foi interpretado pelas autoridades judicirias (inicialmente pelo delegado de polcia e, posteriormente, pelo promotor de justia e pelo juiz de direito) como um fato juridicamente relevante; um fato jurdico que tem implicaes no direito penal brasileiro. Essa interpretao da autoridade judiciria coloca em funcionamento um processo social, extremamente complexo, de construo da verdade. Mas no de uma verdade qualquer, ou de uma verdade enquanto um conceito da epistemologia da cincia. A categoria verdade, no contexto deste trabalho, uma categoria nativa. A categoria verdade, no campo jurdico criminal, tem uma operacionalidade. Trata-se de descobrir a verdade do crime, para aplicar a sano estatal e realizar justia, segundo o discurso judicirio. O direito um mecanismo que, por um lado, promove uma reduo extraordinria da complexidade da realidade social e, por outro, constri essa realidade por meio de suas categorias, de seus sistemas de classificao, das formas jurdicas de interpretao. Em outras palavras, a parte jurdica do mundo no um mero reflexo da sociedade e das relaes que se estabelecem em seu bojo, mas um fator de constituio dessa sociedade. Diante dos mltiplos acontecimentos que ocorrem na sociedade, o direito se constitui enquanto um elemento regulador, enquanto mecanismo normativo de administrao de conflitos medida que estabelece o que est dentro e, 25

consequentemente, fora de suas estruturas simblicas. Portanto, a construo do direito implica na produo do no-direito. O estabelecimento dessas fronteiras simblicas est na base da constituio do direito. Dessa forma, infere-se haver um cdigo que possibilita essa passagem. E exatamente o domnio desse cdigo que permite aos atores sociais especificarem, por meio de uma operao interpretativa, quais acontecimentos do quotidiano que ingressaram no mundo do direito. Esse cdigo primrio de acesso est vinculado resposta da seguinte pergunta: o acontecimento fenmeno da natureza ou decorrente da ao humana suscetvel de produzir efeitos jurdicos? Em outras palavras, esse acontecimento tem alguma relevncia para o direito? Ele pode tornar-se um fato jurdico? Numa sociedade complexa como a nossa, o domnio privilegiado dessa operao interpretativa do cdigo primrio de acesso pertence queles dotados de uma competncia social especfica: a competncia jurdica. Esta competncia, prpria dos operadores do direito, obtida atravs da introjeo dos seguintes fatores: a) domnio da terminologia e dos procedimentos jurdicos; b) domnio da hermenutica jurdica; c) a socializao nos habitus13 jurdicos (Figueira, 2005, p. 97). O direito um mecanismo que operacionaliza categorias, formas de interpretao e sistemas de classificao, todos muito especficos, com o objetivo de dar respostas s questes por ele direito regulveis. Diante de um evento coloca-se a questo: o que aconteceu aos olhos do direito? O olhar jurdico seleciona nos mltiplos eventos e, tambm, num nico evento, aquela parte suscetvel de produzir efeitos jurdicos. O direito um mecanismo de leitura do real; e nesse processo de leitura que tambm um processo de decodificao lingstica o direito constri a realidade por meio de sua linguagem. Ingressar no mundo jurdico submeter o acontecimento a diversos filtros que vo produzindo uma verso normativa do evento. E o primeiro filtro ou processo de decodificao coloca em operao duas categorias centrais de estruturao simblica do campo jurdico: lcito e ilcito. O direito opera a diviso do mundo do seu prprio mundo em eventos lcitos ou ilcitos. E, assim, sucessivamente, diversos processos de decodificao vo, gradualmente, construindo juridicamente o acontecimento. O fato se jurisdiciza. Esta jurisdicizao o que possibilita que o evento seja apropriado e13

Habitus o sistema de disposies inconscientes que constitui o produto da interiorizao das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geomtrico dos determinismos objetivos (...) tende a produzir prticas e, por estas vias, carreiras objetivamente ajustadas s estruturas objetivas (Bourdieu, 1992, p.201/2).

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reconstrudo no mbito do campo jurdico com condies de ser operacionalizado pelos profissionais do direito por meio da linguagem jurdica. Nesta parte do texto, cabe a seguinte indagao: qual a importncia da polcia judiciria na produo jurdica do fato?

A IMPORTNCIA DO INQURITO POLICIAL. A forma de produo da verdade no inqurito policial. Segundo o direito processual criminal brasileiro, o inqurito policial um procedimento administrativo, escrito e sigiloso de apurao da prtica de um crime e de sua autoria. considerado pela classificao do campo jurdico como um procedimento inquisitorial, no qual o acusado mero objeto de investigao policial, no havendo o chamado contraditrio e nem a ampla defesa14, princpios que regem os procedimentos judiciais. Com essa classificao do inqurito policial como procedimento administrativo, o sistema jurdico criou dois tipos de inquritos, com especificidades prprias e complementares: o inqurito policial e o inqurito judicial (este, denominado: processo penal). Obviamente, que essa classificao vai operar uma ordem axiolgica no campo jurdico, no mbito da qual o inqurito judicial se destaca em importncia, pois, segundo a doutrina jurdica, o inqurito policial uma mera pea de informao, no podendo por si s ser a base de uma condenao criminal, conforme j vimos (Mirabete, 2003, Capez, 2001). No mbito da forma de produo da verdade (policial), o indivduo investigado pela prtica do crime juridicamente denominado de indiciado. Indiciado aquele que juridicamente suspeito da prtica de um delito e, nessa condio, objeto de um procedimento investigatrio por parte da polcia judiciria. O poder do indiciamento conferido por lei autoridade policial: o delegado de polcia. Este possui o poder de instituir algum no espao simblico de indiciado (formalmente suspeito da prtica de um crime). Consequentemente, as relaes entre os policiais e o indiciado encontram-se completamente transpassadas pelos espaos simblicos ocupados pelos atores envolvidos nessa trama. Neste sentido, os policiais ocupam o espao simblico14

Contraditrio e ampla defesa perfazem uma mesma garantia processual, pois no pode existir ampla defesa sem contraditrio e vice-versa (Carvalho, 2004, p.131).

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institucionalmente marcado pela necessidade de produo de provas acerca da prtica do delito, e por uma mentalidade inquisitorial constitutiva da cultura policial. A converso lingstica. A polcia judiciria, por meio do inqurito policial, exerce uma funo fundamental no processo social de produo jurdica do fato. Essa instituio possui, entre outras, a atribuio de converter os seus saberes sobre o crime e o criminoso numa linguagem a linguagem das provas e indcios que possa ser operacionalizada na fase do inqurito judicial que se inicia, segundo o sistema jurdico brasileiro, com a acusao formal do promotor de justia. Ao realizar essa converso lingstica, a polcia inicia, no mbito das prticas judicirias, o processo de construo jurdica do acontecimento. A polcia, encarregada de realizar uma investigao sobre o evento tendo em mente que essa investigao pressupe uma interpretao do evento como crime , est preocupada em produzir informaes sobre a existncia do crime materialidade e de quem o seu autor autoria. Neste sentido, a polcia fornece os elementos fundamentais para o trabalho do promotor de justia, pois, para que o membro do Ministrio Pblico possa apresentar a acusao formal ele depende, via de regra, do material engendrado no inqurito policial. A transcrio da oralidade e a questo da escriturao. O trabalho policial a base do trabalho do promotor. Em outras palavras, com base no discurso policial, o promotor de justia produz o seu discurso. A acusao formal do promotor feita por um instrumento escrito chamado de denncia. E para realizar a denncia essa acusao formal contra o ru o promotor l os autos do inqurito policial, para verificar se esto presentes os pressupostos legais necessrios para oferecimento da denncia. Diante disso, o processo de escriturao desenvolvido no inqurito policial torna-se fundamental, pois, como dissemos, com base nessa escriturao no que est escrito nos autos do inqurito policial que o promotor ir ou no oferecer a denncia. Pensar no processo de escriturao, que ocorre no mbito das prticas da polcia judiciria, implica na reflexo acerca das condies de produo desse discurso escrito. Tendo por base a necessidade de produzir informaes que possam ser posteriormente apropriadas pelo promotor, a polcia, conforme foi dito, e isso fundamental, converte 28

os seus saberes numa linguagem que possa ser instrumentalizada pelo rgo responsvel pela acusao formal (Ministrio Pblico). O processo de escriturao ou de produo do texto policial precisa entrar na ordem do discurso judicial para que possa produzir os seus efeitos sociais. E o ingresso nessa ordem discursiva pressupe a ao de uma converso lingstica. O discurso policial endereado para o representante do Ministrio Pblico, este o seu destinatrio imediato. Outro aspecto relevante na dimenso da escriturao o processo de transcrio da oralidade feito pela polcia. Como o produto do trabalho policial um conjunto de textos autos do inqurito , a produo desse documento requer a transcrio do oral, ou seja, a converso para o papel das informaes obtidas oralmente. Ento, nos autos do inqurito policial teremos a transcrio das declaraes do acusado e das testemunhas. Sendo que essa transcrio no se d pelos mecanismos da literalidade, ou seja, o que transcrito no exatamente o que foi dito pelo indiciado ou pelas testemunhas, mas a interpretao dada pelo policial que colheu as declaraes. O discurso que materializado nos autos do inqurito policial o discurso da autoridade policial ou de quem a substitui no ato de tomar as declaraes. O discurso materializado nos autos efeito de interpretao da autoridade. Em que condies essas declaraes so obtidas, e as tcnicas policiais utilizadas no so objeto desta pesquisa, por isso, no sero abordadas15 neste trabalho. Se o inqurito policial, via de regra, est na base da acusao realizada pelo promotor, a questo que se coloca a seguinte: como feita essa acusao formal denominada juridicamente de denncia?

O PROMOTOR DE JUSTIA E A CONSTRUO JURDICA DOS FATOS. O promotor de justia atua por delegao institucional. Ele o representante do Ministrio Pblico que, na rea criminal, possui duas atribuies bsicas: a) fiscalizar a execuo da lei; b) promover, privativamente, a ao penal pblica. Agindo como rgo de execuo do Ministrio Pblico, o promotor de justia tem por atribuio institucional tornar efetivo o direito de punir do Estado (Mirabete, 2003, p.650).15

Para essa temtica consultar: Kant de Lima. A Polcia da Cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

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Durante o acompanhamento dos julgamentos no plenrio do tribunal do jri, chamou-me ateno um discurso recorrente por parte de praticamente todos os promotores e em quase todos os julgamentos a que assisti. Os promotores disseram: o promotor no um acusador sistemtico. O promotor est aqui para defender o interesse da sociedade. O promotor o advogado da sociedade. O promotor est aqui para fazer justia; ns somos promotores de justia. O promotor defende o interesse pblico e o advogado defende o interesse privado do acusado. Obviamente que esses discursos, no contexto de julgamento no plenrio do tribunal do jri, ganham uma dimenso retrica de valorizao do papel do promotor e desvalorizao do papel do advogado perante os jurados. Outro aspecto relevante, nesse sentido, o que diz respeito mentira16 como um recurso utilizado por rus e advogados. Os promotores dizem que eles no tm interesse em mentir: por que mentir?! (disse um promotor durante o julgamento). Enquanto que o advogado do ru teria o interesse em mentir para defender o seu cliente. Gostaria de denominar esses enunciados de discursos institucionais. O promotor produz esses discursos, mas no em nome prprio. Alis, o promotor, assim como o juiz e o advogado/defensor pblico, no produzem, via de regra, discursos a ttulo pessoal. Eles falam por meio de uma delegao institucional. Esses atores so porta-vozes autorizados das respectivas instituies que os investiram simbolicamente nas posies sociais que ocupam no campo jurdico17. O ato de investidura num sentido de direito administrativo numa funo pblica, confere, a partir da, poderes simblicos ao institudo. Sua fala passa a incorporar todo o capital social acumulado pelo grupo a que ele pertence. Quando um indivduo fala da posio enunciativa de promotor de justia, ele est evocando em seu discurso toda a carga simblica da instituio que ele representa. E isso tambm vlido para os demais atores (juzes, advogados, defensores pblicos). Quando o discurso judicirio utiliza a categoria autoridade, seja para se referir autoridade policial delegado de polcia , seja para se referir autoridade judiciria juiz de direito , est sempre se referindo a uma autoridade assim denominada porque autorizada pela instituio que ela representa a agir nessa condio. E isso to claro, conforme explicita Bourdieu (1996), que a autoridade, para ser

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A questo da mentira nas prticas judicirias ser tratada, pormenorizadamente, ainda neste captulo. Bourdieu, 1996.

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reconhecida como tal, precisa respeitar as regras litrgicas do papel que chamada a desempenhar. De acordo com o sistema jurdico, o promotor de justia possui a atribuio institucional, entre outras, de promover a ao penal. A denominada ao penal pblica18 inicia-se com a denncia do promotor, ou seja, com uma acusao formal que possui a sua estrutura narrativa previamente estabelecida pelas regras procedimentais do Cdigo de Processo Penal, conforme j vimos. O promotor de justia, no processo penal, desempenha duas funes bsicas: a) de titular da ao penal e, nesta condio, expe ao juiz de direito a pretenso punitiva; b) de fiscal19 da correta aplicao da lei. Mirabete20, em sua obra intitulada Processo Penal, expe: No mbito criminal, portanto, precipuamente cabe-lhe a persecutio criminis21; o Ministrio Pblico o titular da pretenso punitiva do Estado quando esta levada a juzo. O Estado-Administrao como sujeito ativo da pretenso punitiva tem no Ministrio Pblico o rgo a que delega as funes destinadas a tornar efetivo o direito de punir (...) (Mirabete, 1993, p.319). O que relevante destacar, nesse momento, a questo de os promotores de justia se auto-intitularem como representantes do interesse pblico e como representantes da sociedade. Conforme j disse, durante praticamente todos os julgamentos no tribunal do jri dos quais participei como observador, os promotores disseram para os jurados que eles promotores no eram rgos de acusao, mas de justia. Ns somos promotores de justia. Promovemos a justia. E mais, disseram tambm: somos representantes da sociedade; do interesse pblico. Entretanto, o promotor de justia, como responsvel por dar efetividade ao direito de punir do Estado, por meio da denominada persecuo penal, produz o seu discurso de uma especfica posio enunciativa. Para o senso comum, para as representaes sociais que circulam e constituem as concepes que as pessoas possuem dos mais variados papis sociais, o papel do promotor o de acusador, daquele que busca obter a condenao do ru por meio de seus argumentos.

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aquela promovida pelo Ministrio Pblico. Em regra, toda ao penal pblica. Este tipo de ao distingui-se da denominada ao penal privada, que de iniciativa da vtima. 19 Denominado, tambm, de custos legis. 20 Trata-se de uma das obras mais utilizadas pelos profissionais do direito. 21 O mesmo que persecuo criminal.

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Quando os representantes do Ministrio Pblico, no exerccio quotidiano de suas atividades profissionais, afirmam que atuam no interesse da sociedade, eles esto afirmando, no espao pblico, que so atores sociais que produzem seus discursos de um lugar especfico: de representante da sociedade. E isso um esforo na direo de resignificar a posio enunciativa a partir e atravs da qual esses profissionais atuam no campo jurdico. Foi recorrente, durante todo o trabalho de campo, a afirmao, pelos promotores de justia, de que eles no eram acusadores sistemticos, de que eles no eram acusadores contumazes, mas, sim, que representavam os interesses da sociedade, que buscavam a realizao da justia e a devida aplicao da lei. E, argumentavam que, em razo disso tudo, poderiam no exerccio de suas atividades profissionais pedir a condenao ou absolvio do acusado. E, de fato, observei por diversas vezes o promotor de justia, em plenrio, pedir a absolvio do ru, o que refora esse discurso institucional do Ministrio Pblico. O que est em jogo aqui, no uma mera retrica institucional - do tipo: ns somos os representantes do povo -, mas um aspecto da constituio da identidade profissional dos promotores22. Apesar desse importante aspecto, o que realmente interessa aos objetivos dessa pesquisa so os efeitos sociais desse tipo de discurso, pois, ao se definirem no espao pblico e, particularmente, no contexto ritual do tribunal do jri, como representantes do interesse pblico, esto tentando remeter o advogado que defende os interesses do acusado ao espao simblico de representante do interesse privado do ru e, consequentemente, contra os interesses da sociedade. Num julgamento, o promotor disse em plenrio: Ns somos defensores do interesse pblico, enquanto a defesa defensora do interesse privado, essa a grande diferena. (...) O MP defende os interesses da sociedade que devem estar cristalizados na norma penal e a defesa defende o interesse pessoal do ru (discurso do promotor D, durante um julgamento, em dezembro de 2002). Trata-se de uma das mltiplas estratgias que so utilizadas num campo de disputas argumentativas. Veremos, posteriormente, as implicaes desse discurso institucional dos promotores no contexto das disputas no plenrio do tribunal do jri.

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Foi recorrente na fala dos promotores entrevistados, que o Ministrio Pblico tem um papel de tutelar o interesse pblico; de defender o interesse da sociedade, uma vez que, essa sociedade, no Brasil, pouco organizada.

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No que se refere construo da personagem do promotor a forma de agir, de gesticular, a forma narrativa, a vestimenta , alguns livros escritos por promotores experientes do orientaes nesse sentido. Conversando com um promotor experiente, ele me indicou uma obra dizendo: esse o meu livro de cabeceira. Aps uma longa procura, encontrei essa obra na Livraria Forense, no Centro do Rio de Janeiro. Tratava-se de uma edio de 1998 e o livro intitulava-se: A arte de acusar, de autoria de Cordeiro Guerra. No primeiro captulo esse autor alega que so raros os livros jurdicos preocupados em orientar os profissionais do direito em como atuar no dia a dia da profisso. Cordeiro Guerra, ento, no captulo que tem o mesmo nome do livro, comea a dar orientaes aos promotores em relao a como agir para obter xito no exerccio do ofcio. Diz ele: O que preciso fazer: a) Ser quase simptico. b) Inspirar confiana. c) Expor com clareza, sobriedade e vigor a prova, evitar o dogmatismo. d) Estabelecer certa empatia com os jurados. e) Ressaltar os pontos de acusao. f) Defender a sociedade sem injuriar o Ru muito importante. g) Destruir os argumentos de defesa sem negar a evidncia. h) Interpretar os fatos contrrios, se possvel; se no, admiti-los francamente. (...) i) Criticar os elementos de defesa, neutralizando os defensores. j) Criar um clima tal que, por fim, os jurados tenham como imprescindvel a idia de condenao e a absolvio como um escndalo. (...) l) Guardar as suas alegrias profissionais e esconder o seu despeito. m) No se irritar mesmo quando est irritadssimo... (...) n) Ser combativo como Loyola e paciente como So Francisco, irnico como o Ega e insensvel, por vezes, como o prprio Damaso. o) Resistir o sentido tico da funo s sedues difceis de recusar e fceis de encontrar (Cordeiro Guerra, 1998, p.16-17).

Mais adiante, continua esse promotor: Como fazer. a comunicao do promotor e o uso da palavra, a oratria do jri. (...)

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E, para que eu no possa ser censurado, depois, de ignorncia, o que ele deve fazer : - Exrdio23: simples, que desperta a ateno. - Exposio: clara sincera. - Argumentao: cerrada psicolgica. - Perorao24: vibrante, enrgica ou incisiva. Agora, preciso ter bem presente que o promotor expe, convence, persuade, mas no obrigado a tremer a voz (Cordeiro Guerra, 1998, p.18). Na revista jurdica do Ministrio Pblico de Santa Catarina, encontrei um artigo de um promotor intitulado A atuao de um promotor de justia no tribunal do jri. O autor procura orientar os colegas menos experientes sobre como atuar no tribunal do jri. Diz ele que o promotor deve demonstrar segurana e certeza sobre os fatos e as provas do processo. E que deve olhar firmemente nos olhos dos jurados e pedir a condenao (Tramontin, 2003, p.59). Promotores, advogados e defensores pblicos, durante o julgamento no tribunal do jri, utilizam becas de cor preta. As becas tm como complemento faixas, cujas cores so representativas das respectivas corporaes desses profissionais, denominadas cores institucionais. Neste sentido temos: a) faixa vermelha, utilizada pelos promotores; b) verde, utilizada pelos defensores pblicos; c) preta, utilizada pelos advogados25. Em relao s denominadas cores institucionais, o promotor J disse: veja, a cor institucional do representante do Ministrio Pblico que atua na primeira instncia26 23 24

As aspas so minhas. Essa tipologia da estrutura do discurso judicirio, especfica do tribunal do jri, vou desenvolver em captulo prprio, mas desde j quero esclarecer que: a) exrdio, indica comeo, introduo, prembulo de exposio oral ou escrita; b) perorao, designa o eplogo ou a parte final de um pequeno discurso ou orao (SILVA, De Plcido e. Vocabulrio Jurdico. Rio de Janeiro: 2002). A perorao, no tribunal do jri, a parte final do discurso dos debatedores, embora no possa ser considerada a parte final de um pequeno discurso, pois, afinal, defesa tcnica e acusao podem falar por mais de duas horas cada.

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Segundo um livreto produzido pela Associao dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, intitulado Programa Conhecendo o Judicirio: a beca de cor preta e compe-se de uma batina justa, abotoada frente por pequenos botes, descendo at os ps, tendo cintura uma larga faixa, tambm preta, que passa por uma grande fivela, faixa essa toda em pregas longitudinais. A batina tem mangas compridas, terminando em punhos de renda branca. Da gola da beca pende uma gravata de renda branca. Tem como complemento a faixa vermelha, utilizada pelos promotores; verde, utilizada pelos defensores pblicos; e preta, utilizada pelos advogados (Programa Conhecendo o Judicirio. AMAERJ: 2004, p.6). 26 Instncia, neste sentido, o grau de jurisdio ou hierarquia judiciria, determinado pela evidncia do juzo, em que se instituiu ou se instaurou quando se assinala, numericamente, para determinar a mesma graduao, e indicar a ordem ou hierarquia do estdio em que se movimenta a causa. Neste sentido, ento,

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vermelha. Afinal, ele atua como parte interessada. Agora, quando o promotor de justia promovido na carreira e sobe para a segunda instncia, ele passa a utilizar a faixa de cor branca, o que uma indicao de que no segundo grau de jurisdio o representante do Ministrio Pblico realmente uma figura que tem uma atuao imparcial. Essa questo da parcialidade/imparcialidade do representante do Ministrio Pblico constitui-se numa problemtica obrigatria27 do campo jurdico, e pretendo refletir sobre ela posteriormente. Segundo o artigo 24 do Cdigo de Processo Penal: Nos crimes de ao pblica, est ser promovida por denncia do Ministrio Pblico(...) Cabe, ento, a essa instituio imputar a prtica de um crime a algum e buscar, em juzo, a aplicao da lei penal. Cabe ao Ministrio Pblico provocar a atividade jurisdicional, para que seja apreciada uma pretenso punitiva deduzida na acusao que objeto da denncia (Mirabete, 2003, p.650). Vamos ver, ento, como feita a denncia.

Como feita a denncia Segundo o direito brasileiro, o oferecimento da denncia demarca o incio da fase processual inqurito judicial deixando para trs a fase do inqurito policial. As regras de produo da verdade, a partir da denncia, seguem uma lgica diferenciada do inqurito policial. A fase judicial encontra-se estruturada pelos princpios constitucionais da ampla defesa e do contraditrio28. Essa fase marcada pela cultura do contraditrio; pelo embate contraditrio.

evidenciam-se a primeira e a segunda instncias. A primeira instncia determinada pelo juzo em que se iniciou a demanda, ou onde foi proposta a ao. A primeira instncia pressupe a existncia de outra instncia de hierarquia mais elevada, e para a qual se poder recorrer, quando se pretenda anular ou modificar deciso dada pelo juiz da primeira instncia. Mas nela, na primeira, que se processar todo feito at sua deciso final e execuo da sentena que ali for proferida (Silva, 2002, p.437). 27 Segundo Bourdieu (1992, p.207), as problemticas obrigatrias consubstanciam-se nos conjuntos de questes obrigatrias que definem o campo cultural de uma poca. 28 O contraditrio pode ser definido como o meio ou instrumento tcnico para a efetivao da ampla defesa, e consiste praticamente em: poder contrariar a acusao; poder requerer a produo de provas que devem, se pertinentes, obrigatoriamente ser produzidas; acompanhar a produo das provas, fazendo, no caso de testemunhas, as perguntas pertinentes que entender cabveis; falar sempre depois da acusao; manifestar-se sempre em todos os atos e termos processuais aos quais devem estar presentes; e recorrer quando inconformado (GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal, p. 74).

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A denncia uma exposio, por escrito, de fatos que constituem em tese um ilcito penal, ou seja, de fato subsumvel em um tipo penal, com a manifestao expressa da vontade de que se aplique a lei penal a quem presumivelmente o seu autor e a indicao das provas em que se alicera a pretenso punitiva (Mirabete, 1993, p. 122). O discurso do promotor denncia produzido com base no discurso da polcia materializado no inqurito policial. Trata-se de uma rede discursiva em que a produo de um discurso depende de um discurso anterior. A denncia inicia-se com a identificao dos acusados, agora denunciados e, em seguida, o promotor narra dinmica do evento, narra os fatos. Ento, quando o promotor narra os fatos interpretados, previamente, como um crime ele est realizando uma interpretao do discurso policial sobre o crime e seu autor. No contexto dessa rede dialgica29 no podemos, analiticamente, falar de uma dicotomia entre fato e interpretao do fato, pois, os denominados fatos, que esto nos autos do inqurito, j so eles prprios dados por interpretao. Em uma conversa informal com o promotor A30, ele disse: veja, os fatos esto a, nos autos, e eu os interpreto. E na dvida eu peo a condenao. Este discurso do promotor nos leva a concluir que a sua compreenso de fato, nas prticas judicirias, de um fato concreto, emprico. A partir desta reflexo, vejamos os discursos presentes nas obras doutrinrias e na jurisprudncia acerca dos denominados fatos. Vicente Greco Filho, em seu Manual de Processo Penal31, ao tratar da descrio do fato criminoso em todas as suas circunstncias, argumenta que essa descrio deve ser feita com dados fticos da realidade; (...) com fatos concretos. Em deciso do Supremo Tribunal Federal32 cujo relator foi o Ministro Celso de Mello sobre a necessidade de uma base emprica para elaborao da denncia, temos a seguinte passagem: O Ministrio Publico, para validamente formular a denncia penal, deve ter

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Estou trabalhando com o conceito de dialogicidade (princpio dialgico) de Bakhtin (1992, 1999). Para este autor a dialogicidade implica: a) no dilogo entre interlocutores; b) no dilogo entre discursos. E aqui, poderamos pensar, por exemplo, que uma pea processual de contestao, est dialogando com a pea processual que deu incio ao processo. E a sentena construda tendo por base o conjunto dos elementos que fizeram parte de um dado processo civil ou criminal, neste sentido, a construo da sentena se d por meio da dialogicidade com os demais discursos que foram produzidos (e materializados nos autos) durante o ritual judicirio. 30 Todos os promotores de justia desta pesquisa so integrantes do Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro, com mais de 05 (cinco) anos de experincia profissional. 31 Greco Filho, Vicente. Manual de Processo Penal. So Paulo: Saraiva, 1997, p. 129. 32 STF, 1 Turma. Hbeas Corpus 73.271-2/SP, relator Min. Celso de Mello, DJU, 4 out., 1996, p.37100.

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por suporte uma necessria base emprica, a fim de que o exerccio desse grave poderdever no se transforme em instrumento de injusta persecuo estatal. Segundo Ada Pelegrini Grinover e outros autores33, Toda pretenso prende-se a algum fato, ou fatos, em que se fundamenta. (...) As afirmaes de fato feitas pelo autor podem corresponder ou no verdade. E a elas ordinariamente se contrapem as afirmaes de fato feitas pelo ru em sentido oposto, as quais, por sua vez, tambm podem ou no ser verdadeiras. O que pode ou no ser considerado verdadeiro ou falso so as alegaes sobre fatos, conforme ficou claro desse discurso da Ada Grinover. Neste mesmo sentido, Fernando Capez, em sua obra, dispe que prova o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz (...) e por terceiros (p. ex., peritos), destinados a levar ao magistrado a convico acerca da existncia ou inexistncia de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmao. Trata-se, portanto, de todo e qualquer meio de percepo empregado pelo homem com a finalidade de comprovar a verdade de uma alegao (Capez, 2001, p.246). Pela anlise das proposies desses juristas consagrados pelo campo jurdico e, nesse sentido, considerados como porta-vozes autorizados desse campo, podemos concluir que h uma polissemia acerca do sentido do conceito de fato. Ora o fato percebido pelos atores operadores do direito como um fato concreto, emprico, ora o fato objeto da prova compreendido como elemento lingstico. importante inserir a fala do promotor no contexto da posio enunciativa34 que ele ocupa no campo jurdico. Em outras palavras, o promotor produz o seu discurso de um espao simblico determinado. Ele promotor de justia pertence a uma instituio, o Ministrio Pblico, e o seu discurso um discurso institucional. O promotor, no exerccio de sua profisso, desempenha um papel social. E quando esse profissional do direito ingressa por concurso pblico na instituio Ministrio Pblico, ele j tem uma boa compreenso do papel a desempenhar. E isso se deve ao processo de socializao nos saberes tericos e prticos do campo jurdico que se d desde os primeiros anos de faculdade e de estgio profissional.

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Grinover, 2001, p.348 Posio enunciativa o locus a partir do qual o ator social produz o seu discurso. Esse locus previamente estruturado e delimitado pelos espaos simblicos constitutivos de determinado campo social. Nesse sentido, os papis sociais de advogado, promotor e juiz, encontram-se, de antemo, delimitados pelas estruturas simblicas do campo jurdico. E as respectivas produes discursivas desses atores so determinadas pelas posies enunciativas que cada qual ocupa nesse campo.

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O promotor interpreta os discursos materializados nos autos do inqurito policial e, a partir da, segundo o discurso do campo jurdico, forma o seu convencimento sobre a existncia ou no de crime e sobre a existncia ou no de indcios ou provas da autoria do crime. com base em sua convico sobre esses elementos apresentados materialidade e autoria que o promotor apresenta ou no a denncia35. Neste momento, devemos retomar algumas questes importantes as provas e acrescentar outras. So elas: o que os atores do campo promotores, advogados, juzes esto entendendo por prova e indcio36? Como eles instrumentalizam essas categorias jurdicas em suas prticas profissionais? Outra questo importante a seguinte: como o promotor forma o seu convencimento para, a partir da, oferecer a denncia? De que maneira ele interpreta o discurso policial? Em outras palavras, de que maneira o promotor interpreta os fatos narrados pela polcia judiciria nos autos do inqurito policial? Vamos, agora, enfrentar essas questes.

O promotor de justia e a formao de seu convencimento. Durante uma conversa informal sobre a diferena entre prova e indcio e se uma condenao criminal poderia se dar com base apenas em indcios, o promotor B disse: o acusado pode perfeitamente ser condenado apenas com indcios. Indcio diferente de prova. Vou-lhe dar um exemplo. Voc tem um sujeito que alemo e casado. Um conhecido do alemo chega perto dele e diz: olha, fique atento porque sua mulher est lhe traindo. A partir dessa informao, o alemo passa a seguir, diariamente, sua esposa. Num determinado dia, o alemo v sua esposa entrar em um carro com um homem. Este senta no banco do carona, ao lado dela, e coloca seu brao em torno do banco onde ela est sentada. A, eles seguem de carro at um motel e entram no mesmo. A, o alemo tambm entra no motel e ocupa o quarto exatamente ao lado do quarto onde est sua esposa com o tal homem. A, o alemo fica olhando pelo buraco da fechadura e v sua35

Segundo o direito processual criminal, caso o promotor entenda que no h provas e indcios nos autos do inqurito policial que possam fundamentar a apresentao de uma denncia, ele pode requerer ao juiz o arquivamento desse inqurito. Nesse caso - ausncia de provas -, ele tambm poder devolver os autos do inqurito polcia, determinando novas diligncia e investigaes objetivando a obteno de elementos probatrios. 36 Em relao ao significado das categorias prova e indcio, vamos nos restringir, neste texto, compreenso que os promotores entrevistados possuem dela e com isso, no estamos querendo dizer, de antemo, que juzes e advogados tenham ou no uma compreenso diferente sobre essas categorias; tratase apenas de uma estratgia textual.

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esposa tirando a roupa e depois comea a tirar o suti e joga-o em direo porta e o suti fica preso na maaneta, cobrindo o buraco da fechadura. A, eu lhe pergunto, existe prova de adultrio? No! H indcios. H prova de que eles entraram juntos no motel, mas o que ocorreu no quarto uma inferncia lgica dos fatos. Voc tem alguma dvida de que ocorreu um adultrio no motel? Num processo criminal onde h dois depoimentos contraditrios de duas testemunhas, ns temos duas provas. Cabe ao profissional fazer uma apreciao dessas provas para formar o seu convencimento. Duas semanas depois, esse promotor disse acerca da questo das provas: Ns, promotores, valoramos a prova de forma subjetiva. Por exemplo, se o ru diz que tem um libi, ns achamos que esse libi falso. Logo, para mim, essa prova no tem valor. O promotor C, durante uma entrevista37, disse: O indcio que convence um promotor pode no convencer o outro. Isso uma questo subjetiva. Muita coisa que denunciada como tentativa de homicdio, no tentativa. Pode ser uma desistncia voluntria38 ou uma leso corporal. Na prtica dos promotores, em geral, deu tiro e no matou tentativa de homicdio. Continuando a conversa ele acrescentou: o processo penal feito para condenar. A finalidade do processo penal a condenao justa. Em conversa informal com o promotor D, esse me disse: muito fcil acrescentar uma qualificadora; qualquer promotor com um pouco de criatividade pode fazer isso. Durante uma entrevista39, o promotor F disse: Se h nos autos do processo dois depoimentos divergentes, ns temos duas provas. O indcio tratado legalmente pelo Cdigo de Processo penal como uma prova. Mas o indcio uma prova fraca, precria. Aps esta colocao perguntei: e os fatos no processo? Como so interpretados pelos promotores? O promotor F disse: Se no inqurito policial de um crime de homicdio vem relatado que houve uma discusso entre o acusado e a vtima, eu, na elaborao da denncia, alego que houve motivo ftil. Eu distoro os fatos. Eu no sei, na verdade, se o motivo foi ftil. Alegando motivo ftil, eu chamo para o caso a aplicao da Lei dos Crimes Hediondos. mais fcil encher a mo na denncia, incluindo qualificadoras que37 38

Entrevista concedida em 11/11/2004 Desistncia voluntria ou desistncia do crime. Ocorre quando o agente, voluntariamente, desiste de prosseguir na execuo do crime, impedindo, dessa forma, que o resultado danoso se verifique. Na desistncia voluntria, o agente s responde pelos atos j praticados (Cdigo Penal, artigo 15) (Silva, 2002, p.260). 39 Entrevista concedida em 21/10/2004

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no esto claras do que ter que aditar durante o processo. (...) Os promotores, de um modo geral, distorcem os fatos para prejudicar os rus; principalmente, no tribunal do jri, onde os promotores so muito vaidosos. Isso uma violao da Constituio Federal. A Constituio diz que ns somos fiscais da lei. Quando o ru bandido40, os promotores costumam colocar tudo o que podem na conta do ru. E isso no direito penal do fato. (...) Para o direito penal do fato, a pessoa tem que ser punida pelo que ela fez e no pelo que ela , pela sua pessoa. A respeito dessa classificao que divide o direito penal em: a) direito penal do fato e, b) direito penal do autor, o professor Geraldo Prado41 disse: o direito penal do autor de ndole subjetiva. Ele baseado num prognstico de periculosidade do acusado. Este representa um risco para a sociedade. O direito penal do autor um direito de neutralizao das pessoas e dos grupos que so considerados perigosos para a sociedade. Esse direito foi utilizado, historicamente, por regimes autoritrios, como o da antiga Unio Sovitica e o da Alemanha nazista. Por sua vez, o direito penal do fato tem o seu foco na conduta do agente. A sano est vinculada reprovabilidade da conduta. Foi dito que o trabalho do promotor compreende, inicialmente, a valorao das provas e indcios produzidos pelo discurso policial materializado no inqurito policial. Neste sentido, a instituio policial responsvel pela seleo do que ser ou no apreciado na fase do inqurito judicial. A questo que se coloca aqui, e que no ser aprofundada, pois, no se trata do objeto do presente trabalho, a seguinte: se a funo do inqurito policial apurar os fatos do crime , como esses fatos so apurados pela polcia judiciria? Segundo estudos j realizados, as prticas policiais de produo de provas e indcios sobre autoria e materialidade esto mergulhadas numa tradio inquisitorial na qual o suspeito considerado o culpado at que se prove o contrrio invertendo, assim, nas prticas judicirias, o princpio constitucional da presuno de inocncia42. Partindo de uma lgica inquisitorial de apurao dos fatos, onde o suspeito mero objeto de investigao, no possuindo, nessa fase inqurito policial direito ao40

Percebemos, em linhas gerais, que h uma classificao dos rus em bandidos ou vagabundos e trabalhadores. Sendo os trabalhadores pessoas de bem que, por alguma fatalidade, envolveram-se com a prtica de um crime. 41 Trata-se de um professor que teve um papel importante em minha formao. Esses esclarecimentos foram obtidos durante uma aula ministrada por esse professor no curso de Mestrado em Direito da Universidade Estcio de S, em outubro de 2004. 42 Neste sentido: Kant de Lima, 1995; Figueira, 2005.

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contraditrio e nem ampla defesa, a polcia judiciria produz as provas e indcios necessrios para que o promotor tenha elementos para promover a denncia contra o acusado do delito. O promotor valora as provas produzidas no contexto da cultura policial inquisitorial com base no princpio do livre convencimento. Segundo o sistema jurdico brasileiro, na apreciao das provas, os profissionais do direito no esto presos a nenhum critrio legal de valorao das provas, podendo valor-las livremente. Ou seja, no h hierarquia entre provas ou melhor, entre meios de prova43, com diz a doutrina jurdica. Ora, se o promotor pode valorar livremente as informaes produzidas nos autos do inqurito policial, para formar seu convencimento ou convico acerca do crime e de seu autor e, se essa valorao subjetiva conforme as declaraes transcritas acima dos promotores necessrio ater-se reflexo do contexto interpretativo subjetivo, institucional a partir do qual o promotor vai produzir o seu discurso. Uma proposio recorrente na fala dos promotores foi a seguinte: na dvida eu peo a condenao. Pede a condenao em razo de estar convencido da existncia de elementos probatrios para sustentar um pedido de condenao e, obviamente, por meio de uma acusao formal denncia. As denominadas provas nos autos do inqurito policial e isso tambm vale para o inqurito judicial so as materializaes em forma escrita dos discursos dos diversos atores envolvidos na prtica policial de apurao do crime. Ou seja, os discursos dos investigadores da polcia, o discurso do delegado de polcia, o discurs