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i UFRJ PAIXÃO DE SANTIDADE: O EPISTOLÁRIO DE MADRE MARIA JOSÉ DE JESUS, ocd (1882-1959) Virgínia A. Castro Buarque Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Orientador: Prof. Dr. Manoel Salgado Guimarães Co-orientador: Prof. Dr. Francisco José Silva Gomes Rio de Janeiro Junho 2005

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UFRJ

PAIXÃO DE SANTIDADE: O EPISTOLÁRIO DE MADRE MARIA JOSÉ DE JESUS, ocd

(1882-1959)

Virgínia A. Castro Buarque

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.

Orientador: Prof. Dr. Manoel Salgado Guimarães Co-orientador: Prof. Dr. Francisco José Silva Gomes

Rio de Janeiro

Junho 2005

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PAIXÃO DE SANTIDADE: o epistolário de Madre Maria José de Jesus, ocd.

(1882-1959)

Virgínia A. Castro Buarque

Orientador: Prof. Dr. Manoel Luis Salgado Guimarães Co-orientador: Prof. Francisco José Silva Gomes Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Banca Examinadora:

_______________________________

Presidente, Prof. Dr.

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Prof. Dr.

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Prof. Dr.

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Prof. Dr.

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Prof. Dr.

Rio de Janeiro

Junho 2005

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Buarque, Virgínia A. Castro. Paixão de santidade: epistolário de Madre Maria José de Jesus, ocd. / Virgínia Albuquerque de Castro Buarque. - Rio de Janeiro: UFRJ/PPGHIS, 2005.

xiii p. 276 f.: il.; 31 cm. Orientador: Prof. Dr. Manoel Salgado Guimarães Co-orientador: Prof. Dr. Francisco José Silva Gomes Tese (doutorado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-graduação em História

Social, 2005.

Referências bibliográficas: f. 259-276.

1. História religiosa. 2. Madre Maria José de Jesus, ocd. 3. Epistolário. I. Guimarães, Manoel Salgado/Gomes, Francisco José Silva. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em História Social. III. Paixão de Santidade: o epistolário de Madre Maria José de Jesus, ocd. (1882-1959).

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A dois homens que já partiram, sem deixar de continuar presentes:

meu avô, Josemar Pessoa de Castro,

meu amigo, Fernando Jorge da Silva.

A todas às mulheres que acreditam em um ideal

e o vivem com paixão, em particular a

minha mãe, Marilza Albuquerque de Castro.

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RESUMO:

PAIXÃO DE SANTIDADE: o epistolário de Madre Maria José de Jesus, ocd.

(1882-1959)

Virgínia A. Castro Buarque Orientador: Prof. Dr. Manoel Salgado Guimarães Co-orientador: Prof. Francisco José Silva Gomes

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.

Esta tese constitui como seu objeto de estudo uma produção imaginária quase tão perene quanto o cristianismo: o ideal contemplativo, em sua elaboração pelo monaquismo ocidental. Porém, de forma distinta da maioria dos trabalhos dedicados ao tema, seu recorte temporal não recua à patrística ou ao medievo, mas situa-se na contemporaneidade, buscando deslindar as configurações assumidas pelo ideal contemplativo no bojo da Restauração Católica implementada no Brasil na primeira metade do século XX. Para tanto, esta pesquisa adotou uma escala micro de interpretação, selecionando como fonte privilegiada o epistolário de uma carmelita descalça, Madre Maria José de Jesus (1882-1959), monja do Convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.

A leitura das cartas da Madre evidenciou duas problemáticas cruciais ao ideal contemplativo, a confluírem em um projeto de “santificação”: seus vínculos com uma espiritualidade romanizante-conservadora, então hegemônica na Igreja, e suas especificidades no promover da subjetivação, perante os valores culturais da modernidade. Questões bastante complexas, que buscaram ser respondidas mediante uma hipótese central: o ideal contemplativo significava o real a partir de um “viés do negativo”, isto é, de uma atitude passional e passiva – uma “paixão” -, pela qual o fiel, esvaziando-se de si, deixava-se afetar pela Alteridade divina, sendo transformado a ponto de unir-se a Ela. Neste sentido, foi tecido o tríplice objetivo desta tese: inter-relacionar o ideal contemplativo, singularizado pela correspondência de Madre Maria José de Jesus, com uma prática de escrita, com uma constituição de si e com um exercício de poder. Palavras-chave: História religiosa – Madre Maria José de Jesus, ocd. – Epistolário.

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RÉSUMÉ:

PASSION DE LA SAINTETÉ: l´épistolaire de la Mère Maria José de Jesus, ocd.

(1882-1959)

Virgínia A. Castro Buarque Directeur de Thèse: Prof. Dr. Manoel Salgado Guimarães

Co-directeur: Prof. Francisco José Silva Gomes

Résumé de la Thèse de Doctorat élaborée dans le cadre du Programme d´Etudes de Troisième Cycle en Histoire Sociale de l´Université Fédérale de Rio de Janeiro - UFRJ, Institut de Philosophie et des Sciences Sociales, pour l´obtention du titre de Docteur en Histoire Sociale.

Cette thèse a pour objet d´étude une production imaginaire presque aussi éternelle que le Christianisme: l´idéal contemplatif en son élaboration par le monachisme occidental. Toutefois, de manière distincte de la plupart des travaux cansacrés au thème, le découpage temporel ne remonte ni à la patristique ni au Moyen Age, mais il se situe au contraire dans la contemporaineté, cherchant à déceler les configurations que prend l´idéal contemplatif dans le cadre de la Restauration Catholique entreprise au Brésil dans la première moitié du XXe siècle. Pour parfaire à cette fin, la recherche a adopté une échelle micro d´interprétation, retenant comme source privilégiée l´épistolaire d´une carmélite déchaussée, la Mère Maria José de Jesus (1882-1959), moinesse du Couvent de Sainte Thérèse, à Rio de Janeiro.

La lecture des lettres de la Mère a mis en évidence deux problématiques fondamentales pour l´idéal contemplatif qui se rejoignent en un projet de “sanctification”: ses liens avec une spiritualité romanisante-conservatrice, alors hégémonique à l´Eglise, et ses spécificités dans la promotion de la subjectivité face aux valeurs culturelles de la modernité. Pour répondre à ces questions complexes, on est partis d´une hypothèse centrale: l´idéal contemplatif signifiait le réel à partir d´un “biais du négatif”, c´est-à-dire d´une attitude passionnelle et passive – une “passion” -, par l´intermédiaire de laquelle le fidèle, en s´anéantissant lui-même, se voyait toucher par l´Altérité divine qui le transformerait au point qu´il puisse s´unir à Elle. Partant, trois objectifs ont été établis: renouer l´idéal contemplatif, singularisé par la correspondance de la Mère Maria José de Jesus, avec une pratique d´écriture, avec une constitution de soi et avec un exercice de pouvoir. Mots-clés: Histoire religieuse – Mère Maria José de Jesus, ocd. – Epistolaire.

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AGRADECIMENTOS

Foi com grata satisfação que comecei a fazer memória de tantas pessoas que,

direta ou indiretamente, me auxiliaram na formulação desta pesquisa. Todavia, meio

contrariada, fui obrigada a interromper minhas lembranças, pois já chegara na décima

página de uma listagem que parecia infinita, em discrepância, portanto, com os cânones

acadêmicos e com o bom-senso recomendável quanto à redação do prólogo de uma tese.

Resolvi, assim, reiniciar meus registros, limitando-os às pessoas que no decorrer dos

quatro últimos anos, quando defrontei-me com os dilemas de um curso de Doutorado,

tiveram uma atuação transformante em minha vida. Obviamente, o elencar dos nomes

foi relativamente reduzido, embora, para minha alegria, eu tenha mais uma vez

percebido quantas pessoas fizeram-se imprescindíveis. Aproveito para desculpar-me

com aqueles que não foram explicitamente citados; estão inscritos em meu afeto, para o

qual não há entraves quantitativos.

Faço questão que a primeira menção recaia sobre minha mãe, Marilza.

Sobretudo no último ano, quando tomei a decisão de manter-me desvencilhada de

minhas atividades profissionais, dedicando-me inteiramente à pesquisa, foi sua

compreensão e seu aporte financeiro que, literalmente, me sustentaram. A ela, portanto,

eu devo a finalização deste trabalho, que lhe é dedicado com toda gratidão, juntamente à

memória de meu avô, recentemente falecido. Aliás, no que se refere ao apoio familiar,

eu me considero uma felizarda, pois fui permanentemente incentivada por meus irmãos,

Vanise e Vladinir, e por meu pai, Isnar, generosos em sua aceitação de minhas

inevitáveis ausências a um convívio mais estreito.

Um espaço de fundamental importância foi, é claro, o Programa de Pós-

graduação em História Social da UFRJ. A meu orientador, professor Manuel Salgado

Guimarães, sou grata pelo depositar de uma espantosa confiança em minha capacidade

como historiadora; ao outorgar-me ampla liberdade para selecionar os referenciais

teóricos e metodológicos que considerasse mais apropriados à pesquisa, ele indicou-me,

com sutileza e otimismo, o quanto apostava em meu amadurecimento profissional. E foi

justamente este professor o responsável por uma das maiores dores-de-cabeça que já

tive, ao afirmar-me ser o Doutorado um momento de definição: na maneira de esboçar

um problema, e de responder a ele, uma pessoa encontrar-se-ia consigo mesma, e se

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construiria – ou não – como historiador. Vislumbrar a História como chave de leitura

para seu estar no mundo, eis o desafio exigido de um pretenso “doutor”. De lá para cá,

transcorreram-se vários anos. De lá para cá, eu só posso dizer que tentei.

A meu co-orientador, professor Francisco José Silva Gomes, sou agradecida pela

ternura com que me abriu as portas de sua casa e de seu saber. Por inúmeras vezes eu

telefonei-lhe, buscando dissipar, além de minhas dúvidas intelectuais, os temores e a

solidão que acometem aqueles que escrevem uma tese. Ele, sempre solícito, ajudou-me

a superar todas essas dificuldades e, mais ainda, emprestando-me seus livros, indicando-

me para o desempenho de atividades no magistério, contribuiu decisivamente para

minha formação em historiografia religiosa. Juntos partilhamos o anseio por uma

cultura menos atada a contornos dogmáticos e moralistas, mais aberta à atuação

inventiva do “espírito”, atentando aos sinais de mudança que se imiscuem, por vezes em

disfarçados subterfúgios, no cotidiano das instituições e dos sujeitos sociais.

Uma outra professora afetou-me profundamente, Maria Manuela Ramos Silva. É

impossível descrever o que ela significou em minha existência - há experiências

inenarráveis. Mas houve um episódio com valor representativo: jamais esquecerei o dia,

lá se vão dez anos, em que ela fotocopiou a introdução e os três primeiros capítulos da

Invenção do Cotidiano, de Michel de Certeau, que acabara de ser lançado no Brasil,

para que eu dispusesse de novos recursos de inteligibilidade histórica e não sofresse

tanto por sentir-me “diferente”, quer do meio acadêmico, quer dos ambientes pastorais

onde atuava; quem ler esta tese, poderá discernir os resultados aferidos de tal presente.

Esta pesquisa é também dedicada a seu esposo, Fernando, que acompanhou com

profundo carinho minhas buscas pessoais – mais uma das experiências que transcende a

força das palavras para sediar-se no coração.

Uma outra mestra me é muito querida: a professora Francisca Nogueira de

Azevedo, com quem tive oportunidade de cursar duas disciplinas e certificar-me de que

a universidade também pode consistir em espaço de sincera amizade. Era com

satisfação que eu dirigia-me ao IFCS nos dias de suas aulas, na certeza de ingressar em

um espaço de reflexão abalizada, mas também de gestos solidários, de delicadezas

comoventes. Ademais, através dos encontros por ela dirigidos, travei contato com César

Buscacio, pianista e professor de música da UFOP (atualmente um caro amigo), que

juntamente com Sandra Loureiro de Freiras Reis, professora de música da UFMG,

contribuíram decisivamente para a redação do capítulo final desta tese.

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Ainda entre os docentes, não poderia deixar de registrar uma presença tão

pontual quanto fundante: se os artigos do professor Luiz Fernando Dias Duarte

nortearam o meu pensar acerca da constituição da subjetividade na moderna cultura

ocidental, sua participação em minha banca de qualificação, com as sugestões então

promovidas, muito auxiliaram em meu prosseguir.

Por fim, minha Pós-graduação não seria a mesma sem a convivência com os

integrantes do PROCULT – Programa de Historiografia e História da Cultura -,

vinculado ao Departamento de História da UFRJ, sob a coordenação do prof. Manoel

Salgado Guimarães. Foi neste fórum que travei contato com Adriana Barreto de Souza,

pesquisadora e pessoa admirável; que pude rever Cláudia Guerra, fotógrafa que tão

gentilmente produziu as imagens que integram esta tese; que convivi com Amara

Rocha, Renato Amado, Cláudia Montalvão, Alexandre Miranda, entre tantos outros

amigos queridos... E é com especial carinho que cito Tatianne Candu e Regina Célia

Mendes: eu as conheci como estudantes de graduação e até hoje, já formadas, nunca

deixaram de expressar, das mais variadas formas, seu incentivo a meu trabalho.

A pertença a uma cultura católica não pode ser dissociada de meu itinerário

intelectual. Assim, alguns religiosos e religiosas tiveram grande participação em minha

formação, aos quais reafirmo meu afeto: frei Clodovis Boff, osm., frei Maurício Silva,

osa., frei Pierino Orlandini, ocd. e Marinelza Aurora Furtado, que conheci como irmã

Teresa Margarida, ocd. São pessoas bastante diferentes, atualmente dispersas pelo

Brasil e pelo exterior, mas entre elas transparece um elemento comum: a importância

conferida à interioridade humana na promoção de uma experiência do sagrado, premissa

por mim apropriada na constituição do objeto de estudo desta pesquisa. Mas minha

trajetória teria ficado bastante empobrecida sem o apadrinhamento de um casal de

leigos, que teve a paciência de suportar minhas ansiedades, tornando-se muito especiais

para mim: Zilda e Rubens Guerrero.

Se a Igreja perdurou como referência em meu cotidiano, obter a disponibilidade

de minhas funções no Colégio Pedro II revelou-se, em contrapartida, condição

fundamental para a conclusão desta tese no prazo devido. Agradeço, principalmente, à

chefe do Departamento de História, Beatriz Marques dos Santos, e à coordenadora da

equipe de História na Unidade S. Cristóvão II, Luíza Helena Lamego Felipe, que

ratificaram meu pedido de licença parcial nos meses de setembro a dezembro de 2003 e

de licença sem vencimentos em 2004 e 2005, bem como a todos os profissionais que

concordaram com tal deferência. Sou também muito grata à torcida favorável, aos votos

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de feliz realização, aos telefonemas de apoio provindos de Cláudia Rodrigues, Ana de

Oliveira, Marise, Armando, Célio..., e muito especialmente de Vera Moraes e Fátima

Ivone, minhas eternas companheiras, conhecidas na época em que eu lecionava na

Unidade Engenho Novo II. A Vânia Lacerda, também integrante do Colégio, por tudo

isso, acrescido pelo primor da revisão ortográfica, um abraço especial.

Esta memória ficaria incompleta sem uma menção ao “grupo de Fortaleza”. Em

2003, o Museu do Ceará editou meu trabalho sobre a correspondência trocada entre

Capistrano de Abreu e sua filha, Madre Maria José. É evidente a importância

profissional e simbólica vinculada à publicação do primeiro livro na vida de um

historiador; assim, tornaram-se inesquecíveis a credibilidade e o carinho a mim

concedidos pelo professor Francisco Régis Lopes Ramos, diretor do Museu. Além

disso, através desse lançamento e da participação no Colóquio que lhe foi concomitante,

pude rever alguns colegas do PPGHIS/UFRJ, com os quais perdera contato, além de

conhecer outras pessoas que se fizeram muito próximas: Meize Lucas, Edilberto

Cavalcante Reis, Antônio Luis Silva Filho.

Quis terminar este agradecimento mencionando dois amigos muito especiais,

cuja lembrança conflui em meu bem-querer: Maria Cristina Batalha, professora do

Departamento de Neolatinas do Instituto de Letras da UERJ, que me ensinou francês,

traduziu meus textos e partilhou meus sonhos de fazer uma história “singular”, e Carlos

Eduardo Alves de Brito, professor do Departamento de Psicologia da PUC-RJ, que

através da psicanálise ajuda-me a reconhecer-me como já sendo a pessoa que tanto

almejei tornar-me.

Nada mais justo do que também expressar, em adendo, meu reconhecimento às

instituições que cooperaram com a escrita desta tese: à Ordem do Carmelo Descalço,

através das prioras do Convento de Santa Teresa, Madre Teresinha e Madre Maria

Auxiliadora, pelo delicado atendimento e pela disponibilização da documentação

relativa à Madre Maria José, bem como da Irmã Teresa Margarida, do Carmelo de

Cotia, São Paulo, pela cuidadosa escuta de minhas questões; ao CNPq, sobretudo na

pessoa de Osman Alvarez dos Prazeres, pela bolsa recebida entre abril e julho de 2004,

para pesquisas no Centre de Anthropologie Religieuse Europeéenee da EHESS; aos

professores Philippe Boutry e Dominique Julia, pelo acompanhamento de meus

trabalhos durante a estada na França, juntamente à professora Julia Kristeva, pela

entrevista concedida.

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Meus agradecimentos já se agigantam novamente. Certamente, esta extensão não

é casual: meus amigos, como a vida, souberam ser generosos comigo e me permitiram,

hoje, estar aqui, escrevendo, reconhecendo que a integridade e o sentido que porventura

pude conferir ao meu percurso (e à minha produção) é indissociável de suas existências.

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SIGLAS E ABREVIATURAS

ASD:

Arquivo da Serva de Deus Madre Maria José de Jesus, localizado no Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro.

CCSDMII: Causa Canonizationis Servae Dei Mariae Ioseph a Iesu, O.C.D. Coleção dos documentos relativos à Madre Maria José de Jesus, reunidos em quinze volumes, que instruíram seu processo de canonização.

Ir.: Irmã.

Me.: Madre.

Mons.: Monsenhor.

O.C.D.: Ordem do Carmelo Descalço.

Pe.: Padre.

V.C.: Vossa Caridade. Forma de tratamento utilizada entre si pelas carmelitas descalças. No plural: VV.CC.

V. Emcia.: Vossa Eminência. Forma de tratamento utilizada para referir-se ao bispo ou cardeal.

V.R.: Vossa Reverência. Forma de tratamento utilizada pela carmelita descalça para dirigir-se à priora. No plural: VV.RR.

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SUMÁRIO Introdução......................................................................................................................01

I - Um ideal contemplativo............................................................................................17 1.1- “Isto é o meu corpo” (Lc 22, 19).............................................................................17 1.2- “...é dado por vós...” (Lc 22, 19).............................................................................24 1.3- “é a nova Aliança ...” (Lc 22,20).............................................................................32 1.4- “...meu sangue, que é derramado...” (Lc 22,20).....................................................40 1.5- “Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19)............................................................48

II – Tradições teresianas...............................................................................................60 2.1- “...no cume do Carmelo, prostrou-se em terra...” (1Rs 18,42)...............................60 2.2- “Eu me consumo de ardente zelo pelo Senhor...” (1Rs 19,10)................................67 2.3- “Então caiu o fogo de Deus...” (1Rs 18,38)............................................................73 2.4- “...ardeu o holocausto...” (1Rs 18,38).....................................................................85 2.5- “...e depois do fogo, o murmúrio de uma brisa suave” (1Rs 19,12).......................92

III – Uma simbólica do cotidiano...............................................................................102 3.1- “São centelhas de fogo, uma chama divina” (Ct 8,6)...........................................102 3.2- “Grava-me como um selo em teu coração” (Ct 8,6).............................................108 3.3- “Cruel como o abismo é a paixão” (Ct 8,6)..........................................................123 3.4- “O amor é forte como a morte” (Ct 8,6)...............................................................133

IV – Interlocuções profanas........................................................................................142 4.1- “O Senhor ama os que buscam a Sabedoria” (Eclo 4,12)...................................142 4.2- “Quem se apega à Sabedoria, herdará sua glória” (Eclo 4,14)...........................151 4.3- “...ela toma sob sua proteção aqueles que a procuram” (Eclo 4,12)...................160 4.4- “...os que velam para encontrá-la sentirão sua doçura” (Eclo 4, 13)..................172

IV – Estilo “converso”.................................................................................................183 5.1- “Então Iahweh Deus modelou o homem...” (Gn 2,7)............................................183 5.2- “...insuflou em suas narinas um hálito de vida” (Gn 2,7).....................................196 5.3- “e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7)...................................................204 5.4- “Deus viu tudo que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1, 31)...............................214

Conclusão.....................................................................................................................223 Anexos...........................................................................................................................233 Apêndice de imagens...................................................................................................245 Bibliografia...................................................................................................................259

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Ó minhas Irmãzinhas do Carmelo

Fragrantes lírios de ideal brancura, Em todas vós achei, nesta clausura,

De mães, de irmãs, de filhas, o desvelo.

A vós me prende e prenderá sempre o elo Do amor sem fim, da gratidão mais pura.

A vossa santidade e formosura - Eis minha ambição, meu grande anelo.

Temos o mesmo amor à Mãe celeste;

O mesmo amor a Deus, a mesma veste O mesmo escapulário, o mesmo véu;

Unidas combatemos nas trincheiras...

Oh! Como será doce, companheiras Sermos eternamente lá no Céu!...

À minha família no Carmelo, Madre Maria José de Jesus, 1940.1

1 JESUS, Maria José de, madre. Sonetos e Poemas. V. 1. Rio de Janeiro: Olímpica, 1960. p. 44.

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1

INTRODUÇÃO

A construção do objeto

Esta tese desvela, já em seu título, sua dinâmica inspiradora – uma paixão.

Suponho não exagerar ao dizer que ela vem sendo engendrada há mais de dez anos,

numa trajetória investigativa que entrecruzou minha opção pelo conhecimento histórico

como viés de inteligibilidade do humano à busca existencial que empreendi, a fim de

vislumbrar um sentido para o estar no mundo hoje. Tal percurso conduziu-me, ao longo

da década de 90, a espacialidades bem distintas, das escadarias do Instituto de Filosofia

e Ciências Sociais da UFRJ aos becos da Comunidade do Turano, onde, participando de

atividades promovidas pelas pastorais sociais da Igreja Católica, travei contato com as

propostas da Teologia da Libertação.

Esta dúplice experiência suscitou em mim profundos conflitos, pois embasando-

me em leituras acadêmicas2, tinha dificuldade em reconhecer na chamada “cultura

popular” um dos pólos formuladores da releitura evangélica defendida pelos setores

progressistas da Igreja. Ao ouvir, nas celebrações, “Vem, Senhor Jesus, vem conosco

caminhar, ilumina nossa luta, prá teu povo libertar...”, eu identificava em tais cânticos

muito mais um projeto (ideológico e político) concebido por intelectuais cristãos, do

que uma tradução da fé dos “despossuídos”... E me sentia envergonhada por pensar

assim, fosse porque parecia destituir o “povo” de sua capacidade de elaboração crítica e

simbólica, fosse por não me identificar com uma sensibilidade religiosa que me parecia,

muitas vezes, reduzir a especificidade da crença às demandas sociais dos grupos

marginalizados (por mais justas que tais reivindicações se apresentassem). Era grande,

porém, minha preocupação em não me afastar de uma concepção sócio-eclesial que

considero eticamente tão dignificante quanto criativa e dialógica em seu ultrapassar de

fronteiras culturais.3

2 Remeto às obras de CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1996; BOLLÈME, Geneviève. O Povo por Escrito. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 3 A teologia latino-americana empreendeu um grande esforço, desde meados dos anos 70, para explicitar os vínculos hermenêuticos entre o texto bíblico e a realidade social, a exemplo de BOFF, Clodovis. Teologia e Prática: teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978. Contudo, faz-se mister elucidar as apropriações dessas produções teológicas pela dinâmica pastoral, que não raramente lhes é atribuído um valor de “verdade” (similar ao outorgado pelo Magistério à ortodoxia). Com isso, o entendimento da “espiritualidade” torna-se também mais restrito, sendo reportado a uma “certeza”, ao invés de uma “interpretação possível”, cf. CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Seuil: Paris, 1987. p. 58: “Finalement, qu’est-ce donc qu’une spiritualité? Prise en son principe, comme le terme d’un

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A dúvida de como proceder perante tal impasse, acrescida ao refluxo sofrido

neste período por uma eclesiologia engajada, fez-me priorizar a reflexão universitária.

Lancei-me então ao estudo da espiritualidade católica, entendida no sentido que lhe

conferiu Michel de Certeau - “[...] la spiritualité, en tant qu’elle est une expression

reconnaît une articulation du langage sur l’impossible à dire” 4: uma ausência (da

Alteridade/de sentido) torna-se, portanto, condição de possibilidade para uma vivência

social e para uma prática de linguagem. Assim, sem desconsiderar os desdobramentos

político-ideológicos do religioso, de fundamental explicitação pela historiografia5, eu

almejava reconstituir as matrizes de um imaginário6 da relação com o divino que

estivesse embasado na experiência da incompletude humana.7

Neste intuito, busquei uma temática de pesquisa que se aproximasse de uma das

mais instigantes leituras que fiz até hoje, tradutora de profundos anseios pelo

transcendente - a obra de Teresa de Jesus. Travei meus primeiros contatos com os textos

da santa de Ávila ao freqüentar, no final dos anos 90, alguns encontros do Instituto

Teresiano, 8 no Rio de Janeiro e, decidida a saber mais sobre a religiosidade procedente

de tais escritos, dirigi-me, em 2000, ao Centro Teresiano de Espiritualidade, na cidade

de São Roque, São Paulo, onde promovi levantamentos preliminares, vindo em seguida

a conhecer as irmãs do Carmelo São José, sediado em Jacarepaguá, Rio de Janeiro,

através das quais tive acesso ao Memorial da Vida de Madre Maria José de Jesus9, bem

‘retour’, elle serait un ‘esprit’ originel déjà trahi par tout son langage initial et compromis par ses interprétation ultérieures, de sorte que, n’etant jamais là où elle est dite, elle serait l’insaisissable et l’evanescent. [...]”. 4 CERTEAU, Michel de. Histoire et mystique. L’Absent de l’Histoire. Paris: Mame, 1973. p. 153. Segundo Luce Giard, Certeau retoma a afirmativa de seu amigo Paul-Stanislas Breton, para quem Deus não deveria ser concebido como uma “essência” (uma verdade em si) e sim como uma “instância crítica”. GIARD, Luce. Mystique et politique, ou l’institution comme objet second. In: GIARD, Luce, MARTIN, Hervé e REVEL, Jacques (org.). Histoire, Mystique et Politique: Michel de Certeau. Grenoble: Jérôme Mellon, 1991. p. 12. 5 JULIA, Dominique. A história religiosa. In: LE GOFF, Jacques (org.). História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. 6 Cf. concepção de “imaginário social” formulada por BACZO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. V. 5. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. 7 GOMES, Francisco José Silva. A religião como objeto da História. In: LIMA, Lana Lage da Gama et alii. História e Religião. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad, 2002. p. 17: “O religioso é um objeto histórico específico, não se pode diluí-lo numa história econômica ou social como foi acontecer nas décadas de 60 e 70, ou como ocorre, por vezes, na atualidade, quando a história das mentalidades ou a histórica cultural têm a ambição de englobar, sem mais, a História religiosa. Na minha opinião, esta vigilância epistemológica impõe-se [...] permanece inteira a perspectiva que encara o fenômeno religioso como um objeto com consistência própria e não inteiramente redutível às leituras propostas pelas ciências humanas”. 8 Agradeço a Vera Candau e a Lúcia Pedrosa de Pádua as orientações recebidas no período. 9 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Memorial da Vida de Madre Maria José de Jesus, carmelita descalça. Rio de Janeiro: Convento de Santa Teresa, 1968.

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como à tese do historiador Dante Marcello Gallian, que também traça a biografia desta

monja.10

A trajetória de uma das mais importantes religiosas do Carmelo Descalço no

Brasil, filha primogênita do historiador Capistrano de Abreu, que nascida em 1882,

ingressara aos 29 anos no claustro do Convento de Santa Teresa, situado na capital

carioca, intrigou-me profundamente. Ademais, após o falecimento da Madre, ocorrido

em 1959, as carmelitas descalças promoveram o levantamento de seu vultoso epistolário

– quase 1700 missivas –, escrito ao longo de quase cinqüenta anos de vida monástica.

Com isso, eu que sempre gostei de cartas (não me cansando de enviá-las e de recebê-las,

mesmo em tempos de internet), decidi estudar com afinco tal correspondência.

Esta não se revelou, contudo, uma tarefa fácil. A Madre pareceu-me, de início,

bastante “conservadora” em suas posições, mostrando-se favorável ao fortalecimento do

poder clerical e endossando, paralelamente, uma devoção de cunho sacramental e

expiatório. Sentia-me, todavia, bastante temerosa de ofender as irmãs e a Ordem com

minhas ponderações, uma vez que Madre Maria José fora considerada, mesmo antes de

sua morte, um “farol luminoso” 11, “um testemunho vivo de santidade” 12, uma “coluna

do Carmelo no Brasil” 13... Priora do Convento de Santa Teresa por 27 anos, espaçados

em 9 triênios14, Madre Maria José liderou um importante processo de renovação dos

costumes monásticos e de fundação de novos conventos femininos do Carmelo

Descalço. Além disso, por sua amizade pessoal com D. Sebastião Leme da Silveira

Cintra, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro entre 1930 e 1942, mas de quem já era

dirigida espiritual desde 1912, esteve efetivamente envolvida no processo de

Restauração Católica promovida pela hierarquia eclesiástica no Brasil: Isoladas do mundo pelos muros da clausura, as carmelitas de Santa Teresa,

lideradas por sua ‘excepcional priora’ – como D. Leme gostava de referir-se a ela – procuraram, portanto, desempenhar papel intensamente ativo na grande empresa

10 GALLIAN, Dante Marcello. Madre Maria José de Jesus no Caminho de Perfeição. São Paulo: Paulus, 1997. 11 Mensagem de condolências pelo falecimento de Madre Maria José enviada pelo Carmelo situado na cidade de Aparecida, São Paulo, em março de 1959. Apud: SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 341. 12 Livro do Tombo do Carmelo da Santíssima Trindade, f. 121, março de 1945, transcrito no processo de canonização de Madre Maria José de Jesus, V. 13, p. 336, cf. cópia do Convento de Santa Teresa. 13 Depoimento de Irmã Maria de Lourdes da Eucaristia, do Carmelo da Santíssima Trindade, Rio de Janeiro, 1982, arquivado na documentação referente à Madre Maria José, pasta 7, folhas avulsas, Convento de Santa Teresa. Estas últimas duas citações encontram-se também em GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 211 e 213. 14 Madre Maria José foi priora do Convento de Santa Teresa durante os triênios de 1917-1920; 1923-1926; 1929-1932; 1932-1935; 1938-1941; 1941-1944; 1947-1950; 1953-1956; 1956-1959. Ela foi ainda superiora, entre 1945-1946, no Carmelo do Espírito Santo, sediado em Teresópolis, no Rio de Janeiro. Cf. JESUS, Maria José de, madre. In: Deus Presente. São Paulo: Paulus, 1996.

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recristianizadora capitaneada pela Hierarquia católica. Um papel que, aliás, não se limitou à dimensão sobrenatural, mas que se manifestou também através de várias contribuições materiais, principalmente no campo do apostolado intelectual: [...] Me. Maria José de Jesus escreveria discursos – como o de 1931, lido por D. Leme na inauguração do Cristo Redentor – poesias e faria traduções – como a das Obras Completas de Santa Teresa.15

À medida em que lia o epistolário, deparei-me com uma nova questão, que veio

somar-se ao suposto “conservadorismo” da Madre: seu lento processo de agonia,

entremeado por crises de contornos psíquicos, culminando em seu falecimento fora da

clausura teresiana.16 Como entender que uma religiosa altamente conceituada, em plena

maturidade de vida monástica, pudesse ser acometida por sofrimentos tão intensos

como os descritos por irmã Marina? Em meados de 1957 [...] Sentia grande fadiga e mal-estar. Moralmente

sofria, sofria muito. Ela que tanto aspirava ao ‘face a Face eterno’, e poucos meses antes havia escrito: ‘Nós que já morremos a tudo, que mais podemos desejar do que ver a Deus?! E tantas outras frases alusivas à morte, considerando-a como a ‘volta para o Seio do Pai’, o ‘encontro com o Esposo’... experimentava então apreensão, pensando na proximidade do último momento.

A sua agonia começou como a de Jesus, pelo tédio, pavor... Foi um conjunto de sofrimento físico e moral muito doloroso; segundo seu costume não o revelou.17

Durante mais de três anos, inquiri-me sobre o “conservadorismo” e a

“consumação” vividos pela Madre; oscilando entre a expectativa e a frustração,

formulei e desconstruí um sem-número de objetos e hipóteses, chegando a duvidar se

conseguiria concluir esta pesquisa. E foi somente em pleno ato de redação da tese18 que

discerni com maior clareza a interrogação que tanto me inquietava: seria possível

identificar nas cartas de Madre Maria José uma produção imaginária que dotasse de

sentido sua vida e sua morte, sua postura ideológica e sua espiritualidade? A pergunta

era tão abrangente quanto ousada, mas tentei não me deixar intimidar por ela. Assim,

em resposta, constituí como meu objeto de pesquisa o que denominei “ideal

contemplativo” (emprego a terminologia “ideal” a fim de enfatizar seu sentido

inconcluso e prospectivo) - um sistema de valores, símbolos e práticas, configurador do

humano (logo, de seus vínculos sociais) a partir de sua remissão ao divino. Tal

produção imaginária preconiza uma vivência privilegiadamente passional, pela qual o

agente (individual ou coletivo) deixa-se “afetar” pelo outro/Outro. A partir de então, sua 15 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 205. 16 Madre Maria José faleceu na Casa de Saúde Santa Juliana, dirigida pela Congregação das Servas de Maria Reparadora, em 11 de março de 1959. O óbito atestou como causa mortis síncope cardíaca e arteriosclerose. Cf. JESUS, Maria José de, madre. Op. Cit. 17 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. 298-299. 18 Agradeço ao corpo docente do PPGHIS o deferimento de uma prorrogação de três meses para conclusão desta escrita. Esta tese, portanto, foi elaborada entre março de 2001 e maio de 2005.

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existência perde um referencial individualizante, adquirindo contornos eminentemente

relacionais, no delineamento de um estado de ser intitulado, pela espiritualidade

católica, como “santidade”.19

O ideal contemplativo apresenta-se como uma elaboração histórico-cultural do

cristianismo: emergindo no Ocidente a partir do século IV, foi reempregado com muitas

variantes até a contemporaneidade, das quais o epistolário de Madre Maria José é uma

expressão significativa.20 E ao ser (re)formulado pela correspondência, este ideal revela-

se, por sua vez, operatório e performativo: ele fomentou uma maneira da Madre inserir-

se no mundo (uma ética) e de reconhecer a si e aos demais (uma subjetividade).21

Estabeleci, então, como objetivo fulcral desta tese interpretar o ideal contemplativo em

uma tríplice articulação: com o processo de subjetivação efetivado pela Madre como

mulher e religiosa; com as operações de linguagem concernentes à sua prática epistolar;

com as redes de saber-poder vigentes no catolicismo entre as décadas de 1910 e 1960,

no bojo do projeto de Restauração desenvolvido pela Igreja.

Uma última palavra acerca do título desta tese - Paixão de Santidade. Ele surgiu

durante uma audição do Réquiem de Mozart, obra solene, tão dramática quanto

pungente, que composta em 1791, nada contém do racionalismo das Luzes. Ao ouvi-la,

pude melhor compreender a associação, delineada por Madre Maria José, entre sua

busca de Deus e o cumprimento de miríades de observâncias cotidianas: as rigorosas

disciplinas conventuais permitiam-lhe um trabalho sobre si que elidia representações

auto-referentes, sem descartar uma sensibilidade afetiva e o embevecimento religioso.

19 Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique... Paris: Beauchesne, 1937. Verbete “Contemplation”: “[…] habituellement l’emploi d’un déterminatif au génitif avec le substantif contemplatio, à l’accusatif avec le verbe contemplari. Un sens dérivé et comme adverbial exprime l’intention de faire quelque chose ou plus exactement le projet que l’on rumine à cet égard. Enfin, l’adjectif contemplativus se trouve déjà indiqué comme qualificatif de vita pour indiquer, par opposition, à la vie active, pratique, un emploi ordinaire du temps, un genre de vie dominé par la spéculation et le souci des choses de l’esprit”. Grifos do autor, em itálico no original. 20 BOUTRY, Philippe. De l’histoire des mentalités à l’histoire des croyances. La possession de Loudun. Le Débat, n. 49, 85-96, mars-avril, 1988. p. 94. “Réemployer, c’est d’une certaine manière d’inscrire la croyance dans une ‘longue durée’ sur le plan temporel, et dans une cohérence, une consistance sur le plan intellectuel. [...] non pas que Michel de Certeau songe à répudier la question de l’historicité des croyances et des opinions ni à esquiver le problème de leur presente intelligibilité; mais il les entend autrement, dans un rapport complexe d’interactions et de déplacements réciproques [...]”. 21 Esta “maneira de viver e de representar-se” pode ser reportada à noção de “artes da existência”, constituída por Michel Foucault: “Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”. FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade: o uso dos prazeres. 8a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p. 15. Desta maneira, o ideal contemplativo torna-se indissociável de uma apropriação particular, promovida por cada agente, cf. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit.

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No epistolário da Madre, como na música de Mozart, a ortodoxia era tão assumida

quanto recoberta pela emoção.22

Traçando hipóteses

Que fundamentação teórica viabilizaria a interpretação histórica de um objeto

tão peculiar quanto o ideal contemplativo, expresso pela sutileza de sensibilidades e

silenciamentos no campo do religioso? Uma importante pista neste sentido me foi

fornecida pelos trabalhos de Michel de Certeau, acompanhados pelos artigos de

Dominique Julia23, Philippe Boutry24 e Luce Giard25: ao promover, nos anos 70-80, uma

série de pesquisas sobre a experiência mística dos séculos XVI-XVII, Certeau não

recorreu a uma abordagem serial apoiada na quantificação, nem a uma história das

idéias pautada na pertença social dos vocábulos, mas voltou-se para as práticas de

enunciação, relacionando-as às tensões emergentes em uma dada sociedade. O

procedimento analítico adotado por Certeau alavancou alguns desafios à historiografia,

enfrentados (talvez com demasiada ousadia) pelas hipóteses nesta tese.

Inicialmente, tomando por base a preocupação de Certeau em demarcar as

relações internas do discurso místico (uma organização do espaço lingüístico), sem

identificá-lo a proposições particulares (um conteúdo), passei a indagar: qual seria a

lógica operatória constituinte do ideal contemplativo? Em uma tentativa de resposta,

considerei que o ideal contemplativo, baseando-se na distinção ontológica Criador-

criatura, propiciava um processo de subjetivação (da pessoa) e hierarquização (da ordem

sócio-religiosa) pelo viés do “negativo”: ao reafirmar as lacunas do humano (sua

22 CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. 3a. ed. Rio de Janeiro: Alhambra, 1977. p. 123-125: “Mozart é mais rico em invenção melódica do que qualquer outro compositor. Mas nem sempre sua melodia é pessoal. Em parte se explica isso pelos conceitos estéticos do século XVIII [...] porém, [...] a melodia não importa tanto; importa a maneira de que o compositor sabe aproveitar suas invenções melódicas [...] Aquela ‘impersonalidade’ da melodia mozartiana [...] é mais ortodoxo: resolve seus problemas conforme cânones estritos. Mozart desenvolve seus temas de tal maneira que a solução mais regular também é a melhor e, às vezes, até a mais surpreendente. O forte senso arquitetônico do mestre não lhe proíbe as licenças; torna-as desnecessárias. [...] Em Mozart, a música dramática atinge a coerência da música sinfônica”. 23 JULIA, Dominique. Une histoire en actes. In: GIARD, Luce (org.). Le Voyage Mystique, Michel de Certeau. Paris: RSR, 1988. 24 BOUTRY, Philippe. Op. Cit. Também foi bastante elucidativa a conferência realizada em conjunto por Philippe Boutry e Dominique Julia, Autor de Michel de Certeau, em 11 mai. 2004, no Centre d’Anthropologie Religieuse Europeénne (EHESS), como parte integrante do curso L’Historiographie Religieuse au XXe. Siècle. 25 GIARD, Luce. Mystique et politique, ou l’institution comme object second. In: GIARD, Luce, MARTIN, Hervé e REVEL, Jacques (org.). Op. Cit.

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incompletude, sua imperfeição), ele as tornava condição para a busca de uma relação

unitiva com o Outro/os outros, isto é, para a “santificação”.26

Em tal processo, as práticas discursivas promovidas de forma ilocucionária,

exerciam um papel preponderante: elas efetivavam as interligações entre o “eu”

(humano) e o “tu” divino (ainda que tal referência sagrada estivesse apenas implícita no

texto). Assim, o estudo do ideal contemplativo, a partir da correspondência de Madre

Maria José, adquire um importante respaldo teórico.

Como minha primeira hipótese de pesquisa, considero, portanto, que o ideal

contemplativo formulado pela Madre configurava-se a partir desta negatividade

fundante dos seres, manifestada por sua escrita epistolar. Tratava-se, porém, de um

negativo que não apresentava facetas exclusivamente desestruturantes, podendo ser-lhe

atribuída uma função mediadora: segundo a semióloga e psicanalista Julia Kristeva, é a

falta, a ausência, que propicia a passagem de um estado (do que ainda não é) a outro (o

que vem a ser) e suscita, assim, uma nova relação com a realidade:

É sob esta forma que a lógica do discurso, em suas elaborações tardias mais sutis (na dialética de Hegel), reconhecerá a negação, na medida em que ela é um procedimento que serve para articular a afirmação de uma identidade. [...] Refletindo sobre a constituição do sujeito falante, Freud encontrou em sua base, no ponto portanto onde o inconsciente sobrenada sutilmente num julgamento consciente, a operação da negação, a Verneinung, (traduzida em francês por denegação). [...] Este movimento que faz lembrar a Aufhebung hegeliana, supõe as três fases da negação hegeliana e é expresso claramente pelo sentido filosófico do termo Aufhebung (= negar, suprimir e conservar, portanto, ‘suspender profundamente’). [...] para Freud, [...] a negação [...] é o próprio gesto que constitui o sujeito racional, o sujeito lógico, o sujeito que implica o discurso; ou seja, a problemática do signo. 27

Uma segunda ênfase foi conferida por Certeau à delimitação histórica do

discurso místico, por ele temporalmente circunscrito entre os séculos XIII e XVII, bem

como culturalmente diferenciado das demais produções religiosas (como a teologia

positiva). Deparei-me, portanto, com a seguinte pergunta: como dispor o ideal

contemplativo em uma cronologia, identificando suas variantes?

26 Esta lógica operatória, pautada no “negativo”, é similar à tríplice dinâmica elaborada por Louis Dumont para a categoria “idéia-valor”, centrada na “inversão”, cf. DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 259: “Suponhamos agora que [...] estejamos de acordo para não separar uma idéia e o seu valor e, portanto, para adotar como objeto de estudo a configuração formada pelas idéias-valores ou os valores-idéias. Pode-se objetar que entidades tão complexas serão difíceis de tratar. Será realmente possível dispor de meios para dominar esses objetos multidimensionais em suas inter-relações? [...] Principiemos por três observações. Em primeiro lugar, a configuração é sui generis, idéia e valores são hierarquizados de um modo particular. Em seguida, essa hierarquia inclui a inversão como uma de suas propriedades. Enfim, a configuração é assim, no caso normal, segmentada”. 27 KRISTEVA, Julia. Poesia e negatividade. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 168-169; 191.

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Numa reconstituição genealógica,28 pude discernir duas matrizes culturais

instauradoras do ideal contemplativo, estendidas na longa duração. Uma delas,

conhecida como “teologia apofática” ou “mística”, tributária do neoplatonismo,

afirmava o inefável da divindade; exemplarmente desenvolvida na obra de Pseudo-

Dionísio, ela foi resignificada pela espiritualidade do Carmelo Descalço, fazendo-se

bastante presente em são João da Cruz.29 A segunda, oriunda do pensamento

agostiniano, antevia Deus a partir da interioridade humana – a falta (o “pecado”)

originária, longe de impedir a união com o transcendente, a suscitava, ao incitar à busca

d’Aquele tido como condição de plenitude;30 não casualmente, santo Agostinho foi um

dos autores prediletos de Teresa d’Ávila. 31 Desta maneira, enquanto a teologia

apofática direcionava a vivência religiosa para o êxtase – suspensão de sentido32-, numa

via alinhada do “negativo” (o humano) para o “negativo” (o Mistério), o pensamento

agostiniano vai entendê-la como subjetivação - produção de sentido - numa remissão do

“negativo” (o humano) para o “positivo” (a Revelação do Outro em si).

Formulei, então, minha segunda hipótese de pesquisa: a ocorrência de uma

apropriação seletiva das matrizes do ideal contemplativo por Madre Maria José, que

evidenciou uma clara preferência pela vertente teresiana, não apenas por uma identidade

de gênero (vários textos da santa de Ávila foram privilegiadamente endereçados às suas

“irmãs”, abordando seu cotidiano, suas dificuldades, suas esperanças...) como,

principalmente, por seu realce à dimensão institucional do religioso.33 Além disso, as

obras de são João da Cruz, por exprimirem a relação conflitiva mantida por este autor

com a filosofia escolástica, foram relegadas a um parcial esquecimento, num contexto

28 FOUCAULT, Michel de. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 21. 29 GALILEA, Segundo. As Raízes da Espiritualidade Latino-Americana. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 17. 30 DALY, Gabriel. San Agustín y la teología moderna. In: La Espiritualidad Agustiniana y el Carisma de los Agustinos. Roma: Pubblicazioni Agostiniane, 1995. p. 26-27. 31 TERESA DE JESUS, santa. Livro da Vida 9,6. 4a. ed. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 66. 32 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA Julia. O Feminino e o Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 48: “A Idade Média prestava-se melhor ainda a essa exposição de experiências não representáveis. Hildegard de Bingen, Ângela de Foligno, para falar hoje só dessas duas, não dizem outra coisa: nossas vidas são flamejantes de sentido, mas esse incêndio não tem significação diretamente comunicável. [...]”. 33 A vinculação dos escritos teresianos a uma institucionalização do religioso foi decorrente de uma releitura francesa da espiritualidade carmelitana, promovida a partir do século XVII, cf. LE BRUN, Jacques. Le grand siècle de la spiritualité française et sés lendemains. In: Histoire spirituelle de la France. Paris: Beauchesne, 1964. p. 233-234: “[...] en Thérèse le 17e siècle verra avant tout la sainte de la réforme catholique, celle des Fondations, du retour à l’austérité primitive, exemple en outre de la conduite à tenir pour faire pièce aux protestants”. Madre Maria José travou contato com essa releitura por sua formação religiosa que, semelhante a da maioria das carmelitas, foi promovida em um internato católico mantido por uma Congregação oriunda da França.

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de hegemonia da Neocristandade.34 Todavia, a partir dos anos 40, a perspectiva

apofática ganhou maior relevância no epistolário da Madre, em paralelo à sua

revalorização pela Ordem do Carmelo Descalço, que encetara uma confrontação mais

radical com os valores da modernidade. Não casualmente, os escritos das duas

carmelitas que acederam aos altares no século XX, Teresinha de Lisieux e Elisabeth da

Trindade, portavam uma decisiva marca sanjuanista.35

A terceira abordagem de Michel de Certeau, retomada por esta pesquisa, remete

à vinculação do discurso místico às condições (atividades e lugares sociais) que o

tornaram possível sem que, com isso, tal escrita fosse reduzida a uma expressão direta

da realidade social (como um “reflexo” ou uma “representatividade”). Como então

interpretar as modalidades de uso do ideal contemplativo no epistolário de Madre Maria

José?

Esboço uma terceira hipótese como resposta a esta questão: postulo que o ideal

contemplativo, a despeito da apropriação seletiva de suas matrizes, foi também utilizado

pela Madre como um “hibridismo”,36 mesclando postulados agostinianos e dionisíacos,

teresianos e sanjuanistas, os quais, apesar de bem distintos, não são de todo

inconciliáveis.37 Tal articulação, diluidora das diferenças entre os dois fundadores do

Carmelo Descalço (e das modulações de poder daí oriundos), foi empreendida pela

Madre numa tentativa de endosso simbólico ao ideal contemplativo, em um contexto de

fortalecimento da vida claustral feminina no Brasil das primeiras décadas do século

XX.38

Proponho, em seguida, que este “hibridismo” foi ainda mais ampliado pela

articulação, promovida pela Madre, entre o ideal contemplativo e a teologia da

Neocristandade que, de cunho tomista, estava pautada não no viés do “negativo”, mas

34 BARUZI, Jean. Saint Jean de la Croix et le Probléme de l’Expérience Mystique. Paris: Salvator, 1999; LE BRUN, Jacques. De la critique textuelle à la lecture du texte. Le Débat, n. 49, mars-abril 1988. p. 111. 35 GAUCHER, Guy. Flammes d’Amour: Thérèse et Jean. Paris: Du Cerf. 1996; POIROT, Dominique. Jean de la Croix et l’Union à Dieu. Paris: Bayard, 1996 36 Oriunda da gramática da língua portuguesa, a terminologia “hibridismo” denomina a formação de palavras com elementos de idiomas diferentes. Seu uso nesta tese é revestido por uma conotação histórico-operatória, pelo qual os “idiomas” são entendidos como as duas matrizes culturais do cristianismo supracitadas. Destaco uma importante peculiaridade do “hibridismo” constituído por Madre Maria José: ele ateve-se às esferas da cultura “letrada” ou “erudita”, bem como à ortodoxia católica. 37 WILLIANS, Rowan. El futuro de la espiritualidad agustiniana. In: La Espiritualidad Agustiniana... Op. Cit. p. 30. 38 Esta mesma aglutinação foi reproduzida nos memoriais e biografias de Madre Maria José, cf. GALLIAN, Dante Marcello. Op Cit. p. 179: “Naqueles tempos de efervescência espiritual e de entusiasmo religioso, muitas das que buscavam os claustros teresianos eram moças do ‘alto mundo’, [...] conhecedoras da espiritualidade de Santa Teresa e de São João da Cruz”.

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no ideário da “participação”: segundo a escolástica, o ser humano contribuiria de forma

decisiva para sua união com a divindade, através do bom uso do livre arbítrio e da

prática das virtudes – tecia-se, assim, uma relação direcionada do “positivo” (o humano)

para o “positivo” (o divino).39 Para tanto, porém, a vontade pessoal deveria submeter-se

a um ascetismo específico, pautado no acatamento aos ensinamentos da Igreja e na

obediência a seus ministros ordenados, dado ser a instituição religiosa a mediadora

privilegiada entre a ordem terrena e a transcendente.

Como e por que Madre Maria José teria entrecruzado o ideal contemplativo com

o ideário da “participação”?40 Cogito que sendo um postulado basilar da

Neocristandade, tal ideário não poderia ser desconsiderado pela Madre, sob o risco de

depreciação da Ordem Teresiana no âmbito eclesial; afinal, numa Igreja

caracteristicamente romanizante, a adesão ao projeto da Restauração Católica era tida

como um dever moral.41 A isto acresceram-se elementos de cunho afetivo, que

interferiram nas escolhas promovidas por Madre Maria José: seu diretor espiritual por

mais de 30 anos, D. Sebastião Leme, a quem ela devotava imenso apreço, era também

um dos maiores expoentes da Neocristandade no Brasil. Nesta relação de fé e de

amizade, idéias e projetos eram intensamente partilhados.42

Metodologia em elipse

39 O pensamento tomista foi comentado por PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. Campinas: Ed. Unicamp/USP, 1994. 40 Durante a vida de Madre Maria José, agostinianismo e tomismo eram apresentados como perspectivas conflitantes, cf. STEENBERGHEN, Fernand van. La philosophie neo-scolastique. In: Bilan de la Théologie du XXe Siècle. Tounai-Paris: Casterman, 1970. p. 316-317. Somente no pós II Guerra, as leituras de viés agostiniano presentes no (neo)tomismo foram realçadas, cf. WILLIAMS, Rowan. Op. Cit. p. 35: “[...] se há descubierto que Santo Tomás es tan neoplatónico como aristotélico. Por esto, y porque Tomas de Aquino es un verdadero discípulo de Agustín”. 41 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 202-203: “[...] Assim, todo empenho santificador da Carmelita voltava-se, não para causas vagas ou genéricas, mas antes para propósitos e intenções bem específicos, tais como a vitória dos candidatos da Liga Católica nas eleições de 1934, ou a preservação das conquistas cristãs na nova carta de 1937. [...] a priora do Convento de Santa Teresa rezava e fazia rezar por todas as suas intenções e projetos importantes”. 42 Madre Maria José foi citada pelo cardeal como a “mais importante coadjutora de [seus] trabalhos em Nosso Senhor”, cf. Carta de D. Sebastião Leme à Madre Maria José de Jesus, 7 jul, 1929, ASD, pasta 6; também citado por GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 203. Cf. VILLAÇA, Antônio Carlos. O Pensamento Católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 126: “Três amizades cultivou o Cardeal Leme, todas numa perspectiva altamente intelectual: a de Tristão, a de Madre Maria José de Jesus, a filha de Capistrano que foi Priora do Convento de Santa Teresa, e a do douto jesuíta Leonel Franca. Alceu era, para D. Leme, o mundo no sentido da cultura literária e das questões político-sociais. Madre Maria José era a oração (além de ser a poesia). E o Padre Franca era a sabedoria”.

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Por ratificar o caráter heurístico atribuído à inquirição43, redigi esta tese em

cinco capítulos, todos remetendo repetidamente à “trama” constituída pelas duas

problemáticas de pesquisa: como entender o intenso desgaste físico e psíquico de Madre

Maria José, que culminou em sua doença e morte? E como interpretar seu endosso às

desigualdades e hierarquias sócio-religiosas? Mas, para que tais questões pudessem ser

respondidas, os capítulos foram encadeados em uma modalidade “espiralada” de

redação: cada um deles retoma o anterior, não para somar-lhe novas informações (o que

reduziria esta pesquisa a um simples inventário, num processo cumulativo infinito), mas

para defrontar, sob prismas diversos, as hipóteses configuradoras do ideal

contemplativo com a tríplice experiência que, descrita pela Madre em seu epistolário,

norteia o objetivo desta tese: o processo de subjetivação, a prática de escrita e o

exercício de poder. Desta maneira, mais do que o texto, é o pesquisador/leitor quem se

move através dele, fazendo-o girar conforme seus diferentes interesses em interpretar.44

Daí as sucessivas remissões, em notas de rodapé, a abordagens similares promovidas

em diferentes capítulos, pois os assuntos tratados entrelaçam-se, sem com isso

confundirem-se. Foi também neste sentido que resolvi escrever esta introdução em

primeira pessoa, demarcando mais claramente meus lugares historiográficos e

existenciais de fala, para então compor o restante da tese em voz passiva, recurso que,

além de manter maior afinidade com a “afetação” postulada pelo ideal contemplativo,

permite ao leitor mais facilmente inserir-se na narrativa.

Este discurso em moldes “elípticos” esboça uma temporalidade

“tridimensional”, pois cada um dos capítulos, ao avançar em sua exposição, entretece o

já vivido pelos sujeitos, principalmente por Madre Maria José, ao acontecimento

presentificado pelo ato da escrita e às expectativas concernentes ao ainda por vir.

Portanto, nesta narrativa em movimento espiral, os recortes temporais

(passado/presente/futuro) tornam-se “virtuais”: sem obedecerem a uma lógica causal,

eles emergem de forma concomitante e são atualizados (logo, mesclados e

transformados) no processo de elaboração textual.

43 REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 36. 44 A sugestão para tal escrita adveio da instigante obra de Afonso Romano de Sant’Anna, Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, onde o autor afirma à p. 23. “[...] certas composições poéticas barrocas se assemelham às estruturas musicais de Bach, em que um tema é lançado por uma voz ou instrumento e logo recuperado, contraposto, desenvolvido por outras vozes e instrumentos [...] Mas a escrita no papel é linear, a não ser que resgatada pela poesia, e é difícil o ensaio contrapontístico”.

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Estabeleço, porém, um ponto nodal, suporte ao desdobramento desta abordagem

espiralada, ao enfocar meu objeto de estudo – o ideal contemplativo – em uma escala

micro. Privilegiando sua compreensão através da correspondência de Madre Maria José,

eu circunscrevo suas condições de possibilidade numa experiência social específica,

articulando-o, numa mesma sinuosidade elíptica (em idas e vindas), ao campo macro do

imaginário católico institucionalmente ordenado.45

Cada capítulo, por sua vez, apresenta uma hipótese específica, mas

complementar às três principais. Desta maneira, o capítulo inicial aborda o “negativo”

constituinte do ideal contemplativo através da noção agostiniana de “pessoa”, a qual,

conforme explicitado pelo antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, concebia o humano

como um ser em conflito: era no embate incessante entre uma verdade de si e uma

vontade própria que processar-se-ia a instauração da interioridade.46 Afirmo, neste

capítulo, que a prática epistolar de Madre Maria José propugnava uma

interioridade/subjetivação silenciosa, passiva, contemplativa, por considerar o calar da

vontade como condição para o vislumbre da Verdade. Com isso, a Madre tendeu ao

esvaziamento da dimensão conflitiva (portanto, relacional) do “ser pessoa” (embora não

a refutasse totalmente), sobrevalorizando, em paralelo, seu aspecto lacunar. Nesta

transposição, o ideal contemplativo adquiriu uma faceta mais conforme aos valores da

Neocristandade.

No segundo capítulo, o ideal contemplativo é reconstituído com base nas leituras

promovidas por Madre Maria José das tradições fundantes do Carmelo Descalço,

destacadamente da obra de santa Teresa d’Ávila e de são João da Cruz, ambas remetidas

por ela a uma concepção de “hierarquia”, entendida como um “começo santo” (isto é,

uma tradição basilar).47 Cogito, então, que através dessas apropriações, a Madre

45 Cf. REVEL, Jacques (org). Op. Cit. 46 DUARTE, Luiz Fernando Dias. História e etnografia dos saberes psicológicos. In: Clio-Psyché: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ 2001. p. 35: “É possível que encontremos, em outras culturas, algo aproximável à nossa idéia de verdade, algo equiparável à nossa idéia de vontade, ou mesmo algo evocativo de nossa idéia de interioridade. Mas é exclusivamente em nossa cultura que vemos a demanda de coexistência desses três valores; ou seja, que a relação do homem consigo deva estar permanentemente regida por certa tensão constitutiva entre verdade de si, vontade de si e interioridade (lugar onde verdade e vontade se articulam, se movem e se tensionam reciprocamente). Ver também DUARTE, Luiz Fernando Dias e GUIMBELLI, Emerson A. As concepções cristã e moderna de pessoa: paradoxos de uma continuidade. Anuário antropológico, Rio de Janeiro, v. 93, 77-109, 1995. 47 BERTRAND, Dominique. La théologie négative de Michel de Certeau. In: CENTRE THOMAS-MORE (org.). Michel de Certeau ou la Différence Chrétienne. Paris: Du Cerf, 1991. p. 113-114: “Selon lui [Pseudo-Denys], en chacun, selon ce qu’il est, la hiérarchie est le commencement (‘archie’= ‘commencement’) saint (‘hiér’= ‘saint’) qui fait l’unité entre lui et la théarchie (le commencement, qu’est Dieu même); elle est en elle même le mouvement intérieur propre à chacun d’unification [...]”. Michel de

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resignificou, ainda que parcialmente, a espiritualidade teresiana, revestindo-a com um

expressivo viés ascético e retirando grande parte da autonomia do sujeito na relação

com o transcendente, transferida para o âmbito institucional; todavia, foi justamente este

deslocamento que possibilitou ao ideal contemplativo preservar sua legitimidade

durante a Restauração Católica.

O terceiro capítulo associa o ideal contemplativo à simbólica da “paixão”48, por

sua vez corporificada nas duas principais práticas cotidianas de uma carmelita descalça,

citadas pela correspondência da Madre: a oração e as mortificações. Postulo que tal

simbólica incidia sobre o processo de subjetivação mediante uma dupla reordenação de

sentido: enquanto a penitência materializava o “negativo” do humano, a prece o

predispunha à relação com um Outro/com os outros. Tal repartição, todavia, além de

não ser absoluta (a ascese era indissociável da súplica e da oblação), logo espraiou-se

em vários significados, que remetiam a espiritualidades distintas, tensionalmente

combinados no ideal contemplativo: a ótica adoradora dos textos sanjuanistas, a versão

expiatória da Neocristandade, a dimensão dialogal da obra teresiana...

No quarto capítulo, a subjetivação é vinculada a um processo de esvaziamento

da “autoria” em prol da “autoridade”, delineado pela correspondência.49 Importava à

Madre dotar de credibilidade seus escritos, condição necessária para um “apostolado

letrado”, o que a fez apropriar-se de distintos padrões epistolares (de civilidade, de

introspecção romântica...), recomendados por manuais ou circulantes nos meios

elitizados. A despeito disso, longe de aterem-se a um rigoroso formalismo estilístico,

mas incorporando elementos da oralidade, os relatos de Madre Maria José comportavam

traços bastante originais. De forma concomitante, implícitos à narrativa, os leitores

Certeau concebe o evento fundador, de forma distinta da reflexão hegemônica no catolicismo, como uma ruptura instauradora: o “começo”, por seu desaparecimento, possibilita uma escrita plural e uma prática comunitária, que não podem ser redutíveis a um elemento comum. CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit. 1177-1214, jun. 1971. 48 DUARTE, Luiz Fernando Dias. Sujeito, soberano assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental moderna. In: ARÁN, Márcia (org.). Soberanias. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2203. p. 183-184 : “O sujeito romântico é um complexo campo de lutas, objeto constante da ficção oitocentista, em que avultam as inquietantes e irresistíveis determinações da ‘paixão’. Essa categoria, derivada do vocabulário estóico, enfatiza a dimensão passiva (passio) do sujeito [...] Mas não se trata apenas – como se pode reconhecer no acervo das tematizações literárias de nossa cultura – de sujeição. As paixões se entrechocam com a onipresente ‘vontade’, sinal da singularidade individual em seu esforço de permanência e afirmação. [...] Notável paradoxo esse em que a vontade é paixão, característico do Romantismo tardio, maduro senhor dos recursos de crítica à razão afinados desde o século XVIII”. 49 CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Op. Cit. p. 169: “Qu’est-ce qui autorise votre discours? Il renvoyait mes paroles au lieu qui en est la condition de possibilité [...] Car le discours qui ne recourt pas à des ‘autorités’ n’est pas pour autant délié d’une autorité qui l’accrédite. Au contraire, moins il presente de preuves (moins il permet un controle à ses lecteurs ou à ses auditeurs) plus il suppose une accréditation”.

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também constituíam-se em “lugares de autoridade”, pois a possibilidade de alterarem

suas ações e sensibilidades (vontade/interioridade) em decorrência das missivas lhes

conferia um caráter de verdade.

Já no quinto capítulo, reportando-me à noção de “estilo” 50 elaborada por Michel

de

Certeau, considero que o relato epistolar de Madre Maria José propiciava a subjetivação

ao reconfigurar mimeticamente o sujeito da escrita e seus leitores à imagem da segunda

Pessoa Divina, Jesus Cristo. Tal proceder era efetivado através do recurso a figuras de

linguagem (como metáforas e metonímias), que eram, contudo, dotadas de um emprego

ambivalente, ora mais próximo à literatura mística da época moderna (pautada na

coincidatio oppositorum, como os textos teresianos e os sanjuanistas), ora em remissão

a discursos hagiográficos contemporâneos (embasados no conceito de representação e

referendados pela Neocristandade).

Em sintonia com tal metodologia, selecionei como fonte prioritária de pesquisa

um corpus textual também circunscrito ao plano micro – o acervo epistolar da Madre,

composto por quase 1700 cartas e bilhetes, compilados nos volumes 6 a 11 da Causa

Canonizationis Servae Dei Mariae Ioseph a Iesu, O.C.D. –, escolha que acompanhou a

valorização desta modalidade de escrita pela historiografia.51 Este conjunto documental

é integrado apenas pela correspondência ativa (pois a maior parte das cartas recebidas

pela Madre foi perdida), encontrando-se arquivado no Convento de Santa Teresa.

Aproveito para reiterar meus agradecimentos às prioras, Madre Teresinha e Madre

Maria Auxiliadora, que nos cinco últimos anos gentilmente facultaram tal acervo

privado à minha consulta.

Um segundo grupo de fontes utilizado nesta tese é composto por memoriais de

carmelitas descalças, comumente escritos pelas próprias monjas. Nos conventos

teresianos é costume ser redigida uma síntese da trajetória de vida de cada religiosa

recém-falecida; no caso das madres fundadoras ou de irmãs que tiveram relevância na

vida comunitária, esse boletim muitas vezes assume a forma de um pequeno livro. Nesta

50 Id. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 179-180: “As caminhadas dos pedestres apresentam uma série de percursos variáveis assimiláveis a ‘torneios’ ou ‘figuras de estilo’. [...] O estilo especifica ‘uma estrutura lingüística que manifesta no plano simbólico [...] a maneira de ser no mundo fundamental de um homem’. [Greimas]. Conota um singular. O uso define o fenômeno social pelo qual um sistema de comunicação se manifesta de fato: remete a uma norma. O estilo e o uso visam, ambos, uma ‘maneira de fazer’, mas um como um tratamento singular do simbólico, o outro como elemento de um código. Eles se cruzam para formar um estilo do uso, maneira de ser e maneira de fazer”. 51 GOMES, Ângela de Castro. Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 10.

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pesquisa, recorri à biografias de Madre Maria José de Jesus, bem como aos memoriais

referentes a religiosas que tenham sido destinatárias ou citadas nas cartas estudadas. É

importante considerar-se que tais escritos possuem uma narrativa mais modelar do que

histórica, próxima ao estilo das hagiografias.52

Consultei, ainda, a legislação eclesiástica, principalmente os documentos

emitidos pela Ordem do Carmelo Descalço. Grande parte desses registros encontra-se

disponível nos dois Carmelos localizados na cidade do Rio de Janeiro, bem como no

Centro de Espiritualidade Teresiana. O restante foi levantado na Biblioteca da Cúria

Metropolitana da Arquidiocese do Rio de Janeiro, bem como na Biblioteca Nacional,

assim como no Institut Catholique e na Bibliothèque Nationale, na França.

Na seqüência de minhas leituras, evidenciou-se cada vez mais a importância,

atribuída pela Madre, ao tornar-se “pessoa”, quer dizer, ao “santificar-se”, operação que

ela mediou pela correspondência. Esta monja carmelita descalça, que viveu na capital da

República ao longo da primeira metade do século XX, deixou-nos uma valiosa

produção epistolar, um ideal de espiritualidade e inúmeras indagações acerca do esforço

de cada ser humano para constituir-se, a partir da relação com o “negativo” -

vislumbrado como “diferença” -, em sujeito de sua própria história.

52 CERTEAU, Michel de. Uma variante: a edificação hagio-gráfica. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. Cf. também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 17.

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Sei que dia virá em que Vós, terno Amante, Meu Amor, meu Jesus, com divina ternura, Estando junto a mim Vos fingireis distante,

E eu vagarei a sós no horror da noite escura.

Meu Jesus, Amor eterno Quando me virdes assim, Vosso Coração tão terno

Tenha piedade de mim.

- De Rainha, mendiga, e de esposa, estrangeira – Vagabunda errarei pelas ruas e praças, Procurando com dor pela cidade inteira

O Esposo alvo e vermelho, o Deus cheio de graças

A que outrora bebia em taça de ouro fino À direita do Rei, em seu paço tão nobre

A que outrora dormiu no Coração divino, Erra enferma de amor, abandonada e pobre...

Ó dor! Receberei meu Esposo em meus braços,

E a seus pés ficarei como um bruto jumento; Ele me negará seus divinos abraços,

E eu não saberei mais que coisa é o Sacramento!

Que tormento, a oração... Tudo, tudo, tortura: Como parece longe o Deus que está tão perto!

Nem ar, nem luz, nem sol, nem água, nem verdura: É montanha sem relva, é maninho deserto.

Ah! Que farei então? Falta-me a Eucaristia,

A oração meu Jesus – meu Deus que amo tanto... Sim, mas não faltará meu doce Amor – Maria.

E eu me agasalharei debaixo de seu manto. [...]

Noite escura, Madre Maria José de Jesus, 1916.53

53 JESUS, Maria José de. Deus Presente. 2a. ed. São Paulo: Paulus, 1996. p. 99-100.

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CAPÍTULO 1

UM IDEAL CONTEMPLATIVO

1.1- “Isto é o meu corpo” (Lc 22, 19) 54

Em 11 de março de 1959, aos 77 anos, falecia Madre Maria José de Jesus, de

síncope cardíaca, na Casa de Saúde Santa Juliana. Uma morte peculiar, por ter ocorrido

em um hospital psiquiátrico, onde a religiosa fora internada para tratamento de séria

crise, iniciada meses antes. Mas desde 1956, quando foi eleita pela nona vez priora do

Convento de Santa Teresa, das Carmelitas Descalças, no Rio de Janeiro, a saúde de

Madre Maria José já mostrava sinais de debilidade: além da catarata que lhe reduzia a

visão, seus pés estavam deformados, necessitando apoiar-se em dois bastões para

locomover-se; seu coração apresentava hipertrofia ganglionar, e sofria de dores

reumáticas.55 Mais ainda: a Madre se sentia consumida por uma crescente angústia,

como ela própria expressou na carta que enviara à Sóror Josefina, religiosa

concepcionista do Mosteiro da Ajuda: “[...] sou um caquinho, um trapinho de Nossa

Senhora; para nada presto, a não ser para atrair a Misericórdia de Deus com a minha

miséria infinita.” 56

Os padecimentos perduraram nos meses seguintes, a ponto do cardeal do Rio de

Janeiro, D. Jaime de Barros Câmara, numa visita promovida ao Carmelo em novembro

de 1957, ter isentado Madre Maria José do cumprimento de seus deveres conventuais

até fevereiro. Mas o repouso não assegurou a melhora: em 25 de maio de 1958, a Madre

sofreu o primeiro distúrbio no miocárdio e seus relatos descreveram a gravidade da

situação: [...] tenho andado tão ruim de saúde desde novembro, que não tenho coragem para nada. Talvez a morte (ou o martírio lento, pior do que ela) esteja perto. Seja o que Deus quiser, só quero que peça para mim e para as minhas filhinhas o santo amor de

54 As citações bíblicas deste capítulo foram retiradas do Evangelho de Lucas, capítulo 22, que contém o relato da chamada “última ceia” de Cristo, sucedido por sua prisão e crucifixão. O cristianismo interpreta esta refeição, realizada à moda judia de celebrar a Páscoa, como o fundamento do sacramento da eucaristia (termo grego eucharistein, que significa ação de graças) – ela torna-se expressão da bem-aventurança advinda da união entre o humano e o divino. Mas, de forma distinta dos outros dois Evangelhos sinóticos, o relato lucano indica uma abstinência prévia de Jesus – ao mesmo tempo em que oferece o pão e o vinho aos discípulos, ele se priva de tomá-los (Lc 22, 16-18), renúncia tradutora, por analogia, do esvaziamento de si postulado pelo ideal contemplativo, cf. Julio de Santa Ana, Pão, Vinho e Amizade, Rio de Janeiro: CEDI, 1986, p. 62-63 e AUNEAU, J. et al. Evangélicos Sinóticos e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1986. 234-236. 55 Cf. JESUS, Maria José de, madre. In: Deus Presente. Op. Cit. p. 228-229. Ver Anexo 1. 56 Carta 1301, à Sóror Josefina, 28 ago. 1956.

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Deus. [...] Reze, filhinha, com I.[rmã] Ant[onietta] e todas pelo nosso Carmelo. A situação é dificílima: quatro velhas quase inteiramente como crianças e mais duas (uma sou eu) que não prestam mais para nada [...].57

A partir de então, o quadro agravou-se: entre 22 e 31 de outubro, Madre Maria

José foi internada no Hospital Beneficência Portuguesa, para exames clínicos; em 3 de

dezembro, foi dispensada pelo cardeal de todas as suas atividades, respondendo a

subpriora pela direção da comunidade religiosa; em 9 de dezembro, sendo seu estado de

saúde cada vez mais precário, foi internada pela derradeira vez, como narrado em uma

de suas biografias: À noite, principalmente, Nossa Madre não conseguia conciliar o sono. A

lembrança das suas inúmeras faltas triturava-a. Atribuindo tudo ao físico, pensou tratar-se de esgotamento nervoso. Ela mesma chamou médico psiquiatra, da sua confiança. Consultou-o no locutório, só com ele [...]

A primeira receita não tendo produzido resultado satisfatório, foi novamente chamado. Aumentou a dose dos calmantes, asseverando que a faria dormir. [...] Fraquíssima como se encontrava, pois havendo recomeçado o tratamento do coração, continuava a passar mal do estômago, o efeito da dose elevada dos calmantes não foi o que se esperava. [...] sobreveio excitação com febre... [...] A violência do sofrimento moral aumentava cada vez mais. [...] não se alimentava [...] Delirava seguidamente: Se ao menos pudesse arrepender-me dos meus pecados! Ficarei separada de Deus para sempre! [...] O médico clínico chegou depois [...] Achou o seu estado grave. O coração muito fraco, o pulso falhando... podia sobrevir um colapso. [...] Antes de se retirar, o Doutor opinou ser melhor transportá-la para uma Casa de Saúde e aconselhou chamar o psiquiatra que a assistia [...] decidiram a partida de Nossa Madre.58

Os três meses passados na Casa de Saúde Santa Juliana tornaram ainda mais

dramáticas as circunstâncias da morte de Madre Maria José, descritas ao longo de 13

bilhetes enviados por ela às suas irmãs do Convento de Santa Teresa. Através deles, é

possível acompanhar a agonia da Madre: “Vivo pensando em VV.CC. e com tanto

remorso, com quanta dor! O estado de minha alma é de um desespero horrível, e fico

sempre pior, mais cheia de pecados. Querem que eu comungue; mas seria um pecado

como nunca houve no mundo.” 59 Seu sofrimento não só prosseguia – “Continuo muito

mal” 60 -, como piorava cada vez mais: “Minhas filhinhas, recebi e agradeço tudo.

Deus pague a cada uma. O dia hoje [seu aniversário, 18 de fevereiro] tem sido horrível

57 Carta 1381, à Ir. Maria do Carmo, do Carmelo de Tremembé, 16 de jun. 1958. 58 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina do, irmã. Memorial da Vida de Madre Maria José de Jesus, carmelita descalça. Rio de Janeiro: Convento de Santa Teresa, 1968. p. 317-320. 59 Carta 1470, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 3 fev. 1959. 60 Carta 1471, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, fev. 1959.

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para mim; os remorsos e terrores me põem pior”.61 Por fim, um último escrito, já quase

ilegível: “Minhas filhas... filhas, a cruz... Eu mesma não tenho mais força sobre mim...

A Irmã é que dá conta de mim... Na dor... Peçam... filhas...”. 62

Tal desfecho biográfico consternou – e também confundiu – a muitos. O que

teria provocado tamanha dor existencial, paralela à consumação orgânica, que conferiu

ao falecimento de Madre Maria José aspectos tão soturnos? Para a maioria dos

eclesiásticos que a conheciam, a crise vivida pela Madre constituíra-se em uma

“provação espiritual”, manifestada patologicamente através de sintomas físicos e

psicológicos. Assim se expressara o cardeal D. Jaime, pouco antes da derradeira

internação: “Não me admiro de que os médicos não encontrem a causa dos males da R.

Me. Maria José. A meu ver trata-se de uma provação de Nosso Senhor para aumentar

seus merecimentos. É aquela noite de trevas de que fala o Doutor Carmelitano [S. João

da Cruz]”.63 Décadas depois, D. Bernardo Schub, beneditino que fora confessor da

Madre, refletia: [...] quando porém chegaram os últimos anos de sua vida... é difícil falar sobre esse assunto, porque eu presenciei... o que foi aquela angústia toda? O que foi aquela agonia? [...] não creio que tenha sido uma consciência intranqüila e insegura. Foi uma angústia mortal! Ainda vejo como Madre Maria José tremia com os lábios e não conseguia se exprimir!... Trata-se da alma na presença de Deus. Não vou dizer presença angustiante, isto não existe! Mas uma angústia da alma diante deste maravilhoso Deus. Da parte de Deus é um sinal de santidade que se aproxima; da parte da alma, é uma angústia porque não sabe corresponder. Isto é uma purificação fora do comum!64

Considerando-se, porém, o ocorrido sob um prisma histórico-cultural,65 pode-se

cogitar que a crise sofrida por Madre Maria José esteve associada à tentativa de

reordenação de determinados princípios do monaquismo feminino, encetada pelo

Magistério eclesiástico nos anos 50. As sugestões de mudanças haviam sido recebidas

61 Carta 1475, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 18 fev. 1959. 62 Carta 1484, à Ir. Inês do Coração de Maria, s. d., entregue pelas irmãs da Casa de Saúde Santa Juliana, no dia do falecimento da Madre. 63 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina do, irmã. Op. cit. p. 325. 64 Conferência de D. Bernardo Schub, no centenário de nascimento de Madre Maria José, Convento de Santa Teresa, 1982. 65 A menção às interpretações teológicas supra citadas tem por objetivo delimitar, pela diferença, o “lugar de produção” da reflexão historiográfica, sem tecer-se quaisquer juízos de valor sobre as mesmas.

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pela Madre como o preâmbulo de uma dolorosa perda, que a conduziu a um estado-

limite de diluição de identidade, a culminar em sua morte.66

O epistolário da Madre fornece alguns indícios desse dramático episódio, mas a

maioria das remissões é promovida de forma indireta, sendo forçosa uma leitura nas

entrelinhas. Afinal, Madre Maria José era muito ciosa da discrição recomendada às

religiosas, sobretudo no concernente às divergências internas aos mosteiros e às esferas

eclesiásticas. Assim, a carta escrita em francês e endereçada, em 17 de junho de 1952,

ao cardeal Adeodato G. Piazza, carmelita descalço e prefeito da Sagrada Congregação

Consistorial, no Vaticano,67 constituiu uma rara exceção ao meticuloso silêncio da

Madre. Redigida numa época em que não ocupava o cargo de priora, e sim o de mestra

de noviças (o que indica a gravidade da situação que entrevia),68 Madre Maria José

expunha, nesta missiva, suas discordâncias quanto a alguns elementos da Constituição

Apostólica Sponsa Christi, instituída por Pio XII em novembro de 1950. Nela, a Madre

dizia:

Eminence, nous souffrons à la pensée que l’on veut déformer Notre Sainte Ordre, détruire ce qui a coûté tant de travail à Notre Sainte Mère. La Constitution Sponsa Christi est très belle et sage, mais les interprétations et comentaires qu’on y veut ajouter, nous font peur. Il paraît qu’il s’agit d’une Supérieure Générale, des Mères chargées de visiter des Carmels, de maison de noviciat commun, de changement de Religieuses d’un Carmel à un autre, tout comme les Congrégations modernes. N’es-ce pas, que c’est détruire complètement la Reforme de Notre Sainte Mère? [...]

V. Eminence, comme Cardinal Protecteur et surtout comme Fils de Notre Sainte Ordre, peut défendre et sauver nos chers ‘colombiers de la Vierge’. Que les Carmels qui ont du bien aident matériellement ceux qui son pauvres, c’est très juste. Mais pour le reste, c’est absurde. 69

66 “L’écriture que je dédie aux discours mystiques de (ou sur) la présence (de Dieu) a pour statut de ne pas en être. Elle se produit à partir de ce deuil, mais un deuil inaccepté, devenu la maladie d’être séparé [...]U n manquant fait écrire.” CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Paris: Gallimard, 1982. p. 9 67 A Sagrada Congregação Consistorial era a entidade da Santa Sé responsável pela apreciação das questões referentes aos bispos. DELGADO, Gregório. La Curia Romana: el govierno central de la Iglesia. Pamplona, Espanha: Ed. Universidad de Navarra, 1973. p. 321. 68 A despeito de pressupor-se que a Madre em exercício tenha apoiado esta iniciativa, as carmelitas descalças poderiam reportar-se diretamente a seus superiores, sem serem obstadas por qualquer veto da priora, cf. Regras e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro, 1929. Art. 280. p. 181-182. 69 Carta 1043, ao cardeal Piazza, 17 jun. 1952.

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Algumas propostas contidas na Sponsa Christi, considerada pelo cardeal Valério

Valeri, prefeito da Sagrada Congregação dos Religiosos,70 “[...] o documento mais

importante sobre o Instituto monástico emanado da Santa Sé desde o Concílio de

Trento”,71 poderiam, segundo o entendimento de Madre Maria José, pôr em risco o

legado sagrado de uma tradição secular. O foco da discussão, aparentemente, estava

centrado em pontos cruciais das Constituições teresianas, que dispunham acerca da

exclusividade da vida claustral feminina, interditando qualquer prática de apostolado

exterior (como ensino, obras sociais...), bem como assegurando a autonomia

administrativa dos conventos e o poder decisório de cada priora. Mas o que a carta de

Madre Maria José efetivamente defendia era um ideal contemplativo72 que, integrante

do imaginário católico,73 fomentava sua maneira de estar no mundo (uma ética),

reconhecendo-se nele (uma subjetividade).74 Formulado nos primeiros tempos do

cristianismo em comunidades orientais, o ideal contemplativo adquiriu contornos

próprios no Ocidente com o pensamento agostiniano, sendo aí mais difundido com as

reformas de diferentes Ordens monásticas, a partir do século XII; quatrocentos anos

depois, revestiu-se de uma formulação específica com as fundações do Carmelo

Descalço, empreendidas por santa Teresa d’Ávila e são João da Cruz.75

70 A Sagrada Congregação dos Religiosos era a entidade da Santa Sé responsável pela apreciação das questões referentes aos religiosos de ambos os sexos. Posteriormente, sob o pontificado de Paulo VI, passou a denominar-se Sagrada Congregação para os Religiosos e Institutos Seculares. DELGADO, Gregório. Op. Cit. p. 321-322. 71 VALERI, Valério. Apresentação. In: Legislação para as Monjas. Rio de Janeiro: Vozes, 1958. p. 5. 72 “Ideal contemplativo” é aqui apresentado como uma noção operatória fundamentada na concepção de “idéia-valor”, formulada por DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 259. Cf. Introdução, p. 5. 73 A noção de “imaginário católico” é desdobrada do conceito de “imaginário social”, elaborado por BACZO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. V. 5. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 309. 74 De acordo com a noção de “artes da existência”, constituída por FOUCAULT, Michel de. História da Sexualidade: o uso dos prazeres. 8a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p. 15. Tal prática adquire significados específicos na apropriação que lhe é conferida por cada agente social, de acordo com CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. 2a. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. Cf. Introdução, p. 6. 75 Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique... Paris: Beauchesne, 1937. Verbete “Contemplation”. Ver também VAZ, H. C. de Lima. Mística e política: a experiência mística na tradição

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Madre Maria José, em consonância com os postulados teológicos de sua época,

considerava a vida religiosa institucionalizada como a condição privilegiada para a

realização do ideal contemplativo, conforme se depreende da carta escrita por ela às

carmelitas de Santa Teresa, na primeira vez em que se viu obrigada a deixar a clausura,

devido à premência de uma intervenção cirúrgica: “Ah! Minhas filhinhas, como a nossa

vida é divina! Nossa Santa Madre fixou para nós na Terra o que viu em Deus. Fora do

nosso amado claustro, tudo é reboliço, agitação, atordoamento. Amem, minhas

queridas filhas, essa austeridade, esse silêncio, essas paredes nuas, essa solidão; amem

cada palmo desse bendito castelo que simboliza o castelo interior onde Deus toma as

suas delícias com a alma fiel.”76 A Madre, contudo, não limitava o ideal contemplativo

ao espaço conventual, estendendo-o a todos os católicos:

[...] minha filha, recomece sua vida espiritual sobre bases mais sólidas. Embora com sacrifício, faça todos os dias ao menos ½ hora de meditação, mas meditação séria, na qual veja bem seus defeitos e o modo de corrigi-los, seus deveres, as virtudes que deve praticar etc.; medite também a Paixão, as dores de Nossa Senhora, a eucaristia, a Bondade e a Grandeza de Deus, as verdades eternas etc. Faça com cuidado o exame de consciência geral e particular; mortifique-se o mais possível; guarde silêncio; fuja das vaidades, queixas, murmurações etc. seja humilde e caridosa com todos; aproveite bem o tempo, cumpra os deveres de seu estado; em todas as circunstâncias levante sempre seu espírito a Deus, e a Ele refira todas as coisas. Esta é a verdadeira piedade. [...] Se for de novo para a companhia de seu marido, faça antes muito seriamente um retiro e veja o caso de um modo sobrenatural.77

Assim, nas ocasiões em que vislumbrava alguma dúvida, deturpação ou

arrefecimento do que entendia ser tal ideal, Madre Maria José resistia, produzindo

textos, a seguir enviados a eclesiásticos (como a carta remetida ao cardeal Piazza),

monjas, freiras e leigos. Com isso, seu epistolário constituiu-se em baluarte de uma

proposição específica acerca da relação humano-divina no âmbito da Igreja Católica, o

que foi evidenciado por um dos comentários tecidos sobre sua correspondência, já

perpassado por um viés hagiográfico: “O escrever, para ela, era uma forma de se fazer

ocidental. In: BINGEMER, Maria Clara L. e BARTHOLO Jr., Roberto dos Santos (org.). Mística e Política. São Paulo: Loyola, 1994. Cf. Introdução, p. 6. 76 Carta 297, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 23 mar. 1932. 77 Cf. Carta 323, a Nila Prado, 14 jan. 1933.

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presente ao crescimento espiritual do próximo, ou às suas carências e dificuldades; era

uma maneira de prolongar a eficácia da sua ação educadora junto a seus filhos e

filhas. Para as carmelitas, como para os inúmeros dirigidos espirituais, do clero ou do

laicato, seus textos eram ponto de referência obrigatória no árduo caminho da

santidade.” 78

Essa prática de escrita sobrecarregou ainda mais o seu corpo, já desgastado pelas

austeridades monásticas (como os constantes jejuns, as poucas horas de sono...) e pela

multiplicidade de obrigações conventuais (o cumprimento da liturgia, os ofícios...),

limites acrescidos pelas várias doenças com que era acometida desde sua juventude

(gripes freqüentes, geralmente sucedidas por crises de asma e bronquite; insônia, varizes

e, posteriormente, reumatismo e problemas no coração...).79 Com isso, a

correspondência da Madre não apenas exprimia seu pensamento, como também

comportava, articulando-os, os sintomas de uma doença (uma semiologia) e a narrativa

de um sofrimento (uma história): “Escrevo-lhe à noite, da enfermaria onde estou com

uma crise de asma, só para não a deixar muito tempo sem umas palavrinhas que lhe

digam meu carinho, minhas preces, a companhia que lhe faço em espírito e a parte que

tomo no seu martírio.” 80

Daí os contornos conferidos por Madre Maria José à sua escrita epistolar: da

mesma forma que o padecimento e a morte de Jesus possibilitaram o surgimento de um

78 JESUS, Maria José de. Deus Presente. Op. Cit. p. 23. Cf. também “O costume de escrever bilhetinhos no Carmelo é antigo. [...] Madre Maria José, ao longo de sua vida, usou este meio para transmitir a doutrina carmelitana, para formar. Entre seus escritos, há um número abundante de bilhetes que revelam a preocupação formadora [...] Os seus escritos eram lidos com edificação. Escrevia cartas que eram verdadeiras ‘pastorais’ às filhas longínquas.” SCIADINI, Patrício, ocd. A Liberdade Atrás das Grades. 2a. ed. São Paulo: Loyola, 1989. p. 41. 79 Cf. JESUS, Maria José de, madre. In: Deus Presente. Op. cit. p. 218. Ver Anexo 1. 80 Carta 106, à Sóror Josefina, 22 jun. 1924. Foram contabilizadas 5 cartas em que Madre Maria José menciona explicitamente suas dificuldades de escrita por motivo de gripe, 33 por doenças diversas e 9 por abatimento mental.

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corpo eclesial (a Igreja) e de um corpus de textos canônicos (a Escritura Sagrada),81 ela

assumia o esfacelamento de seu corpo, a fim de “encarnar”, pelo discurso, uma

sociabilidade e uma simbolização, concernentes ao ideal contemplativo.82 Com isso, a

Madre defrontou-se com um esgotamento irreversível:

Reconhecendo estar alquebrada, a velhice a dificultar-lhe a atividade, neste ano de 1953 resolveu oferecer à Nossa Santa madre Teresa, na sua festa, a tradução dos três últimos tomos de sua obra, isto é, das Cartas. Começou-a, sem medir o grande esforço que seria tal empreendimento. [...] O empenho de chegar ao termo da tradução concorreu para o esgotamento do seu organismo. Penalizava-se, julgando não poder acabar a ‘obra de sua vida’. [...] Dando-se fisicamente sem limitação alguma também pela sua pena, quer em prosa ou em poesia, deu às almas tudo que o seu tempo tão escasso lhe permitiu dar.83

A correspondência de Madre Maria José delineia-se, assim, como uma

“contextualização”, isto é, uma produtividade (e não um produto), pela qual seu corpo

era, ao mesmo tempo, aniquilado e transformado em escrita,84 processo suscitado pelas

profundas vinculações existentes entre o afetivo (o semiótico) e o institucional (o

simbólico), o corpo e o significado.85

1.2- “...é dado por vós...” (Lc 22, 19)

Mas, afinal, em que consistia o ideal contemplativo que Madre Maria José tanto

se empenhava em vivenciar e defender? Através de sua correspondência, pode-se

entendê-lo como a atualização incessante de uma despossessão de si, para que o divino

81 CERTEAU, Michel de. Du corps à l’écriture, un transit chrétien. In: La Faiblesse de Croire. Paris: Seuil, 1987. p. 267-306. 82 “Somente o fim de uma época permite enunciar o que a fez viver, como se lhe fosse preciso morrer para tornar-se um livro”. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 302. Cf. também FOUCAULT, Michel. O Que é um Autor? 4a. ed. s.l: Veja/Passagens, 2002. p. 36: “A nossa cultura metamorfoseou esse tema da narrativa ou da escrita destinadas a conjurar a morte; a escrita está agora ligada ao sacrifício, ao sacrifício da própria vida; apagamento voluntário que não tem de ser representado dos livros, já que se cumpre na própria existência do escritor.” 83 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina do, irmã. Op. cit. p. 267; 300; 303. 84 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p.231:“[...] sempre é verdade que a lei se escreve sobre os corpos. [...] Essas escrituras efetuam duas operações complementares: graças a elas, os seres vivos são ‘postos num texto’, transformados em significantes das regras (é uma contextualização) e, por outro lado, a razão ou o Logos de uma sociedade ‘se faz carne’ (trata-se de uma encarnação)”. 85 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA, Julia. O Feminino e o Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 22.

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se fizesse presente no humano, em uma relação unitiva86: Minha filhinha, V.C. precisa

convencer-se de uma grande verdade: a vida espiritual não é eu, é Deus. Ele é que deve

ser sua vida, com Nossa Senhora; deixe o seu eu de lado, não queira saber dele. Assim,

V.C. terá paz.”87 Para a Madre, portanto, o fundamento do ideal contemplativo estava

previamente situado em uma atitude de esquecimento ou de “esvaziamento” de si

(kenosis), a qual implicava, por sua vez, no reconhecimento de uma impotência – uma

“negatividade” – inerente ao humano, ser constitutivamente distinto de Deus, “Aquele

que é”: “Minha boa irmãzinha, recomendava a Madre à sua amiga Laurita, “[...]

desejaria que nunca olhasse para si. ‘Os olhos em Deus! Os olhos no Céu! Os olhos no

Crucificado!’ São expressões de Nossa Santa Madre. Quem olha muito para si,

facilmente se desola, desanima e senta-se à beira da estrada”.88

O delineamento desse viés do “negativo” na correspondência de Madre Maria

José vinculava-se à concepção de “pessoa” oriunda do pensamento agostiniano, que

concebia o humano como um ser marcado pela incompletude e falibilidade, decorrente

da quebra da ordem ontológica pelo pecado original.89 Tal transgressão teria provocado

a fragmentação do ser, numa rebelião do corpo contra a alma, sendo daí resultante a

concupiscência e a ignorância. Mas essa fissura primordial também suscitara uma

permanente inquietude, até mesmo uma angústia, perante o ato da existência, o que

86 “Dans la place même du Seul Nom propre (um Nom qui éloigne tout être), il installe la désappropriation (par um assentiment à tout).” CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 239; BARUZZI, Jean. Prière et vie mystique. In: L’Intelligence Mystique. Paris: Berg International, 1985. p. 166: “Traduit en langage divin, ce lien nouveau, qui est le lien religieux, s’appelle le lien de la grâce; traduit en langage plus proprement luthérien ou calvienien, ce lien nouveau est le lien qui produit en nous la certitude du salut; traduit en langage mystique, ce lien nouveau est le lien qui approfondit après les épreuves de l’absence au coeur de la vie unitive”. 87 Carta 1497, à Ir. Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. Grifos de Madre Maria José. Cf. também Carta 184, à Irmã Marina, 29 jan. 1928: “Marina deve morrer. O seu eu deve desaparecer. Só Jesus deve viver na sua inteligência na sua vontade, no seu coração.” Grifos de Madre Maria José. 88 Carta 516, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 25 jan. 1941. Cf. também Carta 666, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 6 ago. 1945: “Sempre Ele, nunca eu. Quando olho para Ele, vivo, quando olho para mim, desfaleço-me extravio-me”. Grifos de Madre Maria José. 89 Cf. a concepção agostiniana, que entendia o mal como a ausência ou privação do bem, expressa em Confissões 7, 12. Ver RUBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 2a. ed. São Paulo: Paulina, 1989. p. 497.

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tornaria a condição humana insaciavelmente desejante 90: “Aqui, neste mundo, sinto em

tudo o cunho da imperfeição, nada está completo, nada satisfaz plenamente”. 91

Ora, segundo o ideal contemplativo, era justamente ao perceber-se como um ser

carente, que o humano se disporia a um incessante processo de busca (relação) do outro,

sobretudo da Alteridade divina, para realização de si: “A vida espiritual não é alguma

cousa, é alguém – Alguém (com letra grande) – é Deus. Busque a Ele, queira bem a

Ele, à Nossa Senhora, à santa Igreja, e procure agradar-lhe em tudo.” 92 E, como

indicado nesta missiva, Madre Maria José antevia esse “outro” não como uma

transcendência inefável, mas como uma presença enfronhada no mundo, inclusive na

debilidade do ser humano93:

Este carnaval tenho tido muita consolação. É a gratidão de ver-me num outro mundo tão feliz e diferente do pobre mundo esfaimado de prazer, sempre vomitando para poder sempre comer de novo, e afinal de contas nunca satisfeito. [...]

Se os mais refinados amadores do prazer soubessem que sem cansaço, sem despesa, sem prejuízo algum futuro, podiam achar no amor divino aquela felicidade que eles tão laboriosamente procuram no carnaval e não acham, deixariam seus frívolos divertimentos e viriam ajoelhar-se na nossa Igreja. Por que essa felicidade? Será sentimentalismo, misticismo falso? Santo Agostinho nos responde: ‘O coração do homem foi criado para Vós, o meu Deus, e vive inquieto e descontente enquanto não encontra em Vós seu descanso’.94

E foi a dimensão relacional do ser “pessoa” que permitiu ao pensamento

agostiniano reordenar a ruptura originária (o humano separado de Deus e de si) em uma

síntese, ainda que conflitiva (a retomada da relação humano-divina, propiciadora da

interiorização do sagrado).95 Essa reelaboração, afastando-se de uma perspectiva

90 DALY, Gabriel. osa. San Agustín y la teología moderna. In: La Espiritualidad Austianiana y el carisma de los agustinos. Roma: Pubblicazioni Agostiniane, 1995. p. 26-27. Cf. Introdução, p. 9. 91 Carta 783, à Irmã Maria do Carmo, provavelmente 1946. Uma percepção negativa da realidade humana e terrestre perpassa a correspondência de Madre Maria José. Ver também Carta 43, a Capistrano de Abreu, 3 jun. 1919: “A vida é assim mesmo: um tecido de trabalhos e sacrifícios, umas vezes descobertos, outras vezes enfeitados e disfarçados, mas sempre inevitáveis”; Carta 257, a Nila Prado, 5 fev. 1931: “[...] o sofrimento é a lei geral do mundo, à qual muitos poucos escapam [...]”. 92 Carta 1519, à Ir. Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. Grifos de Madre Maria José. Ver também Carta 666, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 6 ago. 1945: “Convido-a, irmãzinha, a fazer o mesmo que procuro fazer: trabalhar para que o Ele – ou antes, o Tu, o Vós – substitua o eu e o absorva. Sim, é melhor que Deus seja o Tu, o Vós da nossa alma, do que o Ele”. 93 GEFFRÉ, Claude (dir.). Michel de Certeau ou la Différence Chrétienne. Paris: Du Cerf, 1991. p. 120. “Mais il faut ici faire très attention. Cette autorité divine ne peut en aucune manière être entendue, chez M. de Certeau, comme un au-delà de tout. L’Autre n’est pas ailleurs; il est ce qui donne au mouvement de ne jamais se fermer. Pour quoi? Comment? Par l’autre, peineusement réatteint en tous autres, eux-mêmes touchés en toutes questions, une relation est établie qui mantient toutes choses, en nous et entre nous, dans le vrai, ses changements, ses continuités”. 94 Carta 24, a Capistrano de Abreu, 11 fev. 1918. 95 BARUZI, Jean. Prière et vie mystique. Op. Cit. p. 163-164.

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exclusivamente metafísica, assumiu contornos históricos – o encontro entre Deus e o

homem deveria processar-se ao longo de uma trajetória biográfica, incorporando, assim,

a mutabilidade, a transformação. 96 Com base em um trecho das Confissões,97 o

antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte explicita como, para o cristianismo, ser

“pessoa” reportou-se então à vivência de um embate constante entre uma verdade (uma

figuração do divino, que a racionalidade, por si só, não conseguiria apreender) e uma

vontade (que, desejante, impediria o fechamento individualista no “eu”), emergindo

desta tensão, uma interioridade.98 A particularidade da reflexão agostiniana situa-se na

refutação de uma coexistência isolada dos elementos dessa tríade, vindo a atribuir um

imperativo de necessidade à sua inter-relação; a permanência desse imperativo tornou-

se a marca da herança cristã para a cultura moderna. Tal perspectiva supera, portanto,

uma interpretação dualista do humano como corpo-alma, assim como uma percepção

justaposta de suas faculdades.99 Várias cartas de Madre Maria José evidenciam esse

conflito constitutivo do humano:

Ah! Meu pai, confiando-lhe o mais íntimo da minha alma, confesso-lhe que luto terrivelmente para ser sempre igual, paciente, amável, enfim menos indigna do hábito de Nossa senhora que trago... Nunca pensei que fosse tão difícil vencer-se a si mesmo; por isso é que a Escritura diz que aquele que vence a si mesmo é mais valente do que o que conquista as cidades. Entretanto, como é cheia de consolação essa luta que tem por princípio o amor e cujo alvo é ainda o amor!100

A interiorização requer, portanto, um empenho contínuo da pessoa, no endosso

às diretrizes de uma verdade e na readequação dos impulsos de sua vontade.101 Este

proceder é de fundamental importância, pois ele incorpora a negatividade implícita ao

96 KRISTEVA, Julia. O Gênio Feminino: a vida, a loucura, as palavras. Tomo I: Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 45. 97 “As três coisas que digo são: existir, conhecer e querer. Existo, conheço e quero. Existo sabendo e querendo; e sei que existo e quero; e quero existir e saber. Repare, quem puder, como a vida é inseparável nestes três conceitos: uma só vida, uma só inteligência, uma só essência, sem que seja possível operar uma distinção que, apesar de tudo, existe.” SANTO AGOSTINHO. Confissões XIII, 11,12. 9a. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 336. 98 DUARTE, Luiz Fernando Dias. História e etnografia dos saberes psicológicos. In: Clio-Psyché: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2001. p. 35. Cf. Introdução. p. 13. 99 DUARTE, Luiz Fernando Dias e GUIMBELLI, Emerson A. As concepções cristã e moderna de pessoa: paradoxos de uma continuidade. Anuário antropológico, Rio de Janeiro, v. 93, p. 77-109, 1995. 100 Carta 131, a Capistrano de Abreu, 19 set. 1925. Cf. também Carta 502, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 11 jun. 1940: “Conheço bem essas aspirações, essa luta pelo bem, pelo ideal, pelo aperfeiçoamento, essa mágoa por não realizar plenamente o que se quer com exclusão de tudo mais. Conheço bem esse estado porque é o meu, e sei que faz sofrer. Mas, minha irmãzinha, não é próprio desse desterro ? [...] Sentir que nosso coração quer só a Deus e a Sua Vontade, e sofre justamente porque não se farta com pouco e quer muito mais já é uma graça, não acha?” 101 DUARTE, Luiz Fernando Dias. Sujeito, soberano, assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental moderna. ARÁN, Márcia (org.). Soberanias. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. p. 184

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ideal contemplativo – a tão aconselhada abdicação dos desejos individuais -, sem

implicar, todavia, na renúncia ao ato desejante.

Dessa maneira, o ideal contemplativo proporcionava à Madre Maria José as

condições necessárias para canalizar o voluntarismo de sua personalidade, sem arrefecê-

lo. Algumas passagens de suas biografias, que descrevem como “humilhações” o

silenciamento da vontade a que se viu submetida nos primeiros anos de sua formação

como carmelita descalça,102 podem então ser relidas em um sentido complementar, que

sem negar a violência simbólica do ato, denotam sua reversão em uma positivação de si:

“Tudo converteu para Deus. Sua propensão à teimosia tornou-se firmeza, constância

na senda da perfeição; seu gênio, sua personalidade tão forte, transformaram-se no

Amor.” 103 Em uma de suas cartas, inclusive, Madre Maria José revela que tal mudança

qualitativa do querer não foi um processo serenamente transcorrido: “Creia que nunca

a esqueço”, dizia ela à sua antiga priora e mestra de noviças, “e lhe sou imensamente

grata. V.R., apesar de sua santa simplicidade, soube quebrar a minha soberba, em

muitas coisas, talvez mais do que outra muito esperta. Isto não quer dizer que me tenho

em conta de humilde, mas N. S. tem trabalhado muito em minha alma.” 104 Toda

impulsividade da Madre, assim, era por ela direcionada para o que chamava “as coisas

do alto”:

Minha filhinha, um grande segredo do Carmelo, ou talvez o grande segredo do Carmelo é olhar sempre para Jesus. Com Jesus, através de Jesus, tudo é belo, grande, sublime, sobrenatural. Não há coisa baixa, pesada, triste, difícil. Ele é Amor e quem só a Ele contempla, só vê amor. Mas ah! Minha filha, não é só poesia, sensibilidade. É preciso uma fé, uma vontade, uma quase obstinação, um querer só a Deus, só a Cruz, a santidade, custe o que custar. E isso com muita humildade, paz e alegria, só por amor, em união com Nossa Senhora. O meio para tudo? Sempre o mesmo: os olhos em Jesus.105

A vontade, portanto, exerce um papel crucial no processo de interiorização, mas

não é absolutizada, preservando seu vínculo dialógico com a verdade que, assim,

também não se reduz a um saber dogmático, mas constitui-se como um ato de crer.106

102 “A Me. Priora, religiosa muito digna, futura fundadora do Carmelo de Fortaleza, não perdia ocasião de humilhá-la, como ela própria o afirmou; contou-nos como estando Ir. Maria José varrendo uma escada ainda nos primeiros degraus, zangou-se com ela, dizendo-lhe: ‘Moça tão instruída não sabe varrer uma escada! Varre-se de ‘baixo para cima’. A dócil noviça, sem hesitação, desceu e recomeçou o trabalho...” SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina do, irmã. Op. cit. p. 82. 103 Ibid. p. 85-86. 104 Carta 394, à Madre Cecília Maria do Espírito Santo, do Carmelo de Fortaleza, 7 jul. 1935. 105 Carta 497, à Irmã Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, 22 mar. 1940. Grifos de Madre Maria José. 106 Assim, o crer não se reduz a um repertório de crenças, articuladas em sistemas sócio-históricos, consistindo também em um “investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la

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Aliás, é a negatividade do humano que sustenta o vínculo entre a profissão de fé e a

escrita epistolar, ambas práticas enunciativas, de relação com o outro: é preciso que haja

uma ausência para que se creia; é preciso que haja uma perda para que se escreva; a

crença e a escrita, por sua vez, remetem, incessantemente, ao esvaziamento do ser.107

A redação da correspondência por Madre Maria José assumiu, desta forma, um

papel central na constituição de sua interioridade como pessoa humana, o que permite

configurar sua prática de escrita epistolar como um processo de “subjetivação” – uma

produção de saber sobre si e sobre o mundo, elaborada por agentes sociais em uma

dinâmica interlocutória e num determinado tempo histórico. Sob este enfoque, o

epistolário da Madre delineava-se como uma transcrição (da verdade divina) e uma

permutação (entre essa verdade e sua vontade e as demais vontades de seus

correspondentes).108 Além disso, ao ordenar tais sentidos em um discurso, a Madre

também os perpassava com descrições acerca das maneiras pelas quais o embate

verdade/vontade transcorrera em sua vida, o que dotava seu relato de uma historicidade

biográfica. Com isso, Madre Maria José, considerada em sua constituição como pessoa

humana, é passível de ser percebida como um “sujeito”, mas somente na efetuação do

ato discursivo, e não em uma autonomia da existência, que antecederia e independeria

da composição textual.109

Dois rápidos desvios podem contribuir para elucidar melhor o sentido

concernente à concepção de pessoa portada pelo ideal contemplativo. Suas

especificidades evidenciam-se quando ela é confrontada com a noção iluminista de

“indivíduo”, uma vez que, sob essa formulação cultural, de viés universalizante, o

considerando-a verdadeira – noutros termos, uma ‘modalidade’ da afirmação e não seu conteúdo”.CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 278. 107 CERTEAU, Michel de. Histoire et Psychanalyse: entre science et fiction. 2a. ed. Paris: Gallimard, 2002. p. 131; Id. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 186: “Por um paradoxo apenas aparente, o discurso que leva a crer é aquele que priva do que impõe, ou que jamais dá aquilo que promete. Muito longe de exprimir um vazio, de descrever uma falta, ele o cria. Dá lugar a um vazio”. 108 Cf. KRISTEVA, Julia. O texto fechado. Semiótica do Romance. 2a. ed. Lisboa: Arcádia, 1978. p. 62. Cf. também DAVIS, Natalie Zemon. Nas Margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 16:“Michel de Certeau nos mostra [...] Em seu Libro de la vida, a carmelita Teresa d’Ávila criou dois diálogos: um entre o eu extático que ama a Deus até a loucura e o eu narrador que preserva a razão graças à narrativa bem organizada; outro entre os homens sábios que a mandaram escrever o livro e o julgarão e as leitoras que haverão de entendê-lo com amor especial”. 109 “Admettons qu’il est légitime de parler de Sujet lorsque le langage rassemble une identité en instance d’énonciation et lui confère en même temps un interlocuteur et un référent. [...] Nous sommes des sujets permanents d’une parole qui nous tient, sans doute. Mais des sujets en procès, perdant sans cesse notre identité, déstabilisés par les fluctuations de ce même rapport à l`aube dont une certaine homéostasie nous maintient cependant unifiés”. KRISTEVA, Julia. Parole et sujet en psychanalyse. Au Commencement Était l’amour: psychanalyse et foi. Paris: Hachette, 1997. p. 20-21.

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exercício da razão foi vinculado a uma vontade vista como autônoma, o que possibilitou

a transmutação de uma epistemologia mecânico-biológica, aplicada a um mundo já

secularizado, em um modelo de progresso social. A partir do século XVIII, sobretudo

com Kant, essa autonomia da vontade deixou de abarcar apenas a realidade circundante,

voltando-se também para a interioridade humana, que passou a ser percebida como

locus privilegiado de liberdade. Mas as deturpações desse postulado foram denunciadas

por Nietzsche, em sua afirmativa de que o querer do homem, sob o primado da razão

instrumental, reificou a si mesmo, e sem questionar os meios e as metas, faz da vontade

(ou do poder, a ela identificado), um fim em si.110 Em contrapartida, a concepção de

“pessoa”, implícita no ideal contemplativo, aproxima-se daquela formulada pelo

pensamento romântico-germânico, vertente que compreendia o humano como uma

entidade criativa, estando a vontade vinculada não somente à racionalidade, mas

também a uma outra qualidade, denominada pulsão (Trieb), a qual, ao imprimir à vida

de cada agente ritmos e orientações específicas, configurava seu horizonte de destino

realizável e tornava-a um ser singular. Essa segunda tendência foi, inclusive,

sistematizada numa proposta de formação cultural – Bildung -, a qual, incorporadora da

sensibilidade como recurso de humanização e sociabilidade, surgiu como uma

transposição laica do pietismo luterano, movimento religioso também decisivamente

perpassado pelo pensamento agostiniano.111

Outras tantas distinções podem ser vislumbradas em nova contraposição, desta

feita entre o epistolário de Madre Maria José e a escrita poética de Sóror Juana Inés de

la Cruz, famosa monja mexicana da Ordem dos Jerônimos. Como a Madre, Sóror Juana

não ignorava a crucial carência humana, expressa em ânsias de amor, e traduzida, não

raramente, em atitudes de culpa, castigo e dor. Mas, diferindo da Madre, Sóror Juana

supunha que a libertação de tal padecer só seria possível mediante uma renúncia

deliberada à comunicação, em uma desistência da reciprocidade amorosa, o que poucos

almejaram e pouquíssimos conseguiram, tornando-se santos ou, ao menos, amantes

heróicos e puros. Ora, ao postular essa não-correspondência como a perfeição do amor,

Sóror Juana atribuiu à liberdade humana (e não a Deus) a promoção da superação de si,

110 RENAULT, Alain. O Indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Rio de Janeiro: Difel, 1998. 111 DUARTE, Luiz Fernando Dias. A pulsão romântica e as ciências humanas no Ocidente. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 19, n. 55, jun. 2004. p. 5-18.

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pensamento tendenciosamente moderno para uma religiosa do século XVIII, ainda que

ela mesma, possivelmente, não tivesse vislumbrado o alcance de sua idéia.112

Tais esclarecimentos permitem compreender melhor a culminância da dimensão

relacional do humano, propugnada pelo ideal contemplativo: ela consiste na

“santificação”, ou seja, no ingresso, por participação, na condição de vida divina:

“Como ser sempre melhor senão mergulhando sempre mais adentro nesse mar de amor

até se transformar nele? Aí a gente aprende a amar, a ser humilde, a ser compassiva e

indulgente, a esquecer-se de si. Nele, bem lá no fundo, vivamos in unum.” 113 A

santificação configura-se, assim, como um processo de transformação simbólica –

“perfeita consumação na unidade” 114- que, partindo de uma dicotomia (humano,

incompletude/ divino, plenitude), estabelece uma ambigüidade ou um “dialogismo” (o

embate entre a vontade e a verdade, no delineamento de uma interioridade) e culmina na

apologia de um desses elementos (a figuração divina, expressa pela verdade), que se

projeta e se funde com o outro (a vontade), produzindo uma eliminação de qualquer

oposição significativa.115

Tal perspectiva pode ser acrescida por outras interpretações da experiência

unitiva entre o humano e o divino no imaginário cristão, promovidas pelas ciências

humanas. Enquanto algumas pesquisas apontam para as implicações histórico-políticas

da representação da santidade, numa associação entre o “êxtase” e a valorização do

agente religioso, sobretudo da mulher, no âmbito eclesial,116 outros estudos

compreendem o aspecto fusional como um elemento propiciatório à constituição da

identidade da pessoa humana, ao dotá-la de uma projeção imaginária que entrecruza o

semiótico e o simbólico, a pulsionalidade e o significado, ainda que esse processo,

112 PAZ, Otávio. Sóror Juana Inês de la Cruz: as armadilhas da fé. São Paulo: Mandarim, 1998. 113 Carta 1608, à Irmã. Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, s. d. Grifos de Madre Maria José. Cf. também Carta 368, à Irmã Marina, 8 jun. 1934: “[...] que sempre mais se abra aos raios do Coração Divino e O concentre toda em si e seja transformada, radiosa, feita uma só com seu Divino Sol.”. 114 Carta 1185, ao Monsenhor Maximiano da Silva Leite, 28 out. 1954. Ver também Carta 783, à Madre Maria do Carmo, prov. 1946: “Como nosso coração aspira por essa unidade, por essa fusão eterna, não é, minha filhinha?” 115 Neste sentido, a santificação pode ser interpretada como uma operação de significação similar àquela promovida pelo romance clássico, que é pautada na figura do “signo”, entendido como um “duplo”. Tal construção literária, segundo Julia Kristeva, porta uma matriz eminentemente teológica, de fundo platônico. KRISTEVA, Julia. O texto fechado. Semiótica do Romance. Op. Cit. p. 51-52. 116 NUNES, Jr., Ario Borges. Do Recato da Clausura ao Turbilhão do Êxtase. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Universidade de São Paulo, 2001.

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paradoxalmente, possa suscitar uma anulação do “eu”, caso não seja acompanhado por

sua tradução na linguagem.117

Os relatos epistolares de Madre Maria José, assim como as narrativas acerca de

seu percurso biográfico, endossaram essas reflexões: ao buscar estabelecer uma relação

unitiva com Deus, na integralidade de seus atos cotidianos, a Madre adquiriu o respeito

e mesmo a admiração de suas companheiras de clausura e daqueles que, por variados

motivos, com ela mantiveram algum contato;118 de forma concomitante, ao apresentar a

santidade como o ápice da condição humana – e, como tal, distinta, embora não oposta,

da divindade -, ela afastou o risco de uma confusão identitária. Desta forma, a

santificação erigiu-se, para a Madre, no pólo catalisador de seus esforços e de suas

maiores esperanças: “Se soubesse a sede que tenho de ser santa! A necessidade, a idéia

fixa quase de agradar e obedecer a Deus em mim e de ser fiel quase ao infinito [...]”. 119

1.3- “é a nova Aliança ...” (Lc 22,20)

Exigente, dramática, até mesmo radical, a concepção de santidade esboçada nos

escritos epistolares de Madre Maria José, sob os postulados do ideal contemplativo,

apresentava-se, todavia, claramente norteada pelo conservadorismo configurante no

pensamento católico neste período.120 Logo após a reação contra-revolucionária

européia, e sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, a Igreja, recorrendo

117 KRISTEVA, Julia. Au Commencement Était l’Amour. Op. Cit. Cf. também Id. Histórias de Amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 118 As inúmeras mensagens de condolências recebidas pelo Convento de Santa Teresa por ocasião do falecimento de Madre Maria José explicitam a imagem pública por ela obtida. Pode ser citado, como exemplo, a missiva enviada pelo Carmelo de Uberaba, que associa a exemplaridade de sua conduta a suas práticas de escrita: “Daqui de longe podemos medir a falta que V.R. e todas as Irmãs sentem daquela que foi sempre o modelo vivo da Carmelita, que se irradia de todos os seus escritos, poesias, retiro etc. tão conhecidos e tão úteis”. 119 Carta 137, a Capistrano de Abreu, 28 nov. 1925. Ver também Carta 362, à Irmã Marina, 29 jan. 1934: “Só tenho uma ambição, um desejo a meu respeito: ser santa para dar glória a Deus”. Grifos de Madre Maria José; Carta 294, à Sóror Josefina, 26 jul. 1932: “Ah! Minha Madre [...] Tenho tanto desejo de ser santa e de ver a todos santos! Conto com as orações e os conselhos de V.R. [Vossa Reverência]”. 120 O conservadorismo pode ser interpretado como uma reação política, filosófica e artística – e daí seus vínculos ao romantismo -, historicamente promovida diante dos princípios e dos eventos associados à Revolução Francesa. Cf. MANNHEIM, Karl. O significado do conservantismo. In: FORACCHI, Marialice Mencarini (org.). Karl Mannheim: sociologia. São Paulo: Ática, 1982.

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principalmente a autores franceses,121 instituiu uma cultura religiosa de perfil

reacionário, pela qual a vivência contemplativa era associada ao primado do espiritual e

à defesa da autoridade estabelecida, rejeitando-se a liberdade (associada à anarquia, à

subversão) e a igualdade (devido à suposta diferença constitutiva dos seres humanos).122

Neste sentido, para Madre Maria José, o ideal contemplativo tornou-se símbolo de uma

“revolução espiritual” ou “cruzada recristianizadora”, a ser promovida “de cima para

baixo”, isto é, por uma elite que, subordinada ao poder eclesiástico, assumiria como

missão a recatolicização das massas, mediante a reforma das consciências (e não das

práticas sociais). O claustro teresiano constituir-se-ia, desta forma, em uma retaguarda

estratégica da Igreja perante os equívocos da modernidade: “Aqui [na vida secular] se

vive em pleno campo de batalha. Nossa clausura é o castelo forte bem-situado, de

modo a ficar o mais possível a salvo dos inimigos; mas se a guarnição do castelo puser

a dormir e não se defender do inimigo, é certo que o castelo será tomado, apesar de

suas fortes muralhas. Nossas armas são a oração, a humildade, a mortificação, a

observância perfeita dos votos e da Regra, a mútua caridade”.123

A Madre travou contato com o pensamento católico conservador muito antes de

seu ingresso no Carmelo. Ainda adolescente, ela foi educada sob suas premissas:

“depois da revolta de 1893”,124 Honorina foi matriculada, em regime de internato, no

Imaculada Conceição, colégio dirigido pelas Filhas da Caridade, da Congregação de

São Vicente de Paulo,125 aí permanecendo por três anos. Tendo sido fundado em 1854, e

logo transferido para a Praia de Botafogo, o Imaculada Conceição tornou-se um dos

estabelecimentos de ensino mais famosos da cidade, rivalizando apenas com o Collège

de Sion, surgido em 1888, e posteriormente com o Sacré-Coeur, cujas religiosas

121 O catolicismo conservador e romanizante obteve adesões da intelectualidade francesa, sendo seus principais divulgadores Joseph de Maistre (1753-1821), Louis de Bonald (1754-1840) e Louis Veuillot (1813-1883), cf. IGLÉSIAS, Francisco. Estudo sobre o pensamento reacionário: Jackson de Figueiredo. In: História e Ideologia. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 117, 122; VELLOSO, Mônica Pimenta. A Ordem: uma revista de doutrina, política e cultura católica. Revista de Ciência Política. Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, jul.-set. 1978. 122 RODRIGUES, Anna Maria Moog. A Igreja na República. Brasília: Unb, 1981. p. 4; IGLÉSIAS, Francisco. Op. Cit. p. 111-112; AZZI, Riolando. A Neocristandade. São Paulo: Paulus, 1994. p. 107. 123 Carta 307, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 30 set. 1932. Cf. também o discurso promovido por D. Leme, citado no capítulo 2, p. 55. 124 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã.Op. Cit. p. 39. 125 Esta Congregação, chegada ao Brasil em 1848, inaugurou sua primeira instituição de ensino no Rio de Janeiro em 1854. AZZI, Riolando. As Filhas de Maria Auxiliadora no Brasil. In: AZZI, Riolando e BEOZZO, José Oscar (org.). Os religiosos no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 53-54; RUPERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Santa Maria: Palloti, 1981-1988. v. 4, p. 118-119.

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chegaram ao Brasil em 1911.126 Assim, a escolha do Imaculada, feita por seu pai -

historiador que adotava uma postura de teísmo não-confessional (mais que de ceticismo

agnóstico)127 - não foi tão paradoxal quanto parecia: no entender de Capistrano era

crucial possibilitar à filha as condições para seu aprimoramento cultural, independente

da instituição promotora.128

No Imaculada Conceição, além de adquirir refinada formação cultural,129

Honorina foi instruída nos preceitos do catolicismo: ela freqüentava as aulas de

catequese, assistia diariamente à missa, e preparou-se “com cuidado e piedade” 130 para

receber, em 1894, a primeira eucaristia e a crisma. Afinal, o ensino religioso das jovens

socialmente favorecidas131 tornara-se uma das prioridades pastorais da Igreja, que

buscava, dessa maneira, incutir-lhes a responsabilidade pela educação católica dos

filhos, futuras lideranças sociais e políticas do país;132 além disso, os chamados

“colégios de freiras” e “de padres” eram considerados barreiras estratégicas à difusão do

protestantismo e do laicismo entre as elites urbanas.133 Reconhecendo a importância de

tal experiência em sua posterior vida religiosa, inclusive para promoção de seu

apostolado letrado, a Madre não se cansou de externar ao pai sua gratidão: “É por isso

que sinto uma gratidão sempre nova [...] também por Você, meu querido Pai, que me

proporcionou o bem inestimável de uma educação religiosa que foi a base e princípio

126 BEOZZO, José Oscar. Decadência e morte, restauração e multiplicação das Ordens e Congregações religiosas no Brasil. 1870-1930. In: AZZI, Riolando (org.). A Vida Religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 125; NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: a cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p. 81. 127 Sobre o distanciamento de Capistrano de Abreu frente ao catolicismo, ver VIANNA, Hélio. Capistrano de Abreu: ensaio biobibliográfico. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955. p. 89 128 RODRIGUES, José Honório. Introdução. In: Correspondência de Capistrano de Abreu. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. p. xxxiv: “Como todo teórico, ele se obstina em ver na ilustração a alavanca do progresso”. 129 Honorina recebeu ampla formação humanística (abrangendo história, arte, literatura, geografia...), dominou vários idomas (principalmente o francês), aprendeu a tocar piano e a portar-se de acordo com refinadas convenções de etiqueta social. GALLIAN, Dante Marcello. Madre Maria José no Caminho da Perfeição. São Paulo: Paulus, 1997. p. 48-55. 130 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 40. 131 MONTEIRO, Honorina de Abreu. O avô que eu conheci. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, v. 221, out.-dez. 1953. p. 185: “Meu pai, dizia ela [Madre Maria José], tendo recursos limitados, como podia fazer tanto? [...] Explicava-se o caso: é que consigo mesmo não gastava quase nada [...] Morava numa pensão e o pouco que possuía dedicava exclusivamente aos filhos”. 132 NUNES, Maria José Rosado. Freiras no Brasil. In: PRIORE, Mary del (org). História das Mulheres no Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 491. 133 AZZI, Riolando. A Neocristandade. Op. Cit. p. 26; 35; MICELI, Sérgio. A gestão diocesana na República Velha. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 12, v. 1. ago. 1985. p. 110.

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de toda a minha felicidade e salvação”.134 Da mesma forma, ela recomendava às

parentes e amigas semelhante modalidade de ensino:

[...] por que não põe ao menos as filhinhas em um colégio interno? Penso que é o maior benefício que lhes poderá fazer. A grande educadora que foi a mãe de santa Teresinha assim o fez [...] Nossa Santa Madre [...] toda sua salvação foi ser internada, dos 14 para os 15 anos, no Mosteiro da Graça das agostinianas. De mim posso dizer o mesmo. Seu coração materno sangrará com a saudade, mas depois colherá os frutos.135

Um segundo pólo formativo de Madre Maria José no pensamento conservador

foi sua participação na Pia União das Filhas de Maria, associação devocional feminina,

na qual ingressou em 1903, na seção situada no Colégio da Imaculada Conceição;136

posteriormente, junto com algumas amigas, fundou uma novo núcleo no Convento da

Ajuda, fazendo parte da diretoria como secretária.137 A religiosidade das Filhas de

Maria remetia a um padrão romanizante de catolicismo: sendo uma estrutura

diretamente submetida ao controle eclesiástico,138 ela permitiu à Igreja não apenas

contrapor-se ao poder econômico das antigas irmandades e confrarias, de composição

laica e masculina, muitas das quais existentes desde o período colonial,139 como

também obter maior visibilidade pública frente aos valores da modernidade e ao poder

do Estado – por ocasião das grandes procissões do calendário litúrgico, as principais

avenidas da cidade eram tomadas por moças de vestidos e véus brancos, com a fita azul

da Associação.

Torna-se necessária uma ressalva: o perfil sócio-cultural advindo da educação

em internados católicos, acrescido pela adesão a organizações pias, a culminar na 134 Carta 116, a Capistrano de Abreu, 19 nov. 1924. Cf. também Carta 23, a Capistrano de Abreu, 12 jan. 1918: “Sim, meu Pai, da sua parte só recebi benefícios. Quantos homens ricos não dão aos filhos a educação que V. me deu à custa de tantos sacrifícios? Jesus é que lhe há de pagar por mim”. 135 Carta 239, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 12 jun. 1937. 136 Em 1896, estando próximo o término de sua permanência no Imaculada, Honorina inscreveu-se como aspirante da Associação das Filhas de Maria da Casa de São Vicente de Paulo, criada em 1859 no Colégio da Imaculada Conceição, mas não chegou a nela ingressar como membro efetivo, cf. GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 71. 137 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 59-60. Cf. também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 93-99. 138 Sobre as associações femininas católicas, ver: AZZI, Riolando. Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964). In: MARCÍLIO. Maria Luíza (org.). Família, Mulher, Sexualidade e Igreja na História do Brasil. São Paulo: Loyola, 1993. p. 115; AZZI, Riolando. A participação da mulher na vida da Igreja no Brasil. In: MARCÍLIO, Maria Luíza. A Mulher Pobre na História da Igreja Latino-Americana. São Paulo: Cehila/Paulinas, 1984. p. 108-110; 123. 139 GOMES, Francisco José Silva. Le Projet de Neo-Chrétienté dans le Diocese de Rio de Janeiro de 1869 a 1915. Paris, Université de Toulouse le Mirail, UFR d’Histoire, 1991. Thèse de Doctorat. V. III. p. 877.

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entrada nos claustros contemplativos, não era privilégio de Madre Maria José, sendo

recorrente entre as mais importantes prioras do Carmelo Descalço.140 Mesmo grande

parte das religiosas “coristas” parece ter portado semelhante faceta identitária,141 como

pode-se depreender de um dos bilhetes enviados pela Madre à Irmã Maria Vicentina:

Minha amada filhinha, completas hoje 19 anos [...] Lá fora, minha filhinha, as mocinhas de tua idade, quando fazem anos, vestem seus vestidinhos novos, ganham presentes, vêem a casa cheia de parentes, são festejadas com flores, jóias, doces e danças. Tu, minha queridinha, completas teus dezenove anos encerrada no claustro, fechada em tua obscura cela, longe dos teus, com teu velho hábito remendado, nas tuas velhas sandálias. Este dia, que seria tão grande em tua casa, passa despercebido no convento [...] tu escolheste a cruz por tua partilha nesta via, por isso as vãs alegrias do mundo não são mais para ti [...].142

Esboçava-se, portanto, uma sociabilidade concernente ao ideal contemplativo: ele

dispunha de um locus de produção e circularidade entre as religiosas de elevada

procedência social, refinada cultura e uma visão conservadora acerca da fé e da

realidade social: “[...] muitas das que buscavam os claustros teresianos eram moças do

‘alto mundo’, cultas e instruídas que, como Honorina de Abreu, viam na vida

contemplativa um atraente caminho de realização e santificação”.143

Postula-se, aliás, que o viés conservador do pensamento católico tornou-se um

elemento imprescindível para o deslocamento dessas mulheres bem-nascidas, com

acesso a variados recursos de conforto e prazer social, para o interior de um monastério

feminino. Afinal, a Ordem do Carmelo Descalço corporificava valores – como a

austeridade e a ancestralidade – muito bem reputados entre determinados segmentos da

elite que se sentiam premidos pela insurgência do novo nos primeiros anos da virada do

século XX (outro era o regime político, distintos eram os mecanismos concorrenciais

econômicos e simbólicos...). Receando aderir incondicionalmente ao ideário liberal-

civilizatório, por temer a ruptura dos princípios que até então legitimaram seu poder,

140 Cf. Anexo 3. 141 A legislação eclesiástica distinguia duas situações possíveis à profissão religiosa das carmelitas descalças: a referente às religiosas “do coro” ou “de véu preto” (que sabiam ler latim e, portanto, poderiam acompanhar as orações do Ofício Divino) e às “conversas” ou de “véu branco” (abarcando aquelas que, sem tais conhecimentos, eram encarregadas da maior parte dos trabalhos braçais do convento). Esta reprodução das desigualdades sociais e simbólicas só foi eliminada com o Concílio do Vaticano II. cf. Regra e Constituições... [1929]. Op. Cit. 142 Carta 20, à Irmã Maria Vicentina, 2 jun. 1917. 143 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 179.

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esses grupos voltavam-se para instituições de feitio tradicionalista, como a Igreja144 que,

após ter assegurado sua independência jurídico-institucional no sistema republicano,145

esforçava-se por imputar uma ordem cristã à sociedade, de cunho moralizante.146

Em contrapartida, o ingresso de uma jovem no Carmelo, renunciando à vontade

própria e às “satisfações mundanas”, em prol de uma completa e radical entrega a Deus

– personificação da crença em uma verdade sagrada – não deixava de suscitar certo

impacto social (sendo noticiado nos jornais, comentado nos salões...),147 numa sutil

propaganda do catolicismo; paralelamente, a subjetividade/interioridade daquela que

havia feito tal escolha era recoberta de representações sociais altamente enobrecedoras -

“Ah, minha filha, que grande, alta, sublime coisa é ser Carmelita [...] Minha filhinha,

que V.C. realize plenamente o que significa a santa livre da Virgem do Carmelo – libré

de vítima, de ermitã, de missionária, de apóstola, de filha da Igreja [...]” 148 - o que

também conferia, embora de forma indireta, uma legitimação à sua pertença social.

Mas um segundo motivo parece ter também mobilizado essas moças para a vida

conventual, ainda em consonância com o pensamento católico conservador. Entre as

camadas médias e elitizadas, o Carmelo Descalço era tido como um espaço de

canalização da vontade feminina para intuitos “elevados”, sem que ela se visse

mediocrizada pela rotina (doméstica e existencial), tantas vezes considerada opressora

pelas mulheres da época. Ora, tal aspecto revelou-se crucial para Honorina que, em sua

vida leiga, permitia-se exibir suas grandes habilidades intelectuais e artísticas, pelas

quais era bastante admirada – “tendo em uma reunião sustentado um desafio de versos

144 Paralelamente, a Igreja assume uma estratégia de autodefesa, que expressa sua perplexidade face às mudanças, cf. VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. Cit. p. 120: “Assim, reforça sua concepção tradicionalista e elitista, parecendo-lhe mais seguro abraçar uma ideologia conservadora como meio de sobrevivência”. 145 Sobre a reestruturação jurídico-institucional da Igreja com o advento da República, ver GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 789; AZZI, Riolando. O Estado Leigo e o Projeto Ultramontano. São Paulo: Paulus, 1994. 146 Sobre a concepção moralizante de autoridade, ver GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 887; Ib. De súdito a cidadão: os católicos no Império e na República. In MARTINS, Ismênia de Lima, MOTTA, Rodrigo Patto Sá, IOKOI, Zilda Gricoli (Orgs.). História e Cidadania: XIX Simpósio Nacional de História, São Paulo: Humanitas Publicações/USP. p. 315-326; AZZI, Riolando. A Neocristandade. Op. Cit. p. 48-61. 147 VILLELA, Lúcia Jordão. Centelha e Chama: traços biográficos de Esther Vieira da Cunha, carmelita descalça. Rio de Janeiro: Agir, 1973. p. 44: “A profissão de votos simples perpétuos [de Ir.Inês do Sagrado Coração de Jesus] realizou-se a 22 de janeiro de 1907, na Capela do Convento de Santa Teresa, pequena para conter os membros da família e amigos reunidos para a tocante cerimônia. No dia seguinte, Coelho Netto e Afonso Celso publicavam nos jornais o relato da solenidade, com palavras de grande emoção e vivo pareço pelo testemunho de fé e admirável altruísmo a que tinham presenciado”. 148 Carta 489, à Irmã Marina, 29 jan. 1940.

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com Bastos Tigre, que ela ganhou, sendo muito cumprimentada”.149 A filha de

Capistrano, porém, não desconhecia os limites impostos a tais prazeres, na dinâmica de

uma sociedade de belle époque: uma moça de escol deveria contentar-se com a

ambiência mundana dos salões e, em seguida, unir-se em matrimônio a alguém de

mesmo extrato social, resguardando-se então à privacidade do lar e à educação dos

filhos.150 Afinal, durante as primeiras décadas do século XX, o número de mulheres

literatas, com livros publicados ou artigos em periódicos, era ainda bastante restrito,

sendo-lhes interdita a entrada nas academias e universidades.151 Assim, em carta

enviada à prima Maroquinha, que há pouco anunciara o noivado, Honorina enunciava

sua consternação:

Quando penso que há de vir um tempo em que não te hei de ver todos os dias; quando penso que há quatro anos que vivo sempre contigo, tendo cada vez mais razões para querer-se bem, e que tudo isso há de se acabar como tudo o que é bom neste mundo, não posso deixar de chorar. [...] E não queres que eu desanime? Depois de ti, há de vir também a vez de Zizi, e assim perderei eu tudo e ficarei cada vez mais só. Quando penso no futuro, parece que vou ficar doida. Por mais que eu queira ter esperança, desanimo quando penso em tudo que pode acontecer.152

Honorina, culta, inteligente e sensível, sentir-se-ia, talvez, bastante tolhida perante

tais fronteiras sócio-culturais, aspirando pela existência de melhores condições para o

desenvolvimento de suas potencialidades. Ora, o catolicismo, apesar de seus inúmeros

entraves, comportava um ideal apostólico infinito, a exigir uma competência e uma

dedicação amplamente possuídas por ela, o que foi confirmado por Capistrano em carta

a João Lúcio de Azevedo: “Talento literário não lhe falta. Está impressa uma tradução

da Imitação de Cristo que fez diretamente do latim”.153 A esta obra, Honorina somou

uma segunda tradução, A Vida de S. Luiz Gonzaga, escrita em italiano pelo jesuíta

149 Carta de Cléa Portella Leal à Irmã Maria do Carmo do Cristo Rei, ocd, 29 jun. 1959. ASD, pasta 8, Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Ver também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 78. 150 Segundo RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, a construção de um modelo burguês-vitoriano de mulher implicou na sua desvalorização profissional, política e intelectual; assim, a maior parte da documentação da época silencia sobre a participação feminina nas mobilizações políticas e sindicais; para a autora, era exigido da mulher, na época, que “[...] vive[sse] presa ao lar, como uma freira num convento”. Ibid. p. 82. Ver também COSTA, Jurandir Freire. A mãe e a mulher. In: Ordem Média e Norma Familiar. 4a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999; SOIHTET, Rachel. O que acham da mulher. In: Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem urbana. 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 81-140. 151 TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, Mary del. (org.). Op. Cit. 152 Carta 6, a Maroquinha Souza Leão, 1 abr. 1900. 153 Carta de Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo, 19 mar. 1917. In: Correspondência de Capistrano de Abreu. Op. Cit. V. II. p. 36. Honorina escreveu o Prefácio e as Orações desta tradução, cf. Da Imitação de Christo: nova traducção do texto original latino trazendo orações depois de cada capítulo e seguida de um appendice de orações. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1910.

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Virgílio Cepari, além de pequenos textos destinados a boletins e mensageiros de

diversas paróquias.154 Tais práticas de escrita coadunavam-se com os intentos de

conversão social da Restauração Católica pois, neste período, quando a retórica dos

púlpitos cedia lugar aos debates na imprensa, a Igreja passou a utilizar os discursos

impressos (e mesmo os manuscritos circulantes em esferas privadas) como instrumento

de combate ao que denominava “catolicismo de fachada” e “ignorância religiosa” da

sociedade brasileira.155 Constituía-se, assim, um apostolado letrado, de perfil

intelectualista,156 geralmente promovido por agentes masculinos,157 mas do qual

também participavam algumas mulheres, com suas traduções, artigos, livros, cartas...,158

ainda que tais produções estivessem submetidas à censura (inclusive auto-imposta)

associada ao gênero.159

Ainda que Honorina não cogitasse ampliar sua produção escrita ao adentrar no

Carmelo, os claustros femininos do Rio de Janeiro durante a Neocristandade tornaram-

se focos de erudição religiosa, fosse pela refinada formação cultural de suas integrantes,

fosse pela elitização do círculo de clérigos e leigos que freqüentavam tal espacialidade. 160 Desta maneira, Madre Maria José viu-se instada a escrever, inicialmente por

obediência a suas superioras161 e, em seguida, por determinação própria, tendo decidido

colocar seu talento a serviço da Igreja.162 Não era raro, portanto, a partir dos anos 20,

encontrá-la em situação similar à que descreveu em uma de suas cartas: “[...] o tempo 154 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 65-66. Honorina redigiu o Prefácio da obra traduzida, em CEPARI, Virgílio. Vida de São Luiz Gonzaga. Roma, Oficina Editrice, 1910, 2 vols. 155 GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 792; AZZI, Riolando, A Neocristandade. Op. Cit. p. 34. 156 D. Sebastião Leme assumiu uma orientação pastoral marcadamente intelectualista, próxima às diretrizes de Leão XIII e Pio XI, cf. HOORNAERT, Eduardo. O Cristianismo Moreno no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 145; VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. Cit. p. 157. 157 VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. Cit. p. 123. 158 PAIVA, Aparecida. Entre censores. In: GALVÃO, Walnice Nogueira e GOTLIB, Nádia Battella. (org.). Prezado Senhor, Prezada Senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. 159 D’ALBA, Gemma. Regina Apostolorum ou Maria Santíssima ensinando a suas filhas o tríplice apostolado da oração, do sofrimento e do zelo. Leituras Católicas, Niterói, n. 334, ano 28, fasc. X, 1917. p. 15: “[...] é preciso muita prudência, muito tino e, sobretudo, uma base de sólidos princípios, para nos abalançarmos na escabrosa missão de ensinar, visto que falamos em nome da Igreja de Jesus Cristo [...] O melhor apostolado do zelo pela palavra [...] será portanto, antes de tudo, uma constante vigilância sobre a nossa língua [...]”. 160 O Convento era freqüentado por importantes teólogos, sobretudo beneditinos (como D. Thomas Keller e D. Martinho Michler) e jesuítas (os padres Lombardi, Semadini, Carlos Maria Bonanni, Gianella...). Sobre a intelectualidade eclesiástica, ver MOURA, Odilão. As Idéias Católicas no Brasil: direções de pensamento católico no Brasil no século XX. São Paulo: Convívio, 1978. CASALI, Alípio. Elite Intelectual e Restauração da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1995. 161 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 95: “Por ordem da Me. Priora, Ir. Maria José desde 1912 fazia versos; assim começou a brotar aquela fonte cristalina de suas poesias que continuou jorrando até os seus últimos dias”. 162 As carmelitas corriqueiramente escreviam a seus familiares e conhecidos, empenhando-se por sua conversão ou militância pastoral; assim, Madre Maria José, nas cartas enviadas ao pai e ao irmão, buscava carinhosamente (e insistentemente) persuadi-los a aderir a fé católica, cf. capítulo 4, p. 157-158.

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não rende [...] tenho os regulamentos a fazer e a Imitação [de Cristo] para preparar a

segunda edição com compromisso de entregar dentro de seis meses [...] pensei em fazer

como Me. Maria Evangelista [...] uma Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, para

contrabalançar a de Dickens, que o Sr. Arcebispo me deu para refutar”.163 Verifica-se,

assim, que o ideal contemplativo esteve intimamente associado a um protagonismo

feminino, exercido no interior dos conventos mediante o domínio da escrita, conforme

depreende-se da seguinte carta da Madre: “Consolo-me de que as minhas pobres

meditações lhe façam bem. É porque Jesus vê o desejo que tenho de que V.C. seja santa

e porque o terreno de sua alma é muito bom”.164

1.4- “...meu sangue, que é derramado...” (Lc 22,20)

O ideal contemplativo formulado por Madre Maria José em seu epistolário vinha

sendo paulatinamente depreciado por setores internos à Igreja, sobretudo a partir dos

anos 50, que pleiteavam substituí-lo por uma teologia mais voltada às realidades

terrenas. Buscando responder às transformações sócio-culturais aceleradas ao final da II

Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que reclamava aos fiéis uma melhor formação

religiosa, o Magistério católico incorporou referências extraídas das ciências humanas e

sociais e deslocou seu foco de atenção da prece para a reflexão bíblica e doutrinal. Tais

alterações difundiram-se para além dos seminários, atingindo um público

intelectualizado e exigente.165

Tal transposição – e mesmo concomitância – entre essas duas modalidades de

entendimento da fé puderam ser particularmente observadas no decorrer do pontificado

de Pio XII (1939-1958), o que lhe conferiu um caráter tão denso quanto contraditório.

Sua gestão assumiu, em geral, uma diretriz autocrática, com adoção de posturas bastante

163 Carta 657, à Irmã Inês do Sagrado Coração de Maria, jul. 1945. 164 Carta 202, a Sóror Josefina, 27 ago. 1928. 165 Assim, por exemplo, enquanto Henri de Lubac insistia, já em 1938, sobre os aspectos sociais do dogma, com Catholicisme, o padre Congar publicava, em 1950, Vraie et fausse reforme dans l’Eglise, buscando um reformismo aceitável pelo Magistério. RÉMOND, René. Histoire de la France religieuse. Paris: Du Seuil, 1992. T. 4.

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ortodoxas, que abarcavam o campo doutrinário (restrições a costumes tidos como

demasiadamente “modernos”, colocação no Index de várias publicações, medidas contra

professores...), o plano político-social (intervenções contra o comunismo, declarações

não favoráveis à co-gestão de empresas pelos operários...) e o âmbito pastoral (maior

prudência nas relações com os não-católicos, interrupção da experiência dos padres

operários...). Este papa, todavia, também implementou uma visível flexibilização:

internacionalizou a Cúria (reduzindo a participação italiana), promoveu algumas

mudanças em matéria de liturgia, demonstrou interesse pelos institutos seculares,

incentivou diferentes formas de apostolado leigo e conferiu importância à questão

missionária, inclusive nomeando bispos indígenas.166

Foi sob esta segunda vertente, menos rigorista, que a Constituição Sponsa

Christi foi formulada. Em uma perspectiva antropológica, este documento estava

pautado numa concepção de pessoa vinculada ao livre-arbítrio tomista, pois a

neoescolástica vinha sendo favorecida pelo Vaticano desde Leão XIII (1878-1903),

numa estratégia de aproximação da Igreja dos valores da modernidade e do pensamento

científico e, por conseguinte, das camadas elitizadas da sociedade, que a eles aderiam de

forma expressiva. Assim, a Encíclica Aeterni Patris, promulgada em 1879, postulava

uma reconciliação entre a crença e o intelecto, embora mantivesse o saber religioso

revestido por um contorno universalista e apologético.167 Ora, tal vertente teológica,

166 AUBERT, Roger e HAJAR, Joseph. A Igreja na Sociedade Liberal e no Mundo Moderno. Tomo III. In: ROGIER, L.J., AUBERT, R. D. e KNOWLES, M. D. Nova História da Igreja. Vol. V. Petrópolis: Vozes, 1976. p. 116-127. Sobre as mudanças nas Ordens e Congregações religiosas implementadas durante o pontificado de Pio XII, ver também LORCA, GARCIA VILLOSLADA, MONTALVAN. Historia de la Iglesia Católica. Tomo IV: Edad Moderna (1648-1963). 3ª. Ed. Madrid: Editorial Catolica S.A. 1963. p. 835-843. 167 VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. Cit. p. 128 e 133; SOUZA, Jesse Janie Vieira de. Círculos Operários: a Igreja e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/FAPERJ, 2002. p. 47-50; 56. Embora o pontificado de Leão XIII tivesse diluído parcialmente o rigorismo ultramontano de Pio IX (1846-1878), a Igreja recuou com Pio X (1903- 1914) para posições mais intransigentes, expostas no Decreto Lamentabili, de 1907, e na Encíclica Pascendi, em 1910. Foi somente após o período de Bento XV (1914-1922) que o episcopado retomou o viés intelectualista. Cf. MOURA, Sérgio Lobo e ALMEIDA, José MARIA. Op. Cit. CASALI, Alípio. Op. Cit. 120.

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diferindo da premissa agostiniana, positivava decisivamente o “eu” cristão

(relativizando ao máximo a negatividade do humano) – ser “pessoa” consistiria então

em tornar-se o agente que, pelo exercício da razão e com a ajuda da graça divina,

promoveria a construção do “Reino de Deus” na história.168

Ao mesmo tempo, em decorrência da lenta passagem de uma cultura teocêntrica

à secularização dos tempos modernos, a experiência religiosa perdeu grande parte de

sua especificidade, vindo a ser significada por elementos que antes lhe eram exteriores,

como o mundo do trabalho e da política; o ato de crer passou a ser exercido no âmbito

da praxis social.169 Neste processo, a vivência contemplativa, preconizadora do

esvaziamento do sujeito, via-se não raramente criticada como uma desqualificação das

potencialidades humanas e do chamado ético a seu agir.

Mas reafirmando, em seu epistolário, a validade do ideal contemplativo, Madre

Maria José resistia: seu discurso era formulado como uma tática de combate,

demarcando trincheiras defensivas, escavadas no interior do imaginário católico. A

correspondência da Madre assumiu, portanto, contornos polemológicos, relacionando-

se, de forma concorrencial (embora não excludente), com a concepção de pessoa

elaborada pela neo-escolástica.170 E embora tal disputa envolvesse contendores dotados

de forças bem desiguais (afinal, uma priora carmelita defrontava-se com a cúpula do

Magistério eclesiástico), a Madre empenhava-se em evitar uma derrota que reduziria

consideravelmente o significado religioso-ideológico do ideal contemplativo. Seus

168 DE LUBAC, Henri. Augustinisme et Théologie Moderne. Paris: Aubier, 1965. p. 226: “Parlant de l’action humaine, saint Thomas émettait cet aphorisme, que tout agent agit en vue d’une fin, et que cette fin doit être conforme à sa nature; d’où il concluait que la fin de l’homme, ce raisonnable, doit être d’agir secundum rationem. Reconnaissant que ‘beaucoup d’infidèles’ ont agi selon la raison par la pratique des vertus morales, il reconnaissait en conséquence quíls ont réalisé la fin de l’homme [...]”. 169 GEFFRÉ, Claude. Op. Cit. p. 170. Em uma interpretação das práticas religiosas dos anos 70, Michel de Certeau considerou que: “Le point de départ est une prise de position relative à la question: avec qui se solidariser dans la société? Il s’agit ainsi pour les chrétiens de travailler à des causes qui ne sont pas les leurs , puisqu’ils n’ont plus de sol propre. Ainsi une mutation qualitative s’inscrit dans ce passage d’un faire-la-charité à un faire-la justice.” CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de croire.Op. Cit. p. 309. 170 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 44-45.

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temores a este respeito, que a fizeram escrever até a exaustão, não pareciam tão

desmesurados: caso o ideal contemplativo incorresse em descrédito, haveria risco de

grave perda identitária, a irromper não apenas nos claustros femininos, mas passível de

afetar segmentos clericais e leigos, que partilhavam com o monaquismo determinadas

expressões de fé. Eclodiria, portanto, um “desenraizamento”, processo cuja violência

não deixa incólume uma cultura: segundo Ecléa Bosi, ele destrói simbologias,

fragmenta relações e elimina utopias de futuro, pessoais e coletivas.171 Assim, Madre

Maria José, além de comunicar-se com a Sagrada Congregação Consistorial, também

redigiu uma carta a todos os Carmelos femininos brasileiros, instando as irmãs a não

aceitarem, em sua integralidade, as mudanças sugeridas na Constituição Sponsa Christi:

[...] Quisera, minha querida madre, e é isto que venho propor a V.R., que nos uníssemos – todos os Carmelos, todas as Carmelitas – num só coração e numa só alma, para manter e conservar o que N. Sta. Madre estabeleceu sob inspiração do Espírito Santo, e tantos frutos de santidade tem dado no decurso de quatro séculos, aproximadamente. É o que ela nos recomenda em vários lugares de suas Obras. Mudar, alterar, será arruinar, destruir.

Que os Carmelos que podem ajudem os mais necessitados, acho muito bom, e aliás sempre o nosso tem feito assim. Poderia ser ordenado isto nos estatutos da Federação. Tudo o mais – noviciado comum – visitadora – mudanças de Convento por motivo de saúde, de ocupar cargos, etc. – acho absolutamente contrário à nossa Regra e ao que Nossa Santa Madre nos deixou em testamento espiritual.172

Em sua tentativa de obstaculizar as mudanças propostas pelo Vaticano, a

resistência empreendida por Madre Maria José reforçou o viés conservador do

pensamento católico, aferrando-se a uma concepção de temporalidade que, oriunda da

patrística, adotava contornos claramente metafísicos.173 A Madre, assim, compreendia o

171 BOSI, Ecléa. Cultura e desenraizamento. In: BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. Ver também WEIL, Simone. A Condição Operária e Outros Estudos sobre a Opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 347: “O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro”. 172 Carta 1122, à Madre Cecília Maria do Espírito Santo, do Carmelo de Fortaleza, 31 out. 1953. Para o início da carta, ver nota 132. 173 GILSON, Étienne. La Philosophie au Moyen Age. 2a. ed. Paris: Payot, 1952. p. 133. Ver também FORTE, Bruno. A Teologia como Companhia, Memória e Profecia: introdução ao sentido e ao método da teologia como história. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 95-96: “A própria ‘teologia da história’ de Agostinho é mais uma teologia do eterno diálogo entre bem e mal, cujo êxito é predestinado por Deus [...] Por isso, embora o tempo e suas interrogações não estejam absolutamente ausentes do anseio pastoral dos Padres, correm o risco de serem lidos amortecendo sua corporeidade [...] De tal sorte que as próprias surpresas do advento correm o risco de desvanecer: o senso forte das coisas

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processo histórico por um viés teleológico: a existência da humanidade desdobrar-se-ia

em uma trajetória encadeada pelas intervenções da Providência divina. A culminância

deste percurso teria ocorrido na Encarnação e na Ressurreição do Filho, já sendo,

porém, antecipada pelas revelações proferidas aos judeus, o “povo escolhido”, bem

como sucedida pela edificação da “Cidade de Deus” ou do “Corpo Místico de Cristo”,

representado pela Igreja; tal desenrolar aguardaria ainda um novo e derradeiro ápice, a

anunciada Parusia, com a segunda vinda de Jesus e o fim dos tempos.174 Madre Maria

José reconhecia, desta forma, um sentido intrínseco à história, nem sempre transparente,

mas inexorável, cuja plenitude só seria elucidada na dimensão escatológica, conforme

afirmou a seu pai: “[...] que felicidade crer, amar a Deus, abandonar-se à sua Divina

Providência! Então tudo se explica, tudo é luminoso e evidente. A Sabedoria de Deus é

a explicação do que não se compreende; as alegrias eternas justificam as dores do

exílio”.175

Ainda segundo a ótica de Madre Maria José, se a duração encontrava-se

revestida por um valor positivo (sendo elemento imanente à criação e necessário à

salvação), qualquer remissão à temporalidade deveria ser promovida de maneira

estática, tomando-se como referência um real idealizado – um sonho de Cristandade.

Reiterava-se, assim, a memória de uma hegemonia cultural católica (geralmente

remetida à época do medievo),176 em um movimento sincrônico de refutação de

qualquer projeto revolucionário, ou até ao aprofundar de mudanças porventura em

curso, como indicado pela própria Madre:“É certo que a não estar tudo escrito e bem

incutido no espírito de cada uma, com o tempo não faltarão inovadoras, amigas de

mudar o que os outros fizeram”.177 A cronologia era assim considerada, no bojo do

ideal contemplativo, sob um enfoque retrospectivo (o presente sendo o último ponto do

passado, enquanto as vertentes “progressistas” o viam como o começo do futuro) e co-

futuras e novas tende a se diluir. Isso explica também por que o uso funcional e político desta teologia pôde ser freqüente [...]”. 174 MARROU, Henri. A teologia da História. In: VVAA. História e Historicidade. Lisboa: Gradiva, 1988. p. 92. Ver também LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1994. p. 65: “O Cristianismo favoreceu uma certa propensão para raciocinar em termos históricos, característica dos hábitos do pensamento ocidental, mas o estreitar de relações entre o cristianismo e a história parece-me dever ser esclarecida. [...] o Cristianismo não pode ser reduzido à idéia de um tempo linear: um tipo de termo circular, o tempo litúrgico, desempenha nele um papel de primeiro plano. [...] Por outro lado, o tempo teleológico e escatológico não conduz necessariamente a uma valorização da história. Podemos considerar que a salvação tanto se realizará fora da história pela recusa da história, como através da história e pela história. As duas tendências existiram e existem ainda no Cristianismo”. 175 Carta 81, a Capistrano de Abreu, 24 out. 1922. 176 VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. Cit. p. 130. 177 Carta 437, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 31 mai. 1937.

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extensivo (o passado sendo concebido de forma una com o presente, enquanto os

“progressistas” o percebiam como um diferencial).178

Justamente por conter este traço conservador, o ideal contemplativo delineado

pela Madre pôde conviver durante algumas décadas com o modelo da Neocristandade.

Diferindo da Cristandade medieval por operar no interior de uma cultura secularizada e

por haver rompido com a relação bipolar Igreja-Estado, a Neocristandade retinha, como

permanência, a noção de um tempo das “essencialidades”, basilarmente sacral – daí o

termo “Restauração Católica”, muito empregado pelo episcopado brasileiro para

designar a atuação da Igreja no período,179 cuja inspiração remonta ao lema de Pio X

(1903-1914) - Instaurare omnia in Christi: A atuação instauradora de Me. Maria José de Jesus no âmbito do Convento

de Santa Teresa e de toda a Ordem Carmelitana no Brasil expressa uma atitude característica desse período da história da Igreja [...] o lema de são Pio X [...] significava retomar conceitos e práticas tradicionais, cujo conteúdo e sentido eram considerados eternos pela doutrina da Igreja, e propô-los à sociedade moderna, sem negar a especificidade dos novos tempos. Admitia-se, portanto, mudanças formais, na medida em que se reconhecia evolução histórica da cultura, do pensamento, das sensibilidades; porém, procurava-se deixar claro que os princípios continuavam a ser os mesmos, já que, como pressuposto, nada havia mudado na economia da salvação.180

Era tal noção de historicidade que deveria nortear a ação pública dos fiéis, instados a

tornarem-se os protagonistas de uma reordenação ética e cultural, em moldes cristãos,

das instituições sociais e das esferas governamentais brasileiras, juridicamente laicas.181

Já na perspectiva da Sponsa Christi, que transitava da Neocristandade ao

Cristianismo contemporâneo, o sagrado não consistia em uma instância distinta, mas

encontrava-se mesclado nos eventos do mundo, e a mudança histórica serviria quer para

revelá-lo, quer para aprimorá-lo: neste sentido, a Constituição Apostólica de Pio XII é

178 VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. Cit. p. 157: “A leitura da revista A Ordem aponta uma série de indicadores que possibilitam a reconstituição do pensamento do grupo católico [...] O passado é constantemente retomado, compreendido como ‘criador de valor’. [...] A revista retoma o passado, não apenas no intuito de ‘salvá-lo do esquecimento’, mas pretendendo torná-lo força viva e atuante no presente”. 179 AZZI, Riolando. A Neocristandade. Op. Cit. p. 21: “A palavra ‘restauração’ passa a ser utilizada pelos bispos brasileiros como eco do lema do pontificado de Pio XI [sic] [...] restaurar é estabelecer em perfeita forma o modelo antigo. O termo ‘restauração católica’ tem um sentido análogo. Não se trata de introduzir novas perspectivas ou novas orientações na vida da Igreja, mas fundamentalmente em reconduzir a instituição eclesiástica a um modelo antigo. Esse modelo, na consciência da hierarquia eclesiástica, é o de uma Igreja entendida como poder espiritual, que no exercício de sua missão colabora com o Estado na manutenção da ordem social”. 180 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 253. 181 Conforme o conceito de “Neocristandade” ou “cristandade pós-constantiniana” formulado por GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit.

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iniciada com uma historicização da vida monástica feminina, numa processualidade que

elenca “As primitivas Virgens cristãs”, “O antigo monacato”, “As Monjas na Idade

Média”, “Novas formas a partir do século XVI” e “Situação atual”, conhecimento

preliminar e ratificador dos “Motivos a aconselhar uma adaptação”. Neste último item,

a Constituição considerava que:

Não só em relação às Ordens apostólicas, mas também às Ordens meramente contemplativas, as circunstâncias de tempo e a grave penúria, à qual freqüentemente estão sujeitas, parecem exigir e reclamar mitigações ou interpretações mais largas. [...] Encontramos, porém, na Instituição das Monjas, certos elementos, não necessários nem complementares, mas apenas extrínsecos e históricos, nascidos de condições do passado, hoje profundamente alteradas. Quando tais elementos deixam de ser úteis ou impedem um bem maior, nenhuma razão parece haver de conservá-los.182

E, para grande preocupação de Madre Maria José, a ameaça ao ideal

contemplativo parecia agravar-se cada vez mais, pois as tentativas de revisão de

determinados aspectos da vida monástica, promovidas pela Santa Sé, não se limitavam

ao texto da Sponsa Christi. Em carta escrita pouco mais de um mês depois àquela

enviada ao Cardeal Piazza, Madre Maria José confidenciava à Madre Evangelista,

priora do Carmelo da Santíssima Trindade, e antiga monja do Convento de Santa

Teresa:

[...] estamos bem preocupadas com as notícias de mudanças e alterações na nossa Ordem que desejam introduzir. Soubemos que se pensa em Superiora Geral, Visitadoras, noviciado comum, etc. como as congregações modernas.

V.R. [Vossa Reverência] viu uma carta dirigida a todos os Bispos do mundo pela S.C.R. [Sagrada Congregação dos Ritos]? Por ela os Bispos ficam autorizados a empregar em obras ativas as monjas de vida contemplativa, segundo as necessidades. Em cada Diocese, portanto, o Carmelo poderá ser diferente. E há tantos Bispos que não apreciam a vida de oração. [...] Ah! Minha Madre, será possível que em nossa vida vejamos praticamente destruídos os desertos de Nossa Sta. Madre, os pombais da Virgem, os ninhos de amor de Nosso Senhor? [...] não sei o que nos espera no futuro. 183

O dilema vivido por Madre Maria José tornava-se pungente, pois suas

considerações acerca do ideal contemplativo descambavam em divergências diretas com

as determinações do Vaticano. Desta forma, embora a Madre fizesse questão de afiançar

182 Art. 22 e 23. Constituição Apostólica Sponsa Christi. Op. Cit. 183 Carta 1049, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 21 jul. 1952.

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sua fidelidade ao Papado, ela também resguardava as possibilidades legais que

pudessem assegurar o ideal por ela preconizado:

Recebemos a carta de V.R.[Vossa Reverência] sobre a Sponsa Christi e estamos de pleno acordo. Nem pode haver dúvida sobre este ponto de nos submetermos incondicionalmente à Santa Sé. Se não o disse foi por ter escrito muito às pressas e por ser uma coisa tão evidente que nem se precisa dizer. Mas que nós procuremos conservar a nossa vida tal como a fez Nossa Santa Madre enquanto a Santa Sé não determinar positivamente o contrário em relação a nós em particular, acho que não é falta de submissão. 184

O conflito desdobrou-se para além das idéias e da normatização institucional,

abarcando também as práticas cotidianas conventuais. Assim, em uma de suas cartas, a

Madre pedia às Irmãs que “[...] rezem muito para eu conhecer a santa Vontade de

Deus, porque o Sr. Cardeal esteve aqui, e Me. Subpriora falou-lhe sobre a nebulização

[tratamento recomendado devido às crises de asma de Madre Maria José]. Eu disse:

Uma coisinha que Nosso Senhor manda, e a gente não pode sofrer, há de buscar logo

remédio! Respondeu que antes ele pensava assim, mas que o Sr. Cardeal Piazza e o Pe.

Larraona [Prefeito da Sagrada Congregação dos Religiosos] eram de opinião contrária,

e ele então agora facilita”.185 A nova orientação dada pelo cardeal D. Jaime constava,

não por coincidência, da Sponsa Christi: “Hoje, por exemplo, a opinião pública,

denominada ‘sentido social’, dificilmente poderia tolerar, mesmo ao tratar-se de

Monjas contemplativas, interpretação estrita do Cânon 601 [do Código de Direito

Canônico].186 Por esse motivo, a Santa Sé provê materialmente e cada vez com mais

indulgência, às necessidades e vantagens que, segundo o antigo critério jurídico, não 184 Carta 1051, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 14 ago. 1952. Este resguardo de autonomia evidenciou-se na Carta 1122, à Madre Cecília Maria do Espírito Santo, do Carmelo de Fortaleza, 31 out. 1953: “Com fraternal confiança venho falar com V.R. sobre o assunto da Federação que se pretende estabelecer entre os nossos Carmelos do Brasil. Sé é desejo da santa Sé, está visto que não devemos recusar; mas a nós pertence o estabelecer as bases do acordo, e isto podemos fazer sem escrúpulo nem constrangimento e sem a mínima imperfeição.” 185 Carta 1440, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, final set. 1958. 186 Cf. CANCE, Adriano y ARQUER, Miguel de. El Código de Derecho Canónico. Comentário Completo y Pratico de Todos Sus Cânones para Uso de Eclesiásticos y Hombres de Leyes. Barcelona: Liturgica Española S.A., 1934. p. 498, em referência ao Cânone 601: “Clausura papal das monjas. 2o. As monjas estão também sujeitas à clausura ativa, em virtude da qual, depois da profissão, nenhuma delas pode sair do monastério nem que seja por pouco tempo, sob qualquer pretexto, sem indulto especial da Santa Sé, fora do caso de eminente perigo de morte ou outro mal gravíssimo; este perigo, se o tempo o permite, tem de ser reconhecido por escrito pelo Ordinário do lugar”.

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eram consideradas tão graves que tornassem lícita a infração ou isenção da clausura

pontifícia”.187 Assim, não apenas os costumes claustrais, mas também a simbologia que

os perpassava começavam a dotar de visibilidade os novos rumos da Igreja no Brasil.

1.5- “Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19)

Madre Maria José, todavia, não estava sozinha na batalha a que se lançara. Em

uma de suas cartas, a Madre descreveu a postura assumida pelo Cardeal D. Jaime que,

como ela, mostrava-se resistente às mudanças emanadas do Vaticano:

O Sr. Cardeal respondeu espontaneamente à Sagrada Congregação para os Religiosos que no Brasil as Religiosas de vida contemplativa são poucas e auxiliam materialmente as obras sociais. Aqui, no locutório, nos disse que poderíamos auxiliar as Servas dos Pobres (da Isa)188 e elas dariam catecismo etc. por nós. Disse-nos até que uma das razões de quererem fazer isso é porque os Conventos da Itália são muito pobres e o Governo paga a quem ensina catecismo. [...] V.R.[Vossa Reverência] não acha que poderia haver catecismo em nossas Igrejas, feito por moças conhecidas? Como depende do Ordinário [do bispo local, no caso, D. Jaime] a decisão, não seria difícil alcançar dele a licença. O Sr. Cardeal disse que breve tem de ir a Roma e tratará desse negócio.189

O confronto, assim, ultrapassava os muros da clausura, não deixando

indiferentes os integrantes do corpo eclesiástico. A Santa Sé, visando reforçar seus

novos postulados, nomeava bispos favoráveis às adaptações pretendidas e,

paralelamente, enfraquecia a posição de antigos prelados, de cunho mais conservador,

como D. Jaime. Com isso, o Vaticano alterava a postura que adotara ao final do século

XIX, quando apoiou o fortalecimento do monacato, tanto masculino como feminino, em

países onde irrompera a separação Igreja-Estado, como no Brasil. No caso brasileiro,

inclusive, o Papado discordou do parecer de seu internúncio no país, Monsenhor

Francisco Spolverini (1887-1891), que considerava a reforma dessas Ordens religiosas

ser uma tarefa impossível e defendia a incorporação de seus bens pelas dioceses. Após

sua substituição no cargo por D. Jerônimo Maria Gotti (1891-1898), antigo superior do

187 Art. 23. Constitiuição Apostólica Sponsa Christi. Apud: Legislação para as Monjas. Op. cit. 188 Sobrinha de Me. Maria José, que fundara em 1948 a Congregação das Servas dos Pobres, vinculada à Ordem Teresiana. 189 Carta 1051, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 14 ago. 1952. Conforme também Carta 1135, à Madre do Carmelo de Petrópolis, 3 dez. 1953: “O Sr. Cardeal nos apóia, prometeu falar a um dos principais da S. C. [Sagrada Congregação] dos Religiosos em nosso favor.”

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Carmelo Descalço, foram iniciadas negociações com segmentos europeus das mesmas

Ordens, o que motivou o envio de religiosos e de algum suporte econômico.190 Aliás,

segundo Madre Maria José, D. Gotti, na visita que fizera ao Brasil em 1892,

[...] em missão do Santo Padre Leão XIII a visitar os Conventos, colaborando na grande reforma que realizava o insigne Pontífice em todas as ordens religiosas [...] [teve] imensa a consolação ao visitar as suas Irmãs Carmelitas. [...] Falou a todas no locutório, informou-se das origens da fundação, recolheu as tradições, compadeceu-se dos trabalhos e sofrimentos da Comunidade e finalmente visitou por três vezes a clausura. [...] Seu coração de Prelado e de Carmelita enterneceu-se perante o heroísmo daquelas filhas de Santa Teresa [...] Determinou que, o mais depressa possível, receberiam as pupilas191 canonicamente o Santo Hábito e professariam, após tão longo Noviciado.192

Já no novo momento histórico, a Santa Sé nomeou como núncio193 D. Armando

Lombardi (1954-1964), prelado vinculado à vertente “progressista” do Vaticano, que

conferiu grande destaque às questões de ordem social.194 D. Armando influía

decisivamente na indicação dos novos titulares das dioceses recém-criadas, cujo número

crescia rapidamente no Brasil. Com isso, de forma gradual, mas incisiva, a sede

decisória da Igreja, antes concentrada no Rio de Janeiro, fragmentou-se pelas principais

arquidioceses do país. Ademais, configurava-se uma distinta composição de poder

eclesiástico, paulatinamente liderada por um dos novos bispos que despontavam no

cenário brasileiro, D. Hélder Câmara, por cuja iniciativa foi fundada a Confederação

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952.

A constituição de vertentes eclesiásticas em disputa não conduziu, porém, a uma

cisão do clero brasileiro. As relações entre os prelados pautavam-se, neste período, mais

pela conciliação do que pelo embate frontal, o que foi evidenciado pela presidência de

D. Armando Lombardi em celebrações litúrgicas no Convento de Santa Teresa -

190 Cf. GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 859; CAMARGO, Paulo Florêncio da Silveira, mons. História Eclesiástica do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1955. p. 387-388. 191 Denominavam-se “pupilas” as mulheres que viviam na clausura sem os votos religiosos, devido ao fechamento compulsório dos noviciados, ocorrido no Brasil a partir de 1855, legislação que perdurou até o fim do Padroado, com a proclamação da República. NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e Religião: as enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia. Bahia, 1994. p. 368. 192 CARMELITAS DE SANTA TERESA. Convento de Santa Teresa: notícia histórica pelas religiosas do Convento. Rio de Janeiro, 1955. p. 47-48 193 A Nunciatura, ou representação diplomática da Santa Sé no país, fora restaurada em 1901, em atendimento ao pedido de Campos Sales, e elevada à condição de primeira classe em 1919, paralelamente à promoção da representação brasileira no Vaticano à categoria de embaixada. CAMARGO, Paulo Florêncio da Silveira, mons. Op. Cit. p. 386. 194 DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX. Estudos Cebrap. n. 12., 31-38, abr.-jun. 1975.

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“Tivemos muito consoladora a festa de ontem com a Missa do Exmo. Sr. Núncio” 195 -

, que também deixou ótimas impressões por ocasião de sua visita ao monastério em

setembro de 1958, conforme comentado por Madre Maria José em bilhete enviado à Ir.

Maria da Conceição da Virgem Dolorosa: “Ontem o Sr. Núncio veio cá. Um Pai. Vou

escrever-lhe agora”.196

A divisão interna quanto ao projeto de Igreja e sua maior ou menor vinculação

ao antigo ideal contemplativo também atingiu o ramo masculino da Ordem Teresiana.

Alguns integrantes do Carmelo Descalço mostravam-se favoráveis a certas mudanças,

conforme se depreende de outra carta de Madre Maria José:

Nós respeitamos e guardamos muito nossas tradições; os P.P.[Padres] pela força das circunstâncias (vigários, ministério, obras sociais, etc. etc. etc.) vão-se modernizando e querem arrastar-nos consigo. Se eu lhe pudesse contar muitas e muitas coisas... Com que direito arbitrariamente mudam, tiram coisas antiqüíssimas e introduzem novas? Num Cerimonial mandam a Comunidade para o coro às 13 hs. para rezar 5 P.N.[Pai-Nossos], 5 A.M. [Ave-Marias] e 5 Gl.P. [Glórias-ao-Pai] Na parva [refeição leve, em substituição ao almoço] dos jejuns da Ordem, dizem, pode-se comer 7 onças de pão. Tiraram Completilhas nos dias de Matinas cedo. E o canto Gregoriano? Que coisa contrária ao nosso espírito! Na Revista de Burgos El Monte Carmelo eu mesma li anúncios de Carmelos que precisam de organista, como se usa no mundo.197

Todas essas alterações, que estonteavam Madre Maria José, não se mostravam

mais simples aos Carmelitas Descalços. Assim como as monjas, os frades defrontavam-

se com a urgência da promoção de escolhas que definiriam o rumo de sua presença no

Brasil. Parte desses religiosos defendia uma atuação mais decisiva da Ordem no campo

do apostolado, postura em sintonia com as reivindicações dos bispos locais, ansiosos

por aumentarem o número de sacerdotes em seus quadros.198 Assim, alguns integrantes

da Província Romana do Carmelo Descalço chegaram ao país em 1911 199 e, atendendo

195 Carta 1355, ao Cardeal D. Jaime Câmara, 16 out. 1957. 196 Carta 1437, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, 22 set. 1958. 197 Carta 1075, à Madre do Carmelo de Santos, 27 dez. 1952. 198 O clero secular, além de encontrar-se apenas parcialmente romanizado, era pouco numeroso. Em 1917 havia apenas 150 padres seculares no Rio de Janeiro, dos quais apenas 53 eram plenamente vinculados à Arquidiocese. Também o número de seminaristas não havia sido ampliado. Ver GOMES, Franscisco José Silva. Op. cit. p. 852. 199 Historia del Carmen Descalzo em España, Portugal y América. Tomo XIV (1879-1948). Burgos: El Monte Carmelo, 1949. p. 735. Ver Anexo 4.

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ao convite do episcopado de Minas Gerais, assumiram diversas paróquias.200 Ao final

da década de 20, contudo, tiveram de deixar o estado devido às dificuldades para seu

crescimento institucional naquelas áreas rurais. A mudança dos religiosos foi precedida

pela permissão do primeiro cardeal do Rio de Janeiro, D. Joaquim Arcoverde, para sua

instalação na cidade, que dispunha de número mais expressivo de fiéis e de recursos

financeiros, embora sua primeira tentativa, não vitoriosa, tivesse como destino a cidade

de São Paulo.201 Desta feita, a atuação pastoral dos carmelitas descalços mostrou-se tão

eficaz202 como frutuosa, sendo inaugurados em 1925, após quatro anos de obras, a igreja

de Santa Teresinha e o convento masculino da Ordem.

Desde sua chegada ao Rio de Janeiro, os carmelitas descalços mantiveram

ligações com as irmãs do Convento de Santa Teresa, tornando-se seus confessores;203 a

direção eclesiástica do monastério, contudo, continuou a ser exercida pela Arquidiocese.

Além das confissões e da presidência das celebrações, os frades também atuaram, a

partir da década de 40, na pregação de retiros, conforme solicitação de Madre Maria

José ao então vigário-capitular da Arquidiocese, monsenhor Rosalvo Costa Rego:

“Peço a V.R. resposta sobre o retiro: se podemos convidar o Padre Frei Alberto, C.D,

ou se V. Excia. quer outro”. 204 O eclesiástico autorizou a indicação, registrando-se o

fato em uma das biografias da Madre: “1943. De 1o a 10 de agosto: Retiro anual da

200 BUZZA, Onorio de. Sintesi storico cronológica della Província Romana dei Padri Carmelitani Scalzi. Roma: Edizioni ocd, 1987.p. 101-103. Ver Anexo 4. 201 Ibid. p. 104. 202 Revista Eclesiástica da Arquidiocese do Rio de Janeiro, 1921. p. 79-80: “Em 1 de fevereiro de 1921, foram concedidas ao Revdo. Sr. Frei Serafim de Santa Teresa, Vigário Provincial de Padres Carmelitas Descalços, as seguintes faculdades [...] com autorização de comunicá-las aos sacerdotes da mesma Ordem que residirem nesta Arquidiocese, ou que aqui estiverem de passagem: 1o Celebrar o Santo Sacrifício da Missa; 2o Ouvir confissões de homens e mulheres. Quanto às confissões de Religiosas Noviças e demais pessoas recolhidas em comunidades religiosas de mulheres, nos enviará a lista dos sacerdotes da Ordem, que estiverem no caso de aprovados para esse fim. 3o Binar [Celebrar duas missas] aos domingos e dias santificados nas paróquias e a pedido dos Revmos. Párocos [...] 4o Pregar em todas as igrejas e oratórios públicos ou semi-públicos”. 203 “[...] foi passada provisão de confessor ordinário das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa, por três anos, em favor do R. Frei Serafim de Santa Teresa”. Revista Eclesiástica da Arquidiocese do Rio de Janeiro, 1920, p. 45. 204 Carta 571, ao Vigário-capitular Rosalvo Costa Rego, 7 mai. 1943.

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comunidade, pregado pelo carmelita descalço Pe. Alberto de Santa Teresa. É a

primeira vez que um padre da Ordem prega retiro naquela comunidade, sendo motivo

de grande alegria”.205 Um novo retiro, conduzido por frei Ludovico de Santa Teresa,

ocorreu em 1949.

Pode-se deduzir, contudo, com base nas poucas menções constantes do

epistolário de Madre Maria José, que a presença dos Carmelitas Descalços junto ao

Convento de Santa Teresa foi promovida de forma relativamente esporádica e tardia,

devido ao pequeno número de religiosos, o atendimento a seus demais compromissos

pastorais e a relativa dificuldade de locomoção na cidade.206 A prioridade da Ordem no

Brasil parecia efetivamente recair sobre o exercício do apostolado.207

Em contraposição, um outro grupo do ramo masculino do Carmelo Descalço

privilegiava a dimensão contemplativa e, embora os frades não adotassem a clausura,

defendiam o direcionamento de suas ações em uma perspectiva nitidamente espiritual,

destacando-se a promoção dos sacramentos e a direção religiosa, concentradas em torno

dos conventos masculinos e femininos. Isso ocorria, sobretudo, com os membros

ligados à cúpula da Ordem que, formados e atuantes na Europa, viam-se premidos por

necessidades distintas de evangelização. Desta maneira, frente aos ditames apresentados

pela Sponsa Christi, a alta liderança do Carmelo manteve-se numa postura mais

205 MARIA JOSÉ DE JESUS, madre. Deus Presente. Op. cit. p. 225. 206 Estas problemáticas também afetavam as religiosas de outros dois Carmelos sediados na cidade: “Era confessor extraordinário da comunidade Frei Antonino do Coração de Maria, carmelita descalço. Conversando certa vez com uma Irmã, ele dissera: ‘Que pena este Carmelo [da Santíssima Trindade] ter ficado tão longe [...]”. Tratava-se do bairro do Engenho Novo, considerado pelo frei “[...] um lugar de difícil acesso para os Padres virem atender as Irmãs.” Cf. CARMELO DA SANTÍSSIMA TRINDADE. Madre Evangelista. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 91. 207 Cf. BUZZA, Onorio di. Op. cit. p. 107-108, 118; A ordem Carmelitana Descalça em S. Roque – estado de S. Paulo (Bosquejos). São Roque: comemorando seu III Centenário. S. Roque, 1957. p. 30-31; VIRGEN DEL CARMELO, Alberto, ocd. Historia de la Reforma Teresiana (1562-1962). Madrid: Espiritualidad, 1968. p. 651; SANTA TERESA, Silvério. Op. cit. p. 734-755. Ver Anexo 4.

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próxima àquela apregoada por Madre Maria José: “Nossa Madre consultou Nosso R.

Pe. Geral. Ele respondeu que é contrário às Federações e a todas as mudanças.” 208

Aliás, os vínculos entre Madre Maria José e a liderança central dos teresianos

vinham sendo estreitados desde a década de 30, quando a Madre foi responsável pela

tradução para o português dos documentos da Ordem. A partir de então, foram

contínuas as relações do Convento de Santa Teresa com a Casa Geral do Carmelo

Descalço. As monjas auxiliavam com doações financeiras em momentos excepcionais –

“Peço também licença para duas esmolas: uma de 200$000 ao Provincial de nossa

Ordem em Nápoles, onde seis Igrejas e Conventos nossos foram quase arrasados com o

terremoto [...]” 209 – e realizavam transações contratuais, devidamente autorizadas pelo

arcebispo do Rio de Janeiro, como a que estabeleceu “[...] o seguinte acordo [com o

Superior dos Carmelitas Descalços] que ele aceita: o nosso Convento fará os gastos

com a impressão e a compra dos direitos de tradução, que são reservados, e ele tomará

conta de toda a tiragem e nos restituirá integralmente, dentro de algum prazo

previamente combinado, tudo que houvermos gasto [...]”.210 Os contatos epistolares

entre as carmelitas e os religiosos também eram regulares: “Os Missais da Ordem já

encomendei [...] se quiser mais, facilmente poderá pedir. Pode escrever ao R. Frei

Lucas de Maria Santíssima. Santa Maria della Vittoria, Via XX Settembro, Roma. Foi

Geral e Provincial e é um verdadeiro Pai.” 211

Esses laços ficaram ainda mais próximos quando o Padre Geral dos Carmelitas

Descalços, frei Silvério de Santa Teresa, visitou o Convento de Santa Teresa em

208 Carta 1049, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 21 jul. 1952. Em outra correspondência, Madre Maria José informa à Madre Evangelista que o Padre Geral “disse que não haveria mudanças contrárias à nossa vida (não me lembro dos termos, mas o pensamento é mais ou menos este) e que poderíamos recorrer à Santa Sé.” Carta 1051, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 14 ago. 1952. Ver também transcrição da Carta 1133, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 21 nov. 1953, nota 137. 209 Carta 249, a D. Sebastião Leme, 22 out. 1930. 210 Carta 138, a D. Sebastião Leme, 29 nov. 1925. 211 Carta 241, a um Carmelo do Rio Grande do Sul, 26 jun. 1930.

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novembro de 1949, por ocasião de sua vinda ao Brasil. Pouco depois, em 1955, foi o

próprio Cardeal Piazza, a quem a Madre escrevera a carta expondo suas restrições à

Sponsa Christi, que visitou pessoalmente o mosteiro: “Nossa Madre não sabia

expressar a sua gratidão; vendo-a assim contida, já prestes a abrir a porta da clausura,

S. Ema. [Eminência] rindo-se disse-lhe: Coragem!”.212 Uma visita do novo Padre

Geral, frei Anastásio de Santo Rosário, ocorreria justamente em plena época da crise

vivenciada pela Madre, no mês de junho de 1958: “Nosso Padre Geral esteve aqui,

achei-o um santo”.213

E foi confiando em suas boas relações com as altas esferas da Ordem, bem como

na posição defendida por esta acerca do ideal contemplativo, que Madre Maria José,

pouco depois desta visita, redigiu uma carta, em tons dramáticos, endereçada ao Padre

Geral: “[...] Nesta época de Advento, escrevo a V.R. para dizer-lhe que estamos nas

mãos de V.R., como é nosso dever, porque é estar nas mãos de N. Sto. Padre. Lembro a

V.R. que não se esqueça de rezar por nós, filhas de V.R.” 214 A materialidade desta

escrita revela a grande ansiedade sentida pela Madre: o texto foi iniciado a tinta até a

palavra “estamos”, mas a última letra e o restante da missiva foi escrito a lápis, o que

lhe conferia aspecto de rascunho; todavia, o papel escolhido pela Madre foi de boa

qualidade, costumeiramente usado pelas irmãs apenas para os originais. Permanece

desconhecido o envio de alguma carta nestes termos à Casa Geral dos carmelitas

descalços em Roma, perdurando a dúvida quanto às intenções da Madre: ela teria

desistido de enviar a missiva da qual redigira apenas um esboço, ou o original existente

no Convento de Santa Teresa não chegou a ser remetido devido ao agravamento de sua

crise de saúde?

212 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, ocd. Op. Cit. p. 273. 213 Carta 1381, à Irmã Maria do Carmo, 13 jun. 1956. 214 Carta 1468, ao Prepósito Geral da Ordem dos Carmelitas Descalços, 24 ou 25 jan. 1959.

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Em paralelo a seus contatos com eclesiásticos, Madre Maria José continuava a

corresponder-se com as prioras teresianas. Assim, adotando uma atitude cautelosa

quanto ao teor da carta que anteriormente enviara aos Carmelos femininos, a Madre

esclareceu, em novos textos, ter sido autorizada pela hierarquia da Ordem: “A respeito

do negócio da Federação, Nosso Padre Geral e Nosso Padre Provincial, ou antes, este

último, depois de ter combinado com o Nosso Padre Geral, escreveu à Madre Inês, em

carta que conservamos, que o nosso Convento, como o mais antigo, escrevesse os

outros, orientando-os.” A Madre, dessa forma, legitimava seu discurso, remetendo-o ao

poder clerical - “Eles são contrários às mudanças” – e, com isso, eximia-se de estar

apenas defendendo suas pretensões: “Mas, quando escrevi, nem me lembrei disso, nem

tive pretensão de fazer circular; escrevi como irmã, porque os Carmelos muitas vezes

escrevem propondo dúvidas sobre o Cerimonial”. A seguir, ela associou sua atitude à

autoridade divina: “Nós todas temos tão reta intenção, tão boa vontade, tanto amor à

nossa Ordem, que Nossa Mãe Santíssima nos fará acertar com a santa vontade de

Deus, que unicamente buscamos.” 215 Tendo validado sua escrita, a Madre aguardou as

respostas dos Carmelos, as quais não se fizeram esperar:

[...] Graças a Deus, os Carmelos quase todos, a uma voz, me têm respondido

aderindo plenamente ao nosso desejo de manter intacto o que N. Sta. Madre

nos deixou. Escrevi a todos, inclusive aos 6 do Rio Grande, e são poucos os que

ainda não responderam. A Priora do Méier é uma coluna firme. A Me. Ma.

Evangelista pensa um pouco diferente de nós, mas é uma alma muito reta,

esclarecida e santa; se vir que a razão está conosco, não hesitará em ceder. Do

C.[Carmelo] de Teresópolis ainda não recebi resposta.216

215 Carta 1133, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 21 nov. 1953. 216 Carta 1135, à Madre do Carmelo de Petrópolis, 3 dez. 1953.

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Vislumbra-se, portanto, que a posição de Madre Maria José, embora fosse

hegemônica, não excluía a existência de discordâncias, ainda que pontuais:

Agora mais do que nunca o desejava, primeiramente para ver V.R. [Vossa Reverência] ainda uma vez antes de morrer, e depois para falarmos coração a coração sobre a Federação. Queria dizer-lhe direitinho o que penso e que V. R.. fizesse o mesmo para nos esclarecermos mutuamente. Aliás, a diversidade no modo de pensar não altera na mínima coisa a união e a confiança, pois ao essencial queremos o mesmo, que é o bem de Nossa Santa Ordem, apenas o ponto de vista é diferente, e isto é muito natural; até os santos o tiveram. Só quero uma coisa, e cada vez mais: amor e caridade, porque esta permanece eternamente, as outras coisas passam, ao menos com a morte.217

Além disso, mesmo tendo sido constituída, a aliança entre os Carmelos

femininos brasileiros não era poderosa o suficiente para invalidar os intentos do

Vaticano, sendo as religiosas obrigadas a ceder e a negociar:

Esteve aqui o Revdo. Fr. N...., a tratar da Federação, e disse-nos que não

podemos recusá-la; N. Padre Geral pede-nos (depois de ter resistido muito, mas

já viu que não se pode mais) pelo amor de Deus que aceitemos, sob pena de

sermos tido quase como hereges.

Consultei pessoas eminentes, todas de acordo em aceitarmos. Também

acabamos de receber Circular de uma Religiosa falecida em Lisieux, na qual se

fala da reunião que lá houve de todas as Prioras e Delegadas. Graças a Deus

aqui não vai mais haver tal reunião.

Consultei o Sr. D. Abade de S. Bento, que é uma sumidade. Por ele soube

que as Beneditinas claustrais já fizeram a Federação, mas sem mudar nada na

Regra, apenas com um Abade Visitador.

Podemos fazer assim, com aprovação do R[everendo]. [...]: 1o conservando sem mudança as Regras; 2o tendo um Assistente eclesiástico da Nossa Ordem (pois é forçoso ter um, parece que melhor será da N.O.; 3o os Conventos que podem, ajudando os necessitados; porém não tendo os bens em comum. Mandou-nos o R[everendo]. Fr. N..... umas folhas com um questionário para cada Irmã responder separadamente, inclusive as de véu branco e as noviças, e remeter-lhe. Disse que a Priora pode e deve orientar as Irmãs e se alguma responder que não quer, ele aceitará.218

Por fim, para momentânea gratificação de Madre Maria José, a situação parecia

ter chegado a um consenso: “[...] inesperadamente tivemos a visita do Pe. Larraona, 217 Carta 1160, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 26 mar. 1954. 218 Carta 1146, a uma Irmã do Carmelo de Campinas, 22 jan. 1954. Grifos de Madre Maria José.

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trazido pelo nosso santo Cardeal. É secretário da S.C. [Sagrada Congregação] dos

Religiosos. Assegurou-nos que nada será mudado em Nossa Santa Ordem. Ele mesmo

nos defenderá ser for preciso. Aconselha a Federação, mas deixando liberdade das

condições em que será estabelecida etc.” 219 O resultado final parecia ter sido

satisfatório: “A última notícia que tive da Federação foi que por enquanto puseram

uma pedra em cima. Rezemos” .220

A “pedra”, porém, foi rapidamente retirada, pois em uma alocução dirigida às

religiosas contemplativas do mundo inteiro através de radiodifusão, em 2 de agosto de

1958, Pio XII retomou seus pronunciamentos anteriores:

Que os Mosteiros e as Ordens de Monjas estimem seu caráter próprio, o protejam e lhe permaneçam fiéis, é seu direito e seria injusto não tê-lo em conta; devem, porém, defendê-lo sem estreiteza de espírito e sem rigidez, para não dizer, sem certa obstinação que se opusesse a toda evolução oportuna e não se prestasse a adaptação alguma, mesmo quando o bem comum o exige. [....]

Quando se trata de pontos secundários que não desempenham na vida religiosa senão papel complementar, os mosteiros e as Monjas devem estar prontos a aceitar os intercâmbios de idéias e a colaboração que a Santa Sé lhes propuser. Em particular, procurarão estabelecer relações tão respeitosas quanto confiantes com a Sagrada Congregação dos Religiosos, tanto mais que esta não pretende de forma alguma passar além dos direitos adquiridos, mas deseja ter em conta o parecer dos mosteiros e das Ordens de monjas. Esta colaboração é particularmente desejável, quando se trata de formar Federações de mosteiros ou Ordens, ou mesmo de uma Confederação de Federações.

Os textos da Sponsa Christi mostram que se trata não de fazer violência nestas questões à justa independência dos particulares, mas de protege-la e garanti-la. Esforçai-vos, pois, por colaborar com a Autoridade eclesiástica competente, a fim de favorecer a adaptação e a evolução salutar desejadas pela Igreja.221

Em novembro deste mesmo ano, entretanto, Pio XII viria a falecer. A abertura da

linha sucessória no Vaticano tornou-se motivo de ardentes preces de Madre Maria José:

“Amanhã, festa de Cristo Rei, renovemos o nosso amor, a nossa fidelidade ao nosso

Deus. Ele nos dê um Papa segundo seu Divino Coração e todo de Maria.” 222 Mas a

219 Carta 1148, à Me, Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 9 fev. 1954. Cf. também Carta 1154, à Madre do Carmelo de Campinas, 2 mar. 1954: “O próprio representante da Santa Sé, R. Padre Larraona, tranqüilizou-nos completamente. Prometeu que nada será mudado em Nossa Santa Ordem. Ele mesmo nos defenderá, se for preciso. A Federação não é obrigatória, mas, sendo desejo da Santa Sé que a abracemos de livre vontade, isto deve bastar para nos mover a abraçá-la. Terá ela somente a extensão que lhe quisermos dar; e também a nós cabe fixar as atribuições do Assistente eclesiástico. Encareceu muito nosso fim apostólico, chegando a dizer que uma Diocese que não tem Carmelo, não é completa.” 220 Carta 1126, à Madre do Carmelo de Uberaba, 31 out. 1953. 221 Radiomensagem de Sua Santidade Pio XII às Religiosas de Clausura. Terceira Alocução. 2 de agosto de 1958. Documentos Pontifícios 137. Petrópolis: Vozes, 1961. p. 129-130. 222 Carta 1455, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 26 out. 1958.

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eleição do novo pontífice deslancharia eventos bastante distintos das suas expectativas –

sob o governo de João XXIII, seria iniciada a maior reformulação da Igreja nos tempos

modernos, o Concílio do Vaticano II.223 A Madre, porém, não assistiria a tal fato: sua

morte, posterior em apenas quatro meses a de Pio XII, assinala o fim de uma existência

que resistiu, ardorosamente, à transmutação do ideal contemplativo, síntese de sua vida

e de seu modo de ser pessoa.

223 É importante destacar os aspectos de continuidade entre o pontificado de João XXIII e o de seus antecessores, no que concerne ao arcabouço doutrinário e à ação pastoral da Igreja, cf. RICCARDI, Andréa. Da Igreja de Pio XII à Igreja de João XXIII. BEOZZO, Oscar e ALBERIGO, Giuseppe. Herança espiritual de João XXIII. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 40-42.

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Ó menestrel de altíssimos amores Bardo que tens por alaúde a Cruz,

E entre sombras vivendo, e esplendores, Ora cantastes as trevas, ora a luz.

Só desprezos e dores sobre dores Cobiçastes na Terra... Mas Jesus

Perseguiu-te com místicos favores... E – mais que a dor – o gozo em ti reluz.

Ó mística Sereia desse Oceano

Que é o mesmo Deus, teu canto soberano Faz o rumor perder, faz naufragar...

Cantas e vagas nessa Imensidade

Oh! Leva-me a esse mar da Divindade! Oh! Faze que eu me afogue nesse Mar!

Ao místico Doutor da Igreja são João da Cruz Madre Maria José de Jesus, s.d.224

224 JESUS, Maria José de, madre. Sonetos e Poemas. V. 1. Rio de Janeiro: Olímpica, 1960. p. 42.

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CAPÍTULO 2

TRADIÇÕES TERESIANAS

2.1 – “...no cume do Carmelo, prostrou-se em terra...” (1Rs 18,42) 225

Em 21 março de 1937, a comunidade do Convento de Santa Teresa comemorou o jubileu de prata da profissão religiosa de Madre Maria José – já se havia escoado vinte e cinco anos que ela jurara pobreza, castidade e obediência, sob a Regra do Carmelo Descalço. A celebração recebeu total aprovação de D. Sebastião Leme: o cardeal determinou que o evento fosse revestido com a maior pompa possível, por considerá-lo uma festa “[...] da arquidiocese, da Igreja e do Brasil”.226 D. Leme fez questão, inclusive, de cantar pessoalmente o Te Deum, e após conferir a bênção solene, declarou em discurso: Há vinte e cinco anos que um coração veio para esse Convento e pulsa por Nosso Senhor. Se compreendêssemos o que vale a oração e a vida de uma Carmelita! [...] Nos Livros de Moisés está que Deus mandou que Josué reunisse os soldados e enfrentasse o inimigo. Moisés porém ficou na montanha com os braços abertos - quando os erguia, a vitória era do povo de Deus, quando os abaixava a vitória tendia para o inimigo. Vinte e cinco anos esta freirinha passou com os braços erguidos afastando as tempestades, os castigos sobre o nosso Rio de Janeiro, a Arquidiocese, o Brasil [...] Quanto a mim, nada faço sem primeiramente recorrer às orações dessa freirinha. Não se trata de uma religiosa qualquer, mas de uma que pertence à grande Ordem Carmelitana, da Reforma de Santa Teresa... [...].227 O pertencimento à Ordem Teresiana, todavia, nem sempre foi considerado por Madre Maria José como uma escolha indubitável e, menos ainda, vislumbrado por ela como condição necessária à formulação do ideal contemplativo, paulatinamente traçado em seu epistolário. Após optar pela vida religiosa, nos idos de 1903,228 a jovem Honorina de Abreu inicialmente cogitara ingressar nas Concepcionistas, 229 comunidade que conhecera ao freqüentar desde 1901 o Mosteiro de Nossa Senhora

225 As citações bíblicas deste capítulo foram retiradas do Primeiro Livro de Reis, capítulos 18 e 19, os quais relatam a atuação de Elias, personagem fundante da tradição teresiana. Elias, cujo nome significa “meu Deus é o Senhor”, teria vivido em Israel entre 910 e 850 a.C., durante o reinado de Acab, sendo considerado um “profeta” (termo grego correspondente à palavra hebraica nabi, pregador, arauto), isto é, uma figura social emergente em período de crise. Neste sentido, os relatos centrados em Elias descrevem as contradições associadas ao processo de centralização político-religiosa vinculado ao culto a Baal (o deus cananeu da chuva e da fertilidade do solo, além de protetor das cidades). Este personagem bíblico, todavia, foi relido pelo cristianismo como personificação do ideal contemplativo, tanto por sua “dedicação às causas divinas” (devido à derrota impingida aos sacerdotes de Baal e à restauração do monoteísmo, cf. 1Rs 18, 21-39), como pela “integridade de sua vida interior” (expressa por sua busca de solidão, de pobreza, de jejum, cf. 1Rs 17,2-6). SCIADINI, Patrício, O Carmelo: história e espiritualidade. São Paulo: Loyola; São Roque: Carmelitana, 1997. p. 20. 226 Carta de D. Sebastião Leme à priora do Convento de Santa Teresa, Madre Josefa de Jesus Maria, 10 mar. 1937. ASD, pasta 10, cf. GALLIAN, Dante Marcello. Madre Maria José de Jesus no Caminho da Perfeição. São Paulo: Paulus, 1997. p. 214. 227 Palavras pronunciadas por Sua Eminência Dom Sebastião Leme, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião do jubileu de Prata de Profissão Religiosa da Reverenda Madre Maria José de Jesus, em 21 mar. 1937, ASD, pasta 10, cf. GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 214-215. Ver também SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Memorial da Vida de Madre Maria José de Jesus, carmelita descalça. Rio de Janeiro, Convento de Santa Teresa, 1968. p. 195-196. 228 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 58. 229 Ibid. p. 56; 61. Ver também Apêndice de Imagem.

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da Ajuda.230 O falecimento, em 1905, de seu confessor e antigo capelão da Ajuda, Mons. Eduardo Cristão, substituído pelo jesuíta Fialho, “[...] muito amigo das carmelitas”, 231 reorientou sua decisão,232 juntamente com a entrada no Convento de Santa Teresa de duas amigas suas: Esther Vieira da Cunha233, ainda em 1905, seguida por Antonietta Paes, em 1909.234 Motivações pessoais entrecruzaram-se a fatores culturais-ideológicos, que incidiram ainda mais favoravelmente na opção de Madre Maria José pelo Carmelo Descalço. No Brasil do início do século XX, a vocação contemplativa vinha sendo revalorizada pela Igreja da Neocristandade - ela era apontada como expressão privilegiada de fé, em contraposição aos valores laicizantes da modernidade: No Brasil [...] Paralelamente à proliferação das congregações de vida ativa, as tradicionais ordens contemplativas, como a das clarissas e a das carmelitas, depois de um período de grande decadência, que atingiu seu auge na segunda metade do século XIX - em conseqüência das medidas do governo imperial que impediam a abertura dos noviciados e as profissões solenes235– começaram a reflorescer com uma vitalidade sem precedentes a partir da última década do século XIX e primeiras do século XX. Restaurados, em grande parte por monjas vindas da Europa, assim como pela ação direta dos bispos reformadores, os conventos da vida contemplativa passaram a exercer um renovado fascínio nas jovens e mulheres brasileiras que buscavam trilhar o caminho da perfeição, seguindo o exemplo de Santa Teresinha, de Lisieux.236

A espiritualidade teresiana adquiriu, nesta conjuntura, um destaque sem

precedentes, pois a Ordem da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo

apresentava a vivência contemplativa como sua tradição maior. As religiosas do

Convento de Santa Teresa eram, assim, consideradas as sucessoras dos antigos

eremitas que, no final do século XII, se instalaram nas encostas da montanha da

Palestina, tornada famosa pelo profeta Elias,237 bem como as continuadoras da

230 A comunidade do Mosteiro da Ajuda permaneceu muito querida à Madre Maria José, mesmo após seu ingresso no Carmelo, cf. Carta 379, a Sóror Ana, 30 nov. 1934: “Como eu amava aquela Ajuda! Tudo ali me era caro, até as paredes... E que união e bom espírito reinava entre nós todos, não é verdade?” 231 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 61. 232 GALLIAN, Dante Marcelo. Op. Cit. p. 99. 233 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 61; Carta 636, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 4 mai. 1945: “[...] ainda é pouco dizer isto: V.R. sabe que tenho para com ela [Esther/Ir. Inês] verdadeira devoção”. Sobre Esther/Ir. Inês do Sagrado Coração de Jesus, ver Anexo 3. 234 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 66; Carta 636, à Madre Antonieta, 4 mai. 1945. “[...] pode crer, meus sentimentos para com V.R. foram, são e serão sempre do maior amor, veneração e união fraterna [...]”. Sobre Madre Antonieta do Amor Divino, ver Anexo 3. 235 Para análise dos entraves à vida religiosa no período imperial, consultar: BARROS, Roque Spencer M. de. Vida religiosa. In: História Geral da Civilização Brasileira. T. II. O Brasil monárquico. V. 4. 2a. ed. São Paulo: Difel, 1974; FRAGOSO, Hugo. A Igreja na formação do Estado liberal. In: HAUCK, João Fagundes et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Segunda época. Petrópolis: Vozes, 1985; QUINTANEIRO, Tânia. O sexo segregado: recolhidas e religiosas. In: Retratos de mulher: o cotidiano feminino no Brasil sob olhar de viageiros no século XIX. Petrópolis: Vozes, 1996. 236 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 105.Cf. 237 Entre 1192 e 1194 (período de vitórias da Terceira Cruzada), alguns peregrinos ou ex-cruzados instalaram-se no Monte Carmelo como eremitas leigos. Constituiu-se, assim uma pequena comunidade, popularizada entre os grupos católicos locais sob a denominação de “carmelitas”. Cf. BOAGA, Emanuele, o. carm. Como Pedras Vivas... para ler a história e a vida do Carmelo. Roma, 1989; SCIADINI, Patrício, ocd. Op. Cit.; INSTITUTO DE ESPIRITUALIDADE TITO BRANDSMA. Curso de Espiritualidade Carmelitana. Recife: Secretaria de Espiritualidade da Província Carmelitana de Pernambuco, 2000.

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reforma realizada quatro séculos depois por santa Teresa e são João da Cruz238: “[...]

nossa observância, nossa oração, nosso amor de Deus, devem ser como os de nossos

Santos Padres do Carmelo ou como os das primeiras Carmelitas da Reforma”.239

Assim, Madre Maria José, ao formular em sua correspondência o ideal

contemplativo, buscava respaldá-lo associando-o à “tradição” teresiana: “Não acho

que não tenhamos tradições. Tantas crônicas, Vidas impressas, obras de autores

carmelitas e, sobretudo, Nossa Santa Madre e Nosso Santo Padre. Tudo não são

tradições nossas? Que Ordem tem mais rico patrimônio espiritual?” 240

Mas o que a Madre compreendia por “tradição”? Percorrendo a correspondência de Madre Maria José, é possível constatar sua grande preocupação em preservar os costumes teresianos sob um viés de continuidade. As roupas, os utensílios, a arquitetura conventual, mas também os gestos e até as palavras, tudo deveria estar em conformidade com os padrões delineados nos Conventos fundados por Teresa d’Ávila. Assim, já em seu primeiro priorado, em 1917, “N. Revda. Madre introduziu as meias da Ordem, correinhas, toucas e véus da noite; fez todos os véus de comunhão de linho, pois não o eram [...],241 seguindo o modelo que lhe fora enviado pelo Padre Geral do Carmelo Descalço, em resposta à sua solicitação.242 Neste assunto, a Madre chegava a ser incisiva: “Não gostei de mudarem os véus de noite; em Petrópolis também inventaram uma touquinha. Para quê? É tão bom fazer tudo com perfeição!” 243 Cada detalhe era alvo de especial atenção de Madre Maria José, como o tipo de fazenda - “Desejo muito túnicas de lã; já que as nossas em outros climas semelhantes agüentam, é preciso fazer penitência. Que pensa V.R.? Seja sempre inteiramente franca.”244-, ou a cor das vestes religiosas: “Se me permite uma observação feita com confiança de irmã, lembro a V. R. que a Madre Maria de S. José, de Sevilha, companheira de N. Sta. Madre, diz que não usamos nada branco, a não ser as capas. Estas, portanto, devem ser brancas, e não cremes.” 245 Também as alpercatas não poderiam ser esquecidas, devido à simbologia da descalcez: Por iniciativa de N. Revmo. Padre Geral, e pelas provas que dá de ser instituição de N. Sta Madre e costume primitivo, em todos os Carmelos do mundo, até na Polônia e nos Estados Unidos, países tão frios, as carmelitas se estão descalçando. Corresponde este termo a usar alpercatas muito abertas e os pés sem meias. Em S. Paulo já o fazem. Peço a V. Emcia, meu bom Pai, tão amigo da nossa perfeição, licença para também nos descalçarmos, tanto mais que as Irmãs o estão querendo muito.246

238 O vínculo do Carmelo Descalço aos profetas vétero-testamentários era compreendido sob uma perspectiva histórica, cf. Mémoire pour la Défense des Congregations Religieuses Suivi des Notices sur les Instituts Visés par les Décrets du 29 Mars. Paris: Librairie Poussielgue Frères, 1880. p. 168-169: “Nous savons bien que ces origines de l’Ordre du Carmel ont recontré de très âpres contradicteurs [...] Mais [...] le Carmel a cet honneur d’avoir vu se lever, au sein des autres familles religieuses une pléiade d’ecrivains de mérite qui ont pris à coeur de venger la vérité de notre filiation prophétique. [...] il faut concluire avec le savant Suarez que le fait de l’origine et de la sucession prophétique de l ‘Ordre du Carmel repose sur les monuments d’une tradition vénerable, digne d’une pleine et entière croyance”. 239 Carta 362, à Irmã Marina, 29 jan. 1934. 240 Carta 820, à Irmã Maria José de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 9 set. 1947. 241 Livro do Tombo. p. 105. Apud: GALLIAN, Dante Marcelo. Op. Cit. p. 182. 242 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 105. 243 Carta 1036, à Irmã Marina, 27 mar. 1952. 244 Carta 609, à Maria Evangelista da Assunção, 24 jun. 1944. 245 Carta 619, à Madre Maria Imaculada, do Carmelo de Pouso Alegre, 20 nov. 1944. 246 Carta 917, ao Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, provavelmente 1ª. quinzena nov. 1949. Cf. também Carta 951, à Irmã Maria Bernadette do Divino Coração, do Carmelo de Teresópolis, mar. 1950.

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Em sentido similar, Madre Maria José esforçava-se por conseguir vários objetos

utilizados pelo Carmelo feminino no tempo de santa Teresa, como colheres de chifre,

por ela pedidas ao pai247 e depois ao irmão,248 e ampulhetas, para que o tempo pudesse

ser marcado sem quebra do silencio monástico.249 O mobiliário conventual era quase

inexistente – ainda em 1917, a Madre “tirou as banquinhas das celas” 250 -, enquanto as

poucas peças ainda mantidas primavam pela sobriedade, como as camas, reduzidas a um

tipo de enxerga: “O que usamos é uma esteira, dessas feitas de gomos, que têm mais ou

menos um dedo de altura, completamente forrada de pano grosso e cosido o forro à

volta”.251 Em paralelo, Madre Maria José inaugurou a rouparia comum, “[...] outra

tradição carmelitana que visava manter o espírito de pobreza e desapego, na medida

em que impedia as irmãs de guardarem e escolherem suas próprias roupas.” 252

E mesmo sem ser priora, Madre Maria José atuaria decisivamente para a

promoção das tradições teresianas. Assim, em novembro de 1922, a então superiora,

Madre Antônia do Menino Jesus, assinou uma carta escrita pela Madre, pedindo

permissão a D. Leme para substituir o sino grande da igreja por dois pequenos, como

recomendava santa Teresa, e concluía: “Que gosto podemos ter numa coisa que é

contra nossos santos costumes, principalmente estando em nossas mãos fazer tudo

como deve ser?” 253 Mais ainda, a Madre empenhou-se para que as monjas soubessem

tocar os sinos de acordo com os costumes da Ordem: “A Priora do Convento de Santa

Teresa humildemente suplica a V. Excia. Revma. licença para o Remo. Frei Serafim de

Santa Teresa ou outro Padre Carmelita Descalço por ele deputado entrar uma vez na

clausura a fim de ensinar algumas Irmãs a tocar os sinos segundo se costuma em Nossa

Santa Ordem”, requerimento de tal peculiaridade que o arcebispo delegou à Madre a

247 Carta 19, a Capistrano de Abreu, 20 fev. 1917: “Agradeço-lhe também, meu bom Pai, ainda que tarde, as colheres de chifre. Estão muito boas, apenas seria de desejar que as pequenas fossem em maior número, pois não chegaram para todas as Irmãs: ficaram faltando cinco”. Cf. também Carta 130, a Capistrano de Abreu, 28 jul. 1925. 248 Carta 178, a Adriano de Abreu, 16 out. 1927: “E as colheres de chifre, porque ainda não mandou? Soube por Matilde que meu Pai chegou a vê-las...” 249 Carta 96, a Capistrano de Abreu, 30 out. 1923: “Meu Pai, se não lhe for custoso, desejaria que me arranjasse uma ampulheta de ¼ de hora”. Cf. também Carta 562, à Madre Cecília, do Carmelo de Fortaleza, 27 out. 1942. 250 Livro Tombo, p. 105. Apud: GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 182. Segundo o autor, “As banquinhas eram pequenos móveis (uma espécie de mini-guarda roupa), onde se guardavam algumas roupas e objetos, o que era proibido pelas Constituições, pois a carmelita não devia ter nade de seu para guardar individualmente”. Grifos do autor, em itálico no original. 251 Carta 611, à Madre Josefina, 5 ago. 1944. Cf. também Carta 927, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 12 dez. 1949. 252 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 183. 253 Carta 82, a D. Sebastião Leme, 27 nov. 1922.

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responsabilidade pela decisão: “Sim, se for necessário, no que deixo à consciência da

Revma. Priora o julgamento.” 254

Outro ícone do ideal contemplativo era a lavagem de roupa, sendo intento de

Madre Maria José assegurar que viesse a ser realizada pelas próprias Irmãs,255 no

interior do mosteiro, “conforme o costume do Carmelo”. 256 Foi, portanto, bem grande a

alegria da Madre quando isso aconteceu, em 1948: “Dou a V. Emcia., meu bom, Pai,

pedindo-lhe que agradeça a Deus por nós, a grata notícia de que já estamos lavando a

nossa roupa.” 257 Desde então, a Madre “era a primeira a chegar e a última a sair, no

seu amado ‘Paraíso’ – como gostava de denominar a lavanderia”.258 Verifica-se, dessa maneira, que o sentido da “tradição” para Madre Maria

José mostrava-se indissociável de uma outra concepção crucial ao ideal contemplativo – a de “hierarquia” -, como foi formulada nas obras de Pseudo-Dionísio. Assim, enquanto nas sociedades ocidentais laicizadas, o termo “hierarquia” passou a significar um processo de distinção e sobreposição de valores (e poderes) em luta concorrencial, na obra dionisiana o vocábulo remetia a um evento fundador (archê, começo; hierós, santo), o qual possibilitaria a unidade de um conjunto diversificado de elementos – expressão da relação unitiva entre as pessoas humanas e as três Pessoas divinas, tão almejada pelo ideal contemplativo -, sem que, com isso, fosse instituída uma unicidade, diluidora das diferenças.259 Em suas missivas, porém, Madre Maria José apropriou-se de maneira singular do pensamento de Dionísio, geralmente desconsiderando a conotação de mudança implícita à lógica hierárquica (decorrente da incessante comunicação, logo, da afetação recíproca de seus componentes)260:

Veja V.R. os apuros dessa pobre Priora de Campinas. Já escreveu há

pouco tempo outra carta com mais de trinta perguntas, se não me engano.

Tudo por falta de regulamentos exatos. Pensei que seja talvez a hora de Deus

254 Carta 95, a D. Sebastião Leme, 21 jul. 1923. 255 Carta 824, à Madre Benedicta de Jesus, Maria, José, do Carmelo S. José, Rio de Janeiro, 18 out. 1947: “Quando V.R. for para Jesus, lembre-se, minha filha, de nós, que temos grandes dificuldades; peça principalmente por Ir. Maria da Conceição, pelo noviciado, por mim, e para lavarmos nossa roupa.” 256 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 235. 257 Carta 841, a D. Jaime de Barros Câmara, 27 mar. 1948. O início da lavagem tornara-se uma data inesquecível, cf. Carta 1216, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 8 mar. 1955: “Amanhã faz 7 anos que estamos lavando roupa. Deo gratias.” 258 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 235. A lavagem de roupa foi, inclusive, o tema da mais longa missiva de Madre Maria José encontrada até hoje, cf. Carta 1226, à Madre Teresa de Jesus, 14 mai. 1955. 259 BERTRAND, Dominique. La théologie négative de Michel de Certeau. In: CENTRE THOMAS-MORE (org.). Michel de Certeau ou la Différence Chrétienne. Paris: Du Cerf, 1991. p. 113-114: “Selon lui [Pseudo-Denys], en chacun, selon ce qu’il est, la hiérarchie est le commencement (‘archie’= ‘commencement’) saint (‘hiér’= ‘saint’) qui fait l’unité entre lui et la théarchie (le commencement, qu’est Dieu même); elle est en elle même le mouvement intérieur propre à chacun d’unification [...]”. 260 DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 263-264: “[...] único traço que possuímos a respeito da hierarquia, o do Pseudo-Denis o Aeropagita [...] Cumpre sublinhar que em Denis o acento recai sempre sobre a comunicação, quando não na mobilidade, pelo menos em nossa acepção do termo. [...] Não basta, portanto, falar de uma transformação da descontinuidade em continuidade. De modo mais amplo e profundo, a Grande Cadeia do Ser apresenta-se como uma forma na qual as diferenças são reconhecidas, sem deixarem de estar subordinadas à unidade e englobadas nela”.

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para pensarmos em fazê-los, simples, curtos, mas capazes de guiar qualquer

Priora ou oficial em seus ofícios. É este meu grande desejo desde o noviciado.

Sem isso, acho muito difícil haver a ordem e sujeição que tanto favorecem a

união com Deus e a morte às mesquinhezas do “eu”. É certo que a não estar

tudo escrito e bem incutido no espírito de cada uma, com o tempo não faltarão

inovadoras, amigas de mudar o que os outros fizeram. Que acha?261

Assim, para a Madre, o evento fundador, longe de ser entendido como um princípio inspirador (referente a um real em si mesmo inapreensível, porque já passado),262 era concebido como a expressão literal da verdade divina, que não deveria ser alterada – ou seja, “profanada” – pela vontade humana:

Todo esse empenho reformador, buscando formatar a vida do Convento à Regra, às Constituições e aos costumes verdadeiramente carmelitanos em seus mínimos detalhes, advinha não de uma obsessão rigorista por parte de Me. Maria José de Jesus, mas antes de uma crença muito viva de que estas mesmas Normas e Costumes eram as expressões legítimas da vontade de Deus, manifestadas por Ele aos primeiros ermitões da Ordem e depois à santa reformadora de Ávila, para que através deles se pudesse chegar à perfeição religiosa.263

Porém, sob a aparência de uniformidade, a tradição teresiana que Madre

Maria José buscava instaurar no cotidiano monástico refratava-se em variadas

figurações, diversidades veladas sob o ideário da fidelidade.264 Isso porque, mesmo

a contragosto, a Madre reconhecia ser necessário adaptar, para que o “essencial”

pudesse ser preservado: “Consulto a VV.RR.: será bom para as Irmãs de véu branco

fazer da lã da saia a capinha? É invenção, mas tenho receio que a fazenda branca

suje demais se precisarem usá-la na cozinha por cima da túnica, como diz o

regulamento. Gosto mais de seguir tudo à risca, mas como não vamos seguir tudo,

talvez seja conveniente [...]”. 265

Neste sentido, a Madre realizou inúmeras reformas no secular Convento de

Santa Teresa: “[...] mandou N. Rvda. Madre colocar uma grade de madeira no

locutório debaixo, para preservar as irmãs da friagem enquanto estivessem esperando

para se confessarem [...] mandou colocar um lampião grande na sala de recreação, a

fim de dar luz para que todas as irmãs possam trabalhar, como manda a nossa Santa 261 Carta 437, à Madre Maria Evangelista, 31 mai. 1937. 262 Michel de Certeau concebe o evento fundador como uma ruptura instauradora: a “origem”, por seu desaparecimento, possibilita uma escrita plural e uma prática comunitária, que não podem ser redutíveis a um elemento comum. CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit. Paris, 1177-1214, jun. 1971. 263 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 184. Grifos desta pesquisa 264 CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Paris: Senil, 1989. p. 64: “Une vue simplificatrice nous fait désigner par un singulier tout ce qui nos a précédés: la traditon, dison-nous”. Grifos do autor. 265 Carta 637, à Madre Evangelista e Madre Maria da Imaculada, 22 mai. 1945.

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Regra”.266 Algumas dessas alterações tiveram seu impacto diluído ao serem associadas

aos serviços periódicos de manutenção,267 como ocorreu com a instalação de uma

bomba d’água para regularizar o abastecimento, até então bastante problemático,268 ou

com a promoção de obras na enfermaria,269 de caiações e pinturas: “Dou graças a Deus

por V. C. ainda não ter voltado, porque estamos com tantos operários e obras, que tudo

se torna difícil. Temos 10 celas em poder dos homens, além do coro e ante-coro de

cima e outras coisas.” 270

Outras mudanças, contudo, que portavam o agravante de afetar a imagética

associada à tradição, exigiram da Madre cuidados específicos, como ocorreu com a

instalação da luz elétrica271 (feita progressivamente nas dependências do Mosteiro, só

chegando às celas na década de 50), a re-edificação da casa do capelão e da ladeira

que dá acesso ao prédio conventual,272 a construção de um plano inclinado, que

possibilitaria o deslocamento das irmãs e pessoas idosas sem grandes empecilhos...273

As transformações atingiram, inclusive, o espaço litúrgico: os retábulos da capela

foram dourados, “começando pelo altar de N. Sta. Madre”, ficando o templo “todo

renovado”.274 Mas, ao esmerar-se por viabilizar todas essas melhorias, Madre Maria

José não cessava de encará-las como sinal de perpetuidade, conforme indicou em

carta às Irmãs do Convento de Santa Teresa, escrevendo-lhes do Hospital S.

Zacarias:

A capela [do Hospital] regula com o nosso coro [...] O altar muito simples, tudo pobre, com velas de atarrachar. No alto está a imagem de Nossa Senhora sob a invocação da Virgo Potens, com o globo do mundo na mão, mas é sem cor, de modo que a Nossa Senhora parece pálida. O globo é como lâmpada elétrica, penso que ficará aceso nos dias de festa; e formando um semi-círculo aos pés da imagem umas velas pequenas de eletricidade. O tabernáculo é dourado, com o veuzinho de renda, e a cruz e os castiçais de metal. Como são mais belas as nossas coisas antigas, tudo

266 Livro Tombo. p. 105. Apud: GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 182. 267 Carta 106ª, a D. Sebastião Leme, 11 jul. 1924. Ver Anexo 1. 268 Carta 506, ao Mons. Rosalvo Costa Rego, 19 ago. 1940; Carta 911, ao Cardeal D. Jaime Câmara, provavelmente após 20 set. 1949. 269 Carta 288, a D. Sebastião Leme, 10 mai. 1932. Ver Anexo 1. 270 Carta 591, à Irmã Maria Petronila, 8 mar. 1944. Cf. também Carta 600, à Irmã Maria Petronila, provavelmente abr. 1944; Carta 1052, à Irmã Marina, ago. 1952; Carta 1115, à Irmã Maria da Eucaristia, 5 set. 1953. Ver Anexo 1. 271 Para instalação da luz elétrica, Madre Maria José consultou as religiosas do Mosteiro de Nossa Senhora da Ajuda, que tendo seu antigo prédio desapropriado, construíram um novo, em Vila Isabel, cf. Carta 91, à Sóror Josefina, 30 mai. 1923 e Carta 94, à Sóror Josefina, 24 jul. 1923. Ver Anexo 1. 272 Carta 219, a Matilde de Abreu, 22 jul. 1929. 273 Carta 487, a D. Sebastião Leme, provavelmente antes jan. 1940. A realização desta obra mostrou-se positiva, no entender de Madre Maria José, cf. Carta 622, a Zizi Souza Leão, 2 dez. 1944. Ver Anexo 1. 274 Carta 245, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 2 ago. 1930.

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sem fantasia, tudo litúrgico! Asseguro que tive saudades. Mas no sacrário está o mesmo Deus e com Ele tudo é bom.275

Embasando, assim, o ideal contemplativo sob os moldes da tradição teresiana,

na imbricação de práticas de escrita e representações sacrais, Madre Maria José

acabou esboçando um específico projeto de santidade. E foi este o seu maior

argumento na carta que dirigiu ao Diretor do Patrimônio Artístico e Histórico

Nacional, em 1939; apesar de apreensiva com a inclusão do edifício no acervo

arquitetônico do país, a Madre afirmava: “Há cerca de 200 anos as Filhas de Santa

Teresa zelam pela conservação deste santuário venerável pela sua antigüidade, pela

origem que se prende ao Conde de Bobadela, um dos mais dignos e ilustres

representantes do poder entre nós e pelas gloriosas tradições de santidade e

observância de suas Religiosas, que têm sido em todo tempo cercadas de estima e

veneração desta cidade”.276

2.2- “Eu me consumo de ardente zelo pelo Senhor...” (1Rs 19,10)

Para operacionalizar melhor a vinculação entre o ideal contemplativo e a tradição do Carmelo Descalço, Madre Maria José considerava indispensável auferir um contínuo e aprofundado conhecimento da doutrina católica e, principalmente, da espiritualidade teresiana. Para tanto, ela recorria, de forma sistemática, às “leituras espirituais”, às quais conferia uma importância similar (e por vezes até maior) do que às orientações recebidas de seus confessores e diretores de consciência: o ler propiciaria a sensibilidade277 e o esclarecimento278 necessários ao aprimoramento da vivência consagrada e à correta observância das tradições: “Quero que V. ame a Jesus; que procure conhecê-lo pela meditação e leitura do Evangelho, a Imitação de Cristo, o Catecismo e outros bons livros”.279

Neste sentido, a Madre não deixou de recomendar a prática da leitura às

monjas,280 parentes281 e amigos,282 em orientações por vezes complementadas com a

indicação (ou a inquirição) do local onde as obras poderiam ser adquiridas.283

Constituía-se, assim, um circuito cultural entre leitores, livros e instituições, integrado 275 Carta 927, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 12 dez. 1949. 276 Carta 474, ao Diretor do Serviço de Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, jun. 1939. 277 Cf. Carta 100, à Sóror Ana, 17 jan. 1924: “Estou lendo agora um livro que me tem feito muito bem [...]”; Carta 132, a Capistrano de Abreu, 21 out. 1925: “Recebi um livro que me agradou profundamente [...]”. 278 Cf. Carta 113, 19 out. 1924, a Adriano: “Busca instruir-te com boas leituras que te esclareçam”. 279 Carta 414, a Amneris de Abreu, 19 jun. 1936. 280 Carta 148, à Sóror Ana, mai./jun. 1926; Carta 418, à Sóror Josefina, 13 set. 1936. 281 Carta 342, à Matilde, 30 jul. 1933; Carta 399, a Adriano de Abreu, 16 ago. 1935. 282 Carta 323, a Nila Prado, 14 jan. 1933. 283 Carta 91, à Sóror Josefina, 30 mai. 1923.

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pelas livrarias Garnier284 e Briguiet,285 especializadas na importação de publicações

francesas; Araújo, “na Rua dos Ourives, perto da rua S. José”;286 Sucena287 e Agir,288

além de outros estabelecimentos especificamente ligados à divulgação religiosa, como a

casa Santa Cruz, “que funciona na Matriz do Coração de Jesus, à rua Benjamin

Constant”, 289 a da Boa Imprensa290 e a Missionária,291 havendo ainda um ponto de

venda na “rua Campo Alegre, 29”. 292 Curiosamente, Madre Maria José não citou a

Livraria Católica, de propriedade de Jackson de Figueiredo, renomada liderança da

Restauração promovida pela Igreja.293 Além disso, a correspondência da Madre

continha atributos de uma rede não-oficial de distribuição: Hoje envio ao meu querido Aprígio a nota do Evangelho e do livro que ele

encomendou. O terceiro livro é para o Convento, não é para ele pagar. Ele veja o melhor modo de enviar o dinheiro, e se quiser, mande-me o cheque ou o dinheiro, que eu escreverei. Aprígio quando quiser livros, ou mesmo outra coisa, pode dirigir-se a esse Charles Dieu, Avenue de Villars, 7, VIIe. É um homem muito sério e competente; que se compromete até a achar livros raros. 294

No Brasil das primeiras décadas do século XX, quando o mercado editorial se

encontrava extremamente reduzido, sendo a maioria das obras impressas em periódicos,

pode-se pressupor a importância de tais menções epistolares para o incremento das

publicações católicas no país, um dos projetos considerados prioritários pela

Neocristandade.295

284 Carta 11, a Capistrano de Abreu, 11 ago. 1913. A Livraria Garnier era o estabelecimento que, no início do século XX, promovia a ligação do Rio de Janeiro com a Paris literária, desbancando os livreiros portugueses que haviam se afirmado durante o Império, como Francisco Alves NEEDELL, Jeffrey D. Op. Cit. p. 231; 236. 285 Carta 333, à Sóror Josefina, 4 mai. 1933; Carta 350, à Sóror Josefina, 11 out. 1933. 286 Carta 70, a Adriano de Abreu, 15 abr. 1921. 287 Carta 1301, à Sóror Josefina, 28 ago. 1956. 288 Carta 864, a Adriano de Abreu, 25 out. 1948. 289 Carta 130, a Capistrano de Abreu, 28 jul. 1925. Ver também Carta 133, a Matilde, 21 out. 1925; Carta 154, a Capistrano de Abreu, 30 jun. 1916. 290 Carta 234, a Matilde de Abreu, 27 fev. 1930. Ver também Carta 455, à Sóror Josefina, 22 jun. 1938. 291 Carta 1301, à Sóror Josefina, 28 ago. 1956. 292 Carta 129, a Matilde de Abreu, 24 jun. 1925. 293 VILLAÇA, Antônio Carlos. O Pensamento Católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 138. 294 Carta 268, a Matilde de Abreu, 11 jul. 1931. 295 Segundo Riolando Azzi, a Restauração Católica foi reforçada pela imprensa: o crescimento do número de livros editados, juntamente à criação de vários periódicos (como as revistas Vozes, dos franciscanos; Mensageiro do Sagrado Coração de Jesus, dos jesuítas; Ave-Maria, dos claretianos; Leituras Católicas, dos salesianos, entre outras, culminando no surgimento de A Ordem, em 1919), exigia pontos de redistribuição nas principais capitais do país que não estivessem limitados às paróquias. Assim, o surgimento de livrarias católicas mostrou-se estratégico. Cf. AZZI, Riolando. A Neocristandade: um projeto restaurador. Op. Cit. p. 27; ver também MICELI, Sérgio. A gestão diocesana na República Velha. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 12, v. 1. ago. 1985, com listagem dos periódicos em anexo.

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O interesse pela leitura demonstrado por Madre Maria José emergiu ainda em

sua vida leiga. Desde criança, Honorina familiarizou-se com os livros, em parte

orientada pelo pai, conforme expresso em carta de Assis Brasil a Capistrano:

“Estimei ver que a sua menina herdou o espírito da mãe, ocupando-se de leituras da

ordem que você recomenda”.296 Já a cultura religiosa de Honorina foi adquirida no

Colégio e, sobretudo, no Convento, pois a legislação teresiana recomendava à priora

que zelasse pela existência de “bons livros”, entendendo como tais, obras de devoção

e de instrução religiosa. Assim, as Constituições vigentes desde 1790 nos Carmelos

portugueses (e, por extensão, nos brasileiros297) prescreviam que:

A Prelada terá grande cuidado em que no Convento haja bons livros, como

são: Os Cartusianos, o Flos Sanctorum, o Contemptus mundi [Imitação de Cristo],

as obras do Padre Frei Luiz de Granada, as de S. Pedro de Alcântara, as do Padre

Ávila, e sobretudo as de N. M. Santa Thereza de Jesus e outras semelhantes; pois

não é menos necessária esta lição espiritual para o sustento da alma, do que o manjar

corporal para a nutrição do corpo.298

Tal preceito perdurou com a reforma jurídica promovida pela Ordem:

universalizadas para uso em diferentes países, as novas Constituições, editadas no Brasil

em 1929, mantiveram o dispositivo das leituras que foram, porém, historicizadas, já

sendo outros os autores indicados: Procure a Prelada que as Religiosas só leiam livros espirituais e aprovados,

especialmente o Novo Testamento, as Obras de N. Madre Sta. Teresa e de N. Padre

e Doutor S. João da Cruz, a História de uma Alma de Sta. Teresinha do Menino

Jesus, a Imitação de Cristo e outros livros espirituais aprovados; pois não é menos

necessária esta lição para o sustento da alma do que o alimento para o corpo.299

296 Carta de Assis Brasil a Capistrano de Abreu. In: Correspondência de Capistrano de Abreu. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. Op. V. III. p. 185. 297 No Brasil, até o início do século XX, existiam dois Carmelos Descalços femininos oficiais, além de um recolhimento, cf. Anexo 4. Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: mulheres da Colônia. 2a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p. 85; AZZI, Riolando. A vida religiosa feminina na época colonial e imperial. Grande Sinal. Petrópolis, v. 7, 503-1512, set. 1976; ASSOCIAÇÃO NOSSA SENHORA DO CARMO. Caminhada Histórica dos Carmelos Associados. Porto Alegre, fev. 1999. 298 Regra Primitiva e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte do Carmo. [1790]. Rio de Janeiro: Typ. Martins de Araújo e Cia., 1916. Cap. IV, n. 14. 299 Regra e Constituições... [1929]. Art. 90. Op. Cit.

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A biblioteca do Convento de Santa Teresa, desta maneira, comportava uma rara

e preciosa coletânea de livros, alguns dos quais datando do século XVIII e já redigidos

em português e espanhol (ao invés do latim).300 Tal acervo era continuamente

atualizado, muitas vezes por doações feitas em resposta a pedidos de Madre Maria José,

endereçados por carta a familiares ou a amigos próximos: “Agradeço-lhe”, dizia a

Madre a seu pai em uma dessas ocasiões, “O Evangelho nas selvas [...]”.301 Além

disso, várias obras também circulavam entre os monastérios sob a forma de

empréstimo302 e de pequenas transcrições.303 Mesmo publicações não diretamente

vinculadas à espiritualidade poderiam ser incorporadas ao patrimônio,304 pois a Madre

“[...] interessava-se muito pelos progressos da ciência, pelas descobertas recentes, por

tudo quanto podia contribuir para o aumento da glória de Deus”. Entretanto, sua

triagem era bastante seletiva: “Só deixava as filhas verem revistas sobre assuntos

religiosos, mas assim mesmo mandava cortar tudo mais, tirando folhas, colando papéis

naquilo que era profano”.305 Afinal, segundo a Madre, justamente por sua relevância, a leitura não poderia ser realizada de forma aleatória, devendo permanecer tutelada, como sugeriu a seu irmão Adriano: “Você e Amneris tomem muito cuidado com as suas filhinhas, principalmente apartando-as das más companhias e dos maus livros, que são as duas grandes fontes de corrupção”.306 E mesmo tida, a priori, como edificante, a leitura de obras espirituais deveria ser promovida de maneira específica: combinando tradição e Magistério, em consonância às diretrizes da Neocristandade, ela deveria descartar as liberalidades de uma decodificação particular.307 Daí a prática da leitura entre as religiosas ser estipulada com minúcias: ela deveria ocorrer diariamente, de forma individual e silenciosa, com as irmãs recolhidas em suas celas:

As Vésperas rezem-se às duas horas da tarde e depois delas leiam algum

livro espiritual, de tal modo porém que entre a lição e as Vésperas não se gaste mais

300 Estas obras foram trazidas pela fundadora, Jacinta de S. José, no retorno da viagem que fizera à Metrópole, em 1755, no intuito de obter a ereção canônica do mosteiro, cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 249-250. 301 Carta 116, a Capistrano de Abreu, 19 novembro 1924; Carta 384, à Sóror Josefina, 4 fev. 1935 302 Carta 319, à Sóror Josefina, 30 dez. 1932. 303 Cf. Carta 1223, à Irmã Marina, mar. 1955, com transcrição em anexo, no idioma francês, de dois parágrafos dos Avisos, de autoria de Gerson (1363-1429), constantes às páginas 43 e 169 da citada obra. 304 Em carta de 28 de novembro de 1925, Madre Maria José solicitou a Capistrano de Abreu algum livro sobre os lapônios e esquimós; em outra correspondência ao pai, datada de 14 de fevereiro de 1926, a Madre pediu-lhe emprestado um livro do Pe. Sacchi sobre astronomia. 305 Os dois últimos trechos foram retirados de SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 132. 306 Carta 198, a Adriano de Abreu, 20 jun. 1928. Sob esta mesma perspectiva, as Irmãs Sacramentinas de Nossa Senhora celebravam anualmente a festa do Bom Livro, onde eram queimadas obras consideradas desviantes da doutrina e da moral católica, para isso trazidas pelas alunas e ex-alunas dos colégios mantidos por essa Congregação, cf. AZZI, Riolando. Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964). Op. Cit. p. 129. 307 Cf. capítulo 4, p. 141, nota 47.

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de uma hora, quer as Vésperas sejam solenes, quer não. Esta disposição, porém, não

compreende a Quaresma, durante a qual rezam-se as Vésperas, nos dias feriais antes

do jantar; esses mesmos dias faça-se a lição desde as duas até às três, gastando-se

nela uma hora inteira.308

Tal precisão abarcava, inclusive, o tempo a ela dedicado, conforme indicado

pelo Cerimonial 309: “Para a leitura espiritual de cada dia, prescrita pelas

Constituições, não é preciso tocar o princípio, pois é sabido que começa depois de

Vésperas e na Quaresma depois da ladainha; indica-se entretanto o fim da mesma, às

três horas, tocando-se o sininho durante uma Ave-Maria [...]”.310 Mas o gesto de ler

não era compulsório, sendo facultado às religiosas “Se se sentirem tão fervorosas que

gostem de passar também este tempo em oração, façam o que lhes parecer mais

conveniente para o recolhimento de suas almas no Senhor”. 311

Havia, não obstante, uma segunda modalidade de leitura, recoberta por maior

rigor: com a comunidade reunida no refeitório para o jantar,312 uma das irmãs lia em voz

alta e em tom pausado alguns parágrafos, ou mesmo páginas de obra previamente

indicada pela priora.313 As duas formas de ler, aliás, entrecruzavam-se na experiência

308 Constituições... [1929]. Art. 54. Op. Cit. Cf. também Regra Primitiva e Constituições... [1790], Cap. IV, n. 13. Op. Cit. cujo texto ficou praticamente inalterado na nova versão. 309 Conjunto de ordenações litúrgicas e de formalidades cotidianas a serem cumpridas pelas religiosas, sistematizadas em uma obra, com valor normativo. 310 Ordinário ou Cerimonial da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro: C. Mendes Jr., 1930. Art. 34. 311 Constituições... [1929]. Art. 54 312 Ordinário ou Cerimonial. Art. 419. 313 Ibid. Art. 417: “Ao primeiro sinal da Presidente, a leitora, de pé e tendo o livro nas mãos, diz em voz

alta ‘In nomine Domini Nostri Jesu Christi. Amen’. Senta-se e começa a lição, a qual anuncia dizendo,

conforme o caso: ‘Segue-se (título da obra) composto por (nome do autor)’ ou ‘prossegue-se (título da

obra) Livro tal, capitulo tal’. [...] Depois de uma ou duas frases, a um novo sinal da Presidente, a leitora

interrompe a lição para retomá-la, sem esperar terceiro sinal, assim que as Religiosas desdobram os

guardanapos. Ao terminar, marca o lugar onde parou, para que, na vez seguinte, possa retomar o ponto

que ficou. A lição deve ser feita em tom uniforme, simples e devoto, de um modo claro e distinto, de sorte

que todas compreendam bem o que se lê. A leitora terá cuidado de distinguir pelo tom de voz o final das

frases, fazendo pausa menos curta nos pontos e vírgulas, e indicando as interrogações por uma ligeira

inflexão da voz. [...]”.

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monástica cotidiana314: “Comecei a ler, ou antes, a reler a Margarida Escondida, pois

há alguns anos já a li e ouvi ler no refeitório e achei um encanto novo, mais do que

nunca. Se soubesse que não faz falta, ficaria com o livro para terminar a leitura. Que

beleza!” 315 Mas tamanho cuidado na promoção das “leituras espirituais” aponta para algo além do controle que as recobria, o que também era indicado pela grande quantidade de referências feitas a elas por Madre Maria José em suas missivas. As páginas de tais obras eram percorridas pelas religiosas de forma atenta, repetida, até exaustiva, para depois serem reproduzidas em citações e paráfrases: “Agradeço intensamente o tesouro sem preço da vida da Mãezinha [Ir. Inês do Sagrado Coração de Jesus]. Estou lendo, embora devagar, por dispor de pouco tempo e também por querer apreciar bem todas aquelas maravilhas. Acho uma beleza, sob todos os pontos de vista”.316 Assim, a imobilidade exterior de uma carmelita descalça, curvada sobre o livro em sua enxerga, longe de indicar indiferença ou passividade, evocava a animação subjetiva que então a perpassava – o ato de ler tornava-se um canal para o encontro com o divino317: “[...] venho agradecer à Revda. Madre o presente inestimável da circular da Mãezinha para o nosso uso [...] Estou lendo, ou antes, sugando o mel celeste daquelas páginas mais do céu que da terra. Que anjo! Que Santa! Que alma admirável e sublime! Fico mesma transportada de entusiasmo”.318 Dessa forma, não apenas por seu conteúdo, mas pela apropriação imaginária das experiências narradas no texto, prática enriquecedora (ou questionadora) da vivência de cada monja no campo do sagrado, a “leitura espiritual” era diretamente vinculada por Madre Maria José ao ideal contemplativo. E algumas dessas leituras apresentavam-se particularmente caras à Madre: depois das Sagradas Escrituras (a lectio divina),319 não casualmente eram as obras fundantes do Carmelo Descalço as suas prediletas, numa tessitura do ideal contemplativo com o aparato da “tradição” teresiana: “Sobretudo, veja que leiam muito a Regra, Nossa Santa Madre, Nosso Santo Padre, o Evangelho, a Imitação etc.” 320 Todavia, ao reportar-se aos antigos corpori textuais da Ordem, a Madre, mais do que repeti-los, os traduzia.321 E isto ocorria não apenas porque ela os vertia de um idioma

314 Sobre as modalidades de leitura oral e escrita, ver CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. 2ª. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 82-84. 315 Carta 152, à Sóror Josefina, 14 jun. 1926. 316 Carta 1308, à Madre Angélica e Madre Antonietta, 19 out. 1956. Esta carta refere-se aos manuscritos autobiográficos deixados por Ir. Inês, que estavam sendo reunidos pelo Carmelo S. José, de Petrópolis, para fins de publicação. 317 Sobre modalidades intensiva e extensiva da leitura, ver CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. Op. Cit. p. 86-89. 318 Carta 916, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 10 nov. 1949. Esta carta refere-se à circular necrológica escrita pelo Carmelo S. José, de Petrópolis, logo após o falecimento de Ir. Inês. 319 A lectio divina (leitura orante da Bíblia) era praticada desde os primórdios do cristianismo, sendo tal expressão atribuída a Orígenes (c. 183/186-252/254). As regras monásticas de Pacômio, Agostinho, Basílio e Bento fizeram desta leitura, junto com o trabalho manual e a liturgia, a tríplice base da vida religiosa. Foi sistematizada em quatro etapas (leitura, meditação, oração e contemplação) no século XII, sendo rapidamente difundida com o surgimento das ordens mendicantes, no século XIII. Na era moderna, todavia, tal leitura arrefeceu-se, como efeito da censura eclesiástica aos textos bíblicos, paralela às reformas protestantes. Somente com o documento Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, a lectio divina assomou como uma das principais práticas de espiritualidade cristã contemporânea. CONFERÊNCIA DOS RELIGIOSOS DO BRASIL. A Leitura Orante da Bíblia. São Paulo: Loyola, 1990. 320 Carta 493, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 20 fev. 1940. 321 CERTEAU. La Fable Mystique, 1. Paris: Gallimard, 1982. p. 164-165: “La distance entre le Moyen Age et la Renaissance pourraît même être indexée par ce qui separe du copiste ancien ce traducteur moderne. Tous généralement anonymes. Mais le copiste mue son corps en parole de l’autre […] Le traducteur […] est un opérateur de différenciation. Comme l’ethnologue, il met en scène une région étrangère même si c’est pour l’adapter en lui laissant troubler son langage. Il fabrique de l’autre, mais dans un champ qui n’est pas davantage le sien et où il n’a aucun droit d’auteur. […] Le copiste et le

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estrangeiro para a língua portuguesa, mas sobretudo porque alterava, muitas vezes sem perceber, o seu significado histórico, justamente no intuito de manter-se fiel a ele.322 Mais do que as fontes por ela utilizadas, importa, portanto, perceber o seu uso no discurso epistolar – operação pela qual a Madre renovava a tradição que tanto buscava preservar.

2.3- “Então caiu o fogo de Deus...” (1Rs 18,38)

Foram inúmeras as citações epistolares dos textos de Santa Teresa promovidas

por Madre Maria José.323 O Convento dispunha de edições seculares dos livros da santa

fundadora - “[...] possuímos traduções antigas da Vida, do Caminho de Perfeição, dos

Conceitos do Amor Divino e das Moradas [...]” 324 -, juntamente com edições bem mais

recentes: “Embora já lhe tenha agradecido pessoalmente, agradeço ainda uma vez as

cartas de Nossa Santa Madre. Foi um presente preciosíssimo”.325 Mas o íntimo contato

da Madre com a santa de Ávila adveio principalmente da tradução que ela realizou desta

obra para a língua portuguesa, proposta aprovada “in totum” 326 pelo cardeal: [...] Entretanto, a caridade de Cristo urge, e desejaria fazer alguma coisa por sua

glória. Lembrei-me de propor a V. Emcia. aproveitar este repouso relativo para fazer

uma tradução das Obras de N. Sta. Madre. Poder-se-ia fazer uma edição popular,

com poucas notas, cada volume vendido separadamente, de modo a poder vender

cada um por uns 4$000. Poderíamos antes de tudo consultar as Vozes de Petrópolis,

o Lar Católico etc. para ver se se encarregam da venda. Se quiserem fazer por sua

traducteur ont même endurance, à corps perdu, mais le premier d’une manière contemplative, dans un rite d’identification, le second, de façon plus éthique, dans une production d’altérité. L’histoire de la mystique pourrait bien avoir converti de ‘copiste’ en ce traducteur, ascète saisi par la langue de l’autre e créant par elle du possible bout en se perdant lui-même dans la foule”. 322 Neste sentido, esta tese diverge da hipótese defendida por Dante Marcello Gallian, para quem “Madre Maria José desenvolveria, ao longo de seus anos como priora, uma profunda e perseverante reeducação de suas filhas, no intuito de levá-las a se comportarem como autênticas carmelitas”, cf. GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 185, grifos desta pesquisa. A discordância não se vincula à veracidade das intenções de Madre Maria José ou dos esforços empreendidos pelas demais religiosas, mas sim à postulação da existência histórica de um Carmelo Descalço “autêntico”. 323 Para biografia de Santa Teresa, ver anexo 6. 324 Carta 390, 27 mai. 1935, a D. Sebastião Leme. O livro de santa Teresa de edição mais antiga adquirido pelo Convento data de 1646, tendo sido trazido de Portugal por Madre Jacinta de São José; os demais possuem data posterior à 1750, sendo provável que tenham existido outros, mas de leitura individual. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 250. 325 Carta 1068, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 12 nov. 1952. 326 Despacho de D. Sebastião Leme em missiva de Madre Maria José, cf. Carta 390, a D. Sebastião Leme, 25 mai. 1935.

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conta a edição, dando-nos apenas uma pequena porcentagem, acho melhor, pois

evitaremos toda preocupação material. [...].327

A Madre dedicou-se com afinco à nova tarefa que, iniciada em 1935, abarcaria

mais de duas décadas, concluindo-a somente alguns meses antes de seu falecimento.328

Isto acarretou seu afastamento de quaisquer atividades que extrapolassem seus deveres

conventuais, inclusive a redação de seu epistolário: “V.R. reze e faça as noviças

rezarem pela tradução das Obras de N. Sta. Me. Estou muito ocupada. Com este

trabalho não poderei escrever cartas, mas V.R. desculpará, não é?” 329 Tal empenho,

comprometendo ainda mais sua débil saúde, não deixou de ser mencionado por suas

biografias, em conformidade aos postulados de esvaziamento de si contidos no ideal

contemplativo: Sem dúvida, os dotes excepcionais de inteligência e cultura, e a facilidade

que tinha para escrever, ajudaram-na grandemente; ademais, desejou realizar o

trabalho pelo entranhado amor que consagrava a Nossa Santa Reformadora, e assim

empreendeu a tradução com ânimo e gosto. No entanto, bem podemos avaliar o

quanto lhe custou tão ingente trabalho, absorvendo-lhe tempo e energias, obrigando-

a a consultar fontes de informações e isso no meio de suas múltiplas ocupações de

Mestra e, dois anos depois, de Priora, sem falar na sua pouca saúde. Aplicava-se

escrupulosamente a traduzir do melhor modo possível; comparava os seus textos

com os das outras traduções estrangeiras, que muito a auxiliaram a reproduzir o

pensamento exato de N. Sta Madre. Teve de renunciar a outras leituras que a

interessavam, ou diminuir as que costumava ter com mais freqüência, até mesmo a

Sagrada Escritura, seu alimento quotidiano. Chegava a ler algumas páginas de livros

que as filhas lhe mostravam, mas logo os devolvia, dizendo: ‘Estou vendida à minha

Santa Madre’. 330

327 Carta 390, a D. Sebastião Leme, 25 mai. 1935. 328 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 191: “Tão fortemente abrasada nas fráguas do amor, com a bênção da obediência dos Superiores, iniciou a tradução das Obras de Nossa Santa Madre Teresa no mês de maio [de 1935], tarefa que a ocupou até o fim da vida”. 329 Carta 394, à Madre Cecília, do Carmelo de Fortaleza, 7 jul. 1935. Cf. também Carta 395, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 7 ago. 1935: “Reze por mim que comecei a tradução das Obras completas de N. Sta. Madre Teresa. Imagine que trabalho e como preciso de suas orações.” 330 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 191.

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Três anos depois, em 1938, o primeiro volume, Livro da Vida (ou Livro das

Misericórdias do Senhor), era editado: “[...] tenho certeza de que perdoará a demora

de quase um ano em responder à sua carta, pois todo esse tempo passei doente ou

empregando minhas minguadas forças na tradução de suas Obras [de Santa Teresa].

Penso que na Páscoa, se Deus quiser, já V.C. terá nas mãos o 1o tomo, que é o Livro da

Vida [...]” 331 Nesta obra, escrita em 1562, santa Teresa narrou seu percurso biográfico

em uma perspectiva de história da salvação, entremeando-a com belas explanações

sobre a prática orante e relatos de graças místicas, sendo muito recomendada pela

Madre: “Diga-lhe [à Me. Abadessa] também que o Livro da Vida de Santa Teresa já

está à venda na Livraria Boa Imprensa. Não ofereço um porque a edição é dos

Franciscanos e também nós temos que comprar.” 332

Também no final da década de 30, a Madre traduziu Fundações, impresso em

1940, e Caminho de Perfeição, dado a público em 1942. Enquanto a primeira dessas

obras, escrita em 1582, aborda o processo de visitação dos mosteiros femininos

(evidenciando as relações de hierarquia relativas ao gênero e à vida consagrada), a

segunda, redigida em 1566, é uma síntese da pedagogia teresiana sobre formação

religiosa, tratando também da oração: “Nas boas disposições em que V.C., pela

misericórdia infinita de Deus e pela de nossa Mãe querida está, acho que a leitura mais

proveitosa será o Caminho da Perfeição, lido bem detidamente. Vai ajudá-la muito em

seus bons propósitos. Ali está todo o espírito do Carmelo, no interior e no exterior”.333

Pouco depois, em 1946, foi publicada a tradução da obra-prima de santa Teresa, Castelo

Interior ou Moradas, livro escrito em 1577, em um dos momentos mais conturbados da

trajetória desta carmelita. O texto surgiu como um desdobramento do Livro da Vida,

então em posse da Inquisição, e é considerado um dos maiores tratados de

fenomenologia mística produzidos pelo catolicismo. Mas a despeito do desgaste

provocado por todo esse esforço, era “com justa alegria, [que] a tradutora recebia os

volumes impressos [...] assim como o primeiro, relativamente com bastante rapidez –

sendo leitura tão séria e mística – ficaram esgotados, e foram depois reeditados”.334

331 Carta 449, à Irmã Maria de Jesus Hóstia, 28 fev. 1938. 332 Carta 455, à Sóror Josefina, 22 jun. 1938. Ver também Carta 438, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 12 jun. 1937: “Leia a Vida de Nossa Santa Madre escrita por ela mesma [...]”; Carta 976, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 30 nov. 1950: “Peço-lhe que se una também a nós e leia a Vida (que peço devolver quando puder) para cobrar mais confiança.” 333 Carta 1547, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 334 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 230.

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O quinto volume das traduções, aglutinando Conceitos do Amor de Deus–

Relações Espirituais –Exclamações–Poesias–Avisos, foi editado em 1951,335 mas foram

os três últimos tomos, compostos pelas cartas de santa Teresa, que se revelaram os mais

difíceis. O trabalho foi iniciado pela Madre ainda em 1951: “Reze para que eu possa

traduzir as Cartas de N. Sta. Madre. Não acho tempo, e a velhice não ajuda”,336 sendo,

porém, freqüentemente interrompido por motivos de saúde e por solicitações do

priorado337: “[...] além de velha, doente, incapaz, estou com a tradução das Cartas de

N. Sta. Madre. [...] De noite tenho um torpor que não me deixa trabalhar. Ah! Quem me

dera poder fazer muito pelo meu Deus, mas estou uma ruína... 73 anos...” 338 Os

maiores entraves, contudo, encontravam-se no próprio texto: Pensou realizar o trabalho desde que terminou o quinto volume das obras

de Nossa Santa Madre. Tentou fazê-lo mais de uma vez; faltou-lhe ânimo para prossegui-lo pela dificuldade de elucidar alguns textos que pareciam indecifráveis.

Graças à caridade de uma boa amiga, obteve a tradução inglesa das Cartas por Allison Peers. Obra muito boa, esclarecedora das muitas reticências e quase charadas de nossa Santa Madre, sobretudo nas cartas escritas durante a ‘tempestade’ da perseguição suscitada contra nossa Reforma. Receando serem elas desviadas do seu destino ou perdidas, Nossa Santa Madre só se exprimia de modo velado a respeito das pessoas e dos fatos.

O texto inglês auxiliou-a bastante, porém Nossa Madre decifrou alguns parágrafos que o douto tradutor não conseguira esclarecer.339

Finalmente, em 1956, a Madre concluiu a tarefa: “Terminei a tradução das Cartas de

Nossa Santa Madre, ajudada por Ir. Maria do Carmo, que trabalha mais do que eu,

mas falta corrigir, e é muito custoso.” 340

Assim, a tradução implicava também na revisão das obras, muitas vezes

realizada de forma paralela à versão de novos textos teresianos para o português, o que 335 Carta 974, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 18 out. 1950: “Ainda não pude colher as

informações das Irmãs [sobre a biografia de Irmã Inês do Sagrado Coração de Jesus, do Carmelo de

Petrópolis, que falecera], por estar muito ocupada, terminando o 5o volume de N. Santa Madre, que ainda

me falta reler; mas depois foi procurar fazer direitinho o que VV.RR. pedem.” Cf. também: Carta 1002, a

Jônia de Abreu, 25 set. 1951; Carta 1014, a Matilde de Abreu, 31 dez. 1951.

336 Carta 1106, à Irmã Marina, 2 jan. 1952. 337 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 267: “Reconhecendo estar alquebrada, a velhice a dificultar-lhe a atividade, neste ano de 1953 resolveu oferecer à Nossa Santa Madre Teresa, na sua festa, a tradução dos três últimos tomos de sua obra, isto é, das Cartas. Começou-a, sem medir o grande esforço que seria tal empreendimento, nas condições de sua saúde, sendo priora, e sempre atendendo com nímia caridade às quatro anciãs cada vez mais achacadas, e presas nas suas celas”. 338 Carta 1221, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, 1955. Cf. também Carta 1149, à Irmã Maria de Lourdes, 11 fev. 1954: “Estou trabalhando na tradução das Cartas de Nossa Santa Madre. Não é nada fácil para um pobre velha de 72 anos.” 339 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 267. 340 Carta 1291, à Irmã Maria de Lourdes, do Carmelo da Santíssima Trindade, 3 ago. 1956.

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exigia cuidados minuciosos: “Quando as monjas do Carmelo faziam a tradução das

Obras Completas de Santa Teresa, fui muitas vezes”, comentou Manuel Bandeira, “a

convite de minha prima [Ir. Maria do Carmo de Cristo Rei] ao locutório do Convento

para conversar com ela e com Madre Maria José sobre dúvidas que elas tinham a

respeito da nova ortografia”. 341 A atividade revisora mais intensa fora iniciada em

1945, para a segunda edição do Livro da Vida, 342 justamente quando a Madre estava

envolta com a fundação do Carmelo de Teresópolis, o que a fez solicitar a colaboração

de outras irmãs - “Me. Subpriora, sei que V.R. é muito ocupada e não quero abusar de

sua bondade, mas se N. Madre desse licença e se V.R. e Ir. Maria do Carmo pudessem

assinalar na Vida de N. Sta. Me. o que acham necessário corrigir, seria um alívio para

mim, pois aqui (aliás, aí é o mesmo), o tempo não rende [...]” 343 - pedido nem sempre

possível de ser plenamente atendido: “Peço-lhe, não reveja a Vida, não pode, está

muito ocupada. Coitadinha, fiquei com tanta pena de lho ter pedido; não pena de V.R.,

pois está lucrando para o céu e salvando almas. Recebi, no dia 20, as provas mandadas

a 18; hoje lhe mando estas que vieram para cá e já revi. Deus pague a V.R. e à Ir. Ma.

do Carmo.” 344

Para piorar, em meio à multiplicidade das tarefas assumidas pela Madre, vez por

outra os papéis extraviavam-se, o que causava não pequena preocupação, por vezes

seguida da satisfação pelo seu encontro: “Achei aqui as provas para a 2a. edição da

Vida.”345 Os volumes de Fundações e Moradas também foram revistos para nova

edição, no decorrer de 1952,346 mas o maior esgotamento de Madre Maria José foi

decorrente da revisão das Cartas: “[....] porque, além das obrigações do ofício, estou

revendo e corrigindo com outra Irmã a tradução das cartas de Nossa Santa Madre e

não me permitem mais tirar das horas de descanso, nem eu mesma agüento. ” 347 A

incumbência só terminaria no final de 1958: “Além de tudo, estou bem velha e acabada

e sempre às voltas com as cartas de N. Sta. para ver se N. Senhor me dá a graça de

341 BANDEIRA, Manuel Uma Santa. Diário do Comércio, 18 mar. 1959. Cf. Artigos publicados sobre Madre Maria José de Jeus em Jornais, Revistas e Livros. In: CCSDMII. V. 15. 342 Carta 655, à Madre Maria do Divino Coração, 4 jul. 1945: “Peço ainda aquelas últimas provas da Vida de N. Sta. Madre.” 343 Carta 657, à Madre Inês do Sagrado Coração de Maria, prov. jul. 1945. 344 Carta 662, à Madre Inês do Sagrado Coração de Maria, 20 jul. 1945. Cf. também Carta 784, à Irmã Maria da Eucaristia, 1947; Carta 858, a Adriano de Abreu, 31 ago. 1948. 345 Carta 697, à Madre Inês do Coração de Maria, nov. 1945. 346 Carta 1036, à Irmã Marina, 27 mar. 1952. 347 Carta 1303, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 22 set. 1956. Cf. também Carta 1309, à Irmã Maria da Eucaristia, 5 nov. 1956: “À tarde ocupo-me das cartas de N. Santa Madre, juntamente com Ir. Maria do C.[Carmo]”

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terminá-las antes da morte, que deve estar próxima.” 348 Apesar de seu empenho,

concluindo a revisão,349 Madre Maria José não veria os últimos tomos impressos, pois

sua publicação foi iniciada em 1960, sendo, portanto, posterior em um ano a seu

falecimento.

Traduzindo Teresa d’Ávila, sobretudo Livro da Vida, Caminho de Perfeição e

Castelo Interior, Madre Maria José deparou-se com uma escrita desenvolvida como ato

enunciativo, associado à fé: para a santa carmelita, redigir consistia em responder a

Deus, diálogo pelo qual ela tanto ansiava e ao qual chamou de amistad. 350 Ora, ao

descrever seus sentimentos, desejos, esperanças, oriundos de suas práticas cotidianas –

ou seja, ao narrativizar suas experiências sob o viés da interlocução com o divino -,

Teresa também as interpretava, configurando-se, assim, como um sujeito “moderno”;

porém, de forma distinta do imanentismo secular (o Livro da Vida foi escrito apenas dez

anos antes de Montaigne redigir Ensaios e a meio século da publicação do Discurso

sobre o Método, de Descartes), ela constituía-se como um sujeito em busca de

transcendência.351

Mas para priorizar a subjetividade num momento de crise das referências

cristãs, os escritos teresianos desenvolveram uma complexa articulação entre a

vivência espiritual e a ortodoxia doutrinária, o “mandamento” e a “graça”. Neste

proceder, Teresa delineou uma espacialidade imaginária352: o “dentro” do humano

348 Carta 1345, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, do Carmelo de Teresópolis, 24 ago. 1957.

Cf. também, como exemplos, Carta 1321, à Irmã Maria de Lourdes, antes da Quaresma de 1957: “Reze

para que nesta Quaresma eu acabe de todo as Cartas de Nossa Santa Madre, falta coisa pouca. Só Deus

sabe o que esse trabalho tão insignificante tem custado.”; Carta 1323, à Madre do Carmelo de Pelotas, 5

mar. 1957: “Estou bem velha (75 anos) e para acabar a tradução das Cartas de Nossa Santa Madre tive

de suspender a correspondência o mais possível. Além disto passei três meses doente”.

349 Carta 1381, à Irmã Maria do Carmo, 13 jun. 1958: “Recebeu as Moradas e as Fundações? As cartas demoram; deve estar no prelo o 1o tomo.” 350 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 258. 351 GALÁN, Pedro Cerezo. La experiencia de la subjetividad en Teresa de Jesús. Revista de Espiritualidad, Madrid, n. 56, 9-50, 1997. p. 18; Dictionnaire de Spiritualité, Ascetique et Mystique... Paris: Beauchesne, 1937-. Verberte “Mystique”. p. 1921. 352 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 258: “Si l’on considère dans l’imaginaire non pas d’abord un lexique (un matériau iconique, des choses vues ou rêvées), mais la spacialité qui spécifie toute image, et aussi la capacité qu’a l’imaginaire de produire une scène à distance de l’acte intérieur, immédiat, non déplié; si l’on suppose que l’imaginaire est espace et, bien plus, qu’il crée de l’espace, alors on peut dire que, por le volo et le je, il est à la fois leur figuration (théâtre, métaphore, artefact) et leur espace d’énonciation (le lieu du dire por un dire qui n’a pas de lieu)”. Grifos do autor, em itálico no original.

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(seu “castelo interior”), lugar habitado pela divindade, ao ser paulatinamente

configurado através da oração (ato conjunto da pessoa e de Deus), poderia então

ser expresso em um “fora”, desdobrado em círculos concêntricos: a clausura

conventual (ou a residência familiar), a comunidade eclesial, a missão apostólica.

Com isso, a contemplação teresiana corria menor risco de conflitar com a

hierarquia eclesiástica, ao mesmo tempo em que preservava a elaboração pessoal

da experiência religiosa.353

Esta tensão implícita aos textos de Teresa d’Ávila mostrou-se um

importante elemento à formulação do ideal contemplativo por Madre Maria José.

Assim, baseada na obra teresiana, a Madre realçou a premência da busca

espiritual - “Procuremos cada vez mais viver no nosso interior, bem unidinhas a

Jesus e a Maria, nesse palácio interior de que fala N. Sta. Madre” 354 -, mas, de

forma concomitante, deslocou seu foco de significação do sujeito para a instituição,

mediante uma insistência no “esvaziamento do eu”: “Graças a Deus, minha querida

Madre, faz hoje um mês que estou na minha solidão tão deleitosa. Peça a Nosso

Senhor que não seja mais uma graça desperdiçada de que eu tenha de dar conta; que

eu me prepare para a morte, e, se for da santa vontade de Deus, viva sem viver em

mim, segundo a expressão de nossa Santa Madre.” 355 Com isso, o ideal

contemplativo tornava-se uma produção imaginária afinada com os postulados

tridentinos da Neocristandade, distanciando-se da faceta “popular” que, portada

pela mística ibérica, era presentificada no cotidiano das beatas e vista com

desconfiança pela Inquisição.356

Tal dinâmica, contudo, requereu da Madre Maria José uma interpretação

complementar da obra de Teresa de Jesus, pela qual a dimensão ascética adquiriu maior

relevância.357 Teresa não desconsiderava a validez das práticas mortificatórias:

353 KOLAKOWSKI, Lezsek. Chrétiens sans Église: la conscience religieuse et le lien confessionnel au XVIIe siècle. Paris: Gallimard, 1987. p. 367: “Toute la mystique contre-réformatrice espagnole comporte dès le début une certaine ambigüité: intégrant le danger illuministe, elle assure em même temps aux tendances illuministes [des ‘alumbrados’] la possibilité de survivre [...]”. 354 Carta 220, à Sóror Josefina, 22 jul. 1929. 355 Carta 961, à Madre Maria José de Jesus, do Carmelo de Santos, 21 mai. 1950. 356 A ameaça representada pela mística aos olhos da instituição católica residia, portanto, na articulação entre uma interpretação bíblica particular (uma subjetivação) e um protagonismo dos segmentos populares (uma demarcação social e uma prática de poder). Na Neocristandade, tal articulação foi rompida, ficando a subjetivação vinculada aos espaços monásticos, enquanto a devoção coletiva fundamentada em mediações simbólicas (imagens, relíquias, promessas, procissões...) era vista pelo clero como superstição, fanatismo, ignorância. 357 Assim, um dos retiros compostos a partir dos escritos de Teresa destacava justamente a falibilidade do humano, cf. SAINT-SACREMENT, Marie du, mère. Une Retraite sous la Conduite de Sainte Thérèse.

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claramente inspirada em santo Agostinho, ela atentava às ambivalências do humano,

que inclusive descrevera em sua autobiografia (onde tantas vezes enlaçara sua “miséria”

pessoal às excelências da vocação que assumira), alertando também seus leitores quanto

aos riscos de engano do conhecimento de si propiciado pela introspecção, ainda mais

acrescidos pela tentação de presunção.358 Daí a exigência teresiana de depuração

ascética da sensibilidade, em um processo de “purificação” das inclinações sensoriais e

da complacência imaginativa. Esta perspectiva foi retomada por Madre Maria José,

sendo, porém, direcionada por parâmetros institucionais (como a autoridade da priora,

do sacerdote ou da Regra), ao invés de pautar-se em uma auto-crítica: “Ela [Sta. Teresa]

escreve à Me. Maria de São José que não perdoa imperfeição a quem Ela ama. É por

isso que faço assim com o meu monstrozinho. Ainda bem não vejo perigo de ladrão, já

estou ladrando como cachorro policial...”.359

O ascetismo teresiano, por sua vez, estava perpassado por um caráter militante,

de dedicação total à causa cristã através da reclusão, da prece, da penitência: “entre

outras coisas [...] viemos aqui para glória de Deus, para nos imolar pela Igreja, pelos

sacerdotes. E nossa Santa Madre, no Caminho da Perfeição, bem diz que se assim não

fizermos, não estaremos realizando a nossa vocação...” 360 E a postura apostólica

associada aos escritos de Teresa de Jesus361 foi ainda mais acirrada por Madre Maria

José, numa recuperação da simbólica conquistadora das cruzadas, evocada pela

Neocristandade362: “Nossa Santa Madre, entre inúmeros louvores do sofrimento, diz

que em tempo de guerra é que os soldados ganham mais e galgam postos. V.C. está

nesse tempo, minha irmãzinha [...]”.363 Para a Madre, uma entrega tão radical não

conduziria à morte mas, pelo contrário, suscitaria a bem-aventurança de um encontro

Paris: Casterman, 1926. p. ix-x: “Ceci posé, ne craignons pas de dire que notre Sainte, dans une période de sa vie, a commis de fautes. Nous ne pensons pas que les âmes aient rien à gagner à ce qu’on leur represente les Saints comme impecables”. Na pequena introdução de quatro páginas e meia, duas destacam a dimensão fenomenológica da espiritualidade teresiana, e duas enfatizam sua falibilidade humana. 358 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 261. 359 Carta 1259, à Irmã Maria do Carmo, 12 nov. 1955. 360 Resumo das Práticas de Capítulos Feitos por Nossa Revda. Madre Maria José de Jesus em 1929. p. 131, n. 1. Apud: GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 192. Para aprofundamento dos significados implícitos ao ascetismo teresiano, ver capítulo 3. 361 LE BRUN, Jacques. Le grande siècle de la spiritualité française et ses lendemains. In: Histoire Spirituelle de la France. Paris: Beauchesne, 1964. p. 235-236. 362 AZZI, Riolando. A teologia no Brasil: considerações históricas. In: VVAA. História da Teologia na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1981. p. 36. 363 Carta 71, à Sóror Ana, 11 jul. 1921. Ver também Carta 210, à Irmã Marina, 20 jan. 1929.

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bastante aguardado e por fim definitivo: “Enfim, meu irmão, como diz nossa santa

Madre, ‘Aquela vida de arriba es la vida verdadera’.” 364

Uma última reelaboração de sentido foi encetada por Madre Maria José com

base nos manuscritos teresianos: a relativização do êxtase místico. Sobre esta questão,

santa Teresa desenvolveu um entendimento peculiar, considerando como ápice da

relação humano-divina um estado de abandono amoroso, por ela representado através da

imagem da seta ou do dardo. Mas, ao ser transfigurado pela despossessão afetiva, o

desejo humano ultrapassaria seus próprios limites, convertendo-se em ato

potencializador da pessoa365: “Lembrei-me, porém, que N. Sta. Madre diz que não haja

coisa que entendamos ser do serviço de Deus que não acometamos, confiadas nele

só”.366 E, mais ainda, em recíproca manifestação de amor, Deus se descentraria,

sujeitando-se àquele que a Ele se doava:“É como diz N. Santa Madre: dir-se-ia que Ele

se faz servo, e a nós senhoras”. 367 Ora, sem negar nenhum desses aspectos, Madre

Maria José os submetia à lógica do “negativo” portada pelo ideal contemplativo – o

abandono, a união, a potencialização de si, mencionados por santa Teresa, foram por ela

compreendidos sob o prisma da dor; somente o sofrimento (e não o “arroubamento”

místico) representaria uma extremada doação de si, prática inigualável de caridade:

“Lembro-lhe uma palavra de N. Sta. Madre. A medida para poder [...] [ilegível] grande

ou pequena Cruz, é o amor (mais ou menos). Portanto, filhinha de meu coração se a

+[cruz] é grande, seja grande, imenso o amor”.368

Tamanha reinterpretação dos escritos teresianos só pôde ser desenvolvida

devido às mudanças processadas no imaginário católico ao longo de quatro séculos.

Assim, os autores em que Madre Maria José fundamentava seu pensamento acerca

do religioso e, especificamente, do ideal contemplativo eram, em sua maioria,

distintos daqueles que auxiliaram Teresa d’Ávila a explicitar o processo de 364 Carta 459, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 23 ago. 1938. Cf. também Carta 381, à Irmã Marina, prov. 1934; Carta 746, à Madre Inês do Coração de Maria, 5 mai. 1946; Carta 1115, à Irmã Maria da Eucaristia, 5 set. 1953. 365 Michel de Certeau analisa a diferença entre a formulação teresiana do “castelo interior” e as metáforas similares da época moderna, com destaque à “ilha” de Robinson Crusoé, sendo que esta última obra “inverse la problématique [thérèsienne] de l’altération par le plaisir (ou la douleur) en une problématique de l’appropriation par la production (l’écriture et île): c’est toujours du sujet qu’il s’agit, mais le sujet économique remplace le sujet mystique. L’île usinière se substitue au jardin de délices. La figure du je, toujours constructrice d’um roman biographique, s’est autonomisée de ce qui la constituait autre qu’elle même”. CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 273. Grifo do autor, em itálico no original. 366 Carta 32, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 26 fev. 1918. 367 Carta 716, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 10 jan. 1946. 368 Carta 998, à Irmã Bernadette do Divino Coração, 18 ago. 1951. Há uma palavra ilegível neste autógrafo, talvez seja “amar”.

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subjetivação mediado pelo sagrado. Neste sentido, para formular sua síntese acerca

da vida espiritual, santa Teresa afastou-se quer de uma metafísica neoplatônica, quer

da filosofia místico-naturalista do Renascimento,369 recorrendo, em contrapartida, a

pelo menos quatro importantes correntes devocionais da Espanha seiscentista,370 cuja

circulação vinculava-se ao intento de reforma de um catolicismo marcadamente

ritualista e mercantilizado, em prol de uma piedade mais vivencial e subjetiva: além

da tradução das Confissões de santo Agostinho, obra decisiva em sua “conversão”,371

ela apropriou-se de uma sensibilidade religiosa de viés erasmiano (associada a

heranças judaico-cristãs372); da mística reno-flamenga,373 da qual desdobrou-se a

devotio moderna374 (de cunho mais afetivo, que lhe forneceu critérios metódicos para

oração pessoal e introspectiva); do recogimiento da escola franciscana, presente

sobretudo

nos livros de Francisco de Osuna e Bernardino de Laredo (os quais afirmavam a

superioridade da oratio mentalis, a ser universalizada a todos os fiéis).375

Já Madre Maria José, em sua tentativa de apreender a tradição legada pela

fundadora do Carmelo Descalço, embora não desconhecesse nenhuma dessas

vertentes, tendo-as, inclusive, citado em sua correspondência, privilegiou um viés

interpretativo distinto que, menos atento à interiorização da fé, dedicava-se à

validação sócio-cultural do religioso. Assim, ela reportou-se à reconstituição da

obra teresiana promovida pelos bolandistas, congregação que introduziu a crítica

histórica na literatura hagiográfica, mediante a pesquisa sistemática dos

manuscritos, a classificação das fontes, a transformação do texto em documento,

369 GALÁN, Pedro Cerezo. Op. Cit. p. 10. 370 BARRIENTOS, Alberto et alii. Introducción a la Lectura de Santa Teresa. 2ª. ed. Madrid: Espiritualidad, 2002. p. 184; Ver também DICKENS. A Contra-Reforma: Lisboa: Verbo, 1972. p. 167. 371 Teresa obteve as Confissões de santo Agostinho em 1554, provavelmente a tradução feita por Sebastião Toscano neste mesmo ano, data demarcada por Teresa como de sua “autêntica conversão”, cf. O Livro da Vida 9,7. 372 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 38-39. 373 VAZ, Henrique C. de Lima. Mística e política: a experiência mística na tradição ocidental. In: BINGEMER, Maria Clara L. e BARTHOLO JR., Roberto dos S. Mística e Política. São Paulo: Loyola, 1994. p. 30-31. A mística reno-flamenga apropriou-se dos escritos pseudo-dionisianos e, por conseguinte, dos motivos neoplatônicos, mas de forma diversificada. Assim, a vertente renana caracterizou-se por uma tendência racionalista, tendo entre seus maiores expoentes Mestre Eckhart, Henrique Suso e João Tauler. 374 A devotio moderna foi um desdobramento da mística flamenga, de feitio afetivo, sendo Ruysbroeck reconhecido como seu maior representante. A devotio moderna desenvolveu-se sobretudo no século XV, marcando o declínio especulativo da mística reno-flamenga. Ver também GALILEA, Segundo. As Raízes da Espiritualidade Latino-Americana. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 23-24. 375 Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique. Op. Cit. Verbete “Contemplation”. p. 2030; Introduccion a la Lectura de Santa Teresa. Op. Cit. p. 184.

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na dinâmica de um trabalho coletivo pautado numa rede internacional de

erudição, tecida por correspondentes e viajantes – desde então, as Vidas de santos

foram definitivamente incorporadas à esfera institucional católica, tornando-se

parte integrante da História Eclesiástica.376 Neste sentido, Madre Maria José fez a

seguinte sugestão a D. Sebastião Leme: Meu bom e venerado Pai, há muitos anos desejamos publicar em

português a Histoire de Sainte Thérèse d’après les Documents des Bollandistes,

que é uma vida admirável e muito completa de N. Sta. Madre, em dois volumes,

a melhor que conhecemos, pois até hoje não há uma boa biografia em nossa

língua. Já temos a obra completamente traduzida e agora só falta a impressão,

para a qual parece-me que V. Excia. já deu licença verbal, mas como não tenha

certeza disto, venho de novo implorá-la encarecidamente a V. Excia., meu bom

Pai, que tanto amor tem a nossa Santa Madre, e estou certa, se julgará feliz de

contribuir para que Ela seja conhecida e amada. Meu Pai, depois de me

convencer de que ninguém quererá tomar a si a impressão, peço a V. Excia.

para fazer com o Superior dos Carmelitas o seguinte trato que ele aceita: o

nosso Convento fará os gastos com a impressão e compra os direitos da

tradução, que são reservados, e ele tomará conta de toda a tiragem e nos

restituirá integralmente, dentro de algum prazo previamente combinado, tudo

que houvermos gasto. Acho que é a única solução. V. Excia. dá licença, meu

bom Pai? Assim, V. Excia. fechará este triênio com chave de ouro.377

376 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 268: “Em 1643, a publicação, em Antuérpia, do primeiro volume dos Acta Sanctorum pelos jesuítas Bolland e Henskens (o ‘Henschenius’) marca uma virada: o primeiro, em data, dos trabalhos que irão editar os Bollandistas (em particular Daniel Papebroch, o membro mais célebre desta ‘Comuna’ erudita), este volume resulta do projeto que o Pe. Rosweyde havia concebido cerca de meio século antes. Foi ele quem introduziu a crítica na hagiográfica. [...] De agora em diante, na classificação das obras religiosas, ‘as vidas de santos gerais e particulares são uma grande parte da história eclesiástica’ (Table universelle des auteurs ecllesiástiques, 1704)”. 377 Carta 138, a D. Sebastião Leme, 17 dez. 1925. A publicação, todavia, não se realizou, segundo outra missiva de madre José, escrita vários anos depois, cf. Carta 491, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 6 fev. 1940: “A respeito da História de Santa Teresa, dos Bolandistas, temos aqui uma tradução feita há muitos anos, por uma literata de profissão. Não pode ser impressa porque tendo direitos reservados, o editor pediu uma exorbitância pela licença. Parece-me que foi 5.000 frs. e 50 volumes em cada milheiro. O melhor é meu irmão escrever ao editor pedindo licença e se conseguir edições razoáveis, aproveitar a tradução que temos, corrigindo, refundindo, aperfeiçoando”.

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E não por mera coincidência, D. Leme, no discurso pronunciado por

ocasião do jubileu de prata da profissão religiosa de Madre Maria José, reiterou

seus elogios à Madre vinculando-a à tradição da Ordem Teresiana, tal como foi

entendida pelos bolandistas: E, na vida desta santa [Teresa], escrita pelos bolandistas, vêm estas

palavras: ‘Santa Teresa foi um poderoso dique à invasão protestante, com sua

vida de oração e de penitência e as suas carmelitas, fundadas por ela. Salvou a

Europa e a Espanha do domínio completo de Lutero’. Este fato é reconhecido

pelos racionalistas e, em pleno Colégio de França, foi declarado que Santa

Teresa fez mais que santo Inácio e Felipe II, o grande imperador. Da mesma

forma, diante dos inimigos atuais, não há um só momento que eu receie,

primeiro porque nosso chefe é Jesus Cristo e segundo porque nos combates lá

em baixo ele conta com Me. Maria José e as Carmelitas de mãos erguidas nesta

montanha.378

A promoção de tal releitura da tradição teresiana não ocorria de forma

aleatória: uma vez respaldados por um critério empírico de verdade, os escritos de

Teresa d’Ávila, ao mesmo tempo em que se viam recobertos pelo atributo de uma

“pureza primitiva”, diferenciavam-se de uma literatura devota baseada no

popular, no emotivo e no extraordinário (logo, de leituras perigosamente

subjetivas ou mistificadoras). De forma estratégica, a Igreja da Neocristandade

apropriava-se das produções da cultura moderna para melhor poder criticá-la.

A despeito, contudo, das diferenças existentes entre as concepções delineadas

por Teresa e a maneira pela qual Madre Maria José as traduziu, um fator é recorrente

às duas monjas carmelitas: a tessitura de variados autores, de distintas perspectivas,

numa única composição textual. Desta forma, é possível afirmar que o “hibridismo”

promovido por Madre Maria José no tocante ao ideal contemplativo alicerçava-se em

um certo ecletismo já presente na fundadora das carmelitas descalças.379 E foi este

378 Palavras pronunciadas por sua Eminência, Dom Sebastião Leme, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião do Jubileu de Prata de Profissão da Reverenda Madre Maria José de Jesus, em 21 mar. 1937. Op. Cit. 379 AZEVEDO, Carlos Moreira de (dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001. 3 V. Verbete “Espiritualidade Moderna”. p. 188; 193: “As suas biografias [dos autores “espirituais”, incluindo santa Teresa] – manuscritas ou impressas, individual ou coletivamente -, algumas autobiografias e muita da correspondência espiritual mostram redes de relações e de influências, pautas

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pluralismo interno que permitiu a ambas dotarem seu discurso de uma riqueza de

sentido que, sem deixar de legitimar a ideologia eclesial, também lhe formulava

alternativas, no incessante refazer de uma tradição.

2.4 – “...ardeu o holocausto...” (1Rs 18,38) Enquanto santa Teresa mantinha-se como referência contínua nos escritos

de Madre Maria José, são João da Cruz,380 a partir de meados da década de 30,381 começou a ganhar cada vez mais espaço em sua correspondência. Sua citação pela Madre tinha como suporte a prévia leitura de uma tradução portuguesa, possuída pelo Convento de Santa Teresa, que continha seus quatro grandes tratados (A Subida do Monte Carmelo, Noite Escura, Cântico Espiritual e Chama Viva de Amor), além de outros escritos, como Poesias, Cautelas, Avisos, Ditos de Luz e Amor e três dezenas de Cartas: “Já temos a Carmelita Perfeita e as Obras de N. S. Padre traduzidas em Portugal por uma carmelita”.382 A Madre também poderia recorrer a uma compilação dos textos sanjoanistas, provavelmente trazida de Portugal por Madre Jacinta, fundadora do Convento de Santa Teresa, no século XVIII;383 contudo, como as primeiras impressões em espanhol editadas pela Ordem (Alcalá, em 1618; Barcelona, em 1619; Madri, em 1630) apresentavam várias alterações e supressões frente aos manuscritos já circulantes, este livro muito possivelmente continha graves problemas de crítica textual.384

O distanciamento inicialmente manifestado por Madre Maria José frente aos

textos sanjoanistas era uma atitude corriqueira nos meios católicos das primeiras

décadas do século XX. O relativo desprestígio em que incorriam as obras de são João da

Cruz foi atribuído, por seus comentaristas e estudiosos, às exigências implicadas em sua

mística, geralmente tida como reservada a uma “elite espiritual”.385 A maior dificuldade

de referência e mimetismos vários, que marcaram a vivência espiritual e muitas práticas devotas daqueles tempos”. 380 Para biografia de são João da Cruz, ver Anexo 6. 381 A primeira menção explícita a são João da Cruz no epistolário de Madre Maria José data de 1918, cf. Carta 31, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 25 fev. 1918: “Se alguém se diz religioso e não refreia a própria língua, sua Religião é vã, diz o Apóstolo S. Tiago [...] N.P.S. João da Cruz afirma que isto se deve entender não só da falta de silêncio exterior, mas também da falta de silêncio interior”. A partir de então, uma nova citação só ocorreria em 6 jun. 1932, cf. Carta 291, à Sóror Josefina: “[...] dizendo, com N.P.S. João da Cruz: “Trabalhos, quanto mais, melhor!” 382 Carta 884, à Irmã Maria da Eucaristia, início 1949. 383 Mística fundamental de Cristo Señor Nuestro, explicada por el glorioso beato San Juan de la Cruz y el religioso perfecto conforme a los cien avisos y sentencias espirituales del mismo beato padre, do franciscano Antonio Abiol, cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 250. 384 POIROT, Dominique. Jean de la Croix et l’Union à Dieu. Paris: Bayard, 1996. p. 239. 385 SACRÉ-COEUR, Charles-Marie, ocd. Introduction. In: JEAN DE LA CROIX, saint. Oeuvres. Tome I: La Montée du Mont-Carmel. Toulouse: Louis et Jean Matthieu Douladoure, 1876. p. xi-xii, afirmação endossada por GAUCHER, Guy. Flammes d’Amour: Thérèse et Jean. Paris: Du Cerf. 1996. p. 19: “Commençons par rappeler quelques faits trop méconnus concernant la place de saint Jean de la Croix en France au XIXe siècle et spécialement dans les carmels. [...] Saint Jean de la Croix est un auteur difficile. [...] On vénère le saint espagnol compagnon inséparable de la Madre Thérèse d’Avila, mais on ne le connaît guère”. Tal “elitização espiritual”, embora hegemônica, enfrentava discordâncias, como a postura defendida pelo sacerdote responsável pela Ordem Terceira do Carmelo Descalço em Paris, cf. Préface. In: Le Cantique Spirituelle et la Vive Flamme d’Amour. Paris: Ch. Douniol et Cie, 1875. T. I. p. viii: “Ceux qui, dans la vie spirituelle, ne sont encore que des enfants à peine engendrés, trouveront en

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para uma apropriação dos escritos sanjoanistas, entretanto, estava vinculada à relação

tensional deste autor com a filosofia escolástica. Neste sentido, embora seja possível

reconhecer alguns pontos de contato entre as duas formulações teológicas – como a

convicção de que todo conhecimento natural se apóia sobre dados dos sentidos, que são

falíveis, e por isso tal saber não alcança a essência de Deus –, o pensamento de são João

da Cruz distancia-se frontalmente do tomismo. Para são Tomás de Aquino, o

conhecimento natural (razão), quando corretamente orientado, não entra em contradição

com a revelação, sendo lícito, portanto, tentar compreender a Verdade; haveria uma

harmonia de saberes, pautada na superioridade da fé. Já o conhecimento postulado por

são João da Cruz, leitor do neoplatonismo de Pseudo-Dionísio, bem como da devotio

moderna, é desdobrado pelo viés do “negativo”: quanto mais a alma se aproximasse de

Deus, menos o compreenderia. Tal discussão não abarca, portanto, duas formas distintas

de conhecer Deus, mas remete à contraposição entre o saber especulativo e a via

unitiva386 e, mais ainda, a duas modalidades de utilização da linguagem religiosa – os

postulados conceituais da escolástica e a coincidatio oppositorum dos místicos.387

Desta forma, para são João da Cruz, haveria uma dissociação fundamental entre

a natureza e Deus – o único que poderia plenificar a alma –, donde a necessidade de

desapego de todo criado, de negação do mundo sensível. Isso exigiria não somente um

afastamento das imagens, conceitos e racionalizações (ainda que muito piedosos) mas,

inclusive, uma prática de renúncia a si para consumação/união em Deus. Mas a

liderança do Carmelo Teresiano, logo após a morte de são João da Cruz, em 1591,

votou a um relativo esquecimento tal ideal introspectivo, expresso pela terminologia

“contemplação infusa” (inexistente em Teresa d’Ávila), pois ele ameaçava a perspectiva

missionária da segunda geração dos descalços, vitoriosa na redefinição do projeto

religioso da Ordem. O pensamento de são João da Cruz, de forma distinta do de Teresa

(este mais próximo do intuito apostólico), parecia desmobilizar ou contrariar a cruzada

da Reforma Católica; seus críticos, no interior do Carmelo, deploravam o “excesso”.388

Assim, talvez não fosse casual que algumas das primeiras citações sanjoanistas

promovidas por Madre Maria José estivessem vinculadas aos escritos de santa Teresa, o

abondance le lait de grace et de vie dont ils ont besoin dans sa doctrine profonde, mais parfaitement sûre et toujours irrépréhensible [...]” 386 KOLAKOWSKI, Leszek. Op. Cit. p. 370. 387 Michel de Certeau esclarece que esta contraposição foi traçada já no século XVII pelo carmelita Diego de Jésus, cf. CERTEAU, Michel de. L’Absent de l’Histoire. Paris: Mame, 1973. p. 62-63. Ver também capítulo 5, p. 189. 388 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 181.

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que lhes conferia maior legitimidade: “Com Nosso Santo Padre e Nossa Santa Madre

poderá fazer grandes progressos”. 389

É sintomático que durante a Restauração Católica ocorrida no Brasil, movimento

de cunho eminentemente escolástico, o pensamento de são João da Cruz tenha, pelo

menos a princípio, ficado relegado a segundo plano. Porém, o advento da

Neocristandade, a partir dos anos 20, promoveu uma revalorização da subjetividade,

dispondo os princípios morais e espirituais em posição proeminente aos político-

ideológicos. Com isso, os escritos sanjoanistas foram favorecidos, dado seu privilégio à

interiorização do religioso – aspecto similar, aliás, a vários textos místicos da era

moderna,390 que subjetivavam o sagrado num momento de corrupção e de crítica da

instituição católica: “Acho que V. R. deve ficar (se N. Senhor lhe permitir, como penso

que sim) naquela advertência amorosa de q. fala N.P.S. J.+ [Nosso Pai são João da

Cruz]”.391

Mas, ao apropriar-se dos textos de são João da Cruz numa prática de

escrita formuladora do ideal contemplativo, Madre Maria José os configurou a

uma vivência ascética do religioso, a exemplo do que fizera com a obra teresiana.

Assim, as citações sanjoanistas inclusas pela Madre em seu epistolário a partir da

década de 30392 e reiteradas até pouco antes de sua morte393 enfatizavam o

‘sofrimento’, nominando-o como um “trabalho” que, ao invés de ser evitado,

deveria, pelo contrário, ser procurado com ansiedade: “Trabalhos, quanto mais,

melhor”, diz N. Pai S. João da Cruz [...]”.394

Esta vinculação entre mística e ascetismo, desenvolvida pela Madre a partir dos

textos de são João da Cruz, não consistia uma novidade: ela já vinha sendo promovida

389 Carta 388, à Irmã Marina, 25 abr. 1935. Cronologicamente, esta foi a terceira referência promovida por Madre Maria José a são João da Cruz, sendo seguida, em sua articulação aos escritos teresianos, pela Carta 493, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 20 fev. 1940: “Sobretudo, veja que leiam muito a Regra, Nossa Santa Madre, Nosso Santo Padre, o Evangelho, a Imitação etc.”, e pela Carta 526, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 19 abr. 1941: “Lembrei-me do que diz N. Sta Madre nas 6as. Moradas e N.P.S. João da Cruz na noite escura. Parece-me ver em tudo isso, um trabalho de despojamento, de segregação de sua alma ao mundo exterior, às criaturas. [...]” Mas as paráfrases de são João da Cruz também apareceram isoladamente na correspondência, evidenciando certa autonomia de sentido: Carta 420, à Sóror Josefina, 12 out. 1936: “N.P.S. João da Cruz diz: ‘Esta vida, se não é para sofrer, não é boa’.” Cronologicamente, esta foi a quarta remissão feita por Madre Maria José a são João da Cruz. 390 Como os escritos de santa Teresa, cf. mencionado neste capítulo, p. 73. 391 Carta 1128, à Madre Maria do Carmo, out. 1953. 392 Carta 420, à Sóror Josefina, 12 out. 1936:“N.P.S. João da Cruz diz: ‘Esta vida, se não é para sofrer, não é boa’.” 393 Carta 1239, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, 22 jun. 1955:“Nós vamos indo com os trabalhos do costume, mas esta vida, como diz N. Sto Padre, se não é para sofrer, não é boa. 394 Carta 1183, a D. Jaime de Barros Câmara, 22 out. 1954.

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pelos Carmelos franceses desde o século XVII, onde fora bastante difundido o dito

sanjoaninsta “Senhor, sofrer e ser desprezado por Vós”.395 Tal religiosidade,

constituída sob a direção do cardeal Bérulle,396 reiterou uma visão pessimista da

natureza humana (numa reinterpretação dos escritos de santo Agostinho),397 a qual,

todavia, não estaria totalmente separada da divindade devido ao mistério da Encarnação,

sendo a Igreja a depositária e administradora dos benefícios que a humanização de Deus

propiciou aos homens. Desdobrava-se daí a exigência de obediência à hierarquia

eclesiástica, entendida como uma modalidade específica de prática ascética.398

A importância conferida por Bérulle à hierarquia indica, por sua vez, uma

releitura da obra dionisíaca (tão cara a são João da Cruz),399 mas que assumiu, nos

escritos do cardeal francês, contornos muito próprios: ele considerava a cúpula clerical

como a encarregada de transmitir aos demais fiéis as graças místicas que, porém, só

seriam recebidas caso fossem precedidas por uma adesão inconteste, expressa por gestos

concretos, entre os quais o Voto de servidão a Jesus e a Maria, realizado inclusive por

várias carmelitas do Convento de Santa Teresa,400 com aprovação de Madre Maria José:

“Celebro com V.C. o seu jubileu de escrava de Maria. Que graça tão grande pertencer

a essa Mãe!” 401

Tais formulações berullianas destoavam das matrizes de espiritualidade dos

primeiros Carmelos espanhóis e, desta maneira, as monjas enviadas à França como

fundadoras, lideradas por Madre Ana de são Bartolomeu,402 não apenas estranharam a

“ascese do espírito”, relativa à abstração conceitual e imagética do divino, como

também conflitaram com a “ascese das condutas”, pautada no deslocamento da

autoridade das prioras para os eclesiásticos.403 Contudo, ao ser ratificado pelo papado,404

395 Préface In: JEAN DE LA CROIX, saint. Le Cantique Spirituelle et la Vive Flamme d’Amour. Op. Cit. p. iii; SACRÉ-COEUR, Charles-Marie du. [1876] Op. Cit. p. xviii. 396 Para biografia do Cardeal Bérulle, ver Anexo 6. Sua doutrina forjou o estilo da mística francesa do século XVII. Segundo GAUCHER, Guy. Op. Cit. p. 19: “[...] le fait que, dès les débuts du Carmel espagnol em France, les carmels aient été écartés au profit du cardinal de Bérulle a pu favoriser cet éloignement. La sève sanjuaniste a pu quelque peu se tarir dans les rameaux français du Carmel”. Numa interpretação mais nuançada, POIROT, Dominique. Op. Cit. p. 242: “François de Sales et Pierre de Bérulle reproduisent, accentuent ou complètent les enseignements des écoles espagnoles”. 397 KOLAKOWSKI, Leszek. Op. Cit. p. 393. 398 Ibid. p. 402. 399 LE BRUN, Jacques. Le grande siècle de la spiritualité française et ses lendemains. Op. Cit. P. 252. 400 CARMELO DA SANTÍSSIMA TRINDADE. Madre Maria Evangelista da Assunção, 1890-1983. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 36-37. 401 Carta 983, à Irmã Maria de Lourdes da Eucaristia, do Carmelo da Santíssima Trindade, 17 abr. 1951. 402 Para biografia de Madre Ana de Jesus, ver Anexo 6. 403 PELTIER, Henri. Histoire du Carmel. Paris: Seuil, 1958. p. 182-187. 404 Conforme os breves de Paulo V, em 1620, Gregório XV, em 1621 e Urbano VIII, em 1923, cf. DEVILLE, Raymond. L’École Française de Spiritualité. Paris: Desclée, 1987. p. 44.

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o estilo de poder concebido (e exercido) por Bérulle foi paulatinamente instaurado nos

Carmelos franceses.405 Assim, por ocasião do III centenário da morte de são João da

Cruz, em 1891, conferências realizadas nos Carmelos de Caen e Lisieux privilegiaram

claramente uma abordagem ascética, baseando-se apenas nos dois primeiros tratados

sanjoanistas (silenciando, portanto sobre o Cântico Espiritual e Chama Viva de

Amor).406 E mesmo quando estes dois últimos livros foram reeditados na França, em

1875,407 são João da Cruz foi apresentado como “modelo incomparável da perfeita

abnegação de si”.408

Esta releitura sanjoanista com tons berulianos era bem conhecida da Madre, pois

a maioria dos livros devocionais que lhe chegava às mãos pertencia à chamada “escola

francesa de espiritualidade”,409 vertente que comportava uma gama bastante variada de

autores (dentre os quais, citados pela Madre, Condren410 e Grignion de Montfort 411),

sendo ainda mais divulgada no século XX por D. Marmion.412 Delineava-se aqui um

esforço peculiar de Madre Maria José: ao invés de interpretar diretamente o pensamento

de são João da Cruz, ela apropriou-se de um código estrangeiro para significá-lo e, em

seguida, o traduziu novamente, aplicando-o à realidade monástica na qual estava

inserida.

405 A difusão desta vertente de religiosidade não se fez sem conflito. No final do século XIX, alguns Carmelos Descalços femininos, desejando estar vinculados ao ramo masculino da Ordem (divergindo, portanto, do modelo de autoridade proposta por Bérulle), buscaram explicitar as diferenças entre os monastérios franceses e a espiritualidade teresiana, cf. Notes Historiques: les origines et la reforme thérésienne de l’Ordre de Notre Dame du Mont Carmel. Paris: Poussielgue Frères, 1873. p. xiii-xiv. Tal posição foi retrucada por HOUSSAYE, M. Les Carmélites de France et le Cardinal de Bérulle. Paris: E. Plon et Cie., 1873. p. 68, cujos argumentos evidenciam a ótica clerical de Bérulle: “Plus que jamais, il me tarde d’achever le portrait d’un homme que le Carmel de France vénérera toujours comme son père, le clergé comme son réformateur et son modèle, et qui, honoré de la confiance particulière des Souverains Pontifes, revétu par eux de la pourpre, se montra durant toute sa vie et jusqu’au dernier soupir, le flis le plus soumis, le défenseur le plus zélé de la sainte Église romaine”. 406 GUY, Gaucher. Op. Cit. p. 20-21. 407 A edição anterior em francês dessas duas obras, promovida pelo jesuíta Maillard, datava de 1695, havendo duas reedições (em 1850 e 1864). Porém, como os manuscritos originais de são João da Cruz só foram encontrados no século XVIII, o padre Maillard traduziu apenas os fundamentos conhecidos. A tradução de 1875 baseia-se na edição espanhola de 1702, cf. SAINT JEAN DE LA CROIX. Op. Cit. [1875] p. xii. 408 Ibid. p. v-vi. 409 O termo “escola francesa de espiritualidade” foi cunhado por Henri Brémond, cf. DE FIORES, Stefano (org.). Dictionnaire de Spiritualité Montfortaine. Otawa: Novalis/Université Saint Paul, 1994. Verbete “École française de spiritualité”. p. 428. 410 Carta 1115, à Irmã Maria da Eucaristia, 5 set. 1953: “Se tivéssemos bastante espírito de fé, faríamos genuflexão ao passar pela cela da Priora, como o Pe. Olier com o Pe. de Condren […]”. 411 Carta 11, a Capistrano de Abreu, 11 ago. 1923: “Também gostaria muito de ter o Tratado da verdadeira devoção à SS. Virgem, do Ven. Montfort [...]”; Carta 1063, à Sóror Josefina, 29 out. 1952: “V.R. com certeza conhece “O Segredo de Maria”, de S. L. de Monfort, não é? [...]” 412 Carta 761, à Irmã Marina, 24 jun. 1946: “Acho graça. A toda hora cita N. Sta. Me., N. Sto. Pe., D. Marmion, etc..”.

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Porém, a partir dos anos 40, o vínculo sanjoanista entre contemplação e

ascetismo foi progressivamente alterado, devido à leitura promovida pela Madre

da obra de Monsenhor Maurílio Penido413: “Quer ler o Itinerário Místico? Acabei

hoje. É muito bom porque explica toda a doutrina de N. Sto. Padre e é cheio das

palavras dele, escolhidas e postas em ordem, com muitos fatos da vida, citações dos

contemporâneos etc. [...]”. 414 O bom conceito que fizera do livro, editado em 1949,

não apenas motivou a Madre a recomendá-lo às irmãs - “V.R. conhece o Itinerário

Místico do Padre Penido [...]?” 415 -, como ainda conduziu-a a solicitar ao sacerdote

que se tornasse seu confessor, função por ele desempenhada entre 1953-1957.416

Maurílio Penido, filósofo neotomista com formação da Universidade de

Friburgo, retornara ao Brasil em 1938. Buscando aproximar contemplação e

reflexão teológica, criticava Bergson por sua refutação ao intelectualismo,417

embora admirasse sua obra;418 paralelamente, debruçou-se sobre a psicologia

religiosa, visando refutar as associações entre mística e loucura.419 Mas um dos

maiores embates de Mons. Penido foi com o pensamento de outro importante

filósofo também dedicado à espiritualidade sanjoanista, Reginald Garrigou-

Lagrange,420 dominicano, autor de Perfeição Cristã e Contemplação, publicado em

1933. Garrigou-Lagrange, que visitara o Convento de Santa Teresa, em 1938,421

era partidário da não-distinção entre ascética e mística, considerando a

“contemplação infusa” como um aperfeiçoamento paulatino da vida interior, um

percurso de santificação comum a todos que nele se empenhassem.422 Já Mons.

Penido, em perspectiva mais próxima à teologia produzida pela Ordem Teresiana

neste período,423 destacava a especificidade da experiência mística. Com isso, nas

cartas de Madre Maria José, as menções ao ascetismo sanjoanista foram cedendo

lugar à contemplação passiva, no entendimento de que apenas a aceitação

413 Para biografia de Monsenhor Maurílio Penido, ver Anexo 6. 414 Carta 1553, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 415 Carta 1018, à Madre do Carmelo de Santos, 22 jan. 1952. 416 MARIA JOSÉ DE JESUS, madre. In: Deus Presente. Op. Cit. p. 227. 417 Cf. a obra Deus no Bergsonismo, de 1934. 418 Cf. a tese de doutorado O Método Intuitivo de Bérgson, de 1918. 419 Cf. a obra Consciência Religiosa, de 1934, onde contestava Pierre Janet. 420 Para biografia do frade Garrigou-Lagrande, ver Anexo 6. 421 Carta 452, a D. Sebastião Leme, 5 mai. 1938: “Hoje peço a V. Emcia: 1o.) Permitir que o Pe. Garrigou-Lagrange dê três conferências à Comunidade, determinando V. Emcia. retribuição das mesmas”. 422 Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique... Op. Cit. Verbetes “Garrigou-Lagrange” p. 131 e “Mystique”. 423 Sobretudo às obras de Crisógono de Jesus Sacramentado e Gabriel de Sainte-Marie, cf. Ibid.

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incondicional (e não o esforço transformante) viabilizaria a abertura humana ao

divino: “[...] quero dizer-lhe com o meu Pai S. João da Cruz: Ó regalada chaga! Ó

cautério suave! Ó toque de mão branda e delicada!” 424

Novamente, este deslocamento de sentido não foi prerrogativa de Madre

Maria José, estando também presente em duas das mais eminentes representantes

do Carmelo Descalço no século XX, recentemente alçadas à canonização e à

beatificação.425 Desta forma, santa Teresinha,426 em seu período e adolescência e

nos primeiros anos de vida claustral, reproduziu em seus escritos o famoso dito

sanjoanista, “Senhor, sofrer e ser desprezado por Vós”, e a mesma expressão

constava das iluminuras pintadas por ela e vendidas na portaria do Monastério de

Lisieux.427 Posteriormente, a jovem monja reformularia sua compreensão: ao

constatar limites insuperáveis em si, Teresinha deslocaria o foco da mortificação à

“passividade” preconizada pelo carmelita espanhol. E, se em uma primeira

apreciação, tal via de confiança e abandono espiritual pareceria estar em completa

oposição com a austeridade sanjoanina (pois se apresentaria como suave e fácil),

ela estaria justamente fundada sobre o “negativo” propalado pelos textos de são

João da Cruz.428 Desta forma, para santa Teresinha, a santidade resultava do amor gratuito de Deus, a misericórdia divina, concepção incessantemente repetida por Madre Maria José nas suas duas últimas décadas de vida: “É bem verdade o que disse Sta. Teresinha: ‘É só o amor que vale’ [...] Peça para mim essa grande graça de amar muito, muito; é só o que desejo. O mesmo pedirei para o meu bom filho”.429 A misericórdia de Deus se faria presente em todas as circunstâncias, inclusive nas pequenas atividades cotidianas: “Então, está na sacristia? Que bom ofício! Lembre-se do que dizia Sta. Teresinha”.430 A debilidade humana, deixando de ser tida como um obstáculo à santificação, tornar-se-ia, paradoxalmente, um elemento dela constituinte, numa manifestação da grandeza divina: “A beata Teresinha, de um certo modo, quisera ir para o inferno, a fim que aí houvesse uma alma que amasse a Deus...” 431 Daí a doutrina da infância espiritual, que consiste na absoluta entrega de si à Transcendência, sem receios, sem reservas: Tenho-me convencido que nada há

424 Carta 445, à Irmã Marina, 2 jan. 1938. 425 SAINT-SACREMENT, Marie du, mère. Une Retraite sous la Conduite de Saint Jean de la Croix em Union Avec Sainte Thérèse del Enfant-Jésus et Soeur Elisabeth de la Trinité. Paris: P. Lethielleux, 1927. p. xii-xiii. 426 Para biografia de santa Teresinha, ver Anexo 6. 427 GAUCHER, Guy. Op. Cit. p. 26. 428 Ibid. p. 44. 429 Carta 568, 27 jan. 1943, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos. Ver também: Carta 306, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 29 set. 1932; Carta 443, a Adriano de Abreu, 20 out. 1937; Carta 445, à Irmã Marina, 2 jan. 1938; Carta 554, a José Paulo, 13 jun. 1942; Carta 1026, à Irmã Marina, 16 fev. 1952; Carta 1252, à Comunidade do Carmelo S. José, Rio de Janeiro, 17 set. 1955. 430 Carta 894, antes da Páscoa 1949, à Ir. Maria das Mercês do Coração Imaculado. 431 Carta 114, 2 nov. 1924, a Hermínia. Ver também Carta 391, 4 jun. 1935, à Madre Regina: “Minha filhinha, Jesus não dá desejos irrealizáveis, como diz Santa Teresinha: Ele fartará essas ânsias de amor tão impetuosas que põe na sua alma”.

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melhor que o abandono filial nas mãos de Deus e o cuidado constante de agradar-lhe em tudo, como ensina a B. Teresinha”.432

Movimento semelhante foi esboçado nos escritos de Elisabeth da Trindade433

que, inicialmente, destacara a dimensão ascética, conforme comentado por Madre Maria

José de Jesus: “Mas é como diz Isabel da Trindade, creio: “há certas permutas de amor

que só se fazem sobre a Cruz”.434 Veio daí a expressão, tão valorizada por Madre Maria

José, de “humanidade de acréscimo”: “V.C. pode considerar-se, segundo a expressão

da nossa Irmã Elisabeth da Trindade, uma ‘humanidade de acréscimo’, pela qual Jesus

ainda hoje sofre pelos seus escolhidos”,435 como a Madre afirmou a Sóror Ana, ou “É a

sua ‘humanidade de acréscimo’, na qual ainda sofre, ainda merece... Como são santas

e respeitáveis essas chagas! Como as olho com veneração e ternura! São as chagas de

Deus... Viva Jesus e viva a sua Cruz! Viva o puro amor, que é o imolado, abandonado,

crucificado...”,436 em consolo à Irmã Marina.

Porém, sem ater-se ao esvaziamento de si, Elisabeth atentava à inabitação de

Deus no ser humano – uma relação unitiva, tão melhor percebida quanto maior fosse a

interiorização: “[...] como diz Isabel da Trindade, Jesus não precisa de Sacramento

para vir à nossa alma [...]”.437 Assim, os momentos finais da vida de Elizabeth, que

precederam sua agonia e morte, foram significados por ela através da escolha de um

novo nome, que realçava, ao invés da dor do sacrifício, o encontro já antegozado por

uma entrega incondicional: “[...] desde esta vida nós mesmos devemos escolher um

nome novo que sirva para orientar a nossa vida espiritual e nos fazer viver sempre de

acordo com ele. É como uma divisa. Não se lembra como Isabel da Trindade tomou o

nome de Laudem gloriae (quer dizer, Louvor de glória) e sempre procurou cumprir seu

nome?” 438

2.5 – “...e depois do fogo, o murmúrio de uma brisa suave” (1Rs 19,12)

Havia ainda um outro conjunto textual, de fundamental importância no Carmelo

Descalço feminino: as Constituições, que desdobram os preceitos sucintamente

apontados na Regra carmelitana, elaborada entre 1206 e 1214 sob a forma de uma breve

432 Carta 100, de 17 jan. 1924, à Sóror Ana. 433 Para biografia da beata Elisabeth da Trindade, ver Anexo 6. 434 Carta 702, 23 dez. 1945, à Irmã Maria da Imaculada. 435 Carta 92, 15 jan. 1922, à Sóror Ana. 436 Carta 359, 23 jan. 1934, à Irmã Marina. 437 Carta 1155, 6 mar. 1954, à Irmã Marina. 438 Carta 1013, prov. 1951, a Belinha.

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carta.439 O conhecimento do teor das Constituições era tão importante que o próprio

documento previa sua leitura em comunidade,440 o que era regularmente realizado no

Convento de Santa Teresa: “Penso que no meu tempo líamos as Constituições à tarde

nos domingos”.441 Esta prática, todavia, não era adotada mundialmente nos Carmelos:

“Perguntei a elas [três monjas provenientes da Bolívia que passaram pelo Convento de

Santa Teresa para ir a Roma] A leitura das Constituições não têm.” 442

A observância das Constituições era considerada por Madre Maria José como

uma condição fundamental para a manutenção da ordem conventual e das tradições

teresianas. Neste sentido, a Madre recomendava a cada uma das irmãs: “Seja muito

amante e observante da Regra, do Cerimonial, dos mínimos costumes, e procure

tornar-se cada dia mais Carmelita, mais animada do espírito do Carmelo”.443 Mas as

Constituições do Carmelo Descalço – assim como as tradições que elas expressavam –

não eram unívocas, a despeito dos vínculos diretos estabelecidos entre Madre Maria

José entre a observância promovida pelo Convento de Santa Teresa e as recomendações

deixadas por Teresa d’Ávila: “[...] Outro dever para ela [para a Priora] é conservar os

costumes tradicionais da Ordem [...] É espanhola a nossa origem.” 444

Desta forma, por ocasião do ingresso de Madre Maria José no Convento de

Santa Teresa, em 1911, as Constituições vigentes, oriundas de Portugal, datavam de

1790, quando foram aprovadas pelo papa Pio VI e pela rainha Maria I 445: “As nossas

Constituições portuguesas, que tínhamos antes das atuais, tinham no fim de cada

capítulo umas Adições com explicações, costumes da Ordem, etc.” 446 Posteriores

439 Com o crescimento do número de eremitas que habitavam o Monte Carmelo, no início do século XIII, foi solicitada uma norma de vida comum ao Patriarca de Jerusalém, Alberto Avogrado, que residia na fortaleza dos cruzados, situada em São João d’Acre, no sopé do Monte Carmelo, dado ser este prelado o consultor do Papa Inocêncio III para as ordens mendicantes. A “Regra Albertina”, embora não estivesse revestida de reconhecimento canônico, foi assumida como uma norma de vida interna daquele grupo eremítico e das demais comunidades formadas a partir dele. Em 1988, já no final do século XX, as duas Ordens carmelitas (dos Calçados ou da Antiga Observância e a dos Descalços) adotaram o mesmo texto da Regra para ambas, enumerando de forma idêntica seus 24 parágrafos. SCIADINI, Patrício, ocd. Op. Cit.; INSTITUTO DE ESPIRITUALIDADE TITO BRANDSMA. Op. Cit. ; BOAGA, Emanuele, o.carm. Op. Cit. 440 Regra e Constituições... [1929] Art. 281. p. 182: “As Prioras cuidem de que ao menos uma vez por ano sejam lidas publicamente as Constituições inteiras [...]”. 441 Carta 1026, à Irmã Marina, 16 fev. 1952. 442 Carta 1038, à Irmã Marina, 12 abr. 1952. 443 Carta 266, à Irmã Marina, 16 jun. 1931. Grifos de Madre Maria José. 444 Carta 811, à Irmã Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 26 jul. 1947. 445 As Constituições portuguesas de 1790 foram elaboradas como revisão de um primeiro texto, datado de 1786, mas a bula papal não anulou o documento precedente, cf. CARMÉLITES DO PREMIER MONASTÈRE À PARIS. Mémoire sur la Fondation, le Gouvernement et L’Observance des Carmélites Dechaussées. Reims: Dubois-Poplimont, 1893-1984. p. 884. 446 Carta 1086, à Madre do Carmelo de Santos, 5 fev. 1953.

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apenas em alguns anos ao surgimento da Congregação portuguesa da Ordem, criada em

1773, elas abarcavam juridicamente os conventos de monjas sediados na metrópole e na

colônia americana, sendo mantidas no Brasil após a independência política.447 Estas

Constituições não consistiam, todavia, em uma criação original da nova Congregação

lusa: traduzidas do modelo espanhol, foram redigidas em italiano e reimpressas em

português em 1791.448

Mas a que modelo espanhol as Constituições portuguesas remetiam? Até o final

do século XVIII, vigoravam nos Carmelos da Espanha e Portugal as Constituições de

1592, aprovadas pelo papa Sixto V e alteradas em alguns itens no pontificado de

Gregório XIV. Ora, a implantação das Constituições de 1592 no Carmelo feminino

português não se fez sem conflito. Desde 1584, em plena União Ibérica, fora fundado

em Lisboa um convento feminino de descalças, sendo Madre Maria de São José, do

Carmelo de Sevilha, religiosa que havia convivido com santa Teresa, a escolhida para

fundadora; a ela somaram-se mais duas monjas espanholas e uma de origem

portuguesa.449 Madre Maria de São José opunha-se veementemente à reformulação

canônica do Carmelo Descalço, postulada pelo então Vigário-Geral, padre Dória,

defendendo a permanência das Constituições de 1590.450 Mas as petições enviadas pela

Madre com este intuito, inclusive ao Vaticano, foram em vão e, como represália, no

447 Esta Congregação foi suprimida com as demais Ordens e instituições religiosas pelo governo luso em 1834. Foi dada autorização aos mosteiros femininos para continuarem a vida claustral enquanto vivessem as religiosas cuja profissão solene fosse anterior a outubro de 1833, únicas reconhecidas como usufrutuárias dos bens conventuais. Em 1890 ocorreu o falecimento da última destas monjas, sendo o espólio do mosteiro confiscado pelo patrimônio da Fazenda Pública. Mas, neste ínterim, as comunidades femininas continuaram a admitir candidatas, chamando-nas de “pupilas cooperadoras”. Com a morte da derradeira religiosa, onze pupilas continuaram a ocupar parte do extinto convento e depois foram recolhidas em várias instituições de caridade. CORAÇÃO DE JESUS, David. A Reforma Teresiana em Portugal. Lisboa, 1962; ALZOLA, David D. A Ordem do Carmelo Teresiano: 50 anos em Portugal (1928-1978). Lisboa, 1978.

448 FORTES, Antonio M. Textos constitucionales de las carmelitas descalzas (1562-1982). Monte Carmelo, Burgos, v. 99, n. 2, 1991. p. 360-362. 449 O novo mosteiro recebeu a denominação de Santo Alberto, confessor da Ordem e nome do cardeal da capital portuguesa, que apoiou a fundação. O Carmelo de Lisboa era considerado, pelas crônicas da época, de rigorosa observância, com efetiva vigência da clausura, pobreza, prática de oração mental e do coro, realização de trabalho manual nas celas, grande devoção. LIMA, Durval Pires de (org.). História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa. T. II. Lisboa: Gráfica Santelmo, 1950 [fac-símile de 1704]; JESUS MARIA, Joseph, fr. Chronica de Carmelitas Descalços, particular de Província de S. Felippe, dos Reynos de Portugal, Algarves e suas Conquistas. 3 V. Lisboa, Bernardo Antônio de Oliveira, 1753; Notícia Histórica das Ordens e Congregações que Existem em Portugal. Lisboa: Typ. de Bulhões, 1831. 450 MORIONES, I. O Carisma Teresiano: estudo sobre as origens. Rio de Janeiro: Convento de Santa Teresa, 1973. Madre Maria de São José compôs poesias, nas quais afirmava o equívoco das mudanças então promovidas: “Não te enganem com o dizer/ De outras novas perfeições/ Foge dessas inovações/ Que te querem destruir” Ibid. p. 82.Ver também Id. Carmelo Teresiano: páginas de sua história. São Paulo: Carmelitanas, s.d.

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mesmo ano em que as novas Constituições passaram a vigorar, a Madre foi destituída da

direção da comunidade portuguesa, privada de voz e voto por dois anos, sentenciada a

cárcere conventual por um ano, sem nenhuma comunicação ou acesso aos sacramentos.

O embate prolongou-se por mais de uma década: com o falecimento do padre Dória, em

1594, a Madre pôde novamente integrar-se à vida conventual, chegando mesmo a ser

eleita priora em 1597, mas esta tendência reverteu-se em 1603, com a cúpula dos

Descalços (que se convertera em Ordem separada desde 1593) tendo ordenado sua

retirada à força de Lisboa e seu encerramento compulsório em um Carmelo espanhol,

onde morreu.451

Assim, quando a fundadora do Convento carioca de Santa Teresa, Jacinta de São

José,452 chegou a Portugal em 1755, no intuito de obter a ereção canônica do futuro

monastério sob a Regra carmelitana, eram as Constituições de 1592, e não as escritas

por santa Teresa, que estavam em vigor. Nesta época, o Carmelo feminino português

encontrava-se em plena florescência: além de terem sido promovidas duas fundações,

no século anterior, em Aveiro e em Évora, novos mosteiros foram inaugurados durante

o setecentos, nas cidades do Porto, Coimbra, Braga, Viana do Castelo, Olivais e mais

outro em Lisboa: o mosteiro da Estrela, cuja basílica é atualmente patrimônio nacional.

Foi neste contexto favorável que Jacinta conheceu e trouxe um modelo de Constituições

teresianas para o Brasil. Verifica-se, portanto, que a legitimidade do documento vigente

no Convento de Santa Teresa até a terceira década do século XX foi alvo de violentas

contestações por parte do grupo fundador do Carmelo feminino português e espanhol e,

com isso, a associação feita por Madre Maria José entre as Constituições que

inicialmente seguira e a tradição teresiana não se mostra tão imediata quanto lhe parecia

ou como foi afirmado na reedição da Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa:

“[...] estando em Lisboa, Madre Jacinta freqüentou o célebre convento das Janelas

Verdes, o Convento de Santo Alberto, denominado ‘das Albertas’, casa-mãe do

Carmelo Reformado feminino, modelo de muitas outras fundações em terras

portuguesas [...] fundado em 1585 [sic] pela Madre Maria de São José (Salazar), uma

das filhas mais avantajadas de santa Teresa, que nele soube concentrar a quintessência

da doutrina teresiana...”.453

451 Para biografia de Madre Maria de São José, primeira priora do Carmelo de Lisboa, ver Anexo 6. 452 Para biografia de Madre Jacinta de São José, fundadora do Convento de Santa Teresa, ver Anexo 6. 453 Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa. Rio de Janeiro: Cartas Marco’s Ltda., 1982. p. 15. Esta obra foi escrita por Madre Maria José em 1955, sendo parcialmente alterada para nova publicação em 1982. O texto supra citado só aparece nesta última edição.

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Ademais, as Constituições portuguesas de 1790 não eram a única referência

regimental a embasar um modelo de tradição ratificado por Madre Maria José, pois

Jacinta redigira, em 1749, suas próprias Constituições, visando melhor ordenar o

cotidiano do recolhimento que havia fundado sete anos antes. Segundo relato de frei

Nicolau de São José, Madre Jacinta teve uma visão de santa Teresa, que lhe dizia não

haver “na Reforma nada [...] que reformar, mas que era castelhana e Jacinta

americana, e portanto para estas terras, sem sair da substância da Regra, eram

necessárias algumas pequenas modificações para a sua regular observância”.454 As

Constituições de Jacinta contêm alguns elementos distintos das Constituições de 1592

(e, em decorrência, do documento de 1790), entre os quais a aplicação de mortificações

físicas (“disciplinas”) três vezes por semana,455 ou a permissão para posse de escravos

externos pelo mosteiro.456

Todavia, como parte das delicadas negociações para conquista da aprovação do

rei e do pontífice, viabilizando a transformação do recolhimento em um mosteiro de

carmelitas descalças457 (e não de clarissas, como desejava o bispo do Rio de Janeiro, D.

454 SÃO JOSÉ, Nicolau de, frei. Vida da Serva de Deus Madre Jacinta de São José, carmelita descalça, fundadora do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Artes Graphicas C. Mendes Junior, 1935. p. 92. Apud: GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 147. 455 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 147, nota 74: “Ao compararem-se estas [as Constituições de Madre Jacinta] com as Constituições oficiais que deveriam vigorar nos carmelos espanhóis e portugueses da época, notam-se diversas diferenças quanto à ordem e forma de abordagem das matérias, assim como pontos absolutamente díspares, como no caso das disciplinas, em que Me. Jacinta manda que se as tomem durante três dias na semana 2a., 4a. e 6a. feiras enquanto que nas Constituições oficiais só se manda durante um dia: 6a. feira”. Para uma interpretação mais detalhada das práticas penitenciais e sua mudança histórica, ver capítulo 3. 456 Ibid. p. 147: “Também, neste mesmo sentido, no 3o parágrafo do Capítulo 1o das Constituições de Me. Jacinta se afirma: ‘Atendendo ao clima da terra e sua Constituição, poderá a Religião ter escravos de um e outro sexo para o serviço de fora’. Tal artigo não encontra nenhum equivalente nas Constituições Oficiais”. Esta concessão nunca foi extrapolada para o interior da clausura (costume geralmente adotado nos conventos e recolhimentos coloniais e imperiais, cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 174; 177; 223-227), mesmo quando a autoridade eclesiástica sugeriu tal modificação, episódio destacado por Madre Maria José, em sua Notícia histórica do Convento de Santa Teresa: “Em abril de 1877, restavam duas Irmãs Conversas para o serviço da cozinha – naquele tempo a coque e a lenha -, quando uma delas, a mais moça, apareceu com ataques de ‘gota’ (epilepsia). Tão aflitivo era o estado da Comunidade, que o Prelado pensou em admitir na clausura duas escravas para o serviço. ‘Bem vejo que é mal, mas o contrário é pior: que fazer!’, diz ele em carta às Religiosas, acrescentando: ‘Não há esperança de Noviciado’. Era bem grande a necessidade, mas foi sem hesitação a resposta: ‘Não. Jamais receberiam criadas!’”, cf. Notícia Histórica pelas Religiosas do Convento. Rio de Janeiro: Convento de Santa Teresa, 1955. p. 41-42. 457 A criação de estabelecimentos de vida religiosa foi promovida de forma bem mais tardia no Brasil do que na América Espanhola, devido à política metropolitana, que incentivava o povoamento do território com descendência européia. Daí a proibição da ida de mulheres da Colônia para conventos portugueses a partir de 1732; da mesma forma, com base no direito de Padroado, eram inúmeras as exigências impostas pela realeza portuguesa para o soerguimento dessas casas em seus domínios americanos. Assim, somente em 1677 foi erguido o primeiro mosteiro de mulheres no Brasil, o de Santa Clara do Desterro, localizado em Salvador, cidade estratégicamente escolhida por ser capital da Colônia. Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit.; AZZI, Riolando. As ordens femininas. Op. Cit.

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Antônio do Desterro458), é bastante plausível que Jacinta tenha considerado mais

prudente ater-se ao documento de 1592, posteriormente sucedido pelo de 1790, ao invés

de insistir na adoção das Constituições que havia escrito. Afinal, recoberta por uma teia

de intrigas, Jacinta foi denunciada como impostora e visionária, o que acarretou sua

inquirição por um eclesiástico da Congregação do Oratório, especialmente incumbido

para esta tarefa pelo monarca português – qualquer atitude imponderada ou inflexível de

sua parte poderia colocar tudo a perder.459

Vitoriosa em seu pleito junto ao monarca, Jacinta retornou ao Brasil, onde

perdurava a recusa do prelado em receber a profissão das recolhidas, numa polêmica

que se estendeu até a morte da religiosa, em 1768. Desde então, as monjas do Convento

de Santa Teresa têm mantido grande apreço à memória de sua fundadora, como

evidenciado por Madre Maria José em uma de suas missivas - “V.R. conhece a vida de

N. Me. Jacinta? Foi uma santa” 460 -, ou nos versos por ela compostos para a

celebração dos duzentos anos de fundação do recolhimento, em 1942:

Ó Nossa Madre Jacinta Que reinais junto ao Senhor

Atrás de vós atrai-nos Ao sacrifício, ao amor.

Ó Madres e irmãs benditas

Que a Deus servistes tão bem, Oh! Fazei que a vosso exemplo

Sejamos santas também.

Oh! Vós que nos precedestes, Tornai-nos dignas de Vós Vossa vida austera e santa Se perpetue entre nós.461

Por isso, as Constituições de Jacinta, embora sem validade jurídica, continuavam

integrando a tradição teresiana no Brasil e, nesta condição, chegavam a inspirar algumas

decisões assumidas pela comunidade conventual.462

Em 1926, entretanto, processou-se uma nova e importante mudança, com as

Constituições de 1790 sendo substituídas por um texto unificador da legislação teresiana

458 Ver Anexo 6, sobre Madre Jacinta de São José. 459 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 317-318. 460 Carta 968, à Sóror Josefina, 29 jul. 1950. 461 SAGRADO CORAÇÀO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 208. 462 Cf. Carta 249, a D. Sebastião Leme, 23 out. 1930, em que a Madre solicitou a retomada da aplicação de “disciplinas” três vezes por semana, como prescreviam as Constituições de Jacinta, ao invés de uma vez, como indicado nas Constituições de 1926. Sobre as Constituições de Jacinta, ver este capítulo, p. 89; sobre as práticas penitenciais, ver capítulo 3, p. 122-123.

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em diversos países, o qual foi obrigatoriamente estendido a todos os Carmelos

femininos do mundo em 1937, por Pio XI. Assim, durante quase três anos, Madre Maria

José empenhou-se em versar este documento do italiano para o português, o que lhe

valeu elogios do censor da Cúria.463 Não bastava, porém, traduzi-las, sendo também

preciso imprimi-las, problema contornado com a contribuição financeira de leigos: A tradução [das Constituições] feita aqui em nosso mosteiro, foi impressa a

expensas de D. Ma. Gertrudes de Faria, nossa grande amiga e benfeitora, por isso V.R. não terá que pagar os exemplares pedidos. Será entretanto louvável que mostremos gratidão por esta tão grande esmola, então temos (os conventos todos que já a adotaram) escrito uma cartinha enviando a esta senhora nossos agradecimentos. V.R., cremos, minha boa Madre, poderá também enviar-nos uma cartinha nesse sentido, dirigida à dita Sra., nos encarregaremos da entrega. Quanto à remessa dos volumes pedidos, gostaríamos, se fosse possível a V.R. enviar por alguma pessoa de confiança porque já temos perdido algumas. Em todo caso, se for muito difícil, para não tardar muito, mandaremos pelo correio.464

Tal unificação documental surgiu em decorrência do crescimento institucional

da Ordem, promovido após a crise política que, a reboque da Revolução Francesa,

extinguira suas casas em diversos países da Europa. No início do século XX, o Carmelo

Descalço feminino encontrava-se dividido em quatro Congregações (espanhola, italiana,

francesa, anglo-belga), cada qual com sua própria legislação, além de possuir inúmeras

Províncias, dotadas de autonomia. Fora uma expansão acelerada, que carecia de um

correspondente fortalecimento identitário, então instituído mediante a normatização

jurídica, opção ratificada por Madre Maria José: “As Constituições, não há dúvida,

devem ser as de toda a Ordem”.465 Ademais, era preciso adaptar a antiga legislação

teresiana ao Código de Direito Canônico, promulgado em 1917: Como V.R. sabe, era desejo de nosso Ssmo. Padre que as Constituições das

antigas Ordens da Santa Igreja fossem revistas e adaptadas às leis do novo Código de Direito Canônico. O Revdo. Padre Geral de nossa S. Ordem, Frei Guilherme de Santo Alberto, o fez, e em 1926, obteve da S.C. [Sagrada Congregação] dos Religiosos a aprovação. Supomos que a R. Me. Priora de Porto Alegre já tenha informado a V. R. de todos os pormenores. [...] Pensamos que V.R. talvez ainda não esteja informado do processo a seguir para adotar essa Regra. Como já terá visto, é vontade da S. Congregação que todos os nossos mosteiros a sigam, para a unificação de N.S.O. Graças a N. Mãe SS. do Carmo e a N. P. S. José, nossos conventos do Brasil vão dando a Jesus a consolação de ver realizado seu desejo: Que eles sejam um, como nós, não acha? Já 9 a adotaram. Aguardamos notícia e pedido do de S. Leopoldo. Se V.R. lhe mandasse um exemplar, gostaríamos. (Acabamos de receber carta de lá). Quanto ao processo: V.R. deve fazer ler toda a Constituição às Irmãs capitulares reunidas; tirar a votação secreta; depois remeter a Roma, por meio do Prelado superior, uma petição assinada por todas as vogais. Importa que o papel enviado a Roma leve a assinatura das capitulares, senão todas ao menos da maior. É dirigida ao Santo Padre, mas enviada à Sagrada Congregação dos Religiosos. [...]466

463 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 166. 464 Carta 233, a D. Sebastião Leme, jul. 1930. 465 Carta 800, à Irmã Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 31 mai. 1947. 466 Carta 233, a um Carmelo do Rio Grande, 27 fev. 1930.

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Mas ao implantar no Convento de Santa Teresa esses novos preceitos

constitucionais, Madre Maria José também os alterou, ainda que em pequena medida, a

fim de que pudessem melhor operacionalizar os postulados do ideal contemplativo. Foi

com este intento que Madre Maria José enviou uma carta ao cardeal D. Sebastião Leme,

solicitando dispensa de alguns rigores da Constituição de 1926, pedido que foi deferido

após consulta ao Superior do Carmelo Descalço467: A Comunidade de Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio

de Janeiro pede que, em conseqüência da diferença de clima e da troca das estações do hemisfério austral e também em atenção à saúde geralmente fraca das brasileiras, lhes sejam permitidos os cinco pontos seguintes: 1o) Comer ovos e laticínios nas mesas comuns do refeitório nos dias de jejum da Igreja. 2o) Usar de fazendas pobres e grosseiras que estejam em relação com o clima do país. 3o) Tomar pela manhã uma pequena refeição. 4o) Seguir em todo tempo o horário de verão, com o jantar, porém, às 11 horas. 5o) Poderem as Religiosas que precisarem tomar algum repouso entre Completas e Matinas.

Estes pontos, propostos pelo Capítulo Conventual, foram aprovados por votos secretos.468

Os itens listados nesta missiva indicam, porém, algo mais do que uma

postura conciliatória de Madre Maria José, que assim teria cedido aos reclamos e

necessidades de algumas religiosas, em detrimento da implementação de uma

tradição “originária”. Endossando o estereótipo da “fragilidade feminina”,

utilizado tanto pelo clero quanto pelas monjas para defesa de seus interesses e

convicções,469 a Madre o empregava em um duplo e recíproco sentido: para

467 A resposta do Cardeal foi escrita na mesma missiva contendo a petição da Madre, Carta 243, a D. Sebastião Leme, 1930: “Consultando N. R. Pe. Geral da Ordem, disse-me ele que não era preciso pedir à S. Sé as faculdades para os casos abaixo. Em boa consciência, podiam as Religiosas proceder como pedem. Desejei que ele o declarasse por escrito, como autorizado intérprete das Constituições. Assim o fez. Rio, 21-XII-1930. + S.C. Arc.”. A carta contém ainda a transcrição do despacho do Padre Geral: “Dichiariamo Che considerate le circonstanze dei nostri monasteri del Brasile, si possono usare le cinque facoltà domandate. Roma, 21 luglio 1930. P. Guilherme de S. Alberto. Prepósito Geral”. 468 Carta 243, a D. Sebastião Leme, 1930. 469 Na Carta 835, à Madre Maria Evangelista, início de 1948, Madre Maria José indicava uma

brecha no seguimento dos preceitos conventuais, com algumas religiosas deixando de comungar na

missa: “Tenho graves casos a resolver, peça luz para mim e meio para lavarmos a nossa roupa e

comungarmos todas na missa. Muitas doentes por aqui. Teria muito a contar a V.R., mas...

impossível!” Em nota inclusa na transcrição desta Carta, a situação é esclarecida, com base na

suposta “fragilidade feminina”: “Conforme informações prestadas por Me. Conceição Chaves, que

entrou para este Convento de Santa Teresa em 1934, algumas Irmãs, enfermas, alegando fraqueza,

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viabilizar algumas das aberturas demandadas, mas também para estabelecer

limites às liberdades deferidas, além das quais não era possível prosseguir.

Ademais, tais permissões concerniam sobretudo aos aspectos profanos da

existência – comer, dormir, vestir –, deixando intactos os dispositivos mais

diretamente relacionados às representações sacrais, que incluíam principalmente

os votos de castidade e obediência, além do interdito à saída da clausura.

Para Madre Maria José mudar consistia, portanto, em adotar uma atitude

evasiva, no alinhavo entre passado e presente, preceitos e ideais, obrigações e

desejos. Desta forma, a negociação por ela promovida adquiriu nuances diferentes

conforme o período de sua ocorrência: nos seus cinco primeiros priorados, quando

privilegiava a leitura de santa Teresa e era dirigida espiritual de D. Sebastião

Leme, as adaptações lhe foram mais facilmente admissíveis do que nos três

priorados posteriores, quando suas determinações tornaram-se mais rigorosas,

mais conformes o “nada” apregoado por são João da Cruz.470 Mas assim, mesmo

sem o reconhecer, a Madre redefinia a “origem” do Convento e da Ordem aos

quais pertencia, refundando-os em cada novo priorado que assumia, traduzindo-os

em cada carta que escrevia.

comungavam antes da Missa, davam ação de graças, saíam para tomar café e depois voltavam para a

Missa. Entre elas estavam: Ir. Maria da Eucarista, Ir. Maria da Glória, Ir. Marina de Carvalho Leão

Teixeira”. Em seqüência, a nota transcreve carta enviada à Irmã Marina por um eclesiástico,

referendando sua decisão: “Numa carta de D. Alano du Noday, diretor espiritual de Ir. Marina, carta

a esta dirigida e recopiada por ela numa caderneta, s. d, mas com o número de ordem 7a., lemos:

Acceptez, demandez même em humilité et simplicité filiale tous les soulagments necéssaires à votre

santé; on peut, en faissant ainsi, pratiquer une humilité, un abandon heroïque. [...] Oui, tachez de

prendre quelque chose, alors vous serez + vaillente pour entrer dans le mystère de la Messe,

communiez en esprit à la grande oblation”.

470 A nova orientação arquidiocesana, liderada por D. Jaime de Barros Câmara, também assumia uma postura menos conciliatória, cf. despacho promovido pelo cardeal na Carta 810, a ele enviada pela Madre, 24 jul. 1947: “Já que o médico julga necessária a saída, aí vai a licença. Pena é que eu não confie nesse tratamento. Bênçãos.”. Tal postura foi ratificada no despacho conferido à Carta 830, também remetida ao cardeal, 27 dez. 1947: “De acordo, embora desejo de não ser necessária a licença”.

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Tenho sede de ti, meu doce Amado,

Sede de tua formosura,

Sede de ter-te em mim sacramentado

Sede de amor, de cruz, de vida pura.

Sede de ver-te conhecido e honrado,

De a ti trazer, Deus meu, toda criatura;

Sede do Céu, sede de dar-te agrado

Sede de sede, e sede de fartura...

Tenho sede... mas ah! Que nada acalma

Nem tu, Deus meu, pois quando fartas a alma,

A sede aumenta a par da saciedade.

Não, não me fartes! Dá-me cada dia

Mais sede – dessa sede que inebria...

A fartura será na eternidade.

Sítio, Madre Maria José de Jesus, 1915.471

471 JESUS, Maria José de, madre. Sonetos e Poemas. V. 1. Rio de Janeiro: Olímpica, 1960. p. 23.

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CAPÍTULO 3

UMA SIMBÓLICA DO COTIDIANO

3.1- “São centelhas de fogo, uma chama divina” (Ct 8,6) 472

Aos 10 de janeiro de 1911, o já famoso historiador Capistrano de Abreu via pela

última vez a filha primogênita, Honorina, que aos 29 anos afastava-se da belle époque

carioca para ingressar na vida monástica do Convento de Santa Teresa.473 O ritual

deixara profunda compunção nos presentes: Honorina, após ter promovido o “enterro de

seus pecados”, escritos em um papel, a seguir depositado em um canteiro do adro do

Mosteiro,474 postou-se diante do sacrário, em traje nupcial, para receber a bênção do

capelão. Em seguida, ela encaminhou-se à portaria, detendo-se no trajeto para abraçar

seu pai, enquanto os sinos repicavam...475

Em meio às despedidas de familiares e amigos, o capelão bateu firmemente na

porta da clausura que, aberta em par, deixou entrever um raro cenário: quase duas

dezenas de monjas de capas brancas, grandes véus negros caídos sobre os rostos, velas

nas mãos, ordenadas em duas alas; no fundo da sala, irmãs de véu branco, com a cruz e

os ciriais. Honorina penetrou no salão, ajoelhando-se diante da Superiora, de quem

472 As citações bíblicas deste capítulo foram retiradas de um dos principais versículos do Cântico dos Cânticos, texto integrante das obras sapienciais do Antigo Testamento. Este livro foi composto em torno do ano 400 a.C., consistindo numa coletânea de cantos populares, elencados em um esforço de reconstituição da identidade do povo judeu no pós-exílio. Tal obra exprime basilarmente a passionalidade do ideal contemplativo, cf. Julia Kristeva, O Feminino e o Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 128-129, “Alegórico, o Cântico dos Cânticos é compreendido como um canto do povo eleito (da Esposa) a seu Deus, certamente, e os cristãos não se privaram de ver aí a aspiração da Igreja a Deus, quando não um pressentimento do amor da Virgem. [...]Encruzilhada da paixão corporal com a idealização, entre sexo e Deus – o amor da Sulamita é essa experiência privilegiada que se dá a nós, que a lemos milhares de anos após sua composição, como o sagrado por excelência. [...] Sejamos ambiciosas, o sagrado é o amor”. 473 Ao descrever aquele dia, Capistrano afirmou ter estado com Honorina pela última vez na “[...] portaria [do Convento], de onde a vi sair vestida de noiva”. Carta de Capistrano de Abreu a Lúcio de Azevedo, 6 jan. 1924. In: Correspondência de Capistrano de Abreu. 3a. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. V. 2. p. 286. 474 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 71. 475 Capistrano, após o término da cerimônia, descrevera a amigos sua tristeza: “Honorina, vestida de noiva, caminhando com seus passos de rainha, ficou tão bela!... Não quero apagar aquela visão, não a verei desfigurada, de hábito atrás das grades”. Cf. MONTEIRO, Honorina de Abreu. O avô que eu conheci. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 221. out.-dez. 1953. p. 186.

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recebeu a imagem do Senhor Menino, levada por Madre Jacinta na fundação do

recolhimento, em 1742. Lentamente, a procissão seguiu para o interior do claustro,

Honorina por último. Esvaziando-se a sala, as portas foram fechadas, e assim

permaneceriam para as religiosas que ali residiam. 476 Sabedora da imensa dor sofrida por Capistrano, já expressa nas últimas conversas que com ele mantivera às vésperas de sua entrada no monastério,477 Honorina apelou à prática epistolar para reafirmar ao pai a validade de seu projeto de vida – como mulher consagrada e monja contemplativa:

Ah, meu pai, o amor paterno é essencialmente desinteressado, por isso não lamente a dor que lhe causei, porque foi a minha felicidade neste mundo e espero que também no outro. Seu sacrifício foi bem recompensado... Creia, meu bom pai, que me sinto tão feliz na vida religiosa, que constantemente estou dizendo comigo mesma: Se eu, em vez de ser uma, fosse mil, não deixaria um só dos meus eus no mundo, consagraria todos a Deus; e o mesmo digo se fosse milhões e milhões, quer de mulheres, quer de homens, e ainda que tivesse segura a salvação eterna, fosse qual fosse o estado que abraçasse.

Veja, meu querido pai, que sua filha está contente, e fique também contente, pois a felicidade dos filhos é a felicidade dos pais.478

Ao longo dos anos, Madre Maria José iria aprofundar a opção que fizera pelo

ideal contemplativo, dotando-o de uma representatividade singular – ela associou-o, em

afinidade com o imaginário católico, ao estado amoroso: “Segundo o pensamento

sublime de Santa Teresinha, no corpo místico de Cristo, o Carmelo é o amor, e se faltar

o amor, os mártires recusarão a dar seu sangue, a dedicação, o heroísmo, deixarão de

existir”.479 Mais ainda, o ideal contemplativo foi vinculado pela Madre, numa releitura

de antiga tradição da Igreja, à condição da alma apaixonada e amante,480 conforme ela

escreveu a Irmã Marina, no aniversário de 12 anos da tomada de hábito de sua ex- 476 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 74-75. Cf. também Carta 806, à Irmã Marina, 17 jul. 1947: “Lembro-me tanto da sua entrada tão emocionante; aquele silêncio na portaria; aquela menina tão linda, de vestido de seda matizada, que deixava todos os bens e alegrias da terra [...]”. 477 Carta de Capistrano de Abreu a Mário de Alencar, 9 jan. 1911. In: Correspondência de Capistrano de Abreu. Op. Cit. V. 1. p. 213-214: “A 30 uma carta de Honorina, datada da véspera, comunicou-se a resolução de entrar já para o convento. Só a 2 pude ter com ela uma conversação íntima e perfeitamente inútil”. Cf. também Carta de Capistrano de Abreu a Mário de Alencar, 18 jan. 1911. Ibid. V. 1. p. 225: “[...] Só agora vejo como a queria. Passo os dias sem sair, pensando nela, joguete dos sentimentos mais contraditórios, desde a indignação até as lágrimas. Só com os filhos, à hora do jantar, converso sobre ela. O receio de que qualquer estranho se possa referir ao assunto dá-me arrepios. O isolamento não me pesa, alivia-me. A dor geral transformou-se; sinto um frio íntimo que vai da espinha aos olhos, mas os acessos vão se espaçando e duram menos [...] Honorina deu um passo irrevogável – já é um consolo. [...] Mas basta de Honorina. Peço-lhe que nunca mais se refira a este assunto, se eu em primeiro lugar não o abordar”. 478 Carta 120, a Capistrano de Abreu, 10 jan. 1925. Grifos de Madre Maria José. 479 Carta 306, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 29 set. 1932. 480 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA, Julia. Op. Cit. p. 128-129: “A novidade bíblica parece-me incontestável: a mulher que fala no Cântico é um indivíduo independente e livre, uma pessoa soberana, e não uma difusão cósmica, fascinante ou abjeta. É a primeira vez que aparece na literatura amorosa mundial um sujeito autônomo que pode nomear seus desejos – suas forças, seus objetivos, seus obstáculos -, e esse sujeito é uma apaixonada”.

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noviça: “Oh, minha filhinha, seja como o veadinho dos Cantares, que galga os

píncaros dos montes e vai correndo pelas alturas, desdenhando as facilidades da

planície. Vá correndo, inebriada pelos perfumes do Esposo, buscando-O, procurando-

O [...] amante apaixonada de Deus e de Cristo”.481

O ideal contemplativo, desta maneira, foi várias vezes traduzido na

correspondência de Madre Maria José pela simbólica da “paixão”.482 Esta categoria

indica a propensão de um sujeito (individual ou coletivo) a configurar-se, de forma

passiva (passio), aos sentidos oriundos de uma experiência por ele vivenciada.483

Apropriada do vocabulário estóico pelo cristianismo, tal concepção adquiriu densidade

teológica com a hermenêutica da Paixão de Cristo. Ora, a temática da paixão – por

Cristo – ocupou um lugar central nos escritos de Teresa d’Ávila, por sua vez inspirada

na devotio moderna, difundida principalmente entre os séculos XIV e XV, na Bélgica e

nos Países Baixos. Contrapondo-se ao intelectualismo que então recobria a escolástica,

esta religiosidade caracterizava-se pelo destaque à introspecção, inflamada por ardente

afeição; seu acento era colocado na prece (o “falar do coração”) e direcionado a um

Deus que se humanizara na encarnação do Verbo, suportando o sofrimento e a morte –

tratava-se de um cristocentrismo sensível, que transitava entre a exaltação e o lamento,

eivado de ternura.484

Tal espiritualidade emotiva perdurou no imaginário católico, com diferentes

intensidades, até o período da Neocristandade (primeira metade do século XX),

favorecida pela reforma tridentina.485 Os cânones deste Concílio, contudo, também a

cercearam por mediações clericais e sacramentais, visando evitar o suposto risco de uma

subjetivação em demasia (o modelo refutado era o das igrejas protestantes). Nesta longa

481 Carta 189, à Irmã Marina, 29 jan. 1940. Ver também, como exemplo, Carta 266, à Irmã Marina, 15 jun. 1931: “Aproveite todos os minutinhos para adornar essa virgem casta que é a sua alma, a fim de apresentá-la como esposa ao único Esposo, Cristo”; Carta 124, a Matilde de Abreu, 24 fev. 1925: “[...] e se não te cansas de dar graças a Deus pelo bom esposo que te deu, e tens muita razão – eu também não sei como agradecer o meu”. 482 Para a noção de “símbolo”, ver CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Paris: Du Seuil, 1987. p. 224: “[...] le ‘symbole’ est d’abord la partie d’un objet auquel manque et s’ajuste une autre moitié. Ainsi en est-il des fonctions qui organisent le christianisme. Aucune d’elles ne dit ou ne circonscrit ‘la’ verité, mais elles renvoient les unes aux autres d’une manière qui ne ferme jamais le sens [...]”. 483 DUARTE, Luis Fernando Dias. Sujeito, soberano, assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental moderna. ARÁN, Márcia (org.) Soberanias. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. p. 183. 484 Sobre a devotio moderna, ver também GALILEA, Segundo. As Raízes da Espiritualidade Latino-Americana. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 22-23; capítulo 2, p. 76. Para a apropriação desta religiosidade por Madre Maria José, ver GALLIAN, Dante. Madre Maria José no Caminho da Perfeição. São Paulo: Paulus, 1997. p. 177. 485 KOLAKOWSKI, Leszek. Chrétiens sans Église: la conscience religieuse et le lien confessionnel au XVIIe. siècle. Paris: Gallimard, 1987. p. 375: “L’intériorisation de la vie religieuse – l’un des traits les plus importants de l’esprit religieux de la Contre-Réforme [...]”.

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duração, a dimensão afetiva da fé foi paulatinamente compreendida como uma

resistência à secularização, cujo processo, imbricado ao fortalecimento dos Estados

nacionais, tornou-se cada vez mais aprofundado com o deslanchar da modernidade

liberal e técnico-cientificista.486

Paralelamente, a filosofia das Luzes demarcou a autonomia da simbólica

passional do campo religioso: auto-referente, ela foi associada, desde Hume e Voltaire,

ao sentimento desejante, em oposição ao exercício da razão. Apropriada, por sua vez,

pelo pensamento romântico-germânico, a paixão foi vinculada à pulsão (Trieb),

conceito não isolado de uma racionalidade, sendo assim considerada um importante

vetor da vontade humana, capaz de motivar um indivíduo rumo à realização de seus

intentos.487

No entrecruzamento desses diferentes sentidos culturais, o epistolário de Madre

Maria José delineava sua própria simbólica da paixão: uma pessoa, a ela rendida,

relativizaria o seu “eu” (reconfiguração da negatividade do ideal contemplativo) e

deixar-se-ia “afetar” pelo outro – quer essa alteridade fosse o divino, que a

transfiguraria, quer fosse os demais seres humanos, que lhe despertariam comoção e,

mais ainda, um liame identificatório: Tudo isso que V.C. sofre e que tanto me penaliza, que é senão uma

representação da Paixão de Jesus? Ele, na sua carne, como se diz do Seráfico Patriarca [S. Francisco de Assis] reproduziu alguma coisa da sua paixão. E para que? A santa Igreja no-lo diz na oração de hoje: para renovar nos corações que vão esfriando o fogo do amor de Deus. Veja que função sublime a sua: pela sua Cruz individual unida à Cruz do Redentor, atear o fogo que Jesus veio trazer à Terra.488

A paixão, assim configurada por Madre Maria José, apresentava-se como um

“fervor” 489, nascido da lacuna humana e radicalizado sob o receio de interrupção da

relação com o divino e, por conseguinte, com o sagrado no mundo: “Não se esqueça,

minha filha”, dizia a Madre a uma noviça que retornara à vida leiga, “[...] tem de ser

sempre contemplativa, alma de fogo, em qualquer estado ou circunstância, mesmo no 486 CERTEAU, Michel de. A formalidade das práticas: do sistema religioso à ética das Luzes (XVII-XVIII). A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 487 DUARTE, Luiz Fernando D. e VENÂNCIO, Ana Teresa A. O espírito e a pulsão: o dilema físico moral nas teorias da pessoa e da cultura de W. Wundt. Mana: estudos de antropologia social. V. 1, n. 1, 69-115, out. 1995. p. 86-87; JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3a. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. Verbete “Paixão”. 488 Carta 161, à Sóror Ana, 17 set. 1926. 489 Carta 302, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 24 set. 1932: “Sejam muito boas, santas e fervorosas; só assim receberão o nome de Carmelitas”; Carta 398, a Jônia de Abreu, 15 ago. 1935: “Minha Joninha, não se esqueça também do dia em que recebeu a Jesus pela primeira vez, e procure recebê-lo muitas vezes, sempre com maior fervor”.

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matrimônio, se tal for a Vontade de Deus”.490 Nesta perspectiva, a simbólica da paixão

encontrava-se revestida, nos escritos da Madre, por uma linguagem efusiva,

transbordante: “Estou sequiosa, estou louca, estou com fome de Deus...”.491 Expressões

similares eram empregadas para significar vivências de outras religiosas – “V.C. é uma

alma sedenta de amor, faminta de amor, todo o seu mal é necessidade de amor” 492 - e

mesmo de leigos: “Como me é doce, meu bom irmão, sentir palpitar, através do papel,

o seu coração todo aceso, inebriado, adoidado [...] de amor por Jesus, pelo Pai, pelo

Espírito Santo, em Maria.” 493 A paixão, reforçada por sua ambigüidade semântica,

oscilava então entre o prazer e a dor, com o corpo deixando-se consumir para

preservação de seu objeto de amor494:

[...] sua pobre tia é perfeitamente feliz, porque tem Deus. Já passei meses inteiros sofrendo atrozmente com a asma, que às vezes me punha numa quase agonia de morte, e isto durante muitos anos. Mas creia, minha filhinha, mesmo assim, sentia-me feliz. Tinha meu Deus, tinha minha Mãe do Céu, e era o bastante. Cada manhã recebia o meu Jesus na santa Comunhão; durante as noites cruéis de insônia e de sufocação lembrava-me d’Ele, unia-me a Ele, recordando o que Ele padeceu nessas mesmas horas, ou visitando-O no sacrário onde Ele está presente e vivo por meu amor; e com isto era feliz.495

A culminância do enlace afetivo com a divindade, entretanto, poderia até

prescindir do deleite advindo de tais emoções e sensações – as chamadas “consolações

espirituais” –, pois o ápice da paixão situar-se-ia na pacificação do desejo humano,

então saciado:

Quando falo em gozo e felicidade, é como uma coisa meramente acessória. Não é nisto que consiste o amor de Deus, nem é com o olho na recompensa que O devemos servir. Se fosse este o motivo da nossa conversão, haveria nela ofensa e não glória para Deus. Por outro lado, há muitas almas santíssimas que nunca experimentaram consolação nas coisas divinas. Encareço o gozo para fazer ressaltar melhor as misericórdias do Senhor, e também para atrair a sua alma, porque naturalmente todos gostam daquilo que dá felicidade. Aliás, mesmo esses que não

490 Carta 1004, à Maria de Lourdes Figueiredo, 18 jun. 1952. 491 Carta 335, à Irmã Marina, 23 mai. 1933. Cf. também Carta 353a, à Irmã Marina, 1933: “Minha filha, o que eu tenho é nostalgia, é saudade, é sede de Deus, de Maria, do Céu [...] quisera voar, voar...” 492 Carta 1502, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. Cf. também Carta 432, à Irmã Marina, 6 mar. 1937: “Filhinha, seu coração tão ardente, suas fúrias de amor, são sinal de uma vocação, de uma predestinação para amar”. Grifos de Madre Maria José. 493 Carta 491, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 6 fev. 1940. 494 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Paris: Gallimard, 1982. p. 14; 271. 495 Carta 532, à Honorina de Abreu [sobrinha], 13 jun. 1941. Grifos de Madre Maria José. Cf. também Carta 354, à Irmã Marina, 17 jan. 1934: “Ah! Que tormento é não dar a Deus tudo – amor, santidade, sacrifício até o infinito... [...] Reze por sua mãezinha que quase morre de paixão”.

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experimentam consolações sensíveis no serviço de Deus sentem uma paz, um bem-estar espiritual, que eles não trocariam por todos os prazeres da Terra. 496

A simbólica da paixão, traduzida pelas cartas de Madre Maria José, pode assim

ser compreendida como uma produção cultural-religiosa bastante peculiar, denominada

por Michel de Certeau, de forma provocativa, como “erotização da história”: um

movimento de apaixonado arrebatamento, pelo qual o humano, seduzido pelos apelos da

divindade, insinuados por toda parte (geralmente de forma velada), proferia respostas

que se transmutavam em experiências (ainda que provisórias) de encontro497: “Minha

florzinha querida, todo o seu mal é amor. É o amor que lhe faz chorar as infidelidades,

lamentar o tempo perdido, gemer pela ausência do Amado. [...] Daqui a pouco passará

a nuvem que escurece o seu céu e a minha florzinha verá o seu Sol Divino, será

acaricida, penetrada por seus raios, e sentirá então o amor que deseja”.498

Nesse sentido, nas missivas de Madre Maria José, Deus era reconhecido como o

protagonista do vínculo amoroso: ao adentrar o humano, Ele preencheria os vazios e as

falhas existentes, cabendo então à pessoa deixar-se possuir pelo divino: Minhas caras filhas, estava hoje pensado em meus grandes defeitos, em

minha má vida, tão diferente do que deve ser a vida de uma verdadeira Carmelita, e ao mesmo tempo via-me tão inveterada em meus males, tão impotente para corrigir-me, que quase desanimava. Comecei a pensar qual seria o melhor meio para conseguir uma completa reforma e aos poucos chegar à perfeição que tanto desejo. Veio-me então à lembrança que nós não devemos tanto combater os defeitos diretamente, porque assim toda a vida se nos passará nessa luta sem nada conseguirmos; para nós é melhor buscarmos o exercício da presença de Deus como meio de vencer tudo, mas presença de Deus contínua, amorosa, íntima, habitual. É possível que uma Irmã que está unida a Deus, pensando n’Ele, falando com Ele, desobedeça, replique, recuse uma mortificação, falte ao silêncio ou à caridade? Não, na união com Deus acha-se força para tudo, e a alma fica tão cativa da Divina Formosura, que se desprende quase involuntariamente das misérias que antes lhe detinham os passos e só pensa em contentar a seu Amado.499

496 Carta 533, a Adriano de Abreu, 28 jul. 1941. Ver também Carta 605, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 29 mai. 1944: “Ah! Minha irmãzinha, se eu lhe pudesse dizer o que é o amor, ou se eu o conhecesse como ele é! A Sra. precisa [...] no mais íntimo de sua alma, entregar-se ao doce amor de Deus, sem muitas fórmulas nem atos distintos, mas num sentimento profundo de que O possui e é possuída por Ele e que Ele é todo o seu amor. Isso não quer dizer sensibilidade, quer dizer fé, e pode unir-se até a uma grande secura de alma. Enquanto a Sra. pensar em algum outro caminho que não seja o do amor, não terá paz. Sinta-se amada, muito amada, isto ajuda muito a amar. Até para a sua saúde física essa entrega humilde e filial ao Amor lhe será proveitosa”. 497 CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Op. Cit. p. 292: “Cachée dans la soumission aux règles d’une tâche et dans la régularité d’exigences objectives non choisies, il peut y avoir une érotisation de l’histoire – une passion altérante et altérré, j’oserais dire: une rage d’aimer”. 498 Carta 296, à Irmã Marina, 12 set. 1932. 499 Carta 27, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 21 fev. 1918. Ver também Carta 392, à Irmã Marina, 15 jun. 1935: “Filhinha minha, creia no amor e deixe-se amar, sinta-se amada. No mais – a observância da Regra, a prática das virtudes, etc. – seu trabalho consiste em tornar-se digna desse divino amor, vivendo de tal forma que não oponha obstáculos ao Amor e possa ser sempre mais amada”.

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A simbólica passional era instaurada no cotidiano das monjas do Convento de

Santa Teresa através, sobretudo, de duas práticas basilares do Carmelo Descalço – a

oração e a penitência –, as quais exteriorizavam e, ao mesmo tempo, legitimavam o

ideal contemplativo, conforme comentário proferido pela superiora do Hospital São

Zacarias à Madre Maria José, que ali se internara em dezembro de 1949 para exames

médicos: “Ontem disse-me a Irmã Superiora: ‘O mundo inteiro espera tudo da oração

e penitência das Carmelitas’. Fiquei impressionada e bem envergonhada pela parte que

me toca. Vamos todas unidas, pois a união faz a força, trabalhar muito para que a

expectativa do mundo não seja frustrada”.500

Concomitantemente, a passionalidade implicada na oração e na penitência

teresianas constituía-se em precioso recurso simbólico utilizado pela Igreja no

enfrentamento de dois grandes desafios do mundo contemporâneo. Desta maneira, a

atenção conferida pelas carmelitas à promoção diária da prece, da meditação, do exame

de consciência... mostrava-se imprescindível a um catolicismo que visava incorporar o

subjetivo (redescoberto pela cultura burguesa do século XIX) ao âmbito do devocional:

mais do que uma privatização do religioso, estendido à intimidade dos lares, tratava-se

de reafirmar a importância do sagrado para a experiência de constituição de si.501 Em

contrapartida, a valorização da piedade expiatória, ao enfatizar as implicações coletivas

da ética de salvação pessoal, possibilitava à instituição católica não se deixar aprisionar

no individual – postura relevante em uma época de redefinição do espaço público, com

o fortalecimento dos Estados nacionais.502

3.2– “Grava-me como um selo em teu coração” (Ct 8,6)

500 Carta 927, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 12 dez. 1939. 501 A partir de meados do século XIX, o catolicismo foi sendo configurado como uma “[...] religião mais afetiva [...] O culto do santíssimo sacramento e os progressos da comunhão freqüente concorrem para a distensão. A adoração perpétua [...] faz aflorar uma nova fonte de emoção individual. Esta guarda igualitária de Deus, este cara a cara solitário e prodigioso impressiona os mais empedernidos fiéis”, cf. CORBAIN, Alain. O segredo do indivíduo. In: PERROT, Michelle (org.). História da Vida Privada IV. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p. 479. 502 AZZI, Riolando. Teologia no Brasil: considerações históricas. In: VVAA. História da Teologia na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1981. p. 34: “A Igreja vê-se acuada pela força dos movimentos políticos liberais, que dão origem à unificação da Itália e à perda dos Estados Pontifícios [...] A mentalidade que se difunde na Igreja nesse período tem como tônica o sentimento de derrota e o pessimismo. [...] A devoção ao Coração de Jesus expressa de maneira bastante típica esta visão de mundo: Jesus é o prisioneiro do sacrário, e os seus devotos devem refugiar-se aos seus pés para reparar os pecados que os maus e os inimigos da fé estão cometendo”.

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A oração era indicada por Madre Maria José como o principal recurso para

efetivação, na vida cotidiana, da simbólica da paixão: através da prece operar-se-ia uma

relação dialógica entre a divindade e a pessoa, assim constituída como sujeito – “Há

também uma coisa em que acho uma grande consolação: é falar, contar, consultar

todas as minhas coisas com N. Senhor como o faria com uma pessoa da terra, como a

meu Mestre, meu Pai, meu Esposo; pedir-lhe conselho, remédio etc. com muita

confiança e singeleza em tudo. Se V.C. não faz assim, experimente, e verá que

consolação”.503

Mediante tal interlocução, ao mesmo tempo em que reconhecia a grandeza de

Deus, o ser humano dimensionava sua própria fraqueza, promovendo um duplo saber -

o ato de conhecer(-se), portanto, situava-se no campo da prece: “Sábado a missa foi

celebrada na intenção de acertamos com a vontade de Deus. No mesmo dia recebi

carta do Sr. Bispo D. Mamede [...] N. Madre e as Irmãs lá me escrevem o mesmo e é

não só o meu desejo e vontade, mas o que sempre N. Senhor parece inspirar-me na

oração. Tenho rezado tanto!”504 Porém, de forma diferente do teocentrismo medieval, a

oração não mais se apoiava numa epifania dos seres e das coisas, cujo sentido teria sido

previamente revelado; sua “sabedoria” era advinda de cuidadosa escuta da fala divina, a

ecoar na interioridade do sujeito em prece 505, como foi incisivamente afirmado por

santa Teresa506 e retomado por Madre Maria José: “Se os nossos filhinhos fizessem

todos os dias ao menos um quarto de hora de oração mental, que luzes não achariam!

Como aprenderiam a viver de verdade, alimentar-se de verdade, e não de mentira!” 507

Seria também através da oração que a verdade divina e a vontade humana,

geralmente distintas, poderiam confluir, pois à súplica ou à intercessão proferidas pela

pessoa sucederia uma atuação, talvez de forma inusitada, da graça divina: “Oh! Como 503 Carta 66, à Sóror Ana, 10 mar. 1921. Ver também Carta 10, à Irmã Vicentina, provavelmente após julho 1913: “[...] sei como Jesus fala à alma quando tudo se cala”. 504 Carta 721, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 21 jan. 1946. Ver também Carta 835, à Madre Maria Evangelista da Assunção, início de 1948: “Tenho graves casos a resolver, peça luz para mim.” 505 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 220. “[…] De diverses manières, l’énonciation qui détermine les élaborations ‘spirituelles’ part du postulat que l’acte de connaître si situe dans le champ de la prière (ou, comme le disait déjà saint Anselme, dans le champ de l’ínvocatio). L’allocution est pour le savoir sa condition et son commencemmet. Elle lui donne la formalité d’un ‘parler à’, qui est aussi un ‘croire en’ (credere in)”. Esta premissa tem como uma de suas mais importantes matrizes o pensamento agostiniano, cf. WILLIANS. El futuro de la espiritualidad agustiniana. In: La Espiritualidad Agustiniana y el Carisma de los Agustinos. Roma: Pubblicazioni Agostiniane/Curia Generalizia Agostiniana, 1995. p. 32-33. 506 CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Op. Cit. p. 36: “La détérioration d’un univers devient pour Thérèse le langage d’un autre univers, celui-là anthropologique. […] C’est là que le fidèle trouve le signe de Dieu, certitude désormais établie sur une conscience de soi. Il découvre en lui-même ce qui le transcende et ce qui le fonde dans l’existence.” 507 Carta 516, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 25 jan. 1941.

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me sinto enternecida e grata a Nosso Senhor quando tenho uma boa notícia dos que

conheci outrora! É que como rezo muito pelos parentes e amigos, logo me parece que

tive alguma parte naquele bem. Não sei se será presunção, pois tudo atribuo à infinita

Misericórdia de Deus, e não às minhas orações”.508 Isso ocorreria, inclusive, quando a

oração estivesse perpassada por acirrado tom dramático, pelo qual Deus era inquirido e

confrontado com os impasses de sua criação509: Finalmente, sofre com paciência quando não achares consolação no mesmo

Deus, pois teu Jesus na cruz se viu desamparado de seu eterno Pai, a ponto de exclamar em sua dor: ‘Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?’ Olha então para teu Esposo crucificado: seus braços estão sempre abertos para receber-te. Lança-te sobre seu Coração, chora com Ele, sofre com Ele, e suas lágrimas serão mais doces do que todas as delícias da terra.510

Ao não se deter no sofrimento, a oração atingiria um estado de adoração, pelo

qual a pessoa unir-se-ia à transcendência,511 numa superação (ainda que parcial) de seus

limites.512 Arriscada passagem das fronteiras do humano, que arrojava o sujeito a uma

condição similar à “loucura”, com ruptura das referências empíricas, abertura aos

sentidos então tornados possíveis...513:

Causou-me grande consolação a sua carta, por me mostrar que o meu irmão cada vez mais é todo de Deus, nada quer, nada busca, senão unicamente o Bem infinito, o amor infinito. E como agradeço essa predileção de Jesus para com a alma do meu irmão! [...] Jesus é um ‘louco de amor’. Seja sempre mais, meu irmão, louco de amor. Essa loucura que faz dar de mão a tudo e entregar-se totalmente a Deus sem condições, sem meias medidas, é a suprema sabedoria, é o Céu na terra. Sim, creio que o meu irmão já tem o Céu na terra. [...] Por tantas misericórdias vamos

508 Carta 123, a Capistrano de Abreu, 24 fev. 1925. São inúmeras as passagens do epistolário de Madre Maria José em que a oração recebe uma conotação intercessória. Nelas, a Madre afirmava estar rezando pelas intenções que lhe foram confiadas. 509 BARUZZI, Jean. L’Intelligence Mystique. Paris: Berg International, 1985. p. 164-165: Citando Heiles, Jean Baruzzi afirma que “Saint Jean de La Croix retrouvant, dans la Nuit obscure, le langage de Jérémie, se fait de la prière une plus tragique conception. [...]Et ce combat de prière jérémien revient encore chez les êtres pieux de l’Exil, chez Paul et Luther, chez Bunyan et Kierkeggard. Leur prière est un appel vers Dieu de profundis”. 510 Carta 13, à Irmã Vicentina, após dez. 1913. Cf. também Carta 605, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 29 mai. 1944: “Isto não quer dizer sensibilidade, quer dizer fé, e pode unir-se até em uma grande secura de alma”. 511 BARUZZI, Jean. Op. Cit. p. 167: “La prière est adhésion à une présence [...] le ‘dialogue’ d’un Dieu et d’une âme est la découverte, au plus profond d’un silence, de ce qui, en moi, est plus que moi”. 512 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 339 “La prière (‘oratio’) sera donc le ressort de la réforme: un rétour à l’intérieur, au mouvement (à la fois ‘motus’, príncipe moteur, et ‘motio’, inspiration conjoncturelle) qui vient d’en haut, à une ‘force’ qui, de l’interieur’ donne sens et direction (‘intentio’) aux activités quotidiennes”. 513 Sugere-se aqui uma associação entre o ato de adoração e a experiência unitiva configuradora da santidade, mencionada pelas hagiografias, cf. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Op. Cit. p. 270: “Corresponde a um ‘tempo livre’, lugar posto à parte, abertura ‘espiritual’ e contemplativa. Não se encontra do lado da instrução, da norma pedagógica, do dogma. [...] Sob estes dois aspectos cria, fora do tempo e da regra, um espaço de vacância e possibilidades novas”.

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cantar juntos, meu irmão, o hino do amor e gratidão, aquele mesmo que ressoa na Pátria e que o Verbo canta no Espírito Santo à glória do Pai [...] também as nossas orações vocais, a oração mental, o trabalho, as lágrimas, as dores de toda sorte, as obras do apostolado, os atos de virtude, fazem um concerto harmonioso do céu, unidos à voz divina do Verbo Encarnado.514

A despeito de revestir-se dessas diferentes expressões (de pedido, de

agradecimento, de louvor...), a oração poderia ser configurada, segundo o epistolário

de

Madre Maria José, como uma modalização específica da linguagem515 – ela produzir-se-

ia como uma declaração de amor516: Nos seus momentos difíceis fique repetindo teimosamente, se assim me

posso exprimir: Meu Deus eu Vos amo, meu Deus, Vós sabeis que eu Vos amo – até voltar a calma. [...] A Sra. precisa arranjar ao menos meia hora por dia para ter um só a só absoluto com Nosso Senhor e aí, bem no mais íntimo de sua alma, entregar-se ao doce amor de Deus, sem muitas fórmulas nem atos distintos, mas num sentimento profundo de que O possui e é possuída por Ele e que Ele é todo o seu amor.517

Em decorrência, a prece consistiria em fonte de intensa gratificação para o ser

humano – “E que honra, que elevação que dignidade! Entreter-se com Deus, falar-lhe

coração a coração, receber suas divinas influências: pode haver maior felicidade e

grandeza? Entretanto, para muitos a oração parece coisa acessória” 518 -; assim,

atuando de forma prioritária na constituição da subjetividade de uma carmelita descalça,

a prece também se mostraria indissociável do delineamento da representação social

dessas religiosas: “Peço a Nossa boa Mãe do Carmo que a minha filhinha seja sempre

Carmelita, isto é, toda de Jesus e Maria, alma de zelo e de oração, ardente e generosa

na fé e no amor.” 519 Por tudo isso, a prática diária da oração era ardorosamente

514 Carta 459, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 23 ago. 1938. 515 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 227: “[...] Il en va de même pour le conversar des spirituels: cet art de parler, accompagné d’innombrables ‘méthodes’ qui modalisent la supériorité de l’acte sur le savoir et celui du dire sur le lire, est destine à générer dans le présent de nouvelles alliances qui sont, par exemple chez Thérèse d’Avila, ou des relations communautaires (la compañía), ou des échanges avec la tradition chrétienne (la ‘direction spirituelle’), ou des colloques avec Dieu (l‘oraison)”. 516 Ibid. p. 221. “Cinq siècles après, l’invocation continue à surplomber le champ où peut se développer une rationalité de la foi, et cela reste encore vrai aujourd’hui pour une théorie de l’amour”. 517 Carta 605, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 29 mai. 1944. Grifos de Madre Maria José. 518 Carta 516, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 25 jan. 1941. 519 Carta 1251, à Maria de Lourdes Figueiredo, 12 set. 1955. Ver também Carta 887, à Irmã Marina, 1949: “Minha filhinha muito e muito amada, vamos fazer um pacto, um concerto sagrado: de ora em diante vamos ser Carmelitas, custe o que custar. O recolhimento, a oração, a solidão, sejam a nossa atmosfera. [...] Os braços sempre abertos pedindo, rogando, suplicando”.

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recomendada pela Madre: “De sua parte procure tornar-se alma de oração; amar,

amar muito a Jesus e a Maria [...]”.520

Sendo tão crucial, a prece não poderia ser realizada de qualquer maneira. De

fato, havia um conjunto de prescrições, denominadas genericamente de “observância”,

cuja sistematização objetivava assegurar o melhor desempenho possível dos atos

orantes no cotidiano monástico.521 Eram dispositivos, abrangentes e detalhados, que

deveriam ser impreterivelmente atendidos pelas religiosas. Assim, em uma de suas

cartas à sobrinha Isa, que cogitava fundar uma casa religiosa, a Madre redigiu dois

parágrafos aparentemente independentes, mas cujo sentido era encadeado pela lógica

observante: Numa casa religiosa é preciso haver ordem, submissão. É preciso que Deus

reine; que se dê a Deus o que é de Deus. Você primeiramente deve cumprir a regra ao pé da letra, e depois fazer que as outras a cumpram. Sem isto Deus não é glorificado e o bem não se faz.

Minha filhinha, seja muito piedosa, ame muito a N. Senhora e a Jesus no SS. Sacramento; procure ter vida de constante oração e ser virtuosa, vencer-se, dominar seu gênio por amor de Deus. Ele a abençoe, minha filha, e a faça santa.522

O cumprimento da “observância” deveria ser iniciado com a promoção de um

estado de silenciamento (exterior e interior), seqüencial ao afastamento das atividades

“mundanas” e favorável à escuta da divindade: “Ah! Como desejo, minha filha, ver em

V.C. todas as virtudes e o verdadeiro espírito do Carmelo! Nesse tempo de só a só com

Deus, pense bem que assim deve ser toda a sua vida. Contínua oração, contínua

solidão, contínuo exercício de amor. Isto peço para V.C.; peça-o também para sua

pobre mãezinha”.523 Tal retraimento não apenas produzia um lugar alternativo ao

mundo social – a clausura524 -, dotado de dimensões físicas e simbólicas (como, por

exemplo, o segundo véu a recobrir o rosto das religiosas, evitando qualquer

comunicação visual, até mesmo com as companheiras);525 ele também se constituía

520 Carta 498, a Isa de Abreu, 30 mar. 1940. A oração é citada como uma prática indispensável em inúmeras cartas escritas por Madre Maria José. 521 Para uma interpretação dos preceitos de observância sob uma ótica repressiva, ver NUNES, Maria José Rosado. Um modelo de vida religiosa para uma Igreja de Cristandade. In: Vida Religiosa nos Meios Populares. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 45-46. 522 Carta 775, a Isa de Abreu, 22 out. 1946. 523 Carta 1605, à Irmã Maria Henriquetta de Jesus Hóstia, s. d. 524 Regra e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro, 1929. Art. 255. p. 167-168; até esta data, ver Regra e Constituições... [1916]. Capítulo III. A clausura papal foi inicialmente estabelecida pela bula Periculloso, datada de 1298, no pontificado de Bonifácio VIII. 525 Carta 34, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 28 fev. 1918:“Gostaria que pusésseis o vosso veuzinho, pois isso ajuda maravilhosamente para guardar a modéstia da vista e a união da alma com Deus, em apartamento das coisas exteriores”. Cf. também Carta 293, à Irmã Marina, 2 jul. 1932: “Este

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como um espaço de trânsito526 entre uma maneira de ser (fragmentada e individual) e

outra (singularizada e relacional), desde que dinamizado pela operação interlocutória da

prece. Assim, quando este diálogo sacral deixava de acontecer (isto é, de fazer sentido),

a clausura tendia a transformar-se em lugar opressivo 527, prisão nem tão metafórica, a

ser rompida pelas insubordinações cotidianas528: [...] trago ao conhecimento de V. Emcia. Revma. tudo que se refere à Irmã [...] chamei-a em particular e disse-lhe que ela provavelmente seria reprovada e portanto era melhor que por si mesma pedisse dispensa dos votos e saísse amigavelmente. Ela ficou num estado de excitação extraordinário, negou-se terminantemente, encerrou-se numa sala, sem querer abrir ou falar a ninguém, fazendo bastante excessos. Finalmente, pediu que se lhe concedesse mais um ano de prova [...] A princípio melhorou, mas no fim de algum tempo recaiu nos seus defeitos habituais. Ficando bem doente de um dente [....] recusou-se terminantemente deixar-se ver por um dentista, dizendo que preferia fazer escândalo ou fugir da clausura. [...] quando a Irmã soube que havia sido reprovada, fechou-se na cela, num estado de excitação tal, que se chegou a temer que viesse a perder a razão ou a vida, tanto mais que estava bastante doente de um dente e protestava que não tomaria mais nem um copo de água e exigia absolutamente sua saída da clausura no dia seguinte às 5 horas da manhã. 529

Assim, o esconder-se “neste jardim fechado, nesta fonte selada, neste santuário

velado” 530 também exigia uma constante auto-vigilância, evitando-se a rarefação da

prática orante, a perda da paixão pelo divino; afinal, se a Regra do Carmelo Descalço

dispensava as religiosas “[...] de nos ocuparmos com aulas, doentes e outras coisas que

nos possam distrair e servir de escusa”, alertava a Madre, “[...] talvez mesmo pela

nossa vida concentrada, nos distraímos facilmente, pensando nos defeitos, palavras e

obras do próximo, do que ouvimos no recreio ou no locutório, nos cuidados e

preocupações com a família, a saúde, o futuro etc.” 531 A assiduidade no falar com Deus apresentava-se, em decorrência, como um outro preceito de “observância”: “O Mons. [...] disse que precisamos saber perder tempo aos pés de N. Senhor.”532 Mas mesmo para uma monja, cujo cotidiano era regrado por atividades exclusivamente ligadas ao claustro – que desde o período colonial fora caracterizado, a despeito de suas variadas funções, como “casa de oração” 533 –

véu negro é o símbolo desse apartamento do mundo, dessa morte a tudo. Esse véu aparta-a do mundo, mas faz com que veja melhor a Deus, e é penhor de que no céu se fartará na sua eterna contemplação”. 526 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 201-203. 527 Para a clausura como fator de controle social das mulheres, ver: ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: mulheres da Colônia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. p. 410-411; QUINTANEIRO, Tânia. O sexo segregado: recolhidas e religiosas. In: Retratos de Mulher: o cotidiano feminino no Brasil sob o olhar de viajeiros do século XIX. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 59-66. 528 Sobre as práticas de insubordinação feminina às determinações da clausura, ver: ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 191; 211; 230-231. Sobre o uso da clausura como “tática” feminina de capitalização de poder, ver Ibid. 61; 153-155; 185-186; NUNES, Maria José Rosado Nunes. Freiras no Brasil. In: DEL PRIORE, Mary (org.) História das Mulheres no Brasil. 2a. ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 488. 529 Carta 62, ao Cardeal D. Joaquim Arcoverde, 27 nov. 1920. 530 Carta 24, a Capistrano de Abreu, 11 fev. 1918. 531 Carta 738, à Irmã Marina, 27 mar. 1946. 532 Carta 979, a Belinha, 1951. 533 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 263; 276.

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não era fácil cumprir a totalidade dos horários reservados à prece, que no Convento de Santa Teresa eram tão extensos quanto recortados. Ali, as carmelitas descalças tinham, por preceito, a recitação comunitária do Oficio Divino: de manhã, em torno de seis horas, rezavam Prima, Terça, Sexta e Noa;534 às duas horas da tarde, havia a oração das Vésperas; depois do jantar e da recreação da noite, eram rezadas Completas e Matinas.535 Era um “serviço” sagrado, que por articular a glorificação a Deus e a intercessão pelos homens, tornava-se prioritário sobre qualquer outro encargo conventual, segundo as determinações da Ordem536: “Aqui também, há quatro ou cinco anos, estivemos todas atacadas de gripe, menos três, e foi uma verdadeira desolação; mas Nosso Senhor foi tão misericordioso, que nunca se interrompeu a reza do Ofício no coro”.537 A perpetuidade do Ofício constituiu-se, inclusive, num fator configurante da representação social das monjas teresianas e do próprio Convento: Desde a Madre Jacinta de S. José, gloriosa imitadora da Santa Matriarca do Carmelo, tem havido Religiosas de muita santidade e perfeição. A reza do Ofício Divino jamais foi interrompida no Coro, mesmo quando ficou reduzida a sete anciãs a Comunidade. Praza ao Senhor conservar no humilde claustro da Virgem Santíssima do Carmo a flama do espírito carmelita; e sempre as Carmelitas de Santa Teresa, pela observância, oração e penitência, trabalhem, embora obscuramente, para a glória de Deus e o engrandecimento da Igreja e da Pátria.538

Desta maneira, apenas sob raríssimas circunstâncias (como por doença ou visita

repentina do bispo) a recitação do Ofício poderia ser preterida e, caso isto ocorresse, ele

deveria ser rezado privadamente539 ou substituído por uma litania de pais-nossos.540 O

Ofício era recitado em latim, língua sagrada e também suporte cultural da ortodoxia

católica541 e, por isso, uma das exigências para o ingresso conventual era o domínio de

sua leitura - “Ir. Maria da Glória (a de Pernambuco), não vai receber o hábito este mês

534 Regra e Constituições... [1929]. Art. 48; até esta data, Regra e Constituições... [1916]. Capítulo IV. Art. 4 e 5. p. 63-64. 535 Regra e Constituições... [1929]. Art. 45; até esta data, Regra e Constituições... [1916]. Capítulo IV. Art. 3. p. 62. Ver também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 160. 536 Regra e Constituições... [1929]. Art. 279. “Em todo o Convento em que se achem ao menos quatro Coristas professas não legitimamente impedidas, deve-se recitar diariamente o Ofício Divino em comum, segundo as normas das presentes Constituições. [...]” 537 Carta 194, à Sóror Josefina, 4 jun. 1928. 538 SCHUBERT, Guilherme, pe. A Província Eclesiástica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Agir, 1948. p. 112. Cf. também JESUS, Maria José de. Convento de Santa Teresa: notícia histórica pelas religiosas do Convento. Rio de Janeiro, 1955. p. 41: “[...] jamais foi interrompida, sequer por uma Hora Canônica, a salmodia no Coro”. 539 Carta 174, a Capistrano de Abreu, 27 jul. 1927: “[...] o trabalho vai aumentado, com mais duas postulantes que entraram, quer por que já não estou passando muito bem e às vezes falto ao coro e tenho de rezar o Ofício Divino ou fazer oração em particular, o que me toma muito tempo”. Regra e Constituições... [1929]. Art. 279: “As Coristas professas de votos solenes que não tomarem parte no coro são obrigadas a recitar as Horas canônicas privadamente. (Can. 610 [do Código de Direito Canônico])”. 540 Carta 761, à Irmã Marina, 24 jun. 1946: “Não faça esforço demasiado para rezar o Ofício, peça licença para os P.[Pai]-Nossos, quando precisar”. Ver também Carta 1390, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, jul. a ago. 1958; Carta 586, à Irmã Maria Petronila de Jesus, dez 1943; Carta 585, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 12 nov. 1943. 541 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 281; 323.

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porque tem tido muita dificuldade com o latim; rezem para aprender depressa. É um

anjo.” 542 -, desafio aos poucos vencido por empenhadas candidatas à vida monástica:

“2o- [Pedido de licença] Para darmos o santo Hábito à postulante Maria Henriqueta

em agosto ou setembro, caso seja aprovada pelo Capítulo. Já está lendo regularmente o

latim e é muito boa.” 543

A “observância” comportava ainda um esmiuçar de comportamentos, tidos como condizentes à recitação do Ofício Divino544: a voz e a maneira de salmodiar, as posturas corporais...,545 criando uma identidade gestual da religiosa. As inovações deveriam ser evitadas, mesmo em ocasiões onde a carência de condições apropriadas se fazia sentir, como ocorreu no Carmelo de Teresópolis, logo nos primeiros dias após sua fundação. Ali, os horários noturnos das orações foram preservados, mesmo tendo faltado “[...] luz elétrica, como acontece freqüentemente [...] Sabe V.R. como rezamos Completas e Matinas? De um lado, Ir. Ma. da Euc. [Maria da Eucaristia] e eu; do outro Me. Sub-priora e Me. Ma. Ev. [Maria Evangelista] e 1 castiçal para cada lado. Os salmos rezamos sentadas, para enxergar; nas antífonas, hinos etc. era preciso segurar a vela na mão, e para o que se reza no meio acendia-se [uma] 3a. vela”. A despeito da situação improvisada, o decoro, a seriedade e a concentração deveriam ser mantidos a todo custo: “O pior é que erramos e fomos beijar o chão e depois não achávamos o lugar. Irmã. Ma. da Euc. toca a rir; felizmente N. S. deu graça à Me. Subpriora e a mim para vencermos a tentação do riso, e no outro dia Ir. Ma. da Euc. pediu perdão no Ref. [Refeitório]”.546 Tais determinações quanto ao ritual tinham como função auxiliar no esvaziamento do “eu”, evitando individualismos, ao mesmo tempo que visavam expressar a união entre as Irmãs e a excelência da vida contemplativa. O Ofício Divino, integrante da liturgia católica, tornava-se assim elemento fundamental à simbologia da paixão - em suas aclamações e invocações, ele suscitaria algo de “irresistível”, um misto de enternecimento estético e de entusiasmo moral, que já fora nominado por Kant como “sublime” 547: “Como é bela a liturgia da Missa e o Ofício Divino! Como estribilho,

542 Carta 245, à Madre Cecília Maria, 2 ago. 1930. 543 Carta 487, a D. Sebastião Leme, provavelmente antes 5 jan. 1940. 544 CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Op. Cit. p. 13: “Ponctuant l’uniformité de l’espace, la prière a des lieux propres et des attitudes définies. De telles déterminations étonnent. [...] Lui fixer [à Dieu] um geste, n’est-ce pas le paralyser? De fait, ce qui ne peut être qu’universel dans son intention n’apparaît que sous la forme de la particularité”. 545 Cf. Ordinário ou Cerimonial das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro: C. Mendes Jr., 1930. Art 117, p. 47-48: “As Religiosas no coro estarão com grande modéstia, os olhos humildemente baixos, os pés cobertos pelo hábito; se não estiverem segurando o livro, terão as mãos sob o escapulário, nem as porão fora sob pretexto de devoção, por exemplo para cruzá-las ou juntá-las diante do peito, mas se conformarão neste ponto ao uso praticado em toda a Ordem. [...] As Religiosas hão de abster-se quanto possível de fazer ruído, cuspindo, tossindo, assoando-se ou de qualquer outro modo no coro [...] Em uma palavra, cada uma procurará portar-se com extremo respeito, considerando que é admitida em audiência pela Infinita Majestade de Deus”. Esta legislação era bastante minuciosa quanto à execução do Ofício Divino (capítulo III), indicando os procedimentos apropriados à sua preparação e entrada no coro (artigos 98 a 105), ao “modo de cantar e do que deve ser cantado” (artigos 106 a 109), à duração (artigos 110 a 112), à “modéstia, compostura e usos a observar no coro” (artigos 113 a 121), à saída do coro (artigos 122 a 126). Ver também ARNOLD, Odile. Le Corps et L’Âme: la vie des religieuses au XIXe siècle. Paris: Du Seuil, 1984. p. 96. 546 Carta 641, à Madre Maria do Divino Coração, do Convento de Santa Teresa, entre 3 e 4 jun. 1945. 547 Ver também CLÉMENTE, Catherine e KRISTEVA, Julia. Op. Cit. p. 42: “Para além das clivagens entre o Bem e o Mal, puro e impuro, permitido e interdito, intelectual e sensível, o sagrado é ‘sublime’, no sentido em que o entende Kant na Crítica do Juízo: um curto circuito entre a sensibilidade e a razão,

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repete-se todos os dias: Deixai cair vosso orvalho, ó céus; e vós, nuvens, chovei sobre o Justo. É a aspiração dos Profetas antigos”.548 A recitação do Ofício Divino não se dissociava da prece individual,549 pois no ato de rezá-lo, cada monja o modulava por seus desejos e intenções. Neste sentido, Madre Maria José, em uma dada ocasião, propôs à Irmã Marina que lhe fossem acrescentados outros tantos dizeres, visando a ampliação do sentimento que nutriam por Deus: Minha filhinha, vamos fazer um desafio? Ou antes, vamos experimentar um meio de aumentar o nosso fervor e o nosso amor a Jesus Sacramentado. É assim: no Ofício Divino, quando acabar o verso de seu lado, mais ou menos na pausa entre um coro e outro, experimente fazer um ato de amor ou uma jaculatória muito breve, como: ‘Laus tibi Christi’, ou mesmo um olhar interior, um ato de adoração mental a Jesus ou à Santíssima Trindade.550 Paralelamente, a oração comunitária fornecia o “motivo” (temática) à prece particular551: “Rezando o Ofício e assistindo a Missa do Seráfico Patriarca [S. Francisco de Assis], pedi muito a Jesus que seus filhos e filhas, especialmente as minhas Irmãs da Ajuda, se conservem sempre dignos de um Pai tão admirável [...]”.552 Mas no Carmelo teresiano, a oração pessoal, geralmente dita “mental”, era dotada de importância própria – também ela fazia parte da “observância”, sendo praticada duas vezes por dia (logo após o despertar, às cinco da manhã, e ao final da tarde553), com cada um desses períodos perdurando por uma hora: “Agora V.C. está melhor, vá recomeçando a cumprir suas obrigações de Carmelita. Faça uma hora de oração de manhã e outra de tarde, ao menos ficando silenciosa durante uma hora e bem unida a Deus. [...]”.554 Esta prece, realizada preferencialmente no Coro, incorporava as características de uma “meditação”: através dela, a religiosa relacionava suas experiências, interrogações e aspirações aos textos bíblicos, buscando refletir sobre os mistérios de Deus e da condição humana555: “Estou muito contente por saber que a minha Isinha está fazendo meditação. Não pode haver coisa melhor, mas, para maior fruto, recomendo-lhe que, durante ela, fale com Jesus e com N. Senhora com muito carinho e confiança [...]”.556 Sem tornar-se um exercício intelectual, assumindo feições claramente afetivas – não sendo, aliás, proibido falar a Deus com humor ou ousadia, numa delicada familiaridade557 –, esta modalidade de orar muitas

em detrimento do entendimento e do conhecimento. Um golpe desferido pela sensibilidade na inteligência. [...] Então, sim o sagrado autoriza o desfalecimento, o desmaio do Sujeito, a síncope, a vertigem o transe, êxtase [...]”. Cf. capítulo 5, p. 199-200. 548 Carta 99, a Capistrano de Abreu, 1 dez. 1923. 549 BARUZZI, Jean. Op. Cit. p. 173: “Non que j’aie l’intention d’opposer – ce qui serait arbitraire et, dans la plupart des cas, peu exact – la prière privée et la prière publique. La prière privée est encore liturgique [...]”. Cf. também TERESA DE JESUS, santa. Caminho de Perfeição. São Paulo: Paulinas, 1977. 22,1.3. 550 Carta 356, à Irmã Marina, 19 jan. 1934. Cf. também Carta 173, à Sóror Ana, 8 jul 1927. 551 BARUZZI, Jean. Op. Cit. p. 169: “Se demander si la prière ne s’accomplit pas avant out à travers le drame d’une conscience individuelle et dans le secret d’une création lyrique – quelles que soient les limites d’un tel repliement de soi sur soi – c’est se transporter dans le monde des valeurs et ne pas se borner au monde des êtres. [...] Si intense et intime que soit sans doute leur prière secrète, c’est dans l’être collectif qu’elle s’exprime, et c’est une voix collective qu’elle exige”. 552 Carta 162, à Sóror Josefina, 17 set. 1926. 553 Regra e Constituições... [1929]. Art. 48 e 57; até esta data, Regra e Constituições... [1916]. Capítulo IV. Art. 9. p. 65-66 554 Carta 586, à Irmã Maria Petronila de Jesus, dez. 1943. 555 SANTA TERESA DE JESUS. Livro da Vida. 4a. ed. São Paulo: Paulus, 1983. 12.2. 556 Carta 400, a Isa de Abreu, 5 out. 1935. 557 Carta 703, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 23 e 24 dez. 1945: “O Menino, este ano, vem chegando muito ‘arteiro’, fazendo suas travessuras mesmo antes de nascer, como quem está certo de ser amado e louvado, faça o que fizer. É uma prova de que tem confiança em nós e precisamos merecê-la, sendo um vivo sim a todos os seus brinquedos infantis, não acha, minha Mãezinha? Sabe uma d’Ele? Mas prometa-me não ficar aflita, é coisa sem importância. Hoje, domingo, estou bem gripada, apesar de

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vezes resvalava para um “recolhimento”, no qual a monja configurava sua interioridade pela adesão da vontade ao que compreendera como sendo a verdade divina.558 O ápice da oração mental era o chamado estado de “quietude”,559 cuja vivência foi geralmente silenciada por Madre Maria José, devido à sua proximidade ao âmbito das graças místicas; assim, apenas em uma de suas centenas de cartas, a Madre mencionou-o explicitamente: Sabe o que sua mãezinha anda pedindo agora? É a graça de fazer oração como Nossa Santa Madre fazia, encerrando-se dentro de si mesma, recolhendo-se ao seu castelo interior e achando o céu na terra na companhia do Rei com a sua corte. Não era um simples recolhimento, nem com a imaginação. Era antes um adorar a Deus presente, uma Comunhão prolongada, ora na treva, ora na luz, conforme o Senhor era servido. Peça esta graça para mim, sim, filhinha?560 Também as biografias da Madre pautaram-se pela prudência acerca de tal experiência, mencionando-a de forma discreta: “O Divino Espírito Santo atraía-se sempre mais para o interior de sua alma” 561 O significado da oração mental na vida de uma carmelita descalça era ainda mais evidenciado pela importância atribuída por Madre Maria José à realização dos retiros, que deveriam ocorrer anualmente, sendo seguidos tanto pela comunidade religiosa562 como por cada monja em particular,563 e cuja duração estendia-se, em ambos os casos, por 10 dias: “Começando hoje nosso retiro, venho fazer a nossa palestra mensal e dizer-lhe como me sinto feliz de entrar nesses dias de solidão em que, desocupada de tudo, só me emprego na meditação de Deus e das coisas eternas. O mundo acha que rezamos demais, e nós achamos tão pouco, que vivemos suspirando pelos dias de retiro”. 564 Todo esse desvelo conferido à prece por Madre Maria José reforçava a aproximação que vinha sendo promovida entre o ideal contemplativo e o imaginário da Neocristandade. Mas tal relação só se mostrou historicamente possível devido à prévia adequação das preces teresianas em um “método” de oração,565 juntamente com os cuidados tomados pela Madre para o perfeito cumprimento dos dispositivos de observância: “Aqui vamos mais ou menos bem. Se V.R. pudesse entrar aqui, acharia grande mudança; mas eu nunca estou satisfeita, porque tenho uma concepção tão alta da vida do Carmelo!”.566 Este duplo proceder desvaneceu os receios eclesiásticos acerca de possíveis devaneios introspectivos, vinculados a uma oração concebida como discurso amoroso.

Com isso, a oração mencionada na correspondência de Madre Maria José

também continha matizes de uma religiosidade romanizante, vigente na Restauração

Católica.567 O primeiro elemento desse “hibridismo” referia-se ao expurgo de

ter tomado injeção, remédios etc.”. Grifos de Madre Maria José. Cf. também TURIN, Yvonne. Femmes et Religieuses au XIXème Siècle. Paris: Nouvelle Cité, 1989. p. 263. 558 SANTA TERESA DE JESUS. Caminho de Perfeição. Op. Cit. 28.4,7. 559 Ibid. 31.2,4. 560 Carta 368, à Irmã Marina, 8 jun. 1934. 561 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 200. Cf. também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. 225. 562 Como exemplo, Carta 802, a Adriano de Abreu, 24 jun. 1947: “Começamos hoje o retiro anual, peço orações”. 563 Como exemplo, Carta 1294, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 7 ago. 1956: “Estou fazendo meu retiro particular de dez dias. Reze por mim.”. 564 Carta 131, a Capistrano de Abreu, 19 set. 1925. 565 Cf. capítulo 2, p. 76. 566 Carta 480, à Madre Maria Evangelista, 18 out. 1939. 567 A concepção católica de salvação em perspectiva romanizadora pautava-se na participação aos sacramentos e na obediência às leis de Deus e na Igreja, tendo como primazia a prática da caridade. Cf. GOMES, Francisco José da Silva. Le Projet de Neo-chretienté dans le Diocese de Rio de Janeiro de

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experiências “extraordinárias” (como a percepção de sons, imagens e odores, a recepção

de estigmas etc.), anteriormente associadas à vivência mística568, da qual a fundadora do

Convento de Santa Teresa, Jacinta de São José, consistiu em modelo exemplar.569 Neste

sentido, D. Leme, respondendo à carta de Madre Maria José, expressava algumas de

suas desconfianças, em um texto que se encontra parcialmente apagado:“[...] os

Sacramentinos. Não era bem a casa dos Padres. Além disso, essa criatura tão santa é

muito instável e meio visionária”.570

Em raras ocasiões, todavia, ao descrever nas missivas sua prática orante, Madre

Maria José acabou por mencionar a sobre-naturalização tão questionada pela

Restauração Católica; retomando o vínculo tecido pela simbólica passional entre o

corpo e a fala,571 ela apontou alguns de seus momentos em prece como uma experiência

tão sensorial quanto significante: “Vi N. Senhora, maravilhosa como uma aparição

celeste, e senti a doçura da presença de Jesus no seu divino sacrário”.572 Madre Maria

José, porém, em fidelidade ao Magistério eclesiástico, era muito cautelosa quanto a tais

reverberações sensíveis do sagrado no “eu”; neste sentido, quaisquer comentários

versando sobre visões imaginárias eram logo acompanhados por esclarecimentos: Na oração da manhã, 6a. feira, estava pedindo muito pelas eleições quando

vi como num quadro oval de tamanho natural o rosto e meio corpo da Me. Ma. I. [Madre Maria Imaculada] e tive a certeza de que seria eleita [priora]. Senti ao mesmo tempo muita alegria e ternura por ela, e foi por isso que lhe escrevi aquele bilhete dizendo que era uma comunhão à alma dela. Não pense que foi visão ou coisa sobrenatural, foi uma evocação da memória, como acontece quando a gente pensa em alguém.573

Ao expurgo de experiências “extraordinárias”, acresceu-se, como segunda faceta de historicidade da prática orante de Madre Maria José, sua articulação aos parâmetros de uma religiosidade contábil, difundida a partir do século XIX.574 Assim, a Madre

1869 a 1915. Paris, Université de Toulouse Le Mirail, UFR d’Histoire, 1991. Thèse de Doctorat. V. III. p. 844-845. 568 Em carta à Irmã Marina, após o falecimento de Madre Maria José, Mons. Maurílio Penido, que fora confessor da religiosa, afirmara: “Nada de graças ‘extraordinárias’, algo muito simples, como um olhar amoroso a Deus”, cf. Cartas escritas por Cardeais, Bispos, Sacerdotes, Religiosas e Leigos sobre Madre Maria José de Jesus. In: CCSDMII. V. 14. p. 131. 569 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 313-320. 570 Carta 387, a D. Sebastião Leme, 5 abr. 1935. 571 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Op. Cit. p. 230: “A voz, com efeito, transita no intermédio do corpo e da língua, mas num momento de passagem de um ou outro e como que na sua diferença mais frágil. [...] Estranho intermédio onde a voz emite uma palavra sem ‘verdades’ e a proximidade de uma presença sem posse.” 572 Carta 636, à Madre Antonietta Maria do Amor Divino, do Carmelo de Petrópolis, 8 mai. 1945. 573 Carta 626, à Madre Maria Evangelista, do Carmelo da Santíssima Trindade, fins de 1944. Ver também Carta 709, à Irmã Marina, dez 1945: “Não há muitos dias, quase à hora da matraca, vi V.C. direitinho, metendo a cabeça para dentro da nossa cela pela abertura da porta, mas tão viva, tão alegre, tão bonita, que me consolou, parecia realidade”. Grifos de Madre Maria José. 574 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS. Marina, irmã. Op. Cit. p. 200.

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acrescia à prece mental o maior número possível de rezas formais, aprovadas e difundidas pela Igreja: Ela [Mariinha, conhecida de sua irmã Matilde, que iria receber a primeira comunhão] tem de colher todos os dias uma porção de flores espirituais, que são atos de virtude e sacrifícios, e assentá-las no caderninho, no lugar onde diz: Colhi... Além disso, tem de repetir muitas vezes as jaculatórias, que são o perfume das flores, e assentar o número das vezes no lugar onde tem: Perfumes... Por exemplo, se no dia 1o a flor é rosa e ela fez 10 sacrifícios, colheu 10 rosas. Se disse a jaculatória 20 vezes, perfumou 20 vezes as rosas. É preciso ir contando por um fio de contas móveis ou de tantos pauzinhos feitos num papel; depois, à noite, assentará tudo no caderninho que lhe mandei.575 Daí a proliferação, no epistolário da Madre, de menções a novenas, a ofícios de Nossa Senhora, a jaculatórias, a “sete domingos”, a “quinze sábados”, a terços e rosários, a vias-sacras, a coroinhas das Dores...,576 entre outras tantas devoções ciosamente realizadas. Dotados desta mesma funcionalidade, eram também citados antigos rituais, como as procissões,577 que retomavam a simbologia das peregrinações578: Além das procissões litúrgicas prescritas pelo Manual, fazemos as de N. Mãe Ss. do Carmo, N.P.S. José, N. Sta. Madre, N.P.Sto. Elias, N.P.S. João da + [Nosso Pai S. João da Cruz] e Defuntos da Ordem, como mandavam os Rituais antigos. Em casos particulares, como para pedir chuva etc., e nas grandes necessidades da Igreja e da Pátria, fazemos também, geralmente com a Ladainha de todos os Santos, às vezes com o Rosário ou cânticos.579

As bênçãos, sobretudo a do escapulário,580 tornaram-se usuais nas missivas, mas

passaram a ser vinculadas a uma autoridade canônica (como a priora ou o bispo),

deixando de estar associadas, como nos séculos anteriores, à figura dos “beatos” e

“beatas”: “Com a maior reverência e afeição, peço a V. Excia. Revma. sua santa

bênção, que me pôs quase boa da perna na 4a. feira santa”.581 Dessa maneira, tais

devoções não excluíam um proselitismo sutilmente agressivo, que reafirmava a

575 CORBAIN, Alain. O segredo do indivíduo. Op. Cit. p. 480. Ver também ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 296. 575 Carta 496, a Matilde de Abreu, 12 mar. 1940. 576 Foram múltiplas as menções de Madre Maria José acerca das práticas devocionais conventuais. Ver, por exemplo, Carta 645, à Madre Maria do Divino Coração, 1945: “Vou fazer uma novena em Comunidade pela saúde de V.R.”; Carta 1398, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, jul. a out. 1958: “[...] rezei o ofício de N. Sra. e 4 dezenas e fiquei cansadíssima; hoje estou melhor, mas ainda com asma”; Carta 797, a Isa de Abreu, 8 mai. 1947: “Diga muitas vezes: “Sagrado Coração de Jesus, tenho confiança em Vós – Mãe minha, Esperança minha!”; Carta 1278, à Irmã Maria de Lourdes, 29 abr. 1956: “Comecei hoje os 7 Domingos de N. Pai S. José por V.C.”; Carta 1595, à Irmã Marina, s.d.: “Comecei os 15 sábados.”; Carta 400, a Isa de Abreu, 5 out. 1935: “Sim, minha filha, nessas horas de repouso não fique à-toa: reze o Rosário e a Coroa das Dores [...]”;Carta 406, a Isa de Abreu, 23 fev. 1936: “Veja se faz a Via-Sacra [...]”; Carta 214,a Matilde de Abreu, 12 fev. 1929: “Tem rezado a Coroinha das Dores? [...]”. 577 Carta 707, à Madre Maria do Divino Coração, 28 dez. 1945. 578 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 285; 288-289. 579 Carta 1106, à Madre do Carmelo de Santos, 30 jul. 1953. 580 Como exemplo, Carta 1298, a Belinha, 1956: “Uma bênção bem carinhosa com o Escapulário de Nossa Senhora”. 581 Carta 86, ao arcebispo coadjutor D. Leme, 7 abr. 1923. Grifos de Madre Maria José.

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liderança sagrada da Igreja, fosse perante uma ordem liberal que lhe disputava espaços e

poderes, fosse em relação a segmentos populares marginalizados.582 Mas todas essas rezas, mesmo tão padronizadas, não deixavam de exprimir, ao serem promovidas, as nuances de uma vontade pessoal (a exemplo do que ocorria com a recitação do Ofício Divino): Já que V.C., minha querida irmã, gosta tanto da Via Sacra, se quiser vamos fazer um exercício durante a Quaresma. Cada dia iremos considerando sucessivamente as 14 estações, de modo a percorrê-las todas durante o dia. Diante de cada uma faremos alguns atos ou Comunhão espiritual etc., unindo sempre Jesus e Maria. Tudo isto em espírito, mesmo durante o trabalho. Se quer, vamos fazer juntas para nos afervorarmos muito na devoção à Paixão de N.S.583

A terceira característica, que historicizava a prática orante de Madre Maria José,

vinculava-se à substituição do culto aos santos (associado pela Neocristandade à

religiosidade popular e, portanto, à superstição e à ignorância) pela piedade

sacramental:584 “Li hoje uma palavra muito bonita do Sto. Pe. Pio X, que cito mais ou

menos de memória, ou antes, dou o pensamento: É preciso sobretudo propagar o

conhecimento da Eucaristia pela pregação, e o amor à Eucaristia pela freqüência da

Comunhão, porque a Eucaristia é toda a Religião. Sim, Jesus na Eucaristia é tudo, aqui

e lá – Omnia et in omnubus Xtus.”585 Assim, em sua correspondência, a Madre não

apenas mencionou, como até mesmo sugeriu a modificação de antigas referências

sacrais: Temos uma imagem do Sr. de Iguape, representando o Ecce Homo, da

altura de cerca de 20 cm, que antigamente tinha sempre uma lamparina acesa, e Ir. Rosa dizia que o Convento havia recebido uma casa para o dito fim, segundo tinha ouvido dizer. Com as obras e com as pesquisas feitas sobre os legados, como não se encontrou documento algum a esse respeito, antes num livro antigo do Convento está simplesmente escrito que se recebeu uma imagem do Senhor de Iguape, sem menção da casa nem da obrigação de alumiá-la, deixamos de acender a lamparina.

V. Excia. não acha mais seguro pedir a comutação da lamparina (que é bastante incômoda porque o vento a apaga, o azeite suja o chão etc) numa boa esmola dada de uma só vez? Assim ficaríamos inteiramente sossegadas.586

A resposta do arcebispo à carta da Madre foi elucidativa: “Mande dizer uma

Missa em favor do B. Jesus”.587 O foco da religiosidade, desta forma, centrava-se na

eucaristia, celebrada toda manhã, em missa conventual (que era cantada aos domingos e

dias festivos), sendo seguida por 15 minutos de ação de graças.588 Em seus priorados,

582 AZZI, Riolando. Teologia no Brasil. Considerações Históricas. Op. Cit. p. 34. Ver também BEOZZO, José Oscar. A Igreja frente aos Estados liberais. In: DUSSEL, Henrique (org.). História Liberationis: 500 anos da história da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 214. 583 Carta 186, à Sóror Josefina, 8 fev. 1928. 584 GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 790; 793-794. 585 Carta 1455, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 26 out. 1958. 586 Carta 134, a D. Sebastião Leme, out. 1925. Grifos de Madre Maria José. 587 Ibid. 588 Carta 801, ao Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, 1 jun. 1947.

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Madre Maria José, atendendo às Constituições da Ordem e com aprovação diocesana,

endossou a comunhão diária,589 juntamente com a ampliação do costume das “visitas” e

adorações ao Santíssimo Sacramento.590 Além disso, em suas missivas, a Madre não

deixava de recomendar aos leigos com quem se correspondia o cumprimento da

comunhão pascal591 e a atenção a ser dada à comunhão infantil, reforçada pelo rito da

primeira eucaristia.592 Tamanha ênfase não era fortuita – a eucaristia constituir-se-ia em

excelente referendum do ideal contemplativo, ao concretizar a união humano-divina:

“Lembre-se que a Comunhão é mais obra de Jesus do que nossa. Ele vem dar-se a Si

mesmo e trazer-nos todas as graças. Vem tornar-nos semelhantes a Ele. Transformar-

nos n’Ele. V.C. vai a Ele, para ser amada, melhorada, divinizada. Tenha confiança.” 593

Por fim, o quarto recorte histórico da prática orante de Madre Maria José foi sua

intensa devoção mariana. Revestida pela emotividade que caracterizava o catolicismo

no período,594 tal piedade detinha como função ideológica o reforço do lugar político-

cultural ocupado pela Igreja em um sistema republicano recentemente proclamado,595

bem como a ratificação da moralidade sob uma perspectiva de gênero,596 efeito a ser

obtido através de celebrações litúrgicas (como coroações, ladainhas...) e, sobretudo, pela

fundação de instituições leigas sob tutela clerical, como a Congregação Mariana e a Pia

589 Carta 1353, a Maroquinha de Souza Leão, 13 out. 1957: “Tenha coragem, tenha confiança. Ah! Se você comungasse todos os dias, como se sentiria forte!” 590 Como exemplo, ver Carta 208, à Irmã Marina, provavelmente 1928: “Lembro-lhe, minha filha, a visita ao SS. Sacramento [...]”. 591 Como exemplo, Carta 803, a Adriano de Abreu, 24 jun. 2947: “Estamos nos últimos dias para cumprir o preceito da Comunhão pascal. É só até domingo. Vá, meu irmão querido, vá fazer seu dever de filho de Deus, de N. Senhora e da Igreja; e verá como sua vida se transfigura. Prometo-lhe que será mais feliz do que nunca foi em sua vida”. 592 Carta 398, a Jônia de Abreu, 15 ago. 1935: “Sua tia também fez a Primeira Comunhão, e foi o que a salvou, no meio de tantos pecados e ingratidões em que viveu tantos anos. A lembrança daquele dia em que recebemos o Céu inteiro na nossa alma, foi uma luz radiosa que nunca se apagou e me faz chorar até hoje .” 593 Como exemplo, Carta 1491, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 594 CORBAIN, Alain. Op. Cit. p. 478. Para a sociedade brasileira, ver BEOZZO, José Oscar. Op. Cit. p. 216. 595 Em 1903, Pio X anuiu ao pedido dos bispos das Províncias Meridionais do Brasil para coroação da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, cuja celebração foi promovida em 1904, sendo o santuário, no estado de S. Paulo, elevado à categoria de basílica; em 1930, Nossa Senhora Aparecida foi proclamada padroeira do Brasil. BOFF, Clodovis. Maria na Cultura Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1995; CALIMAN, Cleto. (org.). Teologia e Devoção Mariana no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1989; CAMARGO, Paulo Florêncio da Silveira. História Eclesiástica do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1955. p. 376-377. 596 NUNES, Maria José R. Freiras no Brasil. Op. Cit. p. 495; GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 846.

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Associação das Filhas de Maria,597 da qual a Madre participara antes de sua entrada no

Carmelo.598

Mas, ao imbricar a devoção mariana com o ideal contemplativo, Madre Maria

José também a dotou de um sentido específico, de cunho antropológico-existencial: a

Virgem-Mãe era por ela apresentada como a “onipotência suplicante”,599 aquela que,

desprovida de qualquer poder em sua humanidade (em sua vontade), uniu-se a Deus (à

verdade/potência divinas) em uma atitude oblativa (portanto, passional), permitindo,

assim, que a divindade se fizesse existir (como humano). E era deste estado fusional (e

não dos atributos de Maria ou do próprio Deus, isoladamente) que adviria a supressão

das carências daqueles que, como a Virgem, e junto com ela, se dispusessem à relação

dialógica com a divindade na oração600: Estamos no mês de Maria. Recorra a essa boa Mãe, e eu lhe asseguro que

não terá mais que abrir a boca: Nossa Senhora fará tudo. Foi Ela que me converteu, me salvou e me fez Religiosa e mais ninguém. No Colégio, eu ouvia falar de Nossa Senhora, mas não lhe tinha devoção; antes pensava em minha cega soberba que Ela por si mesma nada podia e tinha que pedir tudo a Deus, melhor era pedir logo a Deus diretamente. Depois que meu Avô morreu, vendo-me eu em tantas vaidades e pecados e sem conseguir mudar de vida por mais esforços que fizesse, lembrei-me: “Quem sabe se eu recorrendo a Nossa Senhora alcançarei forças? Dizem que Ela tudo alcança.” Lancei-me aos pés de Maria, mais para experimentar do que com verdadeira devoção, e essa Mãe incomparável logo fez tudo que eu queria e quando me levantei já era outra criatura. Foi Ela que me trouxe para seu Carmelo e ela que me levará para o Céu, como espero.601

“Fundidas em Maria” 602 era, portanto, uma expressão recorrente no epistolário

da Madre, desdobramento da convicção por ela portada de que “N. Senhora está dentro

de nossa alma, mora em nós. Isto tem me dado tanta consolação, que V.C. nem

imagina. Tudo faço com Ela presente em mim juntamente com o seu Filho. Perguntei

àquele Padre Jesuíta se isto está certo, se é teológico; respondeu que sim. Perguntei

597 Ver capítulo 1, p. 34. 598 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 59-60. Cf. também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 93-99. Cf. capítulo 1, p. 34. 599 Carta 555, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 3 ago. 1942. 600 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA, Julia. Op. Cit. 97-98: “A comunhão com o inominável feitiço maternal, o crepúsculo da pré-linguagem prolongam-se nos exercícios místicos ortodoxos como a ‘oração do coração’ ou o hésy-chaste - esse recolhimento na oração que permite restaurar a união com a divindade, transfigurar o homem e a natureza. Maria é ‘elo’, ‘meio’, ‘intervalo’ – e não uma ‘outra’ – é o principal agente desse acordo entre o de dentro e o de fora, dessa restauração narcísica [que irá] [...] balizar a evolução do sujeito falante.”. 601 Carta 43, a Capistrano de Abreu, 3 jun. 1919. 602 Como exemplo, ver Carta 925, à Irmã Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, s.d.; Carta 1309, à Irmã Maria da Eucaristia, 5 nov. 1956: “O que muito lhe recomendo é o amor a Nossa Senhora, a união habitual com Ela, a fusão entre sua alma e a Dela”; Carta 1544, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.: “Hoje só pensei na Hóstia santa; até da Mãezinha pouco me lembrei, mas como estamos fundidas em Maria, Ela sempre está conosco, e nós com Ela. [...].”

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como se explica. Disse: ‘É porque o amor identifica com a pessoa amada’.

Experimente, minha filha, terá consolação”.603

Praticante assídua de todas essas modalidades de oração, Madre Maria José não

apenas as rezava, como também as redigia, em textos que circulavam entre as monjas do

Convento de Santa Teresa e eram remetidos a outras religiosas: “Envio-lhe a novena”. 604 Algumas dessas produções foram especialmente compostas a pedido das irmãs -

“Vou fazer o que V.C. me pede sobre a Via Sacra, mas creio que não será coisa que

preste” 605 - e parte delas veio a ser publicada.606 Contudo, se por tal ato de escrita a

Madre conferia visibilidade à simbólica passional referente ao ideal contemplativo, ela

também, através dele, a subvertia, pois suas obras sobreviveriam à transitoridade do

gesto orante e à vivência afetiva que o produzira.607

3.3- “Cruel como o abismo é a paixão” (Ct 8,6)

A simbólica passional também foi traduzida, na correspondência de Madre

Maria José, pelos atos de mortificação: “Li um dia destes que embora a oração seja

uma coisa tão boa, melhor do que ela é o sofrimento. Entretanto, a oração às vezes se

custa a achar e o sofrimento está tão à mão, é tão familiar e caseiro... É só aceitá-

lo”.608 Para a Madre, que considerava o sofrimento uma realidade intrínseca à condição

de ser pessoa,609 a mortificação configurava-se, portanto, como uma reinstauração

simbólica da falta constituidora do humano – experiência que, no vocabulário católico,

era nominada como “provação”. Assim, a atitude por ela recomendada (ao invés de sua

603 Carta 1504, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 604 Carta 135, à Sóror Josefina, 9 nov. 1925. 605 Carta 180, à Sóror Josefina, 25 nov. 1927. A composição desses textos era por vezes bastante desgastante para Madre Maria José, cf. Carta 186, à Sóror Josefina, 8 fev. 1928: “As orações que V.C. me pediu para a Via Sacra ainda não pude fazer, mas não estou esquecida do seu desejo; logo que me for possível escreverei e mandarei à V.C.”. As desculpas da Madre foram sucessivamente renovadas, cf. Carta 212, à Sóror Josefina, 12 fev. 1929: “Estou envergonhada porque ainda não lhe mandei a Via-Sacra. Está escrita há um ano, só falta passar a limpo; vou ver se o faço agora. Perdoe, sim?” e Carta 225, à Sóror Josefina, 29 nov. 1929; “Sua Via-Sacra tenho até vergonha de falar. Vou ver se lh’a mando.” 606 Para listagem das publicações de Madre Maria José, ver Anexo 1. 607 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Op. Cit. p. 218: “Ao cosmos religioso – criatura significando o criador -, o texto parece já se substituir [...] A palavra se encontra numa posição bem diferente. Ela não ‘guarda’. [...] Mais fundamentalmente, ela é ‘fábula’ (de fari, falar)”. Cf. também BARUZZI, Jean. Op. Cit. p. 174. 608 Carta 161, à Sóror Ana, 17 set. 1926. 609 Cf. capítulo 1, p. 25.

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inútil refutação ou de sua projeção agressiva sobre terceiros, que apenas o desdobraria

indefinidamente) era a de sua aceitação dignificante.610

Ao mesmo tempo, as práticas mortificantes eram concebidas pela Madre em um

sentido inverso (mas não contraditório), sendo tidas como uma “purificação” ou um

“sacrifício”: elas impediam que a experiência da falta descambasse em um absurdo

desmedido, em uma “perdição”, mediante a promoção de uma violência ritual (física,

psicológica...), que circunscrevia o sofrimento em gesto e linguagem.611 O sacrifício

atuaria como o traçado de um estado-limite,612 uma fronteira simbólica à multiplicidade

das lacunas e, portanto, dos desejos humanos, sempre insaciáveis: “A Senhora, que

desfrutou todos os bens desde o berço, que seria se não tivesse conhecido a cruz?

Certamente não teria a envergadura moral que tem hoje. Sofrer custa, mas enrijece,

fortalece, desapega [...]”.613

Entrecruzando este duplo significado das condutas ascéticas, Madre Maria José

concebia então a mortificação como um movimento de superação/“transgressão” de

si614: “Filhinha, o sacrifício deve entusiasmar-nos, eletrizar-nos, como dizem que faz na

guerra o cheiro da pólvora aos corcéis de raça. Também nós somos de raça, da raça

dos Crucificados...”.615 Somente desta forma a pessoa, renunciando a fugazes prazeres,

teria condições de voltar-se para o que (ou quem) efetivamente a plenificaria: “Oh! Que

tristeza ver uma Carmelita, que deve ser um anjo da terra, só preocupada com comida,

com roupa, com costura, com sua caçamba, sua bacia, sua cela, e o que é pior, com

610 KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. 2a. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 161-162: “Freud insiste no que poderíamos chamar de grau zero da vida psíquica [...] Dostoievski parece muito próximo dessa visão. Ele encara o sofrimento como um afeto precoce e primário [...] ao qual não se poderia atribuir um agente separado do sujeito e, em conseqüência, suscetível de atrair para o exterior energias, inscrições psíquicas, representações ou atos. Como que sob o impacto de um superego, ele também precoce [...] as pulsões dos heróis dostoievskianos voltam-se para o seu espaço próprio”. 611 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA, Julia. O Feminino e o Sagrado. Op. Cit. p. 23: “[...] esse sacrifício é o que inscreve a linguagem no corpo, o sentido na vida. E isso por meio de um interdito que não tem necessidade de matar para deter, mas se contenta em traçar uma moral. Bendita moral essa, carregada de revoltas e paixões”. Ver também: Id. La Révolution de la Langage Poétique. Paris: Seuil, 1974.p. 72: “c’est le sacrifice: acte violent qui met fin à la violence (sémiotique, présymbolique) préalable, et qui, en la déposant dans une victime, la déplace dans l’ordre symbolique au moment même où cet ordre se fonde.” 612 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA, Julia. Op. Cit. p. 46-48: “Longe de mim a idéia de insinuar que as mulheres se comprazem em seu ‘estatuto’ de sujeitos passivos quando não o de dolorosas mártires das religiões. [...] Então, quando leio suas recomendações de humildade [de Teresa d’Ávila] [...] não penso que se trate de uma simples resignação à obediência cristã ou às artimanhas ancestrais do feminino. Tampouco penso que ela mostre uma tendência à passividade irracional. [...] Tenho a convicção de que [...] ela se mantém numa reserva que lhe confere leveza e energia. Conquistadora sutil, ela o é porque experimenta e expõe seus limites”. Grifos da autora. 613 Carta 557, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 28 set. 1942. 614 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Op. Cit. p. 247: “Transgredir significa atravessar.” 615 Carta 386, à Irmã Marina, 6 mar. 1935.

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pontinhos de honra, com aversões, com ressentimentos e outras coisas semelhantes,

baixíssimas e vergonhosas. Não, minhas filhas, nosso Jesus não nos chamou para isso;

nosso fim é muito mais alto e sublime.” 616

A recriação deliberada desse vazio na interioridade humana (tão de acordo com

as premissas do ideal contemplativo) foi viabilizada pela ambigüidade de sentidos

portada pelo imaginário católico, que deslocara para o próprio Deus a condição de

carência e desejo, em um parcial despojamento de sua dimensão onipotente: “Jesus tem

sede de seu amor. Pede-lhe: ‘Dá-me de beber’.”617 Tal formulação, retomada na

modernidade como uma releitura do discurso místico medieval, tornou-se bastante

difundida com a publicação dos manuscritos de santa Teresinha.618 E era a dúplice

fragilidade, humana e divina, que sustentava uma versão específica da simbólica

passional, uma comunhão na dor: “Ah, Minha irmãzinha, que pena tenho de V.C., mas

também que estima, que inveja! V.C., sim, que é a verdadeira esposa, que partilha a

sorte do Esposo... Em seus sofrimentos, tenha-se pela mais amada e privilegiada do

Coração de Jesus. Mas V.C. sabe, minha Irmã, nosso Esposo é coroado de espinhos e

gotejante de sangue: aquelas esposas que Ele mais ama e acaricia, ficam todas feridas

e ensangüentadas”.619

Havia, porém, uma terceira concepção de mortificação nos escritos de Madre

Maria José, pautada numa lógica reparadora. Por esta perspectiva, as práticas ascéticas

figuravam como uma compensação simbólica à falta cometida pela própria pessoa620 ou

por outros indivíduos,621 assumindo uma conotação “penitencial” ou “redentora”: “As

Carmelitas exercem o apostolado não só pela oração, mas também com o trabalho e o

sofrimento, de modo que V. Revcias. estão exercitando sua sublime missão, salvando

almas, sacrificando-se pela Igreja”.622

616 Carta 42, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 2 abr. 1919. 617 Carta 347, à Irmã Marina, 5 out. 1933. 618 MAÎTRE, Jacques. L ‘Orphéline de la Bérésina. Thérèse de Lisieux (1873-1897). Paris: Du Cerf, 1996. p. 136. 619 Carta 66, à Sóror Ana, 10 mar. 1921. 620 Carta 131, a Capistrano de Abreu, 19 set. 1925: “Quanto a mim, não passei bem o mês de agosto e metade do de setembro, mas tomei umas injeções e agora estou quase boa. Sempre a asma. Ah! Quem me dera que por meio dela eu ganhasse um pouquinho para o Céu e expiasse de algum modo os meus grandíssimos pecados!”. 621 Existem inúmeros exemplos no epistolário de Madre Maria José desta perspectiva como, por exemplo, Carta 155, à Irmã Maria Vicentina, 18 jul. 1926: “Vieste [ao Carmelo] para arrancar ao Coração de teu Jesus as graças, os perdões, as misericórdias; para alentar os sacerdotes e conduzi-los à perfeição; para salvar os pecadores; para abrir o Céu aos agonizantes; para tirar da pena as Santas Almas do Purgatório; para ser uma humilde colunazinha da Santa Igreja”. 622 Carta 245, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 29 nov. 1933.

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O viés expiatório, porém, alterava parcialmente os postulados do ideal

contemplativo, ao dissociar a remissão do erro ao processo de subjetivação: a

culpabilidade, coletivamente purgada, não perpassava pela concepção de pessoa oriunda

do pensamento agostiniano, encontrando-se mais próxima a uma personificação coletiva

(como a contida nas noções de “povo de Deus”, ou “corpo de Cristo”), a qual, pautada

na doutrina da “comunhão dos santos”, remetia a uma hermenêutica da representação.623

Apesar disso, em função da legitimidade desfrutada pela teologia reparadora na

Neocristandade, a mortificação, assim entendida, foi acoplada por Madre Maria José à

simbólica passional, o que tornou seu epistolário uma produção híbrida.

A despeito de tal faceta sofredora, a mortificação, por propiciar a relação com a

divindade, também suscitaria, surpreendentemente, uma gratificação pessoal e, mais que

isso, um “gozo” pelo negativo624: “É a Cruz, concordo, mas a Cruz para quem ama

como V.R. é mais que o gozo e a glória da terra, porque é o meio de testemunhar o

amor e de crescer no amor”.625 Tal experiência, entretanto, era apontada por Madre

Maria José como bastante difícil de ser compreendida, até mesmo por aqueles que a

vivenciavam: “A missão da Carmelita é sofrer; os que estão no mundo podem gozar

licitamente, no santo temor de Deus. Entretanto, não sei como é que vivem sempre

trocadas as bolas: os seculares sofrem e os Religiosos gozam. Tenho remorsos de me

sentir tão feliz. Custo a conformar-me com a vontade de Deus neste ponto.” 626

Esboça-se aí uma lógica peculiar, que difere (sem refutar) da maioria das

reflexões acadêmicas acerca das mortificações conventuais femininas, as quais

destacam o cunho normatizador das práticas ascéticas, voltadas para a reprodução da

623 Dicionário de Teologia. São Paulo: Loyola, 1971. Verbete “Representação/Substituição”. p. 55- 66. “Na história das religiões, a idéia de representação aparece preferentemente na forma mágica de substituição [...] A idéia de representação [...] corresponde em geral ao modo como o Antigo Testamento entende a comunidade: [...] de fato, o indivíduo não responde individualisticamente por si, e nem é também simplesmente subjugado e arrastado pela coletividade (na salvação e também na perdição), mas recebe a sua sorte por uma recíproca troca vital entre o seu agir e o da comunidade. [...] Todas estas idéias atingem no Novo Testamento a sua verdadeira realização na figura de Jesus Cristo [...] a teologia neotestamentária é antes de tudo e sobretudo uma teologia da representação”. 624 KRISTEVA, Julia. Sol Negro. Op. Cit. p. 163: “O sofrimento aqui parece um ‘excesso’, um poder, uma volúpia”. 625 Carta 730, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 7 fev. 1946. 626 Carta 557, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 28 set. 1942.

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ordem vigente na Igreja e na sociedade. 627 Michel de Certeau, inclusive, traçou um

vínculo entre as técnicas ascéticas e as práticas contemporâneas de tortura: ambas

aceitam a instauração de um domínio tido como “absoluto” e reenviam para o sujeito a

identidade da abjeção. Dessa forma, o penitente, bem como o torturado, fornecem à

instituição a confissão necessária ao seu funcionamento e, ao mesmo tempo, podem ser

exorcizados como figuras adversárias.628 Ora, o epistolário de Madre Maria José não

ficou imune a tais sentidos, estabelecendo, por várias vezes, elos explícitos entre a

mortificação e o exercício de poder: Peço-lhe primeiramente: pelo amor de Deus não deixe que a Regra seja

letra morta. Dê as penitências da Ordem. Se V.R. [Vossa Reverência] visse como aqui anda tudo direitinho! Ir. Francisca parece uma seda com as Prioras. Com Me. Josefa todas foram uns anjos. Mas sabem que se não fizerem assim ganham penitências. O nosso Capítulo, não é só por cumprimento, é muito rigoroso.

V.R. pelo amor de Deus não deixe as Irmãs novas insubordinadas. Dê as maiores penitências da Regra e vá avisando: Esta é a primeira penitência canônica. Depois darei a segunda e depois tratarei da demissão. Se não fizer assim, tudo está perdido.

Bem entendido que o melhor é ver se consegue a emenda com amor, boas palavras, conselhos, repreensões no Capítulo, penitências menores etc.629

As interpretações das ciências humanas ressaltam ainda as táticas de captação de

autoridade vinculadas aos atos mortificantes: no catolicismo, eles foram

majoritariamente promovidos por mulheres, as quais, marginalizadas do sacerdócio e

das esferas de decisão da Igreja, procuravam em um empenho ascético a obtenção de

respeito, admiração e até mesmo um status de santidade.630 Tal aspecto, entretanto, não

é muito destacado na correspondência de Madre Maria José, e mesmo suas biografias,

embora o mencionem, não o priorizam, provavelmente pelo respaldo já obtido pela

Madre em seus sucessivos priorados, em conjunto ao reconhecimento de sua produção

letrada.

Vários atos de mortificação comentados por Madre Maria José em seu

epistolário, eram exercidos sobre o corpo que, contraposto à alma, era tido como um

lugar de tentações e pecados.631 O objetivo de tal ascetismo era sujeitar a carne através

da privação dos sentidos: era preciso não ver (até mesmo o que era lícito ou belo), não 627 NUNES, Maria José F. Rosa. Freiras no Brasil. Op. Cit.; Id. Vida Religiosa nos Meios Populares. Op. Cit. p. 51-54. A autora baseia-se na teoria formulada por Erwin Goffman acerca das instituições totais, cf. Manicômios, Prisões e Conventos. 6a. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. Sobre as práticas de mortificação especificamente religiosas abordadas pelo autor, ver p. 47-48. 628 CERTEAU, Michel de. L’institution de la pourriture: Luder. Histoire et Psychanalyse: entre science et fiction. 2a. ed. Paris: Gallimard, 2002. p. 227-230. 629 Carta 493, à Madre Cecília Maria do Espírito Santo, do Carmelo de Fortaleza, 20 fev. 1940. 630 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 304. 631 Cf. também RUBIO, Alfonso García. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 2a. ed. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 271-272.

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escutar, não sentir o odor, o tato, o paladar ou, ao fazê-lo, vivenciar seu desprazer632:

“Tendo contado à Me. Mestra [Madre Maria José] como lá no mundo gostava de ler,

chupando balas, deu-me raminhos de losna, erva amarga, para por de quando em

quando um pedacinho na boca para reparar os gostos experimentados com as

balas”.633

Dentre as práticas mortificantes relativas ao físico mencionadas pela Madre em

suas missivas, destacavam-se os jejuns – “Eu de saúde vou indo regularmente. Sinto-me

forte agora e estou jejuando” 634 -, prescritos pela Igreja e pela Ordem em função do

calendário litúrgico ou em reparação a alguma falta cometida.: Jejuem desde o dia da Festa da Exaltação da Santa Cruz do mês de

setembro até o dia da Páscoa da Ressurreição do Senhor, excetuados os domingos, o dia de Natal e o Tríduo seguinte, a Circuncisão, a Epifania e as festas de N. Madre Sta. Teresa de Jesus e de N.P.S. João da Cruz. Jamais comam carne senão por necessidade e nos casos permitidos pela Regra. Nos dias de jejum da Igreja e em todas as sextas-feiras do ano, exceto as que ficam compreendidas entre Páscoa e Pentecostes, proibimos no refeitório o uso de ovos e laticínios; possa todavia a Priora dispensar deste ponto as enfermas e aquelas às quais por outras necessidades for nocivo o comer peixe; em tal caso, aquelas a quem foram permitidos os ovos e laticínios, comam fora do refeitório ou separada das outras. 635

Tais supressões alimentares, todavia, além de constantes, não abarcavam

somente as determinações canônicas,636 estendendo-se às abstinências promovidas em

particular, que poderiam incluir até mesmo a não ingestão de água: “Não costumo

tomar nada, geralmente nem água, entre o almoço e o jantar”. 637 Mas, a despeito do

desconforto oriundo de tal rigor ascético, esta conduta, por vezes, trazia benefícios

aparentemente inusitados: “Tenho passado muito bem, melhorei com o jejum [...]”.638

632 ARNOLD, Odile. Op. Cit. p. 135; 140-143. 633 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina. Irmã. Op. Cit. p. 160. 634 Carta 23, a Capistrano de Abreu, 12 jan. 1918. Cf. também SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 164: “Sua fidelidade aos jejuns da Igreja e da Ordem conservou-se sempre a mesma até o fim dos seus dias. Convalescente das gripes, que a deixavam muito prostrada, tentava jejuar. Recomendava sempre não só a respeito do jejum, como da observância regular: ‘A dificuldade não é impossibilidade. N. Sta. Madre Teresa quer que nos experimentemos; aquilo que não pude fazer ontem, talvez possa hoje’.” 635 Regra e Constituições .... [1929] Art. 66 e 67. p. 73-74; para o jejum como penitência por falta cometida, Art. 201. Esta normatização ampliou o rigor penitencial, pois as Constituições Portuguesas, anteriormente vigentes, permitiam que “[...] as Preladas [dis]pusessem como bem lhes parecer, que nos ditos jejuns se comam ovos e laticínios. Nos mais jejuns da Igreja e nas sextas-feiras se guardará acerca disso o costume dos Bispados, onde estiverem fundados os Conventos; e se poderão comer os ditos ovos e laticínios no refeitório comum”. Regra e Constituições... [1916]. Capítulo VIII, Art. 3 e Adição ao Capítulo VIII. 636 Carta 1564, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.: “A respeito da carne nas 4as. e sábados, já está determinado que não haverá; estou dando à Ir. Ma. da Gl. [Glória] só durante o retiro”. 637 Carta 1369, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 638 Carta 682, à Madre Inês do Sagrado Coração de Maria, a partir de set. 1945. O jejum mencionado por Madre Maria José é o prescrito pela Ordem para o período entre 14 de setembro e o domingo da Ressurreição, cf. nota 165.

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Inúmeras mortificações promovidas sobre o corpo perduravam desde o período

colonial, como o uso de roupas quentes ou ásperas,639 de enxergas de palha640... Essas

práticas eram acrescidas ao ascetismo com que eram realizadas várias devoções

religiosas: “Rezar [a via-sacra] com os braços abertos era muito de sua devoção, assim

como inteiramente prostrada, posição difícil para ela por causa da asma. ‘Muitas vezes

as genuflexões e as prostrações afervoram quando o espírito está tíbio e distraído’;

assim experimentara, no princípio de sua vida espiritual”.641 Outras tantas condutas, de

cunho explicitamente penitencial, acarretando dor física, também eram encetadas:

“Minha querida filha, como V.C. gosta muito de fazer as coisas para esta sua pobre

Mãezinha, venho pedir-lhe um presentinho que aliás V.C. está me devendo. Não se

lembra que fez para mim um cilício de braço que afinal eu tive de dar, e V.C. me

prometeu outro para mim? Faça-o, minha filha, estou muito tíbia, precisando de

penitência. V.C. me ajude, sim? E não demore muito.” 642 Madre Maria José, contudo,

pouco aludia a essas práticas e, por isso, relatos um pouco mais pormenorizados

precisam ser procurados nas biografias. Assim, segundo a mais completa dessas obras, a

Madre [...] possuía também cilício largo de crina para a cintura. No forte do verão trazia-o horas a fio...

Uma irmã escondeu-o não agüentando vê-la tão mortificada. Confessou-lhe a culpa sem contrição nem propósito de restituí-lo pois sendo enfermeira tinha sobrada razão de impedir que se mortificasse com prejuízo de sua saúde. Riu-se, respondendo com o estribilho de Nossa Sta. Madre Teresa: ‘Que se me dá, de mim, Senhor, senão de Vós? V.C. responderá diante de Deus pela omissão desta penitência. 643

Mas o silêncio da Madre pouco se coadunava com a freqüência com que as

carmelitas descalças se imputavam, comunitariamente, a aplicação de disciplinas644

(pequenos açoites) – “Agora estou precisando muito de disciplinas para as postulantes

639 Carta 609, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 24 jun. 1944: “Desejo muito túnicas de lã; já que as nossas [irmãs] em outros climas semelhantes agüentam, é preciso fazer penitência. Que pensa V.R.? Seja sempre inteiramente franca.” 640 Cf. capítulo 2. p. 58. 641 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 164. 642 Carta 1601, à Irmã Jacinta de S. José, s.d. 643 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 163. 644 Regra e Constituições.... [1929] Art. 104 e 105.. p. 87-88:“Em todas as sextas-feiras do ano, as Religiosas tomarão disciplina em Comunidade, pela dilatação da fé católica e prosperidade da Santa Igreja Romana, pela paz e concórdia entre os Príncipes Cristãos, assim como também pelos benfeitores e pelas almas do Purgatório, pelos aflitos e pelos cativos e por todos que estão em pecado mortal, rezando o salmo Miserere e outras orações pelas sobreditas pessoas e intenções e pela Santa Igreja de Deus. Tomar-se-á a dita disciplina no Coro depois da Matinas, e nenhuma Religiosa poderá tomá-la outras vezes ou fazer outras penitências sem licença da Prelada e do Confessor” Ver também ARNOLD, Odile. Op. Cit. p. 144.

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[do Carmelo de Teresópolis], que nenhuma têm [...]” 645-, as quais poderiam ser

acrescidas como penitência no capítulo das culpas: “com as espáduas descobertas,

receba a pena devida à sua culpa, que será uma disciplina que durará quanto parecer à

Prelada”,646 “[...] dada pela Presidente ou pela Irmã a quem ela mandar”.647 Tal rigor

penitencial foi ainda mais acirrado durante os priorados de Madre Maria José: Meu venerado Pai, na Escritura e na vida dos Santos da Nossa Ordem,

vemos como muitas vezes Nosso Senhor desvia ou faz cessar um grande flagelo por causa de um voto; por isso, sendo tão angustioso o momento atual, desejamos, se a V. Emcia. Revma. parecer bem, fazer voto de tomar perpetuamente disciplina em Comunidade nas segundas e quartas-feiras, nas condições especificadas no rascunho que junto remeto a V. Emcia. Revma. O Capítulo Vogal está de acordo, mas só tirarei os votos no caso de ter aprovação de V. Emcia. Revma.

Por Regra já temos a disciplina nas sextas-feiras. Ficaremos com 3 por semana, o que não é muito para uma Comunidade de Carmelitas que por estado são vítimas pelo mundo.

Rogo-lhe, meu bom Pai, que nos permita fazer este voto que, tenho esperança, embora tão insignificante, oferecido pelas mãos de N. Mãe do Céu e unido ao sacrifício de Jesus, terá seu peso na balança da Divina Justiça. 648

O cardeal do Rio de Janeiro, embora reticente, concordou: “Da minha parte,

aprovo. Acharia que basta um dia. Enfim, aceito o que o Capítulo aprovar”. E a prática

foi efetivamente promovida: “Respondo às suas perguntas: tomamos culpas ao menos 2

vezes por semana”.649 Além disso, se penitências extraordinárias650 eram evitadas por

Madre Maria José, ela, todavia, “[...] favorecia o atrativo de outras irmãs [...], dizendo

que não se deve extinguir o espírito de penitência tão característico à Nossa Santa

Ordem”.651

Em contrapartida, Madre Maria José outorgava dispensa às mortificações

regulares, decisão que lhe competia no exercício do cargo de superiora: “A Priora

recém-eleita do Convento de Santa Teresa humildemente suplica a V. Excia. Revma. se

digne conceder-lhe licença para durante o triênio poder dispensar as Religiosas da

reza do Ofício Divino e dos jejuns e abstinências da Igreja e da Ordem”.652 A Madre,

assim, tentava evitar que fossem cometidos excessos: “Eu, por mim, acho que V.C. faz

645 Carta 654, à Madre Inês do Sagrado Coração de Maria, a partir de jun. 1945. Cf . também Carta 1441, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, 3-4 out. 1958: “[...] acho que foi ela [Sóror Josefina, que falecera] que me alcançou a graça de não querer mais Casa de Saúde [...] e começar a ir a tudo. Ontem, desde a Missa até a disciplina, inclusive, e hoje desde a oração da manhã, não faltei mais a nada”. 646 Regra e Constituições... [1929]. Art 201. 647 Ibid. Art. 183. 648 Carta 249, ao Cardeal D. Sebastião Leme, 23 out. 1930. 649 Carta 566, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 31 dez. 1942. 650 ARNOLD, Odile. Op. Cit. p. 144. 651 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 164. 652 Carta 88, ao Cardeal D. Sebastião Leme, 23 abr. 1923. Ver também Carta 451, ao Cardeal D. Sebastião Leme, 29 abr. 1938.

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um ato de virtude quando pede para comer carne. V.C. precisa mesmo alguma cousa

que lhe apeteça; é para o bem de sua alma, não de seu corpo. V.C., extenuada, com

fome, como pode ter força para se vencer?” 653

No epistolário de Madre Maria José, entretanto, embora a dor física mantivesse

seu estatuto simbólico, o enfoque mortificante recaía sobre o cumprimento das

obrigações, principalmente dos “deveres de estado”,654 detalhados por gênero, categoria

social, modo de pertencimento à Igreja: “Recomendo-lhe insistentemente a mortificação

e a fidelidade às mínimas obediências, e aos costumes, observâncias e obrigações, quer

da vida religiosa, quer do Carmelo, quer dos seus ofícios particulares. Penso que são

estes os dois lados mais vulneráveis, por onde o demônio poderia abrir uma brecha.” 655 Essa primazia do desgaste cotidiano sobre um sofrimento voluntário pode ser

atribuída à mudança histórica do imaginário católico: a partir, sobretudo, de meados do

século XIX, a teologia moral assumiu um teor menos rigorista, concomitante com a

maior penetração da Igreja em meios sociais aburguesados, que dificilmente acederiam

à radicalidade de uma vida penitente.656 Mas as dificuldades relativas à mortificação não

deixavam de ser encontradas na rotina diária, sendo uma das cartas da Madre exemplar

a este respeito: [...] logo o Mestre Divino deu uma boa lição à sua discípula rude e ignorante. [...] Então, eu vim para o Convento para gozar ou para sofrer? Para mim o mais proveitoso não é o que mais me custa e contraria? Para uma Carmelita não há outro caminho: o tálamo onde encontra a seu Esposo é somente a Cruz. E que é a Cruz? A Cruz é o Priorado para a priora; a Portaria para a porteira; o Noviciado para a mestra; a Cozinha para a cozinheira; é para todas o silêncio, a obediência, o cumprimento da Regra, as humilhações e contrariedades, a vida comum. No cumprimento de nossos deveres encontraremos a Jesus, e não no que nos agrada, ainda que seja muito santo e espiritual. Devemos, pois receber e abraçar com amor tudo o que nos faz sofrer, porque é o que mais nos leva para Deus.657

653 Carta 1548, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. Cf. também Carta 1390, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, jul/ago. 1958: “Minha filhinha, cuidado com a sua gripe, porque se V.C. vai e Me. Maria S. José fica... Não faça abstinência [...]”; Carta 97, à Sóror Ana, 3 out. 1923: “A sua falta de memória penaliza-me muito. É preciso comer muito, dormir bem, chorar pouco e não se afligir, para ficar boa”. Grifos de Madre Maria José. 654 Sobre os deveres de estado, ver: GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 845-846. Sobre a primazia das mortificações cotidianas, ver ARNOLD, Odile. Op. Cit. p. 145. 655 Carta 560, à Irmã Teresa Margarida do Coração Eucarístico, de 22 out. 1942. Cf. também .JESUS, Maria José de, madre. Vôo para Deus. Op. Cit. p. 41: “Indicava como a mortificação mais desejável a observância regular.” 656 CORBAIN, Alain Op. Cit. 506-511; BOUTRY, Philippe. Réflexions sur la confession au XIXe siècle: autor d’une lettre de Soeur Marie Zoé au Curé d’Ars (1858). In: GROUPE DE LA BUSSIÈRE. Pratiques de la Confession. Des Pères du Désert à Vatican II: quinze études d’histoire. Paris: Du Cerf, 1983. 657 Carta 26, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 20 fev. 1918.

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As diferentes modalidades de experiência ascética, poderiam, inclusive, ser

entrecruzadas em uma mesma atitude:

Filhinha do meu coração, vou fazer-te a vontade dizendo-te algumas palavras, mas guarda-as bem guardadinhas, como se foram ditas pelo teu divino Esposo, e toma-as por norma de tua vida. São bem duras, bem austeras, mas não há remédio: [...]

Lembra-te que és esposa de Jesus crucificado, e se teu Esposo na cruz não tem consolação, também tu não as queiras. Ah! Minha filhinha, não queiras ser regalada quando teu esposo é crucificado.

Não queiras consolação na comida, pois a de teu divino Esposo em sua Paixão foi vinagre e fel, e Ele te regala com seu Corpo e Sangue divino no banquete da sagrada Comunhão.

Não queiras repouso e cama branda, pois a cama do teu Esposo, que também deve ser a tua, é dura, nua, pobre e estreita, é o áspero leito da Cruz; e Jesus está com os braços abertos para que durmas sobre seu peito, e para ti conquistou com seus trabalhos o eterno descanso do céu.

Não queiras consolação nos vestidos, nem no bem-estar do corpo, pois teu Esposo está nu e coberto de chagas; e te veste de sua graça e de seus merecimentos.658

A composição desta síntese mortificatória fundamentava-se, por sua vez, numa

retomada do esteio do ideal contemplativo – o esvaziamento de si, o silenciamento da

vontade, a reverência à verdade, então traduzidos pela virtude da “humildade”:

“Procure morrer ao seu eu pela obediência exatíssima, pela humildade, pela renúncia,

pela mortificação”.659 A culminância da mortificação situava-se, portanto, na

interioridade humana: “Pior é o sofrimento moral, não é verdade?” 660 Daí a

recomendação da Madre para a vivência de um total ascetismo: “Minha irmãzinha, fico

muito contente com suas boas resoluções de não chorar mais. Isto é muito importante

para sua alma. Sabe que uma planta para medrar precisa estar desafogada, precisa ter

ar e luz. Assim também nossa alma para crescer no serviço de Deus precisa de

expansão, de paz, de alegria. Deixe-se, pois, de tristeza, que o Espírito Santo diz que a

tristeza para nada é boa e a alegria é um tesouro inexaurível de santidade”.661 O

sorriso, mais do que a lágrima ou o grito, anteciparia um estado de bem-aventurança, a

ser alcançado por uma doação incessante de si – dádiva de confiança, paixão de

santidade.

658 Carta 13, à Irmã Vicentina, depois dez. 1913. 659 Carta 184, à Irmã Marina, 29 jan. 1928, 660 Carta 71, à Sóror Ana, 11 jul. 1921. 661 Carta 100, à Sóror Ana, 17 jan. 1924. Ver também Carta 555, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 3 ago. 1942: “Seu caminho não pode ser outro, minha irmãzinha: confiar, entregar, orar e sofrer, com o sorriso nos lábios [...]”.

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3.4- “O amor é forte como a morte” (Ct 8,6)

Na simbólica passional formulada por Madre Maria José, as práticas orantes e

penitenciais não eram vivenciadas isoladamente, pois seus sentidos se esclareciam e

reforçavam de forma mútua, o que, por sua vez, dotava de maior consistência o ideal

contemplativo. E esta imbricação foi ainda mais fortalecida pela existência de uma

figuração específica da divindade no imaginário católico que, em sua relação com o

humano, revestiu a identidade Trina com a noção de “Providência” ou de “Vontade

divina”.662 Tal nomenclatura aglutinava, por sua vez, dois dispositivos centrais: a

expressão – simbólica - de uma verdade (que, como a prece, promoveria a significação e

a interlocução) e a manifestação – semiótica – de uma potência (cujos efeitos, criativos

e nutridores, pressupunham, a exemplo da mortificação, um prévio ou paralelo

esvaziamento de si). 663

Assim, uma tal remissão à Providência divina requeria, novamente em afinidade

com o ideal contemplativo, uma atitude pautada na confiança e no abandono por parte

da vontade humana, não apenas em ocasiões de sofrimento e consternação, mas também

na busca incessante do aprimoramento de si:

Creia, minha filha, na nossa vida espiritual, material, social etc., muito maior é a parte de Deus do que a nossa. Sem sentir, fazemos de nós o nosso Deus, o centro de tudo; mas não deve ser assim. Só Ele é tudo, o resto é acidental. Nada acontece sem a Vontade de Deus, ao menos permitindo. Ah! Minha, filha, se V.C. visse só a Deus em tudo o que lhe acontece ou aconteceu, como tudo ficaria luminoso! Só uma coisa é necessária: que nós sejamos d’Ele e façamos a sua Vontade e lhe demos glória. Por este ou por aquele meio, pouco importa.664

662 TURIN, Yvonne. Op. Cit. p. 263; 265: “La foi des religieuses qui nous parlent, envisage le destin de l’homme, associe à celui du prochain, et s’accomplit dans l’accord à la volonté de Dieu. [...] Le contraste entre ces deux femmes [madre do Coeur de Marie e madre Saint-Placide, à Bourg] nous paraît, paradoxalement, mettre en valeur les ressemblances. Car si le ton, le coeur sont différents le fond est le même: l’attention imperturbable à une volonté transcendante”. 663 KRISTEVA, Julia. Au Commencement Était l’Amour: psychanalyse et foi. Op. Cit. p. 62-63. “Le père tout-puissant? Ils en manquent, ils en veulent, ou ils en souffrent. L’adhésion du fils à la substance corporelle du père en même temps que l’identification symbolique avec son nom: ils y aspirent, et ce processus est, à la fois, une condition nécessaire à la maturation psychique de l’enfant et une source de jouissance par absorption du pouvoir et élévation au sommet del ‘autorité. Le christianisme est la religion qui a le mieux déplié l’impact symbolique et corporel de la fonciton paternelle sur l’être humain”. 664 Carta 1588, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. Ver também Carta 290, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 3 jun. 1932: “Minha irmãzinha, o que sofre é próprio das grandes almas. É a sede

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Só a partir dessa conformidade interior, a Vontade divina poderia ser aceita nas mais

diversas e imponderáveis situações da vida, em momentos felizes e infelizes, de

realizações e de perdas:

Minha filhinha, fico muito triste de vê-la tão desanimada. Sabe qual é a raiz, minha filha? É que sua piedade é superficial, não é bastante sólida. A prova disso é que V. deixa de rezar quando não é ouvida. Não faça assim, minha filha. Nem tudo que pedimos é bom para nós. N. Senhor é que sabe quando convém ouvir-nos ou não; ou antes, Ele nunca deixa de ouvir-nos e por isso quando não desvia de nós os males, como lhe pedimos, faz que esses mesmos males se convertam em proveito nosso, ao menos na eternidade que é a verdadeira vida, e nos dá paciência para sofrê-los.

Minha filhinha, a nossa religião não deve consistir só em ter diretor [espiritual], ir à Missa, confessar-se, comungar etc. Não: a religião [...] traduz-se pela perfeita obediência a tudo que Deus pela sua Igreja nos manda e na inteira conformidade a tudo que sua Divina Vontade ordena e permite.665

Mas, como fazer, perguntava-se a Madre, para não confundir a “Vontade” de

Deus com a vontade própria? Segundo o pensamento agostiniano, as disposições

divinas poderiam ser (re)conhecidas por um ato consciente de interiorização – tratar-se-

ia de uma “recordação” (noção distinta da “reminiscência” platônica), que reavivaria a

imagem sagrada portada pelo humano, que lhe foi conferida no ato criador, mas à qual

ele deveria aderir em liberdade de consciência.666 Assim, caso a pessoa se recusasse a

perceber-se na completude do seu ser, reduzindo-se à exterioridade do mundo sensível,

tal Vontade transcendente seria ignorada; um efetivo processo de auto-conhecimento

implicaria, concomitantemente, na descoberta da Sabedoria.667 Madre Maria José,

porém, não se ateve literalmente ao discurso de santo Agostinho, embasando-se nas de mais luz, de mais verdade, de mais perfeição, em suma, é a sede de Deus. Se a minha irmãzinha não sentisse esse tormento, não seria uma alma superior. Que há de fazer nesses momentos tão dolorosos? Minha irmã, é confiar, confiar cegamente no Amor Misericordioso; entregar-se, abandonar-se, fazer-se bem pequenina e humilde”. 665 Carta 323 a Nila Prado, 14 jan. 1933. Cf. também Carta 703, à Madre Maria Evangelista da Assunção, 23 e 24 dez. 1945: “Boas festas de Natal, na comunhão amorosa e absoluta à santa Vontade de Deus, cujos caminhos não são os nossos caminhos e por isso muitas vezes nos desconcertam e atordoam”. 666 BOEHNER, Philoteus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 164. 667 KRISTEVA, Julia. O Gênio Feminino: a vida, a loucura, as palavras. Tomo I: Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 43: “A vida feliz está sempre já no passado [no momento criador, anterior ao “pecado”], de tal forma que somente a lembrança o introduz na vida presente: o papel da rememoração é, portanto, central, pois que é ela que nos restitui o acesso à beatitude. [...] Sem abandonar a memória, a vida não é uma pura rememoração do passado, mas se dá a conhecer como aspiração à vida feliz, como desejo. [...] a vida no amor [...] em suma, ela deseja a memória”.

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interpretações acerca da Providência divina veiculadas durante a Neocristandade, que a

associavam mais diretamente aos preceitos do Magistério eclesiástico e à doutrina da

infalibilidade papal. 668 Por conseguinte, a Madre articulou o esvaziamento de si,

postulado pelo ideal contemplativo, a uma atitude de “obediência”: “Se temos um meio

tão fácil de conhecer a vontade de Deus, que é a obediência, por que nos

incomodarmos conosco?” 669

Mas a imbricação das práticas orantes e penitenciais no bojo da simbólica da

paixão foi, além disso, redimensionada em um âmbito comunitário (porque

interlocutório), a despeito das feições eremíticas com que o ideal contemplativo se viu

revestido desde os primórdios do cristianismo, e que foram ainda mais ampliadas pela

espiritualidade do Carmelo Descalço. Para expressar tal abrangência coletiva da paixão,

a Madre recorreu, preferencialmente, ao vocábulo “caridade”,670 entendido por ela como

uma empatia solidária, uma afetação pelo “próximo”, vivenciada como um “suportar

com”,671 a partir de uma anterior (mesmo que inconclusa) união com a divindade:

Todas sabem muito bem o que é a caridade e a praticam melhor do que eu; não quero pois enumerar nem explicar os atos dessa virtude; quero apenas lembrar-vos uma palavra de S. Paulo na Epístola aos Coríntios, naquele admirável trecho que deveríamos trazer sempre na memória, em que descreve as propriedades da caridade. Diz ele: ‘A caridade tudo sofre’. Oh! Isso quisera eu que nunca esquecêsseis, minhas caras filhas. A caridade tudo sofre: sofre o defeito da sua Irmã; sua má cara, seu mau gênio, suas más palavras, suas exigências, suas impertinências, seus caprichos, suas esquisitices, suas faltas de educação, seu egoísmo, seu nervoso, sua soberba, sua

668 AZZI, Riolando. A Neocristandade: um projeto restaurador. São Paulo: Paulus, 1994. p. 63-66; BEOZZO, José Oscar. Op. Cit. p. 197; GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 788-790. 669 Carta 50, à Sóror Ana, 29 nov. 1919. Cf. também Carta 184, à Irmã Marina, 29 jan. 1928: “Os Superiores são canais de Jesus; embora muitas vezes inconscientes, repetem o que esse Divino Amor quer dizer”. 670 O termo “caridade” provém do latim charitas, utilizado por S. Jerônimo para traduzir a palavra grega agape (amor), na versão por ele promovida do Novo Testamento, posteriormente conhecida como Vulgata. Enquanto dilectio era utilizado no sentido de relação afetuosa entre dois agentes específicos (amor de Deus Pai ao Filho, cf. Jo 17,26, por exemplo), charitas exprimia a potência da ação amorosa (‘Deus é amor’, cf. 1 Jo 4,16, por exemplo). DE FIORES, Stefano e GOFFI, Trillo, Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993. Verbete “caridade”. 671 Desta maneira, a concepção de “caridade” formulada por Madre Maria José mantém algumas similitudes com a concepção romântico-germânica de “simpatia”, oriunda do pietismo alemão, pela qual a constituição do humano e do saber por ele promovido advém de um sentir junto com a realidade. Cf. HERDER, J. G. Filosofia de la Historia para la Educación de la Humanidad. Buenos Aires: Editorial Nova, [1784]. p. 51.

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falta de caridade, suas conversas enfadonhas, enfim, tudo que nela desagrada, aborrece, ofende.672

Desta maneira, a caridade exprimia-se sobretudo por condutas relativas ao

acolher e ao integrar, que se revelavam, paradoxalmente, prioritárias ao ato de dar. A

insistência da Madre recaía sobre a “pureza de intenção” na busca da Vontade divina,

juntamente com a “disponibilidade do coração” em aceitá-la, num primado do “afeto”

(uma docilidade às inspirações do Espírito) sobre o “efeito” (o interesse objetivo das

realidades sociais).673 Segundo tais premissas, um gesto de doação, ainda que

sumamente generoso, portaria os limites da pessoa que o promovera, ao passo que um

ato emanado da divindade, mesmo sendo mediado pelo humano, deteria a totalidade de

sentido: “Lembre-se da palavra de S. João: ‘De sua plenitude (de Xto) [de Cristo]

todos recebemos’. A filhinha também tem de dar da sua plenitude: encher-se primeiro,

depois transbordar”. 674 Assim, embora as dádivas fossem valorizadas pela ética

caritativa, elas eram primeiramente compreendidas como uma oferta a Deus, para só

depois repercutirem no cuidado com as criaturas: “Peço a N. Senhora, Mãe da Divina

Graça, que adorne sempre mais a alma da filhinha, fazendo-a uma ‘unidade’ com Deus

e com o próximo. Digo-lhe isto por ser o que N. S. mais me faz desejar ultimamente:

quisera agarrar cada criatura, metê-la dentro do meu coração e servi-la como imagem

de meu Deus a quem tanto amo”.675 Tal postura rechaçaria, inclusive, uma “tentação”

de auto-promoção humana, pela qual a pessoa, aspirando preencher sua carência afetiva,

buscaria gratificar o outro, no intuito de ser por ele amada: “Não queiras honras nem

louvores nas criaturas. Olha teu Jesus escarnecido, entre dois malfeitores, feito

opróbrio dos homens e abjeção da plebe, e acostuma-te a amar os desprezos e

humilhações. [...]”.676

672 Carta 33, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 27 fev. 1918. 673 A passionalidade do ideal contemplativo assimila-se à relatada pelo discurso místico, cf. CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 338-339: “La question essentielle est celle du ‘sujet’ (subjectum) et nom celle de l’ ‘objet’ (objectum). Tout dépend finalement de la ‘disposition’ du premier, et non ‘de la qualité ou de la quantité’ du second”. 674 Carta 1044, à Maria de Lourdes Figueiredo, 18 jun. 1952. Ver também Carta 347, à Irmã Marina, 5 out. 1933: “Descanse no seu amor [de Deus] sem receio, mas ao [mesmo] tempo compreenda que sua vida tem de ser dar-lhe muito e muito amor. Por isso mesmo que a filhinha O conheceu tarde é que lhe é mais devedora. Ele esperou seu amor, provocou-o excitou-o e não descansa enquanto não o possui. Perseguiu a sua alma, conquistou-a à ponta de lança, por isso mesmo sua dívida é maior. Agora é preciso desagravá-lo, recuperar o tempo, dar-lhe amor mais do que nunca”; Carta 383, à Irmã Marina, 29 jan. 1935:“Minha filha, Jesus quer seu coração, sua santidade, seu amor. Quer sua cooperação para fazer maravilhas”. 675 Carta 515, à Irmã Maria Vicentina, 23 jan. 1941. 676 Carta 13, à Irmã Vicentina, depois dez. 1913.

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Por sua vez, o postulado da caridade, da forma como foi empregado na

correspondência de Madre Maria José, contribuía para a preservação do modelo de

ordem social vigente na modernidade ocidental, sendo facilmente combinado às

assertivas da Doutrina Social da Igreja, a qual, embora embasada numa perspectiva

teológica distinta (o neotomismo), também interpretava a realidade em uma remissão à

Vontade divina. Assim, o desfrute de uma situação de bem-estar sócio-econômico era

tido como benesse de Deus, a ser partilhado entre os menos afortunados - “Que meus

irmãozinhos vivam felizes, bem unidos, repartindo com os necessitados a demasia que

receberam de Deus” 677–; ao mesmo tempo, a ação caritativa era também apresentada

como uma modalidade de serviço à divindade: “Aqui estão trabalhando muito pelos

pobres. Acho que aí também, pois é ordem do Santo Padre para todo mundo. Peço-lhes,

meus irmãozinhos, que sejam generosos, pois quem dá aos pobres empresta a Deus”.678

Em ambos os casos, a relação pobreza/riqueza era revestida por um aparato moral,

mantendo-se intacto o pressuposto de um “direito natural” à propriedade.679

Tais menções de cunho coletivizante à Vontade divina e à caridade, feitas por

Madre Maria José, distanciavam a simbologia da paixão do postulado ético da

reciprocidade, embasamento filosófico-antropológico de uma devoção reparadora, bem

como contradiziam a lógica de uma teologia do mérito pautada na dicotomia

prêmio/castigo: “Alegro-me também de saber que você continua a trabalhar por Jesus

e por Maria. O amor é seu próprio estímulo e sua própria recompensa, por isso, minha

irmãzinha, sua animação é amar muito, amar sempre mais [...]”.680 Essas duas

proposições, imperantes na Neocristandade, refutavam a afetação do sujeito apregoada

pelo ideal contemplativo, implicando em um “fazer por”.681

677 Carta 230, a Matilde de Abreu, 11 jan. 1930. 678 Carta 281, a Matilde de Abreu, 31 dez. 1931. 679 SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários: a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Faperj, 2002. p. 62-63. 680 Carta 190, a Hermínia, 16 abr. 1928. 681 As discordâncias entre uma espiritualidade pautada no princípio da gratuidade e aquela centrada na reciprocidade delineiam-se ao longo da história do cristianismo, cf. KRISTEVA, Julia. Au Commencement Était l’Amour: psychanalyse et foi. Op. Cit. p. 50-51.

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Assim, para além dos preceitos jurídicos,682 os embates eram travados no âmbito

das representações: a “caridade” concebida pela Madre diferia bastante das concepções

associadas aos vocábulos “compaixão” ou “misericórdia”,683 de cunho reparador, que

gozavam de grande circulação no imaginário da Neocristandade. Observa-se, assim, que

o termo “compaixão” não foi praticamente utilizado por Madre Maria José em sua

correspondência, e quando apareceu, assumiu o sentido distinto de “piedade” (um

lamento, não identificatório, pelo sofrimento alheio): “Fico com muita pena por saber

os trabalhos que as queridas netinhas estão passando. Nós aqui, bem sabe, minha filha,

estamos também com grandes apertos. Mas viva Deus! O Padre santo que pregou o

nosso retiro diz que merecemos – não compaixão – mas parabéns, quando estamos

crucificadas.” 684 Já o vocábulo “misericórdia”, geralmente empregado nas missivas da

Madre para mencionar ou suplicar o auxílio divino, necessário perante às debilidades

humanas, destacava uma não-identidade jamais culminante na união reiterada pelo ideal

contemplativo: “Hoje também canto com V.C. as misericórdias do Senhor, que com

tanta predileção a arrancou às vaidades do mundo e a escondeu atrás das grades e dos

espetos como um Esposo cheio de zelos”. 685

Esta especificidade da simbólica passional foi expressa por Madre Maria José,

em uma de suas cartas, através da linguagem poética: sua vontade de amar a Deus, seu

desejo de unir-se a Ele, não estavam dissociados de sua suposta incapacidade para fazê-

lo; a dor que sentia, porém, não lhe provocava um desespero, e sim uma postura

oblativa, na qual inexistia qualquer referência à salvação que faria jus pela recepção da

graça (sacramental), pela fidelidade ao estado (religioso), ou pela ação (virtuosa) 686:

“Envio-vos estes pobres versos para que também sirvais de testemunhas do que digo. É

um sentimento muito íntimo e sincero [...]

Protesto de amor 682 Como os mencionados no primeiro capítulo, em relação à Constituição Sponsa Christi. 683 O termo “compaixão” é oriundo do vocábulo grego eleos, empregado na versão bíblica dos LXX como tradução do hebraico hered, para indicar a relação de reciprocidade, o auxílio motivado pela fidelidade. No Novo Testamento, a palavra também é usada para indicar “misericórdia”, no sentido de um ato ético suscitado pelo reconhecimento da condição humana comum, motivadora de uma aliança dos indivíduos entre si, e de Deus para com os homens. STEFANO, De Fiores e GOFFI, Trillo. Op. Cit. Verbete “caridade”. 684 Carta 1383, à Irmã Maria do Carmo,13 jun. 1958. 685 Carta 409, à Irmã Marina, 6 mar. 1936. 686 Verifica-se novamente uma similitude com o discurso místico, cf. CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 355-356: “Il faut quitter ‘les consolations” pour chercher Dieu ‘purement’, sans profit, dans la privation des ‘regalos’ don’t parlait Thérèse d’Avila […] La expérience de cette ‘privation’ va s’intensifier jusqu’à á prendre la figure d’une damnation possible, exclusion défininite de la ‘maison du père’. [...] Ces orants demeurent donc sur place, vigiles d’un Silence”.

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Se algum dia, ó meu Deus, me lançardes no Inferno

Para longe de Vós, no calabouço eterno,

Obrigada, afinal, pela vossa Justiça

A punir esta infiel pecadora remissa [...]

Ouvi, ó Céus, ó terra, e até vós, condenados,

Se eu por fim me perder por meus graves pecados,

Com amor desde já tomo e adoro a sentença,

De Deus louvo a Justiça, e a Santidade imensa. [...]

E agora, meu Senhor, meu consolo e sossego,

Ao Vosso santo amor, confiada nesse pacto,

Fazei meu Deus, de mim aquilo que quiserdes,

Que eu sempre bendirei tudo que dispuserdes,

Honra ou desonra, vida extensa ou vida breve,

Saúde ou enfermidade e cruz pesada ou leve,

Tudo aceito, ó Deus meu, contanto que vos ame

E em vosso santo amor cada vez mais me inflame

Esse amor me consuma e abrase em fogo eterno Cá na terra, no Céu, e até mesmo no Inferno.687

Esta poesia foi considerada “herética” por um integrante do clero, que a mandou

destruir 688; ela foi preservada apenas porque uma das irmãs havia guardado uma cópia,

encontrada somente após a morte da Madre.689 O sacerdote, aparentemente amedrontado

com as similitudes existentes entre o texto poético e a vertente religiosa do quietismo,690

687 Carta 29, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 23 fev. 1918. Cf. também Carta 1528, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.: “A coisa que me dá mais impressão da graça de Deus é o dito de Sto. Agostinho: ‘Mais feliz é quem está no inferno do que se nunca houvesse nascido; porque no inferno dá glória a Deus, e se não tivesse nascido, não daria’. Pois bem, minha filha, V.C. está dando glória com o seu sofrimento, sua perseverança, à custa de mil lutas.” 688 Em depoimento prestado após a morte de Madre Maria José, Monsenhor Maximiano Leite, capelão do Convento de Santa Teresa, afirmou: “Saibam VV.CC. que os versos de Madre Maria José estariam hoje queimados, se não fora meu conselho oportuno para que ela não levasse a efeito o que lhe aconselhara o Eminentíssimo Cardeal Arcoverde: ‘Queimá-los!’. Disse eu à Madre que todotrabalho intelectual e espiritual do religioso não caía sob o voto de obediência; só não poderiam ser impressos; guardasse-os”. Cf. Cartas escritas por Cardeais, Bispos, Sacerdotes, Religiosas e Leigos sobre Madre Maria José de Jesus, In: CCSDMII. V. 14. p. 133. 689 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina do, irmã. Op. cit. p. 110-112. 690 O quietismo defendia um incondicional abandono a Deus, inclusive com o desaparecimento da noção de salvação. Foi refutado pela Igreja em 1687, quando Inocêncio XI condenou a obra Guide Spirituelle, de Miguel de Molinos, além de vários outros autores serem colocados no Index, cf. LE BRUN, Jacques. Le grand siècle de la spiritualité française et ses lendemains. In: Histoire Spirituelle de la France. Paris:

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não reparou na crucial diferença entre ambos: para Madre Maria José, a paixão era

indissociável da obediência e, portanto, da dimensão institucional da Igreja.

Mas tal remissão a um dos preceitos da Neocristandade indica o hibridismo

promovido pela Madre entre a simbólica passional e o modelo reparador, possível, aliás,

pela existência de um modelo recorrente entre ambos - a intenção amorosa exacerbada

até a diluição dos limites da pessoa, com a entrega de si sendo apregoada de forma

incondicional691: “Se há nesse mundo criatura feita para amar é V.C., minha filhinha.

Mas sua mãezinha lhe diz, - porque lhe quer bem e tem um zelo santo pela santidade e

perfeição da sua alma, - V.C. ainda não ama bastante; pode amar muito mais, muito

mais. É porque ainda não deu tudo, ainda anda dividida...”.692

Mas esta confluência de sentidos resultou em um grande dilema vivido por

Madre Maria José no decorrer de sua vida, e ainda mais acirrado nos meses que

antecederam seu falecimento: trazendo sempre à memória sua falibilidade humana (que,

por vezes, a afastava da “Vontade divina”) e a visualizando em sua empatia aos

pecadores (numa efetivação da “caridade”), a Madre não se teria confundido, a ponto de

considerar-se irremediavelmente afastada da santificação tão almejada? Tal estado não

eclodiria numa crise quando a Madre considerou seriamente ameaçado o ideal

contemplativo ao qual dedicara a maior parte de sua vida, mostrando-se seus esforços,

inseridos em uma conexão de forças que abrangia todo o orbe católico, insuficientes

para preservá-lo? E não seria esta crise, justamente, o ápice da contextualização do ideal

contemplativo, em sua aspiração de doação absoluta, até o fim? 693

Beauchesne, 1964. p. 279. Ver também AZEVEDO, Carlos Moreira de (dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001. p. 87. 691 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA, Julia. Op. Cit. p. 38; 51: “E se o sagrado, em lugar de ser a necessidade religiosa de proteção e de onipotência que as instituições recuperam, fosse o gozo dessa clivagem – dessa potência/impotência -, desse desfalecimento delicado. [...] o sagrado era o espaço no qual a mulher podia dar livre curso a essa abjeção ou a esse prazer, ao seu nada e à sua glória”. 692 Carta 237, à Irmã Marina, 23 mar. 1930. Grifos de Madre Maria José. 693 KOLAKOWSKI, Leszek. Op. Cit. p. 379.“La mystique s’efforce par conséquent de réaliser cette alliance durable par quoi sont liés Éros et Thanatos et pour quoi le Cantique des Cantiques cherche également une forme d’expression: quia fortis est ut mors dilectio... Que l’amour s’accomplisse dans la morte, c’est ce que sait également saint Jean de la Croix, le savoir auquel aboutit l ‘expérience mystique”.

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Foste tu, caro Pai, que do seio do Eterno Me arrancaste e trouxeste a este mundo, a esta vida...

Quando eu desabrochei – qual flor recém-nascida – O sol que me aqueceu foi teu amor tão terno.

Teu sangue é o sangue meu... Teu trabalho paterno Ganhou-me o pão com que eu cresci e fui nutrida. Ah! Quanto te custei!... Quanta dor! Quanta lida!

Desde teu quente estio até teu frio inverno!

E, agora, dá-me a mão... É noite. Vem comigo! Vem, que eu te levarei a Jesus, teu Amigo,

Que te espera saudoso... Oh! Dize-me que sim!

Foste meu pai, e eu tua mãe serei agora... Dar-te-ei a Eterna Luz de que me deste a aurora,

Dar-te-ei – por esta vida – a Vida que é sem fim...

A meu pai, Madre Maria José de Jesus, 1926.694

694 JESUS, Maria José de, madre. Deus Presente. 2a. ed. São Paulo: Paulus, 1996. p. 97-98.

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CAPÍTULO 4

INTERLOCUÇÕES PROFANAS

4.1- “O Senhor ama os que buscam a Sabedoria” (Eclo 4,12) 695

Na quietude de sua cela, parcamente iluminada à luz de uma única vela, em

horas já avançadas, Madre Maria José escrevia: era somente após Completas (a última

das preces coletivas), quando as monjas haviam adormecido, que a Madre se

empenhava em pôr em ordem sua correspondência, até ser vencida pelo cansaço:

“Termino aqui porque o sono está me queimando os olhos”.696 Apenas uma premência

muito grande de tempo a constrangia a redigir suas cartas em outros espaços

conventuais, em simultaneidade a seus múltiplos afazeres.697 Assim, esta escrita noturna

foi uma cena repetida de forma incessante ao longo de quase cinco décadas,698 e seus

efeitos não tardaram699:

Não repare, meu Pai, quando levo muito tempo sem lhe escrever, pois não imagina como sou sobrecarregada de obrigações importantes. De vez em quando tiro tempo do sono, mas sempre que o faço fico doente. Ainda há duas ou três semanas, fui fazer isso e tive que ficar mais de uma semana na cela com uma forte

695 As citações bíblicas deste capítulo foram retiradas do livro do Eclesiástico, texto que não figura no cânon judaico, embora integre as Escrituras de língua grega. Seu título é oriundo do termo latino ecclesiasticus, num destaque à sua leitura pelas primeiras comunidades cristãs, em contraposição às sinagogas. A primeira denominação do texto, porém, foi a de “Sabedoria de Jesus, filho de Sirac” (Eclo 51,30), escriba que viveu em torno de 190-180 a.C., época em que a Palestina encontrava-se sob domínio dos selêucidas, com tentativa de imposição de costumes helênicos e risco de perda da identidade judaica. Pode-se traçar um paralelismo entre a atitude proposta pelo texto e aquela endossada por Madre Maria José, ambos considerando que uma possível libertação/santificação decorreria da fidelidade às regras da Aliança - numa articulação da tradição (sapiencial) com a lei (mosaica). cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1989. 696 Carta 16, a Adriano de Abreu, 16 out. 1915. Ver também Carta 84, a Adriano de Abreu, 1923: “Escrevo-te à noite, depois das 10 horas, e amanhã às 5 já devo estar no Coro, por isso não me estendo muito.” Foram contabilizadas 12 cartas em que a Madre menciona explicitamente sua escrita noturna. 697 Carta 1065, à Irmã Marina, out. 1952: “Minha filhinha, estou escrevendo no refeitório, para seguir com as [cartas] de Ir. M.[Maria] da Tr.[Trindade]” 698 Uma outra possibilidade, embora bem menos usual, era a escrita da correspondência no início da tarde, quando as monjas encontravam-se em período de silêncio, cf. Carta 655, à Madre Maria do Divino Coração, 4 jul. 1945: “Não quero que me julguem ingrata, meu coração está aí. De 1 às 2 não descanso, rezo o terço e depois vou escrever, geralmente para a minha Madre e Irmãs.” 699 Cf. noção operatória “contextualização”, capítulo 1, p. 9.

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constipação e bronquite com bastante febre. Uma noite passei toda em claro com asma e febre de 39o e mais. Agora estou boa, mas resolvida a ser mais cautelosa, pois assim em vez de lucrar tempo, perco mais.700

Mas a composição desse epistolário, a despeito de tão desgastante, propiciava

especial gratificação a Madre Maria José, pois ele constituía-se como uma efetivação

lingüística – uma “maneira de fazer” 701 - do ideal contemplativo. Daí, portanto, o

empenho da Madre em realizá-lo; daí, também, a configuração específica deste ato de

escrita: verifica-se que uma mesma lógica perpassava o ideal almejado pela Madre e seu

relato epistolar.

A partir dessa convergência é possível discernir três procedimentos discursivos

utilizados pela Madre para dotar seu texto de significado. O primeiro desses dispositivos

refere-se a um esvaziamento identitário, já preconizado pelo ideal contemplativo. A

maior parte da correspondência de Madre Maria José foi marcada pela ausência de

iniciativa pessoal702: seu epistolário emergiu como uma resposta - um elemento segundo

– de um diálogo iniciado por outros,703 que perceberam em suas vidas uma carência, a

seguir traduzida em uma pergunta, em um pedido704 ou mesmo em um lamento;705 neste

sentido, numa perspectiva quase hagiográfica, uma de suas biografias assim a descreve:

“Ela viveu, não para si mesma, mas para Deus, para a Igreja, para o Carmelo, para

todos!... [...] Suas traduções, assim como sua criação poética e escritos espirituais, 700 Carta 40, a Capistrano de Abreu, 25 fev. 1919. 701 Cf. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 2a. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 37-38: “[...] a questão tratada [...] visa uma lógica operatória [...] Este trabalho tem portanto por objetivo explicitar as combinatórias de operações que compõem também (sem ser exclusivamente) uma ‘cultura’ e exumar os modelos de ação característicos dos usuários [...]”. 702 A decisão de escrita das missivas referentes à Constituição Sponsa Christi (cf. capítulo 1) apresenta-se, assim, como uma prática não recorrente no conjunto do epistolário de Madre Maria José. 703 Ver Anexo 2, tópico VIII, com quantitativo das cartas que, acusadas por Madre Maria José como recebidas, solicitavam resposta. 704 Carta 1226, à Madre Teresa de Jesus, do Carmelo de Fortaleza, 14 mai. 1955: “Recebi as duas cartas de V. R. [...] Vou procurar responder a tudo”; Carta 1279, provavelmente à Madre Teresa de Jesus, do Carmelo de Fortaleza, 23 mai. 1956: “Respondo ao que V.R. me perguntou [...]”; Carta 1303, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 22 set. 1956: “Vou responder ponto por ponto a tudo que V.R. me perguntou”. 705 Carta 1345, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, 24 ago. 1957: “Desde que recebi a carta de V.R. comunicando o estado da Sra. sua mãe, que muito nos penalizou [...]”; Carta 992, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 6 jul. 1951: “Tenho recebido seus recados e cartas, não me descuidando de rezar pelo que me recomenda, pois seus interesses me são tão caros como os meus próprios”.

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eram muito elogiados [...] No entanto, só escrevia quando solicitada por alguém.

[...]”.706 E muitas vezes, a falta evocada pelas missivas não estava apenas vinculada a

dificuldades cotidianas ou a percalços institucionais, também exprimindo anseios por

uma reciprocidade afetiva707: “Deus lhe pague as duas cartas que me fizeram sentir

mais junto de mim a filhinha [...] Filhinha, estou bem unida a V.C., quase fisicamente;

sinto uma espécie de abalo no coração quando penso em V.R. ou leio carta sua etc.” 708

Também no esboçar de suas respostas, Madre Maria José buscava despojar-se

das marcas de sua individualidade, que poderiam sobrepujar o teor dos assuntos

tratados;709 por causa disso, em inúmeras ocasiões, ela não se reconhecia como o

elemento mais apropriado para atender às demandas que lhe eram apresentadas710: “A

carta de V.R. nos comoveu profundamente. Deus lhe pague as boas palavras,

principalmente as dirigidas a mim, que nada mereço, pelo contrário, tenho feito sofrer

a V.R.”.711 Assim, ao emitir um parecer mais pessoal, a Madre o revestia de um caráter

de exceção - “Minha irmãzinha, não gosto de aconselhar porque é uma grande

responsabilidade. Receba, pois, esta carta, como a maior prova de afeição” 712 -, ou o

desqualificava enquanto produção letrada, não lhe reconhecendo sequer um formato

epistolar: “[...] em vez de carta, escrevo aqueles conselhos que lhe prometi dar por

escrito”.713

706 SCIADINI, Patrício, frei. Prefácio. In: JESUS, Maria José de, madre. Deus Presente. Op. Cit. p. 12. 707 Capítulo 3, p. 97. 708 Carta 1036, à Irmã Marina, 27 mar. 1952. 709 Cf. noção de “esvaziamento de si”, capítulo 1, p. 25. Ver também FOUCAULT, Michel de. O Que é um Autor? 4a. ed. s.l.: Vega/Passagens, 2002. p. 36-37. 710 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, Irmã. Memorial da Vida de Madre Maria José de Jesus, carmelita descalça. Rio de Janeiro: Convento de Santa Teresa, 1968. p. 215:“Quanto à sua correspondência com os Carmelos do Brasil, N. Me. Maria José, em sua profunda modéstia, jamais cogitou em dar conselhos ou orientação aos nossos Mosteiros [...] As próprias Prioras é que reconheciam sua autoridade espiritual e intelectual, e recorriam a ela pedindo conselhos e informações [...]” 711 Carta 1203, a Monsenhor Maximiano da Silva Leite, 7 jan. 1955. Grifos de Madre Maria José. 712 Carta 438, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 12 jun. 1937. 713 Carta 1599, Ir. Jacinta de S. José, s.d.

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Este apagamento de si implicava uma recusa de Madre Maria José em atribuir-se

um papel magisterial (embora ela não descartasse o viés pedagógico de sua

correspondência) e, mais ainda, em outorgar-se uma condição de “autoria” 714: segundo

ela, seu discurso, ao invés de consistir em uma criação “original” e dotada de coerência

em função de sua trajetória biográfico-existencial,715 nada mais exprimiria do que os

ensinamentos da Igreja, a tradição do Carmelo Descalço e as determinações de seus

superiores. Parte desta renúncia promovida pela Madre estava imbuída da doutrina

vigente no imaginário católico, pela qual a fala e a escrita, associadas tanto ao

pronunciamento da verdade quanto ao domínio da vontade, requeriam ou o privilégio da

cátedra episcopal,716 ou ao menos a graça de estado (ou seja, o auxílio divino para o

bom desempenho de um cargo ou tarefa).717 A Madre, porém, dispunha do aval da

instituição religiosa para proferir determinados discursos, dado constituir-se como uma

abalizada representante eclesial (primeiramente por seus votos, acrescidos depois pelas

várias eleições como priora e nomeações como mestra de noviças); assim, sua atitude

era motivada, principalmente, pela dinâmica interna do ideal contemplativo, que

retirava do indivíduo (falível) o protagonismo da atuação transformante.

Contudo, tal diluição auto-referencial não implicava ausência de assinatura pela

Madre de suas cartas e bilhetes, pois este componente da escrita epistolar, longe de ser

visto como um mero detalhe, era objeto de minuciosas prescrições pela legislação

teresiana. Esta normatização indicava uma atenção conferida pela Ordem aos dizeres no

cotidiano de um claustro, os quais, sempre que possível, eram vinculados aos agentes

que os proferiram, na tentativa de evitar maledicências e mal-entendidos (pois eventuais

choques entre duas dezenas de mulheres apartadas do contato com o mundo exterior

714 CERTEAU, Michel de. Le ‘roman psychanalytique’. Histoire et Psychanalyse. Paris: Gallimard, 2002. p. 119.Ver também Ibid. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 250-251. 715 A função autoral é aqui entendida, principalmente, com base em dois dispositivos, dentre os quatro que lhe são atribuídos por Michel Foucault: a propriedade do discurso no interior de um sistema jurídico e institucional e a consideração do autor como princípio de unidade de escrita, que reduz as diferenças e contradições textuais a condições biográficas de evolução, maturação e influência. FOUCAULT, Michel. O Que é um Autor? Op. cit. 716 Segundo uma eclesiologia da Neocristandade, enquanto a missão dos bispos referia-se ao ministério (diakonia) da fé, a dos padres voltava-se para a administração dos sacramentos (a liturgia), enquanto os leigos não tinham função específica na Igreja, enquadrando-se no dever comum a todos os seres humanos de render culto a Deus. Cf. GOMES, Francisco José Silva. Le Projet de Neo-Chretienté dans le Diocese de Rio de Janeiro de 1869 a 1915. Paris, Université de Toulouse le Mirail, UFR d’Histoire, 1991. Thèse de Doctorat. V. III. p. 842. 717 Carta 1587, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.: “A Carmelita não tem graça de estado para tratar muito com os de fora.”

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pareciam inevitáveis).718 Mas a exigência de figuração de um nome ao final de cada

missiva ainda aponta, embora de forma paradoxal, para certa relativização da identidade

particular do remetente, já que a condição religiosa e o ofício desempenhado (ou seja, a

inserção na estrutura comunitária) prevaleciam sobre a pessoalidade: “Terminam-se as

cartas com esta fórmula: Vossa (ou Sua) humilde serva em Jesus Cristo, ou Vossa (ou

Sua) humilde irmã e serva; quando se escreve a um Superior, termina-se Vossa (ou

Sua) humilde serva e filha, e assina-se, mesmo sendo Madre, Irmã N. de N., c.d,

acrescentando Priora ou Sub-Priora, se o for.” 719 Dessa maneira, Madre Maria José

pôde cumprir as determinações epistolares do Carmelo Descalço, sem com isso

minimizar seu ocultamento de si; ademais, esta formalização, esvaziando o “eu”,

viabilizava circularidades entre a redação e a assinatura do texto epistolar: algumas

cartas formuladas pela Madre foram assinadas por uma das prioras do Convento de

Santa Teresa que, provavelmente, lhe pediu ajuda por sua facilidade de escrita;720 em

outra missiva, sua assinatura consta apenas como clavária,721 apesar da Madre tê-la

redigido. Também aconteceu o inverso: uma religiosa escrever a carta e Madre Maria

José assinar como priora;722 além disso, ela acrescentou pequenos recados em bilhetes

de outras monjas, enviadas para um mesmo destinatário.723

Apenas em interlocuções muito especiais, como nas cartas que escrevia a seu

pai, visando não atingir a suscetibilidade de um homem afastado da fé, a Madre

permitia-se uma maior individualidade: ela expressava seu afeto assinando a

718 Como exemplo, Carta 1548, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. “Estive pensando que essas Irmãs que vão murmurar ou fazer comentários com V.C. fazem muito [mal] à sua alma. V.C. precisa de quem a eleve, não de quem a amesquinhe. Não há nada como a caridade fraterna”; Carta 1556, Id.: “Minha filha, essas tentações e desconfianças com o próximo são diretamente contra o amor de Deus. Destróem-no na alma. Essas Irmãs que vêm desabafar com V.C. fazem papel de inimigas, mancham a inocência de sua alma”. Embora o Convento de Santa Teresa fosse bem reputado por sua austeridade, esta não era a realidade da maioria dos claustros femininos coloniais, nos quais, “se durante o dia o burburinho que afligia os prelados era nos locutórios e janelas, à noite ele se transferia para as celas. Pouco adiantariam as proibições de entrarem umas nas celas das outras se não houvesse acomodação para todas. [...] Não é difícil imaginar o clima de mexericos, confissões e diz-que-diz, nesses encontros à luz dos candeeiros”. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: mulheres da Colônia. 2a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p. 231. 719 Ordinário ou Cerimonial das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro: Mendes Jr., 1930. Art. 9. p. 10-11. 720 Carta 82, ao Cardeal D. Sebastião Leme, 27 nov. 1922. 721 Carta 207, ao Cardeal D. Sebastião Leme, 16 dez. 1928. Clavária era a antiga designação de conselheira, atribuída a três monjas escolhidas por eleição entre as Irmãs do Coro com profissão religiosa perpétua: “A elas, igualmente, consultará a Priora nas coisas mais graves”. Regra e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro, 1929. Art. 120. p. 27. 722 Carta 233, provavelmente à Madre de um Carmelo do Rio Grande, 27 fev. 1930; Carta 327, à Madre de um Carmelo do Sul, 7 mar. 1933. 723 Carta 1460, à Irmã Inês do Coração de Maria, 30 nov. 1958.

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correspondência com seu nome de batismo – Honorina -, escolhido por Capistrano em

homenagem aos antepassados sertanejos, do “ramo dos Honórios”, desbravadores do

sertão do Ceará. Capistrano tornava-se, assim, a única exceção aberta pela Madre aos

regulamentos da Ordem.724

A renúncia à autoria individual tornava-se mais nítida quando a Madre, em seu

epistolário, abordava as negociações em curso para a publicação dos textos devocionais

que escrevera, inicialmente destinados a meditações e retiros das carmelitas descalças.

Discorrendo sobre os trâmites a serem seguidos, Madre Maria José fazia questão de

assegurar seu anonimato: “A respeito da impressão do livro [Deus Presente] [...] O

trabalho está em Santa Teresa, já datilografado, com perto de 100 páginas de papel

ofício. Pode por, em vez de nome, o que pus em outros trabalhos: ‘Por uma Carmelita

Descalça’. É como um pseudônimo”.725 Também a respeito de uma outra obra, a Madre

afirmou: “Deus lhe pague a dedicação para comigo e o último trabalhinho que lhe

confiei. Pode apresentá-lo à Editora Agir [...] A respeito das condições, faça como

julgar melhor, mas fazendo figurar o nome do Carmelo do Espírito Santo, e não o

meu.” 726

Este retraimento de si tornou-se mais patente com o tardio reconhecimento de

uma das composições mais famosas de Madre Maria José: o Ato de Desagravo, escrito a

pedido do cardeal D. Sebastião Leme, para ser enunciado na inauguração da estátua do

Cristo Redentor, no alto do Corcovado, em 1936. A autoria da oração, aliás, só foi

estabelecida de forma casual, mediante associação de diferentes episódios: inicialmente,

“Aconteceu Nossa Madre ficar gripada, e logo pedir para ir para a enfermaria. Uma

das filhas inquietou-se [...] Tranqüilizou-a Nossa Madre, explicando necessitar de mais

silêncio e recolhimento para fazer um trabalhinho. [...] como a Irmã era Porteira,

acrescentou que mais tarde fosse buscar carta para D. Leme”. Em seguida, é relatado:

“Alguém presente à solenidade da inauguração contou à Ir. Porteira a leitura do Ato;

esta logo lembrou-se do ‘trabalhinho’ e do envelope remetido a D. Leme [...]”.727 Desta

724 Foram encontradas 33 cartas de Madre Maria José para Capistrano de Abreu, que abarcam o período de abril de 1912 a julho de 1927. A esta correspondência acrescentam-se três cartas, escritas por Honorina em sua vida leiga, entre 1897 e 1898. As missivas assinadas por Madre Maria José com seu nome religioso datam de dezembro de 1923 (Carta 99) e maio de 1926 (Carta 150). A Carta 158, 31 ago. 1926, está duplamente assinada, isto é, dela constam os nomes religioso e civil de Madre Maria José; já a Carta 130, 28 jul. 1925, está incompleta e sem assinatura. BUARQUE, Virgínia. Escrita Singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: SECULT/Museu do Ceará, 2003. p. 32. 725 Carta 674, a Adriano de Abreu, 13 set. 1945. 726 Carta 744, a Adriano de Abreu, 3 abr. 1946. O intento da Madre não se realizou, pois nenhum texto seu foi publicado pela Editora Agir. 727 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 191-192.

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maneira, a Madre assumia como intento de suas práticas de escrita o “ [...] trabalhar

muito humilde e obscuramente, sem ninguém o saber, para bem das almas” 728 e “para

a glória de Deus”.729

A refutação da autoria foi acompanhada, na correspondência de Madre Maria

José, por um segundo procedimento discursivo – o deslocamento do locus produtor de

sentido do remetente para o leitor. Tal dispositivo pôde ser efetuado devido à

configuração interlocutória do epistolário que, ao ser formulado como uma “resposta”,

revelou-se bastante similar à dimensão relacional (busca do outro) do ideal

contemplativo. Essa polarização no leitor não era casual: afinal, era ele quem, ao

motivar a elaboração da correspondência, conferia credibilidade (e, portanto,

legitimidade) ao discurso: “Deus lhe pague o seu bilhete, tão leal e confiante”.730 Em

contrapartida, a redação empreendida pela Madre ajustava-se à diversidade de seus

leitores, atentando para questões referentes à idade, ao gênero, à hierarquia sócio-

religiosa, além do nível educacional dos destinatários. Entretanto, a despeito de ter

redigido milhares de cartas, a abrangência do universo relacional da Madre era

relativamente estreita, incluindo parentes próximos, monjas do Convento de Santa

Teresa, religiosas de outros Carmelos, freiras de outras Ordens e Congregações, alguns

eclesiásticos e poucos leigos. Apesar disto, foi através das solicitações de apenas uma

centena e meia de pessoas (ou da preocupação da Madre com o seu eventual silêncio),

contactadas em 48 anos de vida claustral, que os princípios do ideal contemplativo

puderam ser por ela afirmados.731 Esta restrição (quantitativa, mas também sócio-

cultural) do circuito percorrido pela correspondência pode ser associada às resistências

enfrentadas pelo ideal contemplativo para obter maior repercussão no interior da Igreja

– embora estivesse dotado de respeitabilidade por seus vínculos à tradição teresiana, ele

728 Carta 466, a D. Sebastião Leme, 9 jan. 1939. 729 Carta 676, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 29 set. 1945: “Meu único empenho, nisto como em tudo mais, é a glória de Deus.” 730 Carta 1501, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. Ver também Carta 1607, à Irmã Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, s.d.: “Minha filhinha, Deus lhe pague seu bilhetinho, tão filial”. 731 Para um quadro dos destinatários de Madre Maria José de Jesus, ver Anexo 3. Pode-se tecer certa analogia entre a correspondência de Madre Maria José e a de santa Teresinha, com base no circuito relativamente reduzido de leitores e o viés contemplativo das missivas. Duas diferenças, contudo, podem ser apontadas: o número de destinatários é bem menor em santa Teresinha, fator explicado por sua morte aos 24 anos, e a concentração das cartas da monja francesa no entorno familiar (78%), seguido de longe pela comunidade religiosa (10%), enquanto o processo inverso ocorre com Madre Maria José. THÉRÈSE DE LISIEUX. Oeuvres Complètes. Paris: Du Cerf/Desclée de Brouwer, 1992. p. 293.

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era considerado privilégio de almas elevadas, dispostas a tudo suportarem (e de tudo se

despojarem) em seu caminho de perfeição.732

Todavia, para que um correspondente se constituísse em “leitor”, era preciso que

ele efetuasse, previamente, um auto-reconhecimento de sua falta ontológica; caso

contrário, a carta deixaria de surtir um efeito de sentido: “Não tenho escrito pelo receio

de incomodá-lo. Creia, se soubesse que minhas cartas lhe faziam bem e lhe davam

gosto, escreveria até todos os dias, privando-me do sono, se fosse preciso, mas acho

que você não gosta muito do que lhe escrevo, não é? Então pelo espírito e pelo coração

estou a seu lado, pedindo muitas e muitas vezes por você, com todo o fervor de minha fé

e confiança e do grande amor que lhe tenho” .733

Mas, sem deter-se no leitor, Madre Maria José instaurava um terceiro

procedimento discursivo, que transpunha novamente o sentido, desta feita para o

próprio texto. Isso ocorria porque a Madre constituiu seu epistolário como uma

operação duplamente mediadora – se era através dele que o leitor se percebia como

pessoa, demarcando, pela grafia, o contorno de suas debilidades, era também (e

sobretudo) este mesmo discurso que lhe possibilitava um não encerramento nos limites

da condição humana, uma vez que poderia aceder a uma Alteridade/Locutor (divino)

através da palavra que lhe era dirigida: “Continue, portanto, o seu apostolado junto de

suas amigas”, incentivava Madre Maria José a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, “Jesus

falará por sua boca. [...] De Bossuet se conta que, numa visita pastoral, foi todo

escrupuloso e atrapalhado abrir-se com um jovem curazinho da aldeia e, como este se

admirasse, respondeu-lhe: ‘Meu amigo, N. Senhor me dá luzes para os outros, mas não

para mim’.” 734

O duplo trânsito (do autor ao leitor e do leitor ao texto), promovido pela

correspondência de Madre Maria José, constituiu, assim, uma prática discursiva pela

qual a autoria era substituída (ou ao menos desvalorizada) em favor da “autoridade” – 732 Cf. capítulo 1, p. 23-24. 733 Carta 1009, a Adriano de Abreu, 5 dez. 1951. 734 Carta 605, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 29 mai. 1944. Cf. também Carta 113, a Adriano de Abreu, 19 out. 1924: “Ah, meu irmão, não desprezes o convite que Jesus te faz pela minha boca”.

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concepção entendida como um enunciado (um significado) que, ao ser proferido, produz

(ou seja, torna possível) uma reordenação do real.735 Segundo uma bela metáfora de

Michel de Certeau, a autoridade atua de forma parecida à experiência estético-criadora

advinda da recepção de um filme ou de um poema - ela inaugura uma sensibilidade,

uma maneira de conceber, antes inexistente736: “A fé satisfaz tudo, esclarece tudo, dá

resposta a tudo; o amor de Deus enche todos os vazios, farta toda a capacidade do

homem.” 737

Para significar, a “autoridade” precisa de uma adesão coletiva; ela só se efetiva

quando integrada em um imaginário social e corporificada por uma instituição (ou um

agente, uma simbologia).738 Madre Maria José traçou estes vínculos em seu epistolário,

articulando a Verdade divina com o Magistério/Tradição da Igreja; porém, ao fazê-lo,

ela atribuiu-lhes contornos de total similitude, em consonância às diretrizes da

Neocristandade739:

Na Igreja a fé é só uma. Essa boa Mãe, nossa única luz nas trevas desta vida, explica, interpreta, ensina, e seus filhos compreendem a Bíblia como ela a compreende. E nisto a Igreja não é arbitrária, pois ensino o que os Santos Doutores, gênios como Sto. Agostinho, S. Jerônimo, S. Tomás de Aquino e outros durante vinte séculos, viram ser a verdade. [...] O principal é que a Igreja é infalível, guiada pelo Espírito Santo, e Jesus prometeu estar com ela até a consumação dos séculos para preservá-la do erro, e disse: ‘Quem vos ouve, a mim ouve, e quem voz despreza, a mim despreza’. Meu irmão querido, prenda-se à Igreja, seja verdadeiro filho da Igreja: é a única tábua e âncora de salvação neste mundo.740

735 Ver analogia entre a concepção de “autoridade” e a noção de “Providência divina”, cf. capítulo 3, p. 127.. 736 CERTEAU, Michel de. La Faiblesse de Croire. Paris: Seuil, 1987. p. 110-111: “L’Autorité ‘autorise’ – ce n’est pas tout à fait une lapalissade. Elle rend possible ce qui ne l’était pas. A ce titre, elle ‘permet’ autre chose, à la manière dont un poème ou un filme inaugure une perception qui n’êut pas été possible sans lui: après, on ne voit plus, on ne pense plus de même façon.” 737 Carta 351, a Adriano de Abreu, 16 out. 1933. Cf. também Carta 113, a Adriano de Abreu, 19 out. 1924: “É certo que nossa fraca inteligência não pode compreender claramente as coisas divinas como se fossem materiais e palpáveis, mas a quem procura sinceramente esclarecer-se, a Fé dá uma luz, uma evidência, uma certeza que desterra toda dúvida”. 738 CERTEAU, Michel de. Histoire et Psychanalyse. Op. Cit. p. 128: “L’autorité dont se credite le discours tend a compenser le réel dont il est exilé. S’il prétend parler au nom de ce don’t il est privé, c’est parce qu’il il en est separé. Telle qu’elle apparaît d’abord, l’autorité couvre la perte et permet de s’en servir pour exercer un pouvoir. [...] Mais en fait c’est l’institution qui remplit avec cette autorité le ‘rien’du savoir. Elle est l’articulation entre eux. La machine institutionelle effectue et garantit l’opération, quasi magique, qui substitue de l’autorité à ce rien”. 739 GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 790. Ver também: AZZI, Riolando. A Neocristandade: um projeto restaurador. São Paulo: Paulus, 1994. p. 62-66. 740 Carta 60, a Adriano de Abreu, 1 nov. 1920.

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Mas a Madre também reconhecia que um discurso religioso não se detinha

(mesmo se o desejasse) nas formalizações da ortodoxia – emitido pela pessoa humana,

ele traduzia a relação, muitas vezes dúbia, de cada vontade com a Verdade741: “Fiquei

com muita pena e bem humilhada de ter sido motivo de sofrimento para a minha

querida Irmãzinha, quando tanto desejava consolá-la e alegrá-la. Creia-me, minha

querida, que julguei dizer o contrário do que disse. Queria escrever que estava certa de

que não era por falta de amizade que V.C. não me escrevia, e vejo que pulei a palavra

não, e disse o que nunca me passou pela cabeça. [...] Como Nosso Senhor mostra que

por nós só podemos errar!” 742

Pode-se então tecer uma analogia entre os três procedimentos discursivos

configurantes da correspondência de Madre Maria José e a tríade agostiniana

embasadora do ideal contemplativo: através do viés do negativo, a “autoria/vontade”

cede lugar à “autoridade/verdade” e esta, por sua vez, é apropriada743 pelo

“sujeito/interioridade”. Mas, sem limitar-se ao campo religioso, Madre Maria José

também fundamentou tal operação de linguagem numa interlocução com três matrizes

laicas de escrita epistolar, vigentes no Brasil na primeira metade do século XX.

4.2 – “Quem se apega à Sabedoria, herdará sua glória” (Eclo 4,14)

A primeira matriz apropriada por Madre Maria José em seu epistolário ordenava-se pelo princípio de “civilidade”, estando pautada na categoria estética do “natural cultivado”, a qual, veiculada pelos tratados de retórica e, principalmente,

741 Cf. a interpretação formulada por Michel de Certeau, aproximando o discurso psicanalítico da literatura romântica: em ambos, o sofrimento de um personagem introduz a diferença no quando teórico, sendo demarcada no texto pelas faltas e pelos eventos da narração. Histoire et Psychanalyse. Op. Cit. p. 113. 742 Carta 173, à Sóror Ana, 8 jul. 1927. 743 Cf. a noção de “apropriação” delineada por Michel de Certeau acerca das releituras dos textos místicos, in: CERTEAU, Michel de. L’Absent de l’Histoire. Paris: Mame, 1973. p. 42: “La compréhension d’un mystique par un autre implique un rapport de différence et de continuité, mais finalement d’appropriation (terme par lequel Gadamer définit l’herméneutique) du premier par le second. La relation de la tradition avec les livres néotestamentaires, ou de l’expérience chrétienne avec ses ‘sources’ n’est-elle pas de ce type?”. Ver também LE BRUN, Jacques. De la critique textuelle à la lecture du texte. Le Débat, mars-avril 1988, n. 49. p. 115: “Michel de Certau [...] En un sens, la référence à Freud, c’est aussi reprendre la question de l’ ‘origine’, sur laquelle nous avons déjà insisté, mais c’est le faire de tout autre façon: il ne s’agit plus d’une donnée, mais d’une production, plus d’une source, mais d’un processus de séparation et de différenciation, expérience primitive d’un commencement, d’une ‘division constitutive du moi’.”

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pelos manuais de correspondência 744, aproximava a composição de um epistolário da “arte da conversação”.745 Desenvolvidas na ambiência dos salões aristocráticos, sob o apanágio da etiqueta e da elegância, e posteriormente incorporadas pelos segmentos burgueses enriquecidos, essas regras do “bem falar” (e escrever) constituíram-se em recursos simbólicos para a promoção de sutis distinções sociais, sendo bem conhecidas por Madre Maria José, graças à primorosa educação por ela recebida.

Assim, além de ter estudado em um dos melhores colégios femininos do Rio de Janeiro,746 a familiaridade de Honorina com os preceitos de refinamento das condutas – inclusive das práticas discursivas – foi ainda mais acrescida por sua freqüência às altas rodas da sociedade carioca, no apogeu da belle époque, graças ao apoio familiar e financeiro oferecido pela prima de sua mãe, Adelaide Castro Rabelo Souza Leão:

D. Adelaide encantou-se com o estilo meigo, simples e tímido da jovem prima [...] Somado a tudo isto, a finura e a classe que os três anos de educação européia no Colégio das Soeurs de la Charité tinham-lhe dado, faziam de Honorina [...] uma jovem a brilhar nos salões das altas rodas cariocas. [...] Honorina muito rapidamente se deixou seduzir [...] pelo estilo de vida que passou a levar junto às suas primas, Maroquinha e Zizi [filhas de Adelaide]. Com elas, desfrutava de longas temporadas na sofisticada Petrópolis, fantasia européia do ‘alto mundo’ carioca de então. Freqüentava festas, bailes, ia aos teatros e chegou a ser considerada uma das figuras mais belas que já havia pisado a rua do Ouvidor.747

Inteligente e culta748, Honorina, desde bem moça, deixava transparecer seu preparo na correspondência que então redigia, conforme afirmou um amigo de seu pai, Sancho Berenger César, no distante junho de 1894: “Quinquim749 está conosco há vinte dias, não imaginas como temos apreciado a boa companhia que ele nos tem feito; dele lemos umas cartas de Honorina, por onde podemos avaliar o progresso dela, e admirar-lhe a inteligência e o espírito”.750 O emprego correto da língua portuguesa, juntamente à clareza dos enunciados (tão prezada pela Madre751), tornaram-se, desde esta época, qualidades constitutivas de seu epistolário.

Uma vez no claustro, a Madre dispôs a matriz epistolar de civilidade em conformidade aos procedimentos discursivos do ideal contemplativo, dado que ambos pautavam-se numa mesma dinâmica interlocutória, mais tendente ao pólo da verdade/“autoridade” do que à da vontade/“autoria”. Tal combinação realçou, em um

744 DAUPHIN, Cécile. Les manuels épistolaires au XIXe siècle. Pratiques éditoriales et imaginaire sociale. In: PLANTÉ, Christine. L’Épistolaire, un Genre Féminin? Paris: Honoré Champion, 1998. 745 BURKE, Peter. A Arte da Conversação. São Paulo: Unesp, 1995. 746 Cf. capítulo 1, p. 32-33. 747 GALLIAN, Dante Marcello. Madre Maria José no Caminho da Perfeição. São Paulo: Paulus, 1997. p. 73. 748 “A querida Honorida, a filha inteligente e culta que ele [Capistrano] tanto amava, não morreu naquele ano de 1910 [sic] em que a porta da clausura se abriu diante dela e depois se fechou pesadamente”. Trecho de artigo assinado por Antônio Carlos Villaça no Jornal do Brasil, de 15 ou 17 mar. 1959. Cf. Artigos publicados sobre Madre Maria José de Jesus em Jornais, Revistas e Livros, In: CCSDMII. V. 15. p. 16. 749 Joaquim Castro Fonseca, tio de Honorina por parte de mãe. 750 Carta de Pedro Sanches a Capistrano de Abreu, 1o jul. 1894. In: Correspondência de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: MEC/Instituto Nacional do Livro, 1954. Vol. 3. p. 155-156. 751 Carta 695, a Adriano, 18 nov. 1945: “Voltando ao soneto: emprego o verbo respeita no sentido de poupa, não nos atinge, como se diz por exemplo: o incêndio só respeitou a frente da casa. Mas vou mudar, pois tenho horror de versos que não estejam bem claros.”

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plano mais imediato, a exigência de um certo formalismo na composição de abertura e conclusão das cartas,752 bem como no tratamento dos destinatários. Neste sentido, em uma de suas missivas, a Madre desculpava-se pelo atraso motivado por um pequeno esquecimento: “Sabe por que não respondi a essa primeira? Vai ver como estou velha... Foi porque você assinou só Nila, e não houve meio de me lembrar do nome de família. Agora, felizmente, me lembrei. É Almeida Prado, não é?” 753 Outro fator recorrente entre os dois padrões textuais era a preocupação com uma redação correta, sob a perspectiva da ortografia e da gramática: “É preciso V.C. olhar tudo, por causa da pontuação e dos acentos” ;754 daí a satisfação da Madre em receber bibliografia atualizada: “Adriano, eu agradeci, no meu último bilhete, o Guia ortográfico [...]”.755 Devia-se, enfim, evitar uma escrita truncada, que desse margem a alguma incompreensão.756 O rigor explicitado em tantas minúcias pode ser interpretado como uma manifestação singular dos princípios do ideal contemplativo, pelos quais o apagamento de si era revertido em prol da “autoridade” do sagrado. Mais uma vez, o que importava à Madre Maria José era tornar sua escrita um instrumento a serviço da propagação da voz divina, e a redação, ordenada como uma “liturgia textual”, poderia favorecer tal enunciação.

Havia momentos, porém, em que a “autoria” irrompia nas missivas, contrariando

dispositivos laicos e monásticos. Note-se, entretanto, que tal operação não chegava a

reforçar a individualidade da Madre; os impulsos de sua vontade, previamente

esvaziados pelo ideal contemplativo, imiscuíam-se de forma apenas diluidora, sem

constituírem-se em novos lugares de identidade.757 Neste proceder, Madre Maria José

formulava sua correspondência como texto oral, despida dos formalismos da “arte da

conversação” – ela era perpassada por sinuosidades e rupturas, jogada de chofre sobre o

papel.758 Não havia revisão, pois a escrita era apressada – “Escrevi muito às pressas só

para lhe dizer um ‘A Deus!’” 759 - em função do desempenho de inúmeras atividades

conventuais - “Meu irmão muito querido não me demoro mais porque o tempo não me

752 Ordinário ou Cerimonial... Op. Cit. p. 10-11. “As cartas que forem mandadas pelo correio serão subscritadas conforme o costume da Ordem e o do país. No começo das cartas põem-se J.+M., ou J.M.+J.T.,e Pax Christi ou A graça do Espírito Santo esteja na alma de Vossa Reverência.” 753 Carta 323, a Nila Prado, 14 jan. 1933. 754 Carta 1591, à Irmã Marina, s.d. 755 Carta 672, a Adriano de Abreu, 8 set. 1945. 756 Carta 173, à Sóror Ana, 8 jul. 1927: “Creia-me, minha querida, que julguei dizer o contrário do que disse. Queria escrever que estava certa de que não era por falta de amizade que V.C. não me escrevia, e vejo que pulei a palavra não e disse o que nunca me passou pela cabeça. [...] Foi uma lição para eu ser mais cautelosa para o futuro.” Carta 173, à Sóror Ana, 8 jul. 1927. 757 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 50. 758 Ibid. p. 257-258. 759 Como exemplo, Carta 212, à Sóror Josefina, 12 fev. 1929: “Perdoe, minha Irmãzinha querida, escrever-lhe tão resumidamente. É a pressa.”. Foram computadas 150 cartas em que Madre Maria José mencionou explicitamente uma escrita apressada. Deste quantitativo, 2 foram associadas ao desempenho de atividade litúrgica, 9 à participação em retiros, 6 à participação em trabalhos conventuais; 16 ao cumprimento do ofício de enfermeira; 4 à proximidade das eleições para priora e da visita canônica; 4 às contínuas visitas recebidas durante seu período de internação na Casa de Saúde S. José, em 1932.

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chega para o que tenho de fazer” 760 -, ou o próprio acúmulo de missivas era um

entrave à escrita,761 ou ainda o tempo era destinado a outras práticas discursivas.762 O

deslocamento entre o oral e o escrito perdurava através das ocasiões em que as cartas

eram lidas em voz alta à comunidade religiosa – “Quanto fiquei agradecida a V.R. pela

sua boa carta, escrita com tanto sacrifício. Foi lida no recreio por mim, e muito

apreciada.” 763 -, ou também ao serem memorizadas: “Tenho só uma carta do meu

Pai, que lhe entregarei. De memória sei uma interessantíssima que me escreveu

participando o noivado de Abril” .764

Observa-se, aliás, pelas improvisações discursivas próximas à oralidade, presentes no texto epistolar, que o tempo de Madre Maria José dedicado à escrita era muito restrito, pois seu cotidiano era ocupado pelas orações comunitárias, acrescidas por variadas devoções (como retiros, adoração do Santíssimo Sacramento...), assim como pelo trabalho manual, vinculado ao voto de pobreza: “Como sua tia é muito pobre e não tem tempo para escrever porque o trabalho lhe absorve todo o tempo, assim termina com uma bênção”. 765 Esta carência de horários passíveis de serem ocupados pela prática epistolar era agravada quando a Madre assumia determinados ofícios, sobretudo os de priora e de enfermeira;766 situações esporádicas, como as eleições para superiora, por vezes concomitantes à visita canônica, mostravam-se como outros tantos entraves,767 além do aparecimento de visitantes inesperados.768 Havia ainda situações particularmente excepcionais, como a ocasião em que a Madre se encontrava na Casa de Saúde S. José, para operar o joelho, impedida de responder “[...] porque não me deixam só”, 769 ou em função da fadiga e da dor provocados pelo tratamento.770

A premência de tempo era tão grande que, por vezes, as cartas de Madre Maria

José eram escritas no verso de outras, que lhe haviam sido enviadas por terceiros, sendo

ambas repassadas ao novo destinatário,771 ou remetidas ao leitor original logo abaixo do

texto antigo: “Devolvo as cartas porque respondi nelas para poupar tempo” .772

Contribuía para isto o hábito da Madre de andar com as cartas a serem respondidas 760 Carta 17, a Adriano, 16 out. 1916. 761 Como exemplo, Carta 440, a Matilde, 12 ago, 1937: “Não posso estender-me mais, porque tenho grande número de cartas a responder.” 762 Como a tradução das Obras Completas de Santa Teresa, cf. capítulo 2. p. 69-72. 763 Carta 679, à Madre Maria de S. José, provavelmente set. 1945. Grifos de Madre Maria José. 764 Carta 596, a Adriano, 1944. 765 Carta 498, a Isa de Abreu, 30 mar. 1940. 766 Carta 85, à Sóror Ana, 4 fev. 1923: “Quisera poder fazer-lhe os maiores carinhos, minha muito cara Irmã, para merecer o perdão da falta que cometi levando quase um ano sem lhe escrever. Não imagina como passei ocupada com enfermeira e quase sempre com doentes; mesmo a meu Pai raríssimas vezes escrevi.” 767 Como exemplo, Carta 611, à Madre Josefina, 5 ago. 1944. 768 Como exemplo, Carta 1186, à Maria de Lourdes Figueiredo, 8 nov. 1954. 769 Como exemplo, Carta 301a, à Irmã Jacinta de São José, entre 23 set. e 9 out. 1932. 770 Carta 302, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 24 set. 1932. 771 Carta 247, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 29 ago. 1930. 772 Carta 1128, à Madre Maria do Carmo, out. 1953. Ver também Carta 1334, ao Mons. Maximiano, 15 jun. 1947 e Carta 1336, ao Mons. Maximiano, 28 jun. 1957.

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junto de si, na esperança de encontrar uma brecha de horário livre: “Quase sempre

tenho estado com sua carta no bolso e sempre fazendo planos de escrever. Que miséria

esta avozinha, não é? Só mesmo umas netinhas tão boas podem ter paciência

comigo”.773 Esta constante falta de tempo conferia um tamanho pequeno às cartas, que

em geral limitavam-se a uma página: “Para não demorar mais e dispondo de pouco

tempo, escrevo a V.R. só estas palavrinhas [...]”. 774 Por isso, muitas das cartas

constituíam-se em bilhetes,775 mas em determinadas situações, bem inusitadas, o oposto

também vigorava: “Vê que lhe obedeço, minha irmãzinha amada, tomando um papel

bem grande e a primeira hora depois da Missa de domingo, antes que outras ocupações

me impeçam a consolação de conversar um pouco com V.C.” 776

Além de pequenas, as cartas acabavam redigidas de forma fragmentada –

“Comecei a escrever a V.R. há mais de uma semana, creio; continuo hoje, 24,

aniversário da morte de sua mamãe. [...]” 777 -, e a interrupção poderia ser tão longa

que culminava em uma nova escrita: “Recebi a sua carta e respondi logo depois do

Natal, mas, acredita? Meti a minha carta quase terminada dentro de um livro... e não

houve meio de achá-la. Afinal resolvi escrever de novo”.778 Paralelamente, a Madre

adotava certas liberalidades discursivas, quase sempre decorrentes da pressão exercida

pelo horário: como num diálogo coloquial, muitos de seus bilhetes não eram datados779

e, em outros, era o nome do destinatário que estava faltando.780 Porém, o

descumprimento dos ditames epistolares desqualificava parcialmente a escrita, o que

levou Madre Maria José a afirmar:“V.C. escreve-me umas cartinhas tão mimosas, que

773 Como exemplo, Carta 603, à Madre Maria do Carmo, provavelmente entre 1944 e 1945. 774 Carta 291, à Sóror Josefina, 9 jun. 1932. Ver também Carta 1038, à Irmã Marina, 12 abr. 1952: “Peço a N. Senhora da ‘Concisão’ que me ajude porque tenho a dizer a V.R. tanta coisa.... e... já sabe. Parece incrível que com tanta saudade da minha filhinha, eu custe tanto a escrever.” Foram computadas 5 cartas que mencionam explicitamente seu tamanho restrito. 775 Como exemplo, Carta 1416, à Irmã Maria da Eucaristia, s.d.: “É só um bilhetinho, para lhe perguntar o que está acontecendo com V.C. [...]”. 776 Carta 77, a Sóror Ana, 15 jan. 1922. 777 Carta 784, à Irmã Maria da Eucaristia, 1947. Cf. também Carta 1005, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 18 out. 1951: “Aqui interrompi e continuo hoje, 29”; Carta 1060, a Matilde de Abreu, 16 out. 1952: “Tinha uma carta começada para você, mas como tive notícias suas pelo nosso Aprígio e já passou muito tempo, inutilizei-a” 778 Carta 811, à Irmã Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 26 jul. 1947. “Comecei a lhe escrever logo no dia seguinte ao do Natal, mas interrompi até hoje, de modo que resolvi começar esta”. 779 Foram computadas 55 cartas não datadas por Madre Maria José, o que só ocorreu por iniciativa de Irmã Marina, após a morte da Madre. A mesma religiosa indicou o equívoco de algumas datas escritas pela Madre, como na Carta 946, à Madre Joaquina, do Carmelo de Fortaleza, sendo a indicação correta 11 fev. 1950, ao invés de 11 jan. 1950. 780 Carta 780, a uma beneditina, 30 nov. 1946.

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estou com vergonha de lhe escrever um bilhetinho assim tão feio, mas V.C. perdoe,

sim?”

Mas a parcimônia com que tais desvios estilísticos ocorreram indica, por contraposição, os cuidados tomados pela Madre com a redação, numa ratificação do primado da “autoridade” sobre a “autoria”. Em apenas uma das cartas encontradas, a Madre recorreu a uma linguagem considerada popular, demonstrando grande intimidade com o leitor: “Primeiramente: discurpe o papé, é pra proveitá (e também os borrão: a véia está véia memo”. 781 E foram raros os bilhetes nos quais as palavras ficaram ilegíveis782 ou foram puladas,783 o que, inclusive, pode ter sido provocado por problemas de visão: “Não repare estar mal escrita, estou com catarata”.784 Neste sentido, é expressiva a caligrafia adotada pela Madre: cursiva, um pouco corrida, mas não difícil de ler.

Se havia certa formalidade quanto às regras de composição escrita, a rigidez era

ainda maior no tocante ao conteúdo do epistolário, pois o teor de uma carta redigida por

uma monja jamais poderia ser confundido com os enunciados circulantes nos salões.

Verifica-se, portanto, uma fissura nos critérios de “autoridade” legitimantes de um

discurso letrado, com nítida separação entre o profano e o sagrado. Nesta repartição, a

posição de Madre Maria José, revestindo suas missivas com uma temática

eminentemente religiosa, não se fez esperar, como expresso por ela no comentário feito

à Madre do Carmelo da Santíssima Trindade, sobre uma de suas noviças: “Na sua

primeira ida ao locutório falou com a mãe sobre assuntos indiferentes. Chamei-lhe

depois a atenção, dizendo-lhe que uma Carmelita deve falar sempre de coisas

espirituais e proveitosas. Ela escreveu logo à mãe, prevenindo-a de que ora em diante

não lhe desse mais notícias do mundo. E posso assegurar de que, desde então, seus

locutórios foram muito edificantes.” 785

781 Carta 1386, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, 8 jul. 1958. 782 Carta 1403, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, entre 1 jul. e 12 out. 1958; Carta 1489, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.; Carta 1544, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.; Carta 1549, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. Os bilhetes escritos durante seu período de internação na Casa de Saúde Santa Juliana, já no período de sua agonia, apresentam-se como exceção. 783 Carta 1546, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d; Carta 1549, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 784 Carta 1270, à Madre Cecília Maria do Carmelo de Fortaleza, 13 fev. 1956. 785 Carta 481, à Madre do Carmelo da Santíssima Trindade, depois 18 out. 1939.

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Os limites à redação envolviam, além disso, uma certa prudência e

discernimento no teor das cartas, também exigidos pela matriz de civilidade: “Perdoe-

me ter demorado tanto a responder-lhe. As cartas de V.C. versam sobre assuntos tão

graves, que é preciso rezar e refletir muito antes de responder...”;786 acrescente-se que,

por vezes, algumas informações precisavam ser disponibilizadas. 787

Logo, apesar de privilegiar o sagrado, a correspondência de Madre Maria José, além de não descartar assuntos de ordem “mundana” (como dinheiro, manutenção do prédio, alimento, vestuário...), geralmente associados ao desempenho do cargo de priora, também comportava referenciais laicos de sociabilidade. Um desses elementos vinculava-se ao esmero da Madre em enviar alguma mensagem aos amigos e parentes por ocasião das datas mais importantes, conforme descrito por Irmã Marina: “A memória do coração de Nossa Madre a respeito dos entes queridos que deixaram este mundo era esmeradíssima! No seu epistolário, as alusões aos aniversários de falecimento dos seus parentes, amigos, conhecidos, são freqüentes”.788 Multiplicavam-se suas cartas por ocasião dos festejos religiosos789 (como bodas de prata, primeiras comunhões..), como também em datas de contornos laicos (nascimentos, casamentos, falecimentos...)790: “[Para] Laurita Pessoa Raja Gabaglia [...] O dia 2 foi celebrado com muito carinho. O mesmo farei nos dias 9 e 13... Meu coração vibra profundamente com o seu. [2, aniversário natalício de Laurita; 9, aniversário de sua primeira comunhão; 13, falecimento de seu pai, Epitácio Pessoa.]”.791

Um outro fator a perpassar de laicidade o epistolário da Madre era a promoção

de citações extraídas de renomados autores (dentre os quais, por exemplo, São

Bernardo, o dominicano do final do medievo Henrique Suso, o jesuíta nascido no século

XVII Jean Caussade, o escritor quinhentista português Tomé de Jesus, o padre Antônio

786 Carta 811, à Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 26 jul. 1947. 787 Carta 1290, à Madre Maria do Carmo, do Carmelo de Tremembé, 3 ago. 1956: “Quando recebi a carta de V.R. pedindo que não demorasse a responder, quis responder-lhe no mesmo dia, mas como precisava indagar da taramela, não o pude fazer.” 788 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 285. 789 Carta 39, a Capistrano de Abreu, 10 jan. 1939: “Não quis deixar de escrever-lhe neste dia de tantas recordações para nós, em que pela última vez nos abraçamos e pela primeira pisei o solo santo da área do Senhor. Oito anos já se passaram, e quanta mudança em nossa vida...” . 790 Como exemplo, ver Carta 223, à Irmã Jacinta de São José, 16 nov. 1929: “Esta é a lembrança de sua mãezinha no dia de suas bodas de prata.”; Carta 396, a Honorina de Abreu, 15 ago. 1935: “Hoje, aniversário de sua primeira Comunhão, rezei por você e quis escrever-lhe estas palavras [...]”; Carta 1265, a José Paulo, 7 jan. 1956:“ só hoje posso vir dar-lhe os parabéns pelo seu belíssimo poema e pelo nascimento de sua nova filhinha Maria Pia. [...] .Carta 1262, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 26 dez. 1955: “Umas linhas só para lhes provar quanto lhes está unido o nosso Carmelo nesse grande acontecimento do matrimônio da nossa querida Teresinha [filha do casal] [...]”; Carta 1266, à Irmã Maria de Lourdes, 11 jan. 1956: “Se não me engano, é hoje o aniversário da morte de sua querida mãe, que todos os anos costumo celebrar, e por isso não quero deixar de escrever [...]”. 791 Carta 1268, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 7 fev. 1956.

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Vieira... 792), juntamente à redação de frases em diversos idiomas, práticas conferidoras

de visibilidade a uma erudição bastante apreciada nos meios elitizados. Assim, por

inúmeras vezes, Madre Maria José, que dominava seis línguas estrangeiras,793 as

empregou em seu epistolário segundo sua importância simbólica no campo cultural e

religioso: além de dizeres em latim e em francês,794 nele também constavam frases em

espanhol 795 e em alemão.796 Aliás, era recomendável que as jovens candidatas ao

Carmelo portassem ao menos os rudimentos de tais saberes, os quais, quando

inexistentes, deveriam ser ensinados: “Quando se apresentou no locutório pela

primeira vez, todas as Irmãs ficaram encantadas com a sua beleza, amabilidade e

simplicidade [...] [de Ir. Teresa, do Carmelo da Santíssima Trindade]. Trouxe muitos

diplomas. Tudo tinha aprendido, tudo sabia; mas na realidade deu-me muito trabalho

para lhe ensinar a traduzir francês e creio que também castelhano”.797 Considere-se

ainda que citações de obras literárias (não devocionais ou teológicas) também ocorriam

nas cartas da Madre, embora bem mais raramente.798

O entrecruzamento de dois critérios de “autoridade” (a civilidade laica e o ideal

contemplativo) no epistolário de Madre Maria José, se provocava certa ambigüidade,

não chegava, porém, a promover uma mútua anulação desses princípios de escrita, 792 Como exemplos, Carta 18, à Irmã Vicentina, 22 jan. 1917: “Que mais hei de dizer-te, minha filhinha? Lembra-te muitas vezes como S. Bernardo: ‘A que vieste?’”; Carta 350, à Sóror Josefina, 11 out. 1933: “Estou meditando um livro que me tem feito muito bem. É Le Livre de la Sagesse Eternelle, do B. Henrique Suso [...]”;Carta 100, à Sóror Ana, 17 jan. 1924: “Estou lendo agora um livro que me tem feito muito bem; é o Abandono à Divina Providência do Pe. de Caussade, jesuíta”; Carta 87, à Sóror Ana, 8 abr. 1923: “E os Trabalhos de Jesus de Frei Tomé de Jesus, V.C. costuma ler? Foi meu companheiro inseparável nesta Quaresma”; Carta 76, a Capistrano de Abreu, 10 jan. 1922:“Os Sermões do Padre A Vieira, sim: se me puder emprestar outros tomos ficarei contente.” 793 Em carta a seu amigo português João Lúcio de Azevedo, Capistrano solicita-lhe que envie uma tradução da Mística Cidade de Deus: “Quero mandá-la a minha filha, agora pela segunda vez priora das Carmelitas de Santa Teresa. Ela saber francês, latim e até alemão, ingles e italiano; mas algumas irmãs apenas sabem o vernáculo: gostaria muito que as confreiras saboreassem a iguaria”. Cf. Carta de Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo, 20 out. 1923. In: Correspondência de Capistrano de Abreu. Op. Cit. V. 2. p. 283. 794 Foram computadas 39 cartas com citações em latim e 10 cartas com citações/transcrições em francês. 795 Carta 927, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 12 dez. 1949. 796 Carta 61, a Adriano de Abreu, 25 nov. 1920. 797 Carta 481, ao Carmelo da Santíssima Trindade, após 18 out. 1939. 798 Carta 305, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 27 set. 1932 ; Carta 803, a Adriano de Abreu, 24 jun. 1947.

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justamente por sua vinculação a uma mesma dinâmica interlocutória (num vai-e-vem

dialogante) , que tolerava certa não-lineraridade de sentido. Tal mescla mostrou-se

positiva aos intuitos da Madre, pois o ideal contemplativo, densificado pelos postulados

de civilidade, saía fortalecido.

Em garantia a todos esses preceitos epistolares, e sobretudo ao fundamento de

“autoridade” em que se apoiavam, a correspondência de um Carmelo feminino, antes de

ser remetida a seus destinatários, ou de sua recepção pelas monjas, deveria ser lida pela

priora,799 como ordenavam as Constituições.800 Uma tal triagem, obviamente, tenderia a

inibir a prática de escrita, o que fez Madre Maria José dirigir-se a uma das irmãs, para

tranqüilizá-la:

Recebi a carta de V.R. antes das eleições, segundo o seu desejo; mas olhe, não tenha constrangimento; foi eleita Priora a nossa querida Me. Inês do Coração de Maria, a filha da Mãezinha. Não se lembra? Chamava-se Éster, e eu lhe dei o nome de Inês e a entreguei à nossa Santa desde os primeiros dias; e ela, com a sua caridade divina, a recebeu e de vez em quando lhe mandava algum recadinho. Portanto V.C. pode escrever livremente, N. Madre compreende bem o nosso culto.801

A leitura prévia pela superiora também poderia atrasar o envio das cartas:

“Perdão mil vezes. Por não querer deixar ir a carta de Ir. A. D. [Ana Dolores] sem eu

escrever, guardei-a até hoje. A culpa é toda de sua velha mãe, perdoe, filhinha tão boa

e carinhosa. Parece incrível: só depois de mais de dois meses venho agradecer-lhe”.802

A despeito desses inconvenientes, a leitura pela priora, paradoxalmente, também provia 799 Situação idêntica era verificada nos conventos e recolhimentos femininos coloniais, cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 201. O mesmo também ocorria, já no período republicano, nos internatos femininos dirigidos por Congregações religiosas, onde havia um rígido controle da correspondência das alunas. AZZI, Riolando. Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964). In: MARCÍLIO, Maria Luíza (org.). Família, mulher, sexualidade e Igreja na História do Brasil. São Paulo: Loyola, 1993. p. 115. 800 Regra Primitiva e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte do Carmelo. Rio de Janeiro: Typ. Martins de Araújo & Cia, 1916. Capítulo XV, Art. 13: “Nenhuma Religiosa, debaixo da pena de culpa grave e de privação de véu por oito dias, ou por quinze dias, se reincidir, poderá escrever ou receber cartas, bilhetes ou quaisquer escritos, sem os apresentar a Prelada, a qual, debaixo da dita pena de culpa grave, os lerá inteiramente, exceto se vir ou presumir que contém coisa de consciência.”; Art. 24: “A que der ou receber algumas cartas sem licença da Priora, e daqui resultar algum escândalo ou notável dano, ou enviar alguma coisa de valor a qualquer pessoa de fora, [...] além da pena de mais grave culpa, estará prostrada à porta do Coro, enquanto as Religiosas passarem para rezar as Horas Canônicas e dar graças depois de jantar.” Capítulo XX. Art. 7. Este artigo foi mantido integralmente na Regra Primitiva e Constituições... [1929]. Capítulo XIX. Art. 204 801 Carta 960, à Madre Antonietta, 10 mai. 1950. 802 Carta 1283, à Madre Bernadette do Divino Coração, 14 jun. 1956. Cf. também: Carta 1177, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 2 dez. 1954; Carta 1158, a Maria de Lourdes Figueiredo, 13 mar. 1954.

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a escrita epistolar de certa cumplicidade, num processo de “positivação da autoridade”,

no sentido conferido por Foucault803: “Em suma: escreva-me tudo como imagina

possível e conveniente, e eu prometo guardar segredo, não dizer que foi idéia sua.

Também se eu não gostar, está visto que não poderei fazer, mas acho que não, porque

V.C. tem cabeça boa”.804 Neste caso, a “autoridade” revestia-se de um aspecto peculiar,

pois não se limitava a ditames codificados em regulamentos; ela somava a seu valor de

verdade a dimensão afetiva da vontade, pois era conferida por uma outra pessoa,

também falível, também desejosa de exprimir, através de seus endossos, a relação

unitiva do ideal contemplativo.

4.3- “...ela toma sob sua proteção aqueles que a procuram” (Eclo 4,12)

Ao formalismo de um discurso voltado à promoção da distinção, entrecruzou-se,

na correspondência de Madre Maria José, uma segunda matriz epistolar, de cunho

“utilitário”, que visava a ampliação e o fortalecimento das relações interpessoais.

Desenvolvida no decorrer do século XIX, ela consistia em um relato familiar,

“ordinário”, baseado na rápida circulação das notícias; agrupando fragmentos dispersos

do cotidiano em um texto, oferecia uma coerência de sentido à vida.805 Sob este prisma,

o epistolário era tido como um gênero “feminino” de escrita: a esposa, a mãe, a filha

primogênita dos grupos elitizados e medianos da sociedade tinham como tarefa narrar a

existência doméstica (assim alçada a um patamar de evento) a parentes distantes; elas

tornavam-se intermediárias, um entre-dois na comunicação.806 Esta atividade criou um

estereótipo, mas também realçou competências historicamente vinculadas à mulher no

Ocidente moderno,807 tais como a atualização da memória social, pois se o epistolário

feminino, em geral, não ambicionava inserir-se no mundo literário,808 ele certamente

803 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 8. 804 Carta 1441, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, 3 ou 4 out. 1958. 805 POUBLAN, Daniele. Écriture et role social. La place des femmes dans une correspondance familiale au XIXe siècle. In. PLANTÉ, Christine. Op. cit. p. 203. PERROT, Michele. Palavras de mulheres. In: Mulheres públicas. São Paulo: Unesp, 1998. p. 74. 806 As mulheres escreviam cartas em número duas vezes maior que os homens, havendo também o dobro de remetentes femininas. Contudo, o número de destinatários era equilibrado entre homens e mulheres. POUBLAN, Danièle. Op. Cit. p. 203. 807 DIAZ, José Luiz. La féminité de la lettre dans l’imaginaire critique au XIXe siècle. In: PLANTÉ, Christine. Op. Cit. p. 154. 808 O ingresso do epistolário feminino no espaço público foi promovido principalmente através da imprensa, com a publicação de cartas em periódicos, alguns dos quais editados pelas próprias mulheres. PERROT, Michele. Op. Cit. p. 80-81; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do XX. In: COSTA, Albertina de

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exercia uma forma própria de autoridade (assegurando a coesão do grupo, o controle

dos valores...).809

No Convento de Santa Teresa, Madre Maria José empregou bastante o padrão

epistolar “utilitário”, alargando suas fronteiras para além do entorno familiar

consangüíneo, o qual, entretanto, nunca deixou de ser preservado por ela.810 Assim, na

maioria de suas cartas, destinadas a outras carmelitas descalças, a Madre empenhou-se

sobretudo no estreitamento dos vínculos entre os monastérios teresianos no Brasil: “As

cartas de Nossa Madre são minas de informações preciosas, delas extraímos muita

coisa ignorada por nós. [...] As próprias prioras é que reconheciam sua autoridade

espiritual e intelectual, e recorriam a ela pedindo conselhos e informações, certas de

receberem respostas penetradas de genuíno espírito de N. Sta. Madre Teresa e de N. P.

S. João da Cruz.” 811 E não apenas superioras, como várias monjas e até noviças, a ela

dirigiam-se pleiteando orientações acerca dos costumes da Ordem e, principalmente,

direcionamentos de vida espiritual: “Quero corresponder à sua confiança e dizer-lhe o

que penso deve fazer em sua nova vida, embora suas Madres possam aconselhá-la

muito melhor do que eu” .812 Este foi, aliás, um costume introduzido por Teresa

d’Ávila, que instituiu uma imbricada rede epistolar entre os primeiros Carmelos

femininos espanhóis, gerando assim forte sentimento de identidade à nova família

religiosa.813

Mas o crescimento dos elos comunitários suscitado pela escrita epistolar de

Madre Maria José não foi apenas quantitativo, já que o princípio motivador da matriz

utilitária foi também resignificado, ao ser interligado aos procedimentos discursivos do

ideal contemplativo. Dessa maneira, a Madre concebia sua correspondência como uma

efetivação lingüística da “caridade” cristã814: tal escrita implicaria numa doação de si

(diluição da “autoria”) em benefício do outro, viabilizada pela pertença eclesial do

Oliveira e BRUSCHINI, Cristina (org.). Rebeldia e Submissão: estudos sobre a condição feminina. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1989; BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Jornalistas brasileiras do século XIX (1840-1890). In: PEREIRA, Maria Aparecida Franco (coord.). História da Mulher na História. Santos: Leopoldianum, 1997. 809 POUBLAN, Danièle. Op. Cit. p. 212. 810 Cf., por exemplo, a Carta 1256, a Matilde de Abreu, 18 out. 1955: “[...] comunicação de cartas estaremos mais unidas do que nunca.” 811 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, Irmã. Op. Cit. p. 215. 812 Carta 561, à Irmã Benigna, do Carmelo de Fortaleza, 27 out. 1942. Como exemplo de correspondência para orientação das noviças, ver Carta 900, à Madre do Carmelo de Petrópolis, 20 mai. 1949. 813 THÉRÈSE D’ÁVILA. Oeuvres Complètes. Paris: Du Cerf, 1995. p. 1354. 814 Cf. capítulo 3, p. 127-129.

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remetente (o ser “cristão” e, mais ainda, “católico”), a ser compartilhada, se possível,

com o destinatário (estabelecimento da “autoridade”).

A reformulação do modelo utilitário sob a ótica da caridade foi acrescida pelo

fato de que, mesmo quando enviada a uma das monjas, a correspondência de Madre

Maria José poderia alcançar um círculo de leitores ampliado: “Desejo que todas ouçam

ou leiam estas palavrinhas [...]”.815 Isso ocorria, freqüentemente, pela falta de tempo

para uma escrita individualizada: “Minha querida irmãzinha, aceite a carta do Aprígio

como também sua, pois não tenho tempo para escrever duas” .816 Mas o contrário

também poderia acontecer, sendo a esfera de leitores previamente delimitada entre um

circunscrito grupo de religiosas: “Reservado só para as 3 Madres”.817 Por vezes,

apenas uma parte da carta era liberada para leitura coletiva: “Esta carta, no que se

refere à Nossa Madre, é escrita a todas” ;818 já outras missivas tinham seu acesso

completamente impedido. As restrições, em alguns casos, visavam evitar a exposição de

possíveis divergências ou críticas, sobretudo se contivessem uma apreciação pessoal

acerca da Ordem: “Como V. R. fala de um assunto tão grave, quero responder sem

demora, mas olhe que é só para V.R. a resposta, pela confiança e amizade que lhe

dedico; não repita a ninguém. Absolutamente não convém passar para a Ordem”. 819

Na maioria das vezes, porém, esses trechos eram relativos a casos de consciência, fato

registrado pela Madre em um dos cantos superiores da carta, logo na primeira página:

“Consciência – reservado ao Emmo. Sr. Cardeal.” 820

Uma outra parcela da correspondência de Madre Maria José, também inspirada

na prática da “caridade”, voltou-se para os grupos leigos da sociedade, principalmente

para mulheres de segmentos sociais médios e elevados, a quem a Madre incentivava a

observância de condutas tidas como religiosa e moralmente condizentes ao gênero

815 Carta 297, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 23 set. 1932. 816 Carta 251, a Matilde, 24 nov. 1930, situação invertida na Carta 1243, a Matilde, 17 jul. 1955, quando a Madre afirma “Não escrevo particularmente a ele [Aprígio] por falta de tempo, mas a carta é para ambos.” Outros exemplos: Carta 752, às Madres Cecília Maria e Joaquina, do Carmelo de Fortaleza, 26 mai. 1946; Carta 789, à Irmã Maria da Imaculada, do Carmelo da Santíssima Trindade, 17 fev. 1947; Carta 707, à Madre Maria do Divino Coração, do Carmelo da Santíssima Trindade, 28 dez. 1945. 817 Carta 244, à Madre Antônia, 26 jul. 1930. Ver também Carta 1065, à Irmã Marina, out. 1952: “Li a carta de Ir. Maria do Carmo, como V.C. me autorizou.” 818 Carta 843, à Madre Maria da Imaculada, do Carmelo da Santíssima Trindade, 9 abr. 1948. 819 Carta 1075, à Madre do Carmelo de Santos, 27 jul. 1952. Grifos da Madre. Ver também Carta 1104, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, do Carmelo de Teresópolis, jun. 1953: “Guarde segredo, não deixe ninguém saber até ficar tudo pronto.” 820 Carta 62, ao Cardeal D. Joaquim Arcoverde, 27 nov. 1920. Outros exemplos: Carta 310, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 3 out. 1932; Carta 1036, à Irmã Marina, 27 mar. 1952; Carta 1056, à Irmã Marina, set. 1952; Carta 1393, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, 16 jul. 1958.

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feminino.821 Afinal, questionava a Madre a sua sobrinha Honorina, “Que valem

cinemas, teatros, vestidos bonitos, vaidades? [...] Se a sua vocação for o matrimônio

tem necessidade de maior virtude ainda do que para o claustro”.822 O perfil esboçado

pela Madre, em consonância às diretrizes da ortodoxia católica, ao mesmo tempo que

sobre-valorizava a castidade,823 reproduzia o papel subalterno conferido à esposa,824

centrando sua função social na maternidade.825

Desta forma, o epistolário de Madre Maria José aproximou-se do projeto

médico-higienista de ordem social,826 indicando a mútua receptividade (não isenta de

disputas) dos discursos emitidos por bispos, juristas e doutores.827 Suas missivas

preconizavam, assim, uma mulher cuja sexualidade fosse indissociável da gestação, que

dedicada às lides domésticas e aos cuidados com o marido e com os filhos, se

mantivesse preferencialmente retida em casa: “[...] fala-me de tua Amnéris e de tuas

pequeninas. [....] Toma muito cuidado com elas, não as deixe em casa alheia, nem

geralmente com outras crianças, pois o mundo está cheio de maldades e a inocência é

um tesouro que uma vez perdido não se recupera mais”;828 somente a ausência da

figura masculina justificaria seu ingresso no espaço das ruas (o “perigoso” mundo do

trabalho, da política e da cultura secularizada): Pela sua carta vejo que alcançou o emprego que queria, e fico contente

porque, ganhando alguma coisa, poderá melhor educar seus filhos. Agora é preciso que trate bem de sua saúde para agüentar o trabalho. [...] A intenção que V. me recomenda, penso que é V. ficar de novo com seu marido, não é? Se houver esperança de bom resultado, é bom, porque o laço do matrimônio é abençoado por Deus e não deve ser quebrado. Reze, que também rezarei.829

821 Conforme o documento Casti Connubii, de Pio XI, datado de 1930, que reitera a submissão da esposa ao marido e a adequação da natureza feminina aos trabalhos domésticos. SAFIOTTI, Heleieth. A Mulher na Sociedade de Classes. 2a. ed. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 94-95. Ver também: GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 845-846; AZZI, Riolando. A Neocristandade: um projeto restaurador. Op. Cit. p. 76-79. 822 Carta 532, a Honorina de Abreu[sobrinha], 13 junho. 1941. 823 Carta 396, a Honorina de Abreu, 15 ago. 1935: “Minha filha, tenha horror a essas leviandades e liberdades que hoje se usam no mundo; não queira ser do número dessas moças levianas que tão pouco prezam o pudor”. 824 Carta 257, a Nila Prado, 5 fev. 1931: “Geralmente, todas as santas casadas santificam-se pelo sofrimento. Tudo passa, minha filha. Algum dia seus sofrimentos acabarão”. 825 Carta 274, a José, 4 set. 1931: “Agora, sobretudo, tenho rezado para que Nosso Senhor lhe dê luz acerca de um projeto de casamento. [...] Examine se a moça é digna, pela sensatez, pela virtude, pela inteligência, pelo caráter e pelo coração, de substituir sua santa mãe, de ser companheira de seus dias e mãe de seus filhos”. 826 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 255-264. 827 BUARQUE, Virgínia. Escrita Singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José de Jesus. Fortaleza: SECULT/Museu do Ceará, 2003. p. 49. 828 Carta 16, a Adriano de Abreu, 16 out. 1915. 829 Carta 382, a Nila Prado, 8 jan. 1935.

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Tais premissas eram endossadas por representações da Virgem-Mãe associadas

ao silenciamento orante e à mortificação, simbolicamente compensadas por sua

glorificação como “Rainha do céu”, cabendo às jovens e às senhoras tornarem-se as

“rainhas do lar” 830: “Que Maternidade mais dolorosa que a de Maria! É o tipo, o

modelo. Ensina que não se pode ser mãe sem dor. Mas é dor santa, minha irmãzinha,

dor abnegada, sem interesse, toda esquecida de si própria, verdadeiramente sublime.

Nosso Senhor abençoa as angústias maternas e as torna fecundas para os filhos e

também para as mesmas mães, que com suas dores se santificam”.831

A única alternativa admitida para inserção da mulher no espaço público era a

militância católica, a ser exercida em atividades paroquiais (como a catequese, as obras

assistenciais...),832 em associações devotas sob controle clerical (como a Pia Associação

das Filhas de Maria ou o Apostolado da Oração);833 ou ainda nas organizações surgidas

a partir dos anos 20, com apoio da hierarquia eclesiástica, como a Associação das

Senhoras Brasileiras, a Liga das Senhoras Católicas, a Juventude Feminina Católica, os

Círculos de Formação para Moças, culminando na criação da Ação Católica Feminina

Brasileira, em 1932. Pautadas em um modelo europeu,834 estas entidades objetivavam a

recristianização da sociedade por intermédio de reformas sociais, constituindo-se num

baluarte da luta ideológica empreendida pela Igreja contra o modernismo, o liberalismo

e sobretudo o comunismo.835 Neste sentido, em suas cartas, Madre Maria José elencava

sugestões para a difícil conciliação das tarefas domésticas com o engajamento religioso,

resguardando, assim, a imagem modelar da esposa e da mãe:

830 RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 82. 831 Carta 558, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 11 out. 1942. 832 Após sua conversão, em 1902, Honorina desempenhou várias dessas atividades, cf. SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 63; 67: “Além das atividades da Igreja da Ajuda como professora e catequista, o zelo apostólico da futura Carmelita [Madre Maria José de Jesus] estendeu-se às Paróquias do Coração de Jesus e de São José. [...] O zelo de Honorina levou-a freqüentemente a Niterói a fim de socorrer infelizes religiosas que haviam abandonado a vocação; com o correr do tempo caíram doentes, viviam miseravelmente, em estado deplorável! [...] Provavelmente saía cedo, mas as visitas às suas protegidas eram demoradas, dispensava-lhes todos os cuidados de que necessitavam, até limpava-lhes o aposento. Os seus atrasos para o almoço eram inevitáveis”. Ver também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 100-101. 833 Sobre estas instituições devotas, ver capítulo 3, p. 115; capítulo 1, p. 34. 834 CORI, Paola di. Historia, sentimientos y solidaridad en las organizaciones femeninas católicas desde la época de Giolitti hasta el fascismo. In: AMELANG, James S. e NASH, Mary. Historia y Género: las mujeres en la Europa Moderna y Contemporánea. Valencia: Alfons el Magnanim, 1990. p. 303. 835 Para uma atuação das mulheres na Ação Católica na América Latina, ver URÁN, Ana Maria Bildegain de. Sexualidade, vida religiosa e situação da mulher na América Latina. In: MARCÍLIO, Maria Luíza. A Mulher na História da Igreja Latino-Americana. São Paulo: Cehila/Paulinas, 1984; CASTRO, Manuel Manrique. História do Serviço Social na América Latina. 3a. ed. São Paulo: Cortez, 1989. p. 39-46.

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Penso que a única pessoa capaz de lhe mostrar a santa vontade de Deus é seu marido. É ele seu superior legítimo; partilha sua fé, seus ideais; é portanto digno de ser consultado e seguido. Acho que a Sra. poderia, numa conversa íntima, perguntar-lhe se está contente com seu apostolado, se não prejudica a vida do lar etc.

Penso também que a Sra. deve marcar suas horas, ou algum dia, para as obras sociais, e depois pôr uma barreira bem alta que impeça a invasão desses negócios na vida de família. Seu marido achará talvez enfadonho ouvir sempre falar de Círculos, A.C. [Ação Católica] etc. Seja esposa, mãe, dona de casa, amável, graciosa, cheia de carinhos e de atenções, sempre; e presidente, escritora, oradora etc. só em certas horas determinadas. [...] Acho que a Sra. não se deve furtar ao apostolado, pois N. Senhor lhe deu tantos meios de fazer bem. O que é preciso, é ordem.836

De forma concomitante, a correspondência da Madre também tratava de

questões econômico-sociais que estivessem diretamente vinculadas ao bom andamento

da vida do lar. Por intermédio de suas cartas, ela solicitava favores referentes à obtenção

de empregos ou à nomeação para cargos,837 à concessão de empréstimos ou de

descontos...,838 a exemplo da missiva que redigiu em prol de seu irmão, enviada à amiga

Laurita Pessoa Raja Gabaglia, filha do ex-presidente da República Epitácio Pessoa:

“Também quero fazer-lhe um pedido: é que diga uma palavrinha de amizade em favor

de meu único irmão, Adriano de Abreu, empregado no Ministério da Aviação, para que

não perca o seu emprego. A minha cara dona Laurita é tão boa, que não preciso

explicar... nem encarecer mais. Jesus fará recair em graças sobre a senhora e todos os

seus a minha gratidão”.839 Por vezes, suas requisições adiantavam-se ao trâmite

institucional, na tentativa de assegurar um resultado favorável:

[...] venho pedir a sua proteção para o Sr. Sebastião Leal, irmão da Madre Priora do Carmelo S. José, vítima inocente de um desfalque no Tesouro ou Casa da Moeda.

836 Carta 426, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 29 dez. 1936. 837 Como exemplos, Carta 136, a Adriano de Abreu, 9 nov. 1925: “Adriano, apresento-lhe D. Mercedes Dias Vieira, irmã de nossa boa Amália, que quer pedir sua proteção porque está com medo de perder o emprego agora no fim do ano. Peço-lhe,meu bom irmão, que fará por ela o que for possível, pois é uma moça muito digna, órfã de pai e mãe, que vive do seu trabalho e ainda ajuda a uma irmã que tem no Maranhão, viúva, tísica e muito pobre. Ficar-lhe-ei muito grata, pois é muito minha amiguinha”; Carta 370, a Adriano de Abreu, 21 jun. 1934: “Apresento-lhe o Sr. Hugo Barata Ribeiro, que deseja seu apoio para ver se consegue ser reintegrado num lugar que perdeu injustamente. Ajude-o, meu caro irmão, que a Nosso Senhor muito agrada a caridade fraterna”. 838 Carta 83, a Amnéris, 21 jan. 1923: “Como lhe prometi, emprenhei-me para Honorina [sobrinha] ser recebida com abatimento no Sacré-Coeur da Tijuca, mas não pude conseguir. Esses lugares são sempre reservados a órfãos ou então a filhos de boas famílias caídos em completa indigência. As filhas de Casuzinha, sobrinho de Hercilinha, são educadas gratuitamente, segundo me disse minha Madrinha. Como V. sabe, tudo está muito caro e os pedidos são sem conta nos colégios [...]”. 839 Carta 254, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 3 jan. 1931.

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Além de ter reposto o dinheiro que não roubou, foi agora condenado a mais 4 anos de prisão. Requereu habeas-corpus, o qual vai ser julgado amanhã pelos desembargadores: Ribeiro da Costa, Sabóia Lima e Frutuoso Aragão.

Os próprios culpados admiram-se de ver o Sr. Sebastião no meio deles. Peço-lhe, minha cara irmãzinha, que faça o que estiver a seu alcance por esse

pai de três filhos [...].840

Em seu discurso, a Madre aderiu a uma tática da matriz “utilitária” – a

relativização da formalidade, antes requerida por um modelo epistolar de civilidade –,

incluindo em sua correspondência expressões de afetividade e de subserviência

feminina, que, sensibilizando o leitor, auxiliavam na conquista dos intentos desejados,

inclusive quando a interlocução envolvia somente mulheres.841 E se estes recursos de

escrita coadunavam-se com o esvaziamento do “eu” postulado pelo ideal contemplativo

(o remetente da missiva encontrava-se em posição pedinte, desprovido de condições

para suprir suas próprias necessidades ou de terceiros), eles também não eram estranhos

a uma sociedade na qual a dissolução dos laços de compadrio ainda não fora

acompanhada pela afirmação do liberalismo como um valor universal.842 Não por

coincidência, foi o folhetim – carta impressa em jornais – a modalidade de produção

literária que mais eclodiu entre o final do século XIX e o início do XX, nos grandes

centros urbanos do país: oscilante entre o público e o privado, o segredo e a confissão,

ele expressava o dilema de um indivíduo que apenas parcialmente reconhecia-se como

cidadão.843

Já um terceiro (e deveras importante) objetivo do epistolário da Madre, redigido

de acordo com a perspectiva caritativa, concernia às tentativas de conversão à fé

católica dos setores masculinos da sociedade. Com isso, a Madre assumia as

preocupações da Igreja face à secularização progressiva do laicato mais erudito desde o

final do século XIX, que em grande monta aderira às idéias positivistas, evolucionistas e

840 Carta 507, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 22 set. 1940. 841 ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por Trás dos Panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 19-20. 842 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 39. 843 SÜSSEKIND, Flora. O romance epistolar e a virada do século: Lúcio de Mendonça e João do Rio. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1993. p. 212.

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cientificistas em geral.844 Afinal, a despeito de certa proximidade entre o pensamento

católico e o positivista, na defesa da autoridade, da ordem, do papel das elites e da

moral para o soerguimento social,845 a maioria dos intelectuais do período oscilou entre

as posturas de indiferentismo religioso e de anticlericalismo, em ambas concebendo a fé

católica como uma sobrevivência arcaica.846

Assim, através de suas cartas, Madre Maria José buscou sistematicamente obter

a conversão do pai, Capistrano, e de seu irmão, Adriano, além de acompanhar o

percurso religioso de seu cunhado Aprígio. A Madre, aliás, não se deixou intimidar pela

recusa do pai em responder às suas missivas, escrevendo-lhe sempre que seus muitos

afazeres permitiam e, delicadamente, quando a ocasião lhe parecia propícia, ela evocava

a conversão de outros intelectuais. Nesse sentido, em uma única carta ao pai, Madre

Maria José mencionou duas situações que considerava exemplares: Não fique aborrecido comigo e permita-lhe que lhe peça, meu bom Pai, que

ao menos reze todos os dias, de manhã e de noite, uma Ave-Maria encomendando a Nossa Senhora a hora de sua morte. O Dr. Urbano foi bem feliz, teve a felicidade de receber todos os Sacramentos e morrer muito resignado e bem disposto [...] Há muito tempo para lhe mandar da parte de Brasilina uma lembrança do Dr. Alencar Lima e só hoje me lembrei. Veja como ele também se converteu sinceramente.847

Longe de consistir num devaneio, os esforços de Madre Maria José para

conversão de Capistrano amparavam-se em uma efetiva mudança de perspectiva da

intelectualidade brasileira, que progressivamente convertia-se ao catolicismo, fosse em

resposta aos esforços promovidos pelo episcopado, fosse como expressão de um certo

desencanto perante os elementos militaristas e oligárquicos do novo regime político. Os

novos convertidos – como Jackson de Figueiredo, Hamilton Nogueira, Gustavo Corção,

Alceu Amoroso Lima...848 – somar-se-iam a uma primeira geração de letrados católicos,

844 GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 879; MOURA, Sérgio Logo e ALMEIDA, José Maria Gouveia. História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano: sociedade e instituições, 1889-1930. T. 3 V. 2. 3a. ed. São Paulo: Difel, 1985. p. 332. RODRIGUES, Anna Maria Moog (org.). A Igreja na República. Brasília: Ed. da UNB, 1981. p. 6. Destaca-se, neste sentido, a formação inicial do pai de Madre Maria José, Capistrano de Abreu, inspirada nos postulados do cientificismo. WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu: a fase cientificista. A Invenção da História. Rio de Janeiro: UFF/UGF, 1994. 845 RODRIGUES, Anna. Op. Cit. p. 6; AZZI, Riolando. A participação da mulher na vida da Igreja no Brasil (1870-1920). In: MARCÍLIO, Maria Luíza. A Mulher Pobre na História da Igreja Latino-Americana. Op. Cit.. p. 99. 846 Cf. GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 117: “Segundo Capistrano, a escolha de Honorina parecia levá-la a um passo atrás, em direção às trevas de um passado obscurantista e opressor. [...]”. Ver também MOURA, Sérgio Logo e ALMEIDA, José Maria Gouveia. Op. Cit. p. 332; IGLÉSIAS, Francisco. Estudo sobre o pensamento reacionário de Jackson de Figueiredo. História e Ideologia. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 132. 847 Carta 123, a Capistrano de Abreu, 24 fev. 1925. 848 Minuciosa listagem destes intelectuais convertidos é encontrada em VILLAÇA, Antônio Carlos. O Pensamento Católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 10; 67.

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então dividida em duas correntes: de um lado, encontravam-se altas personalidades

francamente monarquistas, como Eduardo Prado, Afonso Celso, Carlos de Laet; em um

outro grupo, situavam-se os adeptos do liberalismo político e do regime republicano,

como Felício dos Santos e Francisco Badaró.849

Os pedidos de Madre Maria José pela conversão de Capistrano não tiveram

resposta satisfatória. Em uma derradeira tentativa, a Madre “[...] envia-lhe as visitas

dos Padres Franca, Madureira [...] do Padre Nabuco, hoje Monsenhor”,850 mas

Capistrano faleceria em 13 de agosto de 1927, sem tornar-se católico. A narrativa da

última conversa do historiador com o Dr. Felício dos Santos aponta, contudo, para uma

significação muito particular dada por Capistrano à trajetória religiosa da filha: “[...] [o

Dr. Felício] insinuou o bem que lhe faria receber os Santos Sacramentos. Capistrano,

com leve sorriso respondeu, pensando em sua filha Honorina, esposa de Cristo: ‘Ora,

Felício, eu sou mais amigo de Jesus do que você. Nós somos íntimos... Pois se ele é meu

genro!’.” 851 Entristecida com a recusa do pai, mas sem deixar de manter a esperança,

Madre Maria José escreveu à sua irmã Matilde, indicando os fundamentos de seu

consolo: “Agora vamos rezar muito por nosso Paizinho, não é, Matilde, na certeza de

que Nosso Senhor não deixou de atender a tantos sacrifícios feitos por ele durante

tantos anos e principalmente nestes últimos dias”.852

Madre Maria José, todavia, deparava-se com uma grande dificuldade para

implementar um epistolário de porte utilitário, a mesma que subvertia os parâmetros de

civilidade de seu discurso: sua constante falta de tempo. Acrescia-se a isto a relativa

carência de recursos materiais para escrita disponíveis no Convento (devido ao voto de

pobreza proferido pelas monjas), o que levou a Madre a recorrer a objetos de uso

cotidiano, de feitio simples, que não comportassem altos custos.

Assim, para redigir sua correspondência, Madre Maria José sentava-se no chão,

colocando, se necessário, uma tábua sobre os joelhos, pois as mesas e cadeiras eram

reservadas ao refeitório, não sendo empregadas para escrita.853 No Carmelo Descalço,

849 GOMES, Francisco José Silva. Op. Cit. p. 821-822. 850 MONTEIRO, Honorina de Abreu. O avô que eu conheci. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 221, out.-dez. 1953. p. 187. 851 OCTÁVIO FILHO, Rodrigo. A vida de Capistrano de Abreu. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Op. Cit. p. 114. 852 Carta 176, a Matilde de Abreu, 13 ago. 1927. Muitos anos depois, as preces de Madre Maria José ganhariam aporte coletivo: “Deus lhe pague ter escrito no livro dos benfeitores o nome do meu querido Pai. Pergunta-me a significação do Livro? É para perpetuar a memória dos mortos queridos [...] e assegurar-lhes perpétuos sufrágios [...]”, cf. Carta a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 5 nov. 1944. 853 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 162; 193: “O costume de sentar no chão foi observado por N. Me. Maria José com muita fidelidade. Por escrever muitas vezes assim, com o

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era habitual o uso do lápis,854 que combinava um preço acessível com a sutileza do

traço, numa analogia ao comportamento da religiosa, que não deveria deixar marcas de

si; esta opção, porém, causou alguns transtornos aos destinatários, que se viram instados

a recobrirem as cartas recebidas, de forma total ou parcial,855 para evitar que ficassem

ilegíveis sob efeito do tempo, ou a transcreverem-nas pouco abaixo da primeira

redação.856 O uso de canetas industrializadas não era muito difundido, sendo utilizadas a

pena e a tinta,857 o que implicava em alguns inconvenientes, que perduraram ao longo

das décadas: antes de entrar para o Convento, a futura monja escrevia a seu pai: “Acabo

por aqui, porque a pena está horrível”;858 muitos anos depois, ela ainda dizia:

“Desculpe, a pena está muito velha”.859 Cada religiosa possuía uma caixinha de escrita,

com penas, tintas e papel: “Com a caixinha de escrever muito alta, pena fina e mãos

frias, estou escrevendo com dificuldade”.860

Já os papéis empregados para escrita eram, não raramente, reaproveitados de

antigos usos861: “Não repare o papel; foi uns retalhos que nos deram e que

aproveitamos para cartas”.862 Por isso, o envio de folhas para escrita por parte de

parentes e amigos era bastante apreciado, ainda que os mesmos trouxessem as marcas

de antigas pertenças sociais 863: “Primeiramente, agradeço-lhe os blocos. Agora estou

bem provida, tanto de blocos como de cadernos; não é preciso mandar mais”.864

Alguns desses objetos tornavam-se ainda mais valiosos pelo aprumo com que foram

preparados, diferindo dos artigos comumente consumidos: “Tenho sentido ‘mãozinhas correr dos anos curvou-se bastante [...] Cansada ainda, começou a tradução das obras de N. Sta. Madre. E como escrevia? Sentada no chão, com uma tábua grande sobre os joelhos; o livro espanhol era o da edição crítica de N. Pe. Fr. Silvério, grande, grosso... o resto dos livros ficava na sua ‘mesa preferida’ (o chão) [...] Só de 1948 em diante, quando piorou muito do reumatismo usou o banquinho da cela.” 854 Carta 21, a Adriano, 16 out. 1917: “Esta carta, Adriano, comecei no dia de teus anos, a lápis, porque era noite e não encontrei caneta na cela.” 855 Carta 607, à Irmã Marina, 15 jun. 1944; Carta 623, à Irmã Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, dez. 1944; Carta 738, à Irmã Marina, 27 mar. 1946 (apenas parcialmente); Carta 1474, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, entre 14 e 18 fev. 1959; Carta 1519, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 856 Carta 1482, à Irmã Inês do Coração de Maria, entre 28 fev. e 11 mar. 1959. 857 Carta 1470, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 30 fev. 1959. 858 Carta 4, à Maroquinha Souza Leão, 11 mar. 1899. 859 Carta 1351, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, do Carmelo de Teresópolis, 23 set. 1957. 860 Carta 641, à Madre Maria do Divino Coração, entre 3 e 4 jun. 1945. 861 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina. Irmã. Op. Cit. p. 162: “[...] os rascunhos das poesias e dos outros trabalhos de N. Me. Maria José eram feitos em cadernos velhos para aproveitar o papel branco ainda restante neles, ou então em envelopes desmanchados, e até em pedaços de papel de embrulho.” 862 Carta 1281, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 26 mai. 1956. 863 Carta 714, à Madre Maria de S. José, provavelmente jan. 1946. Em nota acrescida à transcrição, lê-se: “Há três cartinhas escritas no mesmo bloco (da Panair), para Madre Maria de S. Jose, Ir. Petronila, Ir. Jacinta.” 864 Carta 686, a Adriano, 6 out. 1945.

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de fadas’ no que recebo, principalmente os caderninhos tão lindos. Nossa Mãe do Céu

pague por estas filhinhas d’Ela tão pobres”.865

Algumas poucas mensagens tiveram o papel especialmente escolhido, sendo

escritas atrás de um santinho,866 ou em pequenos cartões,867 ou em uma folha de

tonalidade especial: “Minha amada filha, neste papel tão azul quisera por alguma coisa

do Céu [...]”.868 Uma das cartas, de cunho oficial, foi datilografada em papel da Casa

Generalícia da Ordem do Carmelo Descalço.869

O modelo epistolar utilitário só foi possível de ser implementado por Madre

Maria José devido à ampliação dos serviços postais no Brasil. A maioria das cartas da

Madre era enviada pelo correio, embora tal remessa acarretasse duas grandes

problemáticas: o preço da postagem870 e o risco de extravio,871 minimizado apenas com

o transporte aéreo.872 Daí a recomendação da Madre: “É sempre bom acusar o

recebimento das cartas” 873. Outra dificuldade enfrentada pelas irmãs era o

desconhecimento dos novos endereços de seus conhecidos, cujo contato fora

temporariamente perdido: “Estava com receio de lhe escrever para o Flamengo, por

não saber se mudou de casa ou se está apenas passando fora o verão [...]”.874

Por isso, Madre Maria José muitas vezes condicionou sua escrita epistolar à

presença de um portador, embora este nem sempre fosse uma garantia absoluta da

recepção da mensagem: “Minha D. Laurita, no princípio do mês mandamos alguns

Agnus Dei, uma caixinha para a senhora e outra para a Senhora sua Mãe, e a

portadora, que era uma nossa pretendente, perdeu na viagem os embrulhinhos. Agora

865 Carta 708, à Irmã Inês do Coração de Maria, dez. 1945. 866 Carta 262, à Irmã Maria do Carmo de Cristo Rei, 1 abr. 1931, representando uma religiosa aos pés da Cruz, sendo coroada de espinhos, por um anjo; Carta 1098, à Madre Maria da Conceição Chaves, 31 mai. 1953, com uma imagem de um Pelicano (um dos símbolos do Cristo); Carta 1162, a Mons. Maximiano da Silva Leite, 18 abr. 1954 e Carta 1224, a Mons. Maximiano da Silva Leite, provavelmente 20 abr. 1955, cujas estampas trazem motivos pascais. Ver também Carta 1258, a Mons. Maximiano, 28 out. 1955; Carta 1328, à Irmã Maria Antônia de Santa Teresa, 22 mar. 1957; Carta 1397, à Irmã Teresa Margarida Maria do Coração Eucarístico, 28 jul. 1958. 867 Carta 1223, à Irmã Marina, entre 18 e 29 mar. 1955. 868 Carta 252, à Irmã Marina, 1930. 869 Carta 243, a D. Sebastião Leme, jul. 1930. 870 Carta 1311, à Irmã Maria de Lourdes, 9 nov. 1956: “Como os selos estão muito caros [...]” 871 Carta 655, à Madre Maria do Divino Coração, do Carmelo da Santíssima Trindade, 4 jul. 1945: “Tenho pesar de ver que as cartas se perdem e chegam com muito atraso. Ontem, 3, recebi as cartas de 16; no dia 23, cartas do dia 4. As nossas daqui também se têm perdido. [...]”. 872 Carta 456, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 4 jul. 1938: “Me. Josefa acaba de receber a carta de V.R. por avião; como era pedindo notícias, já está respondida”. 873 Carta 768, a Isa de Abreu, 31 jul. 1946. 874 Carta 567, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 8 jan. 1943. Cf. também Carta 64, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 18 jan. 1921: “Ignorando o endereço do Sr. Paes, envio-lhe esta carta para ele”.

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vamos arranjar outros”. 875 O portador era mais utilizado para remessa de cartas de

grande importância afetiva876 ou valor documental,877 sendo também bastante

empregado para o envio de objetos,878 sobretudo quando a entrega deveria ser feita em

outros estados: ““Não pude falar à Senhora que a trouxe por ser Semana Santa e assim

não sei se volta para o Rio Grande e se pode encarregar-se de levar a V.R. mais

Constituições, pois em vista de se terem perdido algumas e o porte ser caro, não desejo

mais mandá-las pelo correio. Se V.R. tiver algum portador seguro, ficarei bem

contente”.879 Caso a resposta devesse ser imediata, o portador deveria aguardá-la, sendo

o fato indicado no texto.880

Em casos de envio urgente, o Convento de Santa Teresa disponibilizava um de

seus funcionários, geralmente a pessoa responsável pela portaria externa.881 Quando,

porém, um desses empregados adoecia, ou estava impedido de exercer suas funções por

qualquer razão, era mister encontrar um outro portador,882 o que poderia ocorrer de

forma casual, através de um sacerdote que visitasse o convento,883 ou um dos leigos

mais chegados .884 Em casos bem raros, mesmo uma das monjas em trânsito, geralmente

por motivo de saúde, poderia servir.885 Em algumas ocasiões, o portador era antecipado

pelo destinatário,886 já conhecedor das problemáticas de comunicação. Na irreversível

ausência de um portador, a carta deveria aguardar circunstâncias mais favoráveis (e

seguras) ao envio,887 ou então soluções criativas deveriam ser pensadas: “Perdoem-me a

875 Carta 726, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 29 jan. 1946. 876 Carta 741, a Adriano, mar. 1946: “Vou ver se na Quaresma escrevo alguma coisa sobre nosso Pai. Não imagina como o nosso tempo é tomado. Tenho uma cartinha minúscula de meu Pai, que lhe mandarei quando houver portador.” 877 Carta 1166, à Madre do Carmelo S. José, Petrópolis, 22 mai. 1954. 878 Carta 826, à Madre Maria Evangelista, 19 nov. 1947. 879 Carta 128, a D. Sebastião Leme, 10 jun. 1925. Ver também Carta 521, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 17 fev. 1941. 880 Carta 52, ao Cardeal D. Joaquim Arcoverde, fev. 1920; Carta 812, ao Cardeal D. Jaime Câmara, 29 jul. 1947. 881 Carta 900, à Priora do Carmelo de Petrópolis, 20 mai. 1949; Carta 1054, a Jônia de Abreu, 11 set. 1952. 882 Carta 875, à Irmã Marina, entre 22 nov. 6 dez. 1948: “Pelo portador mando a roupa servida. A nossa Belinha, coitada, está com o pé no aparelho, um dedinho quebrado, não pode andar muito.” 883 Carta 1039, à Irmã Marina, 21 abr. 1952: “Não me estendo mais para poder ir a carta pelo Pe. Klauss”. 884 Carta 68, a Capistrano de Abreu, 7 abr. 1921: “Hoje é só um adeuzinho, para aproveitar que Maria veio cá.” 885 Carta 1286, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, do Carmelo de Teresópolis, 6 jul. 1956; Carta 1290, à Madre Maria do Carmo, do Carmelo de Tremembé, 3 ago. 1956. 886 Carta 625, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, provavelmente fins 1944: “Nós não pedimos portador, foi engano; mas, já que veio, aproveito para lhe escrever estas linhas, pois tenho andado aflita com o silêncio de V.R., sem saber o que aconteceu aí [...]”. Grifos da Madre. 887 Carta 839, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 10 fev. 1948.

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demora tão grande com os últimos volumes. Já acabei, e vou mandar por algum

portador, ou, em caso de não haver, pelo Comissário”;888 em casos de extrema

urgência, apelava-se ao telegrama889 e ao telefone.890

A figura do portador era tão determinante, que ela condicionava o ritmo da

escrita: “Minha filhinha do coração, escrevo numa disparada para apanhar

B.[Belinha] que vai sair, não repare”.891 Em várias ocasiões, uma fatídica interrupção

da escrita foi anunciada à Madre pelo toque do sino, indicando ser iminente a partida do

portador.892 O intento de aproveitar a existência de um portador chegou a provocar, na

Madre, um acirramento de seu desgaste físico: “Minha filhinha Ir. Maria

B.[Bernadette], estou escrevendo a V.C. depois de Matinas, caindo de sono, para

Bel.[Belinha] lhe levar estas palavrinhas de gratidão e amor”.893 Mas, apesar disso, tal

esforço nem sempre era suficiente para assegurar o envio: “Minha filha querida, quis

responder a você ontem, mas o portador já tinha ido, por isso respondo hoje”.894

Porém, se o portador afetava o desenrolar da redação, ele poderia também consistir no

elemento viabilizador da mesma: “Embora muito ocupada, não tenho coragem de

deixar D. Ma. Barbosa partir sem escrever a V.R., minha tão saudosa mãezinha do

noviciado”.895

Os intentos da escrita epistolar de cunho “utilitário” – dotar as cartas da maior circularidade possível, a fim de reforçar os vínculos identitários entre os Carmelos femininos, entre eles e os demais integrantes da Igreja, além de suscitar a conversão dos descrentes – não conflitavam com os dispositivos formalizantes do modelo civilizatório; pode-se mesmo afirmar que, em muitos casos, eles reforçavam-se mutuamente. Desta maneira, na correspondência de Madre Maria José, as nuances de cada um desses padrões nem sempre poderiam ser isoladas: elas imbricavam-se em uma mesma frase, em uma única expressão, construindo uma escrita densa, carregada de significados.

4.4- “...os que velam para encontrá-la sentirão sua doçura” (Eclo 4, 13) No epistolário de Madre Maria José constava ainda uma terceira matriz

discursiva laica, disseminada sobretudo nos meios burgueses a partir do século XIX, pela qual as cartas tornaram-se a expressão da intimidade, estando associadas à

888 Carta 1356, à Madre Antonietta, 18 out. 1957. 889 Carta 484, à Madre Regina, 28 nov. 1939. 890 Carta 812, ao Cardeal D. Jaime Câmara, 29 jul. 1947. 891 Carta 1283, à Madre Bernadette do Divino Coração, 14 jun. 1956. 892 Carta 1036, à Irmã Marina, 27 mar. 1952. 893 Carta 951, à Madre Bernadette do Divino Coração, mar. 1950. 894 Carta 297, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 23 set. 1932. 895 Carta 394, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 7 jul. 1935.

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produção de uma verdade sobre si. A correspondência, paulatinamente eivada por uma ótica romântica, foi sendo aproximada do diário e da autobiografia mas, com isso, tendeu ao formato de um solilóquio, que recusava a interlocução. Sob esta perspectiva, tal escrita, principalmente a feminina, viu-se revestida por um aparato de sofrimento, no qual a mulher era associada à imagem de vítima silenciosa, ao invés da representação produzida por uma civilidade epistolar, dotada de eloqüência e certa coquetteria mundanas. As missivas de Madre Maria José, todavia, não se apresentavam como “confissões” 896 ou “autobiografias”, pois tais escritas centravam-se na “autoria”, tomando como pólo de sentido a reordenação temporal das “memórias” de um indivíduo, a partir de sua identidade presente.897

Ainda dentro da vertente romântica, todavia, desenvolveu-se uma tendência que, sem descartar o introspectivo, vislumbrava na mulher uma densidade existencial que a transformava em heroína dramática e, de maneira concomitante, alçava seu discurso epistolar à dimensão literária. Neste caso, o “eu profundo” mostrava-se indissociável do “eu social”, e o privado da carta tornava um particular com valor universal.898 E foi justamente esta personificação não individualizante que permitiu à Madre Maria José aproximar tal vertente romântica – cuja leitura ela fizera em sua juventude899- aos procedimentos discursivos do ideal contemplativo. Desta forma, suas cartas estavam perpassadas por um ingente cuidado de silenciar sobre si:

Não pense, meu irmão querido, que por estar sempre separada de vocês há mais

de trinta anos não lhes queira bem, ou esteja indiferente ao que lhes sucede. Não, diante

de Deus posso dizer-lhe que, desde o começo, tomei esta atitude de viver separada de

todos, escrevendo raramente e não exigindo visitas, por ter compreendido que a vida

religiosa repartida entre Deus e o mundo perde toda a sua vitalidade. Desejei que o meu

sacrifício fosse completo; na minha clausura procurei viver só para Deus, morta a tudo e

a todos. Mas porque me parece, este é o meio de fazer o máximo pelos meus queridos.

Parece-me que buscando só a Deus, ele tomaria conta de vocês todos. E, creio,

realmente foi assim.

896 Com o monaquismo dos primeiros séculos do cristianismo, a confissão torna-se uma técnica produtora de verdade sobre si, mediante a interlocução com um diretor espiritual: “É preciso confessar não apenas os deslizes cometidos, mas absolutamente tudo, até o pensamento mais íntimo. Há que formulá-los.” FOUCAULT, Michel de. Problematização do Sujeito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 303. A confissão, portanto, distingue-se de uma escrita pautada no ideal contemplativo, o qual postula a diluição (e não a circunscrição) do indivíduo. 897 CUNHA, Maurício. Memória da conversão e conversão da memória em Alceu Amoroso Lima. Cadernos NPEH. Rio de Janeiro, Departamento de História da UFRJ, v. 1, n. 1, 61-78, 1996. p. 62. 898 DIAZ, José Luiz. Op. Cit. p. 157; 167-169. 899 Honorina conhecia a literatura romântica, cf. epoimento de Cléa Portella Leal. Apud: SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 41.: “Leu principalmente os poetas nacionais, e com facilidade e fidelidade extraordinárias decorava os seus poemas, recitava-os com arte e graça. De Gonçalves Dias interpretava geralmente ‘Ainda uma vez, adeus!’, ‘A canção do exílio’, ‘I Juca Pirama’. De Castro Alves, ‘Navio Negreiro’; de Olavo Bilac, ‘A via-láctea’, que sabia inteira assim como todos os seus outros poemas. Quando saía, aproveitava o tempo dos trajetos de bonde ou as caminhadas a pé para decorá-los. [...] nunca foi amiga de romances, mas leu dos autores nacionais: Macedo, José de Alencar.” Destaca-se que Honorina também lia obras diretamente do alemão. Ibid.

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Por outro lado, minha natureza fechada, retraída – como somos todos nós – e também acanhada, tímida e eivada de respeito humano me tolhia. Mesmo na Casa de Saúde São José não consegui expandir-me, falar a verdade.900

Estas restrições a fazer-se agente da escrita – ou seja, à “autoria” -, auto-

imputadas por Madre Maria José, eram corroboradas pela valorização do calar na

espiritualidade teresiana. O silêncio foi uma prescrição contida na Regra do Carmelo,

sendo ratificado pelas Constituições teresianas901 e acirradamente recomendado pela

Madre: O Religioso que não guarda silêncio é como um forno aberto que perde

todo o calor; como uma gaiola escancarada que deixa fugir o pássaro; como um vaso furado que desperdiça todo o licor; como o navio cheio de fendas por onde aos poucos penetra a água até que se submerge [...] Por falar muito perdeu-se Eva, e por conseguinte todo o gênero humano. Assim, também por falta de silêncio, perde-se o Religioso e, se não se opuser remédio, todo o corpo da Religião. [...] Ó meu Deus, livrai-me de tão grande desgraça, pelos merecimentos de vosso silêncio no seio de vossa Divina Mãe, na vossa sagrada Paixão, na Eucaristia.902

E era em nome do silenciamento que os conventos teresianos femininos

realçavam o papel do discurso epistolar: por ocasião de seu ingresso na vida conventual,

a postulante recebia não só as roupas adequadas a seu novo estado, como também um

bloquinho e um lápis para registrar suas mensagens. Madre Maria José “[...] usou muito

escrever bilhetes, verdadeiras cartinhas [...] achava este proceder mais carmelitano,

por favorecer mais o espírito de solidão [...] era raro falar, só escrevia bilhetes ou fazia

sinais, até com a Priora o mais freqüente era tratar com ela por escrito”. 903

Porém, o silenciamento introduzia-se também na própria dinâmica da escrita

epistolar: era estabelecido um tempo mínimo para o envio de cartas a um mesmo

destinatário, geralmente um mês,904 embora as missivas pudessem tornar-se mais

amiúdes em caso de doenças ou problemas particulares. Mas o corriqueiro, na

correspondência de Madre Maria José, era que ocorresse o oposto, com seus textos

900 Carta 533, a Adriano, 28 jul. 1941. 901 Regra e Constituições... [1929]. Op. cit. Art. 87 a 89. “Desde o fim de Completas até o fim de Prima do dia seguinte guarde-se silêncio, e este silêncio seja observado com grande diligência. No resto do dia, não possam as Religiosas falar entre si sem licença, exceto as oficiais, às quais se permite fazê-lo para as coisas necessárias. A licença para falar uma com outra, seja concedida pela Priora quando lhe parecer que possa servir para qualquer Irmã incender-se mais no amor divino ou quando alguma Religiosa se achasse acabrunhada de penas ou tentações e desejasse entreter-se com outra para sua espiritual consolação. Isto, porém, não se deve entender de uma simples pergunta ou resposta ou de algumas poucas palavras, porque isto o poderão fazer sem a dita licença.” 902 Carta 31, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 25 de fevereiro de 1918. 903 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 256. 904 Carta 131, a Capistrano de Abreu, 19 set. 1925: “[...] venho fazer a nossa palestra mensal [...]”; Carta 436, a Matilde, 31 mai. 1937: “Neste último dia do mês de Nossa querida Mãe do Céu, venho fazer a você e a Aprígio minha visitinha mensal.”

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espaçando-se em um ano905 ou até mais. Dessa maneira, após ter ficado quase dois anos

sem enviar notícias ao pai, envolvida com suas atividades na enfermaria e no noviciado,

a Madre afirmou-lhe “Chegou afinal o dia de escrever-lhe, dia que por meu gosto há

muito teria chegado” ,906 o que fez Capistrano desabafar com seu amigo português João

Lúcio de Azevedo: “Já não se governa, é uma alma desapropriada por utilidade

religiosa”.907 De qualquer maneira, no entendimento de Madre Maria José, o diálogo

espistolar deveria ser limitado: Veja se diminui as correspondências, movimento da portaria etc. É o que

mais estafa a Priora. A Ir. Ma.[Maria] H.[Henriqueta] tem uma irmã sacramentina. Pois bem! Lá só é permitido escrever 1 folha de papel e rarissimamente. Nem aos irmãos escreve. Acho que poderíamos cortar um pouco, não lhe parece? Se somos ermitãs, como diz N. Sta. Madre... [...] O que se escreve numa carta grande pode-se resumir numa pequena, e com mais fruto, porque o sacrifício atrairá as graças de Deus.908

Porém, apesar de esforçar-se por corporificar os ditames do ideal contemplativo,

então resignificados pelo calar romântico, Madre Maria José, por vezes, expunha os

constrangimentos assim impostos à sua vontade: “Por experiência própria V.R. verá,

minha filha, que sacrifício é passar meses e meses sem escrever uma linha aos entes

mais queridos”;909 estes eram limites que, quando tornavam-se insuportáveis, chegavam

a ser subvertidos: “Minha irmãzinha, creio que Jesus uniu nossas almas no seu Divino

Coração e quer que sejamos muito amigas porque às vezes, como hoje, não posso

escrever a V.C. por falta de tempo, mas sinto uma coisa que não me deixa sossegar até

que lhe escrevo [...]”. 910

Ademais, em dois períodos do ano – a Quaresma911 e o Advento912 -, o

silenciamento tornava-se ainda mais rigoroso, devendo a correspondência ser

obrigatoriamente interrompida.913 Por isso, Madre Maria José acirrava a prática de

905 Carta 16, a Adriano, 16 out. 1915: “Meu irmão muito querido, há muito tempo me escreveste que, como certa fada de não sei que história, eu te visito uma vez por ano – no dia de teu aniversário”. 906 Carta 19, a Capistrano de Abreu, 20 fev. 1917. 907 Carta de Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo de 19 mar. 1917. In: ABREU, Capistrano de. Correspondência. Op. Cit. V. 2. p. 36. 908 Carta 1128, à Madre Maria do Carmo, out. 1953. 909 Carta 1439, à Madre Maria Bernadette do Divino Coração, do Carmelo de Teresópolis, 26 set. 1958. 910 Carta 109, à Sóror Ana, 2 set. 1924. Ver também Carta 605, a Matilde, 31 mai. 1944: “Não tencionava escrever tanto, mas deixei falar o coração, cuja natureza é ser tagarela”. 911 Carta 164, à Sóror Josefina, 28 out. 1926. 912 Carta 382, a Nila Prado, 8 jan. 1935. 913 Carta 99, a Capistrano de Abreu, 1 dez. 1923: “Este tempo do Advento é para nós de muito recolhimento e fervor. Fechados os locutórios, a correspondência suspensa, um particular zelo pelo silêncio e pelo recolhimento; enfim, tudo entra no espírito da Igreja, que tem este tempo como preparação para o santo Natal”; Carta 1253, à Madre Maria do Carmo, provavelmente após set. 1955: “Seus versos, se me dá licença, vou deixar para a Quaresma, quando cessarem, pela misericórdia de Deus, cartas e locutórios, sim?”

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escrita nas vésperas dessas ocasiões: “Embora disponha de muito pouco tempo, não

quero que entre a Quaresma sem dirigir-lhe algumas palavrinhas, dando-lhe notícias

minhas e despedindo-me até a Páscoa”.914 Mas em situações excepcionais, geralmente

vinculadas ao que fosse considerado um exercício de caridade (conforme a

reinterpretação do projeto “utilitário”), a Madre chegou a romper a Regra, ela que era

tão ciosa em preservá-la: “Venho despedir-me de V. R. e desde já, embora seja

Quaresma, pois logo depois da Páscoa teremos a visita canônica e as eleições talvez

não tenha tempo para escrever a V.R. umas linhas, o que não quero deixar de fazer”

.915

O silenciamento epistolar também poderia ser empregado como uma

mortificação voluntária, aplicada quer à escrita,916 quer à leitura das cartas: “Quando M.

Mestre [Madre Maria José] me entregava alguma carta, testemunha uma noviça,

marcava hora para lê-la, e às vezes até dia, dilatando a sua leitura por bastante

tempo”.917 Por fim, o não falar deveria ser dotado de uma dimensão introspectiva, um

aquietar dos próprios pensamentos e desejos, desdobramento do esvaziamento de si,

como descrito pela própria Madre: “ ‘Se alguém se julga religioso e não refreia a

própria língua, sua Religião é vã’, diz o Apóstolo S. Tiago; e N.P.S. João da Cruz

afirma que isto se deve entender não só da falta de silêncio exterior, mas também da

falta de silêncio interior”.918

Todo esse silenciamento, se entravava o entabular um diálogo cotidiano, não

impediria, porém, o realizar do intento do ideal contemplativo - o encontro entre o

humano e o divino, e entre as diferentes pessoas, em Deus -; pelo contrário, era o calar a

vontade que propiciaria uma fusão mais autêntica: “Desde fevereiro, se não me engano,

estou devendo resposta a V.R. [...] Felizmente temos o sacrário, onde estamos sempre

juntas, e o regaço da Mãe do Céu, onde nos reunimos no doce aconchego de seu

Coração materno. Nesses nossos dois Amores, que são um só amor, a correspondência

914 Carta 24, Capistrano de Abreu, 11 fev. 1918. Madre Maria José menciona em 6 de suas cartas ter promovido a escrita em função da proximidade do Advento, e em 18 missivas, da proximidade da Quaresma. 915 Carta 594, à Madre Antônia, do Carmelo de Fortaleza, 18 mar. 1944. Madre Maria José menciona explicitamente, em 4 cartas, a remessa promovida durante os períodos da Quaresma ou do Advento. 916 Em raras situações, a Madre permitia-se algumas concessões, conforme Carta 1104, à Irmã Maria Bernadette do Divino Coração, jun. 1953:“[..] e eu, sem nenhuma mortificação, estou respondendo imediatamente para unir ao seu o meu Magnificat”. 917 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 160. 918 Ibid.

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não fica atrasada, e é mais íntima, satisfaz mais as nossas almas sedentas de

unidade”.919

Desta maneira, Madre Maria José entrecruzava todos esses sentidos do silenciar,

considerando-os como condição inerente a seu estado de religiosa e à tradição teresiana:

“Como o Sr. já é muito ‘carmelita’, não deve estranhar o meu silêncio, embora o sinta,

como eu mesmo sinto não lhe escrever mais vezes, como me pede o coração”;920 afinal,

sendo o destinatário um “carmelita”, “ ‘filho de S. João da Cruz’, [...] sabe que o

Carmelo é o nada a respeito das consolações humanas e tudo para com Deus”.921 A

Madre, contudo, não eximia a sua cota de responsabilidade, atribuindo a seus defeitos

pessoais um silenciamento porventura considerado excessivo, que atentasse quer contra

o padrão “utilitário” da caridade, quer contra os preceitos epistolares de civilidade:

“Perdoe a sua mãezinha ter demorado tanto com os seus papéis. Velhice, falta de

ordem, moleza, etc.” 922

Paralelamente, retirando de si a faculdade de fala, Madre Maria José atualizava a

convenção textual da escrita religiosa por obrigação, tornando-a expressão da

“autoridade” e mantendo seu vínculo indelével à marca de gênero, feminina. Nos

séculos anteriores, as monjas foram instadas (e por vezes até coagidas) a escreverem,

num processo em que reconheciam, implicitamente, sua própria ignorância, ainda que

seus dizeres pudessem ser posteriormente utilizados pela instituição para difusão de

biografias “edificantes”. As mulheres, assim como os seus relatos, eram vistas com

suspeição, quer por sua possível assimilação ao elemento demoníaco, quer por seus

equívocos e desconhecimentos acerca da ortodoxia.923 Era, portanto, o agente da

autoridade, de quem partira as determinações para escrita (e que seria o leitor

919 Carta 783, à Madre Maria do Carmo, provavelmente 1946.Ver também Carta 1010, à Irmã Marina, 10 dez. 1951: “Aliás, sinto V.R. presente em minha alma e unida a mim, mais do que nunca. É como V.R. me disse uma vez: aqui nos falávamos e nos víamos tão pouco que, de certo modo teremos mais comunicação, principalmente sendo eu de poucas falas e não tendo jeito para externar o que me vai na alma”; Carta 925, à Irmã Maria Henriquetta de Jesus Hóstia, s.d.: “V.R. teria razão de se queixar de mim por não lhe escrever, se a nossa amizade fosse natural; mas o nosso traço de união é Jesus, nele estamos tão unidas que todo o resto é acessório!” 920 Carta 568, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 27 jan. 1943. 921 Carta 501, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 10 jun. 1940; Carta 153, a Matilde, 24 jun. 1926: “Por que te afliges quando não te escrevo? Não sabes que sou de Jesus? Pois se sou de Jesus, fica tranqüila, nenhum mal pode suceder: saúde ou enfermidade, vida ou morte, tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, como diz São Paulo.” 922 Carta 1128, à Madre Maria do Carmo, out. 1953; Carta 803, a Adriano, 24 jun. 1947: “Não quero escusar-me com a falta de tempo, quero antes acusar-me de não saber aproveitar o tempo e por isso ter demorado tanto a responder-lhe.” 923 VALDÉS, Adriana. El espacio literário de la mujer em la Colônia. In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. V. 1. São Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp. 1993. p. 472-473.

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privilegiado da mesma), quem determinava o sentido do discurso.924 Assim, uma

parcela da correspondência da Madre foi redigida por obediência à priora,925 enquanto

outro quantitativo atendia às demandas de seus superiores eclesiásticos: Por ocasião da visita canônica há pouco feita por V. Emcia. Revma. a esta comunidade com tanta consolação e proveito espiritual para todas nós, mandou-me V. Emcia Revma. que lhe enviasse por escrito uma relação sobre o estado da Ir. Francisca do SS. Sacramento. Eu, como imperfeita, me escusei, alegando que estava no último dia do meu priorado, e queria que V. Emcia. Revma. encarregasse dessa incumbência a nova Priora. V. Emcia. Revma., porém, não me quis dar por escusada, e eu aqui venho cumprir minha obediência, atentando o que me parece verdade diante de Deus.926

Além disso, algumas missivas de Madre Maria José foram também ditadas por

dever de consciência;927 formuladas no intuito de esclarecimento e reformulação de

situações consideradas inadequadas, elas apresentavam-se como uma introjeção dos

lugares de “autoridade”:

Como Priora na época em que se deram os últimos fatos que passo a referir, trago ao conhecimento de V. Emcia. Revma. tudo que se refere à Ir. Jesuína Maria de São José, religiosa de votos simples perpétuos, egressa desta clausura, à qual pretende voltar agora [...] Termino declarando a V. Emcia. Revma. não ser minha intenção fazer uma apologia ou defesa de meu procedimento, nem uma acusação da Ir. Jesuína; antes, pelo contrário, estou convencida de que outra Priora mais prudente, virtuosa e enérgica teria alcançado melhores resultados. Apenas fiz a V. Emcia. Revma. uma exposição exata dos fatos para que V.Emcia. Revma. melhor possa formar seu juízo.928

Mas a maior instigação à escrita, no relato de Madre Maria José, advinha da

própria divindade, como ocorrera com Teresa d’Ávila, que escreveu suas cartas “guiada

pelo Espírito de Deus”,929 ou com santa Teresinha, cuja autoria epistolar é atribuída a

924 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Paris: Gallimard, 1982. p. 261-262. “Thérèse [d’Avila] ne sait pas. Elle n’est pas sûre de l’endroit où elle se trouve, livrée au péril comme à l’ivresse de l’extase. ‘Yo no sé lo que digo’ – je ne sais ce que je dis ni où je sui. [...] au seuil des Moradas, se trouve placée une galerie de ‘letrados’, chargés de garantir des limites. Comme l’écriture va échapper, extatique, il faut prévoir um rattrapage. Les gardiens de la conformité au lieu pourront couper ce qui s’égare au loin. Thérèse elle-même demande que sont texte soit taillé par leur jugement [...] Le cadre du travail est ainsi constitué par un ordre qui induit la force d’écrire au prix d’une couleur corporelle et par un jugement qui delimite l’appartenante à l’espace catholique.” 925 Carta 619, à Irmã Maria Imaculada, do Carmelo de Pouso Alegre, 20 nov. 1944. “Minha boa e cara Madre, penso já ter respondido a tudo que V.R. perguntou, e isto faço com muito prazer em obediência a Nossa Madre querida, que não podendo escrever pessoalmente, me encarregou de fazê-lo em seu nome.” Ver também, como outro exemplo, a Carta 987, à Madre Joaquina de Jesus Sacramentado, do Carmelo de Fortaleza, 28 abr. 1951: “Estou escrevendo em nome de N. Madre e da Comunidade”. 926 Carta 53, ao Cardeal D. Joaquim Arcoverde, 2 mai. 1920. 927 Daí a censura à leitura coletiva mencionada neste capítulo, p. 153. 928 Carta 62, ao Cardeal D. Joaquim Arcoverde, 27 nov. 1920. 929 JESUS, Maria José de, madre. Introdução. In: TERESA DE JESUS. Obras Completas. Tomo VI. Cartas. Petrópolis: Vozes, 1960. p. 7.

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Jesus.930 A correspondência de Madre Maria José bordejava, assim, as fronteiras de uma

literatura mística, embora fosse dela distinta, pois a Madre não escrevia diretamente

“inspirada” pelo Espírito, mas redigia para seu leitor, na presença (com) do Espírito (a

qual era entendida, numa época de Neocristantade, sob a mediação institucional da

Igreja), o que configurava seu epistolário como uma prática ilocucionária tríplice.931

Com isto, neste discurso, não havia uma autoridade isolada, mas uma sobreposição de

verdades.

Contudo, em importante e tensional elemento portado pela matriz laica de uma

escrita subjetivante, o esvaziamento de Madre Maria José da posição de “autoria” não

implicava em seu completo descarte como “autoridade” do discurso, uma vez que as

motivações particulares que a animavam a elaborar o epistolário932 (fosse por saudade,

para saber notícias,933 ou ainda para expressar afeto934) confundiam-se com seu

propósito de cumprir os regulamentos ou as determinações de seus superiores. Desta

forma, era através de uma autoridade alheia, mas tornada própria, que a Madre

empreendia a exposição de suas idéias ou narrava sua trajetória, sobretudo em ocasiões

em que o afastamento de determinados ofícios, como o priorado, tornaria injustificável a

manutenção de antigas correspondências:“Conto sempre com as orações e a amizade de

V.R., pois agora não escreverei mais, a não ser por obediência ou necessidade” .935

Emergia, assim, um dos aspectos mais inusitados – e relevantes – da escrita epistolar de Madre Maria José: a mixagem entre a relativização de uma autoria/vontade, (mediante o esforço de silenciar) com a irrupção de um “transbordamento textual”, tradução simbólica (e semiótica) da passionalidade do ideal contemplativo: a redação de suas cartas ultrapassava as fronteiras das linhas,936 compondo horizontes móveis em inúmeros post scriptium,937 em notas que

930 THÉRÈSE DE LISIEUX. Introduction aux lettres. Op. Cit. p. 291. 931 CERTEAU, Michel de. Préface. In: DE LA CROIX, Jean, saint. Les Dits de Lumière et d’Amour. Paris: José Cortí, s.d. p. 15-16: “[...] le texte des ‘dichos’ présente un entrelacs d’adresses tantôt `a ‘toi’, Seigneur, tantôt à ‘toi’, lecteur – avec cette différence que le premier ‘tu’ a un nom propre (Dieu, Seigneur, quelquefois Jésus) et que le second reste sans nom. […] Elle ne change pas de nature quand elle passe de l’oratio supposée solitaire (dialogue avec l’âme et avec Dieu) à la verbalisation entre locuteurs ou à l’écriture destinée à des lecteurs”. Ver também Id. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 243-244. 932 Como exemplo, Carta 1504, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.: “Estava mesmo com vontade de lhe escrever, então aproveito”. 933 Carta 229, às Irmãs do Carmelo Santa Teresinha, 28 dez. 1929:“Estava esperando que nos chegassem notícias do Ceará para lhes escrever, mas já que estão demorando, venho saber como estão e dizer-lhes nossas saudades muitas e afetuosas.” 934 Como exemplo, Carta 96, a Capistrano de Abreu, 30 ago. 1926: “Não quero deixar terminar o mês sem lhe escrever algumas palavrinhas, que lhe digam minha ternura e contínua lembrança [...].” 935 Carta 961, à Madre Maria de Jesus, do Carmelo de Santos, 21 mai. 1950. Ver também Carta 1377, ao Dr. Christóvam Colombo dos Santos, 21 abr. 1958: “[...] se hoje tenho a consolação de procurá-lo é por necessidade, aliás também do serviço do Rei da Rainha”. 936 Foram contabilizadas 44 cartas com escrita nas margens. 937 Foram contabilizadas 53 cartas com post scriptium.

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atravessavam o papel...938 Esta efusão evidenciava o traspassamento de uma autoridade até então introjetada para uma autoridade potencializadora de um sujeito, que rompia seus próprios limites na busca de unir-se ao outro.939 Desta forma, em afinidade a um padrão romântico e subjetivante de escrita, Madre Maria José constituía seu discurso como uma produção afetiva, mais do que uma troca protocolar,940 como ela afirmou certa vez a seu irmão Adriano: “O tempo melhor de nossa vida já passou; vamos, ao menos agora, dar a Deus com profusão, se é possível falar assim quando nos referimos Àquele que tudo merece”, acrescentando (em post scriptium): “Está muito atrapalhada esta carta. Escrevi por várias vezes, sempre às pressas, o que me ditava o coração”.941

938 Foram contabilizadas 12 cartas com escrita em atravessado. 939 Cf. CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 411: “Le désir crée un excès. Il excède, passe et perd les lieux. Il fait aller plus loin, ailleurs. […] De cet esprit de dépassement, séduit par une imprenable origine ou fin appelée Dieu, il semble que subsiste surtout, dans la culture contemporaine, le mouvement de partir sans cesse […]”. Id. La Faiblesse de Croire. Op. Cit. p. 262: “Fondamentalement, cet ‘écart’ […] par rapport à l’ordre établi n’est pas d’abord critique. Il est plutôt de l’ordre de l’excès et de l’ouverture. C’est une pure dépense. Elle est déraison, parce qu’elle n’est pas rentabilisable. Départ et surcroît, geste ‘poétique’ d’ouvrir l éspace, de passer la frontière, de jeter par la fenêtre, de risquer plus: un langage chrétien se paie à ce prix”. 940 POUBLAN, Danièle. Op. cit. p. 210. 941 Carta 533, a Adriano de Abreu, 28 jul. 1941. Grifos de Madre Maria José.

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Minha vida é como um rio

Que vai correndo, correndo

Para o Pai...

Corre, corre, corre depressa,

Mas assim mesmo é devagar...

Ó rio meu, como saíste limpo,

Tão puro e cristalino,

Do divino manancial!

Do seio do Pai...

Por que te manchaste?

Por que te enlodaste?

Ai de mim! Ignorância?

Propensão má? Malícia?

Misericórdia! Perdão, meu pai!

[...]

Ó Jesus, teu doce Sangue

Já veio correr em mim

Não vivo mais: é Cristo

Seu sangue santifica, transforma...

A água torna-se Sangue

E corre, corre para o Pai

Como na criação do mundo

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O Espírito Santo e Santificador

Paira e é levado sobre as águas.

Ó Espírito de amor, impele-me

Faze-me correr

Para o Pai!

[...]

O Rio,

Madre Maria José de Jesus, 1948.942

942 JESUS, Maria José de, madre. Sonetos e Poemas. V. 1. Rio de Janeiro: Olímpica, 1960. p. 147-153.

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CAPÍTULO 5

ESTILO “CONVERSO”

5.1- “Então Iahweh Deus modelou o homem...” (Gn 2,7) 943

Em 1902, Honorina de Abreu, aos 20 anos de idade, abandonou os salões da

belle époque carioca: “Estávamos no baile”, relatou sua prima Zizi Souza Leão; “De

repente Honorina quis voltar para casa. Algo de sobrenatural, estou convencida,

passou-se em sua alma. Não aceitou mais nenhum convite. [...] Rompeu com o mundo

[...] Ela deve ter visto ou ouvido alguma coisa do céu”.944 A ruptura foi descrita pela

própria Madre Maria José, mais de uma década depois: Eu conheci alguma coisa do que o mundo em sua inexperiência da

verdadeira felicidade chama prazer, gozo, alegria, e louvo infinitos milhões de vezes a Misericórdia Divina que em sua predileção gratuita para comigo não me deixou conhecer mais; entretanto, eu digo, mil vezes mais feliz fui chorando meus pecados com tanta dor, que o coração quase se me partia, do que nos concertos, nos teatros, nos passeios, nessas diversas vaidades que enleiam o espírito, mas não lhe dão verdadeira felicidade.945

A atitude vivenciada por Honorina, nominada pelo imaginário católico como

“conversão” (sentido recorrente tanto ao ideal contemplativo quanto à teologia da

Neocristantade), pressupunha um paradigma de verdade única, reconfigurador da

interioridade por um ato de adesão da vontade.946 Sem limitar-se a uma experiência

pontual, a conversão deveria desdobrar-se em uma “vocação”, atualização da cesura

primeira em uma trajetória biográfica, que reconhecia os limites humanos e a

plenitude divina, de maneira concomitante à parcial elisão dessas diferenças: “Ah!

943 As citações deste capítulo foram retiradas do livro do Gênesis, capítulos 1 e 2, que contêm duas narrativas distintas da criação do ser humano, promovidas, respectivamente, pelas tradições sacerdotal e javista. A primeira dessas versões enfatiza a semelhança da pessoa humana com o Criador (Gn 1,26), enquanto a segunda destaca a fragilidade da criatura (Gn 2,7), a culminar no “pecado”. Os dois relatos se entrecruzam na figura de “Adão”, ser que, em afinidade com o apregoado pelo ideal contemplativo, precisa morrer a si mesmo para participar da existência do “novo homem”, reconhecido pelo cristianismo em Jesus Cristo, cf. O Pentateuco. In: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1989. 944 Relato de Zizi de Souza Leão, citado em carta de Ruth Pedreira de Mello, à Irmã Maria do Carmo de Cristo Rei. Ver também GALLIAN, Dante Marcello. Madre Maria José de Jesus no Caminho da Perfeição. São Paulo: Paulus, 1997. p. 83. 945 Carta 22, a Capistrano de Abreu, 23 out. 1917. 946 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Paris: Gallimard, 1982. p. 404: “Enfin la conversion, qui présuppose le paradigme occidental d’une vérité unique et qui pratique les changements de lieu (ou d’appartenance) comme la manière de se tourner davantage dans ‘la’(ou ‘sa’) verité [...]”.

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Minha Belinha, quanto devo a esta Mãe! Quando desejo ser boa, minha filha, e sou

tão ruim. Peça a Ela que me converta” .947

Grande parte das missivas da Madre delineava-se, assim, como um “relato de

conversão”,948 escrita que, fundamentada no princípio de semelhança à matriz de

verdade professada, norteava a constituição de si. Tornar-se “pessoa” cristã consistia,

então, em reportar-se a uma Imagem previamente considerada como modelar – Deus;

afinal, segundo o imaginário católico, o humano, em sua criação, foi dotado não apenas

de “matéria”, mas também de “forma”, similar à divina: “Esforça-te por fazer bem tua

meditação, teu exame, rezar com fervor o Ofício Divino, assistir com devoção à santa

Missa, receber teu Jesus na sagrada Comunhão com um amor sempre novo, cumprir

perfeitamente tua Regra, teus santos votos, imitando assim nosso Divino Modelo do

qual seus próprios inimigos diziam como se lê no Evangelho: ‘Fez tudo bem feito’ [...]. 949

Ao descrever as tentativas de autoconfiguração a tal exemplaridade, o epistolário

de Madre Maria José acresceu-lhes um viés de gênero, instituindo, com isto, um

paradigma feminino de ser humano, que tinha em Maria, a Virgem-mãe, uma figura

privilegiada950: “A carmelita é ‘irmã de Nossa Senhora’, deve imitá-la, sem

constrangimentos nem hipocrisia, como uma rosinha é semelhante a uma rosa

linda”.951 Outras mulheres foram também citadas pelas cartas da Madre, sobretudo as

mais diretamente ligadas ao ideal contemplativo e à espiritualidade do Carmelo

Descalço, como santa Teresinha952: “Minha filhinha, completas hoje a idade com que a

nossa Teresinha, já santa, foi presa da Água Divina. Coloco de um modo especial teus 947 Carta 1100, à Irmã Vicentina, antes 20 ago. 1953. Observa-se, no epistolário da Madre, a insistência em uma conversão jamais concluída, cf. Carta 21, a Adriano de Abreu, 16 out. 1917: “Quanto me arrependo de não ter sido melhor, de não ter aproveitado melhor o tempo, de não ter buscado infundir no coração de meus irmãos o conhecimento e o amor de Deus [...]”; Carta 1164, a Matilde de Abreu, 24 abr. 1954: “Em 10 de janeiro completei 43 anos de Carmelo. Que misericórdia, meu Deus, para comigo, tão ruim! Peça minha irmãzinha, que ao menos nos últimos dias de vida, me converta”. 948 GEFFRÉ, Claude. Le non-lieu de la théologie chez Michel de Certeau. In: Michel de Certeau ou la Différence Chrétienne. Paris: Du Cerf. 1991. p. 178: “Autrement dit, l’ecriture croyante doit manifester une conversion, un retournement qui est la trace d’une origine toujours évanescente […] Cet évenement […] fait parler et agir, il engendre d’autres écritures encore, tout en restant lui-même inobjectivable […]”. 949 Carta 18, à Irmã Vicentina, 22 jan. 1917. Cf. também Carta 357, à Irmã Marina, 20 jan. 1934: “Nosso modelo é Jesus. Seja Ele, com Maria, nossa força, nossa luz, nossa vida, nosso céu na Terra”. 950 Cf. capítulo 3, p. 115-116. 951 Carta 1426, à Madre Maria Evangelista da Assunção, do Carmelo da Santíssima Trindade, 19 mar. 1957. 952 Outros modelos de santidade feminina, vinculadas às espacialidades laicas, também foram citadas pela Madre no intuito de serem imitadas, cf. Carta 255, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 8 jan. 1931: “Continue, minha santa irmãzinha, a imitar uma santa Isabel e tantas outras nobres figuras da nossa Mãe a Igreja, que se prezaram mais de servas dos pobres do que de rainhas do mundo”.

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24 anos sob a proteção dessa Irmãzinha amada. Procura imitá-la bem durante este

ano, e Jesus e Maria te ajudarão para seres uma santinha como ela foi, consumada na

caridade e na humildade”.953

Mas a semelhança ao divino – projeto de santidade –, longe de consistir em uma

qualidade estática, não prescindiria da mutabilidade inerente ao ato de conversão: a

percepção da existência de si, indissociável da busca por completude e eternidade,

conduziria o humano a tender (a “converter-se”) a seu Criador,954 da mesma maneira

que, segundo o pensamento agostiniano, o Verbo voltara-se para o Pai, no Espírito.955 E

ao empreender voluntariamente essa conversão, o humano viabilizaria, por parte de

Deus, uma nova criação: Agora nada mais lhe falta, nada mais tem a fazer senão abandonar-se,

entregar-se, deixar-se possuir e transformar por Jesus. Ele é o ‘Remodelador’ que tem de fazer uma nova criação na florzinha: tirar-lhe a beleza natural que tem, a forma, a cor, o perfume que lhe são próprios e possuí-los, mudá-los, substituí-los pela sua beleza, pelas suas feições divinas. [...] Abra-se bem ao Sol Divino. Deixe-se iluminar, transfigurar.956

Esta dinâmica ontológico-existencial adquiriu uma dimensão estético-semântica

mediante a noção de imitatio que, desdobrada da mimesis grega957, veio a ser difundida

a partir do final do medievo958:

953 Carta 79, à Irmã Maria Vicentina, 2 jun. 1922. 954 BESANÇON, Alain. L’Image Interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme. Paris: Gallimard, 1994. p. 193: “L’âme est image par sa capacité de connaître Dieu. Dieu la crée en deux moments ontologiques. Au premier, l’âme est caractérisée par son absence de détermination et de forme. C’est le stade de la materia spiritualis ou de l’informitas. Mais, en tant qu’esprit est capable de connaissance, l’âme est unifiée par un mouvement de conversion vers Dieu, en vertu duquel elle reçoit sa forme et accède à la connaissance de Dieu et de soi. C’est le stade de la formatio”. Cf. também KRISTEVA, Julia. O Gênio Feminino: a vida, a loucura, as palavras. Tomo I: Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 45: “[…] a formulação agostiniana que Arendt explora até em A vida do espírito é tributária dessa experiência do amor que nasce ao mesmo tempo que a vontade e a interioridade do homem. Ela tende para o Ser (tendere esse) e, dessa tensão, a criatura se constitui ‘mais uma vez após ter sido criada pelo Criador”. 955 GILSON, Etienne. La Philosophie au Moyen Age. 2a. ed. Paris: Payot, 1952. p. 131. 956 Carta 383, à Irmã Marina, 29 jan. 29 jan. 1935. Cf. também Carta 1328, à Irmã Maria Antônia de Santa Teresa, 22 mar. 1957: “Jesus convida sua alma a começar nova vida; vida de semelhança com Ele e com Nossa Senhora”. 957 O termo grego mimesis foi utilizado por Platão, na República e no Timeu, para indicar a condição do ente perante as Ideáis puras; tal concepção, para ele, desqualificava a poesia e a arte, limitadas ao domínio das aparências. Aristóteles retomou o termo, compreendendo-o, na Poética, como ato estético recriador da realidade, que era então abstraída em tipos diferenciados, autonomizados da dinâmica social; assim, a tragédia consistiria na imitação das qualidades humanas, enquanto a comédia evidenciaria os defeitos do homem. Cf. Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura. Lisboa/São Paulo: Verbo, 1999. ABBAGNANO, Nicola. Op. Cit. Verbete “Imitação”. 958 No Humanismo, a imitatio reportou-se à padronização de modelos apropriados da Antigüidade, num processo perpassado por querelas: enquanto os ciceronianos relacionavam o estudo dos antigos à revelação de um estilo pessoal, os agostinianos o subordinavam à utilidade para a fé. LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário: razão e imaginação no Ocidente. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984. p. 26.

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V.C. só poderia corresponder [aos benefícios de Deus] transformando-se,

por assim dizer, em Maria: amando com seu Coração, assimilando suas virtudes,

apropriando-se de sua gratidão, de sua fidelidade, de seu louvor. Esta deve ser a

norma de sua existência, minha filha, na vida ativa e na vida contemplativa: sempre

a serva, a escrava do Senhor; sempre a alma extasiada entoando o Magnificat que

não deve ter fim! Neste Carmelo, viva como a Virgenzinha Maria viveu no

Templo.959

Todavia, ao ser incorporada pelo imaginário católico do período (sobretudo pela

devotio moderna,960 com destaque à obra Imitação de Cristo961), e a seguir legitimada

pela reforma tridentina (que endossou uma homilética e uma catequese embasadas na

retórica dos exempla), a imitatio respaldou-se em critérios distintos daqueles portados

pela filosofia antiga – enquanto a mimesis incluía o potencial criativo da realidade, o

novo passível de advir, a “imitação” cristã associou esta emergência à reafirmação de

uma verdade unívoca – um gesto específico de conversão.962 E foi sob tais premissas

que a imitatio veio a ser conhecida e apregoada por Madre Maria José, como consta na

derradeira missiva por ela enviada ao pai, Capistrano: “Sua alma é uma faiscazinha que

anda apartada do foco imenso da Luz Divina: unindo-se a Ela, virá a participar do

esplendor e do brilho da mesma Divina Luz. É assim, meu pai: só em Deus somos belos,

grandes, felizes, estamos no nosso Centro”.963 Ademais, em sua correspondência, a

Madre vinculava a imitatio à faculdade visual (em detrimento do tátil e do auditivo964),

delineando-a sob a ótica do espelhamento da Alteridade965:

959 Carta 292, à Irmã Marina, 15 jun. 1932. 960 Cf. capítulo 2, p. 76. 961 A autoria desta obra, composta no começo do século XV, ainda é desconhecida, sendo a versão mais aceita sua atribuição a Thomas de Kempis, cônego agostiniano. A Imitação de Cristo é um livro de prática de vida espiritual, não consistindo quer em uma sistematização doutrinal, quer em um diário ou autobiografia (pois nele a experiência individual é bastante velada). É formada por quatro textos distintos, redigidos com intervalos de tempo, não se tratando de uma obra dividida em quatro partes. Cf. Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique... Paris: Beauchesne, 1937-1985. Verbete “Imitation de Jésus-Christ (Livre)”. A leitura desta obra foi bastante recomendada por Madre Maria José de Jesus, conforme, por exemplo, Carta 399, a Adriano de Abreu, 16 ago. 1935 : “Meu Adriano, porque não vem conversar um pouco comigo sobre estes desenganos? Ao menos medite todos os dias sobre um capítulo da Imitação de Cristo[...]”. 962 LIMA, Luiz Costa. Op. Cit. p. 32. 963 Carta 175, a Capistrano de Abreu, 2 ago. 1927. 964 CERTEAU, Michel de. Op. Cit. p. 120. 965 LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: ZIZEK, Slavoj. Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 98; CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 191.

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Jesus Ressuscitado, minha Irmãzinha ternamente amada, é um espelho em que V.C. pode ver a si mesma, como muito bem sabe: sua formosura, seu resplendor, suas gloriosas chagas, a alegria de seu divino rosto, tudo lhe está dizendo minha Irmã, que a dor de uma hora é o princípio da felicidade que sempre dura, o abatimento momentâneo é a origem da glória que não tem fim. V.C. é membro do Corpo místico de Jesus Cristo, e como é semelhante a Ele! Hoje é semelhante a seu Corpo doloroso na Paixão: chagado, despedaçado, cuspido, desconjuntado, imagem da dor e da abjeção; amanhã será semelhante a seu Corpo glorioso, cheia de luz, de formosura e de gozo na Ressurreição.966

Esta compreensão da imitatio por Madre Maria José apresentava-se altamente

favorável aos postulados de uma Igreja da Neocristandade, devido à ratificação da

ordem social-religiosa por ela propiciada.967 Entretanto, o epistolário da Madre também

sugere que a noção tridentina de imitatio foi por ela parcialmente resignificada no

processo de formulação do ideal contemplativo. Ao apropriar-se do pensamento

agostiniano968 (que atribuía a perfeição do Modelo à prerrogativa divina), a Madre não

deixava de vislumbrar o vazio simbólico constitutivo do humano;969 dessa maneira,

mais do que “cópia” de um cosmos hierárquico pré-existente, a imitatio apresentava-se,

para a Madre, como uma recomposição da Imagem indissociável de seu negativo (como

uma película fotográfica, onde a figura é vislumbrada em seu anverso),970 apontando

para a incessante permeabilidade entre similitudes e diferenças.971 Neste sentido,

escrevendo ao pai após a morte prematura de Fernando (apelidado “Abril”), um dos

966 Carta 87, à Sóror Ana, 8 abr. 1923. 967 LIMA, Luiz Costa. Op. Cit. p. 43. 968 Cf. capítulo 1, p. 25. 969 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 391: “L‘image protège fictivement, d’un manque déjà connu qui lui donne précisément son importance. Lieu à la fois protecteur et témoin du non-lieu [...]”. 970 KRISTEVA, Julia. La Révolution de la Langage Poétique. Paris: Du Seuil, 1974. p. 57:“La mimesis serait précisément la construction d’un objet non pas vrai mais vraisemblable dans la mesure où il est posé comme tel (donc séparé, noté quioque non dénoté), mais en dépendance interne d’un sujet de l’énonciation [...]”. Grifos da autora, que em nota afirma: “On a beaucoup insisté dernièrement sur le fait que la mimesis n’est pas une imitation de l’objet, mas une reproduction du trajet de l’enonciation […]”. 971 Retoma-se o pensamento de LIMA, Luiz Costa. Mímeses e Modernidade. 2a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 95-96, para quem a abordagem da imitatio pela teoria literária ateve-se ao âmbito de negatividade, como em Adorno (que afirmara ser a arte o único recurso possível contra o enfeitiçamento da sociedade de consumo), ou em Julia Kristeva (que encontrara na estrutura do poético a condição exemplar de seu revolucionarismo). Em concordância ao autor, considera-se que “[...] a tradição da negatividade encontra um modus vivendi com a sociedade que nega e que, ao mesmo tempo, a impulsiona [...]” (Ibid. p. 121); o viés do negativo, portanto, não se resume a elemento contestatório do imaginário social, mas com ele articula-se de forma tensional. Em contrapartida, esta pesquisa não se fundamenta no critério de funcionalidade (pragmático ou científico) explicitado por Costa Lima, embora não o desconsidere: “[...] não podemos nos contentar em descrever o poético da modernidade em termos de negatividade [...] Seu exame nos mostrará como a produção poética ou pela maneira como é recebida ou como passa a ser realizada se tornou funcional” (Ibid. p. 121); no ideal contemplativo, a dimensão estética, sem autonomizar-se das representações sociais (ou à concepção de verdade a elas associada), assume como operatória sua relativização; ela é desviante, sem tornar-se corruptora ou revolucionária, cf. nota 61 deste capítulo.

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filhos de Capistrano, recentemente falecido, Madre Maria José relatava sua dificuldade,

perante a inexorabilidade da morte, em “conformar-se” (fazer-se semelhante) à Vontade

divina, ao mesmo tempo em que buscava “abandonar-se” (identificar-se) a ela: Quatro meses... Parece um sonho. Ainda não me pude acostumar à

idéia que meu irmãozinho querido não é mais deste mundo; antes cada vez me sinto mais ferida e dolorida. Coitadinho! Vivia tão feliz, tão descuidado! Domingo chorei muito na Missa lembrando-me de meu Abrilzinho. Quando saí, ia pelo corredor ladeado de janelas, e estava tão iluminado o sol, o dia tão fresco e bonito, que senti um primeiro movimento de prazer; mas lembrei-me logo de Abril e não pude conter as lágrimas. E pensei: não, nunca mais poderá haver alegria para mim neste mundo...

[...] Lembrei-me então que já tinha deixado tudo por Deus, que havia renunciado a tudo; assim deve ser mesmo; mais nenhuma consolação na terra, Deus só pra sempre, no tempo e na eternidade.972

A ambigüidade implícita a esta noção de imitatio, oscilante entre o objetivável e

o lacunar, entre a verdade e o desconhecimento, era veiculada na correspondência de

Madre Maria José através da composição de inúmeras “personagens”, tão variadas

quanto as possibilidades de constituição do sujeito em relação à divindade.973 Essas

figuras, dotadas de significado (simbólico) e potência afetiva (semiótica), mas

despojadas de corpo, eram dispostas no texto como um “núcleo permutativo”,

possibilitando a transformação do humano a partir de uma referência (plural) à Imagem.

Seu emprego foi viabilizado pelo dogma trinitário do Deus cristão (que articula a

multiplicidade na Unidade do Ser)974 e pela dimensão analógica atribuída ao cosmos

(tornado um repertório quase inesgotável de figurações, com base na doutrina da

encarnação do Verbo): “Com efeito, vemos o nosso Deus feito Homem, por nosso amor,

feito nosso Irmão, semelhante a nós [...] ”; 975 por isso, “O Pai na alma de V.C. vê mais

seu Filho do que V.C. mesma”.976

Assim, nas cartas de Madre Maria José, as remissões a Deus eram expressas por

figuras de animais (cabrito, cordeiro, águia, leão...977), que se encadeavam com

972 Carta 40, a Capistrano de Abreu, 25 fev. 1919. 973 KRISTEVA, Julia. La Révolution du Langage Poétique. Op. Cit. p. 316. 974 BESANÇON, Alain. Op. Cit. p. 201: “Le monde d’Augustin est une image qui se fonde non pas simplement sur l’Un, mais sur l’Un et Trois – c’est-à-dire sur les relations transcendantes des Personnes divines entre elles”. 975 Carta 182, a Adriano de Abreu, 28 dez. 1927. 976 Carta 1610, à Irmã Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, s.d. 977 Como exemplos, Carta 41, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, s.d.: “Ele é comparado nos Sagrados Cânticos ao cabrito montês: é muito ágil e veloz, num estante atravessa os montes e galga as colinas...”; Carta 73, à Sóror Ana, 18 ago. 1921: “[...] penso que já estarão no Céu seguindo por toda a parte o Cordeiro Imaculado e cantando o cântico das virgens”; Carta 111, à Sóror Josefina, 30 set. 1924: “V.C. também, minha irmãzinha, está à espera da Águia Divina que há de tomá-la [...]”;Carta 720, à Madre Inês do Coração de Maria, 21 jan. 1946: “é [...] leão de Judá”.

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imagens orgânicas (corpo, coração, cabeça...978) e cosmológicas (sol, luz,

oceano...979); identidades afetivas (pai e mãe, criança, esposo, amado, amigo...980)

mesclavam-se a papéis sociais (rei, mestre, sacerdote, pastor e até ladrão981);

elementos culturais (cidade celestial982) somavam-se a teológicos (Crucificado e

Ressuscitado983). Tal proliferação de sentido era ainda mais ampliada quando as

figuras substantivas que designavam a divindade tornavam-se adjetivadas (“Esposo

de sangue”, “Sol amado”, “doce hóspede da alma” e “luz dos corações”...984),

formulando-se, assim, uma escrita antológica, composta por citações justapostas, em

incessante fluidez.

Toda essa figuração do divino pelas personagens suscitava, em concomitância,

uma reconfiguração da interioridade humana. A autonomia do agente da escrita, já

esvaziada frente à autoridade do leitor e do próprio texto (revestido por uma conotação

978 Como exemplos, Carta 87, à Sóror Ana, 8 abr. 1923: “V.C. é membro do Corpo Místico de Jesus Cristo [...]”; Carta 184, à Irmã Marina, 29 jan. 1928: “Do Coração de Jesus... Sim, minha filhinha, V.C. será [...]”; Carta 360, à Irmã Marina, 24 jan. 1934: “Ele a Cabeça [...]”. 979 Como exemplos, Carta 352, à Irmã Marina, 21 out. 1933: “O papel da jardineira é orientar a florzinha para o Sol Divino”; Carta 175, a Capistrano de Abreu, 2 ago. 1927: “Sua alma é uma faiscazinha que anda apartada do foco imenso da Luz Divina [...]”; Carta 175, a Capistrano de Abreu, 2 ago. 1927: “Lembrei-me também que a sua alma [...] lançada no Oceano sem termos que é Deus, será, de certo modo, tão grande como esse mesmo Oceano”. 980 Como exemplos, Carta 528, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 24 abr. 1941: “Ele é bom, é a

mesma bondade: é Pai, é Mãe, Esposo, é o Fiel e Verdadeiro, como diz o Apocalipse”; Carta 18, Irmã

Vicentina, 22 jan. 1917: “Dou-te como modelo o Menino Jesus em Nazaré crescendo em idade, em

sabedoria e em graça diante de Deus e dos homens [...]”; Carta 12, à Irmã Vicentina, dez. 1913:

“Todas as manhãs, teu Divino Espozinho vem visitar-te [...]”;Carta 226, à Irmã Marina, 1929: “Um

dia o teu Amado levar-te-á para junto de Si [...]”; Carta 971, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 3 set.

1950: “Sim, porque duvidar do Divino Amigo não é possível [...]”.

981 Como exemplos, Carta 35, à Irmã Vicentina,2 jun. 1918: “[...] faz anos a pequenina Rainha esposa do grande Rei [...]”;Carta 888, à Irmã Marina, 1949: “Amemos, minha filha, esse incomparável Mestre [...]”;Carta 1610, à Irmã Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, s.d.: “E se Jesus está na sua alma, sendo Ele o único Sacerdote e Sacrificador e a única Hóstia [...]”;Carta 147, a D. Sebastião Leme, 18 abr. 1926: “Jesus, o Bom Pastor [...]”.Carta 10, à Irmã Vicentina, provavelmente após jul. 1913: “Sua mãezinha fica rezando, rezando, rezando, para que o ‘Ladrão Divino’ furte o seu cachinho de uva e o absorva inteiramente [...]”. 982 Carta 360, à Irmã Marina, 24 jan. 1934: “Sim, porque esse edifício, essa cidade celestial é Jesus [...]”. 983 Como exemplos, Carta 13, à Irmã Vicentina, após dez. 1913: “Imita teu Jesus, minha filhinha. Sê esposa crucificada de Jesus crucificado [...]”; Carta 145, à Sóror Ana, 11 abr. 1926: “A paz que Jesus Ressuscitado deu aos seus Apóstolos esteja com V.C., minha Irmãzinha [...]”. 984 Como exemplos: Carta 321, à Irmã Marina, 1932: “Lembre-se que escolheu um Esposo de sangue, que deixa a esposa sem um beijo de amor [...]”;Carta 260, à Irmã Marina [provavelmente], 6 mar. 1931:“[...] contemplar o seu Sol amado [...]”; Carta 519, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 5 fev. 1941.

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sagrada e institucional985), tornava-se ainda mais diluída por sua correlação, de forma

subordinada, à iconografia divina evocada no epistolário.986 Neste processo, o “eu”, sem

desaparecer totalmente, não se consubstanciava como uma identidade (uma tópica

localizável no discurso), alterando-se de acordo com as imagens da transcendência.

Assim, ao referir-se a Jesus Cristo como “pastor”, a Madre percebia-se como uma

“ovelha”; ao vislumbrá-lo como um “edifício celestial”, a Madre supunha-se uma das

“pedras”...987: “Jesus, o Bom Pastor, torne cada vez mais a V. Excia. Revma. uma

perfeita imagem de seu Divino Coração e o conserve por muitos anos ao amor das suas

humildes ovelhinhas do Carmelo”.988 Mas a clivagem da divindade em tantas

personagens acabava por provocar uma fragmentação no sujeito, ele também repartido

em variantes quase inesgotáveis: Jesus Menino quer que sejas uma rosa tão linda, que faças o encanto de seu

Coração. Quer que tuas folhas sejam as boas obras, tuas pétalas as virtudes, teu perfume o santo amor. Mas não quer só de ti a formosura da rosa: quer também a pureza do lírio, o fervor do cravo, a humildade da violeta, a constância da sempre-viva, a simplicidade do jasmim, a modéstia da magnólia, a generosidade do crisântemo, o perfume da Angélica, a amabilidade da margarida, a oração da flor-de-maracujá, o silêncio da dormideira, a prudência da papoula, a singeleza da Artemísia, o recolhimento da tulipa, a inocência do miosótis, a serenidade da Emília, a mortificação da flor-de-baile, o zelo do heliotrópio, a obediência da azálea, a docilidade da madressilva, a pobreza da esponja, a candura da camélia, o desapego do nenúfar, a regularidade da dália, a união com Deus da parasita, a perfeição do amor-perfeito, a fidelidade da perpétua, a caridade fraterna da hortênsia, o fiel amor do girassol, a mansidão da acácia, a paciência da flor-de-cera, a longanimidade da dracena, a fortaleza da vitória-régia, o pudor da gardênia, a doçura e a suavidade do manacá.989

O epistolário de Madre Maria José, portanto, conferia à pessoa uma subjetividade

caleidoscópica, repleta de mutações e superposições: nele, a conversão à

alteridade/autoridade divina era promovida a partir da dinâmica diferenciação-

multiplicação.990 Nesta perspectiva, a própria Madre recebeu como nome religioso

uma tríade - “Maria José de Jesus” 991 -, escolhido por sugestão de sua primeira

mestra de noviças, Irmã Inês do Sagrado Coração de Jesus, em homenagem à mãe

985 Conforme capítulo 4, p. 139-141. 986 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 108: “Ou melhor, a obsessão constante de Foucault é o tema do duplo. Mas o duplo nunca é uma projeção do interior, é, ao contrário, uma interiorização do lado de fora. Não é um desdobramento do Um, é uma reduplicação do Outro. Não é uma reprodução do Mesmo, é uma repetição do Diferente. Não é a emanação de um EU, é a instauração da imanência de um sempre-outro ou de um Não eu.” 987 Carta 360, à Irmã Marina, 24 jan. 1934. 988 Carta 147, a D. Sebastião Leme, 18 abr. 1926. 989 Carta 12, à Irmã Vicentina, dez. 1913. 990 KRISTEVA, Julia. La Révolution du Langage Poétique. Op. Cit. p. 320; 332. 991 Id. A palavra, o diálogo, o romance. Semiótica do Romance. 2a. ed. Lisboa: Arcádia, 1978. p. 82: “A partir desse anonimato, desse zero, onde o autor se situa, o ele da personagem vai nascer. Num estágio mais tardio, tornar-se-á o nome próprio”.

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falecida.992 Tal nominação, curiosamente, não deixava de retomar um antigo sonho

de Capistrano, o de “[...] poder ver Honorina desenvolvendo ao máximo suas

qualidades e dons intelectuais, literários, artísticos993 e transformar-se em uma

versão aprimorada da mãe, a quem associava à imagem da mulher ideal”.994 A

Madre, contudo, após o ingresso no Convento, resignificou o nome materno, visando

constituir-se em uma efígie viva da Sagrada Família;995 esforçando-se para fazer-se

corpo desta nominação, Madre Maria José a dotava de valor performativo. Esta era,

inclusive, a lógica inerente à recepção de um epíteto sacral: ele introduzia uma

filiação de sentido, que substituía a linhagem biológica e sintetizava um projeto

religioso-existencial; desta forma, na ocasião em que Irmã Marina [então chamada

Irmã Maria Electa] concluía seu noviciado, preparando-se para proferir seus votos,

Madre Maria José escreveu-lhe uma carta na qual afirmava: “Minha filhinha, seu

nome é um programa, é um hino de amor e de ação de graças. Maria... Toda de

Nossa Senhora, toda semelhante a Ela... Maria. Alma apaixonada, contemplativa,

acorrentada pelo amor aos pés do Mestre, quer Ele lhe fale amoroso, quer penda,

agonizante, da Cruz”.996 Em afinidade com a noção de imitatio concernente ao ideal

992 Maria José Castro Fonseca, filha do capitão-de-mar-e-guerra Joaquim Inácio Fonseca e Adélia Josefina de Castro Fonseca, foi aluna particular de Capistrano de Abreu, iniciando-se entre eles um romance, a contragosto dos pais da jovem. Em carta a Assis Brasil, 29 mar. 1881, Capistrano afirmou: “Caso-me; provavelmente já estarei casado, quando você receber esta carta, porque é quinta-feira, 30, que se deve realizar o ato. Circunstâncias especiais obrigaram-se a precipitar o casamento, porque se não o realizássemos esta semana, encontraríamos da parte de meu sogro uma resistência de que V. não poderia formar a mais ligeira idéia”, cf. Correspondência de Capistrano de Abreu. V. I. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1954. p. 75. Maria José faleceu em 1891, poucos dias depois do nascimento de Matilde, quinta filha do casal, “atacada de violenta febre puerperal”. SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Memorial da Vida de Madre Maria José de Jesus, carmelita descalça. Rio de Janeiro: Convento de Santa Teresa, 1968. p. 35. 993 Maria José foi descrita como uma mulher bonita, “alegre e comunicativa”, que “compartilhava dos gostos do marido”, auxiliando-o com cópias e traduções; a Madre, inclusive, recordava-se “de umas folhas traduzidas do alemão e algumas sobre costumes e lendas de nossos índios – que ela escreveu – para algum trabalho, artigo, ou livro de meu pai”, cf. MONTEIRO, Honorina. O avô que eu conheci. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro, v. 221, out. dez. 1953. p 188 e Carta 688, a Adriano de Abreu, 16 out. 1945. 994 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 52, o que conduziu à seguinte interpretação do historiador: “Perceptivelmente, há aqui uma tendência à construção de uma imagem exemplar, quase mística da mãe de Honorina, algo muito próprio das narrativas hagiográficas: os dons e virtudes dos pais são como que a preparação e antecipação dos dons e virtudes dos filhos que serão santos”. Ibid. p. 32 995 Madre Maria José também consagrou sua sobrinha Honorina de Abreu (novamente uma reprodução do nome) aos três personagens da Sagrada Família, cf. Carta 15, a Adriano de Abreu, 6 mai. 1914: “Espero que Honorina se tenha batizado no domingo, dia 3. Como era festa do Patrocínio de N. Pai São José, consagrei-a especialmente a Jesus, Maria, José”. 996 Carta 184, à Irmã Marina, 29 jan. 1928. Neste mesmo sentido, a biografia de Madre Benedicta, fundadora do Carmelo São José, do Rio de Janeiro, descreve que a religiosa, “Ao entrar no Carmelo, alimentara vago desejo de trocar de nome para manifestar melhor ao mundo sua total mudança de vida. Rememorando entre nós essa passagem, disse: - Reconheci meu erro e senti-me feliz de continuar a ser Benedicta. Nosso Senhor me mostrou o fundo de amor próprio e a secreta vaidade que nisso se

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contemplativo, o nome adotado tinha como característica não ser autorizado pela

realidade vigente (a Madre não era nem Jesus, nem Maria, nem José); reconhecendo

previamente os vazios do humano, ele suscitava um novo modo de ser e permitia a

elaboração de um discurso.

Mas tal pluralidade de sentidos, a configurar o sujeito mediante o trânsito de

diferentes personagens, não poderia estender-se de maneira infinita, pois estava contida

nos códigos culturais ou nos usos ideológicos historicamente vigentes.997 Assim, Madre

Maria José, ao referir-se a Cristo, selecionava preferencialmente aquelas imagens que,

constantes das Sagradas Escrituras ou de textos canônicos,998 estivessem associadas à

realeza, no intuito de afirmar a soberania divina (logo, da Igreja) na sociedade

brasileira;999 a Madre também conferiu grande importância à figura do Sagrado Coração

de Jesus, de procedência franco-italiana, bastante distinta da tradição lusitana do bom

Jesus sofredor, a qual não estava diretamente associada à instituição eclesial.1000 Mesmo

a escolha do nome religioso da Madre era decorrente de uma historicidade: nas

primeiras décadas do século XX, foram criadas no Brasil as “Ligas de Jesus, Maria e

José”, voltadas para a difusão da doutrina social da Igreja nos meios operários,

juntamente à defesa de um protótipo de família exemplar.1001 A disposição das

personagens na correspondência, portanto, se introduzia “desvios” no sistema teológico,

devido à sua ambigüidade semântica, jamais rompia com as premissas estipuladas pelo

Magistério eclesiástico; pelo contrário, ao expressar possíveis variantes, ela reforçava,

ocultavam.”. Ao nome de batismo, Benedicta, foi acrescentado, como nome religioso “de Jesus, Maria, José”. Cf. CARMELO SÃO JOSÉ. Madre Benedicta de Jesus, Maria, José. Rio de Janeiro: Laemmert, 1952. p. 37. Ver também Carta 535, à Irmã Maria Henriqueta de Jesus Hóstia, 7 set. 1941: “Procure, minha filhinha, ser uma Carmelita toda celeste! [...] O exterior é como as aparências da Hóstia; mas o interior de sua alma, de sua vida, seja só Deus. Assim realizará seu nome e será de Jesus–Hóstia e Hóstia de Jesus”. 997 KRISTEVA, Julia. La Révolucion de le Langage Poétique. Op. Cit. p. 233. Segundo LIMA, Luiz Costa. Mímeses e Modernidade. Op. Cit. p. 95, a mimesis, embora sem reduzir-se às representações sociais e à historicidade, também não é delas dissociada, havendo “um regime de proximidade e diferença relative entre mimesis e representação social”. 998 As imagens selecionadas por Madre Maria José foram retiradas, principalmente, de parábolas e alegorias; ambas procedem por analogia, mas “[…] enquanto a parábola visa sobretudo a vontade do ouvinte, na alegoria o ensinamento dirige-se de preferência à sua vontade”, cf. AUNEAU, J. et al. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos. 2a. ed. São Paulo: Paulinas, 1985. cf. p. 35. Observa-se, porém, que tais figuras adquirem uma nova configuração literária ao serem inseridas no texto epistolar. 999 BEOZZO, José Oscar. A Igreja frente aos Estados liberais. In: DUSSEL, Henrique. (org). Historia Liberationis: 500 anos da história da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 215. 1000 AZZI, Riolando. História da teologia no Brasil. Considerações Históricas. In: História da Teologia na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1981. p. 35. 1001 Id. A participação da mulher na vida da Igreja do Brasil (1870-1920). In: MARCÍLIO, Maria Luíza. A Mulher Pobre na História da Igreja Latino-Americana. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 106; Id. História da teologia no Brasil. Op. Cit. p. 34.

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ainda que indiretamente, a lógica significante do campo religioso em sua versão

institucional.1002

Entretanto, ao assinar suas missivas com o nome recebido no Convento, Madre

Maria José o associava a um segundo qualificativo, acréscimo que poderia caracterizar-

se por um perfil funcional, delimitando uma condição sócio-religiosa e uma relação de

poder, tal como “priora”, “irmã” (no sentido de “consagrada”), mas também “serva” ou

“súdita”.1003 O uso de tais termos por uma mesma pessoa, ainda que em textos

diferentes, ou mesmo em uma única carta, só se tornou possível (isto é, apenas “fazia

sentido”) porque, ao serem entrecruzadas ou subentendidas, tais figurações remetiam à

negatividade postulada pelo ideal contemplativo, suscitando uma desqualificação do

sujeito da escrita – assim, para ser “priora”, era preciso reconhecer-se “serva”. Mais do

que uma dicotomia, tal prática significante retomava a ambigüidade da imitatio

contemplativa: “[...] eu não merecia ser filha da última entre vós, entretanto Nosso

Senhor, em seus insondáveis caminhos me fez mãe de todas [...]”.1004

A maior parte dos qualificativos empregados pela Madre portava, todavia, um

caráter afetivo: ela se auto-denominava “mãe”, “filha”, “irmã” (no sentido de “parente

próximo”), “amiga”.1005 Esses registros, já constantes do imaginário teresiano e

católico, foram reforçados pelos matizes de uma cultura ocidental vigente a partir de

meados do século XIX, dotada de grande sensibilidade emotiva; perpassados, portanto,

por uma simbólica passional, neles confluíam um padrão de autoridade e o traçado de

uma sujeição: assim, ao dizer-se “mãe”, a Madre legitimava sua liderança, em paralelo 1002 KRISTEVA, Julia. Semiótica do Romance. Op. Cit. p. 46: “[...] o romance [...] não será mais que uma inscrição de desvios (de surpresas) que não destróem a certeza do circuito temático vida-morte que fecha o conjunto. O texto fixa o seu eixo temático: será a questão de um jogo entre duas oposições exclusivas, cuja nominação mudará (vício-virtude, amor-ódio, louvor-crítica [...]), mas cujo eixo sémico será sempre o mesmo (positivo-negativo). Elas irão alternar num percurso que nada limita, salvo a pressuposição inicial do terceiro excluído, isto é, da inevitável escolha de um ou do outro (‘ou’) exclusivo dos termos. [Nesta pesquisa, a vontade configurando-se à Verdade]. No ideologema romanesco (como no ideologema do signo), a irredutibilidade dos termos opostos só é admitida na medida em que o espaço vazio da ruptura que os separa é guarnecido por combinações semânticas ambíguas. A oposição inicialmente reconhecida, e que provoca o trajeto romanesco, vê-se imediatamente recalcada num antes para ceder, num agora, a uma rede de preenchimentos, a um encadeamento de desvios [...] Deste modo, o romance absorve a duplicidade (o dialogismo) da cena carnavalesca, mas submete-se à univocidade (ao monologismo) da disjunção simbólica [...]”. 1003 Cf., por exemplo, Carta 45, ao cardeal Joaquim Arcoverde, 18 set. 1919: “[…] humilde filha e súdita em J.C., Maria José de Jesus, Priora”. 1004 Carta 28, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 22 fev. 1918. Observa-se que muitos qualificativos “funcionais” empregados por Madre Maria José portavam uma semântica estamental que, apropriada do vocabulário circulante no período medieval (época da proeminência do poder eclesiástico e do pensamento teológico), mantinha uma analogia aos estados de vida cristã postulados pela Igreja (ordenada/leiga; celibatária/matrimonial; masculina/feminina). 1005 Cf., por exemplo, Carta 15, a Adriano de Abreu, 6 mai. 1914; Carta 25, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 19 fev. 1918; Carta 40, à Capistrano de Abreu, 25 fev. 1919.

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ao reconhecimento de suas obrigações perante às necessidades de suas “filhas” e à

obediência devida a seus superiores. Imbuída destas concepções, Madre Maria José,

ainda em seu primeiro priorado, escreveu às monjas do Convento de Santa Teresa: E sabeis, minhas filhas, que coisa é ser mãe? Ontem no Evangelho da Missa

vimos a Cananéia chorando atrás de Jesus, repelida, desprezada, sem desistir até alcançar saúde para sua filha [...] Sim, uma Mãe sofre tudo que sofre cada um de seus filhos. Por isso, minhas filhas, tende paciência com essa vossa pobre e impertinente mãezinha quando anda atrás de vós, importuna quanto a Cananéia atrás de Jesus [...] Que me move? Não é o desejo de alcançar saúde para uma filha muito amada? Quantas vezes brado eu a Jesus com lágrimas: ‘Tende piedade de mim, Senhor, porque minha filha não guarda silêncio; não tem caridade com sua irmã; não sabe sofrer uma palavrinha, uma repreensão, um incômodo; fala alto na recreação, na cozinha, não guarda a modéstia da vista, não é humilde etc. 1006

Este bilhete, redigido durante o retiro particular da Madre, em 1918, ajuda a

elucidar a dinâmica concernente à nominação religiosa, pela qual até mesmo os

qualificativos honrosos atuavam de forma depreciativa, promovendo um “esvaziamento

de si” sob a forma de “caridade” oblativa.1007 Além disso, em várias ocasiões, esses

vocábulos foram empregados por Madre Maria José no diminutivo, ou foram

acompanhados por adjetivos desclassificantes, como “pobre”, “indigna”...1008 Mais

ainda, as desqualificações poderiam ocorrer de forma dúplice ou tríplice, com a Madre

intitulando-se, como na missiva supra citada, “sua pobre e impertinente mãezinha”.

O uso de tais depreciativos não se reduzia, porém, ao exercício de um poder, ou

à incorporação subjetiva da subordinação. Sutilmente, ao diminuir-se, quase aniquilar-

se, Madre Maria José defrontava-se com os seus possíveis “negativos” sem neles fixar-

se; ela não se confundia com o “nada” expresso pela linguagem justamente por, ao

mencioná-lo (movimento por ela compreendido como “humildade”), vir a articulá-lo a

uma outra referência, esta positivada; neste trânsito, Madre Maria José aproximava-se

do Modelo divino, cuja potencialidade abarcava extremos surpreendentes.

E, na culminância da estetização do nome para tradução do ideal contemplativo,

Madre Maria José combinava, em um só qualificativo, funções e afetos, se auto-

proclamando, por exemplo, “humilde filha”, “filha muito amiga”, “filha grata e amiga”,

“filha velha”...1009 Tecendo sua subjetividade a partir do negativo (pois identificar-se

como “filha” implicaria em uma subordinação implícita, ainda que passível de inúmeras

1006 Carta 28, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 22 fev. 1918. 1007 Cf. capítulo 3, p. 128-129. 1008 Como exemplo, Carta 42, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 2 abr. 1919; Carta 63, a Capistrano de Abreu, 3 jan. 1921. 1009 Como exemplo, Carta 40, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, s.d.; Carta 158, a Capistrano de Abreu, 31 ago, 1926; Carta, 366, a D. Sebastião Leme, 15 mai. 1934; Carta 245, à Madre Cecília, do Carmelo de Fortaleza, 2 ago. 1930.

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relativizações), a Madre permitia-se ocupar lugares simbólicos que, sob o âmbito das

relações sociais, jamais poderiam ser galgados por ela, transgredindo interditos pela

movência das palavras, como procedeu ao intitular-se, em uma das suas últimas cartas

ao pai, Capistrano, sua “filha amante”.1010

Assim, em sua diversidade, essa gama de personagens portada pela correspondência

de Madre Maria José expressava o movimento tensional (mais do que contraditório)

do ideal contemplativo: evidenciando o embate entre a verdade (divina) e a vontade

(humana), entre a Presença e a falta, tal figuração instituía uma linguagem que não se

ordenava exclusivamente como “representação” (ou, menos ainda, como “enigma”);

oscilante, ela não se articulava a um sentido específico,1011 por vezes oculto nas

entrelinhas de um discurso, como um “segredo”.1012 Assim, a menção de tais

personagens pela escrita epistolar de Madre Maria José consistiu numa prática

retórica de “transposição” 1013 ou “conversão”,1014 que entrecruzava a condensação

metafórica1015 e o deslocamento metonímico,1016 numa operacionalidade descrita por

Michel de Certeau como metaphorai, demarcações (limites) transitórias de sentido,

sempre mutáveis;1017 tais fragmentos, ordenados em séries lexicais, eram

indissociáveis de lacunas jamais preenchidas, numa jactante e ambivalente narrativa,

tecida por imagens e entrecortadas por não-ditos.1018

Tal composição da textualidade epistolar tornava a configuração de si em

remissão à divindade (isto é, o processo de subjetivação) um ato instaurador de um

1010 Carta 123, a Capistrano de Abreu, 24 fev. 1925, em que Madre Maria José, ao despedir-se de seu pai, Capistrano, afirma-lhe: “Sempre a seu lado em espírito estará a filha amante, Honorina”. 1011 Os postulados epistemológicos da representação foram apresentados em CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, s.d. p. 21. 1012 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 135. 1013 KRISTEVA, Julia. La Révolution du Langage Poétique. Op. Cit. p. 59-60: “Le terme d’inter-textualité désigne cette transposition d’un (ou de plusiers) système de signes en un autre; mais puisque ce terme a été souvent entendu dans le sens banal de ‘critique des sources’ d’un texte, nous lui préférerons celui de transposition […]”. Grifos da autora, em itálico no original. 1014 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 82. 1015 KRISTEVA, Julia. La Révolution du Langage Poétique. Op. Cit. p. 233. 1016 Ibid. p. 232. Michel de Certeau elucida como, para Freud, as operações que organizam a representação, articulando-a no sistema psíquico, são de tipo retórico (metáforas, metonímias, sinédoques…): o modelo é retirado da literatura, mas Freud lhe atribui uma pertinência/um uso histórico e as reconhece como manifestações relativas ao “outro”, cf. CERTEAU, Michel de. Histoire et Psychanalyse. 2a. ed. Paris: Gallimard, 2002. p. 116. 1017 Id. A Invenção do Cotidiano. p. 215-216. 1018 Id. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 135: “É uma passagem para um outro gênero – metabasis eis allo genos, como diz Aristóteles. [...] a metáfora ‘se coloca no ponto preciso onde o sentido produz o não sentido’ [Lacan], ela seria, com efeito, um movimento pelo qual um significante é substituído pelo outro: ‘uma palavra pela outra’, mas também o próprio artifício que subverte a palavra”.

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“estilo”,1019 produção significante que priorizava o critério estético da beleza às

assertivas cognitivas da verdade: “É preciso, minha irmãzinha, que sofra as

conseqüências de sua vocação para as alturas e deixe-se lavrar pelo Divino Artista,

que deseja completar na Senhora uma obra-prima”.1020 Porém, imbuídas pela mesma

lógica movente das personagens, as premissas de beleza e verdade se interconectavam,

sendo tidas como propriedades transcendentais concomitantes ao Ser1021: “[...] procura,

meu irmão [...] procura e acharás o manancial de todo bem, de toda formosura, de

toda suavidade [...]”.1022 Beleza era então compreendida, no âmbito do ideal

contemplativo, como uma alteridade introjetada na interioridade, uma estranheza

tornada própria – culminância da imitatio, que da diferenciação-multiplicidade, atingia a

singularização. E era sob esta perspectiva que a Madre recomendava uma “faceirice

espiritual”: Minha filhinha muito do meu coração, o aniversário de sua eleição para

esposa de Jesus no Carmelo seja sempre uma data em que toda a sua alma se derreta de amor e de reconhecimento. [...] Seja, minha florzinha, muito faceira espiritualmente. Para ser linda, para cativar o Coração de Jesus, é preciso ser um espelho de formosura, é preciso ser uma Maria, que é a cópia mais perfeita de Jesus; é preciso saturar-se d’Ele; assimilar Seu espírito, Suas virtudes; comungar a sua alma, a sua vida, ser toda d’Ele, toda para Ele.1023

5.2- “...insuflou em suas narinas um hálito de vida” (Gn 2,7)

Ao elaborar sua correspondência como um “relato de conversão”, Madre Maria

José não desconhecia os padrões de uma escrita religiosa feminina, cuja legitimidade

era respaldada pelo duplo viés de autoridade a que remetiam, divina e eclesial.1024

Todavia, as cartas da Madre não são facilmente circunscritas em uma topologia

1019 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 179-180: “[...] O estilo especifica ‘uma estrutura lingüística que manifesta no plano simbólico (...) a maneira de ser no mundo fundamental de um homem’ [Greimas]. Conota um singular [...]”. Cf. também KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. Op. Cit. p. 80: “A junção de dois sistemas de signos relativiza o texto. É o efeito da estilização que estabelece uma distância em relação à palavra de outrem, contrariamente à imitação (Bakhtine pensa antes na repetição), que toma o imitado (o repetido) a sério, o torna seu, apropriando-se dele sem o relativizar”. 1020 Carta 762, a Laurita Pessoa Raja Gabaglia, 24 jun. 1946. 1021 ECO, Umberto. Op. Cit. p. 34; 39-40.Ver também CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 83; DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 240. 1022 Carta 15, a Adriano de Abreu, 6 mai. 1914. 1023 Carta 197, à Irmã Marina, s.d. 1024 No transcorrer dos séculos XVII a XIX, com maior concentração no século XVIII, a escrita religiosa feminina desdobrou-se em três grupos temáticos: um, menos numeroso, esteve associado às conquistas e às guerras; o segundo, copioso, era o dos relatos conventuais, incluindo o discurso epistolar; o terceiro, especificamente literário, mesclava textos em prosa e poesia. Cf. VALDÉS, Adriana. El espacio literário de la mujer en la Colonia. In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. V. 1. São Paulo: Memorial; Campinas: Ed. da Unicamp. 1993. p. 470. A correspondência de Madre Maria José aproximava-se do segundo grupo elencado pela autora, tendo como modelos o epistolário dos santos da Ordem do Carmelo Descalço, destacadamente santa Teresa e santa Teresinha.

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classificatória desses discursos. Sob o prisma da literatura sacra, seu epistolário difere

dos aforismos e “máximas espirituais”,1025 nos quais o conteúdo da mensagem circula

de forma autônoma à particularidade de cada leitor.1026 Suas missivas também não se

apresentam como uma autobiografia devota, gênero estimulado pelos diretores de

consciência principalmente entre os séculos XVI e XVIII, uma vez que não foi uma

referência ao “eu” que dotou de sentido o seu discurso. Além disso, elas não são, em

sentido estrito, “cartas espirituais”,1027 pois a Madre entremeava, em tais textos,

temáticas profanas e religiosas, com questões que iam do dinheiro à oração. Portadora

de tais contornos, a correspondência de Madre Maria José parece ter sido inspirada no

feitio redacional adotado por Teresa d’Ávila, cujas cartas, traduzidas pela Madre, foram

também por ela comentadas: [...] [Teresa d’Ávila] escreve não por gosto ou passatempo, mas para tratar sempre

dos interesses de seu Senhor, no que há de mais ingente e no que há de mais

pequenino. [...] E é de ver essa alma tão sublime, que nem um instante, ainda no

meio do maior reboliço, perde de vista a seu Deus, e vive a consumir-se nos ardores

do amor seráfico, acudir a todas as necessidades humanas, sem distinguir entre o

amor de Deus e o amor do próximo. Alegra-se com uns, chora com outros; anima,

aconselha, encaminha e guia mesmo em negócios temporais; pede um auxílio ou

emprego para um; solicita uma carta de recomendação para outro; trata de vocações

religiosas e de casamentos; de compras, vendas, empréstimos, modo de aplicar o

dinheiro, doenças, remédios... em suma, de tudo quanto ocorre na vida.1028

1025 A exemplo das “máximas espirituais” compostas por JOÃO DA CRUZ, são. In: Obras Completas. 4a. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. 1026 CERTEAU, Michel de. Préface. In: JEAN DE LA CROIX, saint. Les Dits de Lumière et d’Amour. Paris: José Corti, s.d. p. 15. 1027 “Cartas espirituais” é uma expressão que recobre duas modalidades diferentes de escrita, mas ambas privilegiando, de forma exclusiva, a dimensão do sagrado e da moral. Uma primeira versão refere-se a uma correspondência endereçada a uma pessoa real no processo de direção espiritual; já a segunda tornou-se um gênero literário difundido nos séculos XVII e XVIII, através do qual o autor utiliza o modelo epistolar, destinando o texto a um correspondente fictício, para expor uma doutrina. Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique…T. IX. p. 730. Op. Cit. 1028 JESUS, Maria José de, madre. Introdução. In: Obras Completas de Santa Teresa. Tomo VI. Cartas. Petrópolis: Vozes, 1960. p. 7-8. Mais ainda, assevera a Madre, “É de notar a despreocupação total de escrever bem e de parecer santa. Diz o que pensa – a verdade que tanto ama, - jamais faltando à prudência, à caridade ou a qualquer virtude, mas com santa liberdade, como quem já vive mais no céu do que na terra.”.

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Ainda dentro do campo religioso, uma outra modalidade de escrita com a qual o

epistolário de Madre Maria José manteve certa proximidade foi o discurso místico,

desenvolvido no Ocidente no decorrer dos séculos XIII e XVII, com base na mesma

operação dialógica que caracteriza o ideal contemplativo. A relativa adequação entre as

duas composições textuais foi facilitada pela confluência de sentidos entre os termos

“contemplativo” e “espiritual” que, desde o final da Idade Média eram correntemente

utilizados para designar a mística.1029

Um importante fator de convergência entre a escrita epistolar de Madre Maria

José e o discurso místico, produções separadas por vários séculos, foi a recorrência a

uma concepção similar de imitatio, que situava a ação criadora do humano não em suas

capacidades inatas mas, paradoxalmente, na sua constitutiva falta originária. Neste

sentido, o discurso místico e, posteriormente, a correspondência da Madre afastaram-se

de uma perspectiva filosófica que enfatizava a potência racional do indivíduo (assim

diferenciado do restante da criação, a qual passava a ser vista como objeto de seu saber

e de sua praxis). Desconfiando dessa pretensa autonomia do ser, tais escritas o

compreendiam a partir de uma carência e o remetiam a uma ação dialógica1030: “Meu

pai nossa dor é tão grande que só em Deus pode achar remédio [...] Deus é sempre a

Verdade, a Beleza, a Bondade, o Amor Misericordioso, o único Objeto que nos pode

plenamente satisfazer”.1031 Tal concepção de imitatio, fundamentalmente

intercambiante, foi um dos recursos (embora não o hegemônico) conferidores de sentido

a um mundo que, em paralelo à perda de seu referencial sagrado (decorrente do

esfacelamento da síntese teocêntrica medieval),1032 via emergir a problemática da

subjetivação, inaugural ao pensamento moderno.1033

Destacando este caráter relacional, promovido através do ato comunicativo, a

Madre apresentava suas cartas como uma “conversa” – “Minhas filhas, vamos matar

nossas mútuas saudades conversando juntas um bocadinho” 1034 - ou um “colóquio”:

1029 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 128. A partir do século XVI, o termo “místico” passou a substituir “espiritual”, designando um efeito de leitura bíblica; mais do que a uma interpretação teológica dos desejos divinos inscritos nos eventos, a mística reenvia a uma “maneira de falar” acerca do sagrado, baseada numa contraposição de termos opostos (coincidatio oppositurum), que constituiu, em seu “inter-dito”, uma nova possibilidade de significação. Ibid. p. 131. 1030 Ver capítulo 1. p. 28. 1031 Carta 43, a Capistrano de Abreu, 3 jun. 1919. 1032 Ibid. p. 9-10. 1033 CERTEAU, Michel. La Faiblesse de Croire. Paris: Seuil, 1987. p. 35-36. Cf. também capítulo 2, p. 72-73. 1034 Carta 26, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 20 fev. 1918. Ver também Carta 65, à Sóror Ana, s.d.: “[...] tenho a maior consolação em conversar um pouco com V.C. [...]”; Carta 198, a Adriano

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“Escolho para o nosso colóquio sob o olhar de Jesus um dia que deve ser bem caro ao

seu coração: a festa da Impressão das Chagas de São Francisco [...]”.1035 O termo

“conversar”, aliás, era de uso constante no vocabulário místico espanhol, sendo análogo

ao latim colloquium, que na espiritualidade medieval designava, ao mesmo tempo, a

prece e a troca oral.1036

Mas o discurso místico, principalmente a partir do século XVIII, passou a ser

visto com descrédito e mesmo alguma suspeita, diminuindo também a produção

vinculada à chamada “teologia mística”, em desdobramento às condenações do

jansenismo e do quietismo,1037 juntamente com a difusão, na França, do

nacionalismo galicano e das campanhas secularizadoras encetadas pelas ideologias

liberais-burguesas.1038 Alteravam-se paulatinamente os princípios de religiosidade,

que passavam a estar concentrados na prática das virtudes, com proeminência à

caridade, ao invés do ato contemplativo.1039 Alguns elementos do discurso místico

relativos à constituição do sujeito, todavia, sobreviveram na cultura ocidental,

embora de forma fragmentária e inseridos em novas disciplinas acadêmicas, como a

psicologia, a etnologia e a história, que constituem-se, segundo Michel de Certeau,

em “heterologias” ou “ciências do outro” .1040 Os “restos” da escrita mística também

foram incorporados pela literatura, sobretudo a de cunho romântico, que pressupunha

a complexidade interna do sujeito, o “eu dividido”.1041

Madre Maria José, contudo, embora vivesse em uma época na qual este processo

de laicização fora ainda mais aprofundado, inseria-se em um imaginário

prioritariamente religioso, o que a impedia de constituir seu epistolário inspirada nas

novas diretrizes da ciência e da literatura, tidas como não condizentes aos postulados da de Abreu, 20 jun. 1928: “Já conversamos um pouquinho, a fartar só no Céu [...]”; Carta 1123, à Madre do Carmelo da Sant. Trindade, 31 out. 1953: “Com V.R., nunca teriam fim minhas conversas. Sinto-me tão bem, a seu lado.” 1035 Carta 161, 17 set. 1926, à Soror Ana. 1036 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 216-217. 1037 Cf. capítulo 3, p. 131. 1038 GAUCHER, Guy. Thérèse et Jean. Paris: Du Cerf, 1996. p. 18.

1039 Esta concepção teve como um de seus grandes expoentes são Francisco de Sales, com a obra Introduction à la Vie Dévote, de 1609, seguido por Aphonse-Marie de Liguori, que articulava oração mental (já entendida como “meditação” ou oração ativa) e virtudes cristãs, em seu livro Théologie Morale, de 1748. LE BRUN, Jacques. Le grande siècle de la spiritualité française et ses lendemains. In: Histoire spirituelle de la France. Paris: Beauchesne, 1964. 1040 Certeau abordou, em inúmeros artigos, as similitudes entre os discursos místico e historiográfico, ambos envoltos na relação que a sociedade mantém com seus mortos. Cf. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Op. Cit. 1041 DUARTE, Luiz Fernando Dias. Sujeito, soberano, assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental moderna. In: ARÁN, Márcia (org.). Soberanias. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. p. 185-186.

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fé. Mas a formulação de sua correspondência em uma parcial retomada do discurso

místico só lhe foi possível porque, a partir da segunda metade do oitocentos, a

interiorização foi requalificada no espaço católico, tornando-se um instrumental

utilizado pela Igreja em seu embate com o modernismo. A afirmação do primado do

espiritual frente aos poderes políticos e ao conhecimento científico combinava a crítica

ao racionalismo com o apelo a uma religiosidade de cunho afetivo e privatista (como a

devoção mariana)1042 ou que resvalasse para um sentimento trágico da vida (como a

piedade reparadora do Sagrado Coração de Jesus).1043 Assim, enquanto as ordens

contemplativas ampliavam o número de suas fundações, a reflexão teológica voltava-se

para a temática da “união mística”, associando-a à prática ascética, mais conforme às

concepções hegemônicas da Neoescolástica.1044 Neste sentido, o arcebispo do Rio de

Janeiro, D. Sebastião Leme, em seu discurso no encerramento da Semana Social, em

outubro de 1928, contrapunha a inquietação dos tempos modernos à atuação, vista como

muito mais operante, da prática contemplativa: Talvez não seria uma lágrima de Santa Teresa ou um jejum do Cura d’Ars

que teriam coberto, na balança eterna, as iniqüidades de seu tempo? Quem sabe se não foi uma das rosas de Santa Teresinha quando, ainda viva em Lisieux, desfolhava sobre o Crucifixo, quem sabe se não foi uma dessas rosas que retardou o desabar da conflagração européia que em nuvens negras se acastelava no horizonte desde os últimos instantes do século passado? Quem sabe se não foi a prece silenciosa e ardente de uma das nossas carmelitas... Que salvou o Brasil nas incertezas e amarguras de tempos que não vão longe?1045

A partir de então, a despeito da terminologia mística continuar em desuso, a

“contemplação”, revestida pela denominação de “espiritualidade”,1046 foi novamente

valorizada no imaginário católico. É preciso observar, todavia, que por ser

1042 Cf. capítulo 3, p. 115-116. 1043 CORBAIN, Alain. O segredo do indivíduo. In: PERROT, Michelle (org.). História da vida Privada. T. 4. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p. 475-480. 1044 A retomada da mística nos estudos teológicos, associada à ascética, após quase um século de silenciamento, foi marcada pela obra de A. Meynard. Traité de la Vie Intériure, petite somme de théologie ascétique et mystique d’après l’esprit et les príncipes de saint Thomas d’Aquin, de 1885. Destaca-se também a fundação da Revue d’Ascétique et Mystique, em 1920. Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique. Op. Cit. Verbete “Mystique”. 1045 Texto manuscrito. Arquivo particular do Cardeal Leme. Apud: Ir. SANTO ROSÁRIO, Regina do, irmã. O Cardeal Leme. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. p. 196-197. 1046 Oriunda o latim spiritualitas, a palavra demarcava a oposição ao “carnal”; nos séculos XVII e XVIII, era geralmente empregada no plural, para indicar os diferentes modos de vida cristã associados a Ordens e congregações religiosas. No século XX, adquiriu uma conotação histórica, mantendo o vínculo à trajetória das instituições religiosas. Foi inovadora, neste sentido, a produção do jesuíta Joseph de Guibert, que ministrou desde 1922, na Universidade Gregoriana de Roma, a disciplina “teologia espiritual”, tendo publicado Études de Théologie Mystique, em 1930, Leçons de Théologie Spirituelle, em 1943, e La Spiritualité de la Compagnie de Jésus. Esquisse historique, livro póstumo, de 1953. LE BRUN, Jacques. Michel de Certeau, historien de la spiritualité. Recherches de Science Religieuse, t. 91/4, oct.-dec. 2003. p. 536.

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constituída em uma conjuntura histórico-cultural diversa – a Restauração Católica -,

a correspondência de Madre Maria José portava uma diferença fulcral em relação aos

textos místicos: nela, a alteridade/autoridade desdobrava-se numa configuração

identitária, isto é, o sujeito que emergia na dinâmica do ato comunicativo dava lugar

(sem desaparecer) a um indivíduo existente a posteriori à interlocução,1047 que

capitalizava e conferia visibilidade estratégica às representações sócio-eclesiais.1048

Isto permitia à Madre legitimar um estado religioso e uma tradição institucional nos

moldes afirmados pela doutrina e representados pela liturgia católica: “Peço ao

nosso Amor que o Hábito da minha filhinha seja um símbolo da verdade; que V.C.

seja ‘Carmelita’ na extensão da palavra. Carmelita – amor; C.[Carmelita] – zelo; C.

observância; C. – oração; C. – renúncia, penitência, desprezo de si mesma; C. – de

Maria, de Teresa, de João da Cruz, e, portanto, de Jesus, da Santíssima

Trindade”.1049 Já os textos místicos utilizavam a linguagem teológica, mas sem se

aterem às suas formulações dogmáticas: ao articularem termos contrários em uma

coincidatio oppositorum (como nas evocações sanjuanistas “noite luminosa” ou

“cruel e furiosa quietude”), eles rompiam a tradicional ontologia que associava uma

palavra a uma coisa, apontando persistentemente para um vazio de significação.1050

Desta maneira, enquanto a mística instituía um modus loquendi, significando o real

por relações de “similitudes dessemelhantes”,1051 o ideal contemplativo formulado

por Madre Maria José, ainda que integrando uma tal concepção de imitatio, a

empregava de maneira mais formalista, mais parelha aos cânones eclesiológicos. O

epistolário da Madre pode então ser aproximado da modalidade de “discurso

contemplativo”, definida por Julia Kristeva como uma estrutura fechada de

significação, ou ao menos rigidamente hierarquizante, onde a diferença, sendo

1047 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit. p. 250-251:“Cresce agora um novo rei: o sujeito individual, senhor inapreensível. [...] Sem dúvida, entre os atributos do Deus judeu-cristão, os seus herdeiros burgueses fazem uma triagem, o novo deus escreve, mas não fala; é autor, mas não se palpa nenhum corpo em uma interlocução.” 1048 CERTEAU, Michel de. Ibid. p. 253: “Mesmo deslocada [...] a enunciação não pode ser dissociada do sistema de enunciados.” 1049 Carta 429, à Irmã Marina, 29 jan. 1937. 1050 JULIA, Dominique. Une histoire en actes. In: GIARD, Luce (org.). Le Voyage Mystique, Michel de Certeau. Paris: Recherches de Science Religieuse, 1988. p. 108. 1051 CERTEAU, Michel de. L’Absent de l’Histoire. Paris: Mame, 1973. p. 63-64: “La plus petite unité du discourse se construit donc selon da loi qui organize le tout […] Elle est le lieu d’une tension que caractérise une expression de ‘saint Denys’: per dissimiles formations manifestation. C’est la manifestation d’autre chose, grace à des ‘formes dissemblables’ ou mieux, par des ‘similitudes dissemblables”.

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previamente reconhecida, era em seguida desvalorizada, para só então ser

incorporada, eliminando-se, portanto, sua potência transgressora.1052

Recomendo-lhe, minha filhinha, empregue-se só em dar-se toda a Deus e a N.

Sra. Isto é o positivo, o que tem valor, o que enche e ilumina uma vida, dilata os

horizontes, alarga o coração. O mesmo digo do conhecimento e amor de Deus como

Pai e criador; e o de nós mesmos como criaturas e principalmente filhos muito

amados. O lado negativo (pecados, fracassos, falta de gosto etc. etc.) só serve para

deprimir e até desesperar. Se V.C. conseguir mudar deste modo a orientação de sua

vida, N. Senhora cantará vitória.1053

Entendidas como “discurso contemplativo”, as cartas de Madre Maria José de

Jesus podem ser comparadas, em uma analogia invertida, com as narrativas de viagem.

Definidas pela Madre como “visitas” – “Graças a Deus posso escrever-lhe uma

palavrinha, pois fico muito triste quando não lhe posso fazer uma visitinha” 1054 - elas

se dirigiam ao outro, lugar do desconhecido, do diverso e até do excepcional, mas não

para registrar a diferença (que, por contraposição, poderia ratificar a identidade); seu

propósito, bastante distinto, era uniformizante – ela aspirava conduzir esse “outro” ao

espaço em que ela própria se encontrava, tornando-o um “mesmo”, como redigido em

sua derradeira carta ao pai: Acabo de saber que está doente e venho fazer-lhe uma visita, não menos

carinhosa e afetuosa por ser espiritual. Meu coração estará sempre a seu lado, e as

minhas preces circundarão continuamente o seu leito, unidas às de minhas Irmãs

queridas para as quais Você é sempre o ‘vovô’.

Depois que recebi a notícia, estava rezando por você no coro de baixo e só

me parecia ver a Jesus com os braços abertos, como um Pai de infinita ternura,

1052 KRISTEVA, Julia. La Révolution du Langage Poétique. Paris: Seuil, 1994. p. 91: “La contemplation, θεωρία chez Pythagore, serait um système signifiant qui recouvre des ‘genres’ aussi différents apparemment que les religions, la philosophie et sa déconstruction aidée par la psychanalyse [...] le plus et le moins s’interpénètrent comme les bouts d’une chaîne aimantée, et ferment un anneau qui na pas de dehors mais qui peut se disséquer indéfiniment, se creuser et s’approfondir, à jamais sans fond ni origine, éternel dans son retour, perpétuel dans sa boucle. [...] Comme si le rejet, ayant posé le réel, s’etait replié sur soi-même pour ne plus y toucher, mais pour s’attaquer à son (propre) corollaire – a’affirmatif, le ‘posant’. [...]”.

1053 Carta 1560, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 1054 Carta 119, à Sóror Ana, 2 set. 1924. A metáfora da correspondência como “visita” foi explicitamente empregada em 21 cartas, por Madre Maria José.

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esperando que você se fosse lançar sobre o seu Coração Divino. Lembrei-me

também que sua alma é uma gotinha de água que, isolada, tende a secar e

desaparecer mas, lançada no Oceano sem termos que é Deus, será, de um certo

modo, tão grande como esse mesmo Oceano.1055

A metaforização da carta como “visita” era promovida desde o final da Idade

Média,1056 o que a tornou portadora de uma polissemia de sentidos, entrecruzados ao

longo da temporalidade. Dessa maneira, Madre Maria José não desconhecia sua

vinculação a um padrão de civilidade, formulado no bojo de uma sociedade

aristocrática, na qual a escrita reforçava os vínculos de subordinação familiar e

social.1057 A simbologia da visita também foi empregada pela Madre com a acepção de

cuidados prestados aos doentes, numa mescla de atributos morais e devocionais.1058 A

ênfase dada por ela, contudo, recaiu sobre a dimensão propriamente teológica do termo,

que abarcava um duplo significado: “inspecionar” 1059 e “provar”, com intuito de

agraciar e punir.1060 “Visitar” estava assim associado a uma ética missionária,

implicando um deslocamento não necessariamente geográfico (inviável, frente aos

interditos da clausura), mas também imaginário. Redigir uma carta como “visita”

implicava na ampliação do alcance da Boa-Nova (da palavra do Outro) em um

movimento espiral – operação de alargamento infinito (repetição do mesmo), sem que

houvesse ruptura (introdução da diferença). Portanto, na redação de suas missivas,

Madre Maria José pensava em seus destinatários e desejava exercer sobre eles efeitos

1055 Carta 175, a Capistrano de Abreu, 2 ago. 1927. 1056 “Visiter par lettres, s’enquérir par lettres”. Dictionnaire Historique de l’Ancien Langue Française. Paris, H. Champion, 1882. 1057 “[...] designe ensuite l‘action d’aller voir qqn, par devoir social, politesse, etc., d’où les locutions rendre visite à qqn (déb. XVIIe.)”. REY, Alain (dir.) Dictionnaire Historique de la Langue Française. Paris: Dictionnaires De Robert, 1992. Cf. Carta 1301, 28 ago. 1956, à Sóror Josefina: “É com o maior carinho que venho fazer-lhe uma visita e festejá-la pelo seu aniversário”. 1058 Ibid.“[...] se rendre auprès des malades, des pauvres pour les reconforter, par dévotion”. Ibid. Cf. Carta 421, 12 out. 1936, à Sóror Ana:“Soubemos ontem pelo nosso caro Dr. Fonseca que V. C. continua passando mal, e venho fazer-lhe uma visitinha muito carinhosa e amiga [...]”. 1059 Ibid. “[...] se dit d’abord du religieux chargé d’aller inspecter les maisons d’un ordre. C’était aussi le nom de celui qui opérait des perquisitions dans une Maison, une région etc . pour contrôler”. Daí, por exemplo, as “visitas canônicas”, promovidas pelos bispos nas paróquias de suas dioceses, e “visitas ad limina”, obrigação assumida pelos bispos de apresentarem-se ao Papa a cada cinco anos. Cf. verbetes MATHON, G. et alii. Catholicisme: hier, aujourd’hui, demain. Dictionnaire. Paris: Librairie Létouzey et Ané, 1988. “Visita Ad limina”et “visite canonique ou pastorale”. 1060 REY, Alain. Op. Cit.: “Le verbe s’emploie d’abord en théologie en parlant de Dieu, et signifie submettre [les hommes] à une épreuve pour leur salut, leur donnes ses graces ou les punir”.

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deliberados – o ato da escrita, se conferia uma resposta e incitava a um diálogo, também

instaurava uma obrigação no leitor.

No decorrer desse processo, entretanto, a Madre se “perdia”. Sua escrita

epistolar, que advogava os postulados da ortodoxia católica, demarcando novas

espacialidades de sentido religioso numa sociedade que deixara de sê-lo, era

indissociável da erosão do seu corpo e, junto com ele, de sua subjetivação, numa morte

pronunciada. Como nas narrativas de ascensão mística, cada carta sua revelava uma dor,

um limite, um erro, um desejo, que era preciso deixar para trás, num esforço de

esvaziamento de si, rumo à união com o divino1061: O monte Calvário é o monte dos amantes, diz S. Francisco de Sales. É

nessa montanha da mirra e da dor, onde o amor desabrocha como no clima que lhe é

próprio, onde se olha o mundo de longe como num sonho, onde os sofrimentos da

Esposa se confundem com os sofrimentos do Esposo, é que visito a minha irmãzinha

[...].1062

5.3- “e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7)

O estado de santidade, tão almejado por Madre Maria José – ápice do ideal

contemplativo – foi a ela outorgado logo após sua morte. Esta figuração de sua

memória já se evidenciara, aliás, nas mensagens de condolências enviadas pelos

mosteiros teresianos:

Através de nossas lágrimas, erguendo ao Céu as vistas de fé, confiança e amor, estamos hoje vendo o aumento de glória de nossa Santa Madre [Teresa d’Ávila] (12 de março), no dia de sua canonização, com esta jóia de preço, que foi na terra esta verdadeira e santa Carmelita, N. Me. Maria José, agora nossa protetora e auxiliadora poderosa junto ao trono de Deus, junto à Mãe do Céu, a quem tanto soube e tão bem amar.1063

1061 CERTEAU, Michel de. Histoire et Psychanalyse. Op. Cit. p. 233: “On en aurait encore un exemple d’inspiration plus classique [...] avec la manière dont Jean de la Croix caractérise le principe […] organisant de bout em bout le voyage mystique. Le principe du mouvement c’est ‘ce qui excède’ (aquello que excede). Il ne joue pas comme une présence et sommation de tout qui manque. Au contraire, l’excès et l’insu d’un exister fait bord en chaque expérience comme en chaque connaissance. Tout étape relève de la non-identité du sujet à l‘etat dans lequel il se trouve.” 1062 Carta 108, 26 jul. 1924, à Sóror Josefina. 1063 Mensagem do Carmelo da Santíssima Trindade. In: Manifestação dos Carmelos com a Morte da Serva de Deus, in CCSDMII, V. 14, p. 140-152.

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Tônica similar perpassou os inúmeros pêsames remetidos por eclesiásticos, por

religiosas de outras congregações e por vários leigos. Além disso, tal imagem foi

veiculada em periódicos, como no artigo redigido por Manuel Bandeira: “Perdi uma

amiga na Terra, ganhei uma amiga no Céu: morreu à semana passada, no Carmelo de

Santa Teresa, Madre Maria José de Jesus. Era uma santa”.1064

A atribuição de santidade à Madre Maria José foi acompanhada pelo simbolismo

apropriado – o rito da morte confirmaria a sacralidade da vida. Assim, fenômenos não

explicáveis pela medicina, tais como flexibilidade dos membros,1065 eram narrados em

depoimentos e biografias, conforme expresso por Madre Maria da Conceição da Virgem

Dolorosa: [...] depois do seu falecimento [de Me. Maria José de Jesus], fui com a Madre Subpriora buscar o corpo, em companhia de Mons. Maximiano e de um funcionário amigo do Convento, às 8 horas da manhã [...]

Para descer do quarto, que ficava no 2o andar (e sendo o elevador pequeno), forçoso seria descermos por uma escadinha muito estreita e em formato de caracol. (O corpo teve de ser transportado numa colcha; nas curvas da escada, ficava todo dobrado).

Fazia um calor horrível àquele dia e receei que, dada a temperatura elevada, as horas já transcorridas desde o falecimento e a descida por aquela escadinha, o corpo exalasse mau odor e também soltasse secreções. Eu estava muito aflita pensando nesta possibilidade e chamei a superiora da Casa, suplicando-lhe que desse injeções em N. Madre falecida para que tal não acontecesse, pois seria uma dor imensa para as irmãs receberem o corpo da mãe querida já com início de putrefação. A superiora me olhou e, num tom de sinceridade e convicção, disse-me: ‘Irmã, não tenha receio, nada disso acontecerá... Esta irmã era uma santa!’ E, de fato, apesar dos inúmeros movimentos com o corpo ao longo do trajeto, feito em ambulância que sacudia tanto, a ponto de ser necessário segurar o caixão para o corpo não cair; apesar ainda de o corpo precisar ser transportado através dos 99 degraus da escada de nosso Convento, naturalmente com muitos solavancos, quando abrimos o caixão no Coro do Carmelo, lá estava o corpo de N. Mãe sem nenhuma secreção, sem mau cheiro, na mesma celeste placidez em que o encontramos às 8 horas da manhã (e já eram quase 15 horas!).1066

Com base nesses testemunhos e nos escritos de Madre Maria José, foi

oficialmente aberto, em 1989, o processo diocesano de canonização da religiosa,

encaminhado em 1992 à Congregação para as Causas dos Santos, no Vaticano.

Sintetizando a postura adotada pela Ordem, o historiador Dante Marcello Gallian afirma 1064 BANDEIRA, Manuel. Uma Santa. Diário do Comércio, Rio de Janeiro, 18 mar. 1959. p. 19. Em artigo que dava continuidade ao primeiro, Uma Santa II, publicado em 22 mar. 1959, Manuel Bandeira afirmava: “Capistrano, com todas as suas arestas, era um homem bom, e de primeira ordem. Com tão santa protetora, deve ter alcançado o Céu. E se o Céu existe mesmo, também eu tenho esperança de me salvar, porque se não tive as virtudes de Capistrando, tive como ele por mim a intercessão, as orações de sua filha”. Cf. Artigos publicados sobre Madre Maria José de Jesus em Jornais, Revistas e Livros. In: CCSDMII. V. 15. p. 19 e 20. Ver também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. p. 241. 1065 Esta simbologia perdurou na longa duração, estando presente na Idade Média européia e na sociedade colonial brasileira. ALGRANTI, Leila Mezan. A morte no Convento. In: Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Op. Cit. p. 294 1066 Depoimento de Me. Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, O.C.D., Convento de Santa Teresa, 1986.

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que: “[...] como se avaliou na época da morte, mais do que desqualificar a figura da

Madre, toda essa provação [sua doença e falecimento] não apenas incrementaria seu

mérito, ao ser vista como um meio de ‘purificação espiritual’, como também a

aproximaria de nossa atualidade, pois, nestes tempos tão marcados pelas depressões

psicológicas, cada vez mais comuns em homens e mulheres contemporâneos, Me. Maria

José de Jesus se apresentaria como modelo e intercessora das pessoas que padecem

desse mal”.1067

Tais atributos de santidade remetem a um modelo hagiográfico constituído no

medievo: embora os relatos biográficos acerca de Madre Maria José não mencionem

uma infância excepcional,1068 nem intervenções sobrenaturais (divinas ou demoníacas),

estes mesmos escritos realçam a “purificação espiritual” enfrentada pela Madre em seus

últimos anos, isolando-a de suas demais experiências religiosas e transformando-a em

recurso de intercessão junto a Deus.1069 Ademais, a crença na interferência da figura

sagrada no âmbito da realidade terrena perdurava no imaginário das monjas: quando

Madre Maria José incentivou as religiosas do Carmelo São José, de Petrópolis, a

divulgarem a biografia de uma de suas integrantes, falecida com fama de santidade, ela

afirmou à priora: “Vamos pedir a Jesus que honre com muitos milagres a sua Inês [Ir.

Inês do Coração de Jesus], pois é o que mais convence os censores, creio eu. Tenhamos

confiança”.1070

Mas a maior parte das narrativas sobre a santidade de Madre Maria José baseia-se

nos moldes hagiográficos da época moderna, delineados principalmente a partir de

1640, quando a valorização de uma provação ou virtude específica cedeu lugar à

exigência de um conjunto de qualidades, que também sobrepujavam a importância

dos milagres. Tal mudança favorecia os integrantes do Carmelo Descalço, assim

transformados em potenciais candidatos à canonização, pois o estilo de vida

1067 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 238. Grifos do autor, no original em itálico. 1068 Cf. listagem constante da Bibliografia desta tese, no tópico “Memoriais e autobiografias de carmelitas descalças”. 1069 Baseada na virtude vinculada a um fator intercessório, verifica-se que, até o século XVII, a hagiografia produzida sobre os santos do Carmelo, abrangendo também o grupo dos Descalços, atribuía a eles uma faculdade já concedida por Deus a seus predecessores, os profetas Elias e Eliseu: o poder de ler o futuro. O dom da clarividência era exercido não apenas por homens, como o padre Thibaut, mas também por religiosas como Irmã Margarida do Santo Sacramento, Irmã Madalena de São José e Irmã Maria da Encarnação, o que lhes conferia o estatuto de conselheiras de soberanas: as duas primeiras recebiam visitas de Maria de Médicis. SUBE, Éric. La sainteté carmélitaine, d’après la littérature hagiographique des XVII-XVIII siècles. HOURS, Bernard (org.). In: Carmes et Carmélites en France du XVIIe Siècle à nos Jours. Actes du Colloque de Lyon (25-26 septembre 1997). Paris: Du Cerf, 2001. p. 173-176. 1070 Carta 1159, à Madre Antonietta, do Carmelo de Petrópolis, 20 mar. 1954.

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teresiano aproximava-se bastante das representações virtuosas que, no período,

legitimavam uma sacralização de si: ele pautava-se na humildade (esvaziamento do

“eu”), seguindo-se a mortificação (atualização das penitências auto-promovidas pelos

eremitas do deserto), a pobreza e a castidade,1071 padrão também veementemente

defendido pela Madre em sua correspondência: “Entregue-se, minha filha, com a

maior confiança a Nosso Senhor. V.C. tem sido muito fiel a Ele na vida religiosa: é

obediente, humilde, boa, caridosa, mortificada, cumpridora de suas obrigações,

respeitosa com os Superiores e generosa. Tem sabido amar muito e dar-se

inteiramente. Disto lhe dou testemunho como Priora”.1072

Os novos parâmetros hagiográficos não excluíam, porém, representações anteriores,

esboçando-se, inclusive, um curioso paradoxo: estando a postulação de santidade já

submetida às exigências da crítica histórica, quanto mais rigorosos fossem os

controles para o reconhecimento de uma excepcionalidade, mais se multiplicava a

apresentação de evidências (as “provas”) relativas a ocorrências miraculosas ou a

virtudes “heróicas”.1073 Acresce-se que, ao formular o ideal contemplativo, Madre

Maria José entrecruzou todas essas premissas com aquela mais destacada por santa

Teresa – a vida de oração1074 – e, paralelamente, promoveu uma resignificação da

prática ascética, deslocando-a da vivência do martírio e associando-a aos pequenos

sacrifícios cotidianos,1075 tendência fortalecida com a edição de História de uma

Alma, da jovem carmelita de Lisieux: “Teresinha com o que sofreu e se sacrificou,

pelo amor e pela fidelidade nas mínimas coisas, chegou a uma tão alta santidade e a

um tão grande poder de intercessão, que qualquer alminha pode esperar ser santa

trilhando a vida comum, só com os sacrificiozinhos e os pequenos atos de virtude de

cada dia”.1076 Compunha-se, assim, um ideal de perfeição religiosa, que deveria ser

assumido em sua integralidade e radicalidade, conforme apregoado por Madre Maria

1071 SUBE, Éric. Op. Cit. p. 178-179. 1072 Cf. Carta 579, à Ir. Maria Luíza da Trindade, entre 26 ago. e 10 nov. 1943. Ver também Carta 357, 20 jan. 1934, à Irmã Marina: “Tantas luzes, tantas graças, tantos bons propósitos, mas tudo fica superficial, sem fruto, sem perseverança. [...] E por quê? Sempre a mesma coisa: a alma distraída, dividida [...], descuidada da humildade, da mortificação, da obediência, da virtude sólida, da vida só com Deus”; Carta 1131, à Irmã Maria de Lourdes, do Carmelo da Santíssima Trindade, provavelmente 7 nov. 1953: “Reze, minha filhinha; que eu preste para amar e ser humilde, e com isto me dou por contente”. 1073 AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. p. 643. 1074 Carta 1251, a Maria de Lourdes Figueiredo, 12 set. 1955: “Peço a Nossa boa Mãe do Carmo que a minha filhinha seja sempre Carmelita, isto é, toda de Jesus e Maria, alma de zelo e de oração, ardente e generosa na fé e no amor.” Ver capítulo 3, tópico 3.3. 1075 Cf. capítulo 3, p. 124. 1076 Carta 111, 30 set. 1924, à Sóror Josefina. Ver também capítulo 2, p. 84-85.

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José: “Minha filha, nossa vida é coisa muito séria. Abracemos a perfeição: Deus nos

pedirá contas da perfeição, não se contentará com algumas pequenas virtudes.” 1077

Mas a representação de santidade atribuída à Madre também incorporou um terceiro

viés hagiográfico, erigido em meados do século XIX, pelo qual não bastava o

desempenho da virtude, sendo necessária a sua introspecção. Foi neste sentido que, ao

redigir os manuscritos posteriormente compilados em livro, santa Teresinha não

somente os considerava como um testemunho pessoal do que chamava sua “pequena

doutrina”, como também percebia a si mesma como uma “pequena santa”.1078 Ora, o

cunho introspectivo era familiar à Madre Maria José, sendo profusamente realçado após

sua morte: “Mais do que a forma ou a aparência carmelitana, Me. Maria José de Jesus

queria que sua Comunidade incorporasse e vivesse com consciência e plenitude o

espírito do Carmelo, o espírito da ‘solidão no deserto’, do silêncio, da oração, da

contemplação”.1079

O conceito de santidade reputado à Madre Maria José não se limitou à sua trajetória

pessoal e íntima, abarcando também os poucos objetos por ela utilizados em seu

cotidiano, o que incluía o hábito religioso, as alpercatas, um terço... mas também os

seus muitos escritos. Tais artefatos afastavam-se de um recorte exclusivamente

biográfico – ou autoral – para revestirem-se de uma dimensão sacral, pela qual, mais do

que o nome próprio, importa o caráter modelar – a autoridade: eles indicam não “o que

se passou”, e sim o que é “exemplar”, que pode (ou não) ser acrescido pelo

“sobrenatural” (como o miraculoso, por exemplo).1080

No epistolário de Madre Maria José instaurava-se, portanto, uma ambigüidade: se o

discurso atinha-se à experiência historicamente vivida, seu funcionamento era

hagiográfico,1081 o que dotava a correspondência de uma função “relicária”. E foi neste

1077 Carta 357, 20 jan. 1943, à Irmã Marina. Ver também Carta 373, à Irmã Marina, 17 jul 1934:: “V.C., minha filhinha, tem tudo para ser uma perfeita Carmelita: é preciso ir sempre para adiante, porque na perfeição não há parar.”; Carta 440, a Matilde de Abreu, 12 ago. 1937: “Este ano não pude conversar muito com você. Queria dar-lhe uns conselhos sobre a sua perfeição. Em resumo é isto: procure cada dia tornar-se melhor em todos os pontos, por amor de Deus.” 1078 MAîTRE, Jacques. Op. Cit. p. 123. “Thérèse elle-même comprend qu’elle inaugure un nouveau modèle de sainteté [...] Bien d’autres paroles qu’elle prononce montrent que, elle se considère comme une sainte et qu’elle s’attend à être reconnue officiellement comme telle après sa morte.” 1079 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 184-185. 1080 CERTEAU, Michel de. Uma variante: a edificação hagio-gráfica. A Escrita da História. Op. cit. p. 257. 1081 Por funcionamento entende-se um “uso”, uma “operação”, ou uma “formalidade das práticas”, cf. CERTEAU, Michel de. A formalidade das práticas. A Escrita da História. Op. Cit. p. 152-153: “Os deslizamentos sócio-culturais que se operam nos séculos XVII e XVIII [...] parecem se manifestar, ao nível das práticas, por uma série de funcionamentos novos [...] O conteúdo das práticas não muda, mas

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sentido que se expressou Monsenhor Maximiano Leite, capelão do Convento de Santa

Teresa, anotando nas derradeiras cartas que havia recebido de Madre Maria José:

“Relíquia para o arquivo interno do Convento” 1082 e “Para o Arquivo Interno. Esta

carta recorda o último encontro da Madre Maria José comigo, Monsenhor”.1083 A

produção de novas relíquias, embora rara, não era de todo desconhecida nos Carmelos

femininos, mesmo no período da Neocristandade, quando a Igreja via com suspeição

qualquer evento da ordem do sagrado que surgisse em paralelo à hierarquia; a própria

Madre Maria José a menciona, em relação aos objetos que haviam pertencido à Irmã

Inês do Sagrado Coração de Jesus: “Quanto lhe agradeço, minha Madre caríssima, as

duas camisetas, que recebi como relíquia de nossa santa Mãezinha, pois se não foram

de seu uso, saíram de seu coração. Coitadinha! Tão doentinha, tão magoada, ainda se

lembrou de mim! [...] Deus lhes pague os retratos da Mãezinha incomparável”.1084 O

Convento de Santa Teresa, inclusive, possuía um acervo de relíquias: “Procuramos a

autêntica com cuidado, e foi trabalho muito fácil, porque há uns trinta anos o Revdo.

Pe. Nino Minela catalogou todas as nossas relíquias, colando num álbum próprio as

autênticas correspondentes, todas numeradas. Infelizmente não há relíquia nem

autêntica de Santa Inês”.1085

A função relicária, diferindo da imitatio que se entremeava aos discursos místicos e

mesmo daquela que integrava o ideal contemplativo, inseria-se em um sistema de

significação vinculado à estética tridentina, respaldando, por conseguinte, um

referencial de verdade tido como inquestionável.1086 Assim, ao considerar que “As

muda o que eu chamo de sua formalidade.” Grifos do autor. O funcionamento ou uso é uma prática coletiva, um “fenômeno social pelo qual um sistema de comunicação se manifesta de fato: remete a uma norma.”. Id. A Invenção do Cotidiano. Op. cit. p. 179. 1082 Carta 1447, a Monsenhor Maximiano da Silva Leite, 7 out. 1958. 1083 Carta 1463, a Monsenhor Maximiano da Silva Leite, 1 nov. 1958. 1084 Carta 900, à Madre do Carmelo S. José, Petrópolis, 20 mai. 1949. Ver também Carta 867, à Irmã Marina, entre 22 nov.-6 dez. 1948: “Ofereço-lhe uma medalhinha tocada no corpo de Ir. Inês e uma pétala benta de Santa Teresinha”; Carta 868, à Madre do Carmelo S. José, Petrópolis, 25 nov. 1948: “Em particular agradeço o retrato e a relíquia, mas, se não é pedir demais, desejaria que V. Rev. me mandasse um retratinho dela, cercada de lírios, dormindo o último sono na terra enquanto já devia estar vendo a face de Deus, junto da Mãe Divina. Comoveu-me profundamente. Foi assim mais ou menos, que a vi no locutório. Desejaria guardar o retrato material, assim como guardei na alma aquela visão celeste”; Carta 885, à Madre do Carmelo S. José, Petrópolis, 26 jan. 1949: “Agradeço a V.R. de coração as santas relíquias, sobretudo o retrato e a carta do nosso Serafim. Aquele retrato em que ela está abraçada a Nossa Senhora tem sobra demasiada no lado esquerdo do rosto. Seria tão bom se se pudesse retocar esse pequeno senão”; Carta 893, à Madre do Carmelo S. José, Petrópolis, 17 mar. 1949: “Envio as camisetas, pode aumentar quatro dedos no corpo e nas mangas. Relíquia da Mãezinha”. 1085 Carta 990, à Madre do Carmelo S. José, Petrópolis, 18 jun. 1951. 1086 A imitatio embasadora da função relicária era, portanto, distinta da concepção que significava o ideal contemplativo formulado por Madre Maria José, conforme interpretado neste capítulo, p. 202.

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cartas de nossa Madre Maria José eram para mim verdadeiros ‘Sacramentais’”,1087

Irmã Marina as vinculava a um “modo sacramental” 1088 de conferir inteligibilidade ao

real, fundamentado no princípio epistemológico da “transparência”, pelo qual um objeto

consistiria na expressão empírica (simbólica) de um sentido. A função relicária,

inclusive em seu formato textual, era, portanto, basilarmente epifânica (ela vinculava-se

ao visível,1089 tendo na eucaristia seu modelo mais elaborado) e performática (ela

suscitava uma adesão, um compromisso e um agir). No entrecruzamento dessas duas

operações, a função relicária então instaurava uma modalidade específica de autoridade,

que reforçava a unidade e a hierarquia da Igreja: ainda que a instituição eclesial não

fosse a única depositária da presença do divino no mundo, ela o era exemplarmente.1090

Tal critério interpretativo da realidade tornou-se culturalmente hegemônico na

Europa ocidental entre os séculos XIII e XVII, com a organização estamental da

sociedade favorecendo a formulação de um quadro homogêneo de referências entre as

camadas mais instruídas, produtoras da escrita. Sua preponderância também vinculou-se

ao reforço do corpo eclesial católico e à ratificação da doutrina sacramental pelos

Concílios de Latrão e de Trento, que conferiram-lhe uma dimensão de “signo”.1091 Mas

o modo sacramental (e, portanto, a função relicária) perdurou, ainda que de forma

subjacente, na modernidade laicizada, tendo sido apropriado pelo ideário da

representação.1092

A transformação das cartas de Madre Maria José em “relíquia” havia impedido seu

desaparecimento, pois a correspondência recebida pelas carmelitas descalças era

geralmente destruída após ser lida, devido à dificuldade de ser guardada nas celas

(quartos), por falta de lugar: no pequeno cômodo não existiam armários, apenas uma

cama, uma banqueta e duas ou três imagens fixadas nas paredes.1093 A eliminação das

cartas também era entendida como exercício de ascético desapego: assim, Madre Maria

1087 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 289. 1088 PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. Campinas: Ed. Unicamp/USP, 1994. p. 100: “Tipo ou figura de uma realidade não inteiramente revelada em sua expansão”. 1089 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Op. cit. p. 228; Id. La Fable Mystique,1. Op. Cit. p. 120. Ver também nota 22. 1090 Id. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 116-118. 1091 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 115. 1092 CHARTIER, Roger. A História Cultural. Op. Cit. p. 21:“A relação de representação – entendida, deste modo, como relacionamento de uma imagem presente e um objeto ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme – modela toda a teoria do signo que comanda o pensamento clássico e encontra sua elaboração mais complexa com os lógicos de Port Royal”. 1093 BUARQUE, Virgínia. Escrita Singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José de Jesus. Fortaleza: SECULT/Museu do Ceará, 2003. p. 31.

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José afirmou a seu irmão Adriano possuir apenas uma das cartas que lhe foram enviadas

por seu pai, Capistrano: “Costumo rasgar todas as cartas pois, tendo voto de pobreza,

gosto de nada possuir”.1094 Neste ato, a Madre seguia o exemplo dado pela fundadora

das carmelitas descalças, pois a própria Teresa d’Ávila ordenou à Irmã Ana de Jesus e,

possivelmente, a outras religiosas que se desfizessem de suas cartas; outra parte de suas

missivas foi destruída por são João da Cruz, como relata Madre Maria José: “Conta o

seu biógrafo, o padre Jerônimo de S. José, que um dia, no Convento do Calvário,

aquele admirável amante do despojamento e do nada, temendo apegar-se a uma

trouxinha de cartas da Madre Teresa que levava consigo por toda parte onde ia, lançou

mão delas e, na presença do mesmo Padre Jerônimo, atirou-as ao fogo”.1095 Muitos

textos de santa Teresinha também foram perdidos.1096

Apenas as cartas voltadas à orientação religiosa poderiam ser poupadas, tendo

em vista o aprimoramento das monjas. Por isso, em um de seus bilhetes, Madre Maria

José mostrou-se surpresa com a decisão de Irmã Marina em descartar as missivas de frei

Alano, diretor espiritual de ambas: “Como é que teve coragem de destruir... aqueles

tesouros? Deve ter tido muito merecimento, mas... fico com pena. Enfim, Jesus merece

tudo...” 1097 O tom alterou-se da surpresa à crítica, algum tempo depois: “Não sei como

V.C. teve coragem de destruir aquelas cartas. Parece N.P.S.J.+ [Nosso Pai São João da

Cruz] com as de N. Sta. Me. [Nossa Santa Madre] Que vandalismo! Que crime! Acho

que a filhinha estava louca de amor quando fez isso”.1098 A mudança pode estar

associada à apreciação que Madre Maria José promovia sobre frei Alano: em crescente

admiração, ela passou a considerá-lo “um santo”.1099

E foi confiando na não destruição das cartas de Madre Maria José que Irmã

Marina, ao obter licença para empreender uma biografia de sua antiga priora e mestra de

noviças (publicada em 1968 sob o título Memorial da Vida de Madre Maria José de

1094 Carta 596, a Adriano de Abreu, 1944. 1095 SANTA TERESA DE JESUS. Obras Completas. Tomo VI. Cartas. Op. Cit. p. 8-9. 1096 Estima-se em 1/3 a proporção das cartas desaparecidas. Entre as perdas mais lamentáveis, há pelo menos 50 cartas enviadas por ela ao padre Pichon no Canadá. THÉRÈSE DE LISIEUX. Oeuvres Complètes. Paris: Du Cerf/Desclée de Brouwer, 1992. p. 293. 1097 Carta 725, à Irmã Marina, jan. 1946. 1098 Carta 833, à Irmã Marina, 1947. A referência feita por Madre Maria José refere-se a um episódio narrado pelas crônicas da Ordem, segundo o qual o fundador dos carmelitas descalços havia queimado as cartas que santa Teresa lhe enviara e as quais carregava sempre consigo, temendo ficar apegado a elas. 1099 Carta 392, 15 jun. 1935, à Irmã Marina: “Filhinha minha muito querida, quanto me consolei com seu caderninho, vendo como Jesus tem trabalhado na sua alma neste últimos tempos! [...] Ah! Quanto bem lhe tem feito aquele Santo [D. Alano, diretor espiritual de Irmã Marina], em tão pouco tempo! É mesmo para louvar a Deus. E que coisas lindas V.C. copiou dele! Fiquei com vontade de fazer oração sobre tudo que V.C. escreveu. Se puder, empreste-me sim?”

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Jesus, carmelita descalça),1100 solicitou a todos os conhecidos da Madre o envio ao

Convento de Santa Teresa dos autógrafos de sua correspondência, a fim de serem

consultados. A partir deste levantamento, foi possível recuperar quase 1700 cartas,

indicando que, ao longo de sua vida, Madre Maria José havia desenvolvido, em termos

quantitativos, um vasto epistolário.1101

Algumas das cartas assim obtidas, porém, estavam incompletas, tendo sido suas

páginas parcialmente perdidas.1102 Numa pequena parcela, tal perda foi ocasionada por

circunstâncias cotidianas, como o bilhete que ficou queimado em alguns lugares por ter

sido colocado muito próximo à chama de uma vela, para ser lido.1103 Mas, por vezes,

eram os próprios destinatários quem, antes de dar uma dimensão pública às cartas, nelas

promoviam uma censura parcial, fosse para evitar qualquer indiscrição quanto a

terceiros mencionados no texto, fosse por considerar os temas tratados de cunho

exclusivamente pessoal, fosse ainda por modéstia, encobrindo elogios recebidos. Assim,

certos trechos de uma das cartas foram retirados e substituídos por pontinhos;1104 em

várias outras missivas, frases e até parágrafos foram cortados,1105 o que tornou algumas

delas uma pequena tira de papel;1106 uma das correspondências inicia-se na página 5 do

antigo texto.1107 Ademais, como muitas cartas eram escritas a lápis, grande parte dessa

censura era efetuada com um simples apagar de linhas.1108

O Convento de Santa Teresa não dispõe do autógrafo de mais de uma centena de

missivas, mas apenas de transcrições antigas, conseguidas a partir de originais

reproduzidos e devolvidos por Irmã Marina.1109 Outra parcela desta correspondência foi

1100 Esta obra constituiu-se na segunda biografia escrita pelas religiosas do Convento de Santa Teresa sobre Madre Maria José de Jesus. A primeira, Notícia aos Nossos Carmelos sobre Nossa Ver. Madre Maria José Jesus, 1882-1959, foi redigida em 1959, logo após a morte da Madre, em consonância com o costume vigente nos Carmelos teresianos de enviar uma circular ou uma pequena biografia da religiosa falecida aos demais monastérios femininos da Ordem. 1101 Não foi possível precisar, com base na documentação disponível, a proporção das cartas escritas em relação àquelas que foram encontradas e arquivadas. 1102 Foram quantificadas 10 missivas incompletas. 1103 Carta 1498, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 1104 Carta 811, à Irmã Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 26 jul. 1947. 1105 Foram quantificadas 21 missivas recortadas. Na Carta 1402, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, entre 1 jul.-12 out. 1958, foi registrado em nota: “Quando Ir. Marina Leão Teixeira (biógrafa de Me. Maria José) preparava-se para escrever a biografia, requisitou todos os bilhetes e cartas escritos por Me. Maria José às Irmãs. Então Ir. Conceição cortou pedaços de muitos, por se tratar de assuntos irrelevantes ou íntimos.” 1106 Carta 1404, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, entre 1 jul.-12 out. 1958; Carta 1586, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d.; Carta 1587, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, s.d. 1107 Carta 1413, à Irmã Maria da Conceição da Virgem Dolorosa, entre 1 jul.-12 out. 195. 1108 Carta 1059, à Madre Maria Bernadette, 5 out. 1952 ; Carta 1064, à Irmã Marina, out. 1952. 1109 Foram contabilizadas 117 cartas inquestionavelmente transcritas por Irmã Marina.

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copiada pelos próprios destinatários;1110 dessa maneira, por exemplo, somente uma das

cartas escritas por Madre Maria José às religiosas do Mosteiro de Nossa Senhora da

Ajuda foi redigida de próprio punho pela Madre,1111 enquanto uma outra missiva foi

enviada, em fotocópia autenticada, pelo Centre de Documentation Théresienne, de

Lisieux.1112

Atualmente, este epistolário encontra-se arquivado no Convento de Santa

Teresa, cuidadosamente datilografado e ordenado por seqüência cronológica, formando

um corpus antes inexistente. O trabalho foi empreendido a partir de 1986, por Irmã

Teresa Margarida do Sagrado Coração de Jesus, do Carmelo da Imaculada Conceição

de Maria e Santa Teresinha, sediado na cidade de Cotia, São Paulo, com auxílio de uma

equipe de religiosas do Convento de Santa Teresa, a fim de compor, junto com o

restante da produção escrita de Madre Maria José, uma coletânea de 15 volumes

intitulada Causa Canonizationis Servae Dei Maria Ioseph a Iesu, O.C.D., fonte

prioritária na instrução do processo de canonização. As cartas adquirem, assim, um

estatuto documental, acrescido por sua utilização como registro histórico em pesquisas

acadêmicas.1113

Em 1991, ocorreu uma nova transposição da escrita epistolar, desta vez para o

campo literário, com a publicação de uma antologia de cartas de Madre Maria José,

intitulada A Voz do Silêncio, que foi organizada pelas carmelitas do Convento de Santa

Teresa e pelo padre Fernando José Guimarães, juiz do Tribunal Eclesiástico para a

Causa de Canonização, estando atualmente na terceira edição. Aqui, novamente, todo

um processo de reordenação textual foi instaurado, com a seleção das cartas a serem

publicadas e, em cada carta, dos extratos a serem mantidos ou retirados, acompanhados

por recortes de periodização, devidamente comentados. Esta operação, por sua vez,

insere-se na mudança de enfoque promovida pela Ordem Teresiana desde o século XIX,

em relação à literatura hagiográfica. Enquanto até o final do oitocentos a escrita das

Vidas de santos carmelitanos era uma produção interna, destinada aos religiosos e

monjas (diferindo, por exemplo, da postura adotada pela Companhia de Jesus, que fez

1110 Cartas 1141, 1142 e 1143, à Irmã Maria da Eucaristia, 1953. 1111 Carta 1301, à Sóror Josefina, 28 ago.1956. 1112 Carta 365, à Madre Inês (Pauline Martin), Carmelo de Lisieux, 2 mai. 1934. 1113 A correspondência de Madre Maria José foi citada como fonte na tese de Doutorado em História de Dante Marcello Gallian, defendida em 1997 no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

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desse gênero de escrita um poderoso instrumento de propaganda),1114 a partir dos anos

seguintes o Carmelo Descalço ampliou a composição de biografias de beatos e santos,

com o objetivo de maior difusão da instituição e sua espiritualidade.

A todo este material, juntam-se outras tantas correspondências – elas também novas

relíquias -, remetidas por fiéis que testemunhavam, agradecidos, o atendimento de

seus pedidos de graça por intercessão de Madre Maria José:

A partir de 1987, o Convento de Santa Teresa começou a receber milhares de cartas – não só do Brasil, mas de outros países –, de pessoas que declaravam ter recebido graças, as mais diversas, por intermédio de Me. Maria José de Jesus; dentre elas a cura de câncer e AIDS. A igreja e o locutório do Convento começaram a transformar-se em destino de peregrinações regulares de pessoas que vinham agradecer alguma graça, ou pedir às irmãs que tocassem seus objetos pessoais no túmulo ou em alguma relíquia da Madre. 1115

5.4- “Deus viu tudo que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1, 31)

A correspondência de Madre Maria José, embora não se configure como um

estilo discursivo idêntico à linguagem mística ou ao relato hagiográfico, pode ser

aproximada de uma forma de expressão muito peculiar ao Carmelo Descalço feminino:

a recitação, nas missas e no Ofício divino, das preces em recto-tono.1116 Trata-se de uma

entoação, de uma “fala musicada”, pela qual a relação humano-divina é estetizada,1117

fluindo na singela beleza de uma sonoridade em uníssono, promovida “[...] sem

modulações, e excetuando os sobreditos dias festivos, [...] rezad[a] em tom grave”.1118

1114 Exceção foi a hagiografia produzida pelos padres oratorianos acerca das carmelitas descalças, por eles vinculadas ao apostolado da Igreja, mediante suas práticas de oração e mortificação; tal produção, inclusive, favoreceu a difusão da espiritualidade teresiana em vários países. SUBE, Éric. Op. Cit. p. 184. 1115 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 245-246. 1116 O reto-tom é um recitativo (isto é, um gênero musical) próximo ao cantochão, o qual, procedente da salmodia judaica, foi levado com o cristianismo para a Itália ainda no século I. O cantochão era entoado não somente nas catacumbas romanas, mas também em diferentes liturgias, como a ambrosiana (organizada por santo Ambrósio, em Milão), galicana (por Santo Hilário, em Poitiers), bizantina (por santo Efrém) e sevilhana (por santo Isidoro ou Isidro). Tal recitativo recebeu a denominação de cantus planus a partir do século XIII, numa tentativa de particularização perante o canto gregoriano. Reafirma-se os agradecimentos promovidos na Introdução desta tese à profa. Sandra Loureiro de Freitas Reis, da UFMG, e ao prof. César Buscacio, da UFOP, pela delicadeza das informações prestadas. Cf. REIS, Sandra Loureiro de Freitas. Educação Artística: introdução à História da Arte. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1993. p. 69. 1117 BARUZZI, Jean. Prière et vie mystique. In: L’Intelligence Mystique. Paris: Berg International, 1985. p. 170: “Et l’élan qui l’unissait a créé la liturgie, comme il a créé la priére, je veux dire la prière qui s’offre au croyant comme une oeuvre d’art déjà réalisée, et en laquelle il introduira sa ferveur”. Grifos do autor, em itálico no original. 1118 Regra e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro, 1929. Art. 49. Ver também Ordinário ou Cerimonial da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo. Rio de Janeiro: C. Mendes Jr., 1930. Art. 106 e 109,

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O esvaziamento de si preconizado pelo ideal contemplativo traduzia-se, assim, no

entremeio de enunciações escritas e musicais, estas ecoantes através de vibrações

monofônicas – sem que nenhuma voz sobressaísse, apenas o coro das monjas, sereno e

cadenciado, fazia-se escutar por detrás das grades do claustro,1119 compondo uma

“maneira de cantar” considerada por Madre Maria José “[a] coisa mais conforme à

nossa vida contemplativa e eremítica, de desprezo absoluto de nós mesmas, como diz a

Regra”.1120

E novamente em afinidade ao ideal contemplativo, a diluição do “eu” pelo reto-

tom combinava-se com a evocação da Transcendência. Sendo um recitativo, ele

processava-se em uma dinâmica interlocutória, com as irmãs alternando-se na

proclamação das orações do ritual litúrgico1121 e com o canto humano constituindo-se

como uma resposta aos chamados divinos, ou como um apelo à sua Presença. Esta

liturgia teresiana, articulando o sentido (a textualidade) e o semiótico (o ritmo,

demarcado pelas falas e silêncios), propiciava, dessa maneira, uma relação unitiva com

o sagrado1122: “Marcadas as pausas previamente e cantadas com suavidade e ternura, é

verdadeiramente próprio para facilitar nossa união com Jesus, para nos deixar gozar

das delícias da santa liturgia e saborear a doçura dos santos mistérios”. 1123

O reto-tom não se atinha a partituras ou a elaborados registros musicais. Para seu

emprego era preciso apenas definir em que modo (ou altura da nota final) uma prece

deveria ser recitada,1124 estabelecendo-se, com isso, uma escala possível à entoação,

como esclarecia Madre Maria José em suas missivas: “[cantamos em] recto tono, bem

p. 44-45: “O canto deve ser simples, uníssono e em tom uniforme, sem modulação. [...] recita-se todo o Ofício sem cantar, mas num tom de voz devota e grave, distinto em sonoro”. 1119 BARUZZI, Jean. Op. Cit. p. 181.

1120 Carta 238, ao Carmelo de Porto Alegre, 20 abr. 1940. 1121 As irmãs coristas eram distribuídas, pela subpriora, em diferentes funções para recitação do Ofício divino. A cada semana, uma religiosa era escolhida para hebdomadária (responsável pelo início das Horas canônicas, bem como pela proclamação de algumas antífonas e preces), outras para cantoras e outras ainda para versiculárias (encarregadas da entoação dos versículos, dos hinos e de certas antífonas). No desempenho de tais funções, as irmãs dialogavam entre si, como também na execução de sua tarefa específica. Cf. Ordinário ou Cerimonial... Op. Cit. Art. 161. 1122 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 411: “Comme l’expérience don’t elle raconte la fable, la chanson est elle-même […] le lieu de rendez-vous où ‘je’ revient se perdre en cette foule qui est, san nom et sans visage, presence de ‘toi’.” 1123 Carta 238, ao Carmelo de Porto Alegre, 20 abr. 1940. 1124 O sistema modal musical baseia-se numa escala de sete sons, diferindo da notação de cunho tonal predominante na música occidental após o século XVII. Cf. Dicionário Grove de Música, Rio de Janeiro: Zahar 1994. Verbete “Cantochão”: “A teoria modal bizantina [que remonta à Antigüidade grega] […] foi empregada pelo repertório gregoriano no final do século VIII. Emprega quatro alturas finais (ré, mi, fá e sol), com subformas em um âmbito mais alto (autêntico) e mais baixo (plagal) para cada final”; REIS, Sandra Loureiro de Freitas. Op. Cit. p. 74-75.

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afinadinho, em fá, fá sustenido ou sol. Usamo-lo em tudo, menos nas respostas da

Missa solene etc. que damos com as notas do Missal”.1125 Para isso, as religiosas

recorriam ao diapasão,1126 numa prática que admitia algumas flutuações quanto ao

“modo” de ser promovida: “Todos os nossos mosteiros do Brasil estão atualmente

adotando o recto tom, com a nota de sol para o canto de festa, e de mi natural para a

reza. Oh! Que graça incomparável!” 1127 Justamente por pautar-se em tal modalização,

a musicalidade da prece teresiana delineava uma imitatio correspondente ao trânsito das

personagens na escrita epistolar desenvolvida pela Madre1128: seu privilégio do fluxo

das palavras do texto orante, desvencilhado de uma atenção ao melódico (à pauta

musical, inexistente), ele deslocava, incessantemente, os lugares simbólicos ocupados

pelo “eu” (humano) e pelo “tu” (divino).1129

Mas o recitativo em reto-tom também estava vinculado à preocupação com a

ortodoxia, prioritária em uma Igreja da Neocristandade. Assim, o caráter monológico do

discurso contemplativo era restabelecido por uma atenção às regras da prosódia:

tornava-se fundamental que as sílabas tônicas de cada palavra, escritas e cantadas em

latim, fossem corretamente entoadas, com uma duração tão mais extensa quanto maior

fosse a solenidade do trecho recitado.1130 Verifica-se, portanto, que a execução em reto-

tom, se propiciava uma recriação do real no ato enunciativo, também o circunscrevia a

rígidos cânones litúrgicos, nada fáceis, inclusive, de serem apreendidos.

O reto-tom consistia em uma modalidade específica do cantochão, diferindo do

gregoriano, o qual comportava certa precisão melódica (havendo notação musical), além

de permitir, em sua execução, determinados acompanhamentos instrumentais. As

distinções entre essas duas manifestações de canto litúrgico, todavia, nem sempre eram

1125 Carta 238, ao Carmelo de Porto Alegre, 20 abr. 1940. 1126 Carta 820, à Irmã Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 9 set. 1947: “Esqueci-me de dizer: temos diapasão; a Subpriora dá Mi para o rezado; para o cantado Fá, Fá sustenido ou Sol, conforme as circunstâncias”. 1127 Carta 233, a um Carmelo do Rio Grande, 27 fev. 1930. 1128 Em uma analogia com a semiologia, ver CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 231: “La modalité maximalise l’instance du sujet. Sémiotiquement, elle repère l’investissement du locuteur dans son énoncé […]”. 1129 KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. 2a. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 95. 1130 Assim, nas compilações sobre o reto-tom promovidas durante um dos priorados de Madre Maria José, observa-se a seguinte recomendação: “Há duas qualidades de acentos: tônicos e secundários. O acento tônico é o que deve predominar (mas sem exagero). A acentuação tônica nunca se acha na última sílaba nem nos monossílabos. Há diferença entre a pronúncia da sílaba tônica e outras que levam acentos secundários, isto é, pequenos impulsos (ictus). Ex. Sícut laetántium ómnium, habitátio est in te. Os acentos valem por um mínimo de 2 sílabas e por um máximo de 3 sílabas”. Grifos do documento, em duplo sublinhado onde aparece o negrito. Ver Canto Coral. Nota sobre as Aulas. Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. [1941]. Manuscrito. p. 11.

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facilmente percebidas, chegando a confundir a própria Madre Maria José, em sua

primeira gestão como priora1131: Ainda outra coisa: V. Excia. disse-me que queria para a festa de N. Santa

Madre só cantochão gregoriano, e eu, ignorando absolutamente que fossem duas

coisas diversas, encomendei ao Pe. Siqueira música gregoriana. Fiquei passadíssima

quando vi música e violino porque sei que não era isso que V.Excia. queria. Queira

perdoar-me, meu bom Pai, e creia que, diante de Deus, não desobedeci a V. Excia.

Só depois de passada a festa foi que soube que música ou canto gregoriano não é o

mesmo que cantochão gregoriano.1132

Mas logo a Madre reconheceria bem a diferença, vindo a excluir a possibilidade

do gregoriano: “[para nós] o canto gregoriano seria uma verdadeira desgraça”.1133

Neste sentido, ela aproximou-se do pensamento dos Carmelos franceses que, liderados

por Lisieux, emitiram um documento, na década de 20, elencando inúmeros motivos

para tal refutação: o gregoriano estaria vinculado a certo esplendor das manifestações

religiosas;1134 a falta de aptidão musical por parte de algumas postulantes seria um grave

obstáculo à sua vocação, como seria o caso, por exemplo, de santa Teresinha;1135 os

trabalhos manuais, assim como as atividades de meditação e oração, ficariam

prejudicados, pois o gregoriano exigiria horas para sua preparação; o pequeno número

de monjas seria insuficiente para garantir uma digna execução; o coro de um Carmelo

Descalço não deveria comportar nenhum instrumento musical, conforme prescreviam os

regulamentos.1136

Este documento erigiu-se como uma resposta à problemática do canto

monástico, acirrada em 1903 quando Pio X, por motu próprio, tornou obrigatório o

gregoriano nas cerimônias litúrgicas, em reação contrária à música profana que

1131 O canto gregoriano era compreendido, até algumas décadas, como uma modalidade de música litúrgica compilada entre 590 e 604 pelo papa Gregório Magno. Ele teria sido reunido em dois livros, Antiphonarium e Cantatorium, outrora amarrados em correntes no altar da igreja de são Pedro, em Roma, como símbolo da unidade do catolicismo. Pesquisas mais recentes, todavia, indicam tratar-se de um canto produzido no Império carolíngio (c. 800), quando ali foi introduzida a liturgia romana. O termo “gregoriano”, contudo, surgiu apenas no século XIX, por sugestão dos monges beneditinos de Solesmes. cf. Dicionário Grove de Música. Op. Cit. Verbete “Gregoriano e romano antigo, canto”; REIS, Sandra Loureiro de Freitas. Op. Cit. 1132 Carta 134, a D. Sebastião Leme, provavelmente out. 1925. Grifos de Madre Maria José. 1133 Carta 811, à Irmã Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 26 jul. 1947. 1134 En Faveur du Récitatif Traditionnel des Carmélites. Lisieux: Carmel de Lisieux, aôut 1924. p. 2. 1135 Ibid. p. 3. 1136 Ibid. p. 4.

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progressivamente vinha sendo adotada nas celebrações da Igreja. Mas enquanto alguns

Carmelos europeus, inclusive na Espanha, passaram a empregar o gregoriano, o

monastério parisiense, em 1911, obteve da Santa Sé a prerrogativa de manter a recitação

simples do Ofício (em recto tono), conforme anteriormente usado na Ordem

Teresiana.1137 Em seguida, Pio XI, em carta ao cardeal de Paris, datada de 12 de outubro

de 1924, na qual afirmava que o recto tono não abriria exceções ao gregoriano, por não

tratar-se propriamente de um canto, e sim de uma entoação, deixou a escolha a cargo de

cada Carmelo.1138 Tal decisão, ao ser conhecida por Madre Maria José, foi por ela

considerada plenamente satisfatória: “[...] Agradeçamos muito a N.S. todas essas

graças que Ele se tem dignado de fazer-nos, pois, assim vemos resolvidos alguns pontos

de dúvidas, como o do canto, que além de nos tranqüilizar sobre a vontade do Santo

Padre, a esse respeito, nos foi decidido tão favoravelmente”.1139

Entretanto, parte dos argumentos expostos pelo documento francês acerca da

simplicidade deste recitativo, viabilizando seu emprego no cotidiano monástico, não era

ratificada nem pelos registros epistolares de Madre Maria José, nem pelos comentários

integrantes de seus memoriais; pelo contrário, o reto-tom mostrava-se uma entoação

bastante particularizada, diante da qual as irmãs do Convento de Santa Teresa

apresentaram, ao menos inicialmente, grandes dificuldades. Assim, o empenho de

Madre Maria José para instaurá-lo, acrescido pelo caráter compulsório que lhe foi

atribuído pelas novas Constituições,1140 “[...] custou algum sacrifício e trabalho [...],

pois há tantos anos que o convento foi fundado e não se rezava assim...” 1141

Estrategicamente, a Madre optou por implementar tal mudança de forma paulatina: N. Revda. Madre priora [Madre Maria José] reuniu as capitulares que eram

quatorze nessa ocasião e expondo-lhes todas essas circunstâncias e dificuldades, pois nem todas as religiosas coristas sabiam música e só uma tinha estudado mesmo canto, propôs-lhes adotar de novo o canto da Ordem para as seguintes funções, deixando-lhes plena liberdade: Ofício divino, o próprio das missas solenes e atos dentro do Convento como procissões etc. Os Kyries, Glória, Credo, Santos, Agnus Dei, os Tratos da Semana Santa continuariam com o gregoriano. As religiosas concordaram e no dia 14 de outubro de 1918, nas Primeiras Vésperas de Nossa Santa Madre Teresa, depois de muitos ensaios, reassumiu-se o canto da Ordem, que

1137 Reescrito de 12 de outubro de 1922, Serveteur consuetudo ab origine. Apud: En Faveur... 1138 En Faveur... 1139 Carta 233, a um Carmelo do Rio Grande, 27 fev. 1930. 1140 Regra e Constituições... [1929]. Art. 49. Op. Cit.. p. 62. As Constituições vigentes até esta data prescreviam que “Tudo o que pertence à Missa e Ofício Divino será contado por cantochão grave e igual, e nunca por canto de música”. Regra Primitiva e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte do Carmo. [1790]. Rio de Janeiro: Typ. Martins de Araújo e Cia., 1916. Cap. IV. Art. 5. p. 71. 1141 Livro do Tombo. Transcrito em CCSDMII. V. 13. p. 46. Ver também GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit. p. 182.

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ouvido pelo nosso dito Padre Capelão e outros sacerdotes que com ele moram, foi muito apreciado.1142

Foi somente após vários anos, portanto, que Madre Maria José pôde, enfim,

comunicar com alegria à Madre Cecília, sua antiga mestra de noviças e priora do

Convento de Fortaleza: “Sabe? Estamos cantando em recto tono nos sábados,

domingos e festas determinadas pelo Cerimonial. No domingo cantamos as Vésperas

como manda o n. 221 das Constituições, às 3 hs. Todas reunidas no coro e sentadas nas

cadeiras [...] Tudo por Jesus e por Maria”.1143

Após sedimentar o emprego do reto-tom no Convento carioca, Madre Maria José

passou a divulgá-lo aos demais: “Todos os nossos Carmelos, que já são oito, têm agora

o canto da Ordem, estabelecido e usado por nossa Santa Madre e mandado pelas

Constituições e Cerimonial novos. Seria a coisa melhor do mundo se os Carmelos do

Rio Grande o adotassem. O Gregoriano não é para nós e muito menos outro canto”.1144

Para que tal adoção ocorresse, entretanto, foi mister ensiná-la, ainda que através da

correspondência: “Minha Madre, como diz que não tem quem lhe ensine o canto da

Ordem, peço licença para dizer como fazemos e V.R. tomará só o que lhe parecer bem

[...]”.1145

E justamente para assegurar um maior domínio deste recitativo, Madre Maria

José solicitou a D. Leme, em 1941, que “[...] possamos ver o Maestro Franceschini1146

e ser vistas por ele, pois, refletindo, cheguei à conclusão de que só assim poderemos

compreender o modo de emitir a voz etc.”, pedido deferido pelo cardeal.1147 Esses

1142 Livro do Tombo. Transcrito em CCSDMII. V. 13. p. 46v. 1143 Carta 413, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 14 jun. 1936. 1144 Ver também Carta 413, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 14 jun. 1936. 1145 Carta 241, a um Carmelo do Rio Grande do Sul, 26 jun. 1930. 1146 Furio Franceschini nasceu em Roma, em 4 de abril de 1880, e faleceu em São Paulo, em 15 de abril de 1976. Estudou na Academia Santa Cecília de Roma, onde especializou-se em contraponto e órgão; a seguir, estudou na França (fuga e instrumentação) e na Inglaterra (canto gregoriano). Apresentou-se como regente de orquestra em Corfu e Atenas, em 1903. Um ano depois, veio para o Rio de Janeiro, como regente de uma companhia lírica. Em 1907, mudou-se para São Paulo, onde tornou-se professor de música sacra e canto gregoriano do Seminário da Arquidiocese de São Paulo, vindo a ser Mestre de capela da Sé no ano seguinte. Foi considerado o melhor organista brasileiro de seu tempo, tendo feito inúmeros concertos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Recusou convites para substitutir seu antigo professor, Filippo Capocci, na Basílica de São João de Latrão, como mestre de capela. Entre 1933 e 1939, foi professor de análise musical no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e foi nomeado professor do curso de cultura e análise musical do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. Entre 1944 e 1945, foi professor do curso de estudos dos instrumentos de orquestra organizado pela Prefeitura de São Paulo. Publicou o Breve Curso de Análise Musical (São Paulo, 1931) e Compêndio do Canto Gregoriano (São Paulo, 1938). Compôs mais de 400 peças, entre missas, cânticos sacros, música para canto, orquestra, órgão, piano. Foi fundador da Cadeira n. 28 da Academia Brasileira de Música. Cf. site da Academia Brasileira de Música www.abmusica.org.br. 1147 Carta 537, a D. Sebastião Leme, 29 set. 1941.

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encontros, segundo a Madre, mostraram-se muito proveitosos: “Cantamos reto-tom,

mas procurando fazê-lo o melhor possível. Até tivemos aulas do Maestro Franceschini,

com licença do Sr. Cardeal. É velho e santo: gostou muito do nosso canto de

eternidade”;1148 as informações assim obtidas foram disponibilizadas, logo em seguida,

às religiosas de outros Carmelos: “Ir. Ma. de Jesus está copiando para V.R. as

meditações de Natal e as regras do maestro Francesquini sobre o coro”.1149 Afinal,

segundo as Constituições de 1929, incorria em culpa média a religiosa que “[...]

presumir cantar ou ler de modo diferente do que se costuma entre nós”.1150

Verifica-se, desta forma, que a opção pelo reto-tom não se fizera por uma maior

facilidade em seu aprendizado e execução, conforme afirmado pelas carmelitas de

Lisieux, mas sim pelos vínculos estreitos por ele mantidos com o “estilo” propugnado

pelo ideal contemplativo. Neste mesmo sentido, Madre Maria José opôs-se às alterações

litúrgicas sugeridas pelos freis carmelitas descalços, que desde 1913 haviam adotado o

canto gregoriano, reforma que, segundo ela, era condizente ao seu ministério exercido

em igrejas públicas,1151 mas inadequado às religiosas contemplativas: “Penso que Fr.

Alberto não tem razão de dizer que se cante só 1 vers. do Miserere no Asperges; isto é

bom quando é gregoriano, mas no nosso canto? Enfim, aqui para nós, eles mesmos

dizem que é bom consultar só um, pois cada qual diz uma coisa”.1152

Os demais cantos religiosos também eram considerados pela Madre como não

adequados ao Carmelo – “Ontem foi a tomada de véu de I. Ma. N. [Maria da

Natividade] [...] cantaram os franciscanos vindos de Petrópolis, mas (modéstia à

parte), acho mais bonito o nosso canto” 1153 -, em restrições que abarcavam o uso de

instrumentos musicais: “As Irmãs [da Casa de Saúde S. José] cantaram e tocaram

harmônio, mas senti intimamente que o nosso silêncio e o nosso canto unem mais a

Deus; a música pareceu-me uma intermediária, um eco entre minha alma e o seu

Senhor. Tinha impressão de uma coisa estranha que me atrapalhava a oração”.1154

1148 Carta 820, à Irmã Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 9 set. 1947. 1149 Carta 543, à Madre Cecília Maria, do Carmelo de Fortaleza, 13 nov. 1941. 1150 Regra e Constituições [1929]. Art. 169. Op. Cit. p. 123 1151 En Faveur ... Op. Cit. p. 2. 1152 Carta 1024, à Madre Maria Imaculada, provavelmente fev. 1952. 1153 Carta 1039, à Irmã Marina, 21 abr. 1952. 1154 Carta 314, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 8 out. 1932. Cf. também Carta 1455, à Comunidade do Convento de Santa Teresa, 26 out. 1958: “Hoje, festa de Xto.[Cristo] Rei, assistimos pela primeira vez, porque a Capela é muito longe e não nos deixam ir lá, à santa Missa, às 5 ½, celebrada por D. Anselmo, que fez uma boa prática, ao Evangelho. Houve harmonium e cânticos, tudo muito bem cantado com vozes suaves; mas o nosso silêncio nos fala mais ao coração. Aqui há tudo o que move os sentidos; aí há o fogo, a presença”.

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Assim, ao dirigir-se, várias vezes ao dia, ao coro do Convento de Santa Teresa

para rezar o Ofício divino ou participar da missa, Madre Maria José expressava,

esteticamente, seu desejo de recriação do sagrado no mundo, sua busca tão intensa de

união com o divino. No recitativo em reto-tom, bailado sonoro do “eu” e do “tu”, ela se

esvaecia cada vez que emanava sua voz,1155 “delicada, fina, quase um murmúrio, talvez

um lamento, impregnado de poesia e sutil compreensão”;1156 seu canto, ressoando junto

ao das demais religiosas e, sobretudo, confluindo com o Verbo proferido em

Silêncio,1157 permitia-lhe reencontrar o “negativo” de sua existência, acolher os vazios

de uma conversão jamais concluída, enfrentar a morte em nome da eterna vida.1158

1155 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 409: “La verité que le chant a défait (comme la passion défait une chevelure) est remplacée par cette forme qui oriente l’histoire d’amour vers le soleil où elle s’achève et se perd: ‘Vous’.” 1156 VILLAÇA, Antônio Carlos. Carmelo. S.l. s.d. Cf. Artigos publicados sobre Madre Maria José de Jesus em Jornais, Revistas, e Livros. In: CCSDMII. V. 15. p. 44. 1157 JOÃO DA CRUZ, santo. Ditos de Amor e Luz, 98. In: Obras Completas. 4ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1996:“Uma palavra falou o Pai, que é seu Verbo; e di-la sempre em eterno silêncio; e em silêncio há de ser ouvida pela alma”. 1158 KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. Op. Cit. p. 97: “[…] a beleza se manifesta como o rosto admirável da perda, ela a metamorfoseia para fazê-la viver. Uma recusa da perda? Pode ser: tal beleza é então perecível e se eclipsa na morte […] Mas não só […] a beleza também pode nos apanhar para testemunhar sobre alguém que, de forma magnífica, encontrou o caminho real pelo qual o homem transcende a dor de estar separado: o caminho da palavra dada ao sofrimento, até ao grito, à música, ao silêncio e ao riso”.

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Lembrai-Vos, ó Jesus, que por Vós, terno Esposo, Um dia abandonei – de vosso amor escrava –

Minha avó, meus irmãos, meu pai tão amoroso, Tudo quanto possuía e tudo quanto amava.

Lembrai-Vos, ó Jesus, que à porta da clausura

Meu coração tremeu..., mas – o olhar em Vós fito – Entrei, buscando cruz, buscando vida obscura

E amor com que pagar vosso amor infinito. [...]

Lembrai-Vos, ó Jesus, do sono reprimido,

Do trabalho em silêncio e da austera pobreza, E lembrai-Vos também do amor-próprio contido...

Tudo por vosso amor e contra a natureza.

Lembrai-Vos, ó Jesus, que à Vossa Mãe e minha Busquei servir e honrar sempre em todas as coisas,

Ela foi minha Mãe e foi minha Rainha... E lembrai-Vos que amei muito Vossas esposas.

Lembrai-Vos, ó Jesus, se desejei ser santa, Se busquei evitar por Vós qualquer ofensa,

Se pela graça em mim houve mudança tanta, Foi por amor, foi por Vós, não foi por recompensa.

Lembrai-Vos, ó Jesus, e quando – finda a vida –

Meus crimes me lançar em rosto o Anjo malvado, Dizei, ó meu Jesus, por Vossa Mãe querida:

“Porque ela muito amor, tudo lhe foi perdoado”.

Eu confusa estarei, como a adúltera outrora.... E ouvindo vossa voz – como as flores nas hastes

Se erguem ao sol – direi, vendo do Céu a aurora: “Porque muito amei? Não! Porque muito me amaste”.

Ao Coração de Jesus, Madre Maria José de Jesus, s.d..1159

1159 JESUS, Maria José de, madre. Deus Presente. 2a. ed. São Paulo: Loyola 1988. p. 102-103.

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CONCLUSÃO

Promover a escrita desta tese constituiu-se em um reencontrar – desta feita,

historiograficamente – com um campo de experiência e significação que vem sendo

considerado como primordial à compreensão da cultura ocidental contemporânea, por

tantas décadas auto-proclamada secularizante: o religioso.1160 Assim, com base em

demarcações temporais (a primeira metade do XX), institucionais (o monaquismo) e de

gênero (feminino), o ideal contemplativo foi sendo delineado como uma produção

imaginária que, integrante do catolicismo, continha matizes e imbricações específicas

perante categorias teológicas, modelos eclesiológicos e ordenações sociais. Tal

proceder, contudo, esbarrou em uma séria dificuldade interpretativa: o expressivo

silenciamento acerca de temáticas afins a esta pesquisa no conjunto dos estudos

acadêmicos, ausência ainda mais ampliada quando a construção do objeto busca

vincular-se, prioritariamente, a indícios deixados pelas mulheres consagradas, como o

epistolário de Madre Maria José. Mesmo assim, ou melhor, justamente por causa disso,

esta conclusão foi redigida sob o formato de um balanço historiográfico, contrapondo os

capítulos antecedentes a demais trabalhos dedicados à correspondência religiosa

feminina, numa tentativa de discernir interlocuções possíveis.

A princípio, a sistematização das leituras realizadas apenas ratificou o que já

havia sido constatado na rotina diária do curso de Doutorado: as produções

desenvolvidas no Brasil acerca de tal escrita epistolar mostram-se, de fato, bastante

rarefeitas. O tema não foi mencionado nas obras de autoria eclesiástica1161 previamente

consultadas1162, sendo também inexpressivo nas edições vinculadas à Comissão de

Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA), circulantes principalmente

nos anos 80, no intuito de interpretar a realidade sócio-religiosa sob uma perspectiva

marxista, em diálogo com os postulados da Teologia da libertação; apenas em um

1160 CERTEAU, Michel de. Christianisme et ‘modernité’ dans l’historiographie contemporaine: reemplois de la tradition dans les pratiques. Recherches de Science Religieuse, Paris, n. 63, v. 243-268, 1975. 1161 Compreende-se como historiografia eclesiástica a produção que, desenvolvida por clérigos, está estreitamente vinculada à ortodoxia doutrinária e ideológica vigente na instituição católica em um determinado momento histórico, cf. LAGRÉE, Michel. Histoire religieuse, histoire culturellee. In: RIOUX, Jean Pierre et SIRINELLI, Jean François (org.). Pour une Histoire Culturelle. Paris: Seuil, 1997. p. 389-390. 1162 Foram consultados os seguintes textos: SCHUBERT, Guilherme, pe. A Província Eclesiástica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Agir, 1948; RUPERT, Arlindo, pe. A Igreja no Brasil. Santa Maria: Pallotti, 1993. V. 4; LIMA, Maurílio César de Lima, mons. Breve Histórico da Igreja no Brasil. Rio de Janeiro: Restauro, 2001.

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artigo, de autoria de Riolando Azzi, consta a afirmação de que nos colégios católicos

ocorria um “rígido controle da correspondência das alunas”.1163 De forma similar, um

terceiro corpus bibliográfico, em geral procedente de pesquisas de pós-graduação

concluídas nos últimos vinte anos, não se reporta ao assunto;1164 assim, uma das mais

importantes interpretações sobre o cotidiano das mulheres nos claustros coloniais,

realizada por Leiza Mezan Algranti, somente confirma o exposto por Riolando Azzi,

indicando que “[...] as abadessas é quem recebiam as cartas e presentes, para depois

destiná-los às monjas”.1165

Devido à parcimônia das reflexões existentes, o rol das leituras propiciadoras de

um debate intelectual foi então ampliado, com inclusão de publicações da historiografia

latino-americana e européia, bem como de produções das ciências humanas com

enfoque transdisciplinar. Com base nesta nova gama de estudos, apresenta-se, a seguir,

uma ponderação crítica acerca das hipóteses defendidas por esta tese, no desdobramento

de seu tríplice objetivo, que inter-relaciona o ideal contemplativo formulado por Madre

Maria José com uma prática de escrita, com uma constituição de si e com um exercício

de poder.

Uma escrita

As particularidades do epistolário religioso feminino nas modernas sociedades

ocidentais1166 foram interpretadas por Adriana Valdés, que teceu uma proposição bem

sugestiva: articulando a correspondência às crônicas e obras literárias (em prosa e em

1163 AZZI, Riolando. Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil. In: MARCÍLIO, Maria Luíza (org.). Família, Mulher, Sexualidade e Igreja na História do Brasil. São Paulo: Loyola, 1993. p. 115. Outros autores pesquisados foram José Oscar Beozzo, José Conblin, Hugo Fragoso e Maria José Rosado Nunes, pesquisadora também conhecida no meio universitário por sua produção em sociologia religiosa. A indicação bibliográfica completa encontra-se ao final desta tese. 1164 Cf. LEITE, Márcia Maria da Silva. Educação, Cultura e Lazer das Mulheres de Elite em Salvador, 1890-1930. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1997. Dissertação (Mestrado em História); QUINTANEIRO, Tânia. O sexo segregado: recolhidas e religiosas. Retratos de Mulher: o cotidiano feminino no Brasil sob o Olhar de Viajeiros do Século XIX. Petrópolis: Vozes, 1996. 1165 ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: mulheres da Colônia. 2a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p. 201. Considero ser esta uma obra indispensável ao conhecimento da vida religiosa feminina colonial e para o aprofundamento de alguns aspectos da cultura monástica que perduraram numa temporalidade mais dilatada. Tal estudo, porém, no que tange à correspondência e, ainda, à escrita religiosa feminina em geral, concentra-se sobretudo nas limitações culturais dos conventos brasileiros, os quais, embora exercessem a função social da educação de meninas e moças, diferiam bastante dos mosteiros da América Espanhola, estes sim, importantes núcleos de produção letrada. 1166 Meu conhecimento desta abordagem vem sendo favorecido pelo curso História e Memória: escrita epistolar, ministrado pela profa. Francisca Nogueira de Azevedo no primeiro semestre de 2005, no PPGHIS.

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poesia) elaboradas pelas monjas da América Hispânica, a autora delineou um gênero

discursivo específico - o relato conventual -, pautado na diluição de fronteiras

rigorosamente estabelecidas entre realidade testemunhal e ficção.1167 Tal modalidade de

escrita distinguia-se, assim, de uma narrativa que, embora produzida como “invenção”,

era veiculada no intuito de provocar “efeitos de verdade”, cujo exemplo clássico foram

as Lettres portugaises traduites en français. Este texto anônimo de 1669, integrado por

cinco missivas supostamente redigidas por uma religiosa portuguesa seduzida e

abandonada por um militar francês, embora desprovido de qualquer fundamento

histórico-biográfico, foi considerado verídico por seus leitores até o ano de 1920,

provocando uma série de comportamentos e sensibilidades – ele inspirou uma maneira

de amar (a “paixão platônica”) e um estilo de composição epistolar, de grande

espontaneidade.1168

Entrecruzando-se estas produções com as reflexões desenvolvidas por esta tese

acerca da escrita epistolar de Madre Maria José como um ato enunciativo pautado no

viés do “negativo”, pode-se concluir a plausibilidade da leitura das cartas da Madre sob

um olhar ficcional, não por tal discurso falsear a experiência histórica,1169 mas por

configurar-se como um lugar textual que, ao formular o ideal contemplativo, articulava

o existente e o almejado, o real e o utópico,1170 conferindo sentidos ambivalentes às

práticas escriturísticas e sociais.1171 Era um relato que, por seu hibridismo cultural-

religioso, consubstanciava-se como um “paradoxo”, muito mais do que como uma

contradição1172: sem desfazer-se de sua condição de locus objetivado de verdade, tal

narrativa epistolar a relativizava, num “[...] cruzamento de superfícies textuais, [n]um

1167 VALDÉS, Adriana. El espacio literario de la mujer en la Colonia. In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp, 1993. V. 1. p. 473- 475. Para a autora, o relato conventual feminino pode ser visto como um espaço multidimensional, em que os leitmotivs da escrita religiosa (como o abandono de si, o sacrifício, a escrita por obrigação...) são perpassados pelas experiências pessoais e também por interferências do “sobrenatural”, dotando o discurso de uma lógica própria, não limitada aos conflitos sociais. 1168 A autoria da obra foi atribuída a Guilleragues, conforme indica SIMONET-TENANT, Françoise. Aperçu historique de l’écriture épistolaire: du social à l’intime. In: Le Français Aujourd’hui: le biographique. Paris, octobre 2004. p. 38-39: “L’influence de ce mince recueil de lettres fut double. Son succès manifeste l’efficacité de la forme épistolaire en matière d’illusion romanesque: la disparition du narrateur oniscient confère au lecteur une place privilégiée aux côtés du personnage épistolier. Les cinq Lettres portugaises mettent em place dans la littérature française une écriture de la passion au féminin caractérissé par l’attente et l’abandon, proise à un grand rendement littéraire”. 1169 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Paris: Gallimard, 1982. p. 241. 1170 Id. Histoire et Psychanalyse: entre science et fiction. 2a. ed. Paris: Gallimard, 2002. p. 235. 1171 Remeto, em uma analogia, à noção de “ficção” presente no conhecimento científico, cf. DUARTE, Luiz Fernando Dias. Método e ficção nas ciências humanas: por um universalismo romântico. In: Clio-Psyché: histórias da psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: NAPE, 1999. 1172 ROMAN, Joel. Le Christianisme après la Chrétienté. In: CENTRE THOMAS-MORE. Michel de Certeau ou la Différence Chrétienne. Paris: Du Cerf, 1991. p. 23.

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diálogo de várias escritas: do escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto

cultural atual ou anterior”.1173

Uma subjetividade

O entrecruzamento entre escrita religiosa e subjetividade feminina foi

arrojadamente promovido pela psicanálise sócio-histórica, como nas pesquisas

promovidas por Jacques Maître com base nos manuscritos de Thérèse de Lisieux,1174 ou

por Júlia Kristeva, acerca da autobiografia de Jeanne de Guyon.1175 Todavia, além de

tais obras recorrerem a fontes distintas do relato epistolar, elas pautavam-se em

terminologias freudianas ou lacanianas, cuja transposição à análise das missivas de

Madre Maria José, sem perda do referencial historiográfico, exigiria uma reflexão

teórico-epistemológica que ultrapassaria, e muito, os contornos desta tese.

Uma outra perspectiva de interpretação da subjetividade através dos discursos

foi delineada na confluência entre a historiografia e a crítica literária. Por esta

abordagem, a escrita foi considerada como uma operação ambígua, que tanto promovia

reproduções da ordem vigente, como suscitava recomposições (ainda que minúsculas)

do exercício de poder. Esta foi a assertiva de dois importantes intelectuais

contemporâneos, que embora sem privilegiar o epistolário como fonte documental,

ativeram-se a um discurso feminino produzido em contextos sócio-culturais

marcadamente religiosos. Assim, Octávio Paz, em sua releitura da poesia de Sóror

Juana de la Cruz, monja mexicana da Ordem dos Jerônimos que viveu no século XVII,

busca elucidar como esta famosa autora incorporou códigos e proibições imperantes em

sua sociedade, em paralelo às transgressões por ela efetuadas, que culminaram em seu

silenciamento compulsório. Comentando os 16 poemas religiosos compostos por Juana,

Octávio Paz afirma: Várias vezes observei sua timidez diante da autoridade, seu respeito às

opiniões estabelecidas, seu temor diante da Igreja e da Inquisição, seu conformismo social. Tudo isso não foi senão a metade de sua pessoa, a mais externa. A outra metade foi sua profunda decisão de ser o que queria ser, sua busca paciente e íntima

1173 KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. Semiótica do Romance. 2a. ed. Lisboa: Arcádia, 1978. p. 70. Neste artigo, a autora reporta-se à obra de Bakhtin. 1174 MAÎTRE, Jacques. ‘L’Orpheline de la Bérésina’. Thérèse de Lisieux (1873-1897). Paris: Du Cerf, 1996. O risco acima mencionado é apontado no prefácio, p. 9: “[...] une mise en place historique, des références anthropologiques, une analyse sociologique, un décrytage (ou déchiffrage) psychanalytique. Cet assemblage de lunettes et de microphones rique bien, en fin de compte, de produire un artefact. [...] En particulier lorsque les spécialistes opèrent, malgré eux, des glissements de sens en désignant d’un même terme de concepts différents. (Exemple: ‘sujet’...)”. 1175 KRISTEVA, Julia. Um puro silêncio: a perfeição de Jeanne de Guyon. In: Histórias de Amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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de uma auto-suficiência psíquica e moral que fosse o fundamento de sua vida e seu destino de poeta e intelectual. [...] a secreta e orgulhosa teimosia que a levou a se inclinar, mas não se dobrar, tudo isso não foi rebeldia – impossível em seu tempo e em sua situação – mas foi (e é) um exemplo do bom uso da inteligência e da vontade ao serviço da liberdade interior.1176

Também pautada em fontes não epistolares (basicamente autobiográficas),

Nathalie Zemon Davis indicou como as táticas de escrita, indissociáveis de um

imaginário religioso, foram utilizadas por três mulheres do século XVII na

reconstituição de seu lugar social e de sua subjetividade; antes situadas “às margens”,

elas se auto-alocaram como “um centro localmente definido”: A religião teve enorme influência sobre essas três mulheres. [...] A condição de

judia conferiu a Glikl bas Judah Leib [...] uma identidade profunda, mediante a qual se filtraram outras identidades – de mulher, comerciante, residente num país de língua alemã. [...] Maria Guyart de l’Incarnation aproveitou-se de dois dos caminhos que a Igreja hierárquica da Contra-Reforma deixara abertos para as mulheres: a conquista da santidade vivendo no mundo como esposa e mãe viúva; e o desenvolvimento de uma vocação magisterial convivendo com celibatárias numa ordem nova. [...] tais práticas se refletiram sobre sua eloqüência e sua percepção de si mesmo. [...] Formas de uma espiritualidade protestante radical – aberta a ambos os sexos – irromperam na vida de Maria Sibylla Merian com força especial [...] sua extasiada consciência da presença divina na natureza [...] impregnou o seu trabalho”.1177

No tocante à sociedade brasileira, Aparecida Paiva desenvolveu uma reflexão

em prisma similar: ao interpretar a correspondência mantida entre a escritora católica

baiana Amélia Rodrigues (1861-1926) e o franciscano Pedro Sinzig, responsável pela

censura eclesiástica aos textos publicados pela Editora Vozes, ela considerou que o

projeto de educação católica através da “boa imprensa”, defendido por ambos, foi

viabilizado por uma prática epistolar perpassada pela amizade e pela identificação

religiosa: “[...] porque comprometida com uma visão de mundo compartilhada pelos

dois, enquanto católicos, seu olhar [de Amélia] é capaz de apreender o projeto

moralizante do amigo, encorajando-o em sua luta pela imprensa católica. Não é

possível deixar de incluir em tal leitura sentimentos, afetividades, criações

compartilhadas”.1178 Todavia, argumenta a autora, se Amélia Rodrigues dedicava-se

com tanto empenho às tarefas que lhe eram designadas por frei Pedro Sinzig, ela o fazia

com “[...] generosidade lúcida, não nos enganemos. Ela não está de todo apassivada,

1176 PAZ, Octávio. Sóror Juana Inés de la Cruz: as armadilhas da fé. São Paulo: Mandarim, 1998. p. 408-409. 1177 Cf. DAVIS, Nathalie Zemon. Nas Margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 191-192. 1178 PAIVA, Aparecida. Entre censores. In: GALVÃO, Walnice Nogueira e GOTLIB, Nádia Battilla (org.). Prezado Senhor, Prezada Senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 325.

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submetida. Com um estilo beirando o maternal, ela deixa claro que percebe as

manipulações e, se entra no jogo, é porque isso lhe dá muito prazer”.1179

Esta pesquisa, ao debruçar-se sobre o epistolário de Madre Maria José,

reconheceu sua grande afinidade com tais análises pois, como elas, apropriou-se dos

postulados de uma “hermenêutica do cotidiano” 1180 que, indissociável de uma

historicidade, considera ser “[...] hora de tirarmos essas mulheres concretas e seus

corpos concretos da clausura, do silêncio nosso de cada dia [...] na medida em que não

as enxergamos – míopes ou cegos que somos -, não as tocamos e não sentimos seus

corpos cheios de história, de memória e de um universo religioso complexo [...]”. 1181

Tal premissa viabilizou a elucidação da primeira das problemáticas desta tese:

por que Madre Maria José deixou-se paulatinamente consumir, em um mesmo

movimento formulador do ideal contemplativo? Conclui-se que a Madre não

compreendia o “negativo” imbuído em seu cotidiano (de clausura), em seu corpo (com

suas doenças) e em seu psiquismo (por seu temor de ofender a Deus) como um encadear

de sofrimentos mas, significando tais experiências como uma “paixão”, ela

potencializava a si mesma como “pessoa” (no plano do imaginário sócio-cultural), como

“sujeito” (no âmbito do discurso) e como “santa” (na dimensão fenomenológica da

relação com Aquele que amava).

Um poder

A articulação da correspondência religiosa feminina a suas condições de

validação político-institucional tangencia uma dupla abordagem, com recíprocas

relações. Por um lado, ela remete aos estudos de gênero,1182 que permitem vincular a

1179 Ibid. p. 328. 1180 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças. Estudos Feministas. Rio de Janeiro, ECO/UFRJ, V. 2, 1994. p. 373-374: “A hermenêutica apreende o sujeito como parte do mundo e não o mundo do sujeito, de modo que desvenda a possibilidade de novas formas de apreensão da subjetividade feminina em outras épocas do passado. Os estudos feministas propõem uma redefinição dos processos de subjetividade, uma crítica do conceito de identidade [...] Através de focos narrativos, a hermenêutica do quotidiano procura historicizar aspectos concretos da vida de todos os dias dos seres humanos – homens e mulheres – em sociedade. Justamente como reforço do seu prisma movediço, surgido num mundo instável e em processo de transformação, supõe-se uma das frentes críticas do conhecimento contemporâneo”. 1181 FONSECA, José Dagoberto. Clausura e Silêncio. Trabalho apresentado no Seminário “Experiências religiosas e novas espiritualidades”, nas VII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, São Paulo, set. 1998. p. 13. 1182 Para maior aprofundamento da primeira e da segunda abordagens mencionadas, foi-me de grande importância o curso História e Gênero: um estudo das sociedades ibéricas e ibero-americanas, promovido pela profa. Francisca Nogueira de Azevedo no segundo semestre de 2001, no PPGHIS.

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prática de escrita epistolar de Madre Maria José a um processo de “feminização” do

catolicismo no Brasil, identificado pela socióloga Maria José Rosado Nunes a partir do

final do século XIX, o qual, “[...] longe de significar um investimento das mulheres no

exercício do poder sagrado, representa, de fato, a afirmação de seu estatuto

subordinado. Pode-se mesmo afirmar que é justamente porque a Igreja manteve, no

período da reforma católica, práticas e discursos restritivos em relação às mulheres,

que ela pôde incorporá-las em sua estratégia de reforma institucional”.1183 Com isso, a

segunda problemática desta pesquisa, concernente ao viés “conservador” presente nas

entrelinhas das cartas da Madre, articula-se à reflexão acerca das relações mantidas

entre as religiosas e as instâncias decisórias da Igreja Católica, despertando “[...]

questionamentos sobre a colaboração da mulher com o poder, sobre a possibilidade de

serem co-autoras e mantenedoras da opressão de que elas próprias são vítimas, e sobre

a escassa consciência que muitas delas têm quanto aos efeitos de serem participantes

das relações de poder”. 1184

Em seguida, tais relações de poder imiscuem-se no epistolário de Madre Maria

José a partir de premissas filosófico-antropológicas. Ao formular o ideal contemplativo

através de sua correspondência, a Madre instituía o viés do “negativo” como o pólo

legitimador da premissa de desigualdade e, por conseguinte, de hierarquia a que as

relações humanas estariam submetidas e, de forma concomitante, divergia de uma

acepção de indivíduo pautada em um suposto igualitarismo preconizado pelo contrato

social.1185 Com isso, a dicotomia que tantas vezes havia contraposto, na esfera católica,

setores “avançados” àqueles tidos como “retrógrados”, mostrava-se bem mais

complexa, pois as missivas de Madre Maria José não deixavam de consistir em uma

1183 NUNES, Maria José Rosado. Freiras no Brasil. In: PRIORE, Mary del. História das Mulheres no Brasil. 2a. ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 498. 1184 VVAA. Dicionário de Teologia Feminista. Verbete “Poder/Domínio”. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 398. 1185 DUARTE, Luiz Fernando Dias. A pulsão romântica e as ciências humanas no Ocidente. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 19, n. 55, jun. 2004. p. 9: “Examinarei em seguida a dimensão da diferença [para o pensamento romântico]. Compreendo como tal a ênfase no caráter não igualitário, hierárquico, propriamente distinto ou específico, dos entes entre si. Algo como uma espessura diferencial do mundo, ou uma distribuição diferencial do valor – evidentemente em oposição frontal ao postulado da igualdade, essencial ao ideário individualista”. Ver também MANNHEIM, Karl. O significado do conservantismo. In: FORACCHI, Marialice Mencarini (org.). Karl Mannheim: sociologia. São Paulo: Ática, 1982. p. 121. Sugere-se uma afinidade entre o imaginário católico e o pensamento alemão, desenvolvida no capítulo 1.

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modalidade de resistência aos postulados da ordem liberal, conclusão próxima ao

pensamento de Louis Dumont1186: É necessário dizer, portanto, que existem duas vias para se reconhecer, de

algum modo, o Outro: a hierarquia e o conflito. Agora, que o conflito seja inevitável e talvez necessário é uma coisa, e postulá-lo como ideal, ou como ‘valor operatório’ é uma outra, mesmo que se esteja de acordo com a tendência moderna [...] O conflito tem o mérito da simplicidade, enquanto que a hierarquia acarreta uma complicação semelhante à da etiqueta chinesa. [...]. 1187

Assim, mais do que tradução das opiniões peculiares de uma religiosa, tal

correspondência configurou-se como um embate entre diferentes concepções de

sociedade, “tradicional” ou “moderna”, tecido a partir dos vínculos mantidos (ou não)

com o sagrado.

Paralelamente, as reflexões de Julia Kristeva possibilitam compreender que o

vínculo entre contemplação e poder autoritário situa-se não no estabelecimento de

diferenças e hierarquias mas, paradoxalmente, na sua diluição, com a decorrente

reificação do absoluto de uma identidade e de uma verdade. Não casualmente, alguns

dos regimes políticos mais ditatoriais fundamentaram sua ideologia numa relação

fusional do humano com o “Todo”, fosse ele concebido como a Nação, o Partido ou a

Fé. Assim, “o culto da origem”, isto é, a busca de retorno a um estado não cindido,

portanto não limitado, [...] é esse resquício religioso que alimenta os integrismos políticos modernos de todos os tipos. [...] enquanto não se tiver reconhecido um outro outro – que não é a outra pessoa, meu semelhante, meu irmão, mas a outra lógica em mim, minha estranheza, minha heterogeneidade, as camadas que me habitam sobre a superfície uniformizada dos usuários da técnica – pois bem, o culto da ‘origem’, do fundo inacessível, do paraíso inominável vai reclamar seu ‘retorno do reprimido’ na forma de uma ‘fé’ ou, mais brutalmente, nas guerras fraticidas que pretendem reconstituir o fundo perdido.1188

Conclui-se, assim, que Madre Maria José, sem deixar de ser “conservadora”, ou

seja, sem refutar uma visão hierárquica do mundo, incidiu sobre a cultura católica de

sua época em um duplo sentido: na suspeição ao ideário da modernidade, que se

introduzia de forma violenta na sociedade brasileira do início do século XX, e na

pluralização do pensamento católico, por sua defesa de um estilo de vida contemplativo,

que passou a ser considerado anacrônico, inclusive por destacados membros do clero,

principalmente a partir dos anos 40. 1186 Agradeço ao prof. Luiz Fernando Dias Duarte a indicação deste autor, por ocasião da qualificação desta pesquisa, cuja banca foi por ele integrada, em outubro de 2003. 1187 DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 277. 1188 CLÉMENT, Catherine e KRISTEVA, Julia. O Feminino e o Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 201. Grifos da autora, em itálico no original.

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Talvez, porém, a maior contribuição que Madre Maria José – e a que ela

continua a promover – seja o suscitar um diálogo (sem implicar em uma identificação)

com a particularidade da crença por ela manifestada: quando vertentes da chamada pós-

modernidade interrogam-se sobre as desigualdades decorrentes dos postulados

individualistas,1189 inquirir as virtualidades de uma lógica “conservadora”, refutando-se

qualquer apologismo ou saudosismo, implica dotar a reflexão de outros tantos

instrumentais críticos e novas sensibilidades.1190

Uma resposta possível

O relato epistolar de Madre Maria José continua a se dar a ler e, neste processo,

ele não se atém à sua condição de verdade institucional, de representação de uma

totalidade teológica ou ética, ou mesmo de um comentário autorizado; ao ser

interpretado por procedimentos (e controles) outros, como os empreendidos por esta

tese, ele constituiu-se como uma “proliferação alterante”,1191 despertando novos

“estilos”,1192 novas maneiras de viver a escrita, a constituição de si e a relação com o

diferente.

Neste sentido, esta pesquisa foi promovida numa relação de permanente

ambivalência, oscilando entre a afinidade e o distanciamento com o ideário tecido por

Madre Maria José. Tal movimento, aliás, não passou desapercebido ao orientador, que

em sua avaliação final comentou que eu, por várias vezes, colocara-me “por detrás” da

Madre, deixando que seu texto, e não o meu, tivesse a última palavra: “Eu acho que

você se identifica com ela”, sugeriu em tom de brincadeira, “talvez mais do que queira

reconhecer...”

1189 Em uma reflexão que se mantém atual, SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 145. 1190 DUARTE, Luiz Fernando Dias. Método e ficção nas ciências humanas: por um universalismo romântico. Op. Cit. p. 64: “A preservação, assim, da tensão entre a disposição de busca da verdade pela ciência e de preservação da reserva romântica em nome da vivência, da experiência, da totalidade – enfim, tudo isso que se enovela nos debates epistemológicos contemporâneos -, é fundamental. É em torno dessa tensão que nós podemos efetivamente continuar preservando o que temos de melhor nesta cultura ocidental moderna que nos estrutura como ficção razoável: é preciso cultivar, como método, um ‘universalismo romântico’.” 1191 FOUCAULT, Michel. O Que é um Autor? 4a. ed. s.l: Vega/Passagens, 2002. p. 58-60: “Estes autores têm isto de particular: não são apenas autores das suas obras, dos seus livros. Produziram alguma coisa mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos […] são […] “instauradores de discursividade” […] tornaram possível um certo número de analogias como também tornaram possível (e de que maneira) um certo número de diferenças. Eles abriram espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto, pertence ao que eles fundaram”. 1192 Cf. capítulo 5, p. 184.

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Fui então instada a retomar o discurso em primeira pessoa, para responder a ele e

a mim mesma, em um diálogo jamais concluso: através desta tese, ao historicizar o

conservadorismo de Madre Maria José, o seu “deixar-se consumir”, eu pude dedicar

uma atenção amorosa, mas também crítica, a um imaginário tão presente na cultura e na

sociedade a que pertenço e, com isso, permitir-se caminhar por veredas distintas.

Distintas, sim, mas não totalmente separadas, conforme o belíssimo dizer de Michel de

Certeau, tecido ao longo de sua reflexão sobre a experiência religiosa, em analogia ao

conhecimento histórico: “Quand cette situation parvient à se dire, elle peut encore

avoir pour langage l’antique prière chrétienne: ‘Que je ne sois pas separé de toi’. Pas

sans toi”. 1193

1193 CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, 1. Op. Cit. p. 9.

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ANEXOS

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ANEXO 1

CRONOLOGIA DE MADRE MARIA JOSÉ DE JESUS, OCD I- Vida leiga: 1882 18 de fevereiro. Nascimento de Honorina de Abreu, filha de João Honório Capistrano de Abreu e

Maria José de Castro Fonseca. Meados de setembro. A família muda-se para a casa dos pais de Maria José, o capitão-de-mar-e-guerra Ignácio Joaquim da Fonseca e Adélia de Castro Fonseca.

1891 Dezembro. Morte de Maria José, de febre puerperal, aos 33 anos. As biografias de Capistrano registram que, antes de morrer, Maria José pede-lhe que não dê madrasta aos cinco filhos do casal (além de Honorina, Adriano, nascido em 1883, Fernando, em 1886, Henrique, em 1889, Matilde, em 1891). Capistrano, com Adriano e Fernando, muda-se para uma pensão. Honorina e Matilde permanecem com os avós.

1893 Honorina ingressa no Colégio da Imaculada Conceição, das Irmãs de Caridade, na praia de Botafogo. 15 de agosto. Falecimento de Henrique, irmão de Honorina, vitimado pelo tifo.

1894 15 de agosto. Honorina recebe a primeira comunhão e, em momento posterior, a crisma, sendo sua madrinha Matilde Berenger, prima e amiga de sua avó.

1896 Dezembro. Honorina conclui sua formação no Colégio da Imaculada Conceição, recebendo prêmio de honra. Mantém íntima convivência com os primos Souza Leão, família abastada.

1902 Conversão de Honorina, que se afasta das festas, embora continue a trajar-se com elegância. Início de sua freqüência ao Mosteiro de Nossa Senhora da Ajuda, no Rio de Janeiro. 21 de março. Falecimento do avô materno de Honorina. Devido às dificuldades financeiras sofridas pela avó, Honorina e Matilde vão morar com os primos Berenger, por dois anos.

1903 Verão. Estando em Petrópolis, Honorina consulta o franciscano Luiz Reinke sobre o chamado que sentia para a vida religiosa. Decide abandonar seus padrões de elegância, usando invariavelmente blusa branca e saia cinza. 21 de novembro. Honorina ingressa na Pia União das Filhas de Maria do Colégio da Imaculada Conceição.

1904 Honorina recebe direção espiritual de mons. Eduardo Cristão, capelão do Mosteiro da Ajuda, onde funda uma das seções da Pia União, fazendo parte da diretoria, como secretária.

1905 Com a morte de mons. Eduardo Cristão, Honorina passa a ser dirigida pelo jesuíta pe. Fialho, que lhe sugere o ingresso no Carmelo Descalço.

1906 Honorina atua como professora e catequista na igreja da Ajuda e nas paróquias do Coração de Jesus e de São José. Inicia seus preparativos para entrada no Convento de Santa Teresa, pedindo ao irmão Fernando que vá morar com a avó.

1910 Publicação da Imitação de Cristo pela livraria Garnier, traduzida do latim por Honorina (o prefácio e orações no final dos capítulos foram compostos por ela). Publicação da Vida de são Luís Gonzaga, traduzida do italiano por Honorina. As duas traduções fornecem-lhe os recursos necessários para o dote de ingresso na vida religiosa. 29 de dezembro. Honorina envia uma carta a Capistrano de Abreu (ausente temporariamente do Rio de Janeiro), comunicando-lhe seu desejo de ingressar imediatamente no Carmelo.

1911 2 de janeiro. Requerimento de Honorina ao cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, solicitando sua entrada no Convento de Santa Teresa, visto ter sido aprovada pelo capítulo conventual. No mesmo dia, manteve conversa com o pai, que pede-lhe para adiar o ingresso enquanto a avó estiver viva. Capistrano, em seguida, vai com Honorina para casa de uma amiga, em Nova Friburgo, estado do Rio. 8 de janeiro. Honorina envia carta a Capistrano, comunicando-lhe que ingressará na vida contemplativa no dia 10 de janeiro, e pedindo-lhe veementemente que vá assistir à sua entrada. Ela permanece durante esses dias hospedada na portaria externa do Convento.

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II- Vida religiosa (década de 10): 1911 10 de janeiro. Ingresso de Honorina no Carmelo Descalço, na festa da Sagrada Família.

4 de março. Honorina presta depoimento perante o vigário-geral da Cúria para ser admitida no noviciado. Na ocasião, apresenta seu nome religioso, Irmã Maria José de Jesus. 10 de março. Provisão do cardeal Arcoverde, autorizando a admissão de Irmã Maria José no noviciado. 19 de março. Irmã Maria José Recebe o hábito carmelitano.

1912 13 de fevereiro. Pedido de Irmã Maria José para prestar o depoimento exigido à profissão de votos simples. Ofício da priora ao Cardeal, comunicando a aprovação de Irmã Maria José pelo capítulo conventual para a profissão, e que a mesma fez entrega ao convento de um dote de dois contos de réis. 16 de fevereiro. Depoimento juramentado de Irmã Maria José, diante do secretário do arcebispado. 8 de março. Provisão do cardeal Arcoverde, autorizando a profissão de votos simples. 21 de março. Irmã Maria José realiza sua profissão de votos simples. Após a profissão, é nomeada “anjo” do noviciado, isto é, ajudante da mestra de noviças. Retoma da escrita de poesias, a pedido da priora e torna-se dirigida espiritual de D. Sebastião Leme.

1913 Março. Irmã Maria José deveria deixar o noviciado e passar a residir na parte destinada à comunidade religiosa, mas continua na sua antiga cela, pois é confirmada no ofício de “anjo”.

1915 4 de fevereiro. Solicitação de Irmã Maria José ao cardeal Arcoverde para emitir votos solenes. 12 de fevereiro. Depoimento juramentado de Irmã Maria José, diante do representante da Cúria. 4 de março. Provisão do cardeal Arcoverde, autorizando a profissão solene. 25 de março. Provisão solene de Irmã Maria José de Jesus. 31 de março. Irmã Maria José é nomeada ajudante de mestra de noviças, ofício exercido pela própria priora.

1915-17 Irmã Maria José escreve retiros para tomada de hábito (desenvolvendo as meditações que havia feito para a própria vestição), para a profissão simples e uma preparação para esta primeira consagração, constando de meditações diárias durante três meses.

1917 21 de abril. Irmã Maria José é eleita priora por unanimidade de votos. Maio: Madre Maria José introduz as conferências espirituais, feitas pelas Irmãs, nos recreios, conforme determinam as Constituições. Promove reformas no Convento: sala da terçaria, refeitório, corredores, escada, algumas celas, portaria externa e interna, ante-coro de baixo; colocação de grade de madeira no locutório de baixo e um estrado debaixo do balcão da portaria, para preservar as irmãs da friagem, enquanto esperavam a confissão; instalação de um lampião grande na sala da recreação, de um aquecedor na enfermaria e de uma máquina de fazer hóstias na cozinha. Madre Maria José reformula alguns hábitos conventuais: introduz as meias da Ordem, correinhas e véus de noite; retira as banquinhas [pequenos armários] das celas. Maio. Casamento de Matilde, irmã de Madre Maria José, com o médico Aprígio Nogueira. O casal vai residir em Minas Gerais e não terá filhos. O irmão Fernando e a cunhada Cecília Castro Rebelo passam a morar com a avó, Adélia, devido à saída de Matilde. Capistrano habita em frente à sogra e faz as refeições com a família. Outubro. Início parcial do emprego do reto tom na liturgia Madre Maria José enfrenta problemas de saúde (gripes freqüentes, asmas, bronquite com insônia).

1918 24 de outubro. Falecimento de Fernando, irmão de Madre Maria José, aos 32 anos, vitimado pela gripe espanhola. Maio. Inauguração das duas rouparias. Determinação de que as celas tivessem apenas 3 quadros pendurados, sendo um deles uma gravura de Jesus, Maria, José, distribuída pela Madre a cada uma das irmãs. Inauguração da ermida de santo Aleixo. Dezembro. Inauguração do nicho de N. Sa. das Graças no salão, em lugar da lamparina de azeite diante da imagem do Sr. de Iguape. Continuidade das reformas no Convento.

1919 Instalação de oratório no coro. Reformas: sacristia, escada, confessionário, varanda, reinstalação da luz elétrica no coro. Edição da obra escrita pela Madre, Método excelente de contemplar os mistérios do Rosário de Nossa Senhora, pela editora Vozes.

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III- Vida religiosa (década de 20): 1920 Abril. Aprovação do regulamento para o toque dos sinos.

21 de abril: Madre Maria José é votada para priora, mas a legislação teresiana não permite a reeleição. Obtidos os votos necessários à postulação, o vigário geral nomeia a subpriora como vigária da comunidade por alguns dias, enquanto consultaria o cardeal. A Madre escreve ao cardeal, pedindo-lhe que não consinta, e é atendida. 28 de abril. Sem poder ser votada para priora, Madre Maria José é eleita primeira clavária e nomeada mestra de noviças. Pouco depois recebe também o ofício de porteira. Maio. Madre Maria José começa a sofrer de varizes, sendo dispensada do ofício de porteira e tornando-se primeira roupeira. 9 de dezembro. Falecimento da avó de Madre Maria José, Adélia, aos 93 anos.

1923 21 de abril. Madre Maria José é eleita priora, mesmo estando muito doente. Obtenção de licença para toque dos sinos conforme a prescrição do Cerimonial, o que era interdito desde 1912 pela Câmara Eclesiástica. Continuidade das reformas no Convento, iniciadas em janeiro de 1921, que perdurariam até setembro de 1924. Publicação da obra escrita pela Madre, O Coração Divino: 33 meditações sobre as invocações do Sagrado Coração de Jesus, pela editora Marques, Araújo e Cia.

1924 22 a 24 de fevereiro. Tríduo solene comemorativo da beatificação de santa Teresinha. 15 de outubro. Celebração solene do 3º centenário de canonização de santa Teresa de Jesus. A data oficial fora 12 de março, mas tinha sido adiada devido às reformas no Convento. Doação de relíquias de padres jesuítas e de são Sebastião às religiosas da Assunção; preservação das relíquias do santo Lenho e de santa Teresa.

1925 15 de outubro. Madre Maria José compõe um Ato de consagração a Maria, Dom de mim.

1926 12 de março. Fundação do Carmelo São José, no Rio de Janeiro. 15 a 17 de abril. Comemoração solene da canonização de santa Teresinha. 22 de abril. Eleições para priora. Madre Maria José é nomeada mestra de noviças (ofício que desempenhou, com intermitência, por quinze anos e meio). Fim do ano. Madre Maria José inicia a tradução das Constituições da Ordem Teresiana, do original italiano.

1927 13 de agosto. Falecimento do pai de Madre Maria José, Capistrano de Abreu, aos 73 anos.

1929 21 de abril. Madre Maria José é eleita priora, permanecendo como mestra de noviças por determinação do cardeal. 1º de maio. Fundação do Carmelo da Santíssima Trindade, no Rio de Janeiro. 9 de dezembro. Fundação do Carmelo de Santa Teresinha, em Fortaleza, Ceará. Publicação da Regra e Constituições das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo, traduzidas do italiano por Madre Maria José.

1930 11 de fevereiro. Adoção do reto tom para recitação do Ofício divino, com aprovação do Capítulo e do arcebispo coadjutor. Março. Inauguração da ermida em cela junto à enfermaria. Maio. Começam a vigorar as novas Constituições do Carmelo Descalço. Junho. Inauguração da gruta de Nossa Senhora de Lourdes. Outubro. Início da celebração de missa de Réquiem pela fundadora do Convento de Santa Teresa, Madre Jacinta; aprovação, neste mesmo ano, de celebração de missa de Réquiem pelo Conde de Bobadela. Publicação do Ordinário ou Cerimonial das Religiosas Descalças da Ordem da Gloriosíssima Virgem Maria do Monte Carmelo, traduzido do italiano por Madre Maria José.

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237

IV- Vida religiosa (década de 30): 1931 Outubro. A pedido do cardeal D. Sebastião Leme, Madre Maria José escreve o Ato de Desagravo, para

ser lido na inauguração do Cristo Redentor.

1932 21 de abril. Madre Maria José é reeleita priora. Continua como mestra de noviças. 1º de julho. Reformas na enfermaria. 23 de setembro a 10 de outubro. Madre Maria José é internada na Casa de Saúde São José, sendo operada de um quisto no joelho. Publicação do Manual dos Ofícios Divinos para uso das Religiosas Descalças da Ordem da B.V. Maria do Monte Carmelo, traduzido do italiano por Madre Maria José.

1934 9 a 11 de novembro. Tríduo solene em comemoração à canonização da carmelita italiana Teresa Margarida do Sagrado Coração de Jesus (Redi). Reedição da obra O Coração Divino, pela editora Mendes Jr.

1935 Abril. Madre Maria José deixa o priorado, continuando como mestra de noviças. Reedição da obra escrita pela Madre, Método excelente de contemplar os mistérios do Rosário de Nossa Senhora, pela editora Vozes. Madre Maria José inicia a tradução das Obras Completas de santa Teresa, tarefa a que dedicará o restante de sua vida.

1936 Madre Maria José contrai forte gripe, com complicações.

1937 Janeiro. Agravam-se as doenças de Madre Maria José: esgotamento, asma, constipação, varizes, fraqueza, insônia. 21 de março. Jubileu de prata da profissão de Madre Maria José, com celebração solene e benção papal.

1938 21 de abril. Madre Maria José é eleita priora, deixando o cargo de mestra de noviças. Publicação da obra escrita pela Madre, Nosso Pai São José: meditações para o mês de março, 4as. feiras e qualquer tempo do ano, pela editora Vozes. Publicação da tradução do Livro da Vida, de Santa Teresa.

1939 O Convento de Santa Teresa é tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

1940 10 de janeiro. O Núncio Apostólico D. Bento Aloísio Masella celebra missa no Convento de Santa Teresa, pelos 29 anos de ingresso de Madre Maria José. Publicação da tradução de Fundações, de santa Teresa.

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238

V- Vida religiosa (década de 40): 1941 25 de março. Solene consagração da comunidade ao Espírito Santo. Madre Maria José escreve o Ato

de consagração. Março e Abril. Promoção de reformas: coro, capelinha, rouparia, confessionário, banheiros. 21 de abril. Madre Maria José é reeleita priora por unanimidade; tenta renunciar, mas o cardeal D. Leme recusa o pedido. 31 de maio. Solene consagração da Comunidade a Nossa Senhora do Carmo, que é proclamada a “priora perpétua”, conforme tradição carmelitana. 30 de junho. Inauguração de um elevador externo, em um plano inclinado. Aulas de canto para a comunidade com o maestro Furio Franceschini. Preparação de regulamento para freqüência aos locutórios.

1942 27 de março. Comemoração dos 200 anos de fundação do Convento de Santa Teresa. Sendo Quaresma, a comemoração pública é adiada para 15 de outubro. 17 de outubro. Falecimento do cardeal D. Sebastião Leme. Publicação da tradução de Caminho de Perfeição, de santa Teresa.

1943 Agosto. Retiro pregado, pela primeira vez, por um carmelita descalço, pe. Alberto de Santa Teresa.

1944 17 de janeiro. Início de novas reformas conventuais: caiação e instalação de duas clarabóias no coro de cima, para melhorar a iluminação; obras no ante-coro, no corredor, na sapataria, na segunda rouparia, no locutório. 7 de março: Início das obras no campanário, claustro e sacristia.

1944 21 de abril. Madre Maria José é eleita primeira conselheira e nomeada mestra de noviças.

1945 18 a 24 de março. Madre Maria José vai ao Carmelo da Santíssima Trindade, fundado em 1929, no Rio de Janeiro. Ali se encontra com a priora, Madre Maria Evangelista, onde acertam os detalhes para a fundação do Carmelo do Espírito Santo em Teresópolis. Madre Maria José orienta a comunidade sobre a recitação do Ofício divino em reto tom. 24 de março. Madre Maria José vai a Teresópolis para ultimar os preparativos da próxima fundação, depois retornando para o Convento de Santa Teresa. 3 de junho. Madre Maria José e mais cinco irmãs fundam o Convento do Espírito Santo, em Teresópolis, onde irá exercer o cargo de priora. Neste dia, passam algumas horas no Carmelo de São José, em Petrópolis. Revisão do Livro da Vida, de santa Teresa, para 2ª. edição. Reedição da obra Nosso Pai São José, pela editora Vozes.

1946 4 de junho. Madre Maria José retorna ao Convento de Santa Teresa. Isa de Abreu, sobrinha de Madre Maria José, funda a congregação Servas dos Pobres, filiada à Ordem do Carmelo Descalço. A ereção canônica data de 1950. Publicação da tradução de Castelo Interior ou Moradas, de santa Teresa.

1947 21 de abril. Madre Maria José é eleita priora. 3 de outubro. Solene comemoração do 50º aniversário de morte de santa Teresinha.

1948 9 de março. Restabelecimento da lavagem de roupa pela comunidade, conforme a tradição teresiana. Reforma na lavandeira, até junho. 15 de outubro. Te Deum solene comemorativo do 2º centenário da recitação do Ofício divino no Convento, iniciado em 22 de outubro de 1748. Publicação da obra escrita por Madre Maria José, Deus Presente, pela Indústria Gráfica Siqueira. A Madre piora do reumatismo.

1949 13 e 20 de novembro. Fr. Silvério de Santa Teresa de Jesus, padre geral da Ordem do Carmelo Descalço, visita o Convento de Santa Teresa. 10 a 23 dezembro. Madre Maria José é transferida ao Hospirtal São Zacarias, a fim de submeter-se a tratamento ortopédico. Publicação das obras escritas por Madre Maria José, Opúsculos Marianos I: rosal de Maria, fio de pérolas e Opúsculos Marianos II: semana marial, coroa de doze estrelas, saltério de dez cordas, rosário, coroa das dores, ambas pela editora Mendes Jr.

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VI- Vida religiosa (década de 50): 1950 21 de abril. Madre Maria José deixa o priorado e é nomeada mestra de noviças.

Publicação da obra escrita pela Madre, O Senhor Menino Deus, pela Pia Sociedade de São Paulo.

1951 Publicação da tradução de Conceitos do Amor de Deus-Relações Espirituais-Exclamações-Poesias- Avisos, de santa Teresa.

1952 12 de fevereiro. Falecimento de Adriano, irmão de Madre Maria José. Revisão das traduções de Fundações e Moradas, para 2ª. edição.

1953 21 de Abril. Madre Maria José é eleita priora. Início da tradução das Cartas de santa Teresa. Mons. Maurílio Teixeira Leite Penido torna-se confessor de Madre Maria José, até 1957.

1954 Início do ano. Reforma na capelinha externa de Nossa Senhora do Carmo. Madre Maria José corresponde-se com o escritor e monge trapista Thomas Merton, a quem envia hóstias e livros.

1955 Ampliação das atividades de devoção eucarística da comunidade, em preparação ao Congresso Eucarístico Internacional. Publicação da Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa, escrita por Madre Maria José.

1956 8 de abril. Comemoração do jubileu de prata de priorado de Madre Maria José (incluindo-se o ano em Teresópolis). 19 de abril. Madre Maria José é reeleita priora. Fins de agosto. Término da tradução das Cartas de santa Teresa. Revisão de Castelo Interior ou Moradas para a 2ª. edição. Madre Maria José tem a visão reduzida devido à catarata.

1957 Fins de agosto. Reformas na sacristia do Convento. 22 de novembro. O cardeal D. Jaime de Barros Câmara, informado pela subpriora sobre a saúde precária de Madre Maria José, vai visitá-la, dispensando-a da observância regular até fevereiro. Dezembro. Madre Maria José tem suas condições de saúde ainda mais debilitadas: está encurvada, com hipetrofia ganglionar no mediastino; os pés estão deformados, necessitando apoiar-se em dois bastões para locomover-se; sofre de dores reumáticas e a catarata progride.

1958 25 de maio. Madre Maria José tem o primeiro distúrbio do miocárdio. 5 de junho. Fr. Anastácio do S. Rosário, padre geral dos carmelitas descalços, visita o Convento. Término da revisão da tradução das Cartas de santa Teresa. 22 a 31 outubro. Madre Maria José é internada no Hospital da Beneficência Portuguesa para submeter-se a exames clínicos. 3 de dezembro. Madre Maria José é dispensada pelo cardeal de todas as suas atividades, ficando a direção da comunidade a cargo da subpriora. 7 de dezembro. Madre Maria José recebe a unção dos enfermos. 9 de dezembro. Madre Maria José é internada na Casa de Saúde Santa Juliana, no Rio de Janeiro. 18 de dezembro. Início do tratamento de Madre Maria José com insulinoterapia.

1959 17 de janeiro. Por determinação do médico, a carmelita que acompanhara Madre Maria José volta ao Convento de Santa Teresa. 14 de fevereiro. A supriora e outra religiosa visitam Madre Maria José. Final de fevereiro. Interrupção do tratamento à base de insulina, devido à crise convulsiva sofrida pela Madre durante o mesmo. 11 de março. Pouco depois das sete horas da manhã, Madre Maria José tem uma síncope cardíaca, falecendo às sete e meia. 12 de março. Madre Maria José é sepultada nas catacumbas do Convento de Santa Teresa, com autorização especial da Prefeitura do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Restabelece-se, desta forma, a tradição suspensa desde 1905, de sepultarem-se as monjas nas catacumbas conventuais. Publicação da primeira biografia de Madre Maria José, escrita pelas carmelitas do Convento de Santa Teresa, Notícia aos nossos Carmelos sobre nossa reverenda Madre Maria José de Jesus. Terceira edição da obra Nosso Pai São José, pela editora Vozes.

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VII- Memória: 1960 Publicação de poesias da Madre, na obra Sonetos e Poemas, pela Gráfica Olímpica.

Publicação de poesias da Madre, na obra À virgem Santíssima e outros poemas, em edição do Convento de Santa Teresa.

1963 Publicação de poesias da Madre, na obra Ciclo Litúrgico, pela editora São Vicente.

1966 Publicação de poesias da Madre, na obra Festas do Carmelo, pela editora Artes Gráficas da Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca.

1967 Publicação de poesias da Madre, na obra Alegrias de Nossa Senhora, pela editora Guanabara.

1968 Publicação de uma segunda biografia, escrita por Irmã Marina do Sagrado Coração de Jesus, Memorial da vida de Madre Maria José de Jesus, carmelita descalça.

1970 Publicação de Novena de Santa Teresa de Jesus. Homenagem à proclamação do Doutorado de Santa Teresa de Jesus, pelo Convento de Santa Teresa. Exumação dos restos mortais de Madre Maria José, depositados em urna na parede do claustro.

1973 Publicação da Novena de Nossa Senhora do Carmo, pelo Convento de Santa Teresa.

1986 Preparativos para introdução da causa de canonização de Madre Maria José de Jesus. Frei Patrício Sciadini, provincial dos carmelitas e posteriormente vice-postulador da causa, dá início aos trâmites legais.

1987 Publicação de Vôo para Deus: coletânea de pensamentos extraídos de Madre Maria José de Jesus, em co-edição Loyola e Carmelitanas.

1988 Reedição de Vôo para Deus.

1989 26 de março. O postulador geral dos carmelitas descalços, Fr. Simeão da Sagrada Família, entrega petição oficial ao cardeal do Rio de Janeiro, D. Eugênio de Araújo Sales. 14 de novembro. Emissão do decreto de introdução da causa de canonização de Madre Maria José. 20 de novembro. Sessão de abertura e início do processo de canonização. Nomeação dos membros do tribunal para instrução do processo, sendo designado para juiz delegado o padre Fernando José Monteiro Guimarães, cssr., vigário judicial da Arquidiocese e presidente do Tribunal Eclesiástico Regional do Rio de Janeiro. Terceira edição de Vôo para Deus.

1990 Publicação de A Voz do Silêncio: correspondência (seleção, introdução e notas do pe. Fernando José Guimarães, cssr., e Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro).

1991 18 de fevereiro. Nova exumação dos restos mortais de Madre Maria José, os quais passam por tratamento preservativo e são encerrados em urna de madeira, lacrada com o selo do Tribunal Eclesiástico do Rio de Janeiro. 11 de março. Trasladação solene da urna das catacumbas para a igreja do Convento de Santa Teresa, onde é celebrada missa. Recondução da urna para a clausura, até o coro das carmelitas, e aí tumulada em um lóculo aberto na parede divisória entre a clausura e a igreja, colocando-se lápides de ambos os lados.

1992 Reedição de A Voz do Silêncio: correspondência. 28 de março. Missa pelo encerramento do processo de canonização de Madre Maria José, em fase diocesana. Envio do processo à Congregação para as Causas dos Santos, na Santa Sé.

1996 Reedição da obra Deus Presente, revista e atualizada. Quarta edição de Vôo para Deus.

1997 Publicação da tese de doutorado Madre Maria José de Jesus no Caminho da Perfeição, defendida neste mesmo ano no Programa de Pós-graduação em História da USP, de autoria do professor Dante Marcello Gallian.

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ANEXO 2

Epistolário de Madre Maria José

I- Cartas enviadas a seus familiares:

1911-

1915 1916-1920

1921-1925

1926-1930

1931-1935

1936-1940

1941-1945

1946-1950

1951-1955

1956-1959

Sem data

TO-TAL

Capistrano de Abreu (pai)

3 8 16

6 - - - - - - - 33

Avó do Ceará

- -

1 - - - - - - - - 1

Matilde (irmã)

- - 3 19 7 7 4 5 13 3 1 62

Aprígio (cunhado)

- - - 1 1 - - - 3 3 1 9

Matilde e Aprígio

- 1 - 5 1 1 2 - 3 1 1 15

Adriano (irmão)

2 11 8 8 8 9 14 14 5

- - 79

Amnéris (cunhada)

- - 2 1 - 1 - - 3 - - 7

Adriano e Amnéris

1 1 - - - - - - - 2 4

Isa (sobrinha)

- - - - 5 5 4 11 5 - 4 34

Honorina (sobrinha)

- - - - 1 - 1 1 - - - 3

Jônia (sobrinha)

- - - - 1 - - - 12

- - 13

Sebastião de Abreu (tio)

- - - - - - - - - 1 - 1

Zizi (prima)

- - - 2 4 1 2 - 1 - - 10

Maroquinha (prima)

- - - 1 - - - 1 1 - - 3

TOTAL

5

21

31 43 28 24 27 32

46

8 9 274

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242

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243

II- Cartas enviadas às religiosas do Convento de Santa Teresa:

1911-1915

1916-1920

1921-1925

1926-1930

1931-1935

1936-1940

1941-1945

1946-1950

1951-1955

1956-1959

Sem data

TO- TAL

Comunidade conventual

- 12 - - 14 - - 9 - 18 1 54

Ir. Antônia de Santa Teresa

- - - - - - - - - 1 - 1

Ir. Elisa

- - - - 1 - - - - - 1

Ir. Inês do Cor. Maria

- - - - - - 11 3 1 7 - 22

Ir. Jacinta São José

- - 1 1 1 1 5 4 1 - 6 20

Ir. Maria C. de Cristo Rei

- - - - 1 1 5 - 1 - 6 14

Ir. Maria Divino Cor.

- - - - - - 6 2 - - - 8

Ir. Maria Glória

- - - - - 1 - - 1 - 1 3

Ir. Maria Isabel

- - - - 1 - - - - - - 1

Ir. Maria Jesus Hóstia

- - - - - 5 5 - - - - 10

Ir. Maria das Mercês

- - - - - - 4 1 - - - 5

Me. Maria São José

- - - - - 1 5 2 - 4 2 14

Ir. Maria Virg. Dolor.

- - - - 1 1 2 4 8 50 106 172

Ir. Maria Virgínia

- - - - 1 - - - - - - 1

Ir. Marina

- - - 13 38 17 10 24 39 2 7 150

Ir. Petronila

1 - - 1 - - 14 2 - - 1 19

Ir. Teresa

- - - - 1 - - - - - - 1

Ir. Vicentina

3 3 1 1 - - - - - - - 8

Uma carmelita

- - - 1 - - 1 - - 1 11 14

Uma candidata

- - - - - - - - - 1 - 1

TOTAL

4

15

2 17 59 27 68 51 51

84

141 519

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244

III- Cartas enviadas a Carmelos fundados pelo Convento de Santa Teresa:

1911-

1915 1916-1920

1921-1925

1926-1930

1931-1935

1936-1940

1941-1945

1946-1950

1951-1955

1956-1959

Sem data

TO- TAL

CARMELO SÃO JOSÉ (PETRÓPOLIS) Me. Antonieta - - 1 - - - 2 10 7 8 - 28Ir. Inês do C. Jesus - - - - - - 4 2 - - - 6Me. Angélica - - - - - - - - - 2 - 2Uma madre - - - - - - - 7 7 2 - 16CARMELO SÃO PAULO Carmelo Sta. Teresa - - - - - - - - 1 - - 1Me. Regina - - 1 - 7 3 - - - - - 11Uma carmelita - - - - - - - - - 1 - 1

CARMELO SÃO JOSÉ (RIO DE JANEIRO) Carmelo S. José 1 1 - - 1 1 - - 4Me. Benedita - - - - 1 - - - 1Me. Maria do Carmo - - - - 6 10 - - 16Me. Inês - - - - - 1 - - 1Ir. Maria Henriqueta - - - - 5 4 4 12 25Ir. Maria Lúcia 1 - - 1 1 - - - 3Ir. Ma. José Jesus - - - - - - 1 1 2

CARMELO FORTALEZA Carmelo Sta. Teresinha 2 - - 2 - - - - 4Me. Antônia 1 - 2 1 - - - - 4Me. Cecília 2 8 5 9 5 11 2 1 43Me. Joaquina - - - - 2 3 2 1 8Ir. Esther 1 - - - - - - 1 2Ir. Benigna - - - 1 - - - - 1Me. Teresa Jesus - - - - - 1 1 - 2Uma Madre - - - - - 1 - - 1Uma carmelita - - - - - 1 1 - 2

CARMELO SSMA. TRINDADE (RIO DE JANEIRO) Carmelo da Ssma. Trindade

- - 1 - - - - - 1

Me. Maria Evangelista

- - 4 11 17 7 2 - 41

Me. Maria da Imacul. - - 2 10 11 4 1 4 32Ir. Teresinha Maria - - - - - - 3 3 6Ir. Ma. Lourdes - - - - 8 10 7 2 27Ir. Vicentina - 1 - 1 2 1 - - 5Uma Madre - - - - 1 - - 1

CARMELO TERESÓPOLIS Me. Ma.Bernadette - 8 14 1 23Ir. Ma. Luíza Trind. 2 1 1 3 1 8Ir. Ma. Benedita - 2 1 - - 3Ir. Ma. Cândida - 6 - 2 2 10Ir. Ma. Carmo - - 1 - - 1Ir. Ma. Escolástica - 2 - 2 1 5Ir. Ma. Eucaristia 4 5 7 - 16Ir. Ma. Mercês 1 1 - - - 2Ir. Teresa Marg. 1 - 1 3 2 7Ir. Regina (Laurita) - - - 2 - 2Me. Maria S. José - - - 1 - 1Uma carmelita - 1 - - - 1

TOTAL - - 2 8 17 17 46 95 88 71 32 379

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245

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246

IV- Cartas enviadas a religiosas de outros Carmelos femininos:

1911-

1915 1916-1920

1921-1925

1926-1930

1931-1935

1936-1940

1941-1945

1946-1950

1951-1955

1956-1959

Sem data

TO-TAL

Ir. Maria Imaculada (P. Alegre)

- - - - - - 1 - - - - 1

Carmelo de Santos

- - - - - - - - 10 - - 10

Me. Ma. Jesus (Santos)

- - - - - - - 5 - - - 5

Ir. Maria do Carmo (Tremembé)

- - - - - - - - - 1 - 1

Uma Madre do Carmelo Campinas

- - - - - - - - 5 - - 5

Uma Madre do Carmelo de Uberaba

- - - - - - - - 1 - - 1

Ir. Maria de Jesus (M. Cruzes)

- - - - - - - 6 - - - 6

Carmelo N. S. Carmo (P. Aleg.)

- - - 1 - - - - - - - 1

Carmelo Rio Grande

- - - - - 1 - - - - - 1

Carmelo Pelotas

- - - - - - - - 1 1 - 2

Carmelo S. Maria/S. Leop.

- - - - - - - 1 - - - 1

Carmelo Rio Gr. Sul

- - - 2 - - - - - - - 2

Carmelo do Sul

- - - - 1 - - - - - - 1

Carmelo Lisieux

- - - - 1 - - - - - - 1

Uma madre

- - - - - - - - 2 1 - 3

Ir. Maria da Conceição

- - - - - - - - - - 1 1

Ir. Elisabeth da Trindade

- - - - - - - - - - 2 2

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247

Ir. Ma. Con. Aparecida do Cor. J.

- - - - - - - - - - 1 1

TOTAL

-

-

- 3 2 1 1 12 19

3

4 45

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248

V- Cartas enviadas a religiosas de outras Ordens e Congregações:

1911-1915

1916-1920

1921-1925

1926-1930

1931-1935

1936-1940

1941-1945

1946-1950

1951-1955

1956-1959

Sem data

TO-TAL

Sóror Ana (Mosteiro Ajuda)

- 2 17 13 3 1 - - - - - 36

Sóror Josefina (M. Aj.)

- 1 16 20 13 6 3 4 7 2 - 72

Abadessa (Mosteiro Ajuda)

- 1 - 1 2 2 - 1 - - - 7

Uma religiosa (M. Aj.)

- - - 1 - - - - - - - 1

Ir. Madalena (S.Pobres)

- - - - - - - - 3 - - 3

Uma beneditina

- - - - - - - 1 - - - 1

TOTAL

-

4

33 35 18 9 3 6 10

2

- 120

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249

VI- Cartas enviadas a eclesiásticos:

1911-1915

1916-1920

1921-1925

1926-1930

1931-1935

1936-1940

1941-1945

1946-1950

1951-1955

1956-1959

Sem data

TOTAL

Cardeal Joaquim Arcoverde

- 6 - - - - - - - - - 6

Cardeal Sebastião Leme

- - 11 5 11 9 2 - - - - 38

Cardeal Jaime Câmara

- - - - - - - 29 10 6 - 45

Vig.Geral Mons. Duarte

- - 1 - - - - - - - - 1

Vig. Geral Costa Rêgo

- - - - - 6 2 1 1 - - 10

Vig. Geral Mons. Caruso

- - - - - 1 - 6 - 1 - 8

Vigário-Geral

- 1 1 - - - - 2 4

Mons. Maximiano Leite

- - - - 1 - 4 3 28 16 1 53

Mons. Messias

- - - - - 1 - - - - - 1

Pe. Francisco Bessa

- - - - - - - 1 - - - 1

Cardeal Piazza

- - - - - - - - 1 - - 1

Prepósito Geral OCD

- - - - - - - - - - 1 1

TOTAL

-

7

13 5 12 17 8 42 40

23

2 169

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250

VII- Cartas enviadas a leigos:

1911-

1915 1916-1920

1921-1925

1926-1930

1931-1935

1936-1940

1941-1945

1946-1950

1951-1955

1956-1959

Sem data

TO- TAL

Dr. Aguiar (médico)

- - - - 1 - - - - - - 1

Avozinha Ceará

- - - - - - - - - - 1 1

Belinha (porteira)

- - - - - - - 1 8 17 1 27

Cecília Moreira

- - - - - - - 2 - - - 2

Christóvam C. dos Santos

- - - - 1 7 5 1 4 1 1 20

Christóvam e Guiomar

- - - - - 1 - 1 1 - - 3

Deolinda (amiga)

- - - - - 1 - - - - - 1

Diretor do IPHAN

- - - - - 1 - 1 2 1 1 6

Dr. Fonseca (médico)

- - - - 1 2 11 3 1 3 21

Dr. Galdino

- - - - - - - - - 1 - 1

Gonçal. e Floranita

- - - - - - - 1 - - - 1

Guiomar (esp. Christ.)

- - - - - 2 - - - - - 2

Hermínia

- - 2 1 - - - - - - - 3

José (filho Ir. Ma.Trindade)

- - - - 1 - - - - - - 1

José Ferreira Gonçalves

- - - - - - - 2 - - - 2

José Paulo (filho Dr. F.)

- - - - - - 2 - 4 1 - 7

Laurita R. Gabaglia

- - - - 6 4 29 21 11 4 - 75

Maria José (Majô)

- - - - - - - - - 2 - 2

Nenzita Chaves

- - - - - - - - - 1 - 1

Nila Prado

- - - - 6 - - 1 1 - - 8

Dr. Oliveira Cunha

- - - - - - - - - 1 - 1

Sr. Osório (pai Ir. Hen.)

- - - - - 1 - - - - - 1

Teresinha (filha Dr. C.)

- - - - - - - - 1 - - 1

Um amigo

- - - - - - - - - 3 - 3

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251

TOTAL - - 2 1 16 19 47 34 33 35 4 191

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252

VIII- Cartas recebidas (explicitamente mencionadas por Madre Maria José):

Dos familiares: Quantidade de cartas: Capistrano de Abreu (pai) 7 Matilde (irmã) 20 Aprígio (cunhado) 3 Matilde e Aprígio 1 Adriano (irmão) 5 Isa (sobrinha) 2 Jônia (sobrinha) 3 Das religiosas do C. de Sta. Teresa: Quantidade de cartas: Ir. Inês do S. Coração de Maria 5 Ir. Jacinta de S. José 3 Ir. Maria da C. da Virgem Dolorosa 8 Me. Maria de S. José 3 Ir. Marina 14 Ir. Petronila 2 (mais um telegrama) De religiosas de outros Carmelos fundados pelo C. de Sta. Teresa:

Quantidade de cartas:

Carmelo S. José, Rio de Janeiro: Ir. Maria do Carmo 3 Ir. Maria Henriqueta de Jesus Hóstia 7 Ir. Maria Lúcia 1 Carmelo da Santíssima Trindade, Rio de Janeiro: Me. Evangelista 10 Me. Maria da Imaculada 13 Ir. Maria de Lourdes da Eucaristia 6 Ir. Maria Luíza da Trindade 2 Ir. Vicentina 2 Carmelo S. José, Petrópolis: Me. Antonieta 5 (mais 4 com grande probabilidade) Uma madre 3 Carmelo do Espírito Santo, Teresópolis Me. Maria Bernadete 9 Ir. Lourdes 1 Ir. Maria Cândida 2 Ir. Maria das Mercês 2 Ir. Maria de S. José 1 Carmelo de Santa Teresa, S. Paulo: Me. Regina 6 Carmelo de Santa Teresinha, Fortaleza: Me. Cecília 13 Me. Joaquina 2 Ir. Teresa de Jesus 2

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235

ANEXO 3

Perfil sócio-cultural das Madres fundadoras dos Carmelos criados pelo Convento de Santa Teresa (até 1959):

Carmelo: Data e local de

fundação: Madre fundadora: Dados sócio-culturais:

Carmelo São José 1911 Campanha/MG

1913

Petrópolis/

RJ

Madre Maria de São José

Maria Salomé Teixeira nasceu em 22 out. 1859. Ingressou no Convento de Santa Teresa, junto com sua irmã (na vida religiosa Madre Maria da Natividade) em 27 jul. 1889 (ambas como “pupilas”, devido à interdição dos noviciados), tendo feito profissão em 3 set. 1892. Faleceu em 29 nov. 1962. Era filha de um capitão, proprietário de uma fazenda em Sabará, MG.1194 Sobrinha do presidente Afonso Pena.1195 Solicitou ingresso como religiosa conversa (de “véu branco”), cujas atividades abarcam os trabalhos manuais e não a recitação do Ofício divino, mas logo foi alçada à condição de religiosa corista. Não há registro de estudos realizados fora da casa paterna. Liderou a fundação do Carmelo São José entre 1911-1920, quando regressou ao Convento de Santa Teresa. Considerada pelas religiosas que a sucederam “[...] o traço de união entre as duas gerações” 1196 (a imperial e a restaurada) do Carmelo feminino no Brasil.

Madre Maria José foi acompanhada na fundação por outras duas monjas. Uma delas foi Irmã Inês do Sagrado Coração de Jesus, filha de um médico de saber e renome. Seu nome civil era Esther Vieira da Cunha, nascida a 20 out. 1881. Ingressou no Convento de Santa Teresa em 17 out. 1905, tendo feito profissão solene em 2 fev. 1910. Faleceu em 18 out. 1848. Esther fora amiga de Honorina no Colégio da Imaculada Conceição e, anos depois, foi a primeira mestra de noviças de Irmã Maria José de Jesus.1197

A terceira fundadora e posteriormente priora deste Carmelo, também amiga de Honorina na vida leiga, foi Madre Antonietta do Amor Divino, cujo nome civil era Antonietta Castro Paes, nascida em 26 dez. 1881 Ingressou no Convento de Santa Teresa em 17 abr. 1909, tendo feito profissão solene em 15 out. 1913. De família rica e primeira miss Brasil,1198 Antonietta, antes de tornar-se carmelita descalça,

1194 Convento de Santa Teresa: notícia histórica. Rio de Janeiro, 1955. p. 46; CONVENTO DE SANTA TERESA. Pequeno Resumo Biográfico sobre a Reverenda Madre Maria de São José, religiosa carmelita descalça do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro (1859-1962). Rio de Janeiro, 1962. 1195 MENEZES, Alano Porto. Um Carmelo leve e transparente. Itaguaí: Esdeva, 1986. p. 24. 1196 Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa. Rio de Janeiro: Cartas Marco’s Ltda., 1982. p. 33. 1197 GALLIAN, Dante Marcello. Madre Maria José de Jesus no Caminho da Perfeição. São Paulo: Paulus, 1997. p. 181; VILELLA, Lúcia Jordão. Centelha e Chama: traços biográficos de Esther Vieira da Cunha, carmelita descalça. Rio de Janeiro: Agir, 1973. 1198 MAREGA, Marisa. O Livro de Madre Teresa de Jesus. São Paulo: Musa, 1999. p. 40.

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236

freqüentava com Honorina o Convento da Ajuda.

Convento de Santa Teresa (reforma do antigo Recolhimento, fundado no final do século XVII )

1913

São Paulo/SP

Madre Regina da Imaculada Conceição

Regina dos Santos nasceu em 10 jan. 1867. Ingressou no Convento de Santa Teresa em 2 ago. 1894, tendo feito profissão solene em 1898. Faleceu em 14 mai. 1947.

O pai era proprietário de um engenho de cana-de-açúcar. Estudou no Convento das Macaúbas, em Minas Gerais.1199

Madre Regina era tida como uma “representante importante dessa nossa geração” de monjas teresianas, “uma das poucas monjas capazes de governar”.1200

Carmelo S. José 1926

Rio de Janeiro/RJ

Madre Benedicta Jesus, Maria, José

Benedicta da Rocha Leal nasceu em 18 out. 1887. Ingressou no Convento de Santa Teresa em 27 ago. 1915, tendo feito profissão solene em 25 mar. 1920. Faleceu em 10 dez. 1948.

Possuía pais “relativamente ricos”.1201 Estudou no Colégio Santos Anjos e, depois, no Sul Americano e na Escola Normal. Formou-se em professora e chegou a exercer sua profissão, pois postergou sua entrada no Convento de Santa Teresa em função da doença de sua mãe.

Carmelo da Santíssima Trindade.

1929

Rio de Janeiro/RJ

Madre Maria Evangelista da Assunção.

Evangelina de Azeredo Coutinho nasceu em 21 nov. 1891. Ingressou no Convento de Santa Teresa em 15 ago. 1912, tendo feito profissão solene em 1917. Faleceu em 26 fev. 1983.

Era filha de um comendador, irmã de um general e tia de um ministro do Exército.1202 Embora a importância de sua família na política nacional ainda não tivesse emergido em seus tempos de infância, Evangelina já estudara em um dos melhores colégios de Juiz de Fora, cidade onde morava, fundado pelas Servas do Espírito Santo. 1203

Esta fundação vinculou-se à atuação de Maria Clara Rebello Moreira, nascida em Paris em 4 nov. 1893, cujos pais eram “muito ligados à família imperial do Brasil e da alta sociedade do Rio de Janeiro”.1204 Maria Clara recebeu uma “educação demasiadamente refinada” 1205 e, tendo optado pela vida contemplativa, convenceu seu pai, o poeta Alberto de Oliveira, a doar a própria residência para fundação de um Carmelo. Ali ingressou com o nome religioso de Irmã Teresa de Jesus, vindo a falecer

1199 SANTA CRUZ, Afonso de. A Mineirinha de Taquaraçu (Regina dos Santos). Curitiba: Rosário, 1985. 1200 GALLIAN, Dante Marcello. Op. Cit.p. 181; SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Memorial de Madre Maria José de Jesus, carmelita descalça. Rio de Janeiro: Convento de Santa Teresa, 1968. p. 98. 1201 CARMELO SÃO JOSÉ. Madre Benedicta de Jesus, Maria, José. Rio de Janeiro: Laemmert, 1952. p. 16. 1202 CARMELO DA SANTÍSSIMA TRINDADE. Madre Maria Evangelista da Assunção, 1890-1983. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 29. 1203 Ibid. p. 35. 1204 SANTA CRUZ, Afonso de. A Teresinha Brasileira. 3ª. ed. Curitiba: Vicentina, 1982. p. 5. 1205 Ibid. p. 9. 1206 CARMELO DA SANTÍSSIMA TRINDADE. Op. Cit. p. 93.

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237

poucos anos depois. O Carmelo da Santíssima Trindade congregou fundadoras de refinada educação, o que repercutiu na promoção de um elevado nível cultural no cotidiano monástico: “Ir. Ana Maria, que tinha feito todo o curso de violino no Conservatório, deu-nos lindos concertos [...] Ir. Maria da Imaculada, com sua extraordinária capacidade intelectual [...] fazia versos, poemas, improvisos, cantava e tocava violão”.1206

Carmelo de Santa Teresinha

1929

Fortaleza/

CE

Madre Antônia do Menino Jesus

Antônia de Castro e Silva, nascida em 5 set. 1869, em Fortaleza. Entrou para o Convento de Santa Teresa em 5 jun. 1902, fazendo profissão solene em 1906. Faleceu em 18 mai. 1945.1207 Sua família, embora não fosse pobre, não dispunha de muitas posses. Bastante jovem, foi morar com sua irmã, Teresinha de Castro e Silva, que era professora, participando da vida social da época. Cursou a Escola Normal de Pedro II, a fim de também seguir a carreira do magistério. Em 1901, ingressou nas Filhas de Maria, do Colégio da Imaculada Conceição, em Fortaleza.1208

Madre Antônia realizou a fundação acompanhada por Madre Cecília do Espírito Santo, batizada com o nome de Anunciada Maria Evangelista de Jesus, nascida em 18 out. 1876. Entrou para o Convento de Santa Teresa em 31 mai. 1903, tendo feito profissão solene em 17 nov. 1907. Faleceu em 19 jun. 1960. Madre Cecília ingressara aos onze anos na clausura do Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, dali saindo diretamente para o Convento de Santa Teresa.1209

Obs.: Como a composição do Convento de Santa Teresa não recomendava a dispensa de monjas mais jovens (afinal, naquele mesmo ano seria fundado o Carmelo da Santíssima Trindade, com envio das noviças disponíveis), houve uma alteração do perfil das religiosas designadas para o cargo.

Carmelo do Espírito Santo

1945

Teresópolis/RJ

Me. Maria José de Jesus

Madre Maria José foi priora do Carmelo do Espírito Santo entre 1945-1946, sendo substituída, nos três anos seguintes, por Madre Maria Evangelista da Assunção.

A mentora da fundação deste Carmelo foi Irmã Maria Luíza da Trindade, filha do general Bento Ribeiro, ex-prefeito do Distrito Federal;1210 tendo contactado Maria Câmara de Souza Costa, esposa do Ministro da Guerra, dela obteve concessões governamentais para construção do novo Carmelo,1211 onde Laurita Pessoa Raja Gabaglia, a filha de Epitácio Pessoa, ex-presidente da República, enclausurou-se sob o nome religioso de Irmã Maria do Santo Rosário.

1207 JESUS, Maria José de, madre. A Voz do Silêncio: correspondência. São Paulo: Loyola, 1992. p. 425. 1208 CARMELO DE SANTA TERESINHA. Madre Antônia do Menino Jesus. Fortaleza, 1946. 1209 JESUS, Madre Maria José de, madre. Op. Cit. p. 425. 1210 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 71. VILLELA, Lúcia Jordão. Op. Cit. p. 56. 1211 SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina, irmã. Op. Cit. p. 216.

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238ANEXO 4

O Carmelo Descalço Feminino no Brasil (até 1959)

7

1924 Recife/PE

5 1911

Campanha/MG

1913

Petrópolis/RJ

27 1958

Juiz Fora/MG

18 1948

Uberaba (MG)

9 1926

Campinas/SP

26 1957

P. Alegre/MG

12 1932

MogiCruzes/SP

1952

Aparecida/SP

19 1948

Santos/SP

1682 S. Paulo/SP

6 1913

São Paulo/SP

14 1941

Belo Horiz/MG

22 1951

Passos/MG 17

1947 Cotia/SP

21 1951

Piracicaba/SP

28 1958

Salvador - BA

15 1944

Poá/SP

1950

Jundiaí/SP

1 1742

R.Janeiro/RJ

8 1926

R. Janeiro/RJ

24 1955

Tremembé/SP

10 1929

Fortaleza /CE

11 1929

R. Janeiro/RJ

1947

Petrópolis/RJ

16 1945

Teresópolis/RJ

3 1894

Rio Grande/RS

25 1955

Caravaggio/PR

20 1949

Pelotas/RS

2 1857

P.Alegre/RS

4 1910

S. Leopoldo/RS

13 1935

S. Maria/RS

29 1958

Cruz Alta/RS

23 1951

Caxias .Sul/RS

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239

Carmelos Descalços Femininos no Brasil

(Ordem cronológica)

Legenda

Nome:

Ano da fundação:

Beatério ou recolhimentos de leigas.

1- Carmelo Santa Teresa 2- Carmelo Nossa Senhora do Carmo 3- Carmelo São José 4- Carmelo Nosso Senhor dos Passos 5- Carmelo São José 6- Carmelo Santa Teresa 7- Carmelo Imaculada Conceição 8- Carmelo São José 9- Carmelo Sta. Teresinha do Menino Jesus 10- Carmelo Santa Teresinha 11- Carmelo Santíssima Trindade 12- Carmelo Sta. Teresinha do Menino Jesus 13- Carmelo Nossa Senhora do Carmo 14- Carmelo Nossa Senhora Aparecida 15- Carmelo São José 16- Carmelo Espírito Santo 17- Carmelo Imac. Conc. de Maria e Sta.Teresinha 18- Carmelo Coração Eucarístico de Jesus 19- Carmelo São José e Virgem Mãe de Deus 20- Carmelo Coração Eucarístico de Jesus 21- Carmelo Imac. Coração de Maria e São José 22- Carmelo São José 23- Carmelo Menino Jesus 24- Carmelo Santa Face e Pio XII 25- Carmelo Cristo Rei 26- Carmelo Sagrada Família 27- Carmelo Sagrado Coração de Jesus 28- Carmelo N. Sra. da Anunciação e São José 29- Carmelo São José

1742 1857 1894 1910 1911 1913 1924 1926 1926 1929 1929 1932 1935 1941 1944 1945 1947 1948 1948 1949 1951 1951 1951 1955 1955 1957 1958 1958 1958

Mosteiros. O número indica a ordem cronológica da fundação, cujo nome consta na lista ao lado. O ano corresponde à instalação da clausura. O local refere-se à cidade e ao estado onde o Carmelo foi instituído.

Carmelos auto-constituídos, sem procederem de fundação externa.

Carmelos não mais existentes naquele local. Fundação de um novo Carmelo. Transferência do Carmelo para outro local.

Indicação de que o Carmelo pertence à Província São José – Sudeste.

Indicação de que o Carmelo pertence à Semi-Província N. S. do Carmo – Sul.

Bibliografia: SANTA TERESA , Silvério. Historia del Carmen Descalzo em España, Portugal y América. T. XIV. Burgos: El Monte Carmelo, 1949. SCIADINI, Patrício. O Carmelo: uma proposta de vida. São Paulo: Loyola, 2000. Entrevista concedida por Frei Pierino Orlandini, nos dias 21 e 22 de janeiro de 2001, no Centro Teresiano de Espiritualidade, em São Roque-SP.

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240ANEXO 5

O Carmelo Descalço masculino no Brasil, Província São José (até 1959)

ANTIGA PROVÍNCIA ROMANA

ANTIGA PROVÍNCIA

TOSCANA

ANTIGA PROVÍNCIA HOLANDESA

MINAS GERAIS 1911

� Chegada dos Carmelitas Descalços a Pouso Alegre-MG. � Santuário e paróquia do Córrego (até 1919) e Cambuí (até 1922). � Paróquia de Capivari (até 1916).

1914 � Paróquia de S. B. Sapucaí ( até 1927).

1923 � Paróquia de Cataguases.

Final dos anos 20 � Saída dos Carmelitas Descalços da região.

CARATINGA 1951

� Chegada dos Carmelitas Descalços.

1953 � Paróquia N. S. do Rosário, depois N. S. do Carmo.

1955 � Inauguração parcial da nova igreja

BELO HORIZONTE 1952

� Chegada dos Carmelitas Descalços e abertura de Convento (atualmente Casa S. João da Cruz).

RIO DE JANEIRO 1920

� Instalação provisória do Convento.

1925 � Inauguração da igreja de Santa Teresinha e do Convento, que torna-se Casa do Noviciado.

1947 � A igreja de Santa Teresinha torna-se paróquia.

DIVINÓPOLIS 1954

� Abertura de Casa, para criação da paróquia Senhor Bom Jesus.

Casas da Província Holandesa que não se

vincularam à Província ou Semi-

Província no Brasil:

Sem data precisa

Nova Serrana, atuando como paróquia. 1958

Fundação de Convento e criação de paróquia em Ilhéus.

SÃO PAULO 1923

� Instalação provisória do Convento.

1927 � Inauguração da igreja de Santa Teresinha e do Convento, que torna-se Casa de Aspirantado e de Filosofia.

IPANEMA 1955

� Transferência de parte da

Comunidade de Caratinga. Paróquia

e Ginásio Imaculada Conceição.

1960 � Fechamento do Convento e retorno à Caratinga.

Legenda: Conventos não mais existentes.

SÃO ROQUE 1947

� Início das atividades apostólicas. 1948

� Paróquia de S. Roque. 1953

� Inauguração da Escola Apostólica Santa Teresinha (que funcionava como Seminário Menor da Ordem).

1956 � Renúncia à paróquia.

1957 � A Escola torna-se Casa do Noviciado.

Bibliografia: � LA VIRGEN DEL CARMELO, Alberto. Historia de la Reforma Teresiana (1562-1962). Madrid: Ed. de Espiritualidad, 1968. � SERTÃ, Raul de Lima. A Ordem Carmelitana Descalça em São Roque, estado de São Paulo (bosquejos). In: São Roque: comemorando seu III Centenário. São Roque, 1957. � SCIADINI, Patrício. O Carmelo: uma proposta de vida. São Paulo: Loyola, 2000. � ___. Os padres carmelitas descalços em Caratinga (1951-1976). Manhuaçu: Gráfica de Expansão Cultural, s.d. � RUZZA, Onorio di. Sintesi storico-cronologica della Província Romana dei padri Carmelitani Scalzi. Roma: Edizioni OCD, 1987. � Entrevistas concedida por Frei Pierino Orlandini, em de janeiro de 2001, no Centro Teresiano de Espiritualidade, e em agosto de 2003, na Paróquia de Santa Teresinha, Rio de Janeiro, RJ.

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241

ANEXO 6

Síntese biográfica I- Principais fundadores da tradição teresiana, segundo leitura de Madre Maria José: a) Matriz espanhola: Santa Teresa

Teresa de Cepeda y Ahumada nasceu em Ávila, em 1515. Com a morte de sua mãe, à idade de 12 anos, Teresa foi internada no mosteiro das agostinianas, ali permanecendo até 1533. Reconhecendo sua atração para a vida religiosa, entrou para o Carmelo da Encarnação de Ávila em 1536, fugindo de casa. Pouco depois, sofreu grave enfermidade, a qual deixou-lhe seqüelas permanentes. Sua profissão religiosa ocorreu aos 20 anos, mas uma efetiva “conversão”, como foi chamada por ela, processou-se 19 anos depois, estando associada à sua comoção perante um quadro da paixão de Cristo e à leitura das Confissões de Santo Agostinho. Em 1562 fundou o Carmelo de S. José, onde tencionava viver a Regra da Ordem sem mitigações; a partir de 1567, iniciou a fundação de novos conventos. Após encontrar-se com o Padre Geral e com são João da Cruz, procedeu à reforma do ramo masculino. Em 1571, retornou ao mosteiro da Encarnação como priora, tendo são João da Cruz como confessor e diretor espiritual. Em 1572, recebeu a graça mística do “matrimônio espiritual”, ou seja, da união habitual com Deus. Foram intensos seus conflitos com o capítulo Geral da Ordem, vindo a falecer em Alba de Tormes (Salamanca) em 1582. Foi beatificada em 1614 e canonizada em 1622, além de ser proclamada patrona dos escritores católicos, em 1965, e doutora da Igreja, em 1970, sendo a primeira mulher, junto com Catarina de Sena, a obter este título. BOAGA, Emanuele, o. carm. Como Pedras Vivas... para ler a história e a vida do Carmelo. Roma, 1989; SCIADINI, Patrício, ocd. O Carmelo: história e espiritualidade. São Paulo: Loyola; São Roque: Carmelitanas, 1997.

São João da Cruz

São João da Cruz nasceu em Fontiveros [Ávila, Espanha], em [c.] 1542. Desde menino ficou órfão de pai e teve vida itinerante, com muitas dificuldades econômicas. Recebeu o hábito da Ordem do Carmelo em Medina del Campo, em 1563, sendo ordenado em 1567, após ter cursado filosofia e teologia em Salamanca. Também neste ano encontrou Teresa de Jesus, que há pouco obtivera do prior geral licença para criação de dois conventos masculinos, os quais atuariam como suporte de espiritualidade às casas femininas. Engajou-se na atividade reformadora, participando da primeira fundação dos frades contemplativos, em Duruelo, em 1568, então trocando o nome “João de são Matias” por “João da Cruz”. De 1572 a 1577 foi confessor e responsável pelo mosteiro da Encarnação de Ávila, direção que culminou em sua detenção por oito meses no cárcere do convento de Toledo, de onde fugiu em agosto de 1578; na prisão, escreveu algumas de suas mais famosas poesias. Obtendo novo respaldo institucional, exerceu as funções de superior, mas foi relegado a segundo plano dentro da reforma (que já obtivera certa autonomia do ramo da antiga observância) a partir de 1591, mesmo ano de seu falecimento. Beatificado em 1675 e canonizado em 1726, foi nomeado doutor da Igreja em 1926. BOAGA, Emanuele, o. carm. Op. Cit.; SCIADINI, Patrício, ocd. Op. Cit. GAUCHER, Guy. Flammes d’Amour: Thérèse et Jean. Paris: Du Cerf. 1996.

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242

b) Matriz francesa: Cardeal Bérulle

Pierre de Bérulle nasceu em Sérilly, Yonne, em 1575, pertencendo a uma família nobre. Foi ordenado sacerdote em 1599, tornando-se um dos expoentes da Reforma Católica em seqüência a Trento, assim como um dos mentores da fundação do Carmelo feminino na França. Bérulle foi à Espanha, em 1604, onde empreendeu longas e difíceis negociações com o ramo masculino da Ordem Teresiana, que resistia à idéia, conseguindo por fim atingir seu intento. Em 1611, inspirando-se no Oratório de S. Filipe Néri, fundou a Congregação do Oratório de Jesus. Em 1614, foi nomeado pelo papa visitador do Carmelo francês. Em 1627, foi nomeado cardeal, culminância de uma trajetória político-religiosa junto à monarquia francesa. Escreveu várias obras, sendo considerado seu trabalho mais expressivo o Discours de l'état et des grandeurs de Jésus par l'union ineffable de la divinité avec l'humanité, de 1623, que exerceu grande influência sobre a espiritualidade européia e particularmente francesa do século XVII. Neste livro, Berulle elaborou uma doutrina espiritual cristocêntrica, indissociável da valorização do poder eclesiástico. Faleceu em 1629. DEVILLE, Raymond. L’École Française de Spiritualité. Paris: Desclée, 1987; LE BRUN, Jacques. Le grande siècle de la spiritualité française et ses lendemains. In:Histoire Spirituelle de la France. Paris: Beauchesne, 1964. Obs. O Cardeal Bérulle não foi diretamente citado por Madre Maria José em suas missivas, mas sim através da matriz por ele instaurada no Carmelo francês, cf. Carta 800, Ir. Maria de Jesus, do Carmelo de Mogi das Cruzes, 31 mai. 1947: “O Cerimonial, parece-me, já que todos os Carmelos paulistas tem o francês e os cadernos, para que mudar, se como diz o caderno da Priora, são tão variáveis os costumes e os franceses tão veneráveis?”

Madre Madalena de São José

Nasceu em 1578, em Paris. Aos 26 ou 27 anos, foi residir em Touraine. Entre 1603-1604, conheceu Pierre de Bérulle, que atuava para introduzir as carmelitas na França. Decidiu ingressar no Carmelo apesar da oposição familiar. Professou em 1605 e logo tornou-se mestra de noviças. Seu pai, desejando fundar um Carmelo em Tours, exigiu que tivesse como superiora Madre Ana de São Bartolomeu, que então liderava o Carmelo de Paris. Madre Madalena é eleita priora em seu lugar, em 1608, sendo reeleita em 1611. Em 1614 passou alguns meses em Tours, época em que seu pai tornou-se oratoriano. Em 1616, fundou o Carmelo de Lyon; em 1617, o segundo Carmelo de Paris, na rua Chapon, onde foi priora por seis anos. Após retornar a seu convento de profissão, foi eleita priora em 1624, governando-o por onze anos. Faleceu em 1627. É considerada a “filha espiritual” de Bérulle, promovendo sua doutrina e difundindo uma grande devoção a Cristo e à eucaristia; neste sentido, ela obteve para o Carmelo de Paris o direito de exposição permanente do Santíssimo Sacramento. Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique, Doctrine et Histoire... Paris, Beauchesne, 1937-1976.

Santa Teresinha

Teresa Martin nasceu em Alençon, França, em 1873, sendo a última de 9 filhos. Aos 4 anos perdeu a mãe, passando a ser cuidada por sua irmã Pauline; a família se estabeleceu em Lisieux. Em 1882, Pauline ingressou no Carmelo e Teresa adoeceu gravemente, ocasião em que teve a visão da Virgem do sorriso. Em 1887, pediu para ingressar no Carmelo, a despeito da fragilidade de sua saúde, nele ingressando em 1888. Em 1890, fez a profissão perpétua. Em 1893, tornou-se ajudante da mestra de noviças. Em 1894, promoveu a descoberta da “pequena via” (infância espiritual). Em 1895, fez seu oferecimento como vítima ao “Amor Misericordioso”. Em 1896, teve sua primeira hemoptise, seguida de tentação contra fé. Faleceu em 1897, sendo beatificada em 1923 e canonizada em 1927. LANGLOIS, Claude. Le Poème de Septembre: lecture du manuscrit B de Thérèse de Lisieux. Paris: Cerf, 2002; MAÎTRE, Jacques. L‘Orphéline de la Bérésina. Thérèse de Lisieux (1873-1897). Paris: Du Cerf, 1996.

Elizabeth da Trindade

Elizabeth Catez nasceu em Avon, França, em 1880. Em 1882, a família transferiu-se para Dijon. Em 1894, fez voto de virgindade perpétua, identificando o Carmelo como sua vocação. Em 1899, ano em que promoveu a leitura de História de uma alma, obteve o consentimento materno para o ingresso no claustro. Em 1901, ingressou no Carmelo de Dijon, fazendo votos perpétuos em 1903. Em 1904, compôs a oração Elevação à Trindade. Em 1905, surgem os primeiros sintomas da longa e dolorosa enfermidade (mal de Addinson), entremeada por graças místicas. Faleceu em 1906. TRINDADE, Elisabete da. Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 1994.

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c) Matriz brasileira: Madre Jacinta

Jacinta e Francisca Aires, após ficarem órfãs de um funcionário metropolitano, com concordância do padrasto e o apoio do irmão, que era sacerdote, recolheram-se em 1742 à Chácara da Bica, no Caminho de Mata-Cavalos (atual rua do Riachuelo). Nesta ocasião, Jacinta, que freqüentava a ermida do Desterro, situada nos arredores, e era devota de santa Teresa, já estava conhecida na cidade por suas visões místicas. Com apoio de Gomes Freire de Andrade (Conde de Bobadela), governador da Capitania, acrescido pelo aval de D. João da Cruz, carmelita descalço e bispo da diocese, ela foi autorizada a receber outras recolhidas, iniciando a vida comunitária segundo a Regra do Carmelo. A despeito do falecimento de Francisca, em 1748, Jacinta continuou empenhada na organização do recolhimento e, em 1750, pediu autorização real para transformá-lo em mosteiro, apesar dos possíveis entraves metropolitanos neste sentido. Com suporte financeiro do governador e a concordância do novo bispo, D. Antônio do Desterro, foi iniciada a construção do prédio do atual convento. Em 1753, contudo, D. Antônio retirou sua aprovação para o deferimento do estatuto canônico à casa fundada por Jacinta, face à recusa das recolhidas em professarem sob a regra franciscana. Pode-se cogitar que, além do conflito vinculado ao prestígio das Ordens monacais (o antigo bispo sendo carmelita descalço apoiara a fundação; seu sucessor, beneditino, desejava um convento de clarissas), houve uma disputa por liderança religiosa: D. Antônio considerava que Jacinta aspirava às honras de fundadora; alegava que a intenção das recolhidas era escapar da autoridade diocesana, ficando sob a jurisdição mais condescendente da Ordem; que as visões e os milagres de Jacinta, além de duvidosos, causavam polêmica e conturbavam a paz social. Parecia inadmissível para este prelado que Jacinta, na sua condição de mulher, se outorgasse tal protagonismo. Face ao impasse, Jacinta segue para Portugal em completo segredo, na tentativa de obter a ereção canônica do convento, sob as Constituições de santa Teresa. Mas a despeito da concordância real e da bula papal obtida por Jacinta, em 1755, o bispo se recusa a receber a profissão das recolhidas, numa luta que se estende por um longo período, enquanto a população toma partido de um dos dois lados; por fim, em 1763, falece Gomes Freire de Andrade e, em 1768, morre Jacinta, sem que o convento fosse oficialmente reconhecido, o que só veio a ocorrer em 1780, tendo as primeiras profissões solenes ocorrido em 1781. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. Cit. p. 95; AZZI, Riolando. As ordens femininas. In: HOORNAERT, Eduardo et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Primeira Época. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 230; AZZI, Riolando. A vida religiosa no Brasil na época colonial e imperial. Op. Cit. p. 508.

d) Matrizes não citadas: Madre Ana de São Bartolomeu

Ana de São Bartolomeu nasceu em Toledo, no ano de 1549. Era filha de agricultores e tendo ficado órfã aos 10 anos de idade, tornou-se pastora. Em 1570 entrou no convento das Carmelitas Descalças fundado por Santa Teresa, em Ávila, acompanhando-a durante vários anos em suas fundações. Foi considerada herdeira dos ideais de Teresa, vindo esta, inclusive, a morrer em seus braços em 1582. Após a morte da fundadora, tornou-se priora da fundação teresiana em Paris, conflitando diretamente com o cardeal Bérulle. Derrotada em suas tentativas de impedir as alterações promovidas por este eclesiástico, tornou-se fundadora, desde 1607, do mosteiro de Tours e em seguida assumiu o cargo de priora em Anvers, na Bélgica, onde faleceu em 1626. ORCIBAL, Jean. La Rencontre du Carmel Théresien avec les Mystiques du Nord. Paris: Presses Universitaires de France, 1959; http://www.puc-rio.br/campus/servicos/pastoral/santo

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Madre Maria de São José

Madre Maria de são José nasceu em 1548, tendo conhecido Teresa de Jesus em 1562. A segunda vez em que encontrou a santa de Ávila, em 1568, optou pela vida religiosa, fazendo profissão como carmelita descalça em 1571. Participou da fundação do Carmelo de Sevilha, entre 1575-76, sendo indicada como priora. Devido às perseguições sofridas pela reforma teresiana, foi destituída do cargo e presa em 1578, mas logo foi restabelecida no priorado e reeleita. Em 1583, recebeu convite para participar da fundação na França, a qual não se realizou; em 1584, foi chamada para fundação de Lisboa. Partindo para Portugal em dezembro deste ano, inaugurou o novo Carmelo em janeiro de 1585. Apoiou a vinda do frade Gracián a Portugal, que conseguiu assim evitar o desterro no México a que fora condenado em decorrência de seus conflitos com fr. Dória e a cúpula da Ordem. Tiveram então início as desavenças entre Madre Maria de São José e a hierarquia dos carmelitas, que culminam em 1592, com a perda de seu direito à voz e voto por dois anos e condenação a cárcere conventual por um ano. Em 1594, com a morte de fr. Dória, iniciou-se um período de relativa tranqüilidade, seguido por sua eleição como priora. Em 1603, todavia, devido à nova mudança na direção dos carmelitas descalços, a Madre foi transferida compulsoriamente para Espanha, onde falece. SAN JOSÉ (Salazar), Maria (1548-1603). Escritos Espirituales. 2a. ed. Roma: Postulación General ocd, 1979.

II- Principais intérpretes da tradição teresiana, cujos textos foram mencionados no epistolário de Madre Maria José: Garrigou Lagrange

Garrigou-Lagrange nasceu em 1877, em Auch. Estudou medicina em Bourdeaux, mas teve suas convicções religiosas reavivadas com a leitura de Ernest Hello e são João da Cruz. Ingressou nos dominicanos, sob o nome de Réginald. Professou em 1900 e foi ordenado em 1902. Estudou em Falbigny, Gand e Paris. Entrou em contato com vários intelectuais do período, entre os quais Durkhéim, Levy-Bruhl e, sobretudo, Bergson, em cujo curso conheceu Maritain. Ensinou história da filosofia e teologia dogmática na França e na Bélgica. Em 1909, foi para o Angelicum, em Roma, como professor de apologética, aí inaugurando, em 1917, um curso de teologia ascético-mística, no qual lecionou até 1959. Além de professor e escritor, assessorou as Congregações Romanas, principalmente o Santo Ofício. Foi também pregador na Itália, França, Inglaterra, Holanda, Canadá, América do Sul, principalmente nos conventos. Deixou o Angelicum em 1960, sofrendo em seguida uma perda de suas faculdades e da lucidez, vindo a falecer em 1964. Teve imensa quantidade de livros publicados, e também artigos, sendo a maioria deles sistematizações de suas aulas. Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et Mystique, Doctrine et Histoire... Paris, Beauchesne, 1937-1976.Verbete “Garrigou-Lagrange”.

Monsenhor Penido

Monsenhor Maurílio Teixeira Leite Penido nasceu em Petrópolis, mas foi criança para a França, onde viveu por aproximadamente 30 anos. Estudou filosofia, por um ano, na Universidade Gregoriana; depois, filosofia e teologia na Universidade de Friburgo, Suíça, doutorando-se em 1918. Em seguida, doutorou-se em letras pela Universidade de Paris. Regeu, durante dez anos, uma cátedra universitária na Europa. Publicou inúmeros artigos na Revue Thomiste, entre 1930-1940, além de outros periódicos, tendo sua obra citada por eminentes filósofos católicos, como Maritain, Chevalier, É. Gilson. Lecionou na Faculdade Nacional de Filosofia, por intervenção de Alceu Amoroso Lima, e no Seminário São José, onde ocupava a cátedra de teologia dogmática, mas declinou do convite para a cátedra de psicologia na Universidade Católica, que lhe foi indicada pelo padre Leonel Franca. Em 1956, recebeu o título de monsenhor. VILLAÇA, Antônio Carlos. O Pensamento Católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

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APÊNDICE

DE IMAGENS

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Honorina de Abreu

Foto pertencente ao acervo do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Reproduzida por Cláudia Guerra.

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Mosteiro de Nossa Senhora da Ajuda, Rio de Janeiro, 1904. Fonte: http:// www.bricabrac.com.br

Integrantes da Pia União das Filhas de Maria, seção do Mosteiro de Nossa S. da Ajuda, Rio de Janeiro, 1908. Foto pertencente ao acervo do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Reproduzida por Cláudia Guerra.

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Vista do bairro e do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro, início do século XX. Fonte: http://www.almacarioca.com.br

Vista da subida da ladeira de Santa Teresa, Rio de Janeiro, década de 40.

Fonte: http://www.almacarioca.com.br

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Locutório ou parlatório do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro.A área interna, por detrás das gradas e das grossas paredes, estava inclusa na clausura. No caso de visitas, a irmã porteira deveria chamar a monja designada, que manteria a entrevista com as cortinas cerradas, junto à silenciosa presença de uma segunda religiosa desempenhando o papel de “escuta”, conforme determinavam as Constituições da Ordem do Carmelo Descalço até a década de 60. Foto: Cláudia Guerra, outubro de 2003.

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Roda do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Este dispositivo permitia a manutenção de curtos diálogos entre as monjas e os visitantes que, entretanto, estavam impedidos de tocarem-se ou mesmo de visualizarem-se mutuamente. Além do som, apenas pequenos objetos transpunham o artefato circular de madeira, permitindo alguma comunicação entre o exterior e o interior do Convento. Foto : Cláudia Guerra, outubro de 2003.

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Altar principal da Igreja do Convento de Santa Teresa Foto: Claudia Guerra.

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Madre Maria José de Jesus com Amnéris, esposa de seu irmão Adriano Casa de Saúde São José, Rio de Janeiro, entre setembro e outubro de 1932. Foto pertencente ao acervo do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Reproduzida por Cláudia Guerra.

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Madre Maria José de Jesus no Hospital São Zacarias, Rio de Janeiro, dezembro de 1949. Foto pertencente ao acervo do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Reproduzida por Cláudia Guerra.

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Madre Maria José de Jesus com a irmã Matilde, as sobrinhas Isa (depois Madre Teresa) e Honorina, o irmão Adriano e a cunhada Amnéris (da esquerda para direita). Teresópolis, 3 junho 1945. Foto pertencente ao acervo do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Reproduzida por Cláudia Guerra.

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Madre Maria José de Jesus, na fundação do Carmelo do Espírito Santo, com as demais co-fundadoras. Teresópolis, 3 junho 1945. Foto pertencente ao acervo do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Reproduzida por Cláudia Guerra.

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Lápide da urna funerária, com os restos mortais de Madre Maria José de Jesus, cimentada na parede da capela que faz divisa com o coro do Convento de Santa Teresa. Rio de Janeiro, março de 1991. Foto Claudia Guerra.

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Madre Maria José de Jesus Quadro pintado por Roberto Leal, em 1988, a partir de fotografia de Madre Maria José, datada de 1945, com o qual presenteou o Convento de Santa Teresa.

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“Minhas filhinhas, Vivo pensando em VV.CC. e com tanto remorso, com quanta dor! O estado de minha alma é de um desespero horrível, e fico sempre pior, mais cheia de pecados. Querem que eu comungue; mas seria um pecado como nunca houve no mundo. Nossa Senhora abençoe as filhinhas e as faça santas. I.M.J.J.” (3 de fevereiro de 1959.Segundo bilhete enviado da Casa de Saúde Santa Juliana à Comunidade do Convento de Santa Teresa. C 1.470 )

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BIBLIOGRAFIA

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1.2- Memoriais e biografias sobre Madre Maria José de Jesus:

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SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Marina do, irmã. Memorial da Vida de Madre

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CARMELO DA SANTÍSSIMA TRINDADE. Madre Maria Evangelista da Assunção

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