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VALDENIZA MARIA LOPES DA BARRA

BRIGA DE VIZINHOS: UM ESTUDO DOS PROCESSOSDE CONSTITUIÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA DE INSTRUÇÃO

PRIMÁRIA NA PROVÍNCIA PAULISTA (1853-1889)

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM EDUCAÇÃO:HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

2005

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VALDENIZA MARIA LOPES DA BARRA

BRIGA DE VIZINHOS: UM ESTUDO DOS PROCESSOSDE CONSTITUIÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA DE INSTRUÇÃO

PRIMÁRIA NA PROVÍNCIA PAULISTA (1853-1889)

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM EDUCAÇÃO:HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

2005

Tese de doutorado apresentada à BancaExaminadora da Pontifícia Universidade Católicade São Paulo, como exigência parcial paraobtenção do título de Doutor em Educação:História, Política, Sociedade, sob orientação daProfa. Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho.

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BANCA EXAMINADORA

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RESUMO

O texto que aqui se apresenta é resultado de pesquisa realizada no Arquivo Público doEstado de São Paulo, cujo corpus documental básico é constituído de processos que incidiramsobre professores da escola pública de instrução primária na Província paulista entre os anos de1853 e 1889. A leitura dos processos implicou a busca e cruzamento com outros documentos,entre os quais se destacam as atas da Assembléia Provincial que registram os debates ocorridosno período anterior à publicação dos textos normativos da instrução, os próprios textos normativos(leis e regulamentos) bem como a consulta de alguns jornais de circulação à época. Taisprocedimentos permitiram o melhor enquadramento do objeto escola visto sob a perspectiva darelação entre a instituição do serviço público de inspeção escolar, os mecanismos de controledados pela disposição normativa do par infração e pena (na relação com o serviço do professor)e as relações entre a escola, seus agentes diretos e indiretos, aí se incluem alunos, professores,pais de alunos, vizinhos da escola, autoridades de influência local e autoridades do serviço deInstrução Pública. Os conceitos de cultura e forma escolar constituem ferramentas de análiseque ajudaram na explicitação de aspectos importantes das contradições impostas à imposiçãode se fazer escola quando isto ainda era novidade para os agentes mais e menos diretos com atarefa de sua realização, aflorando as questões de confronto entre as oposições entre o públicoe o privado, o oral e o escrito, entre outras.

Palavras-chave: escola, professor, infração, norma, público.

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ABSTRACT

The text presented here is a result of the research carried through in the Public Archive ofthe State of São Paulo, whose basic documentary corpus is constituted by processes that hadhappened on professors of primary instruction’s public school in São Paulo’s Province betweenthe years of 1853 and 1889. The reading of this material implied in the search and the crossingwith other documents, among which, stand out the acts registered in annals of the Assemblies,the debates occurred in the period previous to the publication of the instruction’s normative texts,the proper normative texts (laws and regulations) and the consultation of newspapers of circulationat that time. Such procedures had allowed the best agreement of the object school seen underthe perspective of the relation between the institution of the school inspection’s public service, themechanisms of control given by the normative disposal of the pair infraction and penalty (in therelation with the professor’s service) and the relations between the school, its direct and indirectagents, including students, professors, students’ parents, neighbors, authorities of local influenceand authorities of the Public Instruction’s service. The concepts of culture and school form constituteanalysis tools that had helped in the clearence of important aspects of the contradictions put bythe imposition of making school when this still was a novelty to the agents more and less directwith the task of its accomplishment, evidencing the questions that had contributed in the clearenceof tensions between some of the dimensions between the public and the private one, the oral andthe writing, among others.

Key-words: school, professor, infraction, norm, public.

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Este trabalho é dedicado à minha mãe e ao meu pai. Ela é a Ana Maria.Ele é o Gervasdílio Antonio da Barra.

Ela era professora primária de uma escola rural multisseriada. Ao irpara a cidade se tornou a dona de uma “venda”, onde comercializava quero-sene, pinga, fumo e doces como goiabada, sonhos, pudim de queijo, além deoutras coisas. Hoje, ela se divide entre a lida no campo e a lida na cidade.Mulher empreendedora, generosa e bela.

Ele sempre foi lavrador, um exímio contador de ‘causos’, homem deuma simplicidade das mais complexas. O chapéu é o principal adereço. Nãotem xará, é único. Sonha o sonho de Ícaro. Admira o colorido das borboletas.É o homem que não pôde aprender a ler ou escrever mas pode ser lido naspáginas de Guimarães Rosa.

Ambos de grande honradez.Ela deixou a vida na roça para que os quatro filhos tivessem mais

chance de estudar nas escolas da cidade.Ele nunca pôde sair da roça para que os quatro filhos tivessem mais

chance de estudar nas escolas da cidade.Cada um à sua maneira fez muito mais que o possível. Lá se vão quase

trinta anos e o que menos importa é o grau de escolaridade de cada um dosfilhos. O que se conta mesmo é que os quatro filhos são dois homens e duasmulheres de muita dignidade, trabalhadores e de bom caráter.

Estes pais são os grandes mestres da formação de seus filhos.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora Profa. Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho que, alémde orientar com presteza única a construção deste texto, ainda teve a paciência de me escutarnum momento em que eu só podia falar de processos da minha vida. Agradeço pela orientaçãoacurada, a competência e a vivacidade com a qual pensou comigo os episódios apurados nosprocessos, incitando-me por alavancá-los ao estatuto de uma possível leitura da história culturalda escola. Agradeço pelas sessões de orientação nas modalidades presencial e virtual. Agradeçopelo fato de que, ao sinalizar sobre as possibilidades desta pesquisa sempre respeitou a minhacadência, a um só tempo em que um certo capital de confiança era investido em mim. É motivode muita vaidade ter no meu currículo a passagem como sua orientanda. À Professora MARTAMARIA CHAGAS DE CARVALHO, muito obrigada.

As deficiências deste trabalho devem ser imputadas a mim, tão somente.Agradeço aos professores, membros da banca de qualificação, Profa. Dra. Maria Lúcia

Spedo Hilsdorf e o Prof. Dr. Bruno Bontempi Jr. Agradeço-lhes pela ajuda tão definitiva notalhe da produção escrita deste texto.

À Profa. Dra. Maria Lúcia Spedo Hilsdorf, cuja intimidade no trato com a pesquisa dedocumentos sobre a escola paulista lhe permitiu sinalizar sobre questões da periodização desteestudo e sobre a fertilidade de certos temas desembaraçados da proposta apresentada na versãoapresentada em outubro de 2003. As pistas foram seguidas com a disciplina da parte de quemqueria acertar e com as limitações da parte de quem se esforçou por acertar.

Ao Prof. Dr. Bruno Bontempi Jr. pela leitura séria e comprometida com o aprimoramentoda proposta de escrita que foi apresentada por ocasião do exame de qualificação. Agradeço-oespecialmente pelo modo como me instigou a rever questões de ordem bibliográfica, historiográficae conceitual.

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Agradeço ao Prof. Dr. Kazumi Munakata, interlocutor de presença importante na faseinicial desta pesquisa e parecerista do projeto de doutorado. Dizem que ele disse que eu tenhosorte no arquivo. A maior sorte foi ter recebido dele o mapa para o acesso ao arquivo. Aquiloque fiz da sorte é de minha inteira responsabilidade. Responsabilidade que inclui a leitura reiteradadas recomendações tão preciosas quanto extensas emitidas no seu parecer. Preciosas na seriedadeimpressa ao ofício de professor e pesquisador que é. Extensas quanto às advertências demandadaspela aprendiz de pesquisa que conheceu no percurso de orientação na sua fase de mestrado.

Agradeço ao Prof. Dr. Luiz Carlos Barreira, também parecerista deste trabalho quandoda sua fase de projeto, espero que tenha contemplado algumas de suas valiosas pistas.

Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política,Sociedade agradeço a temporada de seis anos e meio, foi a fase mais incrível da minha vida. Eume sinto muito orgulhosa de ter passado por aqui. Poderia ter dado muito mais, agradeço a tudoo que recebi.

Aos amigos que fiz no curso dos estudos de mestrado e doutorado: Giovanni Guimarães,Eliane Mimesse, Célia Dórea, Gizele Souza, Valéria Rezende, Rogéria Isobe, Eva Siqueira eIvanete Silva. Pela saudade e as dívidas impagáveis que contraí.

Às amigas de todos os tempos e para todos os processos da vida, Maria Cristina Medeiros,Sandra Costa e Dina.

Agradeço ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, lugar que frequentei comregularidade de novembro de 1998 até o final de 2002 e visitas esparsas nos últimos dois anos.Agradeço especialmente ao Emerson, funcionário responsável pelo atendimento no balcão e aoRobson, chefe do setor de microfilmagem. Em nome deles, agradeço a todos os demaisfuncionários desta instituição pela prestatividade, fineza e bom humor durante a convivência noperíodo de minha pesquisa.

À CAPES, pelo apoio financeiro. Fundamental.

Em especial: aos meus pais, o Sr. Gervasdílio Antonio da Barra e a Sra. Ana Maria.Gente humilde e honesta, professores das lições mais importantes da minha vida, a eles devo omaior suporte de afeto e a bênçao de todos os dias. À Sra. Ana Francisca de Jesus, minha avó,ela nunca se esquece do meu nome nas conversas diárias que mantém com Deus. Agradeço aosmeus irmãos Valdeci Antonio da Barra, Vanderlei Sérgio da Barra e Valdirene Cláudia da Barra.Eles são os amigos incondicionais, “cidadãos” por quem tenho o maior dos afetos, extremorespeito e imensa admiração. Agradeço às minhas cunhadas Edjane e Kerley e o cunhado JoséHumberto, gente que enobrece a nossa família. Aos meus sobrinhos Thiago, Carol, Débora eGabriel. Eles dão beleza e alegria para nossas vidas. Aos meus tios Guiomar, Valdereza e MariaBatista, pessoas com quem eu posso contar. Ao Sr. Iraci Lopes de Almeida e Sra. MariaCândida Lopes da Fonseca, meus sogros. Agradeço-os pela palavra e, principalmente agradeçoporque se tornaram a referência familiar encontrada na cidade de Goiânia. Ao Rogério e Rose,

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Ademir e Soraya, à pequena Vitória. Pessoas nobres que ampliaram o meu circuito familiar. AoEdmar Aparecido de Barra e Lopes, meu marido. A ele agradeço pela vida partilhada nosprocessos mais difíceis e pelos dias mais doces. Agradeço-o ainda pelo apoio logístico decisivona fase final deste estudo, pela tolerância com a qual conduziu as minhas oscilações de humor eporque, quando parecia que não tinha mais fôlego, ele soprava canções cujos idiomas inventados,as rimas absurdas e os falsetes malucos me faziam rir e continuar.

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SUMÁRIO

RESUMO 5ABSTRACT 6AGRADECIMENTOS 8LISTA DE QUADROS 13LISTA DE FIGURAS 14

INTRODUÇÃO 16

Capítulo 1ASPECTOS DA IMPLANTAÇÃO DO SERVIÇO DE INSPEÇÃO

da Instrução Pública na Província Paulista 31O distrito: território do Inspetor Distrital e do Juiz 46de Paz – organização jurídica e geografia da instrução 46Quando o Inspetor do Distrito vai à Freguesia 50

Capítulo 2REGIMES DE PRODUÇÃO DE VERDADES:

ESTRATÉGIA AMBIVALENTE DE DENUNCIANTES E DENUNCIADOS 55Entre nobres colegas 55O caso de Maria do Espírito Santo: 63uma educanda do Semário de “Acú” 63Casos de Contendas 67A produção de representações do inimigo: 70uma estratégia de defesa 70A verdade da pergunta: uma demanda da petição 76Mesa: artefato material comum nos espaços público e doméstico 82O Benedicto de Nazareth 85Briga de vizinhos: solução de advogados 90

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Capítulo 3RETOMADAS NORMATIVAS DA INSPEÇÃO 102

O debate da reforma da instrução na imprensa 102O debate da reforma na Assembléia Provincial 1081868: O Regulamento que não vingou 123Ensinar e advogar: o exercício de funções incompatíveis 135

Capítulo 4DAS INTERFACES ENTRE A FREQÜÊNCIA, A OBRIGATORIEDADE

DO ENSINO E A INSPEÇÃO ESCOLAR 145Registro de freqüência: uma contribuição 145para a cartografia da sociedade 145Obrigatoriedade do ensino: dever dos pais 151A conciliação entre a obrigatoriedade (do ensino) 159e a imposição da formação 159Mapa de freqüência: prova documental de acusados e acusadores 164A questão da freqüência escolar no “Parlamento Brazileiro” 181

Capítulo 5DO INSPETOR AO CONSELHO: PROCESSOS

DE REFINAMENTO DO DISPOSITIVO DA INSPEÇÃO 186Cenas da escola paulista no declínio do Império 186A ação da inspeção escolar nos textos normativos de 1885 e 1887 203Quando o Inspetor está fora da lei 213A gestão da “falta” do professor nos 226últimos processos da monarquia 226

CONSIDERAÇÕES FINAIS 249BIBLIOGRAFIA 258

ANEXOS 269Anexo I: Síntese dos episódios de contendas e

Processos (1853-1897) - São Paulo 270Anexo II: Episódio 25 – Professor Napoleão de Bula França,

Pindamonhangaba, 1888-1889. 4996 01 – Processos – MIP – AESP. 285Anexo III: Episódio 2 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP. 287Anexo IV: Mapa da Capital da Província de São Paulo, 1877. Jules Martin.

Litografia. MOURA, Carlos Eugênio M. de, Vida Cotidiana em São Paulono Século XIX, 1988, p. 234-235. Igrejas, Bondes, Passeios, Escola etc. 288

Anexo V: Episódio 13 – Professor João Baptista de Azevedo Marques.Tietê, 1886. 4996 01 – Processos – MIP – AESP. 290

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LISTA DE QUADROS

Quadro I – O serviço de Inspeção Escolar na diagramação da legislaçãoda Instrução Pública da Província paulista (1827-1851). 39

Quadro II – As competências da Inspeção Escolar no Regulamento de 1851. 40Quadro III – Distritos de Instrução Pública – São Paulo, 1851. 47Quadro IV – Contendas sob a vigência do Regulamento de 1851. 68Quadro V – Diagramação dos temas da Instrução nos Regulamentos (1851 e 1869) 124Quadro VI – O serviço da Inspeção nos textos normativos

da Instrução de 1827 a 1869. 127Quadro VII – Matrícula da escola de Primeiras Letras de Porto Feliz (1850-1856) 148Quadro VIII – Diagramação dos textos: Escola Normal da Capital (1874)

e Ensino Obrigatório (1874) 160Quadro IX – Relação entre a quantidade de escolas, igrejas

e a incidência de crimes (Baviera – 1870) 184Quadro X – A direção do ensino segundo o texto de Reforma

da Instrução de 02 de maio de 1885. 204Quadro XI – Proposta de divisão dos distritos de instrução

segundo a divisão paulista de comarcas. 207Quadro XII – Competência da ação da inspeção nos textos normativos

entre 1827 – 1887. 214Quadro XIII – Diagramação da Lei nº 81 de abril de 1887 215Quadro XIV – Concepção do serviço de “direção” do ensino

na Província paulista por meio dos textos normativos de 1885 e 1887 (colar nomes) 217Quadro XV – Composição dos Conselhos Diretor (1885) e Conselho Superior (1887) 222Quadro XVI – Processos deflagrados sob vigência

do Regulamento da Instrução Pública 227de 22 de agosto de 1887 (Lei nº 81 de 6 de abril de 1887). 227

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LISTA DE FIGURAS

Figura I – Ilhabela, na ilha de São Sebastião “Ex Vila Bela ou Ilha de São Sebastião)J.B. Debret - 1827.Quadro do Desmembramento Territorial – Administrativo dosMunicípios Paulistas - IGC, 1995, p. 36 70

Figura II – Atlas do Império do Brazil (Primeira visualização completado território nacional de que dispuseram os brasileiros), 1868. NOVAIS & CASTRO,História da Vida Privada no Brasil, 1999, p. 234. 116

Figura III – Cidade de Sorocaba (da obra de Abreu Medeiros“Curiosidades Brasileiras”). MARQUES, M.E. de A., vol. 2, 1980 195

Figura IV – Caricatura do Imperador D. Pedro II , em visita a uma escola. 202Figura V – Caricatura: o Imperador D. Pedro II

e o Conde d’Eu em visita a uma escola. 202

XIV

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fortes perfumes há, que penetram em tudo,nem vidro mesmo escapa ao seu poder agudo.

(...) cheiro acre do tempo e poeirento e sem dono,um velho frasco, muitas vezes se acha tambémquem sabe donde surge uma alma que revem.

(...)ao acordar se agita o cadáver feral

dum velho amor rançoso e belo e sepulcral.

assim, quando de mim não mais houver memóriae eu for, de um triste armário a poeira irrisória

banido como velho, inútil frasco ruim,poeirento, sujo, abjecto, e decrépito enfim.

eu serei teu esquife, amávelpestilência,

sinal de tua força e tua virulênciaveneno por um anjo instilado, licor

de vida e morte de minha alma, corruptor.(C. Baudelaire)

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INTRODUÇÃO

No decorrer da pesquisa realizada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, durantea produção da minha dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História Política e Sociedade da Pontifícia Universidade Católicade São Paulo em 2001, sob o título “Da pedra ao pó: o itinerário da lousa na escola paulistado século XIX”, me chamou a atenção um documento encontrado de cujo teor contrastava comos relatórios de professores (Série Manuscritos de Instrução Pública) – material de base dapesquisa em andamento àquela ocasião (1998-2000). O documento encontrado reunia diferentespeças que eram presas por um barbante. O conteúdo girava em torno de uma contenda queteria ocorrido em Villa da Penha, no ano de 1864. À moda de Ginzburg (1998)

1, tomei nota das

referências daquele documento para, num momento seguinte a ele retornar. Não demorou eoutra contenda saiu da lata que guardava relatórios de professores da Série Manuscritos deInstrução Pública, tratava-se daquela ocorrida em São João da Boa Vista, onde o ProfessorFrancisco Pereira Machado, se recusava em subordinar-se ao Inspetor Distrital, nomeado paraaquela localidade. Na série Ofícios Diversos, também ocorreu de se conhecer o episódio havido

1O autor conta que, no verão de 1962, período no qual realizava a pesquisa sobre um acervo de documentos inquisitoriais,no Arquivo da Cúria Episcopal de Udine, examinou os julgamentos de uma estranha seita de Friuli, cujos membros osjuízes identificaram como bruxas e curandeiros. Esta pesquisa teria resultado no livro I benadanti: Stregneria e cultiagrari tra Cinquecento e Seicento, publicado pela primeira vez em 1966. Ginzburg conta que, ao folhear um dosvolumes manuscritos dos julgamentos, se deparou com uma sentença extremamente longa, na qual uma das acusaçõesfeitas a um réu era a de que ele sustentava que o mundo tinha sua origem na putrefação. “Esta frase atraiu a minhacuriosidade no mesmo instante, mas eu estava à procura de outras coisas: bruxas, curandeiros, benandanti. Anoteinúmero do processo. Nos anos que se seguiram aquela anotação ressaltava periodicamente de meus papéis e se faziapresente em minha memória.” Algum tempo se passou quando o autor resolveu voltar ao arquivo para conhecermelhor aquela história e a narrou depois no livro chamado O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiroperseguido pela Inquisição. (Préfacio da edição inglesa na tradução brasileira de O queijo e os vermes, vermes: ocotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Cia das Letras, 1987, p.11-12.

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no Braz, onde o Professor João Antonio de Oliveira Campos, responsável pela escola masculinade Primeiras Letras da Escola e também estudante de Direito, se via em entrevero com o InspetorDistrital da localidade. Veio depois o caso de Maria do Espírito Santo, educanda matriculada noSeminário de “Acu”, ano 1859, ela resistia ao infortúnio de ir para o Lazareto mesmo depois dodiagnóstico médico. Diante dos quatro episódios, o interesse por tais documentos conduziu-meà uma busca mais sistematizada deste tipo de documentação. Se o acaso foi responsável peloencontro com aqueles quatro episódios, a organização arquivista do Arquivo do Estado de SãoPaulo guardava na Série Manuscritos de Instrução Pública documentos que se intitulavamProcessos, inscritos sob os números de ordem 4996 Lata 01, 4997 Lata 02, 4999 Lata 04,4998 Lata 03, 4999 Lata 04 devidamente apresentados num dos catálogos que organizam osdocumentos de acesso ao público de pesquisadores.Este suporte de pesquisa possibilitou oencurtamento do percurso e a sistematização dos procedimentos seguintes, dando início aoprocedimento de leitura preliminar com o intuito de verificar a melhor maneira de coleta eclassificação do material. Este momento também foi marcado pela necessidade de certificaçãoquanto à organização das peças que faziam parte do mesmo processo já que, não raro, haviapeças esparsas que demandavam cuidados sobre a organização para o posterior encaminhamentoà reprodução. O Professor Kazumi Munakata, orientador da dissertação de mestrado em curso,foi um grande incentivador nesta fase da pesquisa e um interlocutor privilegiado quando docontato inicial com estes documentos, que, desde então, começaram a ser coletados, fomentandoassim, o projeto de um futuro doutorado. O que ocorreu no começo de 2001.

A partir de então, a pesquisa de doutoramento recebeu a orientação impressa pela Profa.Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho, que além da competência para ajudar a pensar oscaminhos para alavancar os episódios ao estatuto histórico na compreensão de representaçõesda escola e das pessoas envolvidas com esta tarefa na Província paulista da segunda metade doséculo XIX, também me atentou para a importância de destrinçar no cruzamento entre acusaçãoe defesa, os interstícios da produção de regimes de verdade, haja vista a especificidade demandadapelos processos como um corpus documental cuja especificidade implica procedimentoscorrelatos. Foi então que me apresentou a obra L’atraccion del archivo. Nesta obra, a autoraArlette Farge que é uma historiadora que se dedica à pesquisa de arquivos judiciais do séculoXVIII na França, chama a atenção para cuidados importantes quanto ao arquivo judicial,remetendo para pistas importantes de uma narrativa histórica com base em documentos com talespecificidade. Para Farge (1991), o arquivo não escreve páginas de história, esta prática competeao investigador que freqüenta o arquivo. Farge (1991:26) alerta para cuidados que o pesquisadorde arquivo deve ter no tratamento com processos, estes documentos, diz ela, registram o irrisóriocomo o trágico sem que para isso, se mude o tom. À administração importa saber quem são osresponsáveis pelos delitos e o melhor modo de puni-los, enquanto que o acusado é sempre omenos favorecido e, embora nunca tenha cometido um grande crime, está fadado a permanecerarquivado como um infrator. As características de um documento como um processo, exigem

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do investigador esmerados discernimento e critério na interpretação que realiza de taisdocumentos.

Os cuidados com a pesquisa sobre textos judiciais advertidos por Carlo Ginzburg notexto O inquisidor e o antropólogo, também serviram como guias para este trabalho.

Devem ser lidos como o produto de uma inter-relação especial, em que há um desequilíbriototal das partes nela envolvidas. Para decifrar, temos de aprender a captar, para lá dasuperfície aveludada do texto, a interação subtil de ameaças e medos, ataques e recuos.Temos, por assim dizer, de aprender a desembaraçar o emaranhado de fios que formama malha textual destes diálogos (1989:208).

Alertada pelos cuidados referidos, foi dado o início aos procedimentos que incluíramvisitas continuadas ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, acompanhamento das fases dereprodução em fotogramas e digitalização. A coleta destes documentos foi um processo moroso,seja na modalidade de transcrição manual como na modalidade de reprodução em fotogramas(sucedida da digitalização). Tal morosidade implica no caso da transcrição, as condições dadaspelos documentos, são textos manuscritos e não raro, em condições materiais precárias e portanto,de difícil leitura. Para o segundo caso, reprodução em fotogramas, a demora se aplica aoscritérios do setor do Arquivo (AESP) responsáveis pela prestação deste tipo de serviço, que énecessariamente regido por protocolos de datas e disposições internas de controle e preservaçãodos documentos.

Os processos encontrados totalizam um número aproximado de 73, incluindo-se aí, aqueles4 episódios encontrados “ao acaso”. Alguns destes documentos, em torno de 30%, foramtranscritos à mão em pequenas fichas. Num segundo momento e, diante de processos maisvolumosos, foi iniciado um procedimento de reprodução em fotogramas seguido de digitalizaçãodos documentos localizados naquelas cinco latas. O terceiro momento consistiu em imprimir osdocumentos digitalizados. O quarto momento consistiu na organização dos documentosencontrados (Ver Anexo I). É importante registrar que, nem todas as peças que compõem umprocesso (portarias, ofícios, despachos, petição, representação, atestados, entre outras) trazemcondições de legibilidade, o que nalguns casos, inviabilizou conhecer e empregar aquelas peçasneste trabalho. Contudo, todas as peças de processos encontradas nas cinco latas, independentede qual fosse o estado material, sofreram o mesmo procedimento de leitura prévia, reprodução(escrita manual e digital) e classificação (Anexo 1). Para os casos dos processos examinadosneste estudo cujas peças apresentavam características de ilegibilidade, dadas pelo estado dosuporte material do documento, optou-se por registrar “[...]” no lugar do trecho ilegível quandotal uso não tivesse comprometimento com a compreensão geral do documento (peça do processo)em questão. Embora tenha se procedido ao registro de leitura e reprodução de todos os processosencontrados (cf. Anexo 1), somente foram trabalhados episódios circunscritos ao períodoimediatamente anterior à instituição da República, perfazendo um total de vinte e cinco conjuntosde peças (portarias, ofícios, despachos, petição, representação, atestado, entre outras) de

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processos. Este corte temporal foi pontuado pela Profa. Dra. Maria Lúcia Spedo Hilsdorf, porocasião do exame de qualificação, quando alertava para a densidade da massa documentalnuma delimitação temporal maior, tendo por base os sete episódios apresentados no texto dequalificação, avaliado em outubro de 2003.

O trabalho com esta espécie de corpus documental não é novidade.Pesquisas históricas cuja base empírica é constituída de processos foram desenvolvidas

por Sidney Chalhoub (1990), resultando na obra: Visões de Liberdade.Trata-se de um estudosobre o processo de libertação de escravos no município da Corte na quarta parte final doséculo XIX. Silvia Hunold Lara também estudou um conjunto de processos de alforria de negrosem Goitacazes (Rio de Janeiro) durante o século XVIII e começo do século XIX. Na obraintitulada: Campos de violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro (1750-1808). Ali, a autora opera o cruzamento entre processo, legislação, correspondências oficiaispara demonstrar como, numa sociedade colonial na qual o poder de vida e morte do senhorobedecia a um código estabelecido e socialmente aceito, a divisão entre senhores e escravosnão traduzia a rigidez que muitos historiadores supuseram. Maria Silvia de Carvalho Franco, naobra Homens livres na ordem escravocrata (1969), reconhece que a pretensão inicial de usaros processos criminais da comarca de Guaratinguetá (São Paulo) na quarta parte final do séculoXIX, como suporte documental para a apreensão de aspectos sociais da época, teria sidoredimensionada quando do contato com a especificidade daqueles documentos, cujo enfoquecentral, a violência, foi decisiva no redimensionamento da tensão entre a ordem pública e privadada formação social da época, por meio dos conflitos que permeavam a relação entre os grandesfazendeiros e os colonos da “velha civilização do café”. Maria Cecília Christiano de Souza(1999), se deteve sobre processos de divórcio como base documental para reconstrução defragmentos da vida privada de pessoas comuns entre os anos de 1890 a 1930, São Paulo.Operando com a perspectiva de que a lei é produzida num complexo campo de lutas, EdwardPalmer Thompson (1997) reconstitui o lugar que “pedacinhos casuais de mexericos” sobreviventesem apontamentos pessoais e, parcialmente na imprensa do século XVIII compunham os episódiosque davam a ver os conflitos sobre a propriedade e o poder entre caçadores de cervos (dasflorestas de Windsor, Hampshire e arredores de Londres) e a burocracia da floresta (legislação/tribunais) na sociedade inglesa do século XVIII.

O emprego de processos como base documental de pesquisas na área da educação,pode ser ilustrado com os trabalhos realizados por Maria das Mercês F. Sampaio (1998) eValéria Moreira Rezende (2001), em ambos a delimitação temporal é marcada por períodosrecentes da escola brasileira. A primeira autora estudou um conjunto de recursos impetradospor alunos e pais de alunos que contestavam a reprovação em escolas públicas de São Paulo naprimeira metade da década de 90 do século XX, trata-se de um estudo sobre as relações entrecurrículo e avaliação, publicado na forma de livro sob o título Um gosto amargo de escola:relações entre currículo, ensino e fracasso escolar. Já no segundo trabalho, a pesquisa incide

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sobre um conjunto de processos de prestação de contas. Valéria Moreira Rezende (2001) sepropõe a mostrar as relações conflituosas entre a exigência burocrática e as necessidades efetivasda escola no âmbito da discussão sobre a descentralização, desconcentração, e financiamentode recursos destinados às escolas públicas na primeira metade da década de 90 do século XX.Sua dissertação é intitulada: A descentralização financeira e a autonomia da escola mineira:um estudo dos processos de prestação de contas de escolas estaduais na jurisdição da 16ªSRE Ituiutaba).

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Talvez, a novidade deste estudo esteja no emprego de processos como base documentalprivilegiada para pensar a constituição histórica da escola existente no século XIX. A leitura dosprocessos bem como o acompanhamento de uma orientação acurada, conduziram à pesquisade outros documentos, entre os quais se relacionam textos normativos, jornais, relatórios depresidente de província, relatórios de professores, atas de reunião de conselhos, correspondênciasoficiais, mapas de freqüência, livros de matrícula.

Inicialmente, a investigação sobre os jornais foi uma tentativa de conhecer aspectos culturaise sociais do período e local estudados, que de algum modo compunham o pano de fundo dascontendas. O contato com estes documentos provocou o desejo de incluí-lo como um dosobjetos de estudo, tal qual a proposta apresentada no exame de qualificação. Por aquela época,eu já havia percorrido a coleta de matérias publicadas sobre a instrução pública de três jornais:Diário Paulistano (1865-1878), A Província de São Paulo (1875-1897) e Correio Paulistano(1855-1897). A pesquisa sobre estes jornais foi iniciada no começo de 2001 e o recortetemporal desta pesquisa foi dado pelo curso temporal da série de processos (1853-1897) sendocondicionado às datas de publicação dos jornais, bem como a interrupção de publicação dosjornais ou perdas caracterizadas pela mutilação de partes. Tal como os processos, as matériasselecionadas (incluem-se aí relatórios de instrução, textos normativos, denúncia de professores,queixas de pais de alunos, anúncios de publicidade de livros e materiais de uso escolar) dosjornais também sofreram a reprodução digital, tendo sido organizadas num arquivo pessoal.

As contribuições da banca de qualificação me fizeram ver que, conceder ao jornal oprivilégio de objeto do estudo, era uma incursão arriscada, pois demandaria uma série de outrosinvestimentos que deslocariam o estudo de certas especificidades sugeridas por um trabalhopautado pelo enfoque sobre os processos, armadura central da pesquisa. Por tudo isso, a pesquisarealizada nos jornais aparece neste estudo, como um movimento complementar, que ora permitevisualizar aspectos culturais e sociais da época, ora permite mostrar aspectos relacionados aosprocessos. Foi possível notar que alguns processos eram motivados por denúncias publicadasem jornais, estas práticas quase sempre partiam de um anônimo. O movimento entre os debatese a publicação de um texto normativo também constituem amostras de uma interface entre o

2Ambas as últimas pesquisas referidas foram desenvolvidas pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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jornal e os processos, já que, todos os textos normativos da instrução que foram trabalhadosneste estudo informaram procedimentos sobre aquilo que era obrigação do professor e aquilo aque estava impedido. Tal constatação validava a relação entre o lugar da escola na formação deuma opinião pública. Não obstante, as páginas dos jornais pesquisados (Diário de São Paulo,Correio Paulistano, A Província de São Paulo), concediam espaços para a publicação dedebates das Assembléias e de alguns textos normativos (regulamentos, leis).

Na análise dos processos, foi empregada a classificação “episódio” que aparece seguidade um número foi usada no curso do texto e é aqui (cf Anexo 1) reproduzida para efeito deidentificação dos processos que foram empregados no conjunto dos processos coletados noArquivo do Estado de São Paulo. Já a classificação “disciplinar”, “administrativo” ou de“averiguação” compõe a escrituração dos próprios documentos. De acordo com o exame doconjunto dos processos, a classificação coincide com a publicação do Regulamento de 1869. Ocruzamento com a legislação do período demonstrou que a ausência de classificação nos episódiosde contenda verificados antes deste texto normativo e mesmo o fato de não estarem agrupadosnum conjunto homogêneo de documentos, segundo uma lógica arquivista, poderia ser explicadopelo fato de que os textos normativos anteriores ainda não instruíam sobre a instauração deprocessos. Quanto à ausência desta classificação nos processos posteriores à publicação doRegulamento de 1869, tanto pode constituir um lapso de esquecimento dos secretáriosresponsáveis pela escrituração da repartição da Inspetoria Geral da Instrução Pública comopode representar alguma dificuldade de enquadramento da falta verificada. A comparação doconteúdo informado em alguns processos que aparecem classificados como administrativos eoutros que são classificados “disciplinares” mostrou-se ineficaz na marcação de contrastes maisdefinidos, razão pela qual, embora os processos classificados tenham sido registrados como tal(cf Anexo 1), esta classificação não foi empregada como instrumento de distinção na apresentaçãodos episódios trazidos pelos processos no curso do texto. Sobre estes documentos que estãono corpus principal da pesquisa realizada é importante registrar ainda que, com o fim da monarquiae a publicação de um novo texto normativo, aparecem os processos classificados como “deaveriguação”, tendo sido encontrados 3, todos ocorridos no ano de 1895. Em comum, aos trêsepisódios, o fato de que a acusação sempre parte da Câmara Municipal e o a alvo da denúnciaé sempre um inspetor de distrito. Quanto aos demais, 5 são classificados como “administrativos”e 33 como “disciplinares”. Os demais não portam nenhuma classificação. Do total de 73processos, aproximadamente 30% incidem sobre professoras e os demais sobre homens(professores, inspetores e um almoxarife).

O exercício de organização dos processos (Anexo 1) permitiu a elucidação de um outrodocumento imprescindível para a pesquisa em nível de doutorado iniciado em 2001. Trata-se dareferência normativa encontrada em cada um dos episódios trazidos nos processos.

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A referência normativa de cada documento também contribuiu para a redefinição sobre adelimitação periódica do trabalho, influenciando também a mobilização de um certo corpusconceitual. À esta altura era preciso considerar que à leitura dos processos também foi somadaà pesquisa sobre jornais, o que possibilitou redimensionar a relação entre a legislação pertinentee os temas de processos. Notou-se que as referências normativas (regulamentos) marcadaspelo pelos processos, referências normativas responsáveis pela instrução da falta e dosprocedimentos de apuração e definição de pena, eram intermediadas por outros textos normativos(regulamentos) de aspectos da instrução pública.

Tornou-se importante ampliar o exame destes textos normativos (regulamentos) de instrução,com vistas à explicitação de aspectos da instrução, da relação entre o serviço da inspeção e oserviço do professor, que pudessem revelar distinções ou permanências que teriam mobilizado adiscussão, aprovação e a pouca duração de alguns destes textos. Assim, foram examinados osseguintes textos normativos:

- Lei nº 34 de 16 de março de 1846- Regulamento de 25 de setembro de 1846, Para a Commissão Inspectora (cf. Lei nº 34

de 16 de março de 1846)- Regulamento de Instrucção Publica, 8 de novembro de 1851 (cf. Lei nº 34 de 16 de

março de 1846)- Regulamento para admissão de professores, 28 de agosto de 1861 (cf. Lei nº 16 de 3

de agosto de 1861)- Regulamento nº 4, 17 de abril de 1868 Para a Instrucção Publica (Lei nº 54, 15 de

abril de 1868)Regulamento para a Instrucção Provincial – Instrucção Publica e Particular 18 de abril

de 1869 (cf. art. 44 da Lei nº 34 de 16-03-1846, art. 4º da Lei nº 24 de 1850, art. 4ºda Lei nº 10 de 1851 e art. 23 da lei nº 54 de 1850).

* Números aproximados

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- Regulamento de 5 de junho de 1874 Para o ensino obrigatório (Lei nº 9 de 22 demarço de 1874)

- Refórma da Instrucção Publica, 2 de maio de 1885- Lei nº 9, 2 de março de 1887.

O procedimento de recorrer a textos normativos que se distinguiam daqueles referidosnos processos foi uma estratégia de investigar o modo como certas questões da escola, vistas nomodo como se pensava a instrução sobre o controle do professor e da falta, se distinguiam entrea publicação, a revogação e a vigência de textos normativos que poderiam vigorar quase duasdécadas sucessivas, sendo às vezes retomados depois de terem sido revogados pela publicaçãode outros que vingavam poucos meses. Com este procedimento, a massa documental analisadafoi redimensionada. Verificar o modo como a norma era produzida na relação com o modo como qual se produzia uma representação de escola extraída da relação entre a falta do professorversus os dispositivos de controle, vistos na instituição do serviço público da inspeção escolar,era uma tarefa que ampliava a massa documental de textos específicos da norma que, ao mesmotempo redimensionavam o exame dos processos. Dessa maneira, o estudo de textos normativosque intercalaram os textos normativos referidos nos processos tornou-se um procedimento dapesquisa que contribuiu para a revisão da periodização deste estudo, haja vista que, a pretensãoinicial era a de trabalhar toda a série de processos encontrados (Anexo 1).

Sobre o tratamento com textos normativos, vale recordar a pista sinalizada por IlmarMattos ao discorrer sobre a instrução pública na Província do Rio de Janeiro no período dos“saquaremas” chamando a atenção para a importância de se percorrer o “corpo legal referenteà organização da instrução na província”. Tal percurso, sinaliza o autor, deveria prever a passagempelos relatórios dos presidentes da província e pelas discussões da Assembléia nas páginas deseus anais. Para o autor este caminho possibilitaria recuperar as “intenções” daquele segmentopolítico quanto ao tipo de Estado a ser construído, a direção impressa à sociedade, quanto àscriticas que uns deputados formulavam às soluções propostas por outros ainda implementadas,quanto aos limites de uma proposta que, no fundamental, vislumbrava no alcance da civilizaçãoa condição do Povo – isto é, a ‘boa sociedade’ – não só conservar o lugar que ocupava nasociedade, mas também reconhecer e reproduzir as diferenças e hierarquizações no seu própriointerior.”(1990, p. 260-261).

Neste estudo, os processos constituem o material de base. A partir de sua leitura, anecessidade de situa-lo no texto normativo (regulamento, lei) que o enquadrava. Na incursãopelo documento normativo, aflorou-se a produção do serviço público da inspeção da instrução.Este se fazia na contra-face de códigos de conduta moral desejável ao professor. No cruzamentoentre lei- inspeção- infração - pena, dados no embate das vozes dissonantes de acusação edefesa, surgem os flagrantes que dão a ver traços de uma forma escolar em produção. Ademais,como se tratasse de processos que envolviam agentes direta ou indiretamente ligados à produçãoda escola pública de instrução primária da segunda metade do século XIX, era preciso entender

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o modo como as questões normativas da instrução eram colocadas na alçada legislativa. Isto é,se tentou um movimento que saía do diálogo entre as vozes contraditórias da acusação e defesapara o diálogo das vozes contraditórias dos deputados paulistas. A metáfora que talvez comporteeste movimento é a de que este estudo tanto se interessou pela “briga” de “vizinhos” como seinteressou pela “briga” entre “nobres colegas”. Ao se proceder à incursão pelos bastidores daprodução da legislação, foi possível aquilatar o lugar da escola na formação cultural, social epolítica da época.

Na leitura dos processos, os conceitos de cultura e forma escolar, emprestados, deforma relativamente livre, respectivamente, à Dominique Julia e Guy Vincent, foram ferramentaisconceituais que ajudaram na tarefa de apreender alguns dos traços instituidores da escola paulistado século XIX por via do exame dos processos

3.

Ao discorrer sobre o conceito de cultura escolar, JULIA alerta para aquilo que entendepor tal conceito, balizando-se por aquilo que não pode escapar no exercício de investigaçãohistórica, que se sirva de tal conceito. Para este autor, a cultura escolar

(...) não pode ser estudada sem a análise precisa das relações conflituosas ou pacíficasque ela mantém, a cada período da história, com o conjunto das culturas que lhe sãocontemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular. ( ...) a culturaescolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutasa inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentose a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidadesque podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sócio-políticas ousimplesmente de socialização). (p. 1).

Entende-se que o amplo conceito definido por Julia esteja contemplado na cobertura daanálise dos documentos examinados nesta pesquisa, tendo em vista que, aquilo que o autorrefere como o conjunto de normas, ou conjunto de práticas, ou a incorporação de comportamentose normas guiados por uma finalidade maior, não estejam circunscritos na relação estreitada doagente responsável pela inculcação da norma e do conhecimento — professor — sobre outroagente —aluno — que incorpora tais comportamentos numa relação mediada por práticascoordenadas, à serviço da finalidade mais ampla da escolarização. Operar com o conceito decultura escolar, compreende no caso desta pesquisa, servir-se de um conceito que permitaanalisar o professor como agente receptor da norma e do comportamento. Isto é, o professor éaprendiz na prática mediada pelo intento de formação e constituição da escola. Ao mesmotempo em que é professor e deve inculcar conhecimento e comportamento, é cobrado e, nestecaso, processado quando não o executa de modo a atender a finalidade maior em questão, nolimite, a participação da escola na tarefa de governo dos homens.

3Forma escolar – conceito formulado por Guy Vincent (L’école primaire française, 1980). Cultura escolar – conceitoformulado por Dominique Julia (L’culture scolaire, 1993).

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No caso deste estudo (Briga de vizinhos...), é preciso considerar as condições dadaspelas fontes em exame: os processos. O itinerário da investigação não se dá na perspectiva quetem como ponto de partida o documento normativo para dele se operar na direção das práticas.Um processo é instalado quando uma norma foi transgredida. O processo, ao mesmo tempo emque se instaura fundindo as contradições entre a norma e a infração, também contém a propriedadeda cultura escolar (JULIA) vista no movimento das visitas e correspondências na geração dodocumento normativo. No caso dos processos, o movimento entre a norma e a infração sãoelementos que ajudam no engendramento de aspectos da produção de uma forma escolar.

Assim, o emprego conceitual de cultura escolar nesta pesquisa é, marcadamente definidopela leitura que dele se faz e ao que parece, está colorido de certa pertinência. Cultura escolar éum conceito que possibilita apreender a dinâmica de instituição de uma norma (Ratio Studiorum)segundo os seus movimentos constituintes de sua implementação (visitas de inspeção e relatos)

Também o conceito de forma escolar, elaborado por Guy Vincent, foi ferramentaimportante na leitura e análise dos processos. Ao buscar a gênese de uma forma escolar, o autorpercorre os séculos XVI ao XIX da França, aludindo-se às experiências escolares das “PetitÉcoles”, Charles Démia, La Salle, escolas mútuas, colégios do Antigo Regime, escolas primáriasda IIIª República até a laicização e instituição da escola republicana de Jules Ferry. Nestasexperiências, o autor destaca que a “forma escolar não é somente um efeito, uma conseqüência,ela é partícipe.” O autor destaca, entre outros, os seguintes traços que constituem a formaescolar: 1) a constituição de um universo separado para a infância, espaço este espaço compostode um arranjo mobiliário específico e cujo arranjo tem como principal finalidade: a vigilância; 2)a importância das regras; 3) a multiplicação e a repetição de exercícios.

Vejamos então o modo como Vincent opera sobre a regra no processo de destacamentoda forma escolar. A instituição da forma escolar se dá com a inculcação da impessoalidade daregra. Esta marca é extraída das escolas cristãs, especialmente das prescrições lassaleanas,segundo as quais, não deveria haver qualquer familiaridade entre o professor e aluno. Exemplodisso é que, quando um aluno cometesse uma falta, este deveria ser punido mas não seria punidopelo professor. O professor seria o mediador da punição, que por sua vez, corresponderia a ummecanismo impessoal de correção de condutas a que se submetem tanto o aluno como oprofessor. “Não é o mestre como pessoa particular que castiga, ele é somente um representantedas regras escritas gerais, supra-pessoais”(Vincent org. 1993: ). A escritura porta a impessoalidadeda regra: “O aluno e o mestre se colocam no plano exteriorizado, objetivado das sentençasescritas”(Vincent org.1993). Esta concepção fundava-se no emprego da regra que entende que“o erro não é a desobediência à sua vontade pessoal mas o não respeito de um regra impessoalou supra pessoal.” Esta impessoalidade da regra é uma das marcas da escola cristã. É assim queVincent mostra que a instituição da escola republicana na França operava uma mudançaimportante por várias razões, entre estas a pretendida racionalidade da regra. Trata-se de umenfoque diferenciado sobre a regra, donde se depreende que, a obediência à regra é procedimento

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desejável e esperado para a escola laica e obrigatória que propõe a formação de cidadãos.Mas Vincent não está muito convencido deste deslocamento, para ele, a “revolução pedagógica”que se pretendia era propriedade dos discursos. (Vincent, 1980)

Para o que aqui interessa, é importante destacar que o conceito de forma escolar éelaborado num percurso que para efetivamente alcançar a gênese da forma escolar, não podeprescindir da importância das transformações operadas sobre o emprego da regra e, de modoespecial ao emprego da escrita na imposição da regra, vale o que está escrito. A regra deixariade ter conotação impessoal ao final do século XIX, quando seriam instituídas as reformasrepublicanas, e então o conceito veiculado de regra passaria a implicar na aceitabilidade dasujeição como um procedimento submetido à razão.

Estes dois conceitos parecem contemplar a pretensão de apreensão do diálogo de “vozescontraditórias” tão próprio das fontes documentais referidas. Nas diferentes falas, a norma ocupalugar destacado. Ali, também vale o que está escrito. Mas o caráter impessoal da normaprovoca um cruzamento de vozes dissonantes, entre estas, está é claro, a voz pessoal deprofessores, inspetores, alunos e pais de alunos numa troca que, tímida ou evidentemente tambémajudam na compreensão dos processos de implementação da forma escolar encontrada em SãoPaulo no final do século XIX. Neste diálogo conflituoso os temas móveis da constituição daescola em constituição terão presença franca: separação de alunos em classes, métodos deensino, duração horária das aulas, freqüência escolar, formação de professores, espaço defuncionamento da escola e há outras. Os processos em exame neste projeto de pesquisa (Brigade vizinhos...) são entendidos portanto como documentos que reúnem os movimentos de culturae forma escolares na “escola pública” de Primeiras Letras da segunda metade do século XIX.

Os conceitos de infração e pena, trabalhados por Michel Foucault (1999), na obra Vigiare Punir, também se constituem ferramentas conceituais que permeiam a construção deste texto.

A pesquisa aqui apresentada encontra-se vinculada ao projeto A constituição da “formaescolar” no Brasil: produção, circulação e apropriação de modelos pedagógico

4, que vem

sendo desenvolvido no Programa de Estudos Pós Graduados em Educação:História, Política,Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a coordenação das professorasMarta Maria Chagas de Carvalho e Maria Rita de Almeida Toledo.

O capítulo 1 Aspectos da implantação do serviço de inspeção da Instrução Públicana Província paulista parte do estudo de algumas sessões da Assembléia Provincial estampadanas primeiras páginas de um periódico da década de 50 do século XIX. Ali, o debate doOrçamento Provincial recai sobre a Instrução, ocasião em que os parlamentares colocam oInspetor Geral da Instrução e deputado na condição de ajuizador das faltas de professores

4A versão inicial desse projeto encontra-se formulada no texto intitulado Modelos pedagógicos, práticas culturais eforma escolar: programa de estudos sobre a história da escola primária no Brasil (1750-1940),editado em versãomimeografada em 2001, e publicado no A escola e a república e outros ensaios, Editora da Universidade São Francisco(2003).. de autoria da Profa. Dra. Marta Chagas de Carvalho

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públicos. A seqüência destaca as mudanças operadas na produção do dispositivo escolar dainspeção na produção legislativa que culmina com o Regulamento de Instrução Pública de 1851.A implantação do serviço público da inspeção constitui um dos principais aspectos da legislaçãoda instrução pública do período, o que permite compreender uma marca da administração pública:a fiscalização como retaguarda constante da implantação do serviço público. Há uma tentativade divisar o alcance do serviço público de inspeção sobre preceitos normativos da escola deinstrução primária particular. No ato de demonstrar aspectos da organização da província nosdistritos literários (de inspeção escolar) segundo o modelo de distribuição do serviço jurídico naorganização administrativa do território paulista abriu-se a possibilidade de marcar o encontroentre agentes jurídicos e agentes escolares. É enfim uma tentativa de dimensionar a implantaçãodo serviço público de inspeção por meio das estratégias de difusão das escolas pelos diferentesdistritos literários da província, de modo a perceber na difusão da escola nos distritos literáriosda província, a perspectiva de divisar o emprego da escola como braço de relevo das estratégiasde civilização na distribuição geográfica da instrução.

O capítulo 2 Regimes de produção de verdades: estratégia ambivalente de denunciadose denunciantes reúne as peças processuais cujas contendas aconteceram entre as décadas de50 e 60, sob a ingerência do Regulamento da Instrução Pública de 1851. Nele, se procuramostrar que a mediação de conflitos tem na regra, a grande vedete, seja por aquilo que representacomo preceito normativo seja por aquilo que escapa do preceito e é flagrado na prática daburla. Mais que isto, o capítulo 2 é generoso na composição de certas cenas da sociedade daépoca, flagrantes das relações de embate entre as influências locais, relações entre o oral e oescrito na produção de dispositivos de hierarquização um segmento do funcionalismo público.

O capítulo 3 Retomadas normativas da Inspeção constitui um apanhado sobre asdiferentes formas de como o serviço público da inspeção foi representado nalguns periódicos doperíodo, procedimento que possibilita capturar posições que, ao atacar a ineficácia do serviçopúblico de inspeção creditavam à família (esfera privada) a responsabilidade pela inspeção dainstrução, isto é, a estratégia discursiva da crítica manifestada nos periódicos sobre o serviçopúblico de instrução era uma contra-face da defesa do ensino livre. Do mesmo modo que adefesa do ensino obrigatório explicitava o confronto entre o poder público e o pátrio poder narelação que travava na obrigatoriedade do ensino como uma intervenção do poder públicosobre a dimensão privada da família sobre os próprios filhos. Na sucessão, a inspeção é flagradanos debates sobre o projeto de reforma apresentado pela Comissão de Instrução Pública naAssembléia Provincial do início de 1868 e que redundou no Regulamento de março do mesmoano. Neste período três temas interdependentes estarão em discussão: o debate entre ensinoobrigatório versus o pátrio poder, estratégias de coibir a prática fraudulenta de professores naescrituração da freqüência das escolas públicas e das mudanças estruturais no serviço da inspeçãoque incidiam sobre aspectos que iam desde a correspondência da geografia jurídica com ageografia da instrução até a transferência da inspeção para agentes jurídicos e eclesiásticos.

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Aprovado e sancionado, o Regulamento de 1868 é revogado, enquanto retorna à vigência oRegulamento de 1851. O novo texto normativo da Instrução Pública provincial seria publicadoem abril de 1869.

No período da vigência do Regulamento de 1869 foi aprovada a reforma para EnsinoObrigatório (1874) e o Regulamento específico para assuntos da Escola Normal. Há umaestratégia de conciliação entre a imposição da obrigatoriedade ao ensino e a perspectiva deoferta de professores com qualificação técnica. Neste ínterim há lugar para um professor que sevê enquadrado em dois processos administrativos sucessivos que se arrastam por um períodode onze anos, enquanto ele cumprira com o exercício de professor, dezesseis anos (1867-1883). Sua trajetória de professor público atravessa a gestão de dois dos três Inspetores deInstrução Pública da Província paulista. O professor formado pela Academia de Direito eraacusado do exercício incompatível de duas funções.

O capítulo 4 Das interfaces entre a freqüência escolar, obrigatoriedade do ensino e oserviço da inspeção é uma tentativa de reunir diferentes aspectos do tema da freqüência escolarna interface com aspectos de forma e cultura escolares. Estas questões que ocupam páginas dosperiódicos e atravessam a tribuna da Assembléia ainda teriam uma outra face apontada nosprocessos, qual seja, a rusga entre a imposição normativa de um número mínimo de matrículaversus as práticas de fraude de professores públicos na escrituração da freqüência escolar. Eraesta uma expressão dos problemas advindos da implantação de um serviço público cujafiscalização operada pelo serviço da inspeção dava a ver irregularidades que clamavam pormaior rigor coercitivo da parte do poder público sobre a administração do serviço de oferta dainstrução.

O capítulo 5 Do Inspetor ao Conselho: processos de refinamento do dispositivo dainspeção mostra algumas situações conflitivas entre professores e serviço de inspeção de modoa revelar mudanças que consolidam o tom de refinamento sobre o dispositivo da inspeção escolar.É o que se pode constatar após o exame da Reforma da Instrução Pública em 1885. Tanto odebate como a formatação do texto final revela a infiltração de um certo refinamento sobre oserviço da inspeção quando da proposta de eleição para membros de Conselhos responsáveispela direção e fiscalização das escolas paulistas em níveis provincial e municipal. Com matizesafins aos princípios republicanos, a Reforma de 1885 é revogada em setembro. No intervaloentre o texto de 1885 e a produção de um novo texto (agosto de 1887), volta à vigência oRegulamento de 1869. O Regulamento de 1887, publicado aos 22 de agosto daquele ano,constitui o último texto normativo (regulamento) da Instrução Pública Provincial no períodoimperial, o Regulamento de 22 de agosto de 1887. Este documento aparece como um esforçode concessão às pressões impostas pela época. O novo documento mantém o programa deensino afeito aos princípios positivistas, também mantém a estratégia de refinamento da inspeçãopartir da reprodução dos Conselhos (1885) embora com mudanças relevantes nos processosde eleição, composição e atuação. Mas há a omissão quanto à obrigatoriedade do ensino. A

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substituição do cargo do Inspetor (tanto na escala local, como provincial) pela instituição deConselhos (locais e provincial) não corresponde à ausência da ação da inspeção, aí estariacaracterizada a estratégia de refinamento dos dispositivos de controle e vigilância da escola. Aonovo paradigma que se instaura, a estratégia mais eficiente de controle é aquela menos visível ou,mais refinada. Mesmo que esta última seja confundida com adesões ideológicas contrárias aoregime monárquico que agonizava. Por fim, alguns processos instaurados e geridos sob a vigênciado último texto normativo da monarquia, o Regulamento de 1887. Tais processos conferemdistinção à relação produzida entre autoridades da direção do ensino e as “faltas” cometidaspelos professores. Os constrangimentos impostos por uma nova ordem anunciada implicam noredimensionamento da “falta”. A “falta” de cunho moral é emparelhada com a falta da “qualificaçãotécnica” que, nalguns casos se confunde com formação ideológica divergente dos princípiosafins monárquicos. O controle sobre a freqüência é tratado como a grande invariância nosprocessos de constituição da escola oitocentista. A freqüência bem poderia representar umametáfora do controle do tempo. Os motivos geradores de processo tais como: o atraso quantoao prazo da licença, o atraso quanto ao tempo previsto para a posse da professora, os alunosque deixam de freqüentar a escola porque seus pais divergem das idéias modernas do professor.A ação de controle sobre a freqüência parecia corresponder à tentativa incessantemente burladade inscrever a regularidade ao tempo das pessoas por meio da escola.

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CREONTE: – Ó tu, que manténs os olhos fixos no chão, confessas, ounegas ter feito o que ele diz?

(Antígone ergue-se, e fita-o de frente, com desassombro)ANTÍGONE: – Confesso que o fiz! Confesso-o claramente!CREONTE: – (Ao guarda) – Podes ir para onde quiseres, livre daacusação que pesara sobre ti! (A Antígone) Fala, agora, por tua vez;

mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido oque fizeste?

ANTÍGONE: – Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar se era umacoisa pública?

CREONTE: – E, apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essadeterminação?

ANTÍGONE: – Sim, porque não foi Zeus que a promulgou; e a Justiça, adeusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal de-creto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante paraconferir a um mortal poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escri-tas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; sãoeternas sim!, e ninguém sabe desde quando vigoram! – Tais decretos, eu, quenão temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venhamos deuses! (Sófocles, Antígone).

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Capítulo 1

ASPECTOS DA IMPLANTAÇÃO DO SERVIÇO DE INSPEÇÃODA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA PROVÍNCIA PAULISTA

“A maior dentre todas as ficções legais é a de que a lei sedesenvolve de caso a caso, pela sua lógica imparcial, coerenteapenas com a sua integridade própria, inabalável frente aconsiderações de conveniência.” (THOMPSON, 1997:338).

Um esboço do serviço de inspeção por meio dasregulamentações da Instrução Pública (1827-1851)5

O serviço de inspeção escolar aparece como um dos principais dispositivos6 de constituiçãoda escola de Primeiras Letras da província paulista no curso do século XIX. De acordo com aLei Geral de 1827, esta atividade seria realizada pelas Câmaras Municipais existentes nas diferenteslocalidades, pelo Presidente da Província e pelo Ministro do Império no município neutro (arts.14º e 16º).7 As primeiras Câmaras Municipais surgiram com as primeiras vilas e cidades existentes,representando os primeiros rudimentos da administração municipal. Eram compostas por trêsou quatro vereadores que eram escolhidos pelos chamados “homens bons”, quase sempre grandes

5 O regulamento é uma modalidade textual normativa com disposição oficial de explicar a execução de uma lei. Osregulamentos são documentos com lugar privilegiado neste estudo porque representam o texto normativo que instruia instauração de processos. Há um tratamento especial sobre a Lei Provincial de 16 de março de 1846, que instruisobre o Regulamento de 1851, referência normativa principal dos primeiros episódios examinados e a Lei n. 81 de 6de abril de 1887, que instrui sobre o Regulamento de 1887, referência normativa dos ultimos processos examinados.

6Dispositivo – Meio ou expressão de natureza estratégica, trata-se de uma certa manipulação de relações de força, sejapara desenvolve-las em determinada direção, seja para bolqueá-las, para estabiliza-las, para utiliza-las. O dispositivoestá inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que delenascem mas que igualmente o condicionam. FOUCAULT, M. p. 246.

7O projeto que originou esta lei foi apresentado pela Comissão de Instrução Pública, assinado pelos deputados:Cônego Januário da Cunha Barbosa, José Cardoso Pereira de Melo e Antonio Ferreira França, Soares da Rocha eDiogo Feijó.Representou a primeira lei orgânica do país, resumia-se em 17 artigos. BRETAS, 1991, p. 124-125. Entreos textos normativos mais importantes do século XIX estão a Reforma Couto Ferraz ou Regimento de 1854, queestabelecia a obrigatoriedade do ensino elementar, reforçava o princípio da gratuidade, vetava o acesso de escravos aoensino público e previa a criação de classes especiais para adultos (Município da Corte). O último e mais importantetexto normativo foi a Reforma Leôncio de Carvalho de 1879 que traçou normas para o ensino primário e secundáriono Município da Corte e dispôs sobre o Ensino Superior em todo o país. Cf. XAVIER, Maria Elizabete SampaioPrado & SANTOS, Maria Luisa & NORONHA, Olinda Maria. 1994. História da educação: a escola no Brasil. p.84 e 89

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proprietários rurais. (ACQUAVIVA, 2000, p. 264-265). A descentralização marcada pelo AtoAdicional de 1834 criou as Assembléias Provinciais, delegando às mesmas a competência dalegislação sobre a instrução e outros ramos do serviço público na província.8

Sobre a Instrução Pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreendendoas faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias actualmente existentes e outrosquaesquer estabelecimentos de instrução que para o futuro forem criado por lei. (Art. 10,§ 11, Ato Adicional de 1834, p. 42 in: A Constituição de 1824).

O reconhecimento dos trabalhos da Assembléia Provincial paulista vinha da parte doPresidente da Província.

Comquanto tenhão as Assembléas desta província tomado na devida consideração, não só ainstrucção primaria garantida pela Constituição do Império, como também a instrucçãosecundaria, por estarem convencidas da poderosa influência, que ella exerce sobre o homem,tornando-o mais sociável, dócil e menos sujeito a fantásticos prejuízos, sendo sobremaneiraindispensável ao cidadão um paiz regido por Instrucções (sic) livres (...) (Annaes da AssembléaProvincial de S. Paulo, Relatório de Instrução Pública, 1845, p. 55).

Entretanto advertia o presidente, as tentativas “generosas” de esparramar a instrução porcidades, vilas e freguesias da província se deparavam com o problema do “diminuto número” dealunos que freqüentavam as escholas.” Este problema era explicado pela “negligência e poucozelo dos Professores”, “descuido dos paes, que não obrigão seus filhos a freqüentar escholas”.Uma outra face do problema advinha da fraude sobre o número dos alunos que freqüentavam asescolas.

Achão-se creadas na província 75 escolas de 1ªs. Letras, das quaes 54 estão providas deprofessores, e 21 vagas, e 16 para o sexo feminino, das quáes 9 tem professoras, e 7 nãoas tem. O mappa nº 6 mostra serem aquellas apenas freqüentadas por 2378 meninos, eestas por 390 meninas, sem que se possa affirmar a exactidão do numero de alumnos poralguns professores declarado, e muito menos sua freqüência, tanto mais que a inspecçãodas escolas está incumbida às Câmaras, que, com honrosas excepções, desdenhão decurar negócios administrativos, e exercerem vigilância sobre os professores por meio deseus Fiscaes, e vos sabeis qual seja, em geral, a qualidade, e capacidade mental dosFiscaes nesses municípios centraes. (Annaes da Assemblea Provincial de S. Paulo,Relatório de Instrução Pública, 1845, p. 55)

8 Província – Do latim provincere, vencer antes, previamente. Na antiga Roma republicana, inicialmente o múnus ouencargo atribuído a um magistrado de governar determinada região conquistada pelos romanos. Depois, a própriaregião, cujo administrador chamava-se procônsul ou pretor. Como os territórios eram incorporados ao império apósvencidos seus primitivos habitantes, surgiu o étimo supra-citado. Modernamente, província é a denominação que sedá a cada uma das divisões administrativas de um Estado unitário, isto é, aquele que impõe centralização político-administrativa, como o Brasil ao tempo do Império. ACQUAVIVA, 2000, p. 1096.Na Província de Goiás, vale conferir o trabalho de Nancy Ribeiro de Araújo e Silva, sobre o tema da inspeção escolarrealizada naquela província e no período do Império, consultar especialmente as páginas, 85 a 100. SILVA, N. R. deA e. 1975. Tradição e renovação educacional em Goiás. Goiânia: Oriente, 1975.

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Com a pretensão de dar uma “nova organisação ás escolas de instrucção primaria”9 , naprovíncia de São Paulo, foi publicada10 a Lei nº 310 do dia 16 de março de 184611 que sepautava, entre outras medidas, pela redefinição do serviço de fiscalização sobre as escolas. Deacordo com esta Lei, somente continuariam agregando a função direta de inspeção escolar asCâmaras Municipais cujas localidades não reunissem as condições para a constituição de umaComissão Inspetora. Esta deveria se compor de três membros, sendo os três residentes dalocalidade, um nomeado pelo Governo Provincial e outros dois pela Câmara Municipal – dentreos dois, um haveria de ser sacerdote, quase sempre o pároco da comunidade.

O serviço de inspeção da aula correspondia à fiscalização sobre as ações do professor –responsável pela polícia e economia da mesma aula.12 Para conferir traços da relação entre ainspeção e a atuação do professor basta cruzar alguns aspectos de dois dos textos normativos,por exemplo o “Da suspensão, e demissão dos professores publicos” com aquele que versaacerca “Da inspeção das escolas e exame dos alummnos” (Títulos IV e V da Lei nº 310 de 16de março de 1846). Do cruzamento entre os dois, o destaque para o tema da freqüência escolarà escola pública, questão para a qual é dedicado o seguinte tratamento – a escola que não fossefreqüentada pelo número mínimo de doze alunos poderia ser acometida de duas medidas. Umadelas seria o fechamento da escola quando comprovado que naquela localidade onde era situadanão havia número maior de escolares. A outra medida é aquela que imputaria ao professor aresponsabilidade pela baixa freqüência da mesma escola e, por esta razão, a sua demissão. “Osprofessores serão demittidos pelo governo: Quando por sua culpa as escolas forem freqüentadaspor menos de doze alumnos effectivos”. (Art. 21, § 6º, Lei nº 310 de 16 de março de 1846).

O exame sobre as condições da escola que detinha uma freqüência inferior aos dozealunos seria de responsabilidade da Comissão Inspetora, a quem caberia verificar o número dealunos que efetivamente freqüentasse a escola para então informar ao Governo provincial, que

9Ao transcrever os manuscritos (processos, textos normativos, relatórios) e trechos da documentação impressa(periódicos, textos normativos), houve o cuidado de manter a grafia, as abreviaturas e a pontuação originais.

1 0Publicação da lei – Do latim publicare, mostrar ao público, exibir, editar. Meio oficial estabelecido para possibilitar oconhecimento da lei por todos. Publicada, a obediência a seus ditames torna-se obrigatória para a comunidade, poisninguém pode se escusar de cumprir a lei alegando seu desconhecimento. ACQUAVIVA, 2000, p. 1098.

1 1Era Presidente da Província paulista o Marechal de campo Manuel da Fonseca Lima e Silva, depois Barão de Suruí emarechal do Exército. Tendo permanecido no cargo no período entre 1º de junho de 1844 até 4 de novembro de 1847.Cf. MARQUES, M. E. de A. Província de São Paulo. Belo Horizonte: Editora Itatiaia / São Paulo: Editora daUniversidade de São Paulo: 1980, vol. II, p. 191. No mesmo período foram eleitos os “deputados – pela Província deSão Paulo às Assembléias Gerais e Constituintes” nos anos de 1845-1847: Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar,Francisco Antonio de Sousa Queiroz, Conselheiro Dr. Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, FranciscoÁlvares Machado de Vasconcelos (médico), Dr. Antonio Manuel de Campos Melo (depois conselheiro), Dr. GabrielJosé Rodrigues dos Santos, Brigadeiro Bernardo José Pinto Gavião Peixoto, Brigadeiro José Joaquim Machado deOliveira, Dr. José Antonio Pimenta Bueno. Suplentes: Dr. José Cristiano Garção Stokler, Dr. José da Silva Carrão,Felício Pinto Coelho de Mendonça e Castro. Cf. MARQUES,1980, p. 216, vol. I.

1 2Sobre a instituição do serviço de inspeção e administração escolar no México, período colonial, ver Lucía GarciaLópez, no trabalho intitulado “La inspección escolar em México, 1810 – 1834: el caso del Estado de México. In:Revista Brasileira de História da Educação. SBHE. Campinas: Editora Autores Associados. nº 3, 2002. p.47-66.

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procederia ao devido encaminhamento instruindo-se pela comprovação da baixa freqüência e aconstatação da responsabilidade do professor sobre o fato. Em caso de regularidade, isto é, oprofessor que tivesse na sua aula um número igual ou superior ao mínimo estabelecido (doze)receberia da Comissão Inspetora um atestado – documento por meio do qual faria a reivindicaçãodo seu ordenado.

Um confronto entre o Título II – Da habilitação e provimento dos professores e oTítulo V– Da Inspeção das escolas e exame dos alunos também permite aferir que o

perfil do serviço de inspeção se dá numa relação muito direta com as atribuições do professor.O cidadão de nacionalidade brasileira com mais de dezoito anos de idade e bom procedimentomoral devidamente comprovado deveria ter conhecimento sobre as matérias de ensino constantesda Lei para a instrução das escolas de Primeiras Letras.13

O candidato ao cargo de professor deveria ter conhecimento das matérias relacionadaspara o ensino dos meninos:

Art. 1º – (...) leitura, escripta, theoria e pratica da arithmetica até proporções inclusivè, asnoções mais geraes de geometria pratica, grammatica da língua nacional, e princípios damoral christã, e da doutrina da religião do Estado.

14 (Lei nº 316 de 16 de março de 1846).

A candidata ao provimento do cargo de professora deveria ter conhecimento das matériasprevistas para as escolas de meninas que eram as “mesmas matérias do artigo antecedente, comexclusão da geometria; e limitada a arithmetica á theoria e pratica das quatro operações; etambem das prendas que servem á economia domestica.”

A verificação sobre tal quesito para o ingresso na carreira supunha a submissão a exameem concurso público que ocorria nos meses de janeiro e junho de cada ano, sendo que as vagaseram divulgadas pela imprensa e os editais afixados nos “lugares das escolas” a cada dois mesesantes do concurso. O exame era realizado diante de uma comissão formada por três membrose indicada pelo Governo provincial. A comissão deveria repassar os nomes dos aprovados nosconcursos para o Governo provincial, a quem competia nomear ou não, conforme julgasse“util”.

Aquele candidato que fosse aprovado pela comissão e nomeado pelo Governo provincialassumiria a escola e a sua atuação seria objeto da fiscalização da Comissão Inspetora, que fariauma visita mensal para verificar aspectos como a salubridade do local de funcionamento da aulae se ali eram ensinadas com regularidade “as matérias previstas em lei”. Enfim, a Comissão tinha

1 3 Sobre o processo de formação, seleção e contratação de professores públicos na província mineira, ver Maria CristinaGouveia. A autora busca compreender a institucionalização da educação escolar ao longo do século XIX. Para isto, sevale do exame de provas, atestados de batismo, casamento e bons antecedentes. In: Revista Brasileira da História daEducação. SBHE. Campinas: Editora Autores Associados. 1º número, 2001. p.39-58.

1 4O Catecismo de Fleury era empregado no ensino da Doutrina Cristã, tendo sido impresso por ordem da AssembléiaProvíncia paulista e distribuído nas escolas de Primeiras Letras a partir de 1844.

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de verificar se o professor cumpria tudo quanto estava determinado nos regulamentos e instruções.(Art. 26, § 3º, Lei nº 316 de 16 de março de 1846).

Quando a Comissão Inspetora constatasse que os professores não estavam cumprindodevidamente com as suas obrigações, teria de “fazer aos professores advertências sobre omissõesleves no cumprimento de seus deveres” (§6º, Art. 26). Se acaso as faltas cometidas tivessemcoloração mais grave, a Comissão Inspetora deveria relacioná-las, informando-as ao GovernoProvincial que, devidamente instruído da gravidade das faltas cometidas pelo professor, poderiaaté acionar o poder legislativo da província.

Quando depois de advertidos ou multados por três vezes se mostrem incorrigíveis, ouquando desobedeçam formalmente ás ordens do governo, dependendo n’este ultimo casode approvação da Assembléa Provincial. (Art. 21, § 3º, Lei nº 316 de 16 de março de1846).

Para além das práticas escolares autorizadas de professores na relação com a freqüênciaou as matérias de ensino previstas em lei, havia um perfil de moralidade que desautorizava doofício do magistério todo e qualquer cidadão que, embora preenchesse aos requisitos deconhecimento, idade, disposição para cumprir as instruções previstas nos regulamentos – tivessemsofrido condenação por furto, roubo, juramento falso, ou falsidade. O ofício do professor eravigiado pela família e por autoridades públicas legitimamente constituídas, olhos atentos às falhascom prejuízo de uma certa ordem normalizadora dos bons costumes15 . “Quando razões fundadasde moralidade assim o exijam á requerimento de qualquer auctoridade, ou chefes de família,ouvidos o professor inculpado, e a comissão inspectora. Art.21, § 2º, Lei nº 316 de 16 de marçode 1846).

A Comissão Inspetora é, assim, uma instância privilegiada do controle de uma práticaautorizada do ofício do professor, cabendo-lhe acompanhar desde as condições de provimento,passando pelas condições de manutenção no cargo até os casos de demissão. Logo, qualqueratitude de negligência ou de omissão, seria rigorosamente corrigida pelo Governo, seja por meiode multas individuais nas quais os valores podiam variar de 10.000rs a 30.000 rs ou a suadissolução com a exclusão parcial ou total de seus membros.

Deve-se notar como o mesmo documento normativo está formalizando os cuidados deinspeção pública com as escolas de ensino particular, este um é procedimento que pode propiciarum contraste importante na compreensão da escola pública ou das concepções que guiam ainstituição da instrução pública. Segundo a lei nº 34 de 16 de março de 1846, haveria o serviçopúblico de inspeção sobre as escolas de ensino particular. A inspeção sobre tais estabelecimentos

1 5 Bons costumes – Conjunto de preceitos morais acatados pela sociedade em cada momento histórico. A expressão éempregada, via de regra, para denominar a moralidade sexual. Todavia, em sentido genérico, refere-se mais propriamente,à honestidade, ao recato, à dignidade e decoro social. As legislações de todas as épocas tutelaram, em maior ou menorgrau, os bons costumes, protegendo os valores morais da sociedade. ACQUAVIVA, 2000, p. 249-250.

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se daria desde a abertura da escola, passando pela atestação da moralidade do professor até otítulo V, fragmento legal que dá conta de toda a diligência do serviço de inspeção desde asvisitas, aos relatórios de freqüência, exame de alunos, etc.

Art. 5º As commissões inpectoras, havendo-as, e na falta d’ellas as cammaras municipaes,permittirão a abertura de escolas primarias particulares, em que se ensinem as matériasdos artigos primeiro, segundo, e quarto, ou mais apresentando o impetrante documentolegal, com que comprove ter bons costumes. Este documento será havido no logar emque o impetrante tenha residio pelo menos três annos antes, e conterá essa declaração(...).(Lei nº 316 de 16 de março de 1846).

O artigo seguinte informa sobre os casos que constituem impedimento na obtenção dalicença para a abertura da escola a partir da menção dos parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo 21, istoé, há aparentemente um tratamento indistinto no que diz respeito ao controle e à fiscalização daspráticas autorizadas e desautorizadas tanto do professor de uma como da outra escola. Nãofosse o tom de restrição e pouco esclarecimento do art. 9: “As escolas particulares ficam sugeitasá inspecção na conformidade do titulo quinto no que lhes for applicavel.”

A transição entre o final da década de 40 e o início da década de 50 do século XIXconstitui um período especialmente interessante para assuntar os processos instituintes da escolade Primeiras Letras da Província paulista. Enquanto a Lei de nº 310 (16 de março de 1846)propunha a substituição do trabalho de inspeção escolar realizado pelas Câmaras Municipaispelas Comissões Inspetoras, ocorreu de, naquele mesmo ano, isto é, a 25 de setembro de1846, ser apresentado o Regulamento Para a Commissão Inspectora das Escholas de 1ªsLettras de conformidade com a mesma lei.

Também neste documento, a discriminação do serviço do inspetor está na contra-face dadiscriminação do serviço do professor. Este regulamento reitera as funções oficiosas de professore Comissão Inspetora já discorridas na Lei de nº 310, pretendendo regulamentar a proposiçãonormativa de Lei maior, com uma característica evidente – circunscrever-se às práticas dainternalidade da escola: exame de alunos (duração, data, matérias de ensino), freqüência, visitasde inspeção (método de ensino, adiantamento dos alunos), castigos morais e físicos autorizados(palmatória), horário das aulas (cinco horas diárias sendo de 8:00h às 10:30h da manhã e de2:00h às 16:30h da tarde), procedimentos autorizados frente a alunos indisciplinados.

O processo de avaliação autorizado acontecia anualmente, mais precisamente a cada oitodias antes das férias de dezembro, quando o professor cientificava à Comissão Inspetora dosalunos habilitados para o evento. Passados cinco ou seis dias, antes do começo das férias, osalunos seriam examinados pela própria Comissão Inspetora ou por pessoas devidamente indicadaspor ela.

A regulamentação do serviço da Comissão Inspetora incide sobre o detalhamento docontrole da freqüência escolar das escolas públicas. A cada dia 22 de cada mês, os professorestinham de remeter à Comissão Inspetora, um mapa circunstanciado de sua aula: lista de alunos

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matriculados com declaração de filiação, idade, freqüência, número de faltas e estado deadiantamento. De posse deste documento, o inspetor visitaria a escola, faria a chamada dosalunos e conferiria o real estado da aula.

O ano é 1851, o dia é 8 de novembro. Um novo Regulamento de Instrução Pública sepropõe a instruir o modo de fazer escola.16 “Ficão extinctas as commissões inspectoras dasaulas e escollas. Art. 41)”. As Câmaras Municipais foram substituídas na Lei de março de 1846pelas Comissões Inspetoras, cujas práticas teriam sido normalizadas pelo Regulamento desetembro do mesmo ano e extintas pelo Regulamento de 185117.

O Regulamento de novembro de 1851 começou a ser gerado bem antes. Em maio de1850, por ocasião da 35ª sessão ordinária da Assembléia Provincial Paulista, uma comissãocomposta pelos deputados drs. José Inácio da Silveira Mota, Joaquim Octávio Nébias e Diogode Mendonça Pinto (os três formados pela Academia de Direito, um doutor e dois bacharéis),apresentou uma proposta de reforma sobre a regulamentação da Instrução Pública.

Na arquitetura compreendida pelo projeto de reforma da regulamentação da InstruçãoPública, a inspeção pública era centralizada na pessoa do “Director Geral da Instrucção Publica”a quem competia: “Inspeccionar e dirigir todos os estabelecimentos publicos, ou particulares, deensino”. A indistinção sobre a ingerência nas escolas particulares ou públicas prossegue nasinúmeras atribuições do “Director”: instruir e advertir a “todos os professores e membros daAdministração do ensino”. O projeto apresentado pela comissão propunha um “Director” comoagente mediador entre o serviço da inspeção das escolas e a autoridade maior da província.

Em cada Município haverá uma Commissão inspectora, composta do Inspector dasescolas, de um delegado da Camara Municipal, e do Parocho da Cidade ou Villa. Cumpre-lhe inspeccionar todos os estabelecimentos públicos, ou particulares de ensino, noMunicípio. (Art. 3º, Projeto de reforma da Instrução Pública, Annaes da AssembléaProvincial de São Paulo 1850-1851, p. 206).

O projeto da Comissão propunha uma prática inusitada do serviço da inspeção, queprevia a convocação de professores nas férias de dezembro para assistirem a sessõesextraordinárias da Comissão Inspetora em cada município.

1 6 Em conformidade com o art. 4º da Lei Provincial nº 24 de 2 de julho de 1850, artº 4º da Lei nº 10 de 7 de maio de1851 e art. 44 da Lei nº 34 de 16 de março de 1846. E00877 Regimentos sem localidade (1844-1854) AESP.

1 7À época da publicação do Regulamento da Instrução Pública de 1851, era presidente da Província paulista o Dr. JoséTomás Nabuco de Araújo, depois senador. Ocupou o cargo entre 27 de agosto de 1851 e 18 de maio de 1852. Era vice-presidente o Dr. Hipólito José Soares de Sousa, pelo período de 19 de maio até 12 de setembro de 1852. Cf.MARQUES, Província de São Paulo. Belo Horizonte: Editora Itatiaia / São Paulo: Editora da Universidade de SãoPaulo: 1980, vol. II, p. 192. Eram deputados da 8ª legislatura (1850-1852) “pela Província de São Paulo às AssembléiasGerais e Constituintes”: Dr. Joaquim José Pacheco, Conselheiro Carlos Carneiro de Campos, Monsenhor João JoséVieira Ramalho (depois senador), Dr, José Inácio da Silveira Mota (senador e conselheiro), Dr. Joaquim OtávioNébias, Dr. Joaquim Frimino Pereira Jorge, Comendador José Manuel da Silva (barão do Tietê), Dr. José MatiasFerreira de Abreu Júnior, Dr. Francisco de Assis Peixoto Gomide. Cf. MARQUES,1980, p. 216.

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Mandar ler nas sessões da Commissão inspectora os relatórios dos Sub-inspectores, edas Commissões ou Commissarios especiaes, e submete-los á discussão, mandandoescrever nas actas, as observações, que se fizerem, remetter-se esses relatórios e copiasdessas actas ao Director Geral, e assim mais relatórios trimensaes sobre todos osestabelecimentos de ensino do Município, declarando as providencias que convier. Estasactas e suas copias serão escriptas pelo Delegado da Câmara Municipal.(Projeto de reformada Instrução Pública, Annaes da Assemblea Provincial de São Paulo 1850-1851, p. 207).

A aparente indistinção sobre o tratamento da inspeção escolar sobre os estabelecimentospúblicos ou privados ganha ar duvidoso quando se depara com uma linguagem normativa queatribui à inspeção de “professores do município” mas desfaz na investida direta sobre o professorque constitui o alvo da inspeção pelo poder público, como esclarece a atribuição dada ao sub-inspetor: “Informar sobre a freqüência e procedimento dos professores públicos, para que oInspector lhes dê o attestado (§ 4º, art. 4º)”. Não esclarece os limites da inspeção pública sobrea escola de ensino particular, ao mesmo tempo em que não deixa dúvida sobre a ingerência dasescolas públicas na sujeição do atestado à declaração de freqüência escolar e conduta do professorresponsável pela escola pública.

No entanto, a cada medida normativa que substituía ou instituía novidade para depoisextingui-la, havia um incremento a mais na arquitetura que seguia definindo o dispositivo dainspeção escolar. É o que revela o Regulamento da Instrucção Publica de 8 de novembro de1851, assinado pelo então responsável pelo Palácio do Governo provincial de São Paulo, sr.José Thomas Nabuco de Araújo e previamente discutido pelos deputados da AssembléiaProvincial.

Entre a proposta da Comissão de Instrução e o Regulamento aprovado há diferençascomo havia diferenças de matizes liberais ou entre liberais e conservadores. O que predomina nareforma é o incremento dado ao dispositivo da inspeção escolar que pode ser visto na estruturadisposta na diagramação de sua escrita, facultando maior visibilidade na comparação com osinstrumentos normativos anteriores.

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Quadro 1O serviço de Inspeção Escolar na diagramação da legislação

da Instrução Pública da Província paulista (1827-1851).

O Regulamento da Instrução Pública de novembro de 1851 é diferente do Regulamentopara a Comissão Inspectora das Escolas de 1ªs Lettras não apenas porque um substitui o outro

19.

A abrangência de seu título não reduz o ensejo dado ao serviço de inspeção. O que se nota éque a diagramação do Regulamento (1851) que pretende normalizar a Instrução Pública é feitano entorno da definição e ampliação das competências do serviço da inspeção escolar.

1 8Dos nove artigos, quatro dizem respeito à escola particular de instrução primária, sendo que, tais artigos aparecem naseqüência de normas sobre as matérias de ensino e a freqüência escolar. Há uma sugestão dada pela disposição dalegislação de que num estabelecimento particular ou público há um só princípio de organização da escola ou daquiloque seria ensinado na escola.

1 9Cyntia Greive Veiga desenvolve estudo sobre a organização do serviço de "inspeção pedagógica" em Minas gerais, naperspectiva de que a implantação do referido serviço corresponde à "instalação de um discurso". Ver mais emEstratégias discursivas para a educação em Minas Gerais no século XIX in: VIDAL & SOUZA (orgs), 1999, p. 137-158.

Fontes: Lei n. 310 de 16 de março de 1846 ou Lei n. 34 de 1846. Coleção Leis Provinciaes de São Paulo (1844-1849) FFCHL– USP.Regulamento de 25 de setembro de 1846 – Para a Commissão Inspectora das escholas de 1ªs lettras – Coleção Leis Provinciaesde São Paulo (1844-1849) FFCHL – USP.Regulamento da Instrucção Publica, conforme a Lei Provincial nº 24 de 02 de julho de 1850, art. 4º, Lei Provincial nº 10 de7 de maio de 1851, art. 4º e lei nº 34 de 16 de março de 1846, art. 44º. E00877 (1844-1854) Regimentos sem localidade AESP.

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Os ensaios da feitura daquele que é à época o suposto mais elaborado mecanismo deinspeção escolar são facilmente verificáveis na legislação produzida entre as décadas de 20 e 50do século XIX (tabelas 1 e 2). Mas é o Regulamento de 1851 que melhor traduz a reorganizaçãoda instrução com emprego privilegiado da ampliação das competências e dos agentes responsáveispela inspeção escolar.

O documento é organizado em cinco capítulos mais Disposições Gerais, sendo que ainspeção aparece representada nas instâncias do Inspetor Geral e dos Inspetores de Distrito –com atribuições definidas nos capítulos 1 e 3. E quando se trata dos capítulos 4 e 5 (DosProfessores e Do Ensino Particular) o que se nota é que tais agentes e instituições têm as suascompetências definidas por aquilo a que são passíveis de fiscalização. Nos capítulos 1 e 3 osincisos são iniciados por verbos que prescrevem a ação da inspeção (Inspetor Geral, do distrito):instruir, prestar, assistir, manter, assistir, repreender, conceder, multar, visitar, dar, organizar,apresentar, inspecionar, passar, empossar, inventariar, abrir, numerar, rubricar, encerrar, guardar,engajar, transmitir, enviar, autorizar. E note-se não prevaleceu como sugeria a Comissão daInstrução Pública em março de 1851, a denominação de “Director”, era o “Inspector” oresponsável pela administração do ensino.

Discutir, consultar e propor – ações que viriam da parte do Conselho de Instrução, instânciaintegrada por cinco membros que se reuniriam ao menos um dia (sábado) por semana em sessõesonde deliberariam acerca de “todos os assuntos relativos á instrucção publica”:

Discutir e propor o plano normal do ensino, sua forma e distribuição, methodo das lições,divisão de classes, forma da matricula, exames, prêmios e attestações honrosas, disciplinae policia interna das escolas, e em geral todas as reformas e melhoramentos de quecarece a intrucção publica nesta Província.

Fonte: Lei Provincial n. 34 de 1846. Leis Provinciaes de São Paulo (1844-1849). FFCHL – USP, Regulamento Para aCommissão Inspectora das Escolas de Primeiras Letras. E008877 (1845 – 1865) AESP e Regulamento da Instrucção PublicaE00 877 (1844 – 1854) Regulamentos sem localidade – AESP.

Quadro IIAs competências da Inspeção Escolar no Regulamento de 1851.

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Propor também: 1º os livros e compêndios que devem servir para o uso das escolas;20

2ºa prohibição dos livros e compêndios usados nos collegios e nas aulas particulares queforem noscivos á instrucção publica; 3º um plano para a reorganisação definitiva daescola normal, lycêos e seminários da província: 4º o regiemnto interno do conselho.(§2º e §3º do art. 10).

Os dois capítulos subseqüentes (4 e 5) não versam diretamente sobre as competênciasda inspeção escolar mas detêm elementos que evidenciam a ação da inspeção. Diferentementedos capítulos anteriores que se propõem a discorrer sobre as próprias competências, O Capitulo4º Dos Professores é introduzido por uma construção de frase que define a condição subordinadado professor ao serviço de inspeção: “Art. 14 – Os professores são sujeitos às seguintes penascorrecionais:”

21 A seqüência da redação é enfileirada por substantivos como: § 1º Admoestação

(...), § 2º Repreensão (...), § 3º Multa (...). O emprego de verbos aparece condicionado a umaadvertência traduzida em seqüências de frases que se primam unicamente pela falta do professor.Para exemplificar, veja-se o caso do “Art.15 – Quando o professor (...): deslizar, for negligente,deixar de dar a lição, faltar ao respeito com seus superiores, usar de livros não autorizados,comparecer na aula vestido com indecência, der mau exemplo, ensinar maus princípios, aplicar-se em profissão diferente do magistério, infringir leis; – “será admoestado pelo inspector dodistricto, ou reprheendido, ou punido, ou punido pelo inspector geral ou pelo Prezidente conformea gravidade do caso e reincidencia.”

2 0Sobre os livros cujo uso era autorizado nas escolas do início da década de 50 do século XIX, eram relacionados parao ensino de gramática os compêndios dos seguintes autores: Padre Inácio Felisardo Fortes, Antonio José dos ReisLobato, Padre Antonio Pereira de Figueiredo, Antonio Álvares P. Coruja, João Alexandre da Silva Paz, Emílio AchilesMonte Verde, Carlos Augusto de Figueiredo Vieira e Casemiro Ferreira César. No ensino da religião cristã, oscatecismos de Fleury, Montpellier, do Padre Marcos Jorge, acrescentado pelo Padre Inácio Martins, do abade deSalamonde, e a cartilha de Antônio José de Mesquita Pimentel. Para o ensino de caligrafia, usavam as obras de JoaquiJosé Ventura da Silva, Carstairs e Butherworth, Antonio Jacinto de Araújo, Fortunato Rafael Hermano Wenzeller,José Inácio da Costa Miranda e a coleção Cirilo Dilermando da Silveira. Relatório de Instrução Pública, Dr. Diogo deMendonça Pinto, 1852. Apud: HILSDORF, 1977, p. 14.Sobre alguns dos livros ou suportes de ensino que eram oferecidos no comércio de livros em São Paulo, entre algunsanos das décadas de 50 e 60 do século XIX (sob a vigência do Regulamento de 1851) poderiam ser adquiridos: em1858, a “Livraria do Largo do Collegio”, anunciava a chegada do “Secretario portuguez, ou methodo de escrever cartaspor Francisco Jose Freire 1$600”. (Correio Paulistano, 21/01/1858, p. 4). “Tabellas de arithmetica para uso daseschollas de instrucção primaria, 1 vol.” (Correio Paulistano, 01/01/1862, página suplementar). “ALPHABETO paraos meninos, com lindas gravuras coloridas; uma longa fita de papel, com [...] cartão. Preço 2$” (Correio Paulistano, 01/01/1862, página suplementar). “Compendio da Historia do Brasil, por Abreu Lima, 1 vol. 2$500 réis. Epítome daHistória do Brazil desde o seu descobrimento até 1857 por Xavier Pinheiro, adoptado para uso das aulas públicas doensino primário 1 vol. 2$500. À venda nesta typografia. (A L. Garraux etc. Cie.)” (Correio Paulistano, 28/06/1863, p.3). “Livraria de Garraux de Lailhacar e Cia. Grammatica da Infância dedicada aos srs. professores da instrucçãoprimaria pelo cônego dr. J. C. Fernandes Pinheiro 1 vol. encadernado 1$000.” (Correio Paulistano, 30/11/1864, p. 4);“CATHECISMO BRASILEIRO Para uso das escholas de primeiras letras de ambos os sexos, approvado e adoptadopela instrucção publica a Província de São Paulo no Rio Grande do Sul [...] À venda no escritório CorreioPaulistano”(Correio Paulistano, 29/11/1867, 3).

2 1Pena – Privação ou castigo previsto por uma lei positiva para quem se torne culpado de uma infração. O conceito depena sofre variações segundo diferentes justificações e tais justificações segundo os objetivos que se tenham emmente: 1º ordem de justiça, 2º salvação do réu, 3º defesa dos cidadãos. Esta última está relacionada à idéia de pena como“um móvel ou estímulo para os cidadãos” por isto teria a função de defender a sociedade. Seria o conceito adotado pelafilosofia jurídica do Iluminismo. Sua tarefa principal é “dissuadir os homens do pecado com rigor” (Samuel Pufendorf)sem excluir a correção do réu. ABBAGNANO (1998, p. 750-751).

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O Capítulo 5º Do Ensino Particular se caracteriza pelo grau de severidade dado aoserviço da inspeção, tom que atravessa a redação e subordina a atuação do Ensino Particular àinspeção realizada pelo serviço público. São quinze artigos que integram o capítulo referidosendo que destes foram destacados fragmentos que atestam o caráter de controle da inspeçãosobre a escola de ensino particular: “sem licença do inspector geral”, “somente sujeitos àinspecção”, “são sugeitos à inspeção e fiscalização”, “que não franquearem os seos collegios,aulas ou escolas aos inspectores de districto (...) não remetterem ao inspector do districto”,“sem declaração previa e licença do inspector geral”.

Na empreitada de regulamentar e organizar as práticas da instrução, o Regulamento daInstrução Pública de novembro de 1851 privilegiava o dispositivo da inspeção, como se oesmero na definição e ampliação das esferas de controle e de fiscalização fosse estratégiasuficientemente capaz de inibir as práticas não autorizadas da parte dos agentes responsáveispela efetivação do ensino. É assim que se constrói todo um aparato estrutural de inspeçãocomposto pelos cargos de Inspetor Geral Instrução Pública, pelas Inspetorias de Distrito e peloConselho de Instrução Pública.

A remissão ao capítulo 5 pareceria dispensável se não se considerasse a faculdade docontraste como procedimento que propicia por meio da comparação a possibilidade de enxergarpelo lado supostamente oposto. A incorporação de referências que intentavam pela normatizaçãoda escola de instrução primária particular revela detalhamentos que contribuem para definir odispositivo da inspeção pública.

O detalhamento dos mecanismos de intervenção pública da inspeção sobre osestabelecimentos particulares de instrução primária é visto na constatação de que é o capítulomais longo, comportando quinze artigos que incidiam sobre critérios de abertura de escolas e“provas

22 necessarias de capacidade profissional, comportamento civil e moral”. Ambas as

escolas masculinas e femininas seriam fiscalizadas sobre o ensino ministrado, as condições dehigiene e freqüência escolar.

Art. 21: Os directores ou professores que não franquearem os seos collegios, aulas ouescolas aos inspectores de districto, que lhe recusarem as informações e esclarecimentosque elles exigirem, que em cada trimestre não remetterem ao inspector do districto omappa do numero dos alumnos e gráo de aproveitamento incorrem na multa de vinte atrinta mil reis, dobrada nas reincidências.

Havia prescrição sobre o ensino de “religião do Estado” nos casos em que a escolativesse em relação à capela ou matriz, uma distância inferior a ¼ de légua, constituindo obrigaçãodo professor a condução dos alunos à missa nos domingos e dias santos. A escola particular

2 2 Prova – Do latim probare, convencer, tornar crível, estabelecer uma verdade, comprovar. Em sentido amplo, todomeio suscetível de demonstrar a verdade de um argumento. ACQUAVIVA, 2000, p. 1093-1094.

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poderia ser multada e às vezes fechada por razões como o uso de livros proibidos pelo Conselhode Instrução Pública, pelo ensino e fomento de imoralidade, mudança de endereço sem declaraçãoprévia, transferência da licença de abertura da escola, admissão de meninos em casas ondefuncionassem escolas de meninas ou local onde morassem “pessoas do mesmo sexo maiores dedez annos excepto o marido da professora” (art. 23).

Entre as tantas advertências havia ainda o § 2º do artigo 22 que alertava aos diretores ouprofessores (proprietários) de estabelecimentos particulares o risco de multa no caso de “mudaremsem declaração previa e licença do inspector geral o caracter do estabelecimento alterando o programa,ou faltando aos empenhos tomados com as familias nos projectos, e annuncios”. Este inciso dá contade uma aliança estabelecida entre pais e escola e que tem o seu reconhecimento e aprovação em doispólos, um deles é a autoridade máxima da inspeção do serviço público de instrução e o outro ésugerido pela menção do “annuncio” de publicidade do programa ofertado pela escola. Há a sugestãode que obtida a licença para a abertura do estabelecimento de instrução primária particular há adivulgação do mesmo por meio de anúncios de publicidade, a partir dos quais os pais de alunospoderiam conhecer o “programma” da escola e decidir sobre a matrícula do filho, tratava-se de umcontrato que era, segundo o regulamento, vigiado pelo serviço da inspeção.

A confirmação de práticas não autorizadas nestes estabelecimentos poderia motivar acobrança de multas “como sentença passada em julgamento” e a cobrança teria lugar “por meiode processo executivo” o que não impediria a “imposição das penas criminaes”.

Entende-se que a verificação da prescrição legal sobre a prática da inspeção sobre aescola pública ou particular é um meio de tentar definir a ação de vigilância sobre os processose sobre os agentes fazedores de escola na segunda metade do século XIX – um dos objetosprincipais da pesquisa. É este procedimento que permite apurar pequenas diferenças que revelammais que parecem supor. É o caso do item higiene. Um aspecto motivador da inspeção na escolaparticular e que não é referido na parte da legislação que trata da escola pública. O que nãocorresponde a pensar que este fosse um item dispensado da escola pública mas certamente eraum elemento indispensável na produção de um serviço oferecido a um público pagante quepoderia escolher a escola lendo o “annuncio” no jornal.

O professor numa escola pública ou particular da segunda metade do século XIX é oprincipal responsável pelas práticas dadas no estabelecimento. É o professor um profissionalque antecede ao profissional produzido para fazer a inspeção sobre a sua prática, e a relaçãoque se dará entre um e outro é uma das perspectivas de compreensão possível da escola daqueleperíodo. – Perspectiva privilegiada desta pesquisa.

Abaixo está uma possível visualização gráfica da nova organização da instrução públicaconstruída a partir do Regulamento de novembro de 1851:

De acordo com a orientação normativa, o cargo de Inspetor Geral de Instrução deveriaser ocupado por algum “Lente” do Curso de Direito ou do Colégio de Artes. O primeiro InspetorGeral da Instrução pública da Província paulista, em caráter de interinidade foi Ildefonso Xavier

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Ferreira, 21º Doutor em Direito pela Faculdade de São Paulo, ano de 1838. Mas o mesmocargo só foi efetivamente ocupado no ano de 1852, a partir da nomeação de Diogo MendonçaPinto, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1839 (VAMPRÉ, 1924,p. 739).

Era o inspetor geral o responsável pela articulação entre todos os demais segmentos desteramo da instrução. Tanto tinha de informar ao Presidente da Província e ao Conselho de Instruçãosobre as informações por estas instâncias solicitadas como tinha de instruir aos inspetores dedistritos e professores acerca de seus deveres

23. Tanto nomeava como multava e até demitia os

inspetores de distritos que tivessem conduta omissa. E os próprios distritos eram frutos de umadivisão apresentada e proposta por ele mesmo. A ele competia a cartografia anual do estado dainstrução pública:

Aprezentar ao Presidente da Província todos os annos ate o fim de dezembro um relatóriosobre o estado da instrucção publica, indicando as reformas e melhoramentos que julgarconvenientes, ajuntando: 1º um mappa do numero das escollas primarias e secundariaspublicas ou particulares de ambos os sexos, com declaração do numero de alumnos queas frequentão; 2º um mappa dos professores públicos com observação sobre suacapacidade; procedimento civil e moral; 3º um mappa de moveis e utensis de cada escollapublica com observação sobre seo estado; 4º orçamento das despesas para o pessoal ematerial deste ramo do serviço publico no anno seguinte. (Art. 4º, § 17º)”.

2 3Dever – A primeira noção de dever, de origem estóica corresponde a qualquer ação ou comportamento, do homem oudas plantas e animais, que se conforma à ordem racional do todo. A ética medieval retoma a ética aristotélica, tambémignora a idéia de dever e concentra-se nas idéias das virtudes, dos hábitos racionais adequados à consecução dafelicidade e bem aventurança ultraterrena. O conceito de dever volta a predominar na ética kantiana, que é uma éticada normatividade. Ela modifica o conceito estóico de dever como conformidade à ordem racional do todo, transformando-o em conformidade com lei da razão. Para Kant, dever é a ação cumprida unicamente em vista da lei e por respeito àlei: por isso, é a única ação racional autêntica, determinada exclusivamente pela forma universal da razão. Na éticacontemporânea, a doutrina do dever continua ligada à ordem racional necessária, ou norma (ou conjunto de normas)apta a dirigir o comportamento humano. ABBAGNAMO, 1998, p. 265 a 267.

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Participava de todo o processo de admissão de professores (públicos), concessão delicença (quinze dias para casos urgentes) e propunha multas (até 30$000rs.), suspensões decaráter corretivo e preventivo, remoção e demissão de professores. O Inspetor Geral da InstruçãoPública era “o centro e intermediario de toda a correspondencia” com o Governo provincial,quaisquer ofícios e requerimentos tinham de ser transmitidos ao Presidente com “informação”do Inspetor.

A eficiência do trabalho do Inspetor Geral dependeria da guarida dada pelo trabalho doinspetor do distrito. Era o inspetor do distrito o agente mais próximo da inspeção e controlesobre o trabalho do professor, o inspetor do distrito era o braço fiscal do Inspetor Geral. Seuexercício oficiava poder que se expressava também sobre o controle da escrituração das escolasexistentes no distrito para onde tivesse sido nomeado.

Abrir, numerar, rubricar, encerrar e guardar os livros dos inventários e matriculas dosalumnos (Art. 12, § 5º).Transmittir com informação ao inspector geral os requerimentos e officios com informaçãoao inspector geral, os requerimentos e officios que os professores dirigirem ao inspectorgeral ou ao presidente da provincia. (Art. 11, § 9º).

E era por meio da escrita de relatórios que o inspetor do distrito devia se correspondercom a instância superior, cabendo-lhe:

Enviar ao inspector geral no fim de cada trimestre um relatório sobre o estado das aulase escolas do seo districto, capacidade, comportamento civil, e moral dos professores,reformas e melhoramentos de que carecer a instrucção publica, acompanhando de ummappa contendo o numero das aulas e escolas, e dos alumnos que as frequentão comobservação sobre seo aproveitamento (Art. 12, § 11).

Funções anteriormente acumuladas pelas Câmaras Municipais ou pelas ComissõesInspetoras eram agora concentradas nas mãos do inspetor do distrito, numa estratégia de

controle das práticas de instrução. Também o ordenado do professor (mensal) passava pelainspecionada da freqüência escolar ação a partir da qual faria e emissão do atestado, documentorepassado ao professor para o requerimento de seus vencimentos.

24 O controle que se verifica

pretende contemplar todas as dimensões do trabalho do professor, incluindo-se aí a condutamoral do professor, alvo da repressão do inspetor do distrito, conteúdo a ser informado aoinspetor geral. Os inspetores não poderiam tratar mal aos professores e nem os admoestar àfrente dos alunos e para o caso de cometimento de falta grave, haveria de ser feita uma“representação” ao inspetor geral.

2 4Em todos os textos normativos da instrução pública (vistos neste estudo) no período monárquico não haverá mudançasobre este preceito, sempre haverá a sujeição da freqüência escolar à emissão de atestado de alguma autoridade dainstrução a quem competiria certificar a freqüência e autorizar a liberação dos vencimentos do professor.

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O distrito: território do Inspetor Distrital e do Juizde Paz – organização jurídica e geografia da instrução

A organização do serviço de inspeção escolar contém alguns traços da organizaçãoadministrativa da província. Com a descentralização instaurada a partir do Ato Adicional de 34,a municipalidade passou a ser estruturada pelo Código Penal, a circunscrição judiciária eradividida em três círculos: o distrito (do latim districtus, território, demarcação, de stringere,limitar), o termo (do grego terma, marco, mourão; daí o latim terminus, limite, marco), a comarca(do alemão marca, limite, âmbito territorial). (ACQUAVIVA, 2000, p. 334; 536; 1276-1277).Numa ordem decrescente, havia a comarca chefiada pelo juiz de direito, podendo ter até trêsjuízes de acordo com o quantitativo populacional da localidade, sendo que um dos juízes deviaatuar como chefe de polícia. O Imperador os escolhia entre os bacharéis de direito.

As comarcas subdivididas em termos onde haveria um conselho de jurados, um juizmunicipal, um escrivão das execuções e os oficiais de justiça necessários. Os juízes municipais eos promotores públicos eram nomeados pelos presidentes das províncias e tinham um mandatocom duração de três anos.

Nos termos ficavam os distritos, entregues ao juiz de paz que era ajudado pelos inspetoresde quarteirões, havendo tantos inspetores quantos fossem os quarteirões. O juiz de paz constituíacargo eletivo, era o responsável pela sugestão à Câmara Municipal daqueles que constituíam omelhor perfil para a função de inspetores de quarteirão – decidiam os vereadores. Também àCâmara competia a marcação dos distritos que deviam ter a base mínima de setenta e cincocasas habitadas enquanto os distritos seriam divididos em quarteirões de vinte e cinco fogos

25.

Para Raymundo Faoro (1975, p. 306) “o centro do sistema estava no juiz de paz, armadocom a truculência de seus servidores, os inspetores de quarteirões”, afirmação esta reforçadacom o argumento do Visconde do Uruguay, para quem o juiz de paz estava entre as três maioresautoridades do império, só perdendo para a regência e os ministros.

A Lei provincial de 7 de julho de 1852 dividiu o território paulista em dez comarcas:Guaratinguetá, Taubaté, Jacareí, Capital, Campinas, Mogi-mirim, Franca, Sorocaba, Itapetiningae Curitiba. (MARQUES, 1980, p. 189, vol. 1).

O quadro abaixo condensa a organização do território da província paulista segundo adivisão em distritos literários de inspeção da instrução pública também chamados de círculos

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literários. A partir do mesmo não é possível verificar a equivalência entre o distrito que constituio espaço de atuação do juiz de paz ao distrito que circunscreve a ação do inspetor literário

2 5Fogos – denominação empregada para domicílios àquela época. Cf. Robert Slenes, 1997, p. 238 in: História da VidaPrivada no Brasil.São Paulo: Cia das Letras.

2 6A denominação é menos usual nos documentos referentes à Província paulista, e mais empregada no períodocorrespondente na Província de Minas Gerais. Ver: MOURÃO, 1959. A origem da palavra “círculo” é latinacircumscriptione, divisão circular. Divisão de caráter admnistrativo, destinada a delimitar o alcance territorial dasatribuições de um órgão público. Verbete circunscrição, ACQUAVIVA, 2000, p. 293.

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Fonte: “Additamento ao Regulamento de 8 de novembro de 1851.” Palácio do Governo de São Paulo, 26 de novembro de1851. Jose Thomas Nabuco de Araújo (ass.). E00877/MIP-AESP.

(inspeção da instrução). O espaço geográfico onde se situava o distrito de atuação do juiz depaz nem sempre era o mesmo distrito de atuação do inspetor da instrução embora muitas vezesestas territorialidades coincidiam e a prova disto é que, tanto o juiz de paz, como o pároco dasfreguesias, o vereador e o delegado de polícia são personagens muito freqüentes nas tentativasde apaziguar ou acentuar as quizilas entre professores e inspetores.

Em novembro de 1851 um Aditamento ao Regulamento da Instrução Pública dava contada divisão de distritos na Província paulista, totalizando setenta e um. Ver Quadro 3.

Uma portaria do Governo provincial datada de 6 de setembro de 1853, nomeava para ocargo de Inspetor do Distrito o sr. Maximiano José Soares, responsável pela Freguesia de SãoJoão da Boa Vista que correspondia ao 56º Distrito de Instrução pública.

Quadro IIIDistritos de Instrução Pública – São Paulo, 1851.

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Nota-se, neste documento como em outros, uma definição ambivalente na denominaçãoao responsável pela inspeção, o Inspetor do Distrito é o mesmo Inspetor da Freguesia. Nestecaso, distrito não perde a acepção geográfica que parece engolida pela acepção adminstrativa.É muito comum a adjetivação do substantivo, o que dá vez à referência de Inspetor distrital, osentido geográfico é absorvido pelo primeiro nome da função e transporta consigo elementos desuporte administrativo enquanto a localização geográfica abre margem para respingar sobre aquestão do padroado brasileiro. Segundo o sentido dicionarizado, a Freguesia se caracterizapor um povoado, sendo uma nomenclatura advinda do campo eclesiástico. Uma freguesiaemancipada pode se constituir em vila – população de categoria superior à de aldeia ou arraial einferior à de cidade.

De acordo com Quadro de Desmembramento Territorial-Administrativo dos MunicípiosPaulistas, – Distrito e Freguesia, Vila e Município – são dois pares de vocábulos equivalentes,ainda que, especialmente entre os dois primeiros haja algumas diferenças. O termo Freguesia foiempregado desde o início da colonização até a República e só a partir desse momento,definitivamente substituído pelo termo Distrito, como categoria imediatamente posterior a povoado.

O mesmo catálogo enseja o sentido eclesiástico do vocábulo notando que a Igreja Católicacom sua grande expressão nas sociedades ocidentais se fazia presente na administração local,em especial pela função de destaque na gestão do território que começava a ser configuradoaqui.

(...) logo que fundado um povoado, providenciam seus moradores o atendimento de umanecessidade primordial – a ereção de uma capela, sob a invocação de um santo, quepassa a ser o padroeiro daquela localidade. Toda capela necessita da assistência de umsacerdote. Quando os habitantes têm condições de manter este pároco (cura) emassistência permanente, mediante pagamento da côngrua anual, aquela recebe adenominação de capela curada, equivalente à paróquia (Quadro de DesmembramentoTerritorial dos municípios paulistas, p. 55).

O mesmo estudo prossegue na direção da função secular da paróquia na configuração daorganização administrativa do território paulista.

Além do significado espiritual, a paróquia também absorve funções seculares, integrando-se ao processo administrativo local. Segundo Murillo Marx (1991), a tributação (dízimo)exigida aos fiéis impõe à paróquia a delimitação de seu território, sendo a referidacircunscrição eclesiástica correspondente à freguesia também utilizada pela administraçãocivil. Não se sabe ao certo a abrangência territorial de uma freguesia, mas está associadaao raio de influência da paróquia, que podia alcançar até centenas de quilômetros dedistância. (Quadro de Desmembramento Territorial p.57).

Uma freguesia sempre cumpre uma relação de subordinação a uma vila, isto é, seu territóriosempre estará contido no termo de uma vila, já que não possui autonomia político-administrativa.Daí porque freguesia e distrito serem pares equiparáveis, especialmente a partir da República.

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Mas, para receber as “prerrogativas de vila, a freguesia” deveria dispor de, entre outros elementos:igreja, câmara e cadeia.

E certamente haveria de ter escola.27

A designação do responsável pela inspeção escolar compõe a estratégia descentralizantede levar o controle fiscalizador até a localidade onde se erigia uma escola, o que pode serentendido como indícios na apuração de modos de se estabelecer poder pela difusão da instrução.

A relação entre a organização administrativa e a instrução é também atravessada pelasdiscussões sobre o que ensinar e sobre os meios pecuniários de sua manutenção. Durante asessão da Assembléia Legislativa realizada no dia 5 de abril de 1856 travava-se a seguintediscussão:

Sr. Nebias: Temos aqui Atibaia e Bragança, duas povoações muito proximas, com suascadeiras de latim, e francez. Ora diga-me a assembléa se isto não é um luxo de latinidadee de francezia? Queremos nós por ventura habilitar a nossa população inteira para a altadiplomacia no futuro?Sr. Ribas: “Basta uma cadeira em cada comarca. (Jornal Correio Paulistano, 5-4-1856, p.3 Ref.: 04.01.002 – AESP).

Se os deputados tinham dúvida sobre o ensino de tais matérias, havia pai de aluno quereivindicava, indo a público, isto é, notificando pela imprensa. Um “pae de família” residente deTaubaté encaminhou ao Jornal Correio Paulistano uma nota onde reivindicava o exercício dacadeira de latim, alegando que o professor responsável estaria recebendo ordenado para ensinarmas não o fazia, obrigando aos “paes de família” o pagamento de professor particular para osfilhos. (7-8-1858, p. 4).

Em sessão realizada no dia 8 de abril de 1856, numa discussão que tem como pauta oOrçamento Provincial e que acaba descambando para a formação de professores dada peloSeminário de Educandas, o deputado sr. Carneiro de Campos refere como exemplos de sistemade financiamento da instrução, os sistemas francês, alemão e norte-americano:

Eu encontro nesses outros paizes por prescripção de lei que cada freguezia, há de ter porforça uma escolla de instrucção primaria tudo pago pelas respectivas localidades. Nessespaizes, como nos Estados Unidos, que eu colloco em primeiro lugar no gráo dedesenvolvimento da instrucção publica primaria e secundaria: na Allemanha, e na França,vê-se que a prescripção da lei é que as freguezias, também são pagas à custa dos habitantesdo lugar. Este é o systema seguido nos Estados que acabo de citar.(8-4-1856, p. 2.Correio Paulistano. Ref. 01.01.002 AESP).

2 7As notas que conferem informações sobre os dados da fundação das localidades que sediaram os episódios dosprocessos constituem fontes que confirmam a relação entre as instituições que inscreviam nos territórios paulistas asdistinções de uma organização administrativa baseada nas representações da igreja, cadeia, câmara, escola e o númerode habitantes na relação com o número de escravos e eleitores.

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Num momento seguinte de sua fala faz a seguinte proposição:

Penso talvez que fosse vantajoso decretar, que nenhuma freguezia podesse ser creadasem apresentar a possibilidade de manter por contribuições próprias uma escolla deinstrucção primaria. (...) Eu faria como disse, como condição da creação das fregueziasa prova dos meios de sustentar uma escolla de instrucção primaria senão pelo despendiodo cofre publico provincial. .(8-4-1856, p. 2. Correio Paulistano. Ref. 01.01.002 AESP).

A “evolução territorial e administrativa não é um fenômeno exclusivamente linear e crescente”podendo ocorrer “extinções, com o retorno a categorias anteriores, e transferências de distritosde um município para outro”. (Quadro de Desmembramento territorial-administrativo dosmunicípios paulistas, 1995:14).

Quando o Inspetor do Distrito vai à Freguesia

A portaria é um documento de ato administrativo28

de qualquer autoridade pública, quecontém instruções acerca da aplicação de leis ou regulamentos, recomendações de caráter geral,normas de execução de serviço, nomeações, demissões, punições ou qualquer outra determinaçãode sua competência. Foi um documento como este – uma portaria – que informava da nomeaçãodo Inspetor Distrital da Freguesia de São João da Boa Vista

29 e encaminhada ao professor

Francisco Pereira Machado que deu início a um episódio que demonstra que a implantação demudanças na organização do ensino que privilegiava o redimensionamento do serviço de inspeçãosuscitava conflitos ou revelava diferenças já existentes das mais diferentes ordens.

A portaria teria sido expedida aos 6 dias de setembro de 1853. A informação sobre aportaria teria sido repassada pelo próprio sr. Maximiano José Soares – inspetor distrital nomeado– no dia 19 do mesmo mês ao professor que, dois dias depois, emitiu a seguinte resposta.

Recebendo o offo. de V. S. de 19 do corre. qe. me communica q. pr. portaria do Exmo.Sr. Presdte. da Provca. fora nomeado Inspor. publico da instrução primaria deste Districto,de qe. fico inteligenciado, cumpre-me levar ao Conhecimto. de V.S. q. em conceqca.

2 8Ato administrativo – Ato emanado de órgão competente, no exercício legal de suas funções e em razão destas. Aexpressão “ato administrativo” surge com a Revolução Francesa, designando os atos de administração pública, que,em nome do princípio da tripartição dos poderes, não seriam objeto de apreciação pelo Judiciário. Assim, já em 24/08/1790, uma lei dispunha: “As funções judiciárias são distintas e ficarão sempre separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de prevaricação, perturbar as operações dos corpos administrativos”. Tais premissasserão confirmadas, mais tarde, pela Constituição de 03/09/1791, art. 3º, o qual vedava a participação judicial dequalquer ato administrativo. São atos administrativos as portarias, as resoluções, as circulares, as ordens de serviço,os provimentos, as instruções etc. ACQUAVIVA, 2000, p. 196.

2 9Espírito Santo da Bôa Vista – Bairro do município de Itapetininga, onde em 1876, existia uma cadeira de instruçãopública primária para o sexo masculino. Este bairro também era conhecido como Palmital, tendo sido elevado àcategoria de Freguesia por força da Lei Provincial de 8 de março de 1872. MARQUES,1980, p. 245, vol. I.

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dessa nomeação, deixo de exercer o emprego de Profor. publico desta Frega., do ql. voupedir desde já ma. exoneração ao Exmo. Sr. Presde. da Provca, a quem faço igualcommunicação, esse mmo. sentido. (Episódio 1).

30

Para o professor era “impossível continuar o ensino de baixo de semelhante inspecção”, osr. Maximiano lhe era um “figdal inimigo” e portanto não dava para “servir perante elle qualqueremprego que sobordinado esteja pr. seo genio dominante”. A única condição para que o professorFrancisco permanecesse no cargo era a exoneração do inspetor nomeado. Mesmo porquehavia naquela freguesia, dizia o professor:

(...) muitos honrados cidadaons que podem occupar o cargo de Inspor., pessoas athescientificas, bem como o sr. José Bernardo de Loyola, o capitão Jose Tavares Coimbra, oCapm. Joaquim José de Olivra.; e o Conmendor. Augusto José Ribeiro, Cidadãos prudentes,amantes da bôa ordem, e bem estar dos seos semes. (19/09/1853, Episódio 1).

O professor qualificava e dava os nomes dos supostos candidatos que, em sua opinião,deveriam ocupar o cargo de inspetor, condicionava a sua permanência no cargo à substituiçãodo inspetor.

(...) mas quando não seja do agrado de V. Exca. nomear qlqr. dos 4 Cidadaons, ououtros qes.qr. q. estejão habilitados; rogo submissame. a V. Exa. haja de exonerar-me doemprego q. ora occupo. (19,09/1853, Episódio 1).

Além da própria carta na qual apresentava sua decisão de exonerar-se do cargo, o professorFrancisco apresentou uma declaração dos juízes de paz do distrito, os srs. José Tavares Coimbrae Francisco Daniel da Costa. O documento datado de 26 de setembro de 1853, selado edevidamente reconhecido pelo tabelião Theodoro Ribeiro de Camargo – protocolocomprobatório de uma declaração de vontade

31 – atestava o bom desempenho do professor, a

boa conduta do homem:

3 0Tanto no primeiro como no segundo capítulo será empregada a denominação de “episódio” para os casos de contendasque envolveram professores, inspetores e outros agentes escolares no curso do período de 1853 – 1868. A partir deentão, a denominação episódio será acrescida de “processo”, tendo em vista o texto normativo de 1869, que, na SecçãoII Do Processo para a imposição das penas e seus recursos, formaliza o tratamento de situações conflitivas entre osagentes envolvidos direta ou indiretamente com a escola paulista.Sobre o registro das citações extraídas dos “episódios” e “processos” – Constatou-se que o conjunto das peças ou dosatos que compõem o maço de papéis de um “episódio” ou “processo” (cartas, portarias, ofícios, petições, despachos,entre outras) nem sempre são numerados e se o são a numeração se encontra em estado ilegível. Esta constataçãodificulta a identificação pormenorizada do documento e a exata reprodução. Por tal razão, será adotado o critério deidentificar as citações extraídas de um “episódio” ou “processo” por uma denominação geral do maço de documentos.Exemplo, “Episódio 1” é a referência para o caso do Professor Francisco Pereira Machado, São João da Boa Vista (56ºDistrito), ano de 1853 – Ref.: 0140, Série MIP – AESP.

3 1Protocolo – Do grego protókollon, primeira folha colada a rolos de papiro, na qual se fazia um sumário do manuscrito.No período clássico do direito romano, a prova processual não estava submetida a formlaidades, cabendo ao juiz dara fé eventualmente merecida. Todavia, os documentos públicos constituíam prova absoluta, de aceitação obrigatória.Tais documentos – manuscritos – eram elaborados por juízes ou tabeliães (tabelliones vel notarii) e, para terem

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Francisco Pera. Machado na qualide. de Profesçor interino de 1ªs Letras desta Fregzia.tem cido aciduo na sua obrigação, com proveito de alguns meninos que cursarão sua auladurante o incino do dº. Professor. Hé casado, carregado de família, vivendo onestame.Sem escandalo algum, e prodente em seo viver. (Episódio 1).

A declaração era resposta a uma solicitação do professor e cumpria uma finalidade paraalém do atestado de conduta, indicava a origem da inimizade entre o professor e o inspetor.

Attestamos mais que sendo o mmo.Professor Escrivão da Subdelegacia desta Fregza., enella Subdelegado Maximiano Jose Soares, e existindo entre elles descrenças particulares,deixou o dº. Profesçor de Escrivaniar. Obstando assim de comunicarce com o mmo., eagora [...] seacha nomeado inspetor da instrução primaria sendo este inimigo do ditoProfesçor [...] que deixou o mmo. de continuar o incino, the ulterior ordem do Exmo.Governo, ficando a aula suspença com prejuiso da mocidade e o Publico insatisfeito.(25/09/1853, Episódio 1).

Diante dos encaminhamentos dados pelo professor, o inspetor Maximiano interveio, reuniuo ofício com o qual tinha informado sua nomeação ao professor – o mesmo papel que portava aresposta do professor – dirigindo-se ao inspetor geral da Instrução Pública, dr. Diogo deMendonça Pinto.

(...) o dito Profesçor teve em vistas insultarme desacatando ma. authoride. assignando-a como meu Superior e usando expressões que denotão carência de ma. pte. (..) vou pr.esta pedir-lhe se digne em virtude do artº. 15 do Regulamto. Provincial de 8 de 9bro de1851 reprehendê-lo plo. seo conportamento desrespeitoso pa. comigo e ao mesmo tempofaselo responsabilizar plo. abandono immediato do ensino sem que lhe tivesse previamenteobtido a sua demissão, devendo assegurar aps. que trato desde já de engajar um Professôrque sirva enteiramente nos termos do artº. 12 § 6º do citado Regulamento. (28/09/1853,Episódio 1).

O conjunto dos documentos (portaria de nomeação, declarações, ofício, cartas, despachos)foi encaminhado à Inspetoria Geral da Instrução Pública, recebendo vistas do dr. Diogo,recebendo do secretário da Inspetoria o registro de seu trajeto e a indicação sobre a grave faltana escrituração:

validade, na presença de três testemunhas que o firmariam, bem assim as partes e o tabelião. Ora, quando umdocumento público era levado de Roma para Constantinopla exigia-se, além das formalidades de praxe, para evitarfraudes, que ele trouxesse um selo oficial na primeira página (proptos), colado pelo próprio tabelião (collan), sendoesta também colada ao manuscrito. ACQUAVIVA, 2000, p. 1092-1093.O selo está entre os “signos de poder” que integram os suportes materiais da escrita oficial– “escrita de Estado”-, nacomunicação escrita entre autoridades e subordinados. CHARTIER, 1987, p. 215-229. Eram passíveis de multa(5$000 a 2$5000) – “Os chefes de Repartição Pública, Juiz, ou outro funccionario, que assignar contractos ounomeações, attender officialmente ou deferir requwerimento, ou papel instruído de documentos sellados; ou fizerguardar, ou que produza [...], titulo ou papel sujeito a sello, sem que o tenha pago.” (Índice Alphabetico do Regulamentodo Sello, letra M, p. 11).

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O Inspector Geral da Instrucção Publica, tendo visto um officio, que o Sñr. FranciscoPereira Machado, Professor Público de primeiras lettras da Freguesia de S. João da BoaVista, dirigio ao Inspector do Districto Maximiano José Soares em data de 21 de Setembrodo corrente anno, no qual o tratatava sem a attenção e respeito devidos a esse Empregadona qualidade de superior que é do referido sr. Professor; porquanto não só declarava-lhedar-se por demittido da Cadeira em conseqüência de ter sido elle provido no cargod’Inspector, mas também assignou no officio o seu nome em logar superior ao d’elle,factos que derão occasião a considerar-se o dicto Inspector insultado, expedirprovidencias, não póde deixar, com pezar seu, de reprehender ao Sñr. Professor públicopor um similhante procedimento, assim como por ter abandonado a Cadeira sem paraisso obtido a demissão. (07/11/1853, Episódio 1).

O professor Francisco Pereira Machado foi exonerado do cargo de professor no dia 8 denovembro de 1853. Sua demissão é nalgum grau balizada pela legislação estrangeira a esserespeito: “nos conflictos idênticos entre Inspectores e Professores a regra geral na Alemanha édemittir ao Inspector, mas essa regra não tem applicação no caso actual, em que como dice oindividuo inimizado com o Inspector”. Pelo menos três fatores foram decisivos para a demissãodo Professor Francisco: o abandono do exercício do cargo (comunicado aos juízes de paz), aquebra de um protocolo de hierarquia na escrituração e a animosidade pessoal existente entre osdois agentes (professor e supervisor) – responsáveis pelo exercício de uma função pública.

32

Numa ação estratégica de negociar a própria permanência a partir da exoneração doinspetor, o professor reúne depoimentos dos dois juízes de paz do distrito. Figuras judiciárias, osjuízes de paz tinham atribuições de polícia administrativa, polícia judiciária e funções judiciáriaspropriamente ditas. Como polícia administrativa tinham de, entre outras coisas, exercer vigilânciasobre os novos moradores do distrito, os desconhecidos ou suspeitos, fazer a divisão do distritoentre outras. Como polícia judiciária tinham de proceder ao auto de corpo de delito. Comoatribuição judiciária em caráter geral:

(...) obrigar a assignar termo de bem viver aos vadios, mendigos, bêbedos por habito,prostitutas desordeiras, e aos turbulentos; a de fazer assignar termo de segurança aoslegalmente suspeitos de commeter crime, podendo em todos esses casos impor penasaté 30$ de multa, prisão até 30 dias e tres mezes de Casa de Correcção ou officinaspublicas; a deformar a culpa dos delinqüentes; a de conceder fiança aos declaradosculpados no juízo de paz; a de julgar as contravenções ás posturas municipaes; os crimespunidos com multa até 100$, prisão, degredo ou desterro até seis mezes com multacorrespondente á metade deste tempo, ou sem ella, e três mezes de Casa de Correcçãoou officinas publicas. ( p.1141).

3 2Função Pública – Do latim functionem, acusativo de functio (radical function), função, execução, cumprimento,atividade, de functus, particípio passado de fungi, executar, cumprir, desempenhar, e io, ação, processo. Daí, de/functus, ou seja, aquele que morreu, perdeu a função vital... Atividade de natureza pública exercida por agente servidorpúblico ou não. A idéia de função, como se depreende da própria etmologia supra, envolve atividade, ação, vida. Nodizer de Hans Kelsen, a realização de qualquer ato juridicamente prescrito e, portanto, relativo ao sistema do Estadoconsiderado em sua unidade, constitui o exercício de uma função, e o agente que concorre para uma perfeita integraçãodo ato é órgão do Estado. ACQUAVIVA, 2000, p. 668.

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Também era o juiz de paz um dos integrantes da Junta (pároco ou capelão, presidente dacâmara ou algum vereador e juízes de paz) que definia os nomes dos cidadãos que reuniam osquesitos de bom senso e probidade necessários à condição de eleitores. Enfim, quando o ProfessorFrancisco reunia como atestado de sua competência a declaração dos dois juízes de paz dodistrito de São João da Boa Vista, incrementava o seu poder de defesa e mesmo tendo sidoexonerado do cargo, colocou vis a vis a maior representação judiciária da autoridade distritalcom a mais recente instituição de poder local sobre a inspeção da instrução pública: o inspetordistrital.

O suposto confronto entre as duas forças, a judiciária e da instrução é apenas uma dasfrestas por onde dá pra enxergar a briga. Na verdade, recorrer aos juízes de paz seria cada vezmais uma maneira de validar as animosidades entre os agentes responsáveis pela instrução pública.Ora do lado do professor, ora do lado do inspetor, ora do pai de algum aluno. O lugar ondeestará o juiz de paz numa situação de contenda na instrução pública é tão somente umapossibilidade de desvelar interstícios sobre os quais são editados os regimes de verdade.

O caso anterior ocorrido em São João da Boa Vista teve uma duração de dois meses edois dias com a exoneração de um e a contratação de outro professor. Havia uma grandevariação entre a duração de uma ou outra quizila. O que demandava um tempo ou outro detramitação podia ser o motivo gerador da contenda, os envolvidos, os artifícios empregados nadefesa ou acusação, as testemunhas, o grau de aproximação de uma parte ou outra com asautoridades locais.

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Capítulo 2

REGIMES DE PRODUÇÃO DE VERDADES:ESTRATÉGIA AMBIVALENTE DE DENUNCIANTES E DENUNCIADOS

Entre nobres colegas

O ano é 1856. O Inspetor Geral da Instrução Pública era um dos deputados que discutiacom outros as questões acerca do orçamento, formação de professores e meios de enxugardespesas. O Seminário de “Acú” é uma instituição fundada no ano de 1825

33 com a finalidade

de instruir “órfãs desvalidas”. O problema da permanênia das educandas no Seminário de “Acú”depois de completada a educação era um problema exaustivamente debatido pelas autoridadesdireta ou indiretamente ligadas à instrução. Quando a Câmara Legislativa da Província paulista,em 1856, debate o problema da permanência no seminário, o faz sob alegação de que estariahavendo desperdício de dinheiro público. Afnal, diziam os deputados, a maioria das educandasformadas, permaneciam ali, fazendo daquele espaço o lugar de sua moradia e não o lugartemporário da própria formação e o eventual ingresso na carreira do magistério. Célia Giglio(2001) trabalha com a figura do Presidente como o Pai da Província.

34 Nesta interpretação, o

pai ditava o futuro às “órfãs desvalidas”. Uma educanda poderia ter três destinos, o de ingressoao magistério, o de entregar-se aos trabalhos domésticos nalguma casa de família ou o casamento.

3 3O Seminário do “Acú” foi criado pelo Presidente da Província, o Visconde Congonhas do Campo. GIGLIO, 2001, p.44.

3 4A autora explica: “A figura do Pai, neste texto, refere-se à idéia de um “ente superior”, que adota como filhos a parcelada população considerada incapaz de dirigir-se por si mesma, para educa-la, civiliza-la, em garantia à manutenção deuma ordem, em nome de um bem comum que têm por responsabilidade realizar.” (GIGLIO, 2001, p. 33). Se oPresidente da Província era o pai de “órfãos desvalidos” a figura da mãe, em se tratando das educandas do Seminário,era a diretora da instituição nomeada pelo Presidente. (GIGLIO, p. 38).

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A Assembléia era palco onde alguns deputados acuavam o Inspetor da Instrução Públicacom intervenções acerca da direção do Seminário em questão. O deputado e Inspetor Geral daInstrução Pública não apenas estava sendo interrogado pelos “nobres colegas” como parecia sesentir insultado:

Sr. Nebias: Queixo-me por exemplo de que quando vagam certas cadeiras na nossaprovíncia não se procure com preferência as educandas desse seminário. Eram estas asvistas da lei, e a lei não tem sido cumprida; apparecem logo mil outras pretendentes e oque acontece é que as filhas da província que receberam educação á custa dos cofreprovinciais são preteridas.O Sr. Mendonça: Não há tal, não está bem informado, ellas tem preferência por lei.O Sr. Nebias: E tem sido preferidas?O Sr. Mendonça: Todas as que concorrem.(Assembléia Provincial, publicação no CorreioPaulistano, 05/04/1856, p. 3).

O Sr. Mendonça explicava a falta de professoras saídas do Seminário, pela falta de “mestra”para a formação das educandas.

Ao que, o Sr. Nebias alfinetou: “como inspector da instrucção pública devia ser o primeiroa fazer sentir essa falta”.Sr. Mendonça: Sabe que não o tenho feito sentir?Sr. Nebias: como membro muito importante desta assembléa devia tratar de remedia-la?Sr. Mendonça: Sabe que não tenho tratado disso?Sr. Nebias: Então não há recurso contra esse vicio?Sr. Mendonça: Há recurso e eu o tenho tentado.Uma voz: Que vício?O Sr. Nebias: O da falta de professoras que habilitem aquellas educandas para poderemser empregadas no magistério, e não ficarem ali perpetuamente. (Assembléia Provincial,publicação no Correio Paulistano, 05/04/1856, p. 3).

Para alguns deputados, era preciso fazer cumprir a lei que autorizava o despejo de quempermanecia por muito tempo no Seminário. O Inspetor Diogo informava que somente uma daseducandas tinha mais de 40 anos. Por um instante o deputado Nebias mostrou-se sensível aodespejo das educandas:

Não sei se poderemos despedir assim muito facilmente essa gente. Realmente tenhoalgum vexame de adoptar essa idéia. Sendo ellas filhas da província, e estando debaixo dasiua salva guarda e tuttella, não sei se poderemos diser-lhes com muita liberdade quetomem o seu rumo. Se poderem ser empregadas no magistério como professoras nasdifferentes localidades da província, se poderem contractar se serviço decentemente,ainda bem; mas despedir-se assim sem destino, sem amparo nenhum, lancal-as nas ruaspublicas. (Assembléia Provincial, publicação no Correio Paulistano, 05/04/1856, p. 3).

Se de um lado o deputado Nebias demonstrava sensibilidade sobre a questão, o deputadoAndrada ironizava: “ficará sendo um seminário de velhas”.

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A Escola Normal parecia não cumprir com a finalidade para a qual foi instituída: a formaçãode professores necessários para os quadros da província

35, tampouco os Seminários de

Educandas de “Acú” ou o de Ytu. Os deputados da Província paulista estavam discutindo oOrçamento provincial e, ao faze-lo nas sessões realizadas no ano de 1856, não poupavam ao“nobre colega, o deputado Diogo de Mendonça – também Inspetor Geral da Instrução Pública.Alguns sugeriam que no que diz respeito ao Seminário, fosse determinada a idade máxima depermanência naquele estabelecimento, propondo 25 anos. Entre os 21 e 25 a educanda deveriaser provida nalguma escola ou, não fosse habilitada para tornar-se-ia “creada em casa de família”,isto é, ou ela se fazia professora pública ou criada em casas de família. Não fosse tomada atitudecomo esta, advertia o Sr. R. de Andrada: “Em quanto essas pessoas tiverem casa e comida degraça, preferirão esse santo ócio a irem trabalhar. E fica a província privada de distribuir instrucçãoprimaria gratuita a pessoas pertencentes ao sexo feminino de idade mais tenra.”

Do Seminário de “Acu” para as Aulas avulsas. Os deputados questionavam as “aulas”criadas para o ensino de latim e ou de francês destinadas a um público que não faria proveitonenhum deste conhecimento:

Sr. Nebias: Temos aqui em Atibaia e Bragança, duas povoações muito próximas, com suascadeiras de latim, e francez. Ora diga-me a assembléa se isto não é um luxo de latinidade efrancezia? Queremos nos nós por ventura habilitar a nossa população inteira para a altadiplomacia no futuro? (Assembléia Provincial, publicação no Correio Paulistano, 05/04/1856,p. 3).

Na seqüência o mesmo deputado sugere que se destaque das diferentes localidadespessoas com inteligência razoável para o exercício vitalício do magistério, para ele a solução é ofim das nomeações e provimentos interinos. Mas havia entendimentos contrários, o Sr. Carrãoachava que medida como esta facultaria a vitaliciedade de gente inepta, como permitia a lei de1846.

É para despedir-se aquelles que não mostrarem perícia ou capacidade para o ensino; masdesgraçadamente essa lei apresentou correctivo nenhum na prática, de sorte que, encartadoscertos mestres, certas incapacidades nunca mais deixam o magistério. (AssembléiaProvincial, publicação no Correio Paulistano, 05/04/1856, p. 3).

3 5Ver Leonor Tanuri. O Ensino Normal no Estado de São Paulo (1890-1930). A autora trabalha com a idéia de que asescolas normais só se consolidam com a consolidação das idéias liberais de democratização e obrigatoriedade dainstrução primária, bem como a liberdade de ensino, o que teria se dado a partir de 1870. Antes “as escolas normaisnão foram mais que um projeto irrealizado”. (1979, p. 14). A autora apresenta uma tabela com o movimento namatrícula da Escola Normal paulista, demonstrando que entre os anos de 1847 e 1866 o número anual de matrículasoscilou entre o mínimo de 11 e o máximo de 21. (p. 17). Ver Carlos Monarcha, . Sobre os debates quanto à formaçãode professores na Província de Minas Gerais, na primeira metade do século XIX, ver Walkiria Miranda Rosa, estudointitulado Instrução pública e formação de professores em Minas Gerais (1825-1852). Revista Brasileira de Históriada Educação. SBHE. 2003, nº 6. p. 87-114.

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Interveio, dr. Diogo Mendonça: “Isso não é exacto.”Continua o diálogo das asperezas:

O Sr. Carrão: Alguns tem sido demittidos.O Sr. Mendonça: Até vitalícios.O Sr. Nebias: Muito poucos, e talvez que essa regra applicada a alguns seja mais umainjustiça contra a qual eu clamo, entretanto que não há rigor a respeito de todos.O Sr. Carrão: Não há exemplo dessas injustiças, se a presidência e a inspectoria merecemcensura, é pela parcimônia com que empregam essa medida.O Sr.Nebias: O arbítrio no provimento e nas demissões é um embaraço muito grande. Asobservações que tenho feito, tendem a chamar toda attenção contra esse desembaraço.Não quero agora instituir uma discussão a este respeito com o nobre deputado que éinspector da instrucção publica, senão lhe pediria que me declarasse com franqueza seesse arbítrio não o tem collocado muitas vezes em sérias difficuldades. (AssembléiaProvincial, publicação no Correio Paulistano, 05/04/1856, p. 3).

E o Sr. Carrão explicita mais a estratégia de provocação ao deputado e Inspetor Geral:“Sem duvida, como lhe aconteceria no caso de ser juiz e ter de julgar os professores que fossemaccusados.”

A discussão se sucede e o que se nota é que o deputado que menos se manifesta é oInspetor Geral da Instrução Pública. Suas manifestações intercalam as falas de Nebias e Carrão,limitando-se quase sempre a afirmar ou negar as investidas dos dois deputados.

Sr. Nebias: Os apartes do nobre deputado não servem para destruir as observações quetenho feito. Disse o nobre deputado que os professores vitalícios serão sempreincapacidades...Sr. Carrão: Não foi isso, hei de explicar-me.Sr. Nebias: Quis dizer que o numero dos professores comprehende muitas incapacidadesperpetuas; já se sabe que, quando fallamos, sempre guardamos as boas e justíssimasexcepções. Em fim o nobre deputado julga que a vitaliciedade não serve, não adiantanada; e o que eu digo é que o provimento interino facilita muito as portas do magistério:é deste ponto que eu desejo que o nobre deputado parta, é daqui que desejo que meconteste.Não sabemos como são feitos os provimentos interinos que se acham ahi derramadospor toda a província! Obriguemos esses homens a um estudo sério e positivo, porqueentão, vitalícios que sejam tem sempre essa base e esta presumpção a seu favor, – foramexaminados, mostraram capacidade e préstimo nas matérias simili [..] que devem ensinare por conseguinte não hão de faltar aos seus deveres.Sr. Ribas: Os interinos não fazem exame?Sr. Nebias: Não fazem, não senhor; são providos independente de concurso.Sr. Carrão: Esses não ficam permanentes; o governo os nomêa enquanto não apparecemoutros.Sr. Nebias: Tudo isso é vantagem para mim. Sabe o nobre deputado porqueapparecem os interinos para as nossas localidades, haviam de apparecer indivíduos quese propuzessem ao provimento vitalício, haviam de habilitar-se com a instrucção necessáriapara soffrer um exame mais rigorosoSr.Mendonça: A lei impede isso.Sr. Nebias: Qual lei?

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Sr. Mendonça: A de 1846.Sr. Nebias: O que tem?Sr. Mendonça: Impede o provimento vitalício.Sr. Ribas: Está enganado; os professores interinos fazem exame.Sr. Nebias E como são feitos os exames?Sr. Ribas: Perante o Presidente da Província como os outros.Sr. Nebias: Não é assim, está enganado.Uma voz: Não fazem exame.Sr. Mendonça: Os contractados é que não o fazem, há esta distinção. (AssembléiaProvincial, publicação no Correio Paulistano, 05/04/1856, p. 3).

A discussão sobre diferentes aspectos da Instrução Pública é alcançada pelos deputadosna sessão que deveria discutir o Orçamento Provincial. Ocorria que o Orçamento era discutidopor meio de questões da instrução: processos de formação, admissão e manutenção dosprofessores públicos. A conduta recuada do Inspetor nas sessões da Assembléia Legislativa,pelo menos naquelas entre os dias 3 e 7 do mês de abril de 1856, não cala a voz dos deputados,integrantes da Comissão do Orçamento.

A suposta habilitação que deveria ter o professor da escola de Primeiras Letras estava nadisputa verbal dos dois deputados, senhores Nebias e Carrão:

(...) o honrado membro julga que a instrucção primaria não exige grandes habilitaçõesnos mestres; que qualquer homem póde ser professor da instrucção primaria e professorvitalicio. Esta proposição é contrária á toda a nossa experiência e contraria a experiênciade todos os povos. Se há uma funcção publica que exija habilitações muito particulares,muito especiaes e que não esta no commum, é sem falta nenhuma o magistério na instrucçãoprimaria.Eu não digo que isso depende de uma maior cultura intellectual que faz o professorprimário; é preciso que o individuo, alem de certo gráo de desenvolvimento intellectual,tenha a aptidão, idoneidade especial para esse fim, e esse geito profissional nem todos otem. Estou persuadido que o honrado membro não negará que um moço que sahe dasnossas faculdades de direito com um diploma de bacharel, tem sua intelligencia bastantecultivada, pelo menos esta deve ser a presumpção; mas duvido que o honrado membroache nessa grande classe muito indivíduos com habilitações necessárias para desempenharas funções de professor da instrucção primaria. (Assembléia Provincial, publicação noCorreio Paulistano, 05/04/1856, p. 4).

Naquilo que sucede, há uma aparente concordância de que para ensinar a ler, escrever,rezar e contar não é necessária tanta cultura intelectual.

36 Alguns dos elementos trazidos pelos

deputados são importantes para esta pesquisa, cabendo retomar alguns:

3 6Em 1864, ainda era difícl encontrar no comércio paulista de livros , obras indicadas para a formação do professor.“Livraria Garraux de Lailhacar e Cia. ‘Grammatica da Infância dedicada aos srs. professores da instrucção primariapelo cônego dr. J. C. Fernandes Pinheiro” (Correio Paulistano, 30/11/1864, p. 4).

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O desafio feito ao inspetor sobre a arbitrariedade com que se admitia ou exoneravaprofessores e a provocação que lhe fora feita sobre a eventualidade de “ser juiz e ter de julgarprofessores”.

Outro aspecto é a competência sobre a formação dos professores da Província para aatuação nas escolas de Primeiras Letras: normalista, educanda (Seminário de “Acú” ou Ytu),bacharel de Direito, ou uma pessoa comum com certa “vocação” para o exercício do magistérioe habilitação necessária para o ensino de ler, escrever, contar e rezar.

As questões de Instrução Pública que são debatidas pela Assembléia Provincial na sessãode discussão do Orçamento da Província no ano de 1856 não estavam circunscritas àquele anoou àquela década. O perfil da formação do professor, tanto como os demais quesitos de suaadmissão, provisão e exoneração foram preocupações que, de um modo ou outro, sempreatravessaram a formulação e a regulamentação de uma lei, uma contenta numa freguesia qualquer,a Sessão de uma Assembléia Provincial. Ou seja, reformulação de aspectos normativos dainstrução, contendas entre agentes diretos e indiretos da escola, reuniões da Assembléia (àexceção do período imediatamente posterior ao Ato Adicional que a suprimiu) sempre existiram,antes, durante e depois de 1856.

Mas na sessão realizada aos 4 de abril de 1856, o deputado Diogo de Mendonça Pintotomaria a tribuna para retrucar ao “nobre colega”, prestando esclarecimentos de como o InspetorGeral da Instrução Pública mediava e “julgava” situações de conflito surgidas nas escolas públicas.

Tive uma denuncia anônima de que um empregado da instrucção publica procedia demodo que não podia ser mantido. Não quero referir os factos de que foi occupado essefunccionario; são factos muito escandalosos, de uma alta immoralidade. Recebendo essadenuncia, dirigi-me as pessoas de ambos os credos políticos do logar pedindo-nasinformações, e ao mesmo tempo mandei ouvir ao próprio professor... (AssembléiaProvincial, publicação no Correio Paulistano, 09/04/1856, p. 2).

Interrompido por Valladão e Andrada que questionavam o modo de formulação dadenúncia: “não é uma denuncia, é uma perfeita delação que revela a cobardia do individuo que aforja, e portanto sempre pressupõe a falsidade.” Mas o inspetor considerou a denúncia anônimae passou à exposição dos procedimentos de apuração da mesma, foi quando revelou umasurpresa:

Mandei ouvir a esse empregado, e respondeo-me que era victima de intrigas, que haviamaquinação para destituil-o do emprego. Direi inteiramente a verdade, não era um professor,era uma professora.Tive algum escrúpulo de propor a demissão, e tive escrúpulo, por que não sou inimigo detirar o pão a quem não o tem, não sinto prazer nisto, e talvez seja de alguma sorteincompetente para a administração, por que é sempre com suma difficuldade, com grandedesprazer meu que proponho uma demissão. (Assembléia Provincial, publicação no CorreioPaulistano, 09/04/1856, p. 2).

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Os encaminhamentos sucessivos pretendem ilustrar o “escrúpulo” do inspetor:

Recebendo a defesa da professora, me dirigi a outras pessoas pedindo-lhes que me dessemtambém o seu parecer, que me informassem o que havia a este respeito, e foi depois deobter uma informação unanimemente contraria a essa professora que eu fiz a proposta aoSr. presidente da província. (Assembléia Provincial, publicação no Correio Paulistano,09/04/1856, p. 2).

O caso da professora pública de “alta imoralidade” era repassado ao Dr. Saraiva, queteria escrito uma “carta particular” onde dizia: “Receio que sejamos victimas de alguma intriga,cumpre que nos acautelemos muito, esgotamos todos os recursos ao nosso alcance para queconsigamos inteirar-nos da verdade”. Na ânsia de promoção da busca da verdade, o inspetorremeteu ao presidente “todas as provas que tinha colligido”, rogando-lhe que ouvisse “á pessoasde sua confiança naquella localidade”.

Aconteceu de, por esta ocasião, chegar à Província um “funccionario” enviado pelo GovernoImperial “pessoa muito distincta pela sua probidade, pela sua imparcialidade, em fim pelo seucaracter, e illustração”, era uma pessoa muito conhecida do inspetor.

Pedia que esse cidadão, que não tinha rasão para ser parcial, sindicasse esse acerda damoralidade dessa professora e me transmitisse o seu parecer. O parecer que me trasmittiofoi inteiramente de accordo com as informações que me enviarão os outros cidadãos aquem consultei. (Assembléia Provincial, publicação no Correio Paulistano, 09/04/1856,p. 2).

Para se garantir da veracidade do seu próprio relato, o deputado Diogo de MendonçaPinto na defesa dos seus atos na condição de Inspetor Geral da Instrução Pública, recorreu a umoutro deputado, nobre colega e ex-inspetor de instrução pública da capital paulista:

Foi depois de todo este processo, foi depois que o Exmo. presidente da província ouviopessoas de sua confiança que se lavrou, passados mezes, a demissão.Na casa ha quem saiba que não foi injusto esse acto da administração. (AssembléiaProvincial, publicação no Correio Paulistano, 09/04/1856, p. 2).

O Inspetor não parou por aí, intentando por diversos temas da instrução. Mas foi o relatosobre o procedimento de apuração da denúncia anônima acerca da “alta imoralidade” daprofessora pública que permitiu que as contendas surgidas no interior das escolas públicasexistentes ganhassem espaço na tribuna da Assembléia Geral. Tudo começou com a provocaçãosobre o modo como se admitia ou mantinha provida uma escola pública de Primeiras Letras nadiscussão sobre o Orçamento do Tesouro Provincial. Ou seja, no suposto do racionamento degastos públicos, era questionado o procedimento das autoridades da instrução e do GovernoProvincial frente aos procedimentos de admissão e demissão de professores públicos.

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Mas tal situação também pode abrir fenda para a compreensão de processos instituintesda definição de traços instrução pública. Pode-se inferir que os deputados não tinham dequestionar a conduta de professores particulares ou os critérios de admissão e provisão destasmesmas escolas porque muito certeiramente a discussão do Orçamento do Tesouro não previao financiamento do serviço de instrução primária oferecido pelas escolas particulares. Esta podeser uma possibilidade de compreender porque o debate da Instrução Pública atravessa oquestionando dos procedimentos de admissão e provisão das escolas públicas, incidindo sobrea conduta moral destes servidores públicos, no caso referido, uma professora.

O impasse gerado entre os deputados acerca dos limites da intervenção do poder público,ou do serviço público de inspeção sobre as escolas particulares parece consolidar esta distinção.

37

Enquanto o deputado Diogo defendia a intervenção da inspeção pública sobre a admissão deprofessores para escolas particulares, os colegas, em especial os senhores Nebias, Ribas eAndrada defendiam a restrição da inspeção pública a aspectos pontuais da escola particular,tendo em vista que esta era uma escolha do pai que pagava pela instrução oferecida ao filho e,portanto, era o pai o responsável pela fiscalização do professor do seu filho.

Creio que mais ou menos esta marcada a inspecção que pertence ao governo ou a provínciaa respeito das escolas particulares, e tambem creio que essa inspecção não deve sermuito extensa (Sr. Nebias). (Assembléia Provincial, publicação no Correio Paulistano,11/04/1856, p. 2).

Ainda que o Inspetor Geral da Instrução Pública recorresse à Lei de 46 no intento demarcar a sua posição na defesa de uma escola particular inspecionada pelo poder público tambémnos atos de admissão e provisão das escolas, a lei era um documento anfíbio

38 na interpretação,

a um só tempo que a sua regulamentação (1851) era delongada nos processos de abertura efiscalização de estabelecimentos de instrução primária particular sugerindo uma certa indistinçãotanto na escola particular como na pública, a orientação dada pela mesma lei sugeria distinção:“As escolas particulares ficam sugeitas á inspecção na conformidade do titulo quinto no que lhesfor applicavel”.

Hilsdorf (1977) reconhece a importância da ação de controle sobre a iniciativa particulardepreendida “do interesse pessoal do Inspetor Geral” embora ressalte aspectos sobre os quaisse apresentava “bastante deficiente” (p.22).

3 7Os limites de intervenção do poder público sobre as escolas particulares recebiam os contornos liberais inscritos naConstituição de 1824. Sobre a questão Hilsdorf, assinala que um dos fatores do “êxito” da iniciativa particular noImpério brasileiro podia ser atribuído ao artigo 252 da Carta Magna de 1824, que dizia ser livre a cada cidadão abriraulas para o ensino público, desde que se responssabilizasse pelos abusos. Esta perspectiva encontrava respaldo namentalidade liberal da época, traduzida pela aproximação entre americanos de profissão protestante e representantesdas elites político-culturais progressistas. (HILSDORF, 1977).

3 8Anfibiologia ou polissemia das fórmulas jurídicas corresponde ao processo de aplicação de uma lei no qual se tendea tirar o máximo partido da elasticidade da lei e mesmo das suas contradições, das suas ambigüidades ou lacunas. Ainterpretação da lei nunca é a aplicação fiel de uma regra. BOURDIEU, 2001, p. 224.

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A intensa atividade de fiscalização exercida nas décadas de 50 e 60 sobre os estabelecimentosparticulares de ensino por Diogo de Mendonça Pinto, procurando impedir que atuassem semos respectivos títulos de autorização por ele expedidos, não logrou tornar a escola particularmenos refratária ao cumprimento de suas obrigações. A precariedade das comunicações, adistância das escolas, espalhadas por toda a Província, o custo das taxas de serviço a burocraciagovernamental, a precariedade do sistema de inspeção, confiado primeiramente às CâmarasMunicipais, e, depois de 1851, a inspetores distritais não remunerados, contribuíam para quea escola particular burlasse a lei: instalar aulas sem prévia licença, não pagar as multas nasquais incorria, não enviar relatórios. (p. 22-23).

Nota a autora que o “Inspetor multou várias escolas que foram abertas sem autorização,embora posteriormente relaxasse algumas das punições” (trecho da nota 56, p. 60).

39 Parece

que a ação da inspeção pública se reconhece sobre aspectos de caráter formal e externo àescola particular. No caso deste estudo, a dificuldade de apreender situações conflitivas internasà escola particular que pudessem resultar na deflagração de um processo ou alguma diligênciada parte das autoridades públicas da instrução é dada pela constatação de que, entre mais desetenta conjuntos de peças de processos examinadas -, que incidiram sobre práticasdesautorizadas, somente uma diz respeito à escola particular.

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O caso de Maria do Espírito Santo:uma educanda do Semário de “Acú”

O episódio41

que segue abaixo reúne alguns dos temas da instrução pública que foramdebatidos pelos deputados paulistas nas sessões de 1856. É uma ilustração da permanência

3 9No trajeto de seu estudo, Hilsdorf demonstra que o veio liberal teria marcado o quadro da instrução entre os anos 60e 70 quando se verifica a “deficiência do ensino Público” e o “avantajamento do setor privado no atendimento àclientela escolar de nível primário e secundário” na província paulista. Estes eram acontecimentos que promoviam apostulação de medidas que, sob a defesa da liberdade de ensino “entendida como a liberdade de abrir escolas e lecionarsem prévia licença da Inspetoria” se expressou na desoficilaização do ensino secundário e na subvenção de escolasparticulares primárias (Art. 32, Lei n. 8, 19 de maio de 1862). O Regulamento de 18 de abril de 1869 reformou maisamplamente, ao instituir a liberdade do ensino primário e secundário e a desoficialização do ensino secundário. (1977,p. 34-35). Sobre o Ensino Secundário no período imperial, ver HAIDAR, 1972. A autora elege o período de 1834 atéos anos que antecederam a República para mostrar como se deram os primeiros esforços, no campo do ensino público,no sentido de imprimir organicidade a este ramo do ensino. A mesma autora relaciona à precária inspeção das escolasparticulares pelo serviço público tendo em vista dois motivos, um era a falta de remuneração dos inspetores distritaise o outro diz respeito ao “consenso geral” que “consagrara a liberdade de ensino particular primário e médio” tanto nacorte como nas demais províncias, desde meados da década de 60. (p. 191-192). Este último item perpassa a sua obraem diferentes momentos até o seu final, cf. p. 258-259. Sobre a “liberação do ensino de iniciativa privada” do controleoficial, ver também TANURI, 1979, p. 26.

4 0Assim se poderia explicar porque só foi encontrado um processo envolvendo uma professora particular e cuja questãoé externa à escola ou à moralidade da professora, tratava-se da ocorrência de abertura de uma escola sem a préviaobtenção de licença do governo. O fato ocorreu em 1895, na localidade de Casa Branca (15º Distrito) A Professora ediretora do Collegio “Moreira”, sra. Brasília Moreira, era acusada de infringir o art. 487 § 4º do Regulamento de 1893.4998 03, Processos, MIP – AESP.

4 1Episódio 2 – Maria do Espírito Santo, educanda do Seminário de “Acu”, 1859. 4935 02 – Série Ofícios Diversos –AESP. MIP – AESP.

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indefinida de educandas no Seminário de “Acú”, mostra os procedimentos das autoridades dainstrução diante da situação de existência de uma educanda acometida de “lepra” no Semináriode “Acú”.

Maria do Espírito Santo era natural de São Paulo, tendo sido matriculada no Seminário de“Acú” aos 11 dias de fevereiro de 1831 com a idade de 17 anos. O estado do “aproveitamento”da aluna foi descrito em 1838: “Acha-se corrente em ler, escrever, em contas de sommar, cozebem, faz [...] marca, e os mais uzos domésticos” (Relação Nominal das Educandas que seacham n’este Seminário desde Dezembro de 1838 até Dezembro de 1839, sustentadas peloCofre Provincial”. A condição da educanda lhe permitiria deixar o Seminário, entretanto elapermaneceria por mais dez anos naquela instituição.

O problema de despedir as filhas que ultrapassam a idade prevista no Regulamento éinsistentemente apresentado. As órfãs, objeto do amor paternal da Província, são tambémobjeto de ódio, condenadas à recriminação de sua ociosidade. De vítimas, passam aolugar de réus cujo crime é ser, em sua “inutilidade feminina” o embaraço que impede àinstituição de dar guarida a outras vítimas de abandono. (GIGLIO, 2001, p. 41)

Maria do Espirito Santo não era dada como órfã, seu pai se chamava Manoel Vicente(Anexo 3). O seu caso tinha mais inconvenientes que uma permanência indefinida naquelainstituição. Em 1857 o mapa que informava do estado das educandas do Seminário trazia aseguinte informação.

“Maria do Espírito Santo – idade 36 anos42

: infelizmente está gravemente ferida.” (Extraídodo Relatório sobre o estado das educandas de “Acú”, 22 de dezembro de 1857, apresentadoao governo pelo Inspetor Geral da Instrução Pública). O relatório que deveria registrar do“aproveitamento” das educandas se resume a um diagnóstico fatalístico e impreciso de Maria doEspírito Santo. O Seminário era instituição de “rapto” de “órfãos desvalidos” que no seu redutoestariam protegidos de tudo quanto fosse diferente da moralidade ou da normalidade (GIGLIO,2001, p. 36).

No ano seguinte, 1858, Maria do Espírito Santo questionou o resultado do exame a quefoi submetida pelo Dr. José Tell Ferrão, médico que diagnosticou sua enfermidade. Ela deveriaser removida do Seminário de Educandas de “Acú” para o Hospital de Lázaros. A denominaçãoao hospital advém da crença popular que atribui ao santo Lázaro como o santo protetor ealiviador do leproso. O Hospital de Lázaros paulista situava-se entre os rios Tamanduateí eTietê, tendo sido construído no ano de 1805 pela irmandade da Misericórdia à custa de esmolasde irmãos e fiéis (Marques, 1980, p. 318), local onde se ajuntavam os acometidos de lepra, umaenfermidade contagiosa e degeneradora.

4 2Em 1857 havia trinta e uma educandas matriculadas. Destas, seis tinham mais de 30 anos de idade (uma era Maria doEspírito Santo, a mais velha), nove delas tinham entre 20 e 23 anos, dez tinham entre 15 e 19 anos e o restante tinhaidades entre 8 e 14 anos. Relação nominal das Educandas do Seminário de Acú” na Cidade de S. Paulo. A AssembléiaProvincial de 1856 teria sugerido a idade de 25 anos como tolerância máxima para de permanência no Seminário.

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Os anúncios de jornal da época dão conta de diferentes soluções que vendiam a promessada cura da doença, uma amostra de que a doença das bexigas era uma das preocupações dasociedade imperial. Num destes o apelo ao enfermo se dá na promessa vendida no depoimentode uma suposta cura:

Morphetico pelo tempo de muitos annos já em um estado lastimozo sem mais esperançasde ter saúde esgotei os recursos dos médicos das nossas paragens. O Ilmo. Snr. Julio daCosta Guimarães, muito honrado negociante de Jacarehy, e depositário das pílulaspaulistanas do hábil medico, e author do curativo da morphéa, mandou vir um tratamentopara quatro mezes. Explicar miudamente o tratamento será muito longo limito-me apenasa dizer que é um prodígio da natureza. Pareceria possível, porem a verdade é que estousão e estou certo que nunca sucumbirei a esta horrível moléstia. Os que soffrerem o queeu soffri devem procurar este maravilhozo medico; não se deixem illudir [...]; é umamedicina dada por Deos para o alivio da humanidade. Não tenho expressões para agradecerao digno author de tão raros curativos. A rogo de Sr. João Mariano. F. de [...] Fernandes(Correio Paulistano, 9-5-1859, p. 4).

Maria do Espírito Santo não estava à procura da cura. Mas queria um diagnóstico quenegasse a existência da sua doença e garantisse a sua permanência naquele estabelecimento. Talmotivo fez com que a educanda encaminhasse uma petição ao Presidente da Província, dr.Joaquim José Torres no dia 19 de janeiro de 1859, quando reivindicava um novo exame, pois serecusava ou optava por adiar a aceitação da própria condição infortunada de sua “sorte”. Apetição foi mediada pelo Inspetor Geral da Instrução Pública.

(...) tendo recebido ordens para no prazo de oito dias recolher-se ao Hospital de Lazaros,por suppor-se, que a suppe. se acha morphetica, requer a VExa. se digne ordenar, que aSuppe. seja examinada competentemente, por que, assim como é prejudicial á saúde dasque habitão no Estabelecimento com a Suppe. soffrendo d’esta enfermidade, também éinjusto, que a Suppe, seja obrigada a morar no outro, onde pode soffrer o mesmo mal(...). (Maria doEspirito Santo se dirige ao Presidente da Província paulista, 19/01/1859,Episódio 2, 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

O apelo da educanda foi acatado, tendo sido determinado ao Dr. José Tell Ferrão arealização de outro exame. O resultado foi informado ao Inspetor Geral no dia 27 de janeiro doano corrente.

(...) tendo feito os exames convenientes e possiveis sobre o estado physico da educandaMaria do Espírito Santo, achei que ella tem estado há longo tempo debaixo da influenciade moléstias cutâneas, e que presentemente, apezar da estação ser favoravel e de ter sidoa dicta educanda accometida pelas bexigas, o que tenho também como favoravel no seuestado, ella apresenta signaes que julgo característicos d’estar affectada de =LepraTuberculosa=, bem quepor um exame menos accurado, a sua enfermidade se assemelhamuito como que na linguagem technica se chama =Pelagra= e vulgarmente Lepra italiana=em uma das suas phases. (Médico se dirige ao Inspetor geral da Instrução Pública, 27/01/1859, Episódio 2, 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

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O Dr. Ferrão era médico e também era formado em “professorado” nos Estados Unidos,proprietário do Colégio Ypiranga (Jornal Correio Paulistano, 16-4-1856, p. 4). Logo, odiagnóstico emitido não apenas vinha marcado de preceitos medicinais como professorais. Elenão fica limitado à constatação da condição da educanda, entendendo como do seu “deveresclarecer bem a Auctoridade, a fim de que ella colha os apetecidos fructos das suas boasintenções e medidas salutares”.

(...) reconheço com VSa. a necessidade ou ao menos a conveniência de retirar-se quantoantes do dicto Seminário a educanda affectada de uma tal moléstia, que se bem poralguns julgada não contagiosa, por outros é classificada como tal. (...) apezar doprognostico d’esta enfermidade ser desfavorável, a enferma tem direito ao emprego detodos os meios que a sciencia aconselha para ver se a sua sorte é melhorada (...) que sera dicta educanda enviada para essa tal casa chamada dos Lasaros, onde creio falta tudoo que mais necessario é, póde não só peiorar a condição, como ainda trazer a sociedade,ou ao lócal, males maiores do que poderião resultar da sua conservação no Seminário;um sentimento profundo pela mudança acceleraria a sua miseria; ou o despeito e a facilidadetornal-a-ião um d’esses entes perdidos e de perdição. ((Médico se dirige ao Inspetorgeral da Instrução Pública, 27/01/1859, Episódio 2, 4935 02 – Série Ofícios Diversos –AESP).

As observações do Dr. Ferrão sugerem que Maria do Espírito Santo deveria se submetera tratamentos mas não deveria sair do Seminário, tinha direitos de acesso à medicina maisavançada, não deveria ser mandada para um local desprovido de infra-estrutura porque talmedida a condenaria ao fim. Ele muito provavelmente teria se sensibilizado com a educanda quese revelava ousada ao dirigir-se ao presidente da província. Por fim, o médico sugeria que aeducanda fosse removida para o Hospital de Lázaros da Corte, tendo em vista a sua melhorcondição.

O segundo exame médico comprovava a perda de uma “filha” (educanda). Morfética, elajamais poderia retribuir o zelo, a gratidão recebida do “pai” (Presidente) na prestação de serviços.Ao contrário, Maria do Espírito Santo representava uma ameaça a certos padrões denormalidade

43 e moralidade. Enquanto não era definido o paradeiro de Maria do Espírito Santo,

a diretora e professora Anna Antonia da Costa Guimarães deixava de ser a “mãe” para se tornara madrasta. Alegava a impossibilidade de iniciar as atividades do estabelecimento com a presençade Maria “que se acha morphetica” e que, segundo a versão da diretora teria sido insultada pelaeducanda não podendo o seu ato permanecer impune ou a diretora perderia a “força moral”necessária para reger a Cadeira que lhe competia. Maria do Espirito Santo era um “máo exemplo”,

4 3Norma – A palavra norma vem do latim norma (esquadro, régua), e revela, no campo da conduta humana, a diretrizde um comportamento socialmente estabelecido. Por isso, o adjetivo normal refere-se a tudo que seja permitido ouproibido no mundo humano, no mundo ético; e refere-se, também, a tudo que, no mundo da natureza, no mundo físico,ocorre, necessariamente, como descrito num enunciado físico. Anormal é a qualidade daquilo que se mostra contrárioàs concepções admitidas num dado momento histórico. (verbete norma jurídica, ACQUAVIVA, 2000, p. 923 a 927.

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uma “incorrigível”. Informado o grau da situação, o Inspetor Geral interveio junto ao Presidenteda Província:

Em quanto porem VE não me auctorisa a fasel-a a mudarse para o aposento que se achaexpressamente destinado no Hospital dos Lasaros á recebel-a vou dirigir-me ao Seminárioe entender-me com a Professora afim de ver si consigo por a eschola em exercicio,declarando a ella que VE não deixará de tomar as convenientes providencias (...).(InspetorGeral da Instrução Pública se dirige ao Presidente da Província, 21-3-1859, Episódio 2,4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

Diante da ameaça que a professora fez de não dar início aos trabalhos do Seminárioenquanto a “morphetica” ali permanecesse, o Inspetor Geral tratou de convencer a professorado contrário. Até porque a decisão sobre a remoção de Maria do Espírito Santo tardaria até omês de julho, quando o inspetor Geral mandou comunicar “à mesma Educanda que se preparassepara as Ave Marias do dia 14 ir para o dicto Hospital acompanhada por João Pedro de Toledo,e um Servente do Seminário.” (12/07/1859, Episódio 2, 4935 02 – Série Ofícios Diversos –AESP).

O impedimento de sua permanência no Seminário resultava do atestado emitido pelomédico, da exigência da “mãe” (diretora). O “pai” (Presidente) com a ciência “pai” garantidapela mediação realizada pelo Inspetor Geral da Instrução Pública.

Casos de Contendas

Os episódios seguintes constituem casos de contenda que ocorreram entre as décadas de50 e 60 do século XIX.

São episódios compreendidos pelos anos de 1859 a 1865, período no qual a inovaçãolegal de caráter mais amplo é aquela datada de 28 de agosto de 1861, versando sobre a admissãode professores. A ingerência sobre as contendas referidas tinha por base o Regulamento deInstrução Pública de 1851.

44

4 4A preocupação com a definição de um perfil apropriado para o exercício do magistério é dada por meio de doiscritérios: 1) critério genérico que opera pela exclusão das qualidades inaceitáveis para ser admitido ou mantido nocargo; 2) a Comissão Inspetora aponta a “falta” do professor. As transformações sucessivas dos mecanismos decontrole sobre a admissão e permanência do professor ganharão contornos mais precisos a partir do texto normativode 1869, que disporá um dos seus capítulos para a gestão da “falta” do professor. (Seção 2, Do processo para aimposição das penas e seus recursos, Regulamento de 18 de abril de 1869 – para a Instrucção Publica e Particular).Já a reforma Couto Ferraz (1854) normatizava, com detalhe, os mecanismos de controle sobre os processos deadmissão e permanência no cargo do magistério. Cf. Titulo V, Capitulo Único: Faltas dos professores e directores deestabelecimentos públicos e particulares; penas a que ficão sujeitos; processo disciplinar. (regulamento da instrucçãoprimaria e secundaria do Município da Corte, a que se refere o Decreto desta data. Collecção das Leis do Império doBrazil, 1854, Tomo I).

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Fontes: Documentos manuscritos sob as referências: 4935-2; 4917-5 e 4996-1 da Série MIP – AESP.

Quadro IVContendas sob a vigência do Regulamento de 1851.

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Nestas contendas, as figuras eclesiásticas e judiciárias dividem território com aquelasdireta ou indiretamente responsáveis pela instrução. O cruzamento das diferentes vozes: pais dealunos anônimos ou não, professores, inspetores, padres, juízes, delegados – é uma conjugaçãode forças que pretendem apresentar versões de verdades. Não raro estas versões se chocam,atirando munições que dão conta de outros aspectos da briga em questão. No quadro acima sãoapresentados cinco casos ocorridos em cinco localidades distintas. Os cinco episódios possuemelementos comuns. Constituem alvo de acusação: quatro professores e um inspetor. Em trêscasos o confronto é direto entre professor (aqui, inclui-se a professora) e inspetor distrital. Nosoutros dois casos, o professor é o alvo da denúncia, sendo as duas iniciadas por pais de alunosou “de família”. Há uma mulher exercendo o papel de denunciante: a professora de Vila Bela daPrincesa que se confronta com o inspetor distrital. Há dois casos de pais de alunos que denunciamprofessores. E ainda há dois casos onde o inspetor distrital é o denunciante da conduta doprofessor. Independente de gênero ou função, todos parecem envolvidos na tarefa de vigiarpara fazerem-se donos do próprio lugar.

Representação é nome que se dá à tarefa de dirigir-se a uma autoridade para o registro deuma queixa, um documento formal que, tal qual uma representação criminal é dirigida às autoridadescompetentes pela suposta vítima – devem conter nele as informações que possam servir deapuração do fato e da autoria. A representação desencadeia uma série de encaminhamentos.Ciente da queixa, a autoridade notifica ao acusado para que este se explique e o fato deflagradorda queixa seja devidamente esclarecido.

O modo de representação de ambas as partes envolvidas numa contenta constitui umaspecto comum a todos os processos desencadeados pelo registro de uma queixa. Mais queproduzir uma representação do outro, o que se depreende tanto da parte de quem acusa comoda parte de quem defende – é talvez a única diferença considerável entre acusado e acusação éque ambos estão em lados opostos, ambos têm interesses e aliados próprios. As estratégias deprodução da verdade da acusação como da verdade da defesa são muito parecidas, consistindoquase sempre na desqualificação de um em relação ao outro, o que vale tanto para quem acusacomo para quem se defende.

Para efeito de organização metodológica de exposição destacaremos diferentes aspectosdas diferentes contendas sintetizadas no quadro acima com a finalidade de destacar destascontendas aspectos contributivos da compreensão da constituição de alguns traços importantesnos ensaios de produção da escola entre os anos de 1858 e 1865.

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A produção de representações do inimigo:uma estratégia de defesa

Da contenda acontecida na Villa Bella da Princeza45

não se conhece o posicionamento doInspetor geral da Instrução Pública, mas dela será destacado um elemento muito comum emquaisquer contendas, trata-se do mecanismo argumentativo que ambas as partes conflitantesdemandam no sentido de desqualificação um do outro.

O protocolo inicial de representação partiu da Professora da Escola feminina de PrimeirasLetras situada em Villa Bella da Princeza

46 e constitui amostra destes modos de representação

do outro e anunciação de algumas versões de verdade.Cronologia e caminhos da contenda:23-7-1859: Representação da Professora Francisca Augusta Cortez (Villa Bella da Princeza:

18º Distrito) endereçada à Vice-Presidência da Província paulista, dr. Amaral Gurgel.

4 5Povoação situada a Leste da Capital, na ilha de São Sebastião, sob a invocação da Senhora da Ajuda de Bom Sucesso.Criada Vila por ordem do governador e capitão general Antonio José da Franca e Horta e instalada pelo Ouvidor Geral,Joaquim Procópio Picão Salgado, a 23 de janeiro de 1806. O Vigário de São Sebastião, Manoel Gomes PereiraMarzagão, foi quem nos fins do século XVIII fundou a primeira capela que houve neste lugar com aquela invocação.No ano de 1876, a localidade dispunha de uma cadeia e a casa de Câmara (ambos num edifício), a matriz, a igreja de SãoBenedito (em construção) e quatro escolas primárias para ambos os sexos, sendo duas particulares. (MARQUES,1980,p. 124. vol. I).

4 6Episódio 3 – Professora Francisca Augusta Cortez, Villa Bella da Princeza, 1859. 4935 02 – Série Ofícios Diversos –AESP.

FIGURA I – Ilhabela, na ilha de São Sebastião “Ex Vila Bela ou Ilha de São Sebastião) J.B. Debret - 1827.Quadro do Desmembramento Territorial – Administrativo dos Municípios Paulistas - IGC, 1995, p. 36

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30-7-1859: Ofício saído da Inspetoria Geral da Instrução Pública (dr. Diogo de MendonçaPinto) anexado de cópia da representação da professora enviado pelos Correios ao Inspetor daInstrução Pública do 18º Distrito (Vila Bella da Princeza), sr. Antonio Luiz Pereira da Cunha.

14-8-1859: data em que o Inspetor Distrital recebeu os documentos acima referidos.18-8-1859: data em que o Inspetor Distrital produz a própria defesa endereçando-a ao

Inspetor Geral. Quando a Professora Francisca Augusta Cortez se dirige ao Vice-Presidente daProvíncia paulista ela o faz para queixar-se da conduta do Inspetor do Distrito e ao faze-laconstrói representações de si e do inspetor. A qualificação demasiado exagerada de sua moralidadee conduta profissional dividem espaço com a suposta condição de vítima da perseguição daparte do inspetor.

É Professora há 22 meses da escola da Vila Bella da Princeza.”. Queixa-se de perseguiçãoe vexação da parte do inspetor distrital que teria lhe negado o atestado com isso impedido-a deperceber o ordenado. Diz-se “honesta e donsella”, professora pública de uma escola “Publica enão Particular” onde, segundo ela, há dezesseis alunas matriculadas e freqüentes. Entre as quais,mantém a de nome Josefina Dias Barbosa matriculada desde 5-2-1855, que embora com dozeanos e quatro meses de idade, submetida e aprovada nos exames das diferentes matérias deensino, ainda não estava “promta” para o exercício das prendas domésticas – “circunstanciamuito necessária às senhoras, e sobremaneira á pobres”, o que se reforçava pelo fato de a mãedesejar que a filha fosse encaminhada para o exercício do “Magistério Publico”. A professorarequer o atestado “ordem que tenho ganho com honra, assiduidade e aproveitamento das alumnas”.Por fim, a professora roga ao Vice-Presidente da Província para que atenda à sua “justa queixa,e rasão” fazendo com que ela, “como mulher seja mais respeitada”, esclarecendo se “deve ounão deve” obedecer às ordens do inspetor. É mais contundente ainda: “o dito Inspector hecompetente para determinar ás Professoras a expulsão das alumnas de suas respectivas escholassem rasão para isso”? (Episódio 3 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

A Professora Francisca descreve o modo de fazer do inspetor e ao fazê-lo também constróiuma representação do mesmo.

“(...) o dito Inspector quer por força e a todo custo que a dita alumna sem a menor rasão,seja eliminada da matricula e expulsa da eschola (...) dirigio-se para a misera alumna e lhe disseVmce. não venha aqui mais, porque está despachada”. O inspetor teria condicionado a ofertado atestado à saída da aluna: “Se a Suppe. quiser o attestado para receber o seu ordenado, háde expulsar da escholla a alumna”. Para a professora um “procedimento bem estranho a tãonobre ramo do serviço publico que”– , segundo lhe parece “talves seja o primeiro caso que temapparecido, e sido praticado por empregados da Instrucção Publica.” Nos 22 meses de trabalhoda professora, o inspetor teria feito uma única visita, no dia 30-4-1859, “motivo porque meconsidero autorisada para diser que o Inspector he o menos próprio para me fazer a falsaaccusação, qual a de mentirosa, porque elle falla sem conhecimento de causa”. (Episódio 3 –4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

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De acordo com o Regulamento da Instrução Pública de 1851, o inspetor deveria visitar asescolas uma vez por mês (Art. 12, § 8º, Reg. 1851), mas o que se nota é que a professora nãoapenas pretende revelar tal falha do inspetor como pretende construir uma associação comoutro fato, que acena para relações de outra ordem, extravasando com os limites das questõesda instrução pública. Ou será que não? De qualquer maneira é assim que se fica sabendo dealgumas particularidades sobre os preparativos de uma festa tradicionalmente realizada nacomunidade de Villa Bella da Princeza: a Festa do Espírito Santo.

O procedimento do Inspector do Districto a tal respeito Exmo. Senr. tem sido hummysterio incomprehensivel por muita gente de tino, porém afinal o Inspector revelou odito mysterio, e dizem que por dous motivos o Inspector se afastou do caminho darasão, o primeiro por que protestou tirar á Suppe. todas as alumnas alem do numeromarcado por lei, para não ter gratificação, julga-se para nutrir meras vinganças, e osegundo, porque o dito Inspector feito nesta próxima passada festa do Espiro Santo (sic)hum Theatro na rua, para representar o que só elle sabe, de sorte que quando foi nadistribuição dos papeis para a representação, quis que a dita Josefina também aceistassehum papel para representar, ao que a Mai da dita Josefina se recusou com a expulsão daeschola. (Professora Francisca Augusta Cortez se dirige ao Presidente da Província, sr.Amaral Gurgel, 23/07/1859, Episódio 3 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

Se a representação apresentada pela professora, cujo teor é a denúncia sobre a condutado inspetor e, de quebra, a queixa pelo não recebimento do atestado e por conseqüência, daimpossibilidade de receber o ordenado, o que se vê na defesa apresentada pelo inspetor é atentativa de, ao esclarecer o motivo sobre o qual é posto na condição de acusado, forjar ummovimento de defesa cuja narrativa é construída na produção de uma representação negativa daparte de quem acusa. Assim, a professora Francisca também é descrita pelos seus modos defazer e os contornos de sua vida profissional e pessoal são representados pelo inspetor mais oumenos da seguinte maneira.

Esta professora é uma “fingida” que fazia de conta que não conhecia a conduta repreensívelde Josefina porque tinha relações de amizade com a sua mãe. Abandonou a cadeira por mais dedezesseis dias “sem fazer-me o menor aviso, nem quando se afastou e nem quando regressoupa. a Escólla”. Esta professora

entende que não deve guardar nhua atenção pa. com o Inspector de Districto, que estetem por dever dar aos Professores o attestado pa. receberem seos vencimentos sem omenor exame, A professora tem deixado muitos dias de dar aula, outras veses alterado odia de feriado da semana a seu arbítrio, sem dar-me a menor saptisfação, athe hoje aindanão me remetia o livro de matricula pa. eu o rubricar como por veses lhe tenho ordenado,e tem por costume não accusar o recebimento dos meos officios desde que lhe façoalgumas advertências, ou informações passo.” (Inspetor de Distrito, Antonio Luiz Pereiraao Inspetor Geral da Instrução Püblica, 18/08/1859, Episódio 3 – 4935 02 – Série OfíciosDiversos – AESP).

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O inspetor se diz até propenso a desculpá-la embora destaque o fato de a professoraformular uma queixa a alguém que lhe é superior (ele mesmo) e mais que isto, endereça-la nãoao Inspetor Geral, como era de se esperar, mas ao Governo da Província.

Mais parece uma tentativa de trazer para o seu lado o Inspetor Geral insuflando-o sobreo aspecto de que a professora teria desrespeitado a imposição hierárquica de ambos os inspetores:distrital e geral. Num gesto estratégico retarda o detalhamento de elementos acerca dospreparativos da Festa do Espírito Santo, para dar conta de traços da relação da professora como seu tutor, o Tenente Coronel Cortez. A professora teria uma relação de “abdicação e sujeição”tamanha em relação com o seu tutor a ponto de ter sido ele quem redigiu de “próprio punho” arepresentação e a teria feito assinar.

A casa onde funcionava a escola cuja professora era Francisca pertencia ao TenenteCoronel Cortez, desafeto do inspetor distrital. O Tenente Coronel por ser o dono da casa e otutor da professora se via autorizado a freqüentar a casa que era o lugar de funcionamento daescola. Ao que, o inspetor distrital advertia:

Sou de opinião, e commigo todos pensão que desde que hua alumna chegou no estado depuberdade e se der pr. prompta nas matérias do ensino convirá mto. que ella não continuena Escholla emqto. nella tiver entrada franca como tem o tene. Cel. Cortez homemconhecido e tido pr. todos como de costumes depravados immoraes, e de hua vida depúblicos escândalos [...] vivendo elle na Villa com hua meretriz que he tia carnal daProfessora e irmaã (sic) germana de hua outra concubina que fora do mmo. Cortez.(Inspetor de Distrito, Antonio Luiz Pereira ao Inspetor Geral da Instrução Püblica, 18/08/1859, Episódio 3 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

A professora era tutelada pelo Tenente Coronel que era protegido pelo Juiz Municipalque juntos formavam uma aliança que, na opinião do inspetor distrital, representava uma ameaçaao serviço público e ao crédito que o inspetor tinha de ter com aqueles que tinham de estar nacondição de seus subordinados. Para afirmar a sua atitute, o Inspetor apontava informaçõessobre a filiação e costumes de Josephina que corroboravam a sua posição.

Esta alumna tem huma educação péssima, he huma pardinha47

maior de 12 annos, filhade uma prostituta publica e escandalosa de nome Amalia Lopes de Siqra., que a educousem honestidade, deixando-a a vagar pelas ruas, tabernas e casas d’outras prostitutas,mandando-a carregar potes d’agua empregando-a em outros misteres, q. não direi, napresença de V. Sª., de que qualidades são. Constou-me que ella não só fazia pinturasdeshonestas, como proferia palavras indecentes no recinto da Eschóla e antes decomeçarem as aulas, como que entretinha palavras maliciosas com outras meninas. (...)Fiquei surprhendo. quando li na representação, em referencia á esta alumna, que sua Mãe

4 7Pardo é um termo intermediário entre o preto o branco que designa as pessoas de aparência mista. Bourdieu vê noemprego do termo “pardo” a universalização de conceitos como uma estratégia do imperialismo cultural e dadesistorização dos mesmos. CATANI e NOGUEIRA Escritos de Educação.1998, p. 26.

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a destina para o Magistério publico, pr. q. em verdade os precedentes e a educação qe.tem dado á filha não aucthorisão a supposição de q. ella a destina pa. o magistério.(Inspetor de Distrito, Antonio Luiz Pereira ao Inspetor Geral da Instrição Püblica, 18/08/1859, Episódio 3 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

O inspetor produz uma representação moral de mulher que é dada pela relação comespaços públicos por ela freqüentados. A rua e a “taberna” eram espaços públicos autorizadosao segmento masculino da sociedade. O fato é que, Josephina era apontada como a filha de umaprostituta e tinha o costume de freqüentar tabernas e vagar pelas ruas – espaços públicos poucoafetos ao trânsito feminino naqueles tempos. A rua era um espaço público freqüentado porhomens e pela “escravaria”. Parda, Josephina muito tinha a raça negra entre os seus antecedentes,praticava serviços como carregar potes d’água na rua. Estas qualificações contribuem na definiçãodos contornos de sua origem sócio-econômica, indícios que compõem o pano de fundo de umasociedade escravista.

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No estudo sobre a legislação e os usos dos espaços públicos em São Paulo, TerezaRolnik (1999) define o espaço público das ruas paulistas até anos sessenta do século XIX.

Assim era a rua, o espaço público, o lugar da escravaria, e também da libertinagem edevassidão, imediatamente identificada com quem ali permanecesse. O público como umdomínio imoral significa coisas diferentes para homens e mulheres. Para as mulheres,era onde se poderia perder a virtude, desgraçando-se. Para os homens, tinha uma conotaçãomoral diversa. Sair em público era a possibilidade de livrar-se da repressão e do autoritarismoda respeitabilidade encarnados na figura do marido e do pai. Para os homens, portanto, aimoralidade da vida pública, era uma região de liberdade, e não de desgraça. (ROLNIK,1999, p. 34).

49

Havia os espaços públicos de socialização feminina, as festas e as procissões (ROLNIK,1999, p.29). O Inspetor Distrital era o encarregado de uma “representação theatral” por ocasiãoda Festa do Espírito Santo, evento para o qual contava com a participação das “primeiraspessoas e authoridades da Villa”, além da “assistência do Delegado de Policia e de immensoconcurso de famílias.” Neste ponto, o inspetor parece esquecido de todos os adjetivos queempregou na tarefa de depreciação de Josephina, predominando a indicação dada por algumaspessoas a respeito do talento de Josephina. Note-se que no mesmo movimento de qualificaçãoda festa, das pessoas que integram a representação teatral e da sua assistência ele admite incluirJosephina num papel importante do evento.

4 8O modo como os textos normativos da Instrução Pública trataram a questão escravista aparecem no item: Cartografiada escola: inventário do aluno (Metáforas espaciais: saber e poder).

4 9Nesta obra, Tereza Rolnik realiza um estudo sobre a legislação e o uso de espaços públicos em São Paulo. O marcoinicial é o ano de 1887, data na qual teria sido publicada a edição do Código Municipal de Posturas que inovaria commudanças significativas na reorganização dos espaços públicos de São Paulo. No começo da década de setenta, as ruase praças se tornam espaços públicos de socialização dos homens enquanto as festas e procissões eram espaçospúblicos de socialização das mulheres. (ROLNIK, 1999, p. 29).

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Alguns se lembrou da alumna Josephina como tendo propensão e desembaraço pr. Theatroe que já a tres annos tinha representado na Freguesia de S. Franco. Município de S.Sebm. em um theatro publico como VSa. [...] attestado de pessoas qualificadas d’aquellaFrega. e desta Villa (...) porem sua Mae que esta na intimidade do Tenente Cel. Cortezque vergonhosamente e por despeito ao festeiro se retirou da Villa no dia da Festa com aProfessora e a sua amasia, recusou-se, pr. fazer a vonte. de estes, se prestou a filha, como que ninguém, e zangou pr. q. outras famílias se prestavão a desempenhar as partes deq. forão incumbidos (...). (Inspetor de Distrito, Antonio Luiz Pereira ao Inspetor Geralda Instrução Püblica, 18/08/1859, Episódio 3 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos –AESP).

Nalguns trechos, o inspetor demonstra-se atento à manipulação que cada um pode fazerno emprego que faz da linguagem escrita ao falar de si mesmo: “(...) não quero fallar e nemcontestar a ostentação que ella [a professora] repetidas vezes fás de sua probidade e do seuestado de donsella, he um juiso proprio que cada um pode fazer como lhe aprouver”. Chama aatenção para um possível deslize da professora, destacando e cruzando datas dos preparativosdo teatro com a data que teria visitado e determinado a saída de Josephina da escola.

(...) foi em abril, como confessa a Professora, q. determinei a sahida desta alumna, otheatro foi porem a 12 de Junho tendo-o distribuído os papeis em meados de Maio demaneira q. em Abril não se tratou de theatro que foi hua Idea que appareceo próxima áfalta. (Inspetor de Distrito, Antonio Luiz Pereira ao Inspetor Geral da Instrução Publica,18/08/1859, Episódio 3 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

Por fim, se diz servidor público “á muito annos” como “Inspector d’Aulas e Membro daCommissão Inspectora”: “tenho mantido sempre a harmonia entre os Professores e com todo ozelo pugando pelos interesses delles, tenho sido pontual na remessa dos relatórios trimensaes,promovendo sempre os melhoramentos desta Classe”. (Inspetor de Distrito, Antonio Luiz Pereiraao Inspetor Geral da Instrução Püblica, 18/08/1859, Episódio 3 – 4935 02 – Série OfíciosDiversos – AESP).

O recurso astuciosamente usado de ambas as partes na desqualificação de uma partesobre a outra promove não apenas um efeito de confusão da parte de quem ocupa o lugar deajuizar a situação como também oportuniza o confronto com questões constitutivas da escola.Exemplo disso é o momento em que a defesa ataca revelando a relação que a professora tinhacom o seu tutor, num gesto que parece sair da escola para explicar um problema da escola. Aquestão latente poderia ser os limites que pudessem definir os contornos do dentro e do fora daescola. Mas esta escola funcionava nas dependências de uma casa, isto é, em espaço doméstico.Então a questão poderia ser o espaço de funcionamento da escola como fora do espaço doméstico.Certamente que era mais que isto mas também era isto.

Neste jogo de sair da escola para explicar o problema de dentro da escola, artifíciotambém empregado pela professora Francisca, insinuando que o Inspetor Distrital estavainteressado em Josephina por ocasião da festa do Espírito Santo, desprende-se uma questão

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que parece acenar para a relação da escola e dos agentes imediatamente ligados à escola com asua representação no plano exterior à mesma escola. Assim, percebe-se que o Inspetor daInstrução Pública era também o articulador de um evento social da comunidade, enquanto aprofessora viajou para outra localidade no dia da festa, quando era de esperar pelo seucomparecimento ao evento da comunidade local. As relações sociais travadas fora da escolaconstituíam medidas de valor sobre os agentes internos da escola.

A verdade da pergunta: uma demanda da petição

Em Villa de Santa Izabel o caso foi parar na polícia. Nesta vila, que era termo e comarcada cidade de Jacareí

50, o professor responsável pela Escola Masculina de Primeiras Letras, sr.

Vicente Antonio da Cunha, era acusado pelo inspetor Distrital de conduta indesejável: malcomportamento civil e moral, falta com os deveres de funcionário público, hábito de se embriagare andar pela rua provocando outras pessoas, número baixo de alunos, baixo aproveitamentodos poucos alunos, hábito de dormir na mesa da sala de aula, pouca dedicação ao magistériodevido ao costume de caçar passarinhos e, por fim o hábito de atirar foguetes a cada vez querecebia alguma correspondência oficial da parte da Inspetoria Geral de Instrução Pública.

51

A conduta do professor levou o inspetor distrital, sr. Felicíssimo Firme Ferraz, àSubdelegacia da Villa de Santa Izabel, onde deu entrada numa petição que constava de denúnciae indicação de oito testemunhas

52 que deveriam ser interrogadas pelo Subdelegado de Polícia,

sendo as questões já previamente estabelecidas pelo inspetor distrital:

1º Qual o comportamento civil e moral do professor publico d 1ªs lettras d’esta VillaVicente Antonio da Cunha.2º Quanto alumnos frequentão a aulla.3º Qual o approveitamento d’elles4º Se durante o tempo que aqui existe aquelle empregado, tem sahido ou existe em suaaula, algum alumno que possa saber correntemente alguma das matérias que se costumaensinar.

5 0Jacarehy – Povoação situada à margem direita do Rio Paranaíba, na estrada de São Paulo para o Rio de Janeiro.Fundada em 1852 por Antonio Afonso e seus filhos que, com suas famílias e agregados, foram estabelecer-se junto doreferido rio. Foi elevada à cidade pela Lei Provincial de 3 de abril de 1849. Em 1870 era um importante municípioprodutor de café. Na mesma data também possuía a casa da Câmara, a cadeia, “uma das melhores matrizes daProvíncia”, três igrejas: Carmo, Rosário e Santa Cruz, uma casa de caridade, quatro cadeias de instrução pública paraambos os sexos. Em 1876 possuía 25 eleitores num total de 10.194 almas (incluindo 1574 escravos). (MARQUES,1980,p. 8, vol. II).

5 1Episódio 4 – Professor João Antonio de Oliveira Campos, Freguesia do Braz, 1859. 4935 02 – Série Ofícios Diversos– AESP.

5 2Testemunha – Pessoa natural que, não sendo parte diretamente interessada no objeto do direito, é convocada paraatestar, judicial ou extrajudicialmente, a existência ou esclarecimento de ato ou fato que tem conhecimento. ACQUAVIVA,2000, p. 1284.

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5º Por que rasão diversos Pais d família tirarão seos filhos da aula do dicto Professor.6º Finalmente qual o emprego diário daquelle empregado (Autos de Justificação

53, da

parte do Inspetor de Distrito, Felicíssimo Franco Ferras à Subdelegacia da Vila de SantaIzabel, 24/10/1864, Episódio 4 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

Tanto como as perguntas que deviam constar do interrogatório, o Inspetor Distrital tambémdefinia os nomes das testemunhas. E se o fazia é entre outras coisas, porque existia um perfiladequado para a tarefa.

A média de idade das testemunhas arroladas pelo inspetor distrital e ouvidas peloSubdelegado era de 44,5. 100% casados, todos do sexo masculino, somente um não exerce aprofissão de negociante e embora alguns sejam naturais de outras localidades todos sãodomiciliados na vila onde funciona a escola provida pelo Professor Antonio Vicente da Cunha.

Intimadas54

a comparecer na casa do subdelegado, local de funcionamento daSubdelegacia, as testemunhas submetiam-se ao ritual do juramento de verdade de mãos postas

5 3ACQUAVIVA

5 4Intimação – Ordem feita a lguém, por autoridade pública, para que faça ou de ixew de fazer algo. A intimação tem ocaráter de uma ordem para que se faça ou se deixe de fazer algo, e por isso não se confunde com a citação, querepresenta, apenas, uma comunicação a alguém para que compareça em juízo, a fim de responder à lide, sob pena derevelia. ACQUAVIVA, 2000, p. 767.

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sobre uma bíblia.55

As questões efetivamente feitas às testemunhas eram mais ardilosas queaquelas apresentadas na petição do inspetor distrital. É o que se nota na assentada

56 – registro

do escrivão.

Perguntado sobre o comportamento civil e moral do actual professôr de primeiras lettrasdo sexo masculino desta Villa, Vicente Antonio da Cunha?Perguntado si sabia que o professôr Vicente Antonio da Cunha quando se embriagacostuma andar pela rua provocando a alguns indivíduos?Perguntado si sabe que o Professor Publico desta Villa, quando recebe algumasinstrucçõens ou officios como ultimamente, do Doutor Inspector Geral da instruçãopublica, atira foguetes mostrando-se muito satisfeito?Perguntado sobre o segundo item, sobre o numero dos alumnos.Perguntado sobre o terceiro item, se os alumnos tem aproveitado o ensino? Perguntadose sabia que o professôr é assíduo no ensino?Perguntado sobre o quarto item si da aula do actual professor, tem sahido ou nella existealgum alumno que possa saber correntemente algumas das matérias que se costumãoensinar?Perguntado sobre o quinto item, qual a razão por que diverços pais tem retirado daquellaaula seos filhos?Perguntado sobre o sexto item, se sabe que aquelle professôr se emprega no seo ministérioou não? (Assentada, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila de Santa Izabel, assinada peloescrivão Olympio José Cortez, além de P. M. de Camargo e Felecissimo Franco Ferraz,Episódio 4 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

Se a determinação de quem seriam as testemunhas, a relação das questões que constariamdo interrogatório tornam suspeitos os procedimentos do Inspetor Distrital, a incrementação dasessão de inquirição não apenas revela indícios de um procedimento que já antecipa a culpa doacusado como também reproduz uma “ação técnica de interrogatório tipicamente sugestionadora,pretendendo encaminhar as respostas das testemunhas para vias pré-estabelecidas”, isto é,sugerindo às testemunhas o conteúdo da resposta. Há uma clara tentativa, da parte do InspetorDistrital, de fazer coincidir a resposta da testemunha com a verdade que ele já detém. A supostaimpessoalidade da escrita do escrivão não encobre o compromisso entre a acusação e astestemunhas traduzido em princípios comuns no imaginário das pessoas: tradição, moral,costumes

57 – o que está em questão é a conduta moral de um cidadão responsável pela tarefa de

instrução da mocidade.

5 5No ano de 1851 a Livraria do Largo do Collegio anunciava a chegada de diversos livros, entre os quais, “Bíblia daInfância (A) com estampas 3 vol. 2.000”. (Correio Paulistano, 23/05, p. 4). Em 1878 poderia se ler o seguinte anúncio:“Bíblias em portuguez, francez, allemão e hespanhol. NOVOS E VELHOS Testamentos nas mesmas lingoas achao-se á venda na Rua do Rozario nº 7”. (Jornal Correio Paulistano, 16/10/1858, p. 4.).

5 6Assentada – Sessão forense para inquirição de testemunhas, termo que se lavra do depoimento de testemunhas.

5 7Costume – O termo costume deriva do latim consuetudine, de consuetumine, hábito, uso. É a prática social reiteradae considerada obrigatória. O costume demonstra o princípio ou a regra não escrita que se introduziu pelo uso, com oconsentimento tácito de todas as pessoas que admitiram a sua força como norma a seguir na prática de determinadosatos. Embora alguns autores não façam distinção entre costume e uso, outros advertem que o costume se distingue dosusos sociais em geral porque a comunidade o considera obrigatório para todos (opinio necessitatis), de tal sorte que a

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Para conferir esta indução na relação entre a pergunta e a resposta, serão destacadasalgumas das respostas registradas pelo escrivão

58, sr. Olympio Jose Cortez, responsável pela

escrituração do inquérito:

– Testemunha: Paulo Rodrigues.Respondeo que o professôr desta Villa , não tem bom comportamento civil e moral, nãosó que falta com seos deveres na qualidade de empregado publico como também porcostumar a dar-se em embriagues. (Assentada

59, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila de

Santa Izabel, assinada pelo escrivão Olympio José Cortez, além de P. R. de Camargo eFelecissimo Franco Ferraz, Episódio 4 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

– Testemunha: João Corcino.Respondeo que comportamento do professôr desta Villa é máo, não só por ser homemprovocador, como tambem por se dar muito a embriagues, a ponto de ter constatado aelle testemunho ter havido occasião de se sêr publicamente o professôr cahido pela rua.”(Assentada, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila de Santa Izabel, assinada pelo escrivãoOlympio José Cortez, além de P. M. de Camargo, João Cursino dos Santos e FelecissimoFranco Ferraz, Episódio 4 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

– Testemunha: João Barbosa.Respondeo que o comportamento do professor é máo, por que tem visto ao mesmovarias veses embriagado e provocando varias pessoas. (Assentada, 26/10/1864,Subdelegacia da Vila de Santa Izabel, assinada pelo escrivão Olympio José Cortez, alémde João B. dos Santos e Felecissimo Franco Ferraz, Episódio 4 – 4935 02 – Série OfíciosDiversos – AESP).

– Francisco Arantes:Respondeo que o comportamento do professor é máo, visto constar-lhe que o mencionadoprofessôr costuma embriagar-se com bebidas espirituozas. (Assentada, 29/10/1864,Subdelegacia da Vila de Santa Izabel, assinada pelo escrivão Olympio José Cortez, alémde F. A de Souza e Felecissimo Franco Ferraz, Episódio 4 – 4935 02 – Série OfíciosDiversos – AESP).

As respostas dadas pelas testemunhas atestam a ação técnica da pergunta que traz embutidaa resposta e mais que isto parece ser moldada pela linguagem supostamente impessoal do escrivão.

Esta dimensão de reconhecimento da verdade sobre a conduta do Professor AntonioVicente da Cunha constitui domínio do Inspetor Distrital de Santa Izabel e se traduz no conjunto

sua violação acarreta uma resposabilidade jurídica e não apenas uma reprovação social. O costume não se confundecom as demais normas sociais ou de cortesia, desprovidas de coercitividade. O costume é a mais antiga e autênticafonte de direito, e a célebre Escola Histórica de Direito, surgida no século XIX, sob a orientação de Savigny, ressaltoua importância do costume para o direito, pois aquele é a própria exteriorização do espírito nacional (Volksgeist).ACQUAVIVA, 2000, p. 438-439.

5 8Não se sabe dos valores cobrados pelo escrivão Olympio Cortez, da Vila de Santa Izabel no ano de 1864. Mas em1876, os preços dos serviços de um escrivão estavam sendo revistos, exemplo: “Por escrever o inquérito de cadatestemunha, no depoimento de partes 2$000. Havendo repergunta, ou reinquirição, mais 1$000”(Arts. 1º e 2º, Planopara a reforma do actual regiemnto de custas na parte relativa aos escrivães, contadores e participadores, organisadopela commissão desta associação” Diário de São Paulo, 28/10/1876, p. 1-2.

5 9ACQUAVIVA

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da petição e Autos de Justificação apresentados à autoridade policial da localidade. Mas eleprecisa desencadear meios para que a sua verdade sobre a conduta do referido professor sejaatestada pelas testemunhas dentro dos trâmites formais da polícia. Nesta empreitada, a tarefa doescrivão é das mais relevantes, valendo conferir noutro conjunto de respostas o enquadre que aescrituração policial dá à pergunta respondida.

Testemunha – Paulo Rodrigues:Respondeo saber, porque ultimamente vio o professôr atirar foguetes, visto que pela vóspublica si sabe que aquelles foguetes foi por ter elle professôr recebido um officio doDoutor Inspectôr geral da instrucção.(Assentada, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila deSanta Izabel, assinada pelo escrivão Olympio José Cortez, além de P. R. de Camargo eFelecissimo Franco Ferraz, Episódio 4 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

T. Antonio Perigrino:Respondeo saber, por que tem visto como pela ultima vês assim o praticou quandorecebeo um officio. (Assentada, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila de Santa Izabel, assinadapelo escrivão Olympio José Cortez, Antonio Peregrino e Felecissimo Franco Ferraz,Episódio 4 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).T. João Corsino:Respondeo que sim, por ter visto. (Assentada, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila de SantaIzabel, assinada pelo escrivão Olympio José Cortez, além de P. M. de Camargo, JoãoCursino dos Santos e Felecissimo Franco Ferraz, Episódio 4 – 4935 02 – Série OfíciosDiversos – AESP).

O foguete, ou fogo do ar é artefato festivo empregado tanto nas festas religiosas como nasprofanas. Câmara Cascudo (2000) informa que o foguete chegou ao Brasil no final do séculoXVII pelas mãos dos portugueses que os buscavam na Índia. Desde então vem cumprindo umasignificativa função social e política nas vitórias partidárias. Anunciador de concentração entusiásticaque vale para zombaria, apupos ou galhofas. Está presente nos casamentos, nas novenas, procissõese pagamentos de promessa. Podia-se encontrar em cada uma das vilas ou freguesias da Provínciapaulista daquele período um ou dois fogueteiros.

60 Mas o uso que o professor Antonio fazia do

foguete estava sendo questionado pela polícia de Santa Izabel.As perguntas do subdelegado da polícia sobre o uso que o professor fazia do foguete

receberam os seguintes registros do escrivão:

T. João Corcino:Perguntado se sabe quando o Professor Publico desta Vila recebe alguns officios doDoutor Geral da Instrucção, atira foguetes como ultimamente fês quando recebeo umofficio? (Assentada, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila de Santa Izabel, assinada pelo

6 0Em 1878, podia ser lido um anúncio da Casa Garraux que oferecia a venda de “Livros de sorte Para as noites de SantoAntonio, São João, São Pedro, e Sant’Anna”, entre os quais, havia o Manual do fogueteiro. Jornal A Província de SãoPaulo, 27/05/1878, p. 3.

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escrivão Olympio José Cortez, João Corsino e Felecissimo Franco Ferraz, Episódio 4 –4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).Testemunha – Paulo Rodrigues:

Perguntado se o Professor Publico desta Villa, quando recebe algumas instrucçõens ouofficios como ultimamente, do Doutor Inspector Geral da instrucção publica, atira foguetesmostrando-se muito satisfeito? (Assentada, 26/10/1864, Subdelegacia da Vila de SantaIzabel, assinada pelo escrivão Olympio José Cortez, além de Paulo Rodrigues e FelecissimoFranco Ferraz, Episódio 4 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

Fica muito evidente na ação técnica da formulação da questão a força sugestionária daresposta. A verdade do inspetor sobre o professor é lançada na pergunta pra ser respingadapela resposta. Não se está perguntando se o professor comete o ato de atirar foguetes, a perguntaé se aquela pessoa na condição de testemunha sabe que o professor tem o hábito de atirarfoguetes quando recebe correspondências do Dr. Diogo, Inspetor Geral. Nenhuma dastestemunhas respondeu ter ouvido o estampido dos fogos mas a maioria teria “visto” e somenteuma das testemunhas, Jose Cypriano, respondeu não saber deste costume do professor. JoãoBarbosa, outra testemunha respondeu que “o mesmo professôr tem dito que quantos officiosvierem hão de ser assim festejados, e que podem ser quantas accusações quiserem”. A informaçãoveiculada por esta resposta permite inferir que o referido professor já havia sido advertido pelaInspetoria Geral e mantinha a mesma postura, tendo o caso saído do âmbito das instituições dasautoridades constituídas da Instrução Pública da Província de São Paulo para a instância policial.

O escárnio depreendido da formulação desta pergunta está fundado no ato galhofeiro queo professor mantinha com a correspondência oficial, numa expressão de resistência zombeteiraàs relações de poder imbricadas na hierarquia da produção do funcionamento do serviço público.

Não se sabe qual tenha sido o desfecho oficial do caso de Vila Isabel, sendo importantedar conta de algumas questões postas pelo enredo do professor beberrão e fogueteiro. Nota-seque na arquitetura que pretende interrogar para aliar testemunhos de uma verdade pré-estabelecidahá o cuidado de evidenciar aspectos de uma conduta pessoal dentro e fora da escola que édesaprovada tanto dentro como fora da escola. O professor Antonio não apenas teria sido vistoembriagado na rua – espaço público, como teria sido flagrado dormindo sobre a mesa diantedos alunos na “aula” – delatava a “vós publica”. A freqüência de alunos era cada vez menor,tendo havido dia de um único aluno comparecer à aula. Uma das testemunhas que era pai de umaluno teria dito que mesmo mandando o filho à escola “sempre volta disendo que não há aula”.Outra testemunha reverberava elementos da pergunta advertindo sobre o fato de “os filhos nadaaprenderem, tanto pelo contrario, poderem ficar viciados a exemplo de seo mestre.”(João Barbosados Santos, 26/10/1864, Episódio 5 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

As respostas obtidas das testemunhas reforçam o alarme disparado pela pergunta: anecessidade de saneamento do problema, a destituição de Antonio Vicente da Cunha do cargode professor. Tratava-se de um profissional que não tinha “capacidade para exercer dignamente

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o magistério público” porque o “emprego diário” do sr. Antonio Vicente da Cunha não era oofício da instrução mas as caçadas de passarinhos, pescarias e pagodes. Assim, a petição a quedeu entrada o Inspetor Distrital no “Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de miloito centos e cessenta e quatro na Vila de Santa Isabel, Termo e Comarca da Cidade de Jacarehy,aos vinte e quatro dias do mês de Outubro” não apenas dava conta do nome do acusado, dastestemunhas, das questões como também do julgamento do professor. O que se seguiu à petiçãoconstituía protocolo, o professor foi julgado e condenado na petição.

Mesa: artefato material comum nos espaços público e doméstico

Enquanto o Professor Antonio Vicente da Cunha debruçava-se e dormia sobre a mesa naescola masculina de primeiras Letras da Vila de Santa Isabel, havia um outro professor que eraacusado por “hum pae de familia” de, entre outras, ter roubado a mesa da escola e levado-apara sua casa.

61 Este Professor era o sr. João Maria de Toledo, casado com a Professora Elisa

Carolina de Toledo Dantas. Havia cinco anos que este professor era o responsável pela EscolaMasculina de Primeiras Letras da Vila da Penha.

62

Um pai de família anônimo assumindo a representação do poder público encaminhou-seao Inspetor Geral denunciando a conduta daquele professor que se mostrava desleixado enegligente com a sua função. A carta redigida pelo pai anônimo possui aspectos que permiteminferir da instrução que o delator poderia ter recebido. Nota-se que mescla elementos dedepreciação pessoal com uma conduta profissional negligente.

A Nação paga ao Senr. João Maria de Toledo para ser Professor de meninos n’esta Villa,e estamos sem ter quem ensine, por que elle é muito preguiçoso não ensina nada, nenhumpaê quer mandar seos folhos por q. perdem o tempo, e as despesas q. fazem. A escolad’elle dura de meia hora, quando mto. huma hora; os meninos entrão elle deixa elles e vaiá casa, ou estás pela porta, e os meninos brigando dentro. Huma meza que tinha ellelevou pa. a caza delle os meninos escrevem no banco, ajoelhado no chão q. sempre estámto. sujo, parece q. varre só ua vês no mês, elle não tem assento pa. si, esta de pé ousenta-se no banco, ou esta fora: a 6 annos q. ensina, e não tem hum só discípulo q.preste: continuadame. Vai dar escola em casa d’elle, onde esta a mer. d’elle ensinandomeninas (...). (“Hum pae de família” dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública,Penha, 08/10/1864, Episódio 5– 4996 01. MIP – AESP).

6 1Episódio 5 – Professor Felicíssimo Franco Ferraz, Villa de Santa Izabel, 1864. 4996 01. MIP – AESP.

6 2Senhora da Penha de França – Povoação situada a 1 ½ léguas (8,3 km) ao nordeste da capital de São Paulo. Em 1870possuía a matriz e a igreja do Rosário no seu distrito, a capela de São Miguel no arraial do mesmo nome, duas escolasde instrução pública para ambos os sexos e cinco eleitores num universo de 1983 habitantes (1876). MARQUES,1980,p. 166, vol. II.

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O pai traz à tona vários traços constitutivos da escola ao notar as faltas do Professor. Afalta de mobiliário é vista como uma falta do professor. Em estudo sobre o inventário materialdas escolas existentes na província paulista foi possível verificar que nenhuma das tabelas incluíavasouras entre os materiais destinados às escolas públicas.

63 Logo, se o pai reconhece que uma

vez por semana o professor varria a escola, pode-se pensar que tendo levado a mesa do espaçoda escola para o espaço doméstico, o professor trazia a vassoura de casa para a escola.

64 É

claro que isto não encobre as motivações da denúncia formulada pelo pai que estabelece umarelação de causalidade entre a queda crescente da freqüência escolar com a inépcia do professor.Uma denúncia que, se devidamente constatada, poderia culminar com a suspensão, multa oudemissão prevista no Regulamento de Instrução Pública de 1851.

Um outro traço é questão de gênero trazida pelas condições espaciais de funcionamentoda escola. O casal de professores mora na casa em que a Dona Elisa ensina às meninas. Oprofessor ensina meninos numa outra casa mas tem o hábito de ir para casa, lugar onde funcionaa escola feminina e lá “dar escola” para meninos. Isto é, a residência do casal torna-se o lugar defuncionamento de duas escolas, uma para meninos e outra para meninas. O que era instruídopela legislação da instrução como prática não autorizada. Ainda que se previsse que a baixademanda de alunos na localidade poderia servir de precedente para a reunião de meninos emeninas numa só escola. O professor não estava preocupado com este fato embora de acordocom dado do “pai anônimo” a freqüência de sua escola sofrera uma queda de 60 para 4 alunos.

Diante do acontecido, o professor reuniu atestados de dez testemunhas, sendo a maioriaconstituída de pais, padrinhos e avós de alunos matriculados naquela escola. Cada uma dastestemunhas revela ter um ou mais filhos matriculados e com boa aprendizagem obtida dosensinamentos do Prof. Jose Maria. O próprio professor declara ter entre os matriculados doisdos seus filhos como seus alunos.

O reconhecimento sobre a acentuada baixa da freqüência é admitido mas a sua explicaçãoé dada por motivos externos à escola, como se depreende do atestado emitido por João BatistaSoares, Inspetor do 1º Quarteirão de dentro da Villa da Penha.

(...) o Professor João Maria de Toledo Dantas, é pessoa de probidade e goza de grandeconceito de todas as pessoas desta Vila, tanto como empregado publico como Particular;acha-se presentemente com poucos mininos em sua escola em virtude da decadência q.

6 3Barra, Valdeniza Maria da. Da pedra ao pó: o itinerário da lousa na escola paulista do século XIX. DM-PUCSP.2001.

6 4A questão de higiene escolar, posta pelo pai de aluno da localidade da Penha, ganharia a preocupação dentro daprogramação da Escola Normal. No ano de 1876, Felismino Vieira Cordeiro, redigiu o seguinte texto no Terceiro Pontoda prova escrita de Pedagogia: “O professor deve varrer a sua aula ao menos uma vez por dia, deve conservarventiladores para renovar ar na aula, quando não conseguir deve substituir por vidraças, porém de modo que fique bemalta para não vir correntes de ar encanado e nem que a claridade venha de frente ou de trás mas sim dos lados.” EscolaNormal de São Paulo, 19 de dezembro de 1876. Provas escriptas de 1876: Arithmetica, Pedagogia. 5129 01 MIP –AESP.

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tem tido esta Villa em razão de mudarem-se algumas Familhas, da praça para os sitios, eoutras para fora desta Villa tanto que ezistindo em outros anos mais de des Lojas deFazenda, e hoje se conta quatro. Não á freqüência de Povo nos dias de semana, a maiorparte são moradores do sitio e estes não mandão seus filhos para escola. Os poucosmeninos q. eziste pela pobreza de seus Paes são impregados no servisso deLavoura.(Atestado de João Batista Soares, Inspetor do 1º Quarteirão de dentro da Vila daPenha, 27/01/1865, Episódio 5 – 4996 01. MIP – AESP).

O cruzamento das vozes do pai anônimo com o inspetor do quarteirão não resulta numaamostra suficientemente razoável para condenar ou absolver o professor. E a explicação para aqueda da freqüência não se concentra na argumentação unilateral da acusação ou da defesa. Érazoável pensar que o emprego na lavoura foi um dos motivos de resistência dos pais frente aodispositivo da aliança entre escola e família no curso do século XIX, devendo-se notar que emmeados dos anos 60, uma série enorme de artigos publicados no Jornal Correio Paulistanodavam conta das discussões sobre o Ensino obrigatório.

O que se sabe é que dois anos depois do episódio, o casal de professores (Elisa Carolinade Toledo Dantas e João Maria de Toledo Dantas) estava provido nas escolas de Penha deMogy-mirim, ocasião na qual requeriam a admissão ao exame que lhes daria o direito a gozardas vantagens concedidas pela Lei nº 54 de 1868. Esta informação constava de um documentoassinado por João Aureliano de Toledo. A casualidade das assinaturas fica por conta daimaginação, atiçada pelos lampejos provocadores do denunciante que dizia que João Maria“tem proteção grande nessa Cidade e q. não são capaz de fazer coisa alguma; e q. há decontinuar como quiser”. (“Hum pae de família” dirigindo-se ao Inspetor Geral da InstruçãoPública, Penha, 08/10/1864, Episódio 5– 4996 01. MIP – AESP).

Os casos de contenda supracitados são indicadores importantes de que os processosinstituidores da escola no curso do século XIX têm na inspeção um traço de relevo e que talinspeção está para além da objetivação de um serviço organizado numa tessitura hierárquicavertical. A inspeção é um mecanismo de controle, de vigilância onde quem vigia ou é vigiado nãopossui gênero definido, nem idade, nem cargo. Todos são em certo grau inspetores, guardiõesquando não de um conceito mais ou menos difundido de moralidade, guardiões dos própriosinteresses – uma propriedade da condição humana.

Todos os casos de contenda são amostras de que a escola era um dos braços de relevona chamada cruzada da civilização. Nesta empreitada, haveria de se erigir um modo de seleçãodaqueles que tomariam para si a tarefa da instrução, o que chocava com o encontro com pardas,beberrões, fanfarrões, prostitutas e preguiçosos que, destoando do padrão de normalidade emoralidade demandados para a causa, aspiravam se já não exerciam, o ofício de professores.

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O Benedicto de Nazareth65

A criança aparece investida de um papel fundamental na divisão das esferas pública e privadaestudada nos processos criminais da França setecentista, motivos de estudo de Arlette Farge.

Ainda muito pequena, já é colocada como aprendiz de algum ofício ou tem de ajudar ospais nas tarefas cotidianas; assim conhece o ritmo do trabalho, seu rigor, suas imposições.Ainda dependente da família, constitui um laço social suplementar entre os diferentesespaços em que os indivíduos se movem. Filha tanto do bairro como dos pais, a criançaleva recados, presta pequenos serviços ou, sob o olhar do mestre, conhece as agruras dacondição de aprendiz. Percorre os espaços e as comunidades com espantosa mobilidadee participa realmente tanto da vida pública como da vida privada (FARGE, 1999, p. 588).

Para esta historiadora, a criança tanto está na via pública: o bairro, como está na intimidadeda vida familiar, sendo por isso mesmo uma espécie de filha de ambos. Algumas criançasaparecem no episódio de contenda da Vila de Nazareth

66, onde o professor Joaquim Jose

Rodrigues é acusado por um “pai de família” que dirige uma representação anônima aoInspetor Geral da Instrução Pública. Segundo este documento, o professor referido quehá dez anos lecionava naquela localidade vinha sendo questionado por outros pais defamília que teriam se dirigido ao Inspetor Distrital e até encaminhado queixas que teriamsido publicadas nos “jornaes”. A queixa se fundava sobre a conduta moral do professore a pouca habilidade no ensino dos filhos, que eram tomados em serviços outros que nãoo de aprender. O pai reclamava que na escola de responsabilidade do Professor Joaquim,aluno era tratado como empregado do professor. E o que era pior, era um professor quenão honrava o cargo que tinha, o que ficava demonstrado na sua conduta em público,denunciava o “pai de família”.

É na realidade um mal que pesa sobre nós o estado da instrucção primaria desta Villa, éum mal, porque vemos os nossos filhos crescerem na ignorância, privados do ensinoprimário: e tudo porque nem todos querem confiar seus filhos a uma eschola onde se vaiperder tempo, esquecer a moral, e ver praticar o vicio. (Episódio 6 – 4996 01, MIP –AESP).

O argumento do pai de família vai direto no preceito normativo que teria força de destituiçãodo cargo do professor: baixa freqüência com vinculação direta com a conduta do professor.

Alguns dos motivos da denúncia foram transcritos abaixo.

Este professor occupa a seus discípulos em affaseres mui diversos do ensino e atéhumilhantes; como levar animaes para o pasto, recolher lenha [...]

6 5Episódio 6 – Professor João Antonio Maria de Toledo, Villa da Penha, 1864, 4917 05. MIP AESP.

6 6Senhora de Nazareth – Povoação fundada à beira do rio Atibaia, ao norte da capital, por Matias Lopes e GonçaloSimões Chassin que, em 1676, ali edificaram uma capela em nome de Nossa Senhora do Nazareth. Foi elevada a vilapela Lei Provincial de 10 de junho de 1850, data em que se desmebrou de Atibaia. Em 1870, esta vila possuía a casade Câmara, a matriz, duas capelas: Senhor Bom Jesus do Achado, Senhor Bom Jesus dos Perdões. A população erade 5280 almas (incluindo 616 escravos) e duas cadeiras de instrução pública primária. Em 1876 possuía onze eleitores.MARQUES,1980, p. 134, vol. II.

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Que não dá aula aos meninos nesses dias em que os occupa, e os dispede = Vão discançar.Que é custume do professor, em remuneração a esses serviços, que lhe prestão, daraguardente ou qualquer outra bebida alcoholica.Que occupando os meninos muito freqüentemente perdeu elles muitos dias de aula, erepete-se por muitas vezes a tal remuneração alcoholica. (“Um pai de família” dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, 14 de janeiro de 1865, Episódio 6 – 4996 01,MIP – AESP).

Aqui há um confronto entre esfera pública e esfera privada que se dá na colisão entre o paide família e o professor da escola pública. A criança aparece no argumento do pai anônimocomo os filhos que estariam sendo explorados no tempo e espaço onde deveriam estar sendoinstruídos, isto é, onde deveriam ser alunos. Sobre este ponto o que se verifica no argumentoproduzido pelo professor que caracterizava a atitude do pai na representação anônima da denúnciacomo uma “hábil táctica”: cobrir-se “com as vestes sympatticas de pai de família” dá conta deum outro aspecto da intermediação das esferas pública e privada.

Accusa-me (...) de occupar os alumnos mandando levar animaes para o pasto,despensando-os da aula em remuneração nesses dias outras falsidades. – Tendo eu emminha aula 2 netos que vem de manhã e passão o dia com migo algumas vezes, fora dashoras de ensino, é verdade tenho mandado aos mnos. levar um cavallo, que tenho nopasto aqui nas proximidades da villa, agora se nessa occazião um ou outro alumno comocrianças que são accompanhão não sei, dizem..., que eu dispenso nesses dias certamenteé isso um modo de fallar figurado do traiçoeiro accuzador, porqto. que lucro tiria eu endar aula a uns e não outros, por que do contrario como esplicar se isto? Era preciso umaanimalada imensa uma tropa emfim para occupar 29 alumnos, que tenho em leval-ospara o pasto, e dispensal-os em remuneração do ensino, e por isso não haveria escola; esendo isto repetidas vezes, como dis o anonymo, como receberia eu meos ordenados?(Professor Publico Joaquim Joze Rodrigues Ramos, dirigindo-se ao Inspetor Geral daInstrução Pública, 28 de fevereiro de 1865, Episódio 06, 4996 01, MIP – AESP).

Há pelo menos dois aspectos importantes no argumento de defesa do professor. Nacontraface do anônimo que diz falar em nome dos pais de família da localidade, denunciandoa exploração dos filhos pelo professor em horário escolar há argumento produzido peloprofessor que apresenta uma situação na qual o lugar da família e, portanto, uma dimensãoimportante da esfera privada aparece na identificação de dois dos seus alunos como criançasde quem poderia solicitar os serviços de levar cavalos para o pasto e trazer lenha para casa.É que a relação com tais crianças se fundava para além da relação do professor com osalunos sendo também pautada pelos vínculos de avô e netos. O professor mora na casaonde trabalha, e é neste território intermediário entre o serviço público e a vida particularque o avô recebe os netos que vêm mais cedo ou saem mais tarde para ficar com o avô e seestendem até o horário da aula. Se outras crianças acompanham os seus netos como registraa denúncia, ele até admite ter ouvido dizer, mas tais crianças o fazem “como crianças quesão”. Há um “avô” de família em choque como “pai” de família, no fogo cruzado a criança

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não está sozinha, ela nucleia uma disputa que reúne outros interesses. É o que fica claro nosegundo aspecto do argumento de defesa do professor.

O professor faz gracejo com a tropa que teria de ter no pasto para dar trabalho para osvinte e nove alunos freqüentes na casa, na escola, para abrir fenda para outra referência quepoderia estar motivando a contenda. Ele se pergunta “como eu receberia os meus ordenados”?(Professor Publico Joaquim Joze Rodrigues Ramos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da InstruçãoPública, 28 de fevereiro de 1865, Episódio 06, 4996 01, MIP – AESP).

Ora, o professor poderia abster-se de qualquer outra palavra porque parando por aí jásugeria que o inspetor distrital estaria dando guarida para o anônimo pai de família ou entãocomo estaria recebendo do mesmo os atestados de freqüência.

Arlette Farge destaca nas contendas havidas nos bairros parisienses do século XVIII anecessidade da “estima dos outros” como garantia da própria honra nos acontecimentos dedesavenças. O que se vê na contenda do Professor Joaquim é que ele poderia ser mais estimadopelo antigo e já finado inspetor distrital. A relação com o atual inspetor, o senhor Antonio LuisDuarte Passos era marcada por asperezas que se revelavam no modo como o professor desnudavao anonimato da denúncia no comentário sobre a acusação de embebedar aos alunos.

Que bella imaginação que supposição tão fantaziada, que só pode nascer d’aquelle que seinvolve e vestem a mascara do anonymo para assim manchar a reputação de ser adversárioavançando posições asquerozas e nogentas: será crível que um homem que tem umpouco de senso pratique actos desta naturesa, que eu fosse louco para practicar tal acto.(...) eu tenho em meu abono uma approvação em exame publico perante VSa. e o Exmopreside., uma longa vida de magistério e as informações favoráveis dos Inspectores, quedurante esse longo tempo tem servido, a e excepção unicamente do Inspector actual, queprocura todos os meios, de pôr-me fora da cadeira (...).(Professor Publico Joaquim JozeRodrigues Ramos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, 28 de fevereirode 1865, Episódio 06, 4996 01, MIP – AESP).

O professor sugere que o inspetor Antonio tivesse mais “estima” por um professor recém-chegado à localidade por quem lhe teria amizade e quisesse produzir a condição de dúvidasobre a sua honra [Professor Joaquim] para dar o lugar da cadeira ao outro professor. É nestesentido que, como ensina Farge, a honra se constitui valor econômico. A perda da honra podecorresponder à perda do trabalho e portanto das condições de provisão das necessidades dafamília.

Vejamos como o argumento do anônimo respalda o valor econômico da honra dofuncionário público responsável pela instrução:

A demissão vai prival-o de um emprego que lhe dá os meios para saptisfação de suasnecessidades: mas nós também não podemos nos conformar com aquilo que nos é tãoprejudicial. Não podemos pedir sua remoção, porque não queremos que outra povoaçãoviesse a soffrer aquelle mal que queremos remover de nós. (...) eu entendo que não écom o dinheiro da província que devemos proteger os nossos parentes e amigos, mas

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sim com o do nosso bolço; se esses protectores quiserem continuar a protegel-o gastemo seo dinheiro. (“Um pai de família” dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública,14 de janeiro de 1865, Episódio 6 – 4996 01, MIP – AESP).

Outra dimensão da fronteira anuviada das esferas pública e privada se faz presente namenção aos dois bolsos.

Mas o que se nota é que a suspeita do professor parece cada vez mais próxima daconfirmação, desta feita quando o próprio inspetor entra em cena e, em ofício dirigido ao próprioProfessor Joaquim, solicita o envio de mapas do ano anterior bem como o esclarecimento dealguns procedimentos desautorizados do professor na escrituração da freqüência escolar. Comoque na pretensa de endosso da acusação anônima, o inspetor refere o caso do “filho” de ZeferinoJoze de Medeiros, o aluno Benedicto que era relacionado no mapa de freqüência da escolapública do Professor Joaquim quando na verdade era aluno da escola particular da Vila deNazareth.

O Professor como que, num diálogo nada surdo com o Inspetor Distrital, se dirige aoInspetor Geral a quem observa:

(...) creio que meu Inspector ou não tem memoria ou tem falta de senso. Dei-lhe mappacomo determina a Instrucção em Fevereiro, e Agosto do anno passado e não em Desembro.Falta em eu ter dado no mappa imaginado por elle o nome do alumno Benedicto, que diznão estar em minha aula. É menos verdade, por quanto se elle refere ao mappa de fevereirodo anno passado, concedo, por q. no tempo em que fiz o mappa (Fevereiro) esse alumnosi achava em minha aula como posso provar com o pai do mmo, sahindo depois dexei demensionar (...) (Professor Publico Joaquim Joze Rodrigues Ramos, dirigindo-se aoInspetor Geral da Instrução Pública, 28 de fevereiro de 1865, Episódio 06, 4996 01, MIP– AESP).

Há ainda uma outra face da briga entre o “avô” e o “pai” de família. Desta feita, observadosem outros motivos da denúncia do anônimo em referência ao professor:

Que não ensina doutrina christã; ainda o testemunho do Inspector do districto e pessoasque o accompanhão nos exames podem ser apellados.Que este professor longe de conduzir os seos discípulos á moral os condus ao vicio: porelles manda buscar fogo para sigarro, fuma perto de seos discípulos, mesmo durante ena sala de aula; não os condus a igreja, não lhes ensina nem o signal da cruz. (“Um pai defamília” dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, 14 de janeiro de 1865,Episódio 6 – 4996 01, MIP – AESP).

A criança aparece numa representação não dita de aprendiz não apenas do aprendizadode ler, escrever e contar mas também de rezar. Na resposta a tal nota, o professor põe o seuponto de vista na formação religiosa dos alunos o que demarca, em certa medida, a sua concepçãosobre limites que conferem distinção acerca dos papéis do professor ou da família. Ao comentara conduta questionável recorre aos princípios herdados da própria família.

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Recebi de meus pais uma educação elevada, sei das minhas obrigações e deveres, sei aresponsabilidade, que incorreria se praticasse taes actos durante as horas de ensino.Quanto não levar eu os alumnos a Igreja não e de minha obrigação e dever, a bem do quepara isso era mister, que os mesmos morassem comigo, ou que fosse eu director de alumcollegio ou lyceu que pelo menos os Pais mandassem-me todos os domingos e diassantos os alumnos em minha casa para mim conduzil-os a Igreja. (Professor PublicoJoaquim Joze Rodrigues Ramos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, 28de fevereiro de 1865, Episódio 06, 4996 01, MIP – AESP).

A alusão a uma eventual direção de colégio ou liceu é uma amostra de que o professorsabia que esta era uma prática comum à grande maioria das escolas particulares até este períodosendo este cuidado com a Doutrina Cristã um motivo incorporado em alguns dos textospublicitários que intentavam por ganhar a “confiança” dos pais de alunos. A construçãoargumentativa do professor percorre dois movimentos que permitem clarificar lugares deintermediação entre o público e o privado. Num deles recorre à própria formação recebida dospais na orientação sobre a conduta de retidão que desabona vícios e noutro a sugestão de que aescola particular só realizava a condução de seus alunos à igreja nos domingos porque lá nãohavia apenas um diretor mas havia uma contrapartida segura dos pais que assujeitavam-se àautoridade escolar. Em momento algum diz não fumar na escola que funciona na sua casa masdeixa claro que não fazia nas horas de ensino. As crianças voltam à cena novamente, elas, dequem o professor era avô. Uma vez que freqüentavam a casa da escola sem a restrição dohorário de ensino é muito provável que vissem o avô fumando cigarros.

O que fica patente é que se a criança é este agente trânsito fácil pelas duas esferas, oprofessor Joaquim, da escola pública de Nazareth, era um agente cuja conduta deveria estarcredenciada por um protocolo público que não admitia práticas de vícios em nenhum espaço,nem público nem privado porque a escola pública não era apenas um ponto de intermediação,era um ponto de fusão ou de con-fusão das duas esferas. O controle sobre as práticas internasà casa do Sr. Joaquim era guiado pelo exercício da sua função pública. Como se percebequando surge a observação de que não estaria cumprindo a duração horária prevista para oensino e então o professor responde assumindo posição de quem estaria credenciado a regulara duração de seu próprio trabalho na sua casa.

Ou quando foi visto caído ao chão e carregado por um outro homem até a casa de umparente numa viagem realizada após um requerimento de licença não motivado devidamente eque a acusação indiciava como fuga aos exames dos seus alunos que se realizaria sob o comandodo inspetor distrital.

Neste ponto permitta meu accusador, que lhe diga, que passou alem das raias, que esquece-se dos princípios philosophicos pretendeu sondar até meus pensamentos minha consiencia,em foro interno só nosso creador pode saber, o que se passa mais ninguém, o forão daconsiencia é inviolável e sagrado n’elle a ninguém é permittido penetrar, tanto que osactos por mais perversos que sejão emqto. si achão nesse foro, estão izentos de qlqr.penalidade, e para que elles se tornem puníveis, é mister que revistão o caracter externo,

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e por isso não pode meu accusador saber qual o fim que eu tinha em vista qdo tireilicença, tirei-a por que era um direito que tinha, e que não podia me ser negado(...).(Professor Publico Joaquim Joze Rodrigues Ramos, dirigindo-se ao Inspetor Geralda Instrução Pública, 28 de fevereiro de 1865, Episódio 06, 4996 01, MIP – AESP).

Num movimento de quem estabelece restrição à prática acusatória que pretende intentarsobre atos de “forão da consiencia” e aquilo que pode ser julgado em “caráter externo” oprofessor nega a insinuação de embriaguez que lhe teria feito cair do cavalo para, na seqüência,ser carregado até a casa de um parente. Em lugar desta versão, economiza os detalhes quedariam a ver mais de sua vida particular quando apenas estava no exercício de um direito, odireito de licença para resolver “negócios particulares”.

Briga de vizinhos: solução de advogados

Os autos de processos guardam os registros das contendas ocorridas entre os agentesdiretos e indiretos da escola imperial – um dos documentos privilegiados nesta pesquisa. Trata-se de um tipo de documento que oferece aspectos de forma e de cultura escolar. Constitui umdesafio de método a um só tempo que é generoso nas possibilidades de método e de análise quedetém. Corre-se sempre o risco de não se fazer o corte mais preciso. Até o momento tentou-semostrar diferentes aspectos do cruzamento de vozes dissonantes: acusação e defesa. Na contendaocorrida em São João da Boa Vista o objetivo era mostrar o confronto entre o professor e umanova autoridade: o inspetor distrital; naquela que ocorreu em Vila Bela da Princeza, o objetivofoi mostrar como cada parte envolvida numa contenda produz representações da parte contrária;sobre a contenda ocorrida em Santa Isabel pretendeu-se mostrar como a formalização de umaqueixa já carrega consigo a condenação do denunciado. O episódio da Vila de Nazareth pareceacentuar os pontos de intermediação e con-fusão de espaços e funções da vida pública da vidaprivada. Mas certamente estas contendas contaram mais do que se disse aqui.

A próxima contenda é do finalzinho de 185967

, trata-se de um dos últimos episódios[encontrados] que se dá no período anterior à reforma da regulamentação da Instrução Pública(1869) e se caracteriza pelo cruzamento de vozes que se dão não só no nível das partes contrárias,como entra em cena o mediador principal das contendas, o Inspetor Geral da Instrução Pública,Dr. Diogo de Mendonça Pinto.

Na Freguesia do “Braz”68

, no ano de 1859 houve um “duelo” entre o professor e oinspetor da escola masculina daquela freguesia. Os envolvidos possuem uma particularidade,

6 7Episódio 7 – Professor João Antonio de Oliveira Campos, Freguesia do “Bráz”. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

6 8Os primeiros registros do bairro do Brás remontam ao início do século XVIII, quando foi pedida a edificação de umacapela em homenagem ao Senhor Bom Jesus do Matosinho em uma chácara de José do Braz. Ao que parece, as

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ambos têm formação em Direito. O Inspetor bacharelou-se em Direito no ano de 183369

e erao pai de uma criança matriculada na escola do “Braz”. O professor à época estava na condiçãode estudante do mesmo curso, tendo se formado em 1862.

70 Aqui a opção de exploração do

caso, se dará a partir de quatro esclarecimentos que o Inspetor Geral dirigirá ao professordepois de ter sido instruído pelas versões do Inspetor Distrital e do professor, observando que:

O professor não deve ignorar; 1º que os Empregados públicos se correspondem porescripto, e não por meio de recados verbaes; 2º Que lhe é expressamente prohibido deempregar os discípulos em seu serviço; 3º Que foi desacato servir-se do filho do Inspectorcomo seu criado de recados; e 4º que não devia confiar em uma criança. (Cartacircunstanciada do Inspetor Geral da Instrução Pública dirigida ao Presidente da Província,José Joaquim Fernandes Torres, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

Advertindo ao professor, o inspetor também aponta para questões concernentes àinstituição do serviço público escolar. Era possível destacar algumas práticas em que os“Empregados publicos”, neste caso os responsáveis pelo ensino, pareciam produzir ações deum movimento constitutivo específico àqueles profissionais. Exemplo disso é que no dia 30 de

primeiras referências a esse José do Braz constam em Atas das Câmaras de Vereadores de 1769, quando se despacharamvárias petições em nome do mesmo. Tal chácara ficava na margem de uma estrada que levava à Penha. Em determinadotrecho a estrada, que era conhecida como Caminho de José do Braz, passou a ser chamada de Rua do Braz, e hoje levao nome de Avenida Rangel Pestana. Cf. http://www.sampa.art.br/ Em 1870, a localidade possuía seis cadeiras deinstrução pública para ambos os sexos. A paróquia era uma das três que compunham a cidade de São Paulo. Dos 2308habitantes (1870) e 5 eleitores em 1876. MARQUES,1980, p. 150-151, vol. I.

6 9VAMPRÉ, 1924, p. 753.

7 0VAMPRÉ, S. 1924, p. 754.

Largo e Rua do Brás. Igreja do Senhor Bom Jesus de Matozinhos (1860).MARQUES, M.E. de A., Província de São Paulo, vol. 1.

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dezembro de 1854, teria havido a primeira reunião de professores públicos do ensino primárioe secundário da província de São Paulo. (Jornal Correio Paulistano, 4-1-1855). O episódiohavido entre o Professor João Antonio de Oliveira Campos e o Inspetor Distrital, Dr. IgnácioJose d’Araujo merece destaque pela expressão deixada nas peças integrantes do documento deregistro da contenda: a particularidade da formação em Direito da parte dos três principaisagentes: o Professor, o Inspetor Distrital, o Inspetor Geral não apenas confere às peças do“processo” uma linguagem crivada de adornos como problematiza de modo especial a legislaçãoda Instrução Pública em vigor: a Lei de 46 e o Regulamento de novembro de 1851 e, por issomesmo lida com questões que estão no âmbito das representações e práticas do fazer escola.

As observações repassadas ao professor atentam para certos cuidados protocolarespertinentes à produção e administração do serviço público: neste caso, a comunicação escrita.O registro da comunicação escrita pretende a impessoalidade nas relações próprias das repartiçõespúblicas. Quando o Inspetor observou que empregado público não se comunica por meio derecado verbal mas por meio da escrita, ele estava lidando com uma questão orgânica daquelemomento histórico, talvez consistisse numa amostra daquilo que Sérgio Buarque de Holandachamou de “aversão ao ritualismo”.

71 A instituição do serviço público demandava uma nova

relação entre os agentes da hierarquia do serviço público, mas o professor público e estudantede Direito se recusava ao cumprimento do rito da comunicação escrita. O Professor tinha entreos seus alunos, o filho do Inspetor Distrital. Estava descontente com as condições físicas da casaonde residia e reservava espaço para dar aula. Decidiu mudar-se dali, transferindo o lugar decasa e de trabalho. Pediu ao seu aluno, o filho do Inspetor que informasse ao pai, o InspetorDistrital da mudança de endereço da casa que abrigava o espaço de moradia e trabalho doprofessor.

O estopim detonador da maioria das contendas é a privação do ordenado, o que se aplicana totalidade de casos onde o professor representa queixa junto à autoridade. O que demonstraque não apenas o dinheiro é necessidade básica da condição humana como revela que o inspetorusava do poder que tinha para se fazer impor. O Professor da Freguesia do Brás não pôdereceber o ordenado correspondente ao mês de setembro de 1859, tendo em vista que o InspetorDistrital não emitiu o atestado de freqüência – condição para tal. A explicação para a nãoemissão do atestado da freqüência é que a casa da escola estava fechada.

O Professor dirigiu-se ao Inspetor Distrital no dia 1º de setembro:

V.Sa. declara que não pode attestar pr. que a casa onde resido se acha feixada há dias, epor consige. julga que tenho deixado de dar Aula talvez pr. doente; [..] de V. Sa. é de umafutilidade admirável!!! Pois V. Sa. não sabe que não resido ms. desde o 15 do mez

7 1Sérgio Buarque de Holanda nota que entre nós, brasileiros, há uma atitude contrária ao ritualismo que invade o terrenoda conduta social para dar-lhe mais rigor. Aqui, “é precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza. (p.149).” Ver mais em O homem cordial in Raízes do Brasil, 2000.

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próximo passado na casa em que residia? Um afilhado de V.Sa. se acha matriculado naEschola, e n’ella vem todos os dias não communicou á VSa. no dia 14 do mez passado,q. no dia 15 a Aula era em casa do sr. Guilhermo Caetano, frontreira á casa em que morao Sr. Pedro Ma. Pinto (como mandei communicar a VSa)? . (Professor Publico JoãoAntonio de Oliveira Campos dirigindo-se ao Inspetor do Distrito, Dr, Ignácio Josed’Almeida, Frega. do Braz, 1º de setembro de 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

A versão do Professor dá conta de que ele teria solicitado ao afilhado do Inspetor queavisasse ao pai no dia 14 que a escola seria transferida de endereço no dia seguinte. Mais ainda,o professor sugere que o fato de serem eles vizinhos: a casa da escola e casa do inspetor odispensaria da necessidade de uma comunicação mais formal do acontecimento, o que deixaclaro nas interrogações que dirige ao inspetor Distrital e pai de um dos alunos: “Então pr. queessa communicação não foi pr. escripto, não tem valor? Sendo que VSa. todos os dias passapela porta onde funciona a Eschola?”

Os itens que seguem à observação sobre a necessidade do encaminhamento escrito dasquestões relacionadas à mudança da escola giram em torno da especificidade constitutiva dedois agentes escolares: o professor e o aluno. Cada um com atribuições específicas não podendoo professor empregar o aluno em atividades que supõem a dianteira do próprio professor. Haveriade se ter discernimento que o filho do Inspetor Distrital estava na condição de aluno do professore não de o filho do vizinho.

O professor João resolveu fazer uma ameaça no dia 15 de outubro, argumentando asfaltas do Inspetor Distrital, junto ao Inspetor Geral. Era assim. Iniciada uma contenda, abria-seuma caixa de pandora.

Não houve exame dos alumnos no anno passado pr. q. tendo eu apresentado a relaçãodos alumno habilitados pa. isso ao respectivo Inspector do Disto. na epocha definidopela Ley, este jamais dêo cumprimento, não marcou o dia em q. se deveria proceder oexame, e nem mmo. veio visitar a Eschola senão no mez de Fevereiro, e além disso nadatratando a respeito do exame dos alumnos, tendo já sahido da Eschola alguns desseshabilitados pa. as Aulas de Instrucção Secundaria sem terem passado pelo exame quedetermia a Ley. (Professor Publico João Antonio de Oliveira Campos, dirigindo-se aoInspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de 1859, Episódio 7– 4996 01. MIP – AESP).

A sua narrativa era tecida de modo a mostrar o próprio serviço em prejuízo das faltas doInspetor Distrital, o que justificaria a ameaça de acesso a outras instâncias.

Assim pa. já vr. V.Sa. q. há 8 meses e meio o Inspector do Disto. não visita a Escola, e tendoeu cumprido com os meos deveres dando Aula todos os dias tem o mmo. negado meoattestado de freqa. do mez passado (Stbro.) estando eu ate agora sem receber ordenado, e seisto continuar vou ser um obrigado a fazer uma justificação judicial e com elle provar ocontro. de q. espalha contra mim esse Inspector mentiroso e caluniador. (Professor PublicoJoão Antonio de Oliveira Campos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, Frega.do Braz, 15 de outubro de 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

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Os dois lados tinham versões próprias sobre os acontecimentos que se sucederiam,especialmente sobre a visita que o Inspetor Distrital fez à escola do professor João e a visita queo Prof. João recebeu do Inspetor Distrital – ocorrida aos 28 de outubro de 1859.

Eis a versão contada pelo Inspetor Distrital ao Inspetor Geral numa carta ofício aos 29 deoutubro:

chegando a sua casa as 6 horas da manhã esperei pelo Professor até 6 horas e ¾ em quese apresentou, contando em sua aula 8 alumnos inclusive um fo. do mesmo; pedi-lheentão uma audiência particular que sendo concedida fui levado para outro lado de suacasa: começava eu o desempenho de minhas obrigações como Inspector referindo-lhe oque havia de seo respeito, os inconvenientes da mudança de residência e de horas deensino sem participação dos factos que seriamente inhabilitarão-me a passar-lhe esseattestado sobre cumprimento de deveres, freqüência de alumnos, por isso que me eravedado por desconhecer o logar de residência e horas de ensino. (Inspector do Districtodo Braz, Ignácio Jose de Araújo, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública Dr.Diogo de Mendonça Pinto, S. P. 29 de Outubro de 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP –AESP).

Note-se que há todo um preâmbulo no sentido de detalhar aspectos estratégicos como ohorário, o número de alunos freqüentes (destacar o aluno que é filho do professor) enfim comoo próprio disse: o desempenho esperado por um inspetor no cumprimento de seu dever. Aconversa inicial teria se dado em torno da impossibilidade que o inspetor tivera de cumprir comsuas obrigações tendo em vista as mudanças de local e horário de funcionamento da escola doProf. João, isto é, o Inspetor justificava o que não fez por aquilo que o Professor teria feito.

O Inspetor dá seqüência à sua versão da visita, agora dando conta da recepção doProfessor:

(...) neste ínterim levanta-se o referido Professor todo encoleirizado e gritando “eu lhemostro” feixa com violência a porta deixando-me da pte. de dentro; conheci que o momentoera perigozo tanto ms. qdo. na sala havião armas ofensivas então vi-me na necessde.,afim de evitar maior desgraça de empregar meios pa. abrir a porta, qdo. o Professor alemde ter feichado, iscorara; entretanto pude desembaraçar-me conseguindo o que sahi semdiser-lhe cousa alguma. (Inspector do Districto do Braz, Ignácio Jose de Araújo, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública Dr. Diogo de Mendonça Pinto, S. P. 29 deOutubro de 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

A contra-versão sobre o mesmo episódio: a visita –, se deu no dia 20 de novembro de1859. Ocasião em que o professor havia sido devidamente instruído por meio de cópias dasdemais peças que integravam o “processo” da contenda: representações, cartas-ofícios,documentos anexos.

O Professor principia pela apresentação das causas da mudança de endereço.

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Achando-me mal acomodado em hua casa que residia, determinei-me mudar-me, e comeffeito tem isso lugar em 15 de Septembro, sendo a nova residência que escolhi namesma rua, visto que não há outra na Freguesia, e apenas á poucos passos de distanciad’quella que occupava anteriorme. (Professor Publico João Antonio de Oliveira Campos,dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

O Professor procura legitimar a mudança e os procedimentos que antecederam a mesmaunindo a base legal, ou a suposta deficiência da Legislação da Instrução Pública com o fatonatural: a presença do filho do inspetor na condição de seu aluno. Ao lançar mão destaargumentação, vê-se o aparecimento de um professor que está suportado por uma formaçãoespecífica.A quizila tem os mesmos elementos de outras mas na voz do Prof. João ela tem aroupagem diferenciada, o que tem efeitos desencadeadores sobre as questões de normatizaçãoda instrução pública, questões de norma e cultura escolar.

Não dei parte por escripto desse facto do Inspector do Districto pelos seguintes moctivosque não deixarão de se julgados procedentes no animo illustrado de V.Sa. =1º porque nãoencontro nos Regulamentos, que devo observar no exercicio de minhas funcções aobrigação de fazer semelhante participação ao Inspector de Districto, que aliáz tem a deinformar-se por si mesmo de tudo quanto diz respto. ás Eschólas para poder cumprircom os deveres = 2º por que não lhe seria isto dificil se quisesse sendo a mudança/comodisse/pa. a mesma rua, passando elle por ali todos os dias, e tendo um filho na Eschola.(...) servindo-me de intermediário desse mesmo filho, mandei-lhe participar verbalme. Aminha mudança, entendendo que isto e a sua proverbial actividade no cumprimento detodos os deveres, era bastante para pôr-me a coberta da imputação que por ventura mequisesse fazer de querer subtrahir-me as suas vistas. (grifos do autor). (Professor PublicoJoão Antonio de Oliveira Campos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública,Frega. do Braz, 15 de outubro de 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

O Professor encontra na ausência de um dispositivo sobre a instrução da formalizaçãoda comunicação, a brecha absolvente de sua conduta. Perfaz um movimento de busca aodispositivo normalizador magno na definição dos mais distintos aspectos da Instrução –documento marcadamente impessoal, para encontrar o que a Lei de 46 ou Regulamento de1851 não prescreveram, no entanto o professor insiste na marca pessoal do apelo à suaprópria defesa.

O facto de ter esse Inspector um filho na minha Aula, e a certeza de sua sollicitudepela educação do mesmo seria talves bastante para criar em mim a convicção de quenão seria necessário fazer aquella participação, para que elle zeloso ao menos pelosangue do seo sangue, exercesse sobre mim a mais escropulosa – inspecção. (grifodo autor). (Professor Publico João Antonio de Oliveira Campos, dirigindo-se aoInspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de 1859, Episódio7 – 4996 01. MIP – AESP).

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O Professor João se apóia no Regulamento da Instrução (documento impessoal) e exerceassim uma conduta imparcial mas exige um tratamento pessoal, a consideração de vizinhos.

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Este comportamento anfíbio do professor aparece com freqüência, segue outro exemplo decomo ele buscava na impessoalidade da Lei os estratagemas de incriminação do Inspetor e noapelo pessoal estratagemas para a própria defesa.

A inviabilidade provocada pelo Inspetor de que o Professor recebesse o seu ordenadocriava “grave incommodo” era disso que vivia, dizia o professor. A conduta do Inspetor era umamanifestação de “abuso, e excesso de poder em vista do cap. 3º e 4º do respectivo Regulamentoque não lhe dá semelhante poder, e nem permitte em caso algum a applicação de semelhantepena.”

Hé pois evidente que não houve de minha parte irregularidade alguma, e sim da parted’aquelle Inspector que excedeo-se pr. um facto simples, e acerca do ql. mesmo aadmoestação ou advertência seria um excesso, pelo menos á vista da duvida em que miacho acerca da obrigação em que elle me julgou, de participar-lhe em duplicata & verbalme.,e por escripto a minha mudança. E nem se diga que tal participação é necessária para q.se possa dar a visita das aulas, e o cumprimento de todos os mais deveres inherentes áInspectoria do Distrito; por que a sua falta não exclui a obrigação em que ella se acha deproceder as indagações precisas, entre as qs. é pr. sem duvida a de indagar a localidadeem que funcionão as Escholas. (Professor Publico João Antonio de Oliveira Campos,dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

E novamente o Professor retoma o argumento da vizinhança com pitadas de escárnio.

(...) quem não consideraria como ridícula e admiraveme. fútil a declaração que fisesseum Inspector de não cumprir com os seus deveres por não saber onde funciona a Eschoaque todavia existe em uma Pequena Freguesia onde apenas há meia dusia de casas dealuguel!!! (Professor Publico João Antonio de Oliveira Campos, dirigindo-se ao InspetorGeral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de 1859, Episódio 7 – 499601. MIP – AESP).

O escárnio é um recurso de linguagem empregado na tentativa de ridicularização da partecontrária, artifício lingüístico que pretende o esvaziamento da razão do outro.

7 2A lei representa o poder público mas como se vê, é tratado de modo privatizado pelo professor acusado. Numa outraperspectiva de estudo, a relação pessoal com a administração da justiça é apontada por Maria Sylvia de CarvalhoFranco na prevalência da influência pessoal dos fazendeiros sobre os agregados encontrados no oeste paulista em finsdo século XIX.A autora nota que “entre os setores da organização social em que esse tipo de regulamentação [relaçãode interesses entre fazendeiros e agregados] mais tardou a penetrar e maiores barreiras encontrou para implantar-se foio da adminsitração da justiça, perdurando mais longamente o seu exercício privado.” (p. 149). A autora se vale dassituações conflitivas que demandavam ação judiciária na relação entre fazendeiros e agregados do oeste paulista,mostrando o modo como os fazendeiros faziam prevalecer sua influência pessoal enquanto os agregados destituídosde meios de subsistência tornavam-se instrumentos para todo e qualquer fim estabelecido pelos fazendeiros. Ver mais:FRANCO, Maria S. de C. Homens livres na sociedade escravocrata. 1969.

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Se fosse possível a sua mudança para o mundo da Lua, ou se aquelle por quem lhe fis aparticipação verbal fosse algum camêlo, ainda bem! Mas no caso em questão não há rasãoalguma que possa justificar aquelle Inspector. (Professor Publico João Antonio de OliveiraCampos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

O desfilamento de hostilidades prossegue até que o Professor retoma um dos pontos daacusação que lhe é representada, a mudança de horário da aula, e ao fazê-lo revela a fonte deinspiração.

Tendo-me dedicado aos estudos da nossa Faculde. de Direito afim de obter uma Carta deBacharel, que espero não terá o distino que aquelle Inspector deo à sua, e sendoincompatíveis as horas as minhas Aulas com as da Eschóla, mudei-os desta de accôrdo(como disse) com aquelle Inspector sem que nisso possa haver inconveniente uma vêsque prehinchido o tempo marcado por Ley, que aliás não marca a hora precisame. emque devem começar e acabar os trabalhos.Tenho observado isto desde o principio do anno da Faculdade de Direito sem que jamaisaquelle Inspector que não se importa com as outras Aulas que estão no mesmo caso mefisesse observação alguma á tal respeito. (Professor Publico João Antonio de OliveiraCampos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 deoutubro de 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

Mais uma vez o professor se vale da pesquisa à impessoalidade da lei para conferir razãoà sua prática ainda que para justificar uma necessidade pessoal: o estudo do Direito. E mais, oProfessor aponta para a existência de outros casos similares, isto é, outras escolas que funcionariamem horários modelados pelas necessidades particulares dos seus professores, possivelmenteestudantes de Direito.

E a visita? Vejamos então qual é a versão do professor sobre a visita do Inspetor.

Erão 6 horas da manhã, e immediatame. compareceo elle, mas como ella devia começar as6 1/2 segundo havíamos combinado, só depois de ouvir dar estas me apresentei. Começavãoa entrar os meninos, estando reunidos 8, e então deparei com elle sentado em um bancoperguntando os meninos si davão lição, se escrivião, a que horas eu entrava pa. Aula, enfimprocedendo á um inquérito vigoroso acerca do meo procedimento; e apenas me lançou osolhos, nos quaes li immediatame. os mais iniquivocos signaes de provocação, disse-me comvoz de Senhor que falla á um escravo, e sem au menos dirigir-me os cumprimentosdeterminados por uma boa educação = que horas são no seo relogio? Respondi-lhe que erão6 horas e meia e pr. mais que me contivesse não foi-me possível occultar a indignação quetransluzia no tom que lhe dei a referida resposta. (Professor Publico João Antonio de OliveiraCampos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubrode 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

O professor sugere que tenha ficado à espreita do Inspetor Geral durante meia hora,tendo visto e conferido o horário em que chegou, o modo como se aproximou dos alunos, asperguntas que lhes dirigiu. Para o Professor, o Inspetor só estava ali pelo desencadeamento dos

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acontecimentos, não se tratava de uma visita que revelasse o zelo daquele profissional com assuas obrigações, haja vista ser esta uma das obrigações que não era realizada “há 10 meses”. OProfessor descreve um cenário no qual era preciso se resguardar da fúria do Inspetor:

Então disse-me elle que queria fallar-me em particular, e levando-o eu para uma Sállaposterior á Eschóla no lanço immediato da casa começou elle com altos gritos, e comoum possesso, a reprehender-me chamando-me de relaxado, e dismoralisando-me perantemeus alumnos. (Professor Publico João Antonio de Oliveira Campos, dirigindo-se aoInspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de 1859, Episódio 7– 4996 01. MIP – AESP).

A fala particular acontecerá num cômodo outro, alheio àquele onde funciona a escola,mas o corpo da casa embora partido por paredes não impedia que a fala “particular” fosseassistida pelos alunos. O funcionamento da escola pública nas dependências do espaço domésticoera gerador de tensões que implicava ou eram implicadas por uma necessidade de adequaçãodo tempo. Ou seja, a casa que abrigava os espaços de trabalho e moradia do professor nãocomportava dois tempos no mesmo espaço de realização das duas funções. Era inviável umtempo para o professor ter uma prosa particular com o visitante (especialmente com aqueleteor) Inspetor no mesmo tempo em que os alunos teriam aula com o mesmo professor.

A seguir o professor dá a sua versão sobre a suposta indicação de que estivesse armado.

Como me cumpria passei a fazer-lhe ver que a sua autoridade não chegava a tanto,podendo apenas admoestar-me particularme, e não á vista dos alumnos que estavãoouvindo e observando tudo como posso provar; e para que um tal escândalo nãocontinuasse passei a feixar á porta que havia ficado aberta, e por onde os meninos ouviãoe vião o que se passava, e quando hia-me dirigir ao Inspector pa. mostrar-lhe o Art. 13 doRegulamento que parecia ignora, começa elle á gritar pelos meninos que lhe acudão echamassem gente e consiguindo de abria á porta no que séo encontrou difficulde. Peloestado de terror e panico em que se achava, sahio á final para a rua de carreira como umboi louco. (Professor Publico João Antonio de Oliveira Campos, dirigindo-se ao InspetorGeral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 de outubro de 1859, Episódio 7 – 499601. MIP – AESP).

A suposta “arma” do professor era o Regulamento da Instrução Pública de 1851, e oartigo demandado pelo mesmo prescrevia que: “Os inspectores tractarão bem aos professorese não os admoestarão na presença dos alumnos.”A considerar as condições de espaço e tempode funcionamento da escola na casa que era palco da contenda dos dois filhos da Academia deDireito do Largo São Francisco, pode-se depreender que na sua fala, o Professor sugere nonão-dito que o Inspetor não estaria infringindo uma norma estatuída pelo Regulamento se aprosa “particular” não estivesse sendo vista ou ouvida pelos alunos. Assim, é validada apossibilidade interpretativa das condições de espaço de funcionamento escolar como umaconjugação de fatores que tonificariam aquilo que poderia ser apenas o desempenho de umafunção de Inspetor: a advertência sobre alguma prática desautorizada da parte do professor.

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O professor sugere finalizar a sua versão da visita numa outra investida que pretendeesvaziar a razão do Inspetor, quando a recomeça.

He esta a pura verdade do que se passou, e que esse Inspector qualificou de semi-tragico, e que realme. Não foi mais do que uma ridícula comedia em que a cobardiainqualificável de S.Sa. o fez representar um tristissimo papel.Entretando dis o Inspector que o momento era perigoso pr. que na salla havião armasoffensivas, e q. para evitar maior disgraça, veio-se na necessidade de empregar meios pa.abrir a porta, q. eu escorava alem de ter feixado.Mas quem não verá em tudo isto as conseqüências de um modo, sem exemplo, e do ódioque o dirigio a insultar-me em ma. casa? (Professor Publico João Antonio de OliveiraCampos, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, Frega. do Braz, 15 deoutubro de 1859, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

A “casa” – espaço particular do professor. Espaço para visita de advertência do InspetorDistrital? A situação dada por estes dois agentes é uma expressiva possibilidade interpretativade que embora não dito, sugere que talvez fosse a escola quem estivesse fora do lugar, melhor,no lugar errado. E considerando que àquela época e naquele lugar era a casa o lugar da escolanão seria descabido marcar a questão originada da briga dos vizinhos (professor e inspetor)como a colocação de um problema dialético do ser professor, ser inspetor, ser aluno, fazerescola.

Mas é preciso saber como o Inspetor Geral da Instrução Pública, também bacharelem Direito, ajuizou a questão e sentenciou o caso. O que se percebe é que o Inspetor Geralprocura remediar as práticas do Inspetor Distrital, ressaltando a produzir uma condutamarcada pela tentativa apaziguadora de resolver o problema detectado acerca da condutado Professor. O texto no qual tece comentários gerais e finais acerca do episódio é crivadode recortes de falas do Professor, cujo teor é identificado como o emprego de linguagemimprópria para com as autoridades. Neste sentido, o Inspetor Geral condena o Professorporque este vê no “insulto ao superior” a “defesa do subalterno”. Numa amostra de que abriga agora saiu da vizinhança para ganhar roupagem de agentes revestidos de poder sejapelos postos que ocupam como pelas relações de poder que lhes garantem a indicação e amanutenção nestes espaços, há o fato de que quem está na briga são três homens comformação em Direito, falam de diferentes lugares marcados por uma escala hierárquica queos diferencia. É a voz do Inspetor Geral:

Mas supponha-se que o Inspector, Coronel Comandante da Guarda Nacional da Capital,e homem formado em Direito é como descreve o accusado um cobarde, á quem portantoS. M. I. confiou indevidamente a espada de Coronel, um ignorante, e relaxado nocumprimento dos seus deveres, nem por isso os defeitos do Inspettor por maiores quesejão, seus erros e crimes por mais numerosos e graves que o supponhão innocéntão oProfessor, e servem de convencer que não se derão os factos pelo qual elle é argüido.(Carta circunstanciada do Inspetor Geral da Instrução Pública dirigida ao Presidente daProvíncia, José Joaquim Fernandes Torres, Episódio 7 – 4996 01. MIP – AESP).

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O Inspetor sentenciava, absolvia o Inspetor Distrital Ignácio e punia ao Prof. João. Antesde conhecer a sua sentença, vale frisar que a ordem da produção das peças de um “processo”não é um acontecimento sem relevo. Ao contrário, ela pode senão definir um veredicto, colocarao juiz a prática da dúvida. Este parece não ter sido o caso. Aqui, a ordem dos documentos foi:

1º) 1-9-1859: o professor representa queixa ao Inspetor Distrital sobre o próprio InspetorDistrital.

2º) 15-10-1859: o professor representa queixa do Inspetor Distrital ao Inspetor Geral.3º) 29-10-1859: o Inspetor Distrital recebe cópias dos documentos anteriores e responde

ao Inspetor Geral a representação dada pelo professor.4º) 20-11-1859: o professor recebe cópias dos documentos anteriores e responde ao

Inspetor Geral à representação dada pelo Inspetor Distrital.5º 29-11-1859: o Inspetor Geral está de posse de todos os documentos anteriores mais

àqueles que equivalem a correspondências de fito protocolar em caráter de instrução sobreacusação de recebimento e datas para apresentação de respostas, trata-se do conjunto daescrituração oficial que costura as peças do processo.

O que vê é portanto que a cada vez que um agente da contenda faz qualquer registro e “sóvale o escripto” o próximo a falar terá em suas mãos um número maior de aspectos pra considerar,rebater, fazer-se indiferente. Como se a cada vez que alguém fala, isto é, escreve, há umrobustecimento do próximo a se manifestar. Este robustecimento é materializado pelo crescenteaumento do material escriturado da contenda. Ao julgar o caso da Freguesia do Brás, o InspetorDiogo tinha sob suas mãos as cópias de todos as peças. O professor falou bem mais que oInspetor Distrital, falou antes e depois do mesmo. As suas falas foram lidas pelo Inspetor Gerale empregadas na produção da sentença – desfavorável ao professor. Se neste caso não se podedizer que a ordem de produção das peças teria mudado o itinerário do julgamento não se podedizer que os acréscimos dados pela freqüência das falas do professor não tenham dado margensoutras, apontamentos para a compreensão de aspectos da escola da década de 50 do séculoXIX na Província paulista.

A sentenciação sobre o caso do Prof. João Antonio revela que o Inspetor Geral teria duasbases de inspiração, uma já aqui referida que diz respeito ao enquadramento hierárquico dosdois principais envolvidos. A outra é de base legal, suportado no artigo 15 combinado com o 14(§ 13) da mesma “arma” usada pelo Professor: o Regulamento de 1851, o Inspetor Geralimpelia ao professor a multa no valor de 60$000rs. e a suspensão correcional pelo tempo detrês meses.

Algumas pistas sinalizam para quais caminhos o Prof. João teria trilhado. Um anúnciopublicado no Jornal Diário de São Paulo aos 16 de abril de 1870, dava conta de que:

O bacharel João Antonio de Oliveira Campos, professor publico da freguezia do Braz,lecciona todos os dias úteis ás 4 horas da tarde na casa da rua do Carmo n.66 todas asmatérias necessárias aos que se dedicão ao magistério publico primário. (p. 4)

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O horário destinado à formação de aspirantes à carreira do magistério é um sinal de queo professor Prof. continuava lecionando na escola de Primeiras Letras. O que pode ser confir-mado por um outro anúncio, desta feita, em janeiro de 1872:

Escola publica de primeiras letras da rua 25 de marçoO bacharel João Antonio de Oliveira Campos haonde, por despacho de s. ex. o sr. presidenteda província de 8 do corrente, permutado a 1ª cadeira de primeiras letras da freguezia do“Braz” com a do districto do norte da freguezia da Sé, sita da rua 25 de Março, fazpublico, que do dia 12 do corrente em diante principiará a leccionar na casa n. 101,sobrado, fronteira á ponte do Mercado, das 9 horas da manhã ás 2 da tarde; para o que,convida á matricula a todos os meninos da circumvisinhança, promettendo envidar todosos esforços a seu alcance, affim de adiantal-os para corresponder á confiança que osPaes de família sempre lhe depositarão durante o período de 21 annos em que exerce omagistério publico. (Jornal Diário de São Paulo, 10-1-1872).

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Capítulo 3

RETOMADAS NORMATIVAS DA INSPEÇÃO

O debate da reforma da instrução na imprensa

A formatação final do Regulamento n. 4 de 17 de abril de 1868 – Para a InstrucçãoPublica

73 era resultado do debate sobre o projeto de reforma da Instrução apresentado pela

Comissão de Instrução Pública à Assembléia Provincial no início de 1868 tendo como relator odeputado J. R de Miranda enquanto João da Silva Carrão era o presidente da Assembléia. Pelavia da Assembléia ou pela imprensa, ou por meio da Assembléia via imprensa era possívelconferir diferentes momentos de discussão da instrução nos jornais. A reforma necessária pareciabrecada pela Lei do Orçamento de 1854. Também se discutia a eleição de uma comissão paraapresentar aquilo que denominavam Código da Instrução. Enquanto não aparecia o Código, adiscussão sobre a instrução parecia dotar-se de um núcleo dado pelo serviço da inspeção. Esteera apontado como deficiente enquanto o professorado era considerado de baixa moralidade edespreparado para o ofício do magistério, o que se explicava em duas razões: a primeira é queos salários eram baixos e a outra, como que uma conseqüência da primeira, era uma certaconstatação de que o magistério público constituía alvo de pessoas sem quaisquer qualificaçõesprofissional ou moral. Uma outra questão exaustivamente discutida e quase uma derivação dasegunda razão já referida era a dúvida sobre o critério da vitaliciedade de cargos. Afinal, comomanter nos cargos profissionais que não demonstravam habilidade profissional ou qualificaçãomoral para o serviço público da instrução?

A Instrução Pública era colocada em meio aos tantos outros serviços públicoscaracterísticos das estratégias “civilizatórias” da implementação do Estado Nacional e podia ser

7 3Cf. Art. 23 da Lei nº 54 de 15 de abril de 1868.

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verificada no montante da escrituração que é, senão a maior, uma das mais empregadas armasde fiscalização e controle da administração pública.

Neste nosso paiz, e principalmente nesta nossa província de S. Paulo. ao que nos parece,escreve-se e discute-se muito. Não é só na enfadonha e perniciosa política que este factose dá: nas assembléas, no funcionalismo em geral o mesmo acontece a respeito de todosos ramos da publica administração; os archivos estão empilhados de relatórios dedissertações sobre todas as matérias.(Seção Commnicados A Instrucção Publica, CorreioPaulistano, 18-08-1858, p. 2).

O Inspetor da Instrução Pública tinha a boa vontade profissional reconhecida pelo montantede relatórios produzidos, o que não coibia o florescimento de opiniões que, muitas vezes, eramalimentadas pelo teor dos mesmos relatórios.

(...) consinta-se nos que entremos em algumas considerações quanto ao meio de realizara reforma. A baze segundo devemos concluir das opiniões não só do governo, mas dadirectoria da instrucção, é a elevação dos vencimentos dos professores em ordem achamar pessoal mais habilitado que o actual para o magistério primário e secundário; e acreação de delegados inspectores, ou commissões que effectivamente fiscalizem o ensinonas diversas localidades (Secção Communicados A Instrucção Publica, Correio Paulistano,1858, p. 2).

Traços da organização política da sociedade paulista poderia consistir um impedimento àexecução da reforma. Por aquela ocasião havia a prática de aumento salarial para professoresque endereçassem requerimento a deputados com quem tivessem alguma relação mais próxima.Tal prática era discutida pelos próprios deputados como uma solução paliativa uma vez que,embora reconhecem os baixos salários concedidos aos professores, o Tesouro Provincial nãopoderia arcar com um aumento salarial para toda a classe.

(...) temos medo das reformas, porque a experiência convence-nos que as melhoresintenções são illudidas na execução (e é da execução que quase sempre vem o descréditode algumas leis); o 5º poder do estado, como já se chamou o principio do patronato,encarta-se sempre nas reformas (...).(Secção Communicados A Instrucção Publica,Correio Paulistano, 1858, p. 2)

E como a necessária reforma atacaria o problema de professores vitalícios que tivessem aconduta moral ou inépcia profissional comprovada?

Si é certo que a grande maioria dos actuaes professores não possue a precisa habilitação(no que nós concordamos, vista a opinião geral, e os epizodios que a respeito se temreferido na Assembléia Provincial) como excluir os professores vitalícios de suas cadeiraspara nellas collocar melhores? (Secção Communicados A Instrucção Publica, CorreioPaulistano, 1858, p. 2)

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O discurso do Presidente da Província publicado no Correio tinha o cuidado de reconhecero papel da Assembléia à frente da Instrução e dava conta de aspectos do esperado Código daInstrução. Este parecia mais um documento que corroborava a relação entre melhores salários emelhor nível moral e profissional do professorado. O que não correspondia a uma predisposiçãopara o efetivo aumento salarial de professores. Sugeria sim o estímulo às escolas de iniciativaparticular que, subsidiadas pelo poder público prestariam o serviço da instrução em certaslocalidades.

Se o presidente parecia dar um tom cordato ao que o poder público (Assembléia,Repartição da Instrução) vinha fazendo em relação à Instrução Pública a redação do jornal nãoestava por esta conta. Uma série de textos publicados sob a denominação de Instrucção Públicano início da década de 60 explicitava os problemas da Instrução Pública com destaque para adesqualificação moral e inépcia profissional do professor público.

O vicio mais saliente que corróe a instrucção primaria é a incapacidade de professores(...) Professores que denunciam sua crassa ignorância nos officios que dirigem ásrepartições superiores. Muitos ignoram as regras mais triviais da ortographia. Alguns nãotem a precisa moralidade para dirigir a mocidade e n’ella imprimir morigerado exemplo.Sem intelligencia, sem moralidade, o que será o professorado? (Instrucção Publica,Correio Paulistano, 12-11-1862, 2).

Este perfil questionável do professor da instrução pública primária era condicionado àcondição salarial deste profissional que não produzia o efeito seletivo da demanda uma vez queos mais capacitados não se habilitariam a uma carreira cujos proventos não faziam jus aosesforços demandados.

N’estas circumstancias, a administração ou há de abandonar o futuro dos meninos pobres,ou confiará seus cuidados á mãos inhabeis. É pois impreterível melhorar o pessoal domagistério; um ignorante só poderá fazer ignorantes. Para isto cumpre elevar seusvencimentos (...) deve-se melhorar os vencimentos do cargo, como condição de acharbom pessoal para exercel-o. Póde-se manter pequeno numero de escholas publicas,remunerando os professores, como devem sel-o, promover o estabelecimento de escolasparticulares que serão subvencionadas, com a condição de ensinarem gratuitamente osmeninos pobres. (Instrucção Publica, Correio Paulistano, 12-11-1862, 2).

Note-se que a remissão à escola particular sugere o reconhecimento de um professor cujaprática estaria isenta dos problemas da inépcia ou da desqualificação moral. A seqüência daspublicações que debatiam a relação entre vencimento e desqualificação do professorado públicoderivava outras questões da escola pública, desta feita, os espaços de funcionamento: “o costumede o funcionário dar aula em sua própria casa. É obvio o inconveniente de semelhante costume(Instrucção Publica, Correio Paulistano, 14-11-1862, p. 2).

A redação do Jornal se posicionava contrária à administração da instrução pública, realizadapelo Inspetor, Dr. Diogo nos rumos da inspeção.

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(...) nosso fim não é desacatar personalidades; mas firmar a doutrina essencialmentenecessária para o desenvolvimento do paiz e inspecção do estado na instrucção publica.(...) vae péssima a administração do ensino e mais ainda a referencia ao ensino primário(...).Por que razão a inspecção não trata de observar as ordens superiores fiscalisandodevidamente todas essas casas de ensino que existem por ahi espalhadas, reprimindo osabusos nellas introduzidos, propondo aos poderes competentes medidas salutares nosentido de cortar os systemas manifestamente viciados que seguem ellas e que todosreconhecem hoje? (Instrucção Publica, Correio Paulistano, 16-12-1863, p. 2)

O periódico Diário de São Paulo cedia seus espaços para matérias cujo teor relacionavaa desqualificação do professorado público e as implcações sobre fomação da sociedade, conformese podia ler na publicação endereçada aos “srs. deputados”: “Se a instrucção é a cargo deprofissionaes, seus fructos são vivificantes; mas se ella é entregue a ignorantes, seus resultadossão nullos e podem ser funestos (Diário de São Paulo, 6-9-1866, p. 2).

O ano de 1868 aparece tanto no Correio Paulistano como no Diário de São Paulocomo o período das publicações que situariam o serviço da inspeção pública numa posiçãoestratégica de relação com o ensino livre. No Diário são publicadas diferentes denúncias daspráticas do Inspetor Geral. Numa delas é acusado de nomear para uma cadeira pública umprofessor com trajetória original de escola particular que não teria se submetido a qualquerexame. A denúncia dotada de ironia carrega expressões recortadas de relatórios do InspetorGeral e encaminhadas ao presidente da Assembléia, o sr. Carrão, onde o primeiro faria a defesada instrução como alavanca do “desenvolvimento cultural’.

Sob o pseudônimo de “A Alma do Come-fogo” a provisão do professor particular nacadeira do professor público foi retratada na chegada do professor à localidade:

No dia immediato á sua chegada ao lugar de sua residência, deu lhe o acesso para cultivaro espírito, o coração e ate o corpo, de um estimado professor publico do logar, atirando-se contra o mesmo com tal fúria, que alem da intervenção de muitas pessoas; presentes,para conterem a exaltação de suas lições, consta que concorrerão igualmente o juiz dedireito e o vigário para que a cultura não fosse completa na pessoa daquelle professor(Instrucção Publica, Diário de São Paulo, 12-2-1868, p. 2 – grifos do autor).

“Alma do come-fogo” ainda faz a seguinte referência: “Este facto não se comenta. Opublico deve simplesmente juntal-o á conservação de profesçoras publicas contractadas, quedão penicões nas bodinhas suas discípulas (...)”. Havia uma crítica ao critério de provisão adotadopela inspetoria: a nomeação de professores e, por outro lado uma franca oposição ao próprioInspetor Geral que estaria à frente do órgão que deveria supostamente coibir a tais práticas,quando as oficiava.

Tratava-se de uma denúncia dirigida ao público e que visava a formação de uma opiniãopública. A formação da opinião pública via imprensa é clara nas declarações publicadas noCorreio no mesmo período, de igual modo é uma prática usual o emprego de pseudônimos. Do

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mesmo modo que alguém se dirige ao Diário de São Paulo e numa advertência intitulada “Parao digno inspector da instrucção publica ver” (15/04/1868, p. 2) alerta para uma eventual eimprocedente denúncia de um certo professor público sob o aviso de que se há algum certificadodo ato denunciatório, há a franca intenção de uso do jornal para a defesa do referido professor:“publicaremos documentos que provarão exuberantemente” (15/04/1868, p. 2) a conduta domesmo. Pode-se ler no Correio a franca estratégia de formação de opinião pública pela via daoposição a aspectos do serviço público da inspeção da instrução das escolas de instruçãoprimária por meio da defesa do ensino livre onde os pais fariam a inspeção.

Sob o pseudônimo de Democrata e publicado na seção A pedido (Ensino livre 1) pode-se ler na edição de 30-4-1868: “Quem diz assembléia legislativa, diz um dos altos poderes doestado, destinados a governar este rebanho de irracionais chamado povo”. A seqüência esclareceque o “rebanho de irracionais” só mudará de estado quando da formação de uma certa opiniãopública:

(...) conversando esclarecem-se as idéas; e o povo executador da conversa, formará asua opinião, chamada opinião publica. A opinião publica representa o papel do diabo, napresença do poder, que representa o de Deos. E neste mundo ao menos o diabo muitasvezes faz apear Deos. (A Pedido Instrucção Publica, Correio Paulistano, 30/04/1868, p.2).

A seqüência do preâmbulo da formação da opinião pública74

é dirigida por um discursoestratégico na formação de opinião pública que se produz na defesa do ensino livre respaldadopela ineficácia do serviço público da inspeção.

Por que o temor da liberdade de ensino:1 Para impedir propagação das doutrinas subversivas2 Para impedir o ensino da immoralidade.3 Para conhecer das habilitações do mestre4 Para impedir o ensino das crenças acatholicas5 Para impedir que o ensino se torne o monopólio dos jesuítas6 E até por economia do erário (A Pedido Instrucção Publica, Correio Paulistano, 30/04/1868, p. 2).

7 4Sobre as relações entre imprensa e formação da opinião pública, ver Habermas, para quem a imprensa é um instrumentoimportante na formação da opinião pública no século XIX, ocasião na qual os jornais deixam de ser meros transmissoresde notícias para se fazerem importantes agentes de formação da opinião pública. Há um deslocamento sobre oemprego do jornal, de modo que, o editor passa de “vendedor de notícias a comerciante de opinião publica”. Ver maisem Habermas, 1984.Para Roger Chartier, o periódico é um lugar, não como um lugar propriamente dito mas elemento que se vincula aoutros lugares e funciona como uma forma de comunicação entre si. Numa definição mais abstrata de opinião pública,não como uma série de lugares particulares, senão como um conceito, como uma noção: a opinião pública a que o autordeve dirigir-se quando se escreve um texto no século XVIII, que define um espaço abstrato de circulação do escritoentre pessoas que não se unem, que não participam na mesma sociedade, mas que no privado, ao ler ou escrever emsua esfera privada, se comunicam entre si através da circulação do impresso (2000, p. 173).

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Veja como é desenrolado o item 2 “Para impedir o ensino da immoralidade”:

A immoralidade não é materia de ensino Póde ser desvario de um mestre: é cousa raríssima:mas quem primeiro a descobre não é a inspectoria de instruçcão publica: ella não temfilhos que vigiar. São os interessados; os pais de família. São estes que accordam ainspectoria que lhe dizia: descançai: eu velarei por vós: e pegava no somno.

E é esta vigilância que dá ao poder o direito exclusivo de governar o magistério dainstrucção publica! (A Pedido Instrucção Publica, Correio Paulistano, 30/04/1868, p. 2).

A crítica aos critérios do poder público sobre a admissão de professores reaparece nadefesa da família como a instituição que deve fazer a escolha da escola do próprio filho umasugestão de que a escola pública que tem na sua direção um professor afiançado pelo governose afrouxa no cumprimento de suas funções porque se acomoda nas condições de estabilidadedadas pela vitaliciedade de cargos.

Diz o poder: – “Eu sou muito entendido em bons mestres: pais de família: fiai-vos emmim, e naquelle que eu vos enviar. – E os pais não querem saber do enviado, depois de oterem experimentado, e mandam seus filhos na escola privada, ou chamam para sua casaum mestre sem patente. – E por que? – Por que o mestre affiançado pelo poder nãoprecisa de esforçar-se com seus discípulos para fazer jus á seus ordenados (...)A concurrencia dos mestres é um estimulo a bem ensinar (...).(A Pedido InstrucçãoPublica, Correio Paulistano, 30/04/1868, p. 2).

Juntar elementos dos dois itens é operação que tende a conferir à escola particular ou aoprofessor da escola particular uma conduta moral aprovada pelo suposto verdadeiro olho quecontrola e fiscaliza a escola: os pais de alunos. Tal sugestão reincidente numa ou noutra matériapublicada num ou noutro periódico se respingará também nas discussões da Assembléia Províncialonde o respingado sobre a instrução pública se dará a ver no incremento do serviço público deinspeção sobre as práticas desautorizadas de professores da instrução pública primária.

A defesa da escola particular se revela na atestação moral e profissional do professorcomo uma operação realizada pelos pais de alunos. No entanto a defesa da liberdade de ensinonão corresponderia ao desprezo sobre o direito constitucional de acesso à instrução a todoscidadãos sendo preciso legislar a instrução pública que, por sua vez, seguiria nas discussõescomo o núcleo temático do ensino obrigatório emparelhado com a defesa ensino livre.

É preciso compreender, observa Barros (1959) se apoiando em Antonio Cândido daCunha Leitão (discurso na Câmara dos Deputados, 1873) que a “liberdade de ensino não podeser nunca a liberdade de ignorância”, que ensino livre e ensino obrigatório não se opõem, comoo querem fazer crer certos espíritos menos progressistas, mas, ao contrário, “encontram-seperfeitamente, caminham ambos para o mesmo fim”. (1959, p. 105).

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O debate da reforma na Assembléia Provincial

“Assembléia Provincial funcionava em 1868, como sempre, ‘em uma sala muito pequena,apertada, anexa ao palácio, com uma galeria misèravelmente baixa, em cada extremidade, parao público’”. (MORSE (1970, p. 172). A descrição extraída do estudo de Richard Morse ilustraa precária condição do edifício público onde funcionava a Assembléia. Ao mesmo tempo constituiuma amostra da estagnação da capital de São Paulo, fato reconhecido até meados da década de60. Do ponto de vista político, o mesmo autor explica que “devido ao ainda vigoroso sistemapatriarcal, entretanto, o regime de partidos não era ainda efetivo como acelerador de mudanças.Os agrupamentos políticos eram muitas vezes mero disfarce para antigas rivalidades entre famílias”.(MORSE, 1970, p. 175). Nesta linha, o periódico A Época atribuía a “morosidade” de SãoPaulo a vestígios feudais. A Lei nº 6 de 10 de julho de 1867 suprimiu a Escola Normal de SãoPaulo sob a justificativa de que era “incapaz de responder às urgências sociais, culturais e políticasde sua época.” (MONARCHA, 1999, p. 44).

75 As duas caracterizações encontradas nos dois

estudos realizados parecem dar conta de reproduzir o local e o período referidos: “morosidade”,e “urgências sociais, culturais e políticas”. Aqui, parece procedente aquilo que Richard Sennetverificou sobre as transformações da noção de público e privado com o desenvolvimento docapitalismo e da modernidade, a transformação não se dá como o ciclo vital da mariposa – asociedade não termina uma revolução e em seguida começa outra. O erro maior consiste em nãover como um modo de vida se infiltra no outro. (1998, p. 38).

O desafio de compreender os debates que se sucederam na formatação dos dois últimostextos normativos da instrução pública em São Paulo nos anos de 1868 e 1869 são guiados pelatentativa de confrontar aspectos de “morosidade” e “urgências” da sociedade paulista diante daquestão da instrução.

Três temas enfeixavam a discussão sobre o papel do serviço público de inspeção escolarno projeto de reforma apresentado pela Comissão da Instrução Pública em março de 1868.

1) Obrigatoriedade do ensino76

versus o pátrio poder 77

7 5Ver mais em MONARCHA, C. 1999. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas/SP: Editora daUnicamp.

7 6A obrigatoriedade escolar foi prevista no texto da Reforma Couto Ferraz (1854) – Município da Corte mas não serealizou. Em São Paulo, no ano de 1864, foi aprovado um Projeto de Lei de Reforma do ensino primário que tornavao ensino obrigatório, “sob pena de multa a todos os menores de ambos os sexos em idades de 7 a 15 anos, residentesao alcance das escolas nos lugares onde as há publicas, ou particulares com ensino gratuito aos alunos pobres”. Maso “Governo devolve-o recusando sanção”. GIGLIO, 2001, p. 380, nota 472.

7 7Pátrio poder – Do latim patria protestas, poder do pater familiae sobre o filho e seus descendentes. No direitoromano, o patria protestas se originava do casamento (justae nuptiae), da legitimação dos filhos e da adoção. Apresentavaas seguintes características: a) atribuía ao pater familiae direitos personalíssimos, que não se estendiam à mulher e aosfilhos; b) era perpétuo, não cessando com a maioridade dos filhos; c) era prerrogativa atribuída apenas ao homem; d)morrendo o pai, o pátrio poder passava para o filho mais velho. Eram, dentre outras, prerrogativas do patriaprotestas: a) direito de vida e morte sobre sua mulher e filhos (jus vitae necisque); b) Consentimento para os filhos se

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2) A prática fraudulenta da escrituração da freqüência escolar3) Mudanças na organização geográfica da instrução.

Comum aos três temas relacionados acima, a confluência com o tema da inspeção escolare, das relações transversais aos temas, uma teia que apontava para processos fundantes daescola paulista em questão. A discussão sobre a obrigatoriedade não apenas resulta deapropriações de debates que vinham se realizando em países da Europa e Estados Unidos comoé respaldada por um aspecto inerente à prática cotidiana das escolas públicas: a baixa freqüênciade alunos em muitos destes estabelecimentos.

Por conseqüência e oposição, há uma discussão fundada no direito do estado em face dodireito da família na relação com a obrigatoriedade do ensino aos filhos. Do outro lado, outro háum professor que, em face da obrigação de ter na escola um número mínimo de matricula se vêincitado, não raro, à prática da fraude das informações acerca da freqüência escolar doestabelecimento sobre o qual era o responsável. Tal prática ainda reverberava entre os deputadosquando da legitimidade ou não do emprego da estatística escolar da província. Se os dadosescriturados pelo professor nos mapas de freqüência eram providos de caráter duvidoso, comose sustentar sobre os números computados pelo Inspetor Geral? Havia uma cadeia por onde seprocessavam os dados da estatística da freqüência escolar: o professor encaminhava o mapa defreqüência ao inspetor distrital que, por sua vez, reunia os dados de freqüência das escolasexistentes na região sobre a qual era autoridade fiscal e os encaminhava ao inspetor geral. Esteencaminharia os dados de freqüência das escolas da província ao presidente da província que osfazia chegar à Assembléia.

A discussão sobre o projeto de reforma girava sobre os eixos da discussão sobre aobrigatoriedade, a fraude na escrituração da freqüência e a geografia da inspeção escolar. Estavaem questão a proposta de mudança na divisão dos distritos literários de inspeção da instrução,a cada comarca corresponderia um círculo de inspeção da instrução.

78 De acordo com a proposta

casarem e imposição do divórcio a estes; c) venda dos filhos; d) os bens adquiridos pelos filhos passavam para o pai;e) o pai não pagava as dívidas dos filhos, porque estes não podiam compremeter a vida daqueles.No direito brasileiro, o pátrio poder é o conjunto de direitos dos pais sobre os filhos menores e bens destes. Ora, taisdireitos decorrem, naturalmente dos deveres que a lei lhes impõem. Então, no conceito de pátrio poder, não há quefalar apenas em direitos sobre os filhos, mas também em deveres quanto a estes. O pátrio poder incide sobre os filhoslegítimos e os legitimados. ACQUAVIVA, 2000, p. 996.

7 8A recorrência dos textos normativos da instrução pública sobre a questão territorial, ocorre na tematização da relaçãoentre território e inspeção, território e ensino obrigatório. Esta recorrência contribui para a inscrição da escola noconjunto das estratégias políticas da administração da Província Paulista. A preocupação com a organizaçãoadministrativa pode ser vista em diferentes perspectivas. No ano de 1866, foi publicado o “Memorial Paulistano parao ano de 1866 confeccionado por Joaquim Roberto de Azevedo Marques”. Tal obra tinha a finalidade de publicarnomes de pessoas, profissões, negócios, edifícios públicos, autoridades, enfim, um inventário da cidade. (CorreioPaulistano, 12/07/1865,4). Em 1873, era anunciado o “Diccionario Histórico, geographico, biographico, estatístico,descritivo e noticioso da Província de São Paulo Seguido da chronologia dos acontecimentos mais notáveis desde afundação da capitania de S. Vicente por Martim Affonso de Souza até o ano de 1870 por Manoel Eufrazio de AzevedoMarques Sobrinho” (Correio Paulistano, 10/04/1873,3). “Mappa da Província de São Paulo organisado por C. D.Rath com todas as estradas de ferro da província e ligações para as Minas Gerais e Rio de Janeiro. O mappa montado

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da Comissão, a organização do serviço público da instrução primária estaria igualmentecondicionada à divisão jurídica da província. Mais que isto, a dependência da organização doserviço da inspeção à divisão jurídica da administração do território se faria também na atribuiçãode funções de inspeção da instrução às figuras jurídicas e eclesiásticas de cada localidade. Destemodo, a cada círculo literário corresponderia também uma comarca. Para cada comarca, ainspeção da escola pública seria feita pelo promotor público enquanto cada paróquiacorresponderia a um distrito onde o responsável pela inspeção da escola seria o pároco. OInspetor Geral seria denominado de Diretor Geral tal qual a proposta de reforma que antecedeua aprovação do Regulamento de 1851. Havia ainda a proposta de estipendiar os cumpridoresda inspeção nas escolas, fato novo, já que os inspetores distritais (Regulamento de 1851) nãoeram remunerados pelos serviços prestados.

Entre as perguntas que alimentaram o debate entre os deputados estava aquela que punhaem dúvida a moralidade dos novos inspetores: pároco ou promotor público. Quem ajuizaria amoralidade do pároco ou do promotor público? As instituições por estes agentes representadasconstituíam provas incontestáveis da própria morigeração?

O controle sobre a ação do promotor poderia ser feito pelo juiz, afirmava um deputado.A proposta de reforma do serviço público de inspeção escolar suscitava polêmica entre osdeputados que não apenas se questionavam sobre a moralidade de quem iria controlar a moraldos professores como punham em dúvida a própria competência no ato legiferante, reconhecendoos próprios limites. Era o que se podia ouvir do sr. Tito, para quem, o projeto estava sendorevisto por homens no “primeiro degrau de definição das cousas publicas, logo estes homenspodem errar, não são perfeitos”.

Para este deputado o projeto apresentado pela Comissão mexia com as estruturas legaisdo edifício da instrução, foi o que disse para a Comisssão da Instrução.

Cuidado, porém, senhores da instrucção com a archictetura do edifício. Assim como asciencia tem princípios de que não póde prescindir, a arte tem regras de que sinão pódeaffastar. Estyllo ou methodo é preciso respeita-los. Como a alavanca de Archimedespresisava um ponto de apoio no espaço para suspender o mundo, a lei é uma lavancasocial, quer a justiça por baze. (Annaes da Asemblea Provincial, Sessão 11 de março de1868, p. 135).

em carteira elegante 7$000 – O mappa montado para parede 10$000 – Este mappa nitidamente impresso em 7 côresem Paris este anno 1886 é o mappa mais completo que existe da Província de São Paulo.” (Correio Paulistano, 25/01/1886,4). “O mappa da província de S. Paulo, organisado pelo engenheiro o sr. G. D. Rath, comprehendendo as parteslimitrophes de Minas-Gerais, Rio de Janeiro e Paraná. Em folhas (5$000), Em folhas dobradas e elegantementeencadernado (6$000), Collado sobre pano e envernizado, com armação de madeira, para parede (10$000).MAPPA DA PROVINCIA – Os srs. A L. Garraux & C. acabam de editar a carta da província de S. Paulo organisadapelo sr. Carlos Daniel Rath. Essa carta que é nitidamente lytographada em Pariz a diversas [...] está ricamentecartonada em pequeno e elegante volume proprio para se trazer na algibeira.No interior de capa traz uma interessantenoticia sobre a cidade de S. Paulo.” (A Província de São Paulo, 05/12/1877,5).

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Na seqüência o interlocutor é o dr. Carrão:

V. exc., sr. presidente, encanecido na sciencia do direito, traquejado nas leis parlamentares,sabe perfeitamente, que a lei não é uma invenção do homem, nem uma criação do dinheiro.Vive porque tem vida própria, vive no hábito, nos costumes, nas tradições, nos sentimentose nas condições sociais. (Annaes da Asemblea Provincial, Sessão 11 de março de 1868, p.135).

O sr. M. de Godoy afiança a posição do sr.Tito, para ele “não há lei sem costumes”. Doembate saído da proposta de reforma, os deputados tocam numa questão que tem a ver com aconcepção teórica que encontra no direito consuetudinário a base para formulação da lei. P.Bourdieu (2001) no estudo intitulado A força do direito chama a atenção para o modo como aregra é produzida destacando os profissionais responsáveis pela sua feitura. Este autor nota queo efeito jurídico da regra ou a sua significação é determinada pela relação de força específicadestes profissionais. A autoridade jurídica corresponderia a uma forma de violência simbólicacujo monopólio pertence ao Estado. Para Bourdieu (2001) a pergunta sobre a força da formalegal não é se o poder vem de cima ou de baixo, se a elaboração do direito e a sua transformaçãosão produtos de um “movimento” dos costumes em direção à regra, das práticas coletivas emdireção às fórmulas ou, inversamente, das formas e das fórmulas jurídicas em direção às práticasque elas informam. É preciso ter, em linha de conta, o conjunto das relações objetivas entre ocampo jurídico, lugar de relações complexas que obedece a uma lógica relativamente autônoma,e o campo de poder e, por meio dele, o campo social no seu conjunto.

Os deputados que discutiam a reforma da Instrução na Assembléia Provincial Paulista de1868 viam a eficácia da lei um movimento saído dos costumes na direção à regra. Vejamoscomo uma concepção de lei é veiculada do sr. Tito para o Dr. Carrão:

Dar leis, sr. presidente, repito (a despeito dos apartes com que fui honrado) que não temraízes na população, já o dizia Bacon:Non lucenam pedibus praebed, sed retius pelius obycit (sic).A lei não encaminha, não dirige, atrasa. (Annaes da Asemblea Provincial, Sessão 11 demarço de 1868, p. 135).

A crença sobre a eficácia de uma lei que tinha como base os costumes era testada nadiscussão de reforma da instrução quando tocava no reconhecimento senão de costumes, depráticas como a fraude de professores na escrituração da freqüência escolar. Tais fraudes eram,não raro, acobertadas por inspetores distritais que as encaminhavam ao inspetor geral que, porsua vez, apresentava ao presidente da província que as devolvia às Assembléias. O deputadoque pretendia construir um argumento, tendo como base o dado da freqüência que era processadona estatística da freqüência escolar da província, via-se desconfiado da certidão dos números aomesmo tempo em que se valia dos mesmos.

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O deputado F. Coelho propunha a criação de um “livro de presença”, instrumento segundoo qual, inibiria a ação fraudulenta de alguns professores. Embora houvesse acordo sobre aprática da fraude, não havia consenso sobre a medida sugerida para o controle da mesma.

(...) o professor que é capaz de dar um numero de alumnos além daquelles que sãofreqüentes, é também capaz de mandar qualquer assignar pelos meninos, que não sabemo que fazem, que não souberem ler. Com esta consideração só, fica demonstrado queessa idea não traz vantagem, não evita abuzos, é mais uma despeza inútil. (Sessão realizadaem 11 de março de 1868, Annaes da Assembléa Provincial, p. 155).

O descrédito sobre a estatísitica da freqüência tinha implicações sobre o ato legislativoquando da proposição de se estabelecer a criação de escola para cada comarca onde habitassem“500 almas”.

Sr. Tito – Ha actualmente na província, segundo dados officiaes, 7871 alumnosmatriculados e 5766 frequentes. A estatística é exacta.Sr. B. P. de Souza – Quase exacta.Sr. J. de Miranda – É exactissima; é do interesse da informação desta ordem.Sr. Tito – São estes os dados que me foram dados pelo inspector da instrucção publica.Sr. B. P. de Souza – O inspectores de districto não mandam para cá mappas perfeitos.(Annaes da Assembléia, Sessão realizada em 11/03/1868, p. 135).

Do embaraço provocado pela desconfiança da freqüência às escolas da província paulista,os deputados recorriam à estatística internacional, numa amostra que tanto lhes conferiaconhecimento acerca das discussões da causa em âmbito internacional como se revelavam comosubsídios para as próprias inclinações manifestadas na tribuna. As falas abaixo reproduzemparte da rede tecida entre diferentes fios que portavam traços de uma forma escolar (relaçõesentre obrigatoriedade escolar, não obrigatoriedade escolar, freqüência e fiscalização escolar) emconstituição. É assim que, para a discussão sobre a reforma da instrução pública paulista, osdeputados recorrem a dados concernentes às escolas da Alemanha, Espanha, Holanda, Portugal,Áustria, entre outros.

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7 9A recorrência à publicação internacional sobre instrução pública era muito comum entre os parlamentares, o que, emalguma medida poderia ser conferido no comércio de livros. “(PÉCAULT (Félix) – Études au jour sur l’educationnationale 1871-1879. La situation politique et morale Instruction primaire. Enseignement primaire superieur. Ecolesnormales, inspections, etc. Enseignement secondaire Enseignement supérieur. 1 vol. im 12 rel. 4$000” (CorreioPaulistano, 20/11/1878,4). “DITTES (Frédéric) – Histoire de l’éducation et de instruction, Ouvrage traduit de l’del’allemand par Auguste Redolf. 1 vol. in 8º rel. 6$000” (Correio Paulistano, 27/06/1878,4); “CHALVEAU. – L’instructionpublique au Canadá 1 vol in 8º 6$000”(A Província de São Paulo, 09/10/1877,p.4). De igual modo, os jornaisestampavam os debates e realizações internacionais sobre a instrução: “Instrucção: Relatório da comissão de educaçãodo conselho de reforma política da cidade de Nova-York sobre o ensino obrigatório” (Diário de São Paulo, 24/12/1874,2); “Instrucção Publica: O ensino normal primario na Prússia e os respectivos regulamentos orgânicos de 1854,estudados pelo Dr. Joaquim Teixeira de Macedo”(Diário de São Paulo, 13/09/1875 a 27/11/1875); “Ensino gratuito eobrigatório. Relatório do Miisterio da Instrução Pública de França ao Imperador” (Correio Paulistano, 02/07/1865,3);“Traducção: o mal e o remédio: Eucação primária obrigatória por George Lafarge”(Correio Paulistano, 23/01/1873 a

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Sr. Tito – Na Allemanha há um consorcio intimo, estreito entre a autoridade civil e aecclesiastica, entre o poder municipal e o parocho, de sorte que esta obrigação é fácil deexistir, a fiscalisação não encontra tropeços e embaraços, e é uma conseqüência dosystema regulamentar que entorpece a acção do pae de família a liberdade do lar domesticoe a do cidadão (...).(Annaes da Assembléia, Sessão realizada em 11/03/1868, p. 135).

De acordo com o deputado acima (Sr. Tito), nos países onde havia a obrigatoriedadeescolar, havia a seguinte relação:

Embora não apresentasse dados sobre a relação entre a freqüência e a população norte-americana, o deputado fazia o seguinte comentário acerca dos Estados Unidos: “(...) há o ensinoobrigatório, mas em outras condições. (...). A bondade das escholas, dos mestres, do methodo,e em geral do ensino torna o numero de freqüentes avultadissimos”.

Dentre os países onde não havia a obrigatoriedade escolar podia se obter a seguinterelação:

04/04/1873); “Escolas normaes primarias em França”(Correio Paulistano, 29/09/1882,p. 1-2); “Escolas normaesprimarias na Austrália e na Alllemanha” (Correio Paulistano, 08/10/1882, p.1-2); “Questões Sociaes: As escolas nosEstados Unidos” (A Província de São Paulo, 17/09/1876,1-2); “Questões Sociaes: As maravilhas da instrucçãopublica nos Estados Unidos” (A Província de São Paulo, 19/06/1877, p.1); “A Eschola Normal em New York” (AProvíncia de São Paulo, 25/10/1878, p.1).

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Como propor a obrigatoriedade escolar na província paulista quando agentes maisimportantes na relação direta e indireta com a escola eram alvos de suspeição tanto por questõesde formação, como por destoarem de um certo padrão de moralidade requerido ao exercíciodo magistério. Para o sr. Tito, do mesmo modo que se exigia a apresentação de títulos para oexercício da medicina, também se devia proceder com relação ao recrutamento de um professor:“Que perigo, que inconveniente há por tanto em exigir-se certas condições, daquelle que querensinar? Será a instrucção primaria menos importante do que tudo isso?” Efetua uma crítica àslimitações da Lei de nº 34 de 1846: “não põe obstaculos ao direito, regularisa o seu exercicio;nada mais e nada menos”.

(...) não haverá tambem perigo de um individuo que tenha soffrido uma pena infamente,de maus costumes mesmo, ir ensinar ahi pelo interior, onde as cartas de empenho facilitamtudo, e onde é por demais a boa fé e hospitalidade dos nossos lavradores? (...).(Annaesda Assembléia, Sessão realizada em 11/03/1868, p. 143).

Um outro deputado (Sr. L de Moraes) propunha que a mesma preocupação se dava narelação com a provisão das escolas localizadas na capital. E o Sr. Tito fazia do precedenteaberto pelo colega, a ocasião para se licenciar daquilo “que se diz por ahi” e pensar a relaçãoentre o serviço público da inspeção e o “estabelecimento do ensino livre”:

Do que se passa na capital não sei; não tenho provas do que se diz por ahi, o que digo é queestabelecido o ensino livre, póde elle tornar-se uma especulação, e, se apezar da inspecção dopoder, apezar da visita inexperada do inspector do districto, dão-se tantos abusos nas escholas,quanto mais se prohibirmos toda e qualquer intervenção da auctoridade a respeito. (...).(Annaesda Assembléia, Sessão realizada em 11/03/1868, p. 147).

Se ao ensino livre cabiam dúvidas sobre a institucionalização ou não do serviço público deinspeção, o argumento da obrigatoriedade escolar era legitimado pelo serviço da inspeção. Aoslegisladores, lhes parecia razoável que o governo interviesse na definição dos critérios de admissãode quem viesse a se tornar responsável pela formação moral e intelectual da mocidade. Damesma forma, era razoável que o governo impusesse aos pais a obrigatoriedade escolar já queos filhos estariam sendo formados por professores cuja admissão era regida por critérios.

(...) si o governo tem direito de intervir em relação ao exame da capacidade destesindivíduos, por certo não poderá também intervir para que o pae mande seus filhos áeschola? Attendendo-se que no primeiro caso o governo quer impedir que se faça umacousa que póde ser boa; e no segundo não se quer obrigar a fazer uma couza que há deser boa. (Sr. Bento Paula de Souza, Sessão realizada em 20 de março de 1868, Annaes daAssemblea Provincial, p. 155).

A defesa da obrigatoriedade escolar era sustentada pela proposta de definição sobre oscritérios de admissão para o exercício do magistério e pela garantia de um serviço público de

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inspeção eficiente que incidisse sobre o trabalho do professor. Este engendramento supunhacuidados na arquitetura de um organograma do serviço de inspeção.

Haverão tantos círculos literários, em que ficará dividida a província, quantas forem ascomarcas, e tantos districtos quantas as parochias (...) havendo alem do inspector geralque denominará director geral, um inspector em cada circulo, e um sub-inspector emcada districto. (Art. 1º do Projeto de Reforma da Instrução Pública da Província Paulistaem março de 1868, Sessão realizada em 20 de março de 1868, Annaes da AssembleaProvincial, p. 155).

Se o Aditamento ao Regulamento de 1851 (cap. 1) permitia aproximações entre a lógicaque informava a organização do serviço jurídico a organização da distribuição do serviço dainspeção na província paulista, o modelo proposto pela reforma em março de 1868, propunhauma analogia fiel ao modelo da organização do serviço jurídico.

80 Além da analogia, duas

diferenças básicas eram acrescentadas pelo projeto de reforma: uma dizia respeito à denominaçãosobre os responsáveis pelo serviço da inspeção. A outra tratava da expansão do serviço deinspeção. Na primeira diferença apontada, nota-se que em vez de inspetor geral, o projetosugere a denominação de diretor geral. Em vez de um inspetor distrital, um inspetor (responsávelpela fiscalização do círculo/ comarca) e um sub-inspetor responsável pela fiscalização do distrito.A organização do serviço jurídico que informava a organização do serviço da inspeção escolardefinia o desmembramento do antigo cargo de inspetor distrital (ou inspetor literário) em dois: o

8 0Nesta ocasião a divisão das comarcas existentes na Província paulista era dada pela Lei Provincial de 20 de abril de1866, que elevou o número de comarcas para dezenove: 1 – Bananal (Areias, vilas da Queluz e São José dos Barreiros,e Freguesia dos Pinheiros), 2 – Guaratinguetá (cidade do mesmo nome e Cunha), 3 -Lorena (cidade do mesmo nomee Silveiras, vila de Embaú e Freguesia do Sapé), 4 – Taubaté (cidade do mesmo nome, Pindamonhangaba, Vilas de SãoBento de Sapucaí-Mirim, Caçapava, freguesias do Paiolinho, Santo Antonio do Pinhal e Tremembé), 5 – Paraibuna(cidade do mesmo nome, São Luis de Piraitinga, Ubatuba, Vila da Natividade, freguesias do Bairro Alto e Alagoinha),6 – Jacareí (cidade do mesmo nome, Mogi das Cruzes, São José do Paraíba, vilas de Santa Isabel, Santa Branca e SãoJosé de Pairaitinga, e freguesias de Itaquaquecetuba, Arujá, Boquira e Patrocínio), 7 – Santos (Cidade do mesmo nome,vilas de São Vicente, Conceição de Itanhahém, São Sebastião, Bela da Princesa e Caraguatatuba), 8 – Iguape (cidade domesmo nome, vilas de Cananéia e Xiririca, Freguesias de Iporanga, juquiá e Jacupiranga), 9 – Comarca da Capital(cidade de São Paulo, vilas de Parnaíba, Santo Amaro e Cotia, freguesias de Santa Efigênia, Braz, Penha, Ó, Conceiçãodos Guarulhos, Juqueri, São Bernanardo, Itapecerica, e Consolação), 10 – Itu (cidade do mesmo nome, Sorocaba, SãoRoque, vilas de Campo Largo, Cabreúva, Indaiatuba, Peidade, Una, as freguesias de Água Choca e Araçariguama, 11– Itapetininga (cidade do mesmo nome, Itapeva da Faxina e Tatuí, vilas de Capão Bonito, Paranapanema, São JoãoBatista do Rio Verde, freguesias de Saraquí, Nossa Senhora do Bom Sucesso, Alambari, Lavrinhas, São João Batistado Guareí e São Sebastião do Tijuco Preto), 12 – Botucatu (vila do mesmo nome, Apiaí, Lençóis, freguesias de SãoDomingos, Ponte do Tietê, Rio Bonito e Rio Novo), 13 – Constituição – (cidade do mesmo nome, Porto Feliz,Capivari e Tietê, Vila de Santa Bárbara e Freguesia de São Pedro), 14 – Rio Claro (cidade do mesmo nome, Limeira,vilas de Brotas e Jaú, freguesias de Itaqueri, Dois Córregos e Patrocínio das Araras), 15 – Araraquara (vilas do mesmonome, São carlos do Pinhal, Belém do Descalvado, Piraçununga e Jabotical), 16 – Franca (cidade do mesmo nome,vilas de Batatais e Cajuru, freguesias do Carmo, Santa Rita do Paraíso, Sant’Ana dos Olhos d’Água e Santo Antonioda Alegria), 16 – Mogi-Mirim (cidade do mesmo nome, vilas de Casa Branca, São José da Boa Vista, Penha, caconde,São Simão, freguesias de Mogi-Guaçu, São Sebastião da Boa Vista, Espírito Santo do Pinhal, Espírito Santo do Rio doPeixe, Santa Rita do Passa-Quatro e Ribeirão Preto), 18 – Campinas (cidade do mesmo nome, Jundiaí, vila de Belém),19 – Bragança (cidades do mesmo nome, Atibaia, Amparo, vilas de Nazaré, Santo Antonio da Cachoeira e Serra Negra,freguesias do Socorro e Campo Largo). (MARQUES,1980, p. 189-190, vol. 1).

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FIGURA II – Atlas do Império do Brazil (Primeira visualização completa do território nacional de quedispuseram os brasileiros), 1868. NOVAIS & CASTRO, História da Vida Privada no Brasil, 1999, p. 234.

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inspetor responsável pelas escolas do círculo literário (ou comarca) e o sub-inspetor, com açãosobre o distrito (ou paróquia). Note-se que, pela proposta do projeto de reforma da instrução,o serviço da inspeção escolar era colocado em grau correspondente aos territórios dos poderesreligioso e judiciário. A proposta suscitava opiniões contrárias.

O pensamento que guiou a comissão na appresentação desta idea é, sem duvida, muitobom, ella quer que o ensino seja fiscalisado de perto, de modo que haja toda a garantia decumprimento de deveres por parte dos professores, mas eu penso que a commissãoengana-se si espera bons resultados dessa nova creação de empregados. (...). O queacontecerá é que uns e outros, nada farão. Si fosse possivel, seria muito convenienteque todas as escholas estivessem debaixo de uma só vista, por que, além dos bonsresultados que dahi viriam à instrucção, não ficariam as escolas subjeitas a uma seqüênciade empregados desde o diretor geral aqui da capital até o sub-inspector, que sempre há deser ou póde ser um analphabeto que apenas saberá assignar-se! (Sr. B. P. de Souza, Art.1º do Projeto de Reforma da Instrução Pública da Província Paulista em março de 1868,Sessão realizada em 20 de março de 1868, Annaes da Assemblea Provincial, p. 155).

Outras reações quanto ao item da reforma que incidia sobre a expansão controlada dainspeção endossavam a crítrica sobre a divisão sob a justificativa de que esta implicaria no“augmento de funccionalismo” (Sr. P. de Moraes).

O deputado P. Ferreira assim se manifestava:

Continuo, sr. presidente, a votar contra a divisão litteraria, contra a creação dos inspectoresde comarcas, e conseguintemente contra a gratificação que se quer lhe dar. (...) Sujeitara divisão literária à divisão da província póde ser de grande inconveniência, porquantovemos que rara é a sessão em que não se faz alteração nas comarcas. (Sessão realizadaem 23 de março de 1868, Annaes da Assemblea Provincial).

O artigo 2º do projeto em reforma da instrução (março de 1868) discutido pela Assembléiapaulista também indicava quem deveria ocupar os novos cargos de inspeção da instrução pública.Ao fazê-lo, explicitava tanto a adequação da geografia da inspeção escolar (divisão literária) àgeografia jurídica, como indicava os agentes jurídicos diretos para a provisão dos novos cargossugeridos para o serviço de inspeção da instrução.

Para o logar de inspector de circulo, serão preferidos os promotores públicos nascomarcas, e para os de sub-inspector os respectivos parochos. (artigo 2º, Projeto deReforma da Instrução Pública, março de 1868, Sessão realizada em 20 de março de1868, Annaes da Assemblea Provincial, p. 155).

Para o deputado Ferreira, contrário à proposta da nova organização do serviço dainspeção, um promotor jamais se submeteria ao trabalho de inspeção escolar de uma comarcapela mísera quantia de 400$000. “Certo que não”.

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(...) devemos conservar o estado actual da divisão litterária e os inspectores, a occasiãoé mais própria para remediarmos os males e os vexames que resultam dessa instituição,(...) de tirarmos os professores de baixo do peso da mão de ferro de alguns inspectoresque querem, como aqui se tem dito, abusar de sua posição, contra os professores, parafins politicos ou particulares. (Sessão realizada em 23 de março de 1868, Annaes daAssemblea Provincial, p. 155).

Na condição de representante da Comissão da Instrução Pública, o sr. Bernardo, revia aprópria sugestão: “para que restringir-se a liberdade que póde e deve ter o governo na escolhado pessoal para estes cargos? O promotor e o parocho não estão pela lei actual impedidos deservirem, para que esta preferência?” Aos juizes eram apontados comprometimentos da própriaformação e da moralidade.

Sobre a própria formação, apontava o deputado, Sr. Barros: “Vemos muitos juizes de quenão sabem escrever convenienteme a sua língua [...] que não comprehendem o que lêem.” Odeputado L. Moraes corroborava: “Há juizes de facto que mal assignam seu nome!” Dessamaneira, os juizes, profissionais aventados para o posto de fiscalizadores das escolas tinham asua conduta profissional na área jurídica questionada:

V. ex. tem muita practica, sabe o que se dá no jury: a maior parte desses homens quedecidem da sorte, e muitas vezes da vida de seus concidadõas, muitas vezes não sabemquando é que absolvem e quando condennam, porque não sabem responder dos quesitosdo juiz de direito, compreender o alcance da affirmação ou negação. (S. Barros, 33ªSecção, 21 de março de 1868, Sessão Extraordinária, 2ª parte da Ordem do Dia, InstrucçãoPublica, Discussão do Projeto nº 12, Annaes da Assemblea Provincial).

A inabilidadade apontada sobre a condução dos trabalhos dos agentes judiciários eraexmplificada com o acontecimento ocorrido em uma sessão de Júri

81, na qual o juiz demonstrou

desconhecimento de alguns termos e por isto, embora reconhecesse a inocência do acusado,promovia a sua condenação em vez de absolvê-lo.

82

8 1Júri Do latim jurare, fazer juramento – As origens do Tribunal do Júri estão na História da Inglaterra, por volta de1215, quando o Concílio de Latrão aboliu as ordálias e os juiízos de Deus. O Trbunal de Júri foi criado no Brasil e, 18de junho de 1822, com a findalidade de julgar os crimes da imprensa. A Constituição de 25 de março de 1824 guindou-o à condição de órgão do Poder Judiciário, dotando-o de competência para questões civis e criminais. Muito cedoentretanto, percebeu-se que os juízes do povo não poderiam decidir a respeito de lides civis, quase sempre complexas,a exigir conhecimentos especializados. Posteriormente o Júri viria a ser regulamentado pela L. 261, de 3 de dezembrode 1841, e pelo Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842, como Ademias pela L. 2033, de 20 de setembro de 1871,e o Regulamento 4824, de 22 de novembro de 1871, mantida a instituição pela L. Magna republicana de 1891, no art.72, § 31. ACQUAVIVA, 2000, p. 796-797.As sessões de júri eram eventos publicados nos jornais de circulação à época. Exemplo disto é a sessão de júri relizadano dia 20 de junho de 1866, tendo sido presidida pelo Juiz de Direito, Dr. Negreiros, o escrivão Lyrio e 39 jurados,entre os quais o Dr. Diogo de Mendonça Pinto. Diário de São Paulo, 21-06-1866, p. 3.

8 2Uma outra face da inabilidade da insitutuição do Júri é demonstrada por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1969). Aotratar da relação entre fazendeiros e agregados, fazendeiros e escravos no oeste paulista, a autora desvela o modo comoo exercício privado da justiça era exercido a favor dos fazendeiros. A autora nota o quanto o Júri, no final do séculoXIX, granjeou uma reputação de negligência e falta de rigor. Neste trabalho, a autora demonstra a inabilidade dosjurados diante da confusão gerada entre “Lei e Direito”, os jurados fariam prevalecer valores morais sobre princípioslegais, deixando perplexos ao promotor que dizia: “o júri foi mais favorável aos réus que eles mesmos” (p. 59).

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Um juiz de facto em uma Cidade importante da província mostrou-se possuído de choleracontra um conselho de jurados por teimarem e, affirmar que um réu que iam julgarestava embriagado quando commetteu o delicto pois elle queria negar essa circunstanciatemendo que fosse um novo delicto que determinasse a condemnação do réu e a quemaliás queria proteger convencido de sua innocencia! Isto por que?Por que esse juiz de facto não comprehendia o que eram circunstancias attenunates ouaggravantes porque não tinha conhecimento algum de sua própria língua. (S. Barros, 33ªSessão realizada em 21 de março de 1868, Annaes da Assemblea Provincial, p. 155).

Também a moralidade de magistrados e párocos entrava na berlinda dos deputados quedebatiam a conveniência da indicação destes agentes para a fiscalização das escolas. Haviadenúncias acerca da moralidade dos párocos de Jahú e Rio Claro. A suspeição moral de quemdeveria inspirar a moralidade era colocada para os legisladores da instrução, ocasião na qual odeputado L. de Moraes se dizia favorável a qualquer requerimento que visasse o esclarecimentode informações sobre qualquer magistrado “venal e corrompido” ou “sacerdote immoral comoos vigários de Jahú e Rio Claro”.

(...) é preciso que uma vez por todas nos convençamos de que não podemos viver sinãocom a moralidade e honestidade, e desde que entre nos qualquer parocho, qualquermagistrado zombar da lei, atacar de frente a moralidade publica com a proteção escandalosae immoral de altos funcionários, a sociedade vae mau caminho e é preciso que se ponhaum paradeiro a esta terrivel torrente de escândalos. (21 de março de 1868, SessãoExtraordinária da Assembléia Provincial Paulista).

A legiferação da instrução pública mexia com alguns dos móveis da questão do ensinode religião na sociedade brasileira no período imperial. Embora faltem os dados que caracterizariama denúncia acerca da moralidade questionável dos párocos de Jahú e rio Claro na sessão daAssembléia Provincial de 1868, as relações entre Estado e Igreja no Império

83 foram marcadas

pelo equilíbrio de conveniências e tensões. Na segunda metade dos anos 20, quando dasprimeiras sessões de Assembléia Geral a imoralidade dos integrantes do clero era discutida e sedefendia a supressão do celibato. Eis a posição de Feijó sobre o tema.

(...) a lei do celibato por uma experiência ininterrompida de quinze séculos tem produzidoa imoralidade numa Classe de Cidadãos, e Cidadãos encarregados do ensino da MoralPública; e que por essa causa seu ofício além de inútil se torna prejudicial, quando osPovos encontram na sua conduta o desmentido de sua doutrina, de que resulta a imoralidadena sociedade. (HOLANDA, 1995, p. 322, vol. VI).

8 3Sobre o tema nos anos 70 ao fim do século XIX, ver Roque Spencer Maciel Barros. O autor trabalha a “questãoreligiosa” como manifestação da mentalidade católico-conservadora que, resguardada pelo Syllabus, dispõe suasestratégias frente à penetração do liberalismo. No que diz respeito à educação, a oposição ao ensino obrigatório já quea alfabetização era porta para delitos como a falsificação de assinaturas, a condenação do “ensino exagerado” dasciências naturais porque este representaria um “perigo”. A adesão ao ensino livre mostrou a faceta entusiasta doscatólicos brasileiros pelas faculdades livres, defendiam a pouca participação do governo e a instituição da liberdade doensino, para tal empreitada também se valiam de teses do Syllabus. (BARROS, R. S. M. de. A ilustração brasileirae a idéia de universidade, 1959, p. 37-63).

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A Igreja rechaçou tal interveção do poder civil e prevaleceu o “catolicismo nominal”84

.Sobre a participação de párocos e promotores no serviço público de inspeção escolar no finalda década de 60 do século XIX, o que acontecia era o reconhecimento de que, tanto um comoo outro, o pároco e o promotor eram figuras comumente envolvidas nas questões da instrução.A ineficiência verificada na produção deste serviço (inspeção) era consenso. Mas não haviaacordo sobre a remodelação deste serviço, tanto como havia a sugestão de que “as câmarasnão servem” e que em vez de se apresentar “cousa nova, devemo-nos contentar com o que játemos”.

Sr. Bernado: “lembrei-me sr. presidente de modificar a lei actual no sentido de tornar ascâmaras municipais as fiscalisadoras do ensino. (...) porem não penso mais assim. (...).Eu entendia que as câmaras eram as mais habilitadas para fiscalisarem as escholas, porqueelas são os paes de familias, e estes são os mais próprios para velarem pela instrucçãodos seos filhos. Mas, sr. presidente, esta fiscalisação por parte das câmaras não é novidadeentre nós, e entretanto que resultado produziu? Nenhum absolutamente.Sr. F. Coelho: E que resultado tem produzido estes inspectores?Sr. Bernardo: Nenhum também. (Sessão realizada em 20 de março de 1868, Annaes daAssemblea Provincial, p. 155).

Sobre a questão, o sr. L. de Moraes entendia que o vigário ou o promotor tinha a“presumpção a seu favor”, mas isto não significava que fossem dotados de “moralidade einteligencia” para o desempenho público proveitoso das funções informadas pela lei. Este deputadocriticava o caráter de “regra geral” sobre a definição dos agentes que proveriam os cargos deinspeção que ganhava a feição de “uma classe de funccionarios publicos”.

O único meio é deixar-se, como até aqui, ao arbítrio do governo essas nomeações; elleque tome sobre si a responsabilidade ou a gloria de uma má ou bôa nomeação. Si nomearum individuo que não reúna as condições necessárias para bem desempenhar o cargo,então nós que mais ou menos, como homens políticos, temos uma vida mais activa einteressada na sociedade, fiscalisaremos o governo e o inspector da sociedade; si esteproceder mal, o accusaremos ao governo, e si este não quiser demitti-lo, o accusaremosnesta tribuna e na imprensa. (Sessão realizada em 20 demarço de 1868. Annaes daAssemblea Provincial, p. 167).

A Assembléia, pela voz do deputado, assume para si o controle a fiscalização moral dosagentes envolvidos direta ou indiretamente com a inspeção escolar.

Numa engrenagem discursiva cíclica, o serviço público de inspeção escolar éincessantemente colocado na relação com o ensino livre pelo fio da moral. A moralidade duvidosajustificaria a intervenção da autoridade pública sobre o ensino particular.

8 4HOLANDA

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“Si eu entendo que o ensino deve ser livre, também acho de muita conveniência que se lheponha uma pequena restrição, a da moralidade da parte do professor”. (Sr. Bernardo, Sessãorealizada em 20 de março de 1868. Annaes da Assemblea Provincial, p. 167).

A seguinte fala é dirigida ao presidente Carrão: “Tenho medo de accrescentar a palavramoralidade”. (Sessão realizada em 20 de março de 1868. Annaes da Assemblea Provincial, p.167).

Apello, pois, para os esforços de todos os meus collegas para redigirmos o artigo nestesentido; que o inspector não possa impedir a qualquer individuo de abrir eschola, poremque depois possa processa-lo, a falta de moralidade. (Sr. Bernardo, Sessão realizada em20 de março de 1868. Annaes da Assemblea Provincial, p. 167).

Uma aproximação sobre o teor desta moralidade se dá quando da constatação dascondições de infra-estrutura material das escolas existentes por aqui. A organização das escolasda província paulista mantinha a divisão entre escolas masculinas e femininas. Mas não se tinhaainda o edifício escolar.

Com professores reconhecidos ou nomeados como tais pelos órgãos de governosresponsáveis pela instrução, essas escolas funcionavam em espaços improvisados, comoigrejas, sacristias, dependências das Câmaras Municipais, salas de entrada de lojasmaçônicas, prédios comerciais ou na própria residência dos mestres (BARBANTI, 1977;HILSDORF, 1988 apud VIDAL, D. G. & FARIA FILHO, L. M. de., 2000, p. 19-34).

O Sr. Bernardo, sob a argumentação de quem ignorava os motivos da prática bem sucedidada escola norte-americana com a “promiscuidade” da escola aqui existente, contribui para umaoperação analítica que vê na condição espacial, um dispositivo importante na constituição dehábitos e princípios.

(...) infelizmente, não sei por que razão, ensaios dos Estados Unidos tem produzido entre nósresultados desgraçadissimos. (...) não temos ainda, como os estados Unidos, esses grandesedifícios levantados á espensas de camaras municipaes, nos quaes os dois sexos se encontram,porém em salas separadas, onde póde haver facilmente uma fiscalização segura da parte dosmestres. (...) mas entre nós, nada disto há. As casas de instrucção primaria, ao menos asque conheço, são verdadeiras espeluncas, casinhas escuras, com banquinhas de pau... (...)onde talvez seja anti-hygienica a habitação, e é para ahi que vamos levar meninas paraaprenderem promiscuamente com rapazes até a edade de quinze annos. (Sessão realizadaem 20 de março de 1868. Annaes da Assemblea Provincial, p. 155).

Entre a apresentação da proposta de reforma pela Comissão da Instrução, o debate e aspropostas de substitutivos, foi possível depreender um discurso que enfeixava os diferentestemas da instrução pelas interfaces com a inspeção escolar.

A força do dipositivo da inspeção escolar poderia ser explicada pela crença depositadana instrução. A estatística, instrumento que servia à legitimação de um discurso que zelava pela

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necessidade de implantar escolas que viabilizassem a formação moral e intelectual dos filhos daprovíncia também era empregada para alardear o crescimento de crimes. A ignorânciacorrespondia à predisposição para o crime. A escola eliminaria a necessidade da cadeia. Oprofessor substituiria o carrasco. Em vez da “força” da repreensão ou da punição, a força dadisciplina, veículo da civilização prometida pela difusão de escolas.

(...) o que se gasta com escholas, economisa-se com cadeia, e pela marcha da civilisação,eu me persuado de que ainda o mestre há de substituir o carrasco, que não haverá maisforça, porem haverá muitas escholas. (Sr. Bernardo, sessão realizada em 31/03/1868).

O deputado, Sr. Bernardo, se vale de dados publicados no ano de 1861 pelo ministrofrancês: “Os crimes que no decennio de 1837 a 1847 tinham descido de 235 casos em menoresde 21 annos, no deccenio de 1852 a 1862 desceram 4152 casos, em 1847 houveram 115menores de 16 annos crimminosos, em 1862 houveram 44 somente.” A sequência de sua fala éa explicitação da relação entre o ócio e a predisposição ao crime; logo, a necessidade daobrigatoriedade escolar. À escola é posta a condição de missão civilizatória dos maus costumesfertilizados pelo ócio.

Por esta comparação de duas epochas, vê-se a enorme diminuição exclusivamente devidaao ensino, é a menor ociosidade dos meninos.Na Suissa, em Neufchatel, Zurich, as prisões estão muitas vezes vazias, e muitas vezescom 2 ou 3 presos.Eis aqui as vantagens da instrucção, eis os resultados da obrigatoriedade, porque eucuido ter provado com a estatística que a obrigatoriedade é o princípio que mais resultadostem produzido nesta materia. (Sessão realizada em 31 de março de 1868).

O tema da obrigatoriedade como estratégia de inibição da criminalidade era consensojunto à boa parte dos presidentes que governaram a província paulista. É o que demonstra oestudo do conjunto dos relatórios dos presidentes da Província paulista que foram produzidosentre os anos de 1836 a 1876, realizado por Célia Giglio (2001). A autora emprega a metáfora“úlceras do corpo e da alma” para traduzir a representação de ignorância veiculada pela massadiscursiva dos relatórios presidenciais.

A ignorância do povo é responsável pela proliferação dos crimes, pelo alimento cotidianodos preconceitos desenvolvidos no seio da população e que se colocam como resistênciasà ordem do Estado. A ignorância do povo, o impede de fazer bom uso dos avanços daciência para preservar-lhe a vida; ao cegar-lhe o espírito, a ignorância coloca em risco avida do Estado. (GIGLIO, 2001, p. 385).

Obrigar o aluno a ir à escola já não se confunde com uma intervenção do domínio públicosobre o pátrio poder, nem mesmo devem representar domínios em colisão. Um processo infiltrao outro. Problemas como a pobreza e o crime são compreeendidos em termos de princípios e

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hábitos da população. Produz-se uma representação coletiva da necessidade de enfrentamentoda ignorância que torna a defesa da obrigatoriedade escolar um emblema de luta política.

Um olhar de pai para filho sugeria o redimensionamento das bases da discussão do temada obrigatoriedade do ensino, suplantando as amplas concepções sobre a matéria que incidiamsobre a inspeção deficitária, a inépcia do professorado ou a mentalidade liberal ilustrada emdifusão.

(...) já vemos hoje o bello sexo tomando parte muito activa no commercio? É verdadeque outr’ora, nesses tempos de prejuízos e preconceitos, quando se via uma mulher aobalcão, atirava-se-lhe á fronte o estihma indelével da prostituição; mas hoje uma mulherao balcão quer também dizer trabalho, honradez e honestidade. (...) há uma differençaextraordinária sobre a educação dada a um menino de tenra edade por um professor, e aque é dada por uma professora! O menino de 6 annos que vae pela primeira vez á escholahorroriza-se ao aproximar-se do professor; não há nada que mais o medronte do que apresença de homem que vai ensinal-o. Isto sera observado por todos que tivera filhos.(...) si v. exc. tira seo filho da eschola do professor, onde elle vae arrastado tão somentepara cumprir as ordens do seu pae, ou por medo de castigo, e leva-lo a uma professora(experiencia própria), há de observar uma differença espantosa! Então a professora,quando sabe compenetra-se da importância de sua missão, insinua-se por modo tal naquelleespírito ainda infantil, que dahi a pouco o menino a acompanha e obedece, com maisdocilidade recebe as lições que lhe são dadas, porque são acompanhadas dos carinhosprecisos aquela edade carinhos que não se encontrava da parte do professor, pois somentesão próprios e naturaes ao bello sexo. (Deputado L. de Moraes na sessão relizada no dia20 de março de 1868, Annaes da Assemblea Provincial, p. 147).

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1868: O Regulamento que não vingou

O “REGULAMENTO N. 4 DE 17 DE ABRIL DE 1868 – Para a Instrucção Publica”que resultou das discussões anteriores foi revogado em 19 de agosto do mesmo ano, tendo umaduração de quatro meses. A resolução que o revogou também determinou que o “Regulamentode Nabuco” (1851) voltasse a vigorar até que o governo apresentasse um outro regulamento.

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O que ocorreu um ano depois com a publicação do “REGULAMENTO DE 18 DE ABRIL DE

8 5Pode pensar que, a representação de mulher que a qualificaria para a tarefa do magistério, opera num só movimento,o reconhecimento do “espírito ainda infantil” da criança. A “Livraira A L. Garraux e C.” parecia inaugurar o comérciode “Contos Infantis”, oferecendo: “Alladim ou a lâmpada maravilhosa 1 vol. br. com estampas coloridas 800”; “Alli-Babá, ou os 40 ladrões, 1 vol. br. idem, idem 800”; “Anselmo o ruim, 1 vol. br. idem, idem, 800”; Aventuras de umanão, 1 vol. br. idem, idem 800”; “Historia de João das Gatinhas, 1 vol. br. idem, idem 1$000”; O Cão Palhaço, 1 vol.br., idem, idem 1$000”; “A Princeza Encantada, 1 vol. cart., idem, idem 800”, “Os Tres Ursos, 1 vol. cart., idem, idem2$000”. O mesmo anúncio divulgava a oferta promocional de periódicos europeus, entre os quais, o “Journal desenfant’s, (mensal)” 10$000 (São Paulo) 12$000 (interior). (A Província de São Paulo, 10/11/1877,4).

8 6Quando uma norma jurídica é alterada, cobrando nova redação, ela se supõe adaptada às novas circunstâncias sociais.Entretanto ela poderá ser revogada, substituída por outra. Sempre é bom lembrar que a revogação não se confunde coma anulação, pois, enquanto a anulação opera ex tunc, vale dizer, tem efeitos retroativos, a revogação opera ex nunc, istoé, a partir da data em vigor. (verbete Revogação da lei. ACQUAVIVA, M. C., 2000, p. 1168-1160).

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8 7À época da publicação do Regulamento de 1868, era presidente da Província paulista, o Conselheiro Dr. JoaquimSaldanha Marinho, que ocupou o cargo entre 24 de outubro de 1867 e 23 de abril de 1868. O primeiro Vice-presidenteera o Coronel Joaquim Floriano de Toledo (24 de abril até 28 de julho de 1868). O segundo Vice-presidente Barão doTietê entre 29 de julho até 9 de agosto de 1868. O terceiro Vice-presidente Dr. José Elias Pacheco Jordão. Enfim, oPresidente, Senador Conselheiro Barão de Itaúna, ocupou o cargo entre 27 de agosto de 1868 a 24 de abril de 1869,durante a sua administração foi publicado o Regulamento de Instrução de 1869. O Vice– Presidente ComendadorAntonio Joaquim da Rosa, ocupou o cargo entre 25 a 30 de abril de 1869. Cf: MARQUES, Província de São Paulo.Belo Horizonte: Editora Itatiaia / São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 1980, vol. II, p. 193.Até o final de 1869, outros dois vice-presidentes passaram pelo cargo. O grande número de presidentes e vice-presidentes que se alternam entre os anos de 1868 e 1869 demonstra o quanto o período foi conturbado. Asimplicações desta alternância no cargo da presidência impactaram a Instrução Pública por meio da publicação doRegulamento de em 17 de abril de 1868, a revogação do mesmo regulamento em 19 de agosto de 1868 e o retorno davigência do Regulamento de 1851 até a publicação do Regulamento de 18 de abril 1869. Para corroborar, verifica-se“os deputados – pela Província de São Paulo às Assembléias Gerias e Constituintes” nos períodos sucessivos de1867-1868, 1869-1872 tiveram as legislaturas respectivamente dissolvidas. Cf. MARQUES, 1980, p. 218.

1869 – Para a Instrucção Publica e Particular da província” (Cf. Art. 44 da Lei n. 34 de 16de março de 1846, art. 4º da Lei n. 10 de 1851, e art. 23 da Lei n. 54 de 1868).

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Entender a vida curta do Regulamento de 1868 é uma operação que pode ser ajudadapelo contraste com o Regulamento de 1869.

Uma vista sobre aspectos da diagramação de ambos os textos normativos em questãopermite destacar aspectos importantes de cultura e de forma escolares.

Quadro VDiagramação dos temas da Instrução nos Regulamentos (1851 e 1869)

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O título do Regulamento de 1868 não faz menção ao ensino particular, embora o referidotema esteja diluído nos diferentes pontos do documento para além da especificidade concedidapelo capitulo III. A primeira parte do segundo regulamento confere à “instrucção provincial” aorganização do ensino público e particular na província paulista enquanto o texto é dividido emtrês partes, sendo uma dedicada ao tema do ensino particular. A explicitação prescritiva deações do poder público sobre o ensino particular revela tanto a ação reguladora do poderpúblico sobre o ensino particular quanto evidencia a expansão deste segmento do ensino, o queem certa medida justificaria alguma forma de regulamentação. Vai se delineando uma concepçãoque, ao conferir liberdade de oferta escolar e liberdade de escolha da parte dos pais, tambémconsolida traços de um projeto liberal.

A liberdade de escolher a escola do filho tornava os pais agentes naturais da fiscalizaçãosobre a ação escolar. Esta relação implicava a minimização da ação do serviço público deinspeção sobre o ensino particular. Tanto no Regulamento de 1868 como no Regulamento de1869, há a mesma distinção na prescrição que instrui sobre a função do inspetor de distrito. Aeste agente compete, entre outras, as funções de:

Visitar, inspeccionar e fiscalisar inesperadamente, uma vez no mez, as escolas públicas,trimensalmente as de ensino particular, podendo proceder a esse acto sempre que julgarconveniente, e observando se, tanto em umas, como outras, o ensino é contrario á morale ás leis, e se não se guardam os preceitos de hygiene”. (§ 3º, art. 192, Cap. II, Regulamentode 1868).

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O Regulamento de 1869 divide a instrução sobre o serviço da inspeção dos ensinospúblico e particular em dois incisos enquanto as definições são dadas pela relação períodica dainspeção sobre os domínios público e particular das escolas.

Art. 17. Aos Inspectores de Districto incumbe:§1º Inspecionar, pelo menos uma vez por mez, as escolas de seu districto, procurandosaber se n’ellas se cumprem fielmente os regulamentos, regimentos, instrucções e ordenssuperiores, dando conta ao inspector municipal do que observarem, e propondo as medidasque julgarem convenientes.§ 2º Visitar ao menos uma vez em cada trimestre, e sempre em dia indeterminado e semsciencia prévia dos interessados, todas as escolas e estabelecimentos particulares deinstrucção de seus districtos, observando se ahi se guardam os preceitos de moral e asregras hygienicas, se o ensino dado não é contrario á moral e ás leis.

O tratamento sobre a regulamentação da inspeção das escolas de ensino particular e público éum traço de contraste sobre os regulamentos de 1868 e 1869. Mas o contraste que melhor define acomparação entre as diagramações destes dois documentos de normatização da instrução paulista nofinal da década de sessenta do século XIX é o tratamento concedido à inspeção.

A inspeção dá os contornos ao Regulamento de 1868. A natureza do ensino (capítulo 1)é dada pela inspeção na relação com sua direção e localização. A organização do serviço dafiscalização é o ponto de partida para a normatização das questões do ensino.

Capítulo I – Direcção e fiscalisação do ensino, sua natureza e localisaçãoArt. 1º A suprema direcção e fiscalisação do ensino, e dos empregados da instrucçãopublica pertence ao presidente da Província.Art. 2º Para isso são seus agentes:§ 1º O Inspector Geral da instrucção publica§ 2º Os Presidentes das Câmaras das Câmaras Municipaes, como inspectores em seusmunicípios§ 3º Os Inspectores de Districto

Conferir aos títulos dos dois regulamentos uma expressão de distinção da relação com ainspeção das escolas (ensino público e particular) e as implicações sobre a vida curta doRegulamento de 1868 não é pista falsa, mas perde força para a constatação de que a omissãodo ensino particular no título do Regulamento de 1868 ou a referência ao ensino particular notítulo do Regulamento de 1869 são questões diluídas nas preocupações quanto à definição dainspeção como uma estratégia de assegurar à escola as devidas condições de realizar a missãocivilizatória que lhe é outorgada naquele momento. Esta estratégia era contrapesada pela discussãoemergente da obrigatoriedade escolar e o princípio da liberdade do ensino e se ancorava, entreoutras, na concepção de que os maus costumes eram fertilizados pela ignorância.

O Regulamento de 1869 é dividido em três partes organizadas segundo uma lógica quepretende definir o ensino, instruir a organização das escolas, definir os critérios de provisão deprofessores e alunos, o calendário do ensino, obrigações de professores, situar o ensino particular

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e instruir o serviço da inspeção. Destacar o lugar da inspeção na distinção conferida à organizaçãonormativa de cada documento é operação que tende a constatar reverberações da Assembléiade Março de 1868, afirmações de tendências que apontam para a conformação de um projetoem gestação.

O modo como os dois regulamentos normatizam as funções da inspeção revelam ensaiose julgamentos sobre o perfil de quem é o agente mais apto a realizar o controle sobre a ação doprofessor. Neste exercício pode ser produtivo retomar os textos normativos anteriores paraconferir o modo como, nas suas sucessões, as prescrições sobre os agentes inspecionadoresforam sendo formuladas.

Quadro VIO serviço da Inspeção nos textos normativos da Instrução de 1827 a 1869.

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Fontes: Lei n. 310 de 16 de março de 1846 ou Lei n. 34 de 1846. Coleção Leis Provinciaes de São Paulo (1844-1849) FFCHL– USP. Regulamento de 25 de setembro de 1846 – Para a Commissão Inspectora das escholas de 1ªs lettras – Coleção LeisProvinciaes de São Paulo (1844-1849) FFCHL – USP. Regulamento n. 4 de 17 de abril de 1868 – Para a Instrucção Publica.Regulamentos expedidos pelo Exmo Governo Provincial para execução de diversas Leis Porvinciaes de São Paulo. Pres. JoãoTheodoro Xavier. Typographia “Correio Paulistano” – 1874. FFCHL – USP. Regulamento de 18 de abril de 1869 – Para aInstrucção Publica e Particular da Província. Regulamentos expedidos pelo Exmo Governo Provincial para execução dediversas Leis Provinciaes. Pres. João Theodoro Xavier. Typographia “Correio Paulistano” – 1874. FFCHL – USP.

A instituição do Presidente da Câmara Municipal como agente responsável pela inspeçãoreferente ao município representa, nalguma medida, um retorno ao preceito que orientou aregulamentação do serviço na Lei de 1827. Mas é importante considerar que a instituição deComissões Inspetoras em vez da ação fiscalizante das Câmaras Municipais (Lei de 46) nãoafugentou o representante do poder público municipal das ações de inspeção sobre a escola.Esta participação se dava na composição da Comissão, quando o vereador era um agente quese somava a outros (agentes jurídicos e eclesiásticos) chamados a apaziguar ou acirrar arestasprovenientes das contendas entre os agentes de ação mais direta sobre a escola. Oreconhecimento da permanência do representante municipal é tão importante quanto a estratégiada sua diluição nas propostas de criação de Comissões Inspetoras ou Conselhos de Instrução.Estas agremiações pretendiam reunir uma diversidade social maior sobre a representação dequestões da instrução.

O retorno das Câmaras Municipais à condição de agentes com funções especificadas deinspeção escolar também constitui uma reverberação de março de 1868, está contemplado peloRegulamento de abril de 1868 e reiterado pelo Regulamento de abril de 1869. A regulamentaçãode suas atribuições é dada pela geografia política de sua atuação. Em nível municipal, a inspeçãoescolar haveria de ter como responsável, o presidente da Câmara Municipal. Esta referênciageográfica da atuação da inspeção se dava no âmbito da província, do município, do distrito(paróquia). A recorrência da referência geográfica confere às tentativas de demarcação doterritório paulista, a estratégia político-administrativa de inscrição do controle sobre a escola pormeio da organização de domínios, instâncias de atuação escalonada de uma inspeção que tambémé vigiada. Os processos de constituição da escola de instrução elementar paulista trazem consigoa instância da inspeção que se instaura em círculos de fronteiras: municipal, provincial. A inscriçãoprovincial está submetida à fronteira nacional. Trata-se de um discurso geográfico que justificaas fronteiras, como tal, um discurso correspondente ao nacionalismo. As interfaces entre odebate sobre a obrigatoriedade escolar, o controle sobre a ação de agentes escolares diretos eindiretos, a demarcação territorial dos espaços da instrução e da inspeção sobre a mesma,contribuem para esboços de um projeto de nação. A escola estava inscrita no coração desteprojeto.

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Entre os regulamentos da instrução de fins da década de 60 (século XIX), já se observouque a preocupação com a inspeção escolar guia a redação do primeiro enquanto os cuidadoscom a arquitetura desta função se reproduzem com incrementos no segundo. O Regulamento deInstrução Pública de abril de 1869 é fundante da ação controladora sobre as ações do professorporque institucionaliza o processo disciplinar. Além de normatizar sobre funções, nomeações,substituições e habilitações, o capítulo V define “faltas e penas, e processo disciplinar”. Estecapítulo se divide nas seções I e II. A primeira define faltas e penas e a segunda define sobre aimposição de penas e processo disciplinar.

Ao inspetor de distrito competia a imposição de penas de admoestação e repreensão. Atais penas estavão sujeitos:

Os professores públicos, que, por negligencia ou má vontade, deixarem de cumprir bemos seus deveres, instruirem mal os seus alumnos, exercerem a disciplina sem critério,deixarem de dar aula por mais de tres dias em um mez, infringirem qualquer disposiçãodeste Regulamento, ou deixarem de cumprir as ordens de seus superiores (Art. 39).

Esta instância não concedia ao professor o direito de interpor recurso.88

No caso dereincidência sobre as faltas acima, impor-se-ia ao professor reincidente o sofrimento da pena demulta de valores que variariam até 50$000. Para o caso dos reincidentes multados que insistissemem dar “máos exemplos, ou inculcarem máos princípios aos seus alumnos” caberia as suspensõesdo exercício do magistério e da percepção do ordenado por período de até três meses. Amesma punição seria aplicada aos professores condenados “ás penas de galés ou de prisão comtrabalho” ou que fornecessem “informações inexactas sobre o estado de sua escola, ou servir-sede attestados falsos”.

O Inspetor de Distrito que procedesse à imposição das penas acima relacionadas deveriainformar ao Inspetor Municipal, a quem competia o encaminhamento de provas e documentosque atestavam a falta cometida pelo professor ao Inspetor Geral. Notificado, o último solicitariaaos secretários que averbassem a ocorrência no assentamento do professor. O conhecimentoda documentação da falta do professor instruiria o parecer da pena (multa). No caso da puniçãotraduzida em multa, havia espaço para a interposição de recurso da parte do professor. Nestecaso, o professor condenado à pena da multa deveria encaminhar o recurso diretamente aoInspetor Geral ou, se o preferisse, contar com a intermediação do inspetor do distrito. A revogaçãoda pena só poderia ser concedida pelo Presidente da Província. Se o Presidente da Província

8 8Recurso – Do latim re + cursus, retorno, volta, repetição. Recorrer procede do latim recurrere, ou seja, tornar a correr,percorrer. O prefixo re revela a idéia de ato de voltar; re/tornar, de modo que a parte descontente, no todo ou em parte,com a decisão e primeira instância, pretende a re/condução do status quo ante, ou seja, à situação anterior a decisãode primeira instância. Denomina-se recurso “o poder de vontade, juridicamente regulado, conferido à parte vencida,ou a outrem, para invocar nova decisão, em regra de órgão jurisdicional hierarquicamente superior, sobre o objetoformal ou material do processo (...) a primeira decisão desfavorável toca mais fundo à sensibilidade do vencido,propiciando espontânea reação deste no sentido da obtenção do novo julgamento, modificativo ou revocatório doanterior.” TUCCI apud ACQUAVIVA, 2000, p. 1118-1119.

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mantivesse a decisão da condenação de multa, seria feita uma comunicação com o ThesouroProvincial com vistas à subtração do valor estipulado sobre os vencimentos do professor.

A condenação que previa como punição a supressão temporária da atividade e orecebimento do ordenado do professor requeria a constituição de um processo. Uma denúnciade particular ou oficial era dirigida ao Inspetor Geral que procederia à intimação do acusado. Oacusado teria um prazo de até trinta dias (a partir da intimação) para produzir a sua defesa que,analisada pelo Presidente da Província, exibiria os fundamentos que instruiriam pela absolviçãoou condenação. A decisão do presidente seria imediatamente comunicada ao Inspetor Geral daInstrução Pública e Inspetor do Tesouro Provincial. Ao Inspetor Geral da Instrução caberia ainformação ao acusado, ao Inspetor do Tesouro caberia a suspensão dos vencimentoscorrespondentes ao acusado. Casos de professores que tivessem sofrido a pena de galés, ouacusados por furto, roubo, estelionato, bancarrota

89, rapto, bigamia

90, incesto

91, adultério ou

qualquer motivo que constituísse ofensa à moral pública ou à religião do Estado constituíammotivo para suspensão imediata do professor. O procedimento seguinte era o de comunicar aoInspetor Geral da Instrução Pública, ao Inspetor do Tesouro Provincial e ao próprio professor.

A suspensão duraria o tempo judicial do processo. Nos casos de absolvição judicial doprofessor envolvido nos delitos acima, o professor teria o direito de reassumir a cadeira. Acondição para tal era apresentar a Certidão do respectivo processo judicial dando conta de suaabsolvição ao Inspetor Geral da Instrução Pública. Este, por sua vez, a encaminharia ao Presidenteda Província que procederia à autorização do professor no retorno às atividades.

A punição de perda da cadeira era aplicada aos casos que implicassem o seguinteritual: feita a denúncia, de origem particular ou oficial, o Presidente da Província autorizavao Inspetor Geral a promover uma audiência junto às autoridades da localidade ondetrabalhava o professor acusado. A partir de então, o professor acusado seria intimado a

8 9Bancarrota – Do antigo germânico banc, balcão. A expressão deriva de, antigamente, o comerciante falido ter sua banca(estabelecimento) totalmente quebrada (daí quebra), rota (destruída), como punição pelo descumprimento dos encargosassumidos com os credores. ACQUAVIVA, 2000, p.221-222.Vale conferir o modo como a publicação de um periódico da época propunha a antigüidade da relação entre a desonrae a bancarrota. “A origem da expressão vulgar – pedra de escândalo -, empregada quando se quer tornar mais odiosoo máo procedimento de qualquer, que pelas suas acções ofende a honra e o decoro publico, é a seguinte, Havia umapedra, elevada junto do pórtico principal do Capitolio da antiga Roma, na qual se achava esculpida a figura de um leão.Aquelles que faziam banca-rota, ou quebra dolosa, e que so vião na necessidade de abandonar os bens aos seuscredores, erão obrigados a assentar-se nus sobre esta pedra e chamar em alta voz – cedo bona – eu abandono os meusbens; seguindo-se a esta declaração o baterem tres vezes na dita pedra com o trazeiro; com effeito, sendo de inverno,não era má peça. Pobres homens! Passada esta pratica irrisória (que todavia para alguns seria forte motivo para seremmais escrupulosos, e não delapidarem os bens dos outros), não podiam ser mais inquietados; e além disso ficavãodifamados, erão declarados intestáveis, e até não podião depor em juizo, como testemunhas; tal era a maneira comocorregião os devedores dolosos.” (Diário de São Paulo, 02/07/1874, p. 3).

9 0Do latim bigamus, originariamente do grego, gamos, casamento, acrescido do prefixo bi, duas vezes. Crime contra afamília, consistente em contrair alguém, sendo casado, um novo matrimônio. ACQUAVIVA, 2000, p. 244-245.

9 1Incesto – Do latim incestu, impuro, impudico. Conjunção carnal entre homem e mulher parentes por consangüinidade,em grau vedado ao casamento. ACQUAVIVA, p. 726.

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comparecer à repartição da Inspetoria Geral de Instrução Pública em dia e horário marcados.O tempo dado ao professor para a apresentação diante do Inspetor Geral estariacondicionado à distância da localidade onde trabalhava o professor na relação com arepatição, situada na capital da província: “quatro léguas por dia” (§ 1º, Art. 50, Reg. Abrilde 1868). O interrogatório se daria numa sala da repartição em data e hora marcadas.Estariam presentes o Inspetor Geral, o secretário e o professor acusado. Ao Inspetor geralcumpria o papel de inquirir ao professor, ao secretário cumpria o registro escrito de perguntase respostas. Ao término do interrogatório, o acusado poderia formular uma defesa escrita,anexando à mesma, os documentos comprobatórios.

Organisado o processo com as peças de accusação, sua defeza e documentos, o InspectorGeral, fazendo o seu relatorio sobre o mesmo processo, e dando seu parecer favorávelou infenso ao accusado, remetterá tudo ao Presidente da Província. (§4º, Art. 50, Reg.abril de 1868).

O procedimento seguinte consistia no encaminhamento do processo ao Presidente daProvíncia que, num ato administrativo, decidiria pela absolvição ou condenação do professor. Oresultado seria comunicado ao Inspetor Geral e ao Inspetor do Tesouro, devendo o processoser arquivado pela Secretaria do Governo.

O Regulamento de 1869 prevê um tratamento sobre a apuração de faltas cujo tom é o decriminalização da “falta” cometida pelo professor público. Prevê-se um ritual onde o InspetorGeral faz papel de inquisidor, o professor é o réu, o secretário é o escrivão, a sala da repartiçãoda Instrução Pública se torna um cenário policial. A instauração de processo disciplinar naapuração de possíveis faltas de professores é mantida no Regulamento de abril de 1869, masneste segundo dispositivo normativo há uma alteração sensível sobre o tratamento dado à apuraçãode faltas supostamente cometidas por professores, trata-se da supressão do ritual policialescoda apuração. O Regulamento de abril de 1869 mantém a admoestação, a multa e a instauraçãode processo para casos de faltas de professores. A diferença é que a instrução sobre o processoé subtraída da audiência realizada na repartição da Instrução Pública da capital. Em vez do tête-à-tête entre Inspetor Geral e professor acusado, há uma comunicação escrita intermediando oacusado e os agentes responsáveis pela apuração da denúncia.

(...) o Inspector geral, tendo recebido a queixa, denuncia particular ou official, ou tendotido por qualquer modo noticia do facto punível, ouvirá o Professor accusado porintermedio do Inspector do Districto, assignando-lhe o praso nunca maior de trinta dias,contado do dia que para se defender for intimado pela Inspectoria do Districto.

Findo esse praso, o Inspector do Districto enviará ao Inspector Geral, com informaçãosua, a defeza e documentos que a instruirem. (Artigos 130 e 131 do Reg. de abril de1869).

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A reformulação dada ao tratamento do processo de apuração de falta cometida porprofessor implica a relativização do tom policialesco do processo previsto pelo Regulamento de1868.

O tratamento da falta apurada nos casos que envolviam agentes (professores, diretores)das escolas de ensino particular representava a parte menor do texto, embora permitisse notarpoucas variações quanto ao procedimento sobre a falta do professor. Admoestar, repreender emultar são ações comuns para a punição do professor público ou particular. Para caso dereincidência “ou quando praticarem ou consentirem offensas á moral e bons costumes, serãoobrigados a fechar a respectiva escola, aula ou estabelecimento.” (Artigos 44 e 45 do Reg. de1868). O Regulamento de 1869 previa a imposição de admoestação, multa e repreensão. Emcasos de faltas mais graves, o Inspetor do Distrito haveria de encaminhar ao Inspetor Geral a“exposição circumstanciada” dos fatos referentes ao professor acusado (escola particular). Diantedo conhecimento dos fatos, o Inspetor Geral “ouvindo o Professor inculpado” procederia àemissão do parecer.

As punições de admoestação, multas, repreensão e a instauração de processo são, comalgumas ressalvas, comuns à aplicação de faltas cometidas por professores de ensino público ouparticular.

Relacionar as faltas inscritas nas diferentes penas é um exercício que permite vislumbrartraços da arquitetura moral da profissionalização do professor público.

O Professor público seria passível de admoestação ou repreensão nos casos de:– Não cumprir os seus deveres por negligência ou má vontade– Instruir mal aos seus alunos– Deixar de dar aula por mais de três dias em um mês– Infringir a qualquer disposição do Regulamento– Descumprir ordens dos superiores

A reincidência da falta que tivesse sido punida por admoestação ou repreensão implicariaa aplicação de multa com valor de até 50$000. A reincidência de falta caracterizada pela puniçãoda multa seria aplicada aos casos de professores públicos que “derem máos exemplos, ouinculcarem máos princípios aos seus alumnos”.

A instauração de processo disciplinar com sentença de condenação resultaria na puniçãopela suspensão do exercício e dos vencimentos ou a perda da cadeira. Constituíam faltas inscritasneste caso:

– Professor que tenha sofrido pena de galés ou prisão com trabalho– Professor condenado em ação judicial sob a acusação de roubo, estelionato, bancarrota,

rapto, bigamia, incesto ou adultério.– Professor que tivesse sido suspenso por três vezes e ainda reincidisse nas faltas pelas

quais foi punido

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– Professor que fomentasse a imoralidade entre seus alunos– Professor que ofertasse informações inexatas sobre o estado de sua escola ou que se

servisse de atestados falsos.O Regulamento de 1868 relacionava as condutas inscritas como faltas e assim sendo,

passíveis de punições, logo, estabelecia as práticas não autorizadas aos professores públicos.Enquanto as práticas desautorizadas eram tratadas na relação com a previsão de punição, aspráticas autorizadas eram tratadas como “obrigações”.

§ 1º Os Professores de escholas publicas são obrigados:1º A apresentar-se nas aulas e nos respectivos estabelecimentos sempre decentementevestidos.2º A não se occupar, e nem aos alumnos, com objectos estranhos ao ensino, durante ashoras dalição.§ 2º Os mesmos Professores deverão não só ter escripturado com limpeza e aceio o livrodematricula, conforme o modelo que lhes for determinado pelo Inspector Geral, como,findo o prazoda matricula, a remetter aos respectivos Inspectores de Districto, para que estes a dirijamporintermédio dos Municípios ao Geral, copia da mesma matricula com as devidasdesignações. (Art.57, Disposições Gerais).

As obrigações impostas ao professor público estão, na sua maioria, relacionadascom exercício específico de sua prática profissional e quase sempre, são definidas na contra-face do serviço da inspeção. As condutas reconhecidas como faltas estão, na sua maioria,relacionadas com códigos culturais que guiam as suas atitudes perante a vida. Há umintervalo entre a definição obrigação e o reconhecimento da “falta”. A força da lei nãoobriga a que o candidato ao magistério não pratique o roubo, mas se acontece, procede àdestituição da cadeira. A um só tempo, define as práticas que compõem a especificidadedo exercício do magistério como “obrigações”.

O Regulamento de 1869 define, entre outras, as seguintes as obrigações dos professorespúblicos:

– Trajar decentemente tanto na escola como fóra d’ella– Dar por palavras e obras exemplo de polidez e moralidade (§§ 1º e 7º do Art. 110,

Reg. 1869).

A definição sobre as obrigações do professor público não se restringe à conduta inscritano interior das paredes da escola. Instituir as paredes de uma escola ou atribuir a certas paredesa condição de limites do espaço da ação escolar implica uma negociação entre a vida profissionale a vida particular.

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A abertura de uma escola de instrução primária estava condicionada à “relação authentica”de trinta alunos. De posse desta relação, a Câmara Municipal encaminharia uma representaçãoao Governo Provincial, que avaliaria a questão. A autenticidade da relação implicava a confirmaçãodo pároco e do subdelegado do distrito na avaliação dos dados relacionados à “idade,naturalidade, nacionalidade, condição e filiação” (Art. 6º, Reg. 1868). Criar uma escola, ingressarà escola eram processos sujeitos a critérios constituídos por um conjunto de agentes representativosda sociedade. Assumir o lugar de professor da escola correspondia à submissão de análise daconduta. A certidão quanto à avaliação da conduta do candidato ao ofício do magistério eradada por “atestados do Parocho, Subdelegado, Juiz de Paz a outras Autoridades do lugar oulugares onde o candidato houver residido”. (Art. 15, Reg. 1869). Para o caso de candidatas aoofício do mgistério nas escolas femininas, havia uma predisposição normativa pela admissão demulher casada. Se a canditada fosse viúva, deveria apresentar a certidão de óbito do marido e,se separada teria de apresentar a sentença que julgou a separação para fossem avaliados osmotivos. Se solteira, teria de ter no mínimo vinte e cinco anos, comprovar domícilio com os paise, sobre estes, apresentar “competentes provas de moralidade”(Art. 24, Reg. 1868).

A invenção do evento escolar implica a definição sobre quem não está apto ao ingresso,também define pela inaptidão à permanência na escola. Deste modo, se produz uma espécie deexclusão por meio da interface entre o dentro e o fora da escola. Entre os candidatos à condiçãode alunos, estavam impedidos da matrícula às escolas primárias: os menores de cinco anos, osmaiores de catorze anos, os portadores de moléstias contagiosas, os escravos, aqueles quetivessem sido expulsos de alguma escola sob a nota de que eram incorrigíveis, alunos que tivessemfreqüentado escolas públicas por dois anos consecutivos sem o esperado proveito, alunos quenão comparecessem ao exame na data marcada por dois anos consecutivos. (Disposições Geraesdo Reg. de 1868 nos §6º, §7º, §9º e Art. 92, Reg. 1869).

Esta propensão à seleção sobre aqueles que entram e aqueles que ficam do lado de fora,a prescrição sobre às práticas autorizadas quanto aos livros que podem ser usados, o métodoque deve ser empregado, os castigos de conotação moral ou física aceitáveis, a prescriçãosobre o tempo de duração da “lição” compõem a urdidura de uma “autonomia de relaçãopedagógica” aqui entendida como a especificidade de uma forma de relação que instaura umlugar específico, distinto dos lugares onde se realizam as atividades sociais: a escola. (VINCENT& LAHIRE & THIN, 2001, p. 13).

Para atuar neste espaço específico, um profissional específico. A especificidade profissionalem alguns casos poderia corresponder ao exercício restrito do ofício do magistério. Veja-se ocaso a seguir.

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Ensinar e advogar: o exercício de funções incompatíveis

O alvo do processo abaixo era o Professor Bernardino de Almeida Gouvea Prata.Professor de Primeiras Letras que desempenhou a atividade de professor e advogado emdiferentes localidades do interior da Província paulista e, por algumas vezes, teria advogado naProvíncia de Minas Gerais.

Entre os dias 22 e 29 de abril, as primeiras páginas do periódico Diário de São Pauloestamparam o Regulamento da Instrução Provincial de 1869, a cada edição correspondia umaparte do novo instrumento normativo das questões da instrução pública paulista. Por esta mesmaocasião era possível ler no periódico Correio Paulistano, a informação de que um casal, ossenhores Bernardino de Almeida Gouvêa Prata e senhora Eufrásia Eugenia de Almeida haviamconcluído os exames para professores públicos de Primeiras Letras no Palácio do Governo.(Correio Paulistano, 16/05/1869, p. 2). O sr. Bernardino já exercia o cargo de professor dePrimeiras Letras desde 1867. Em 1873, era o responsável pela Escola Masculina de PrimeirasLetras da Villa de Belém do Descalvado.

92 Mas alguns problemas surgiram quando, já em

Ribeirão Preto, deixou de receber os seus vencimentos, o que teria acontecido a partir de1874

93, ocasião na qual vinha desenvolvendo outro ofício paralelo ao magistério, a advocacia.

94

Neste ano havia sido publicada a Lei que institucionalizava o Ensino Obrigatório. Desde o anode 1873, o Dr. Francisco Aurélio de Souza Carvalho ocupava o lugar de Inspetor Geral deInstrução Pública da Província Paulista em substituição ao Dr. Diogo de Mendonça Pinto.

95 O

casal de professores morava em Ribeirão Preto96

, localidade onde eram responsáveis respectivospor duas cadeiras (masculina e feminina) de Primeiras Letras. O Professor Bernardino era alvode um processo administrativo

97 por descumprir o preceito transcrito abaixo.

9 2Cf. Almanack da Província de São Paulo para 1873. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. IMESP. 1985.organisado e publicado por Antonio Jose Baptista de Luné e Paulo Delfino da Fonseca. Edição fac-similar. p. 527-533. Biblioteca do AESP.

9 3Episódio 8 – Professor Bernanrdino de Almeida Gouvêa Prata, Ribeirão Preto, 1874 e Villa de Cajuru, 1880. 4996 01.Procesos, MIP – AESP.

9 4Guardadas algumas ressalvas, era comum aos regulamentos de 1868 e 1869, a previsão de punição para os professorespúblicos que conjugassem ao magistério qualquer outro ofício entendido como incompatível ao magistério.

9 5Cargo ocupado até o ano de 1885, quando foi substituído por Arthur César Guimarães.

9 6Situada a 234 km da capital, foi criada Freguesia com a denominação de São Sebastião do Ribeirão Preto pela LeiProvincial de de 2 de abril de 1870. Em 1873 possuía 5552 habitantes (sendo 857 escravos e 14 eleitores). “Apopulação é quase toda de typo louro e oriunda de Minas Gerais”. Em 1876 possuía duas escolas públicas deprimeiras letras. MARQUES,1980, p. 209-210, vol. II.

9 7Entre os processos examinados, este é, do ponto de vista cronológico, aquele que inaugurava as ações de instauraçãoe apuração de motivos deflagradores de processos segundo disposições do Regulamento de 1869. Outra peculiaridadedeste documento é o fato de que a ao primeiro processo, instaurado em 1873 segue outro, de modo, que o episódioconflitivo que envolve o professor e advogado em questão, atravessa os mandatos de dois Inspetores Gerais (Diogode Mendonça Pinto e Francisco Aurélio Guimarães), sendo possível acompanhar sua trajetória até setembro de 1885,data de publicação de um novo texto normativo da Instrução Pública da Província paulista.

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(...) é vedado aos Professores:Occuparem qualquer cargo publico, ou exercerem qualquer profissão ou industria,incompatíveis com o magistério (§ 2º, Art. 111, Cap. VII, Reg. 1869).

O Professor Bernardino informa que desde julho de 1874 vinha sofrendo a negação doatestado de sua freqüência da parte dos “camaristas”, o que o impedia de receber o seu ordenado.A acusação vinha da parte do Inspetor do Distrito, sr. Moysés Fernandes do Nascimento e dovereador municipal, sr. Bernardo Alves.

Não sou, felizmente, accuzado por motivo de embriaguez, ladrão, jogador, perversidadede costumes, infâmia, immoralidades ou qualquer outro vicio q me faça decahir da opiniãopublica, e por isso fácil se torna a minha defeza, e esta vou encontral-a nos próprioselementos das accuzações. (Defêza, R. Preto 10 de Maio de 1875 B A Prata, Episódio 8– 4996 01. MIP – AESP).

Ele não era o primeiro e nem o único professor de Primeiras Letras com formação emDireito envolvido num processo motivado pelo exercício paralelo de outra função.

98 Foi

processado duas vezes. Sua trajetória de professor público é marcada pelo reconhecimento dosseus direitos, o que poderia corresponder ao reconhecimento dos limites de justificação sobre odescumprimento do seu dever. Empregava a legislação para justificar suas faltas e para reivindicarseus direitos. A sua defesa constitui uma atividade laboriosa do advogado que defendia o direitodo Sr. Bernardino exercer os ofícios de professor e advogado.

(...) levanto aqui um brado de saudação aos felizes tempos de agora, em que as luzes doseculo que atravêssamos, com o choque de sua civilização espancou as trevas d’ignoranciados antigos tempos, dessas eras de tempestades, em que um homem accuzado muitasvezes por crimes que nem sequer imaginara, era logo atirado para o centro d’essas friase humidas masmorras da Inquizição, e d’ahi enfeitado com huum sambenito (sic)caminhava a passos graves para as fogueiras do sancto officio, e nem ao menos lhe eradada a aplavra para defender-se e já nos tablados, depois de torturado, e junto da fogueiraq. o devia consummir, é que via lêr a estupenda sentença de sua condenação, ali seachava como expectaculo Rei, Clero e Povo, e antes que os infelizes se ardessem naschamas, como por ultrage ao gênero humano, como para abater os próprios reis, subiaao palaquim um hypocrita d’esses tempos, para fazer o discurso-analogo, e tinha a audáciade tomar por tema o seguinte texto – Inquisitio superiora regibus que legibus – a inquisiçãoesta acima da Lei e ella manda ate nos próprios reis! (Defêza, R. Preto 10 de Maio de1875 B A Prata, Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

9 8Os processos dão conta de casos de professores de escolas de instrução primária, inspetores de distrito e pais dealunos com formação em Direito. A onipresença do advogado nos cargos públicos e na imprensa foi destacada nosestudos realizados por ALMEIDA JR. (1954), MORSE (1970), ADORNO (1998), HOLANDA (2000),FARIACRUZ (2000), CARVALHO (2003). O encontro de agentes como professores primários, inspetores e pais dealunos com esta formação configura um flagrante importante, já que permite pensar os processos de instituição daescola pública de instrução primária como lugares atravessados por uma cultura jurídica.

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Os prolegômenos acima eram desfilados como argumentos que permitiam o contrasteentre as leis de ontem e a lei “hoje”, definida como “o salvo-garante dos nossos direitos”. Namesma linha: “A Lei hoje se ostenta esplendorosa e com juizes íntegros, não temos mais quetemer uma injustiça”. O professor sugere pontos obscuros da parte da acusação, base de que seserve para promover sua defesa.

(...) ainda em 19 de Outubro p. findo com os mais Camaristas derão-me o attestadoconstante dos doccumentos 4 e 5 onde não somente o sr. Bernardo Alves como tambémtodos os Camaristas, achavão que muito bem cumpro com os deveres do meu cargodesde que aqui funcciona, e q. tenho na sociedade exemplar procedimento, como é q.dessa epocha (...) no espaço apenas de 2 mezes, pr. q. um é de férias, eu pude na opiniãodo sr. Bernardo degenerar ao ponto de merecer tamanha accuzação? (Defêza, R. Preto10 de Maio de 1875 B A Prata, Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

A defesa justifica a quebra do regulamento como uma conseqüência da punição sofrida,tática que lhe permite explicar o motivo gerador da acusação como uma alternativa à privaçãodos seus vencimentos. O primeiro argumento da defesa explica a acusação pela reação à puniçãoinjustificada que sofrera.

É certo, Illustrissimo Snr. Dr. Inspector geral, que não havendo recebido os meusvencimentos desde 1º de julho de 1874, anno passado, terei tido forcozamentenecessidade imprescindível de lançar mão de algum recurso para ganhar dinheiro,afim de acudir minhas domesticas percizões, pois sou chefe de numeroza familia, ena falta de meus ordenados para tractal-a, o que deveria fazer, pedir esmollas?Precizamente que me faltando os ordenados, tenho tido motivos sobejos para recorrera outro meio du ter dinheiro, pois q. temos atravessado e atravessamos aqui umquadro carestioso, em que tudo encareceu, que memso com os ordenados não sepode fazer face a ellas, quanto mais faltando elles. (Defêza, R. Preto 10 de Maio de1875 B A Prata, Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

Num outro momento da defesa, o acusado admite o exercício de duas ocupações, defendea compatibilidade da segunda “não tenho prejudicado o ensino a meu cargo”.

Tenho demonstrado com todos os doccumentos juntos, q. não são doccumentos desimples pessoas, mas de todo o poder auctoritario d’esta Villa, q. cumpro bem os meusdeveres, e que conduzo-me exemplarmente na sociedade. Tenho numero de alumnosmais que o numero legal, e todos aproveitão do ensino, o que mais falta, não tenhopreenchido o fim a que fui nomeado? (Defêza, R. Preto 10 de Maio de 1875 B A Prata,Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

Disposto a se fazer convencer da ilibada conduta, o acusado produz um argumento quesitua o seu envolvimento no processo como uma peça das relações de poder locais. O que nãoo intimida.

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O Sr. Bernardo Alves pretenciosa aposição de Regulo d’Aldêa, pretende que todos qtospa. esta vem devem lhes beijar as mãos em tudo, e o não ser de sua parcialidade é pa. elleum grave crime. É do seu codigo, o maior artigo tenho offendido. Nunca obedeci ousujeitei me ao seu sic solo, sic jubeo, pro ratione voluntos. Curvo-me sim a justiça e arazão. (Defêza, R. Preto 10 de Maio de 1875 B A Prata Episódio 8 – 4996 01. MIP –AESP).

A seguir passa a desfilar sobre a saga que se impôs na tentativa de receber seus vencimentos.

Quando tomei conta d’esta Cadeira solicitei reiteradamente de V. Sa do dr. Inspectordo Thezouro Proval. ordem pa. a Colelctoria de Batataes ou outra mais vizinhapagar os meus ordenados, e os de minha mulher, também professora aqui, V. Sa nãorespondeu-nos nada a respeito, e nem tão pouco sr. Dr. Inspecto do thezouro, tivepor isso de constituir procurador em S. Paulo (o Dr. Vicente Je. De Costa Cabral;fallecido) para receber os meus vencimentos e os de ma. mulher, epara que ospudessem vir as mas. mãos tive q. sacar ordens contra o do. Dr. Vicente, meuprocurador, estas so mui tarde erão conferidas, de maneira que tão bem tardechegavão-nos, as mãos pa. satisfazer as minhas naturaes precizões, ora estamos amais de 50 leguas da capital, o tempo de ir e ser cumprida mas, ordens, se eu fosseesperar por ellas, eria por força perecido, com mais numerosa família. Razão pr.que, como já disse, lancei mão de recorrer a outros recursos pa. satisfazer as mas.percizões (...).(Defêza, R. Preto 10 de Maio de 1875 B A Prata, Episódio 8 – 499601. MIP – AESP).

A defesa é acautelada pelo regulamento da Instrução Pública em vigência. Ao quebrar oregulamento, o professor se explica na alegação de que agentes das autoridades de ação diretae indireta sobre as questões da instrução também descumpriam o regulamento em vigor. Tratava-se de uma referência ao seguinte preceito: “Effectuar-se-hão os pagamentos pelas estaçõesfiscaes do interior, por ordem do Thesouro, quando os professores lhe requererem a expediçãod’ella.” (Art. 88, Cap. V, Reg. abril de 1869).

A estratégia de defesa mantinha a linha de justificar a falta apontada pela acusação comouma tática de reação do acusado à falta das autoridades no cumprimento da legislação.

Pergunto ao Snr. Inspector Moyzés, pr. que razão não prestava esses seus bons serviçosantes q. se desintelligenciasse comigo? Por que razão o Snr. Inspector Moyzés deixou decomparecer em 10bro [1874] n’aula para examinar ou nomear examinadores para os 36alumnos, q. nesse dia se achavão prezentes para esse fim? (...) Por que razão o Snr.Inspector Moyses deixou de comparecer em 10bro de 73 para o mesmo fim quando seachavão reunidos 50 alumnos pa. o exame? (Defêza, R. Preto 10 de Maio de 1875 B APrata, Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

O advogado questiona a legitimidade da acusação que recai sobre o professor, afinal oinspetor que aponta faltas também incorria no descumprimento de suas obrigações. A“desintelligencia” entre o professor Bernardino e as autoridades locais teria diferentes explicações.Consta que o Inspetor do Distrito teria indicado dois homens “um tal Ramiro e Vellozo” para

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integrarem o Conselho de Instrução99

mas como o professor se opusesse àqueles nomes não osreconhecendo como aptos à função, abriu-se uma fresta na relação entre as partes. Não bastasseo episódio, havia ainda o pitoresco caso da novilha.

Em meiados de janeiro do corrente = apareceu morta uma novilha d’este Snr. = e comotenho aqui uma caza com bom quintal fizerão constar os meus gratuitos desafeiçoadosao Sr. Bernardo, q. eu offendi tal novilha. (Defêza, R. Preto 10 de Maio de 1875 B APrata, Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

A defesa calcava-se na expectativa de que prevaleceria a avaliação do histórico de suavida profissional, uma indicação de que a memória arquivada pela repartição da Instrução Públicae do Tesouro Provincial revelaria a trajetória de retidão moral e cumprimento das obrigações defuncionário público da instrução.

(...) sou professor [...] nesta Província a quazi 12 annos, alem de 3 annos q. fui naProvíncia de Minas, na cidade de Jaguary, cuja cadeira deixei para cazar-me nestaProvíncia com huma filha do Seminário/Educanda/ hoje minha espoza D. Eufrazia Eugenia,aqui Professora, com quem vivo feliz e na melhhor união, e fui professor [...] nestaprovíncia Como disse Professôr a quazi 12 annos existe nos archivos da Repartição deVSa. e do Thezouro doccumentos de todo esse tempo, q. felizmente desmentem semelhanteetão odioza asserção do Sr. Moysés. (Defêza, R. Preto 10 de Maio de 1875 B A Prata,Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

O Professor Bernardino reuniu documentos de apoio de vereadores (Venâncio Jose dosreis, Antonio Gonçalves V, Antonio Joaquim da Silva, Antonio Silvério Baptista), do secretárioda Câmara Municipal (João T. de Carvalho Monteiro), do vigário (Padre Ângelo José P. Torres),do 1º Suplente do Juiz Municipal (João Gonsalves dos Santos), do Delegado de Polícia (JoãoRodrigues de Carvalho), do 1º Suplente de Delegado (Joaquim Correia dos Santos), do 1º Juizde Paz (Antonio Caetano de Oliveira), do Subdelegado de Polícia (Silvestre Pimenta dos Reis),além da assinatura de vinte e cinco pais, mães e tutores de alunos matriculados na escola doProfessor Bernardino. Todos os atestados favoráveis ao professor são apresentados sãoregistrados em cartório, são portadores do reconhecimento do tabelião.

Além de anexar à defesa os atestados sobre a conduta profissional, também foi anexadauma certidão expedida pelo escrivão do cartório, dando conta da inexistência de qualquer causaadvogada por Bernardino naquele termo. E como ainda não fosse bastante, o professor saca doseu próprio arquivo uma cópia datada de 24 de setembro de 1866, ocasião em que morava naVila de Araraquara. O documento devidamente selado com distintivo do Palácio do Governoportava o seguinte requerimento:

9 9No período de vigência do Regulamento de 1869 todas as referências sobre Conselhos de Instrução que foramencontradas dão conta de uma instância de formação precária e incipiente. Na maioria das vezes, o inspetor distritalé senão o único, o mais importante agente local da inspeção.

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Illmo. Exmo. Senr. PrezidenteBernardino d’Almeida Gouvêa Prata, Professor Publico de 1as. Lettras desta Villa desejandoobter os officios de Justiça de [...] deste Foro, e achando-se para isso habilitado, e nãopodendo exercer esses officios cumulativamente com o Magistério, sem previa licençade V. Exa. e a exemplo de outros Professores que já acumulão esses e outros cargos,como o de Botucatu (...).(Villa de Araraquara, 24 de 7bro de 1866, Bernardino d’AlmeidaG. Prata dirigindo-se ao Presidente da Província, Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

O verso do requerimento continha um despacho do procurador da Província paulista, sr.José Antonio Barbosa da Veiga, onde notava: “aguarda deferimento”. O conjunto farto dedocumentos apresentados pela defesa parece ter contribuído para que no meio do processo, oInspetor do Distrito, optasse por retirar a acusação e emitir o atestado de freqüência do professor.

o Inspector confessa que a maioria do Conso. d’Instrucção é favorável ao professor:sendo os membros dessa maioria o Parocho e o Presde. da câmara, não é presumível q.estes abandonassem o inspector pa. proteger o Professor, se este não tivesse rasão. Oprofessor apóia sua defeza nos attestados da Cama. Mal. de todas as autoridades doMunicípio, e dos paes dos alumnos: não se deve suppor que tantas pessoas qualificadasfaltem á verdade. (Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

A reconsideração de posições do Inspector do Distrito que originou o processo contra oProfessor Bernardino permite ao representante do Palácio do Governo (assinatura L. J. P.) oseguinte desfecho para o caso:

Não se deve em these considerar a advocacia incompatível com o magistério, máximeem logar onde ella só pode ser exercida em limitada escola, não há prova de que oprofessoroccupa-se na advocacia durante as horas de exercicio da aula.Não há, pois, fundamento para proseguir-se contra o professor Prata (20 de novembrode 1875, assinado por L. J. P., representante do Palácio do Governo. Episódio 8 – 499601. MIP – AESP).

Era sabido que o professor dava aulas nos feriados de quintas-feiras, tática que lhe permitiaadvogar aos sábados, dia em que deveria ter aula. (Art. 105, §1º, Secção 1: Dos feriados, reg.de 1869). A esta falta, inversão dos dois dias no calendário semanal escolar, era passível daadmoestação prevista no art. 105, § 1º do Reg. de 1869. A única punição sofrida pelo acusadoem questão, pelo menos até aquele momento.

Os ânimos entre professor e certos representantes do poder local (Ribeirão Preto) aindapermaneceram exaltados, o que teria contribuído para a remoção do professor Bernardino.Lotado na Vila do Cajuru

100, o professor Bernardino continuava tão combativo quanto o advogado

100Cajuru – Povoação situada à margem do ribeirão do mesmo nome, em território outrora pertencente ao município deBatatais. Foi criada freguesia pela Lei Provincial de 19 de fevereiro de 1846, incorporada ao município de Casa Brancae elevada à categoria de vila por outra lei de março de 1865. Até o ano de 1876 tinha 5394 habitantes, destes 556escravos e, 13 eleitores (1876). Havia duas escolas de instrução primária para ambos os sexos. MARQUES, 1980, p.157. Tomo I.

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Bernardino, conforme se depreende da crítica que opera acerca do estado da escola, daorganização da Instrução Pública na localidade e as interfaces com a Lei do Ensino Obrigatório(1874).

(...) o estado actual de adiantamento dos emus alumnos, que poderia ser muito lisonjeiro,si os paes dos meninos não os fizessem faltar tanto a Eschola. Os meios coercitivos paraobrigal-os a freqüentar a Aula e a estudar mais acuradamente suas lições, não pode serapplicado pelo Professôr com a amplitude que a necessidade exige, por que nem a Lei apermitte e nem os pais a consentirião a certos mininos de índoles indóceis a quem nãobastão os castigos moraes.A lei do ensino obrigatório que tão bons resultados poderia offerecer, ainda é lettra mortaneste Município, onde apesar de constituído o Conselho d’Instrucção Publica, ainda nãoteve a estrea de seus trabalhos, não deu uma única sessão, não há a cirncunscripçãoterritorial e nem inscriptos ou qualificados os meninos da Parochia, de maneira quecontinua o antigo e inveterado capricho de mandarem a aula meninos os que querem, eos que não querem não os mandão = quando querem, fazem falhar o tempo q. querem,e não recebem por isso a menor coacção ou multa. (Relatório encaminhado ao Inspetorgeral, Dr. Francisco Aurélio de Souza Carvalho, 1/11/1878. Episódio 8 – 4996 01. MIP –AESP).

O Professor fazia do cumprimento rotineiro do relatório um instrumento de autodefesa. Odescontentamento com as autoridades a quem devia obediência direta se repetia.

(...) é o Professôr um joguete, no lugar pequeno, q. deve guiar a medida das paixões ecaprichos de cada qual: eis a estreita órbita em que deve girar todas as acções dp mestreeschola dos pequenos povoados, quando servis prestão a curvar ate as plantas desemelhantes gentes, salvas excepções em tudo honrosas. Qualquer negociante quebradoe fraudulento, qualquer Boticário de remédios podres, e artificiosamente quebrado querser Inspector de Districto, só pa. querer fazer colocar-se ostensivamente acima doProfessor, impor-lhes seus caprichos, usar pa. com elles a toda sorte de injustiça, só porq. algum dia julgou-se com direito de fintar o Professor (Relatório dirigido ao Inspetorgeral, 1/10/1879. (Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

Em junho de 1879, o casal de professores, sr. Bernardino e sra. Eufrazia, deu entrada emprotocolo no qual requeria junto ao Governo Provincial, o pagamento da quinta parte sobre osvencimentos atuais, tendo em vista que este era um direito assegurado aos professores quecompletassem quinze anos de exercício do magistério. Solicitavam ainda, da parte da Câmara,um atestado, como forma de obtenção do grau de vitaliciedade do cargo junto ao GovernoProvincial.

Em 1880, o Professor Bernardino de Almeida Gouvêa Prata era enquadrado em novoprocesso administrativo. A estratégia da acusação incidia sobre as lacunas existentes entre asobrigações do professor na relação com as responsabilidades esperadas de um funcionáriopúblico. O acusado, informava a acusação, continuara no exercício dos dois ofícios. Em nomeda advocacia viajava, abandonando o emprego público, retirando-se de seu distrito sem a prévialicença para ir a São Simão, Entre-rios, Batataes, Santo Antonio d’Allegria, São Sebastião do

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Paraizo (Minas Gerais) e à capital paulista. Não solicitava autorização para deixar subsituto naescola e, segundo a acusação, era o professor o grande responsável pela infrequência da própriaescola, tendo em vista, as constantes viagens e o abandono da escola.

“Pode o empregado publico chamar quem quizer dar-lhe posse do seu emprego, mandar-lhe q. exerça as suas funcções, e isto sem auctorisação e atte sem sciencia das autoridadessuperiores?” (Exposição circunstanciada do processo instaurado contra o Professor Bernardino,15/10/1881, assinada por S. Carvalho, dirigida ao Presidente, Senador Florêncio Carlos deAbreu e Silva. Ref. 4996-1, Processos, AESP).

O Professor Bernardino admitia que às vezes deixava sua esposa cumprindo com asfunções de magistério quando saía para advogar. A defesa do professor reproduzia muitoselementos do texto do processo anterior, ele continuava no exercício dos dois ofícios e a istoexplicava pela necessidade de um ordenado que lhe permitisse o ssutento da família. Exaltava aqualificação de advogado para o ofício de professor. Equacionava as faltas cometidas justificando-as com dias santificados, reposições na quintas (feriado), de modo a “nunca” ter excedido a trêsfaltas em dias úteis num mês. Ou seja, se resguardava pela legislação vigente que previa asupressão dos vencimentos de professores que tivessem “no mez mais de tres faltas sem causaparticipada” (Art. 82, §12, Reg. 1869). A acusação definia aquilo que o professor poderia ounão poderia fazer segundo uma etiqueta do funcionalismo público. Do outro lado, o professoradvogado definia o que o professor poderia ou não poderia fazer, segundo a relação entre o seusalário e as suas despesas.

(...) úzo da profissão de advogar cauzas como auxiliar aos insignificantes 62.500 que seme paga pr. mez para ensinar, os. que, ainda, fazendo millagres, elles nunca poderiãochegar para mealimentar com minha numeroza família. Outros Professores há na Provínciaq. exercitão outros meios menos decorosos ao professôr, como o execicio de venderbilhetes de loteria, jogador, taberneiro, ets. ets. E em quanto não se pagar convenientementeao professor publico, há de elle procurar um recurso qualquer, seja elle lá qual qr. oauxilie em suas despezas, mormente no estado prezente das couzas. (Defesa do ProfessorBernardino dirigida ao Inspetor Geral, Dr. Francisco Aurélio de Souza Guimarães, 19/06/1880. Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

O Professor Bernardino justificava as ocupações alternativas de outros professores comosoluções para o parco vencimento daqueles profissionais. O Presidente da Província via nasocupações alternativas de porfessores públicos, uma explicação para a baixa credibilidade doensino público.

(...) o ensino publico não inspira a menor confiança, e nem póde tornar-se proveitoso,porque a corporação docente em sua generalidade, ou é incapaz, ou illudindo a responsabilidade,vive desviada de suas funcções magisteriaes, e entregue a occupações de outra ordem, emcujo procedimento é acoroçoada pelas attenuantes que se lhes têm reconhecido, em plenomenoscabo dos interesses do serviço publico. (Relatório sobre o Estado da Instrucção Públicado Presidente da Província, Dr. João Theodoro Xavier, 1873).

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A explicação oficial para a infrequência da escola pública era a “incapacidade e incuria doprofessores”.

(...) a percorrer esta Província, encontramos frequentemente, que no memso ponto, aolado de uma escola publica quase deserta, está uma outra, ou memso uma particular,cujos bancos regorgitão de alumnos, como é facil de verificar-se pelas relaçòes dasescolas annexas a este relatorio, e se a incapacidade e incúria dos Professores se achão,com poucas excepções, reconhecidas expressamente, até por esses relatórios que corremmundo despedidos desta repartição, pede a verdade, pede a justiça, que diante destesfactos, diante destes documentos officiaes, não seja a culpa do mal lançada em conta dapopulação (...) aonde está um Professor ou uma Professora hábil e dedicado ao magistério,ahi se acha também uma eschola florescente, quer quenato a freqüência, quer quanto aoaproveitamento dos alumnos. (Relatório sobre o Estado da Instrucção Pública do Presidenteda Província, Dr. João Theodoro Xavier, 1873).

O Professor explicava a infreqüência da sua escola pelo descuido na indicação dosmembros do Conselho da Instrução Pública e a inépcia do Inspetor do Distrito. Mas tantoautoridades locais como parcela significativa de pais de alunos explicavam a infreqüência narelação com o abandono da cadeira pelo professor. Os pais que eram providos de “meios”encaminhavam os filhos para escola particular, denunciava Antonio Ramos Jordão (Alferes,Cirurgião do Esquadrão da Cavallaria, membro da Guarda nacional, responsável pela Botica daJunta Central de Higiene Publica, terceiro membro do Conselho de Instrução Pública da Vila deCajurú).

Opinião comum ao Juiz Municipal, Dr. Francisco Salles Morais Navarro, segundo oqual, ao deslocar-se para outras localidades, o Professor Bernardino estaria

(...) prejudicando por esta forma o ensino primario, e tão bem os coffres publico, consta-me que, em virtude d’estes, já não tema nem mais 10 alunos freqüentes, apezar de que,ter n, esta Villa grande numero de meninos, mas os pais destes, preferem pagar 5r. pormês nas Aulas particular, e não pr. mais na Aula Publica, grande numero de meninosOrphãos estão sem receber instrucçao, uns pr. que seus tutores, não ter meios pa. pagaraula particular e outros pr. já não ter confiansa nas Aulas regidas pelo Snr. Bernardino(Villa de Cajuru, 26 de novembro de 1880, assinado por Francisco Salles Morais Navarro,1º Suplente do Juiz Municipal. Episódio 8 – 4996 01. MIP – AESP).

Além dos depoimentos do juiz e do escrivão, seguia um abaixo-assinado de trinta e quatronomes, constando o inspetor de distrito, professor de escola particular, vereador, comerciantes,fazendeiros, “proprietários” e “eleitores”.

101 Todos sugeriam que o professor acusado fosse

101As primeiras eleições para composição da corte no Brasil, ocorreram em 1821, tendo sido inspiradas na Constituiçãoespanhola de Cádiz (1812) que por sua vez baseada na Constituição francesa (1791). Era adotado o voto universalmasculino, aspecto suprimido e só reintegrado no século XX. As eleições para a Constituinte brasileira foram feitascom restrições: idade mínima de 20, excluíam-se os assalariados e os estrangeiros. A Constituição outorgada em 1824

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removido daquela localidade. Os antecedentes do professor eram empregados como apelosinquestionáveis de sua condenação. A acusação ainda referia à publicação de uma matéria quedava conta do caso do professor público que abandonara a cadeira para exercer outro ofício. Oque era revidado pelo acusado:

(...) não devo receiar (recear) que o noticiario da Constituinte de 16 de Outubro do annopassado, recheado de inteira ma fé e escripto por algm. mascara, venha ao cabo de 17annos de serviço de meu professorado, destruir tão belo monumento que tenho archivadoa meu respeito na Secretaria. (grifo do autor) (Defesa do Professor Bernardino dirigidaao Inspetor Geral, Villa de Cajuru19 de junho de 1880. Episódio 8 – 4996 01. MIP –AESP).

Em setembro de 1885, o sr. Bernardino continuava domiciliado em Cajurú. No ofíciodirigido ao Presidente da Província (16/09/1885) nota-se que o prenome de sua assinatura nãoera antecedido pela designação de “Professor”, mas Bernardino de Almeida Gouvêa Prata. Apunição sofrida em decorrência do último processo era a supressão da cadeira. Há três anos seencontrava fora do exercício do magistério. Ocupava o lugar de Presidente da Câmara Municipale requeria o direito de reassumir a cadeira de Primeiras Letras da Vila de Cajuru, “lugar do qualfoi violentame. tirado”. (16/09/1885, requerimento endereçado ao Presidente da Província).Jamais reconheceu que deveria ter agido de outro modo e, provavelmente, sequer desejava oretornar ao magistério. Queria sim, lavar a própria honra.

A honra de um homem que integrava o funcionalismo público no cargo de professor podiase dar de, pelo menos, duas formas. Uma supunha o incremento sobre os vencimentos, advindodo exercício paralelo de outra função, garantia para satisfazer as próprias necessidades. A outra,a obediência à norma, traduzida na produção de um funcionário público sem rosto, surdo a tudoaquilo que não fosse o cumprimento de suas obrigações.

foi além nas restrições: elevou a idade para 25 anos, excluiu os criados e, pela primeira vez, introduziu o critério derenda (mínimo de 100$000 ao ano para os votantes nas eleições de primeiro grau). A primeira lei votada 1846 mandoucalcular, ilegalmente, a renda em prata, o que equivalia a dobrar a quantia exigida, passando, para os votantes, de R$100$000 para R$ 200$000 1881. Com a reforma de 9 de janeiro de 1881, eliminou-se a eleição em dois turnos, mas aomemso tempo a Câmara liberal aprovou a proibição do voto ao analfabeto e intensificou a exigência de verificação darenda de 200$000, além de tornar o voto voluntário. Com estas medidas, o assalariado não funcionário público foipraticamente excluído do direito de voto.(CARVALHO, 2003, p. 394).

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Capítulo 4

DAS INTERFACES ENTRE A FREQÜÊNCIA, A OBRIGATORIEDADEDO ENSINO E A INSPEÇÃO ESCOLAR

Registro de freqüência: uma contribuiçãopara a cartografia da sociedade

O registro da freqüência escolar é um tema que, com a devida medida, representoupreocupação em diferentes textos normativos da instrução elementar no curso do século XIX. Ainstauração das primeiras escolas de ensino mútuo (Lei de 1827) implicava a emissão semestralde mapas. Àquela época e por algumas décadas, estes mapas eram confecionadosartesanalmente, o que resultava em documentos enormes, alguns com medidas entre 50cm dealtura por 100cm de largura, como aquele produzido pelo Professor Bento Antonio de Barrosem 31 de outubro de 1829. (4913 01, AESP, MIP). Tais instrumentos poderiam informar sobrediferentes dados: número de alunos matriculados e freqüentes, método, matérias de ensino,móveis e utensílios, avaliação do aproveitamento dos alunos, filiação, idade, data de matrícula esaída.

A Lei Provincial de 1846 previa um número mínimo de 12 alunos para a criação de umescola e gratificava ao professor que mantivesse na escola uma quantidade acima do númeromínimo estabelecido para a manutenção de uma escola : 20 alunos numa escola masculina e 15numa escola feminina. A cada aluno a mais no número previamente estabelecido, o professor oua professora receberia uma gratificação anual de “quatro mil réis” por aluno. (Art. 17, Lei n. 34,16 de março de 1846). O Regulamento Para a Commissão das Escolas de Primeiras Letras (25de setembro de 1846) previa o seguinte tratamento às “listas”:

Para verificar se o número de alumno, que freqüentam as Aulas, serão os Porfessroesobrigados a dar, todos mezes até ao dia 22, uma lista circumnstanciada dos alumnos

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matriculados, com declaração de sua filiação, idade freqüência, e mencionando o numerodas faltas, e o aproveitamento. Nas vizitas, que fizer a Commissão ás Aulas, levará areferida lista, e fazendo chamada, poderá ter conheciemtno especial do estado da Aula.(Art. 7º)

O Regulamento de 1851 incrementa a função da inspeção com forte indicação de controlepor meio de relatórios anexados de mapas, anualmente o Inspetor Geral teria de apresentar aopresidente da Província:

1º mappa do número das escollas primarias e secundarias publicas ou particulares deambos os sexos, com declaração do numero de alumnos que os frequentão; 2º um mappados professores públicos com observação sobre sua capacidade, procedimento civil emoral, 3º um mappa de moveis e utensis de cada escolla publica com observaçãoes sobreo seo estado” sobre a moralidade dos professores (Art. 4º, § 17, Regulamento de 1851).

O cumprimento da função acima, dependia do cumprimento da função atribuída ao InspetorDistrital, quem, ao relatório sobre o estado da escola deveria anexar “um mappa contendo onumero das aulas e escolas, e dos alumnos que as frequentão com observação sobre o seoaproveitamento.” (Art. 12, § 11, regulamento de 1851). A sujeição do professor ao inspetordistrital (ou literário) pela via da freqüência é reeditada no Regulamento de 1851 “Passar aosprofessores as attestações de freqüência para poderem receber os seos ordenados” (§ 2º, Art.12, Regulamento de 1851). Os regulamentos de 1868 e 1869 (mínimo de vinte alunos freqüentes)reeditam o preceito. Em 1870, o Inspetor Geral, Dr. Diogo de Mendonça Pinto apresentou omodelo de mapa (Portaria 12 de setembro de 1870, Palácio do Governo de S. Paulo, assinadapor Antonio Candido da Rocha) que deveria ser empregado pelos professores das escolaspúblicas e “observado” nas escolas particulares. A desobediência da portaria que aprovava omodelo de mapa das escolas implicaria uma multa de 30$000. Alguns dos professores dasescolas paulistas encomendavam os mapas de lojas que assumiam a venda de tal produto.

PROFESSORESOs srs. professores, que encommendárão mappas para relação de alumnos, podem mandarbuscar de hora em diante: igualmente fez-se uma porção para vender por preço maisbarato.Também tem novo sortimento de livros de matriculas mais bem feitos do que tem feitoAo Livro VerdeRua Direita (Diário de São Paulo, 23/10/1870, p. 4)

O comércio dos mapas tinha público específico: os professores. Estes também poderiamencontrar o produto detalhadamente anunciado “com as competentes casas para as observações deseus alumnos” na tipografia do Diário de São Paulo. (19/12/1871, 4). Em cada um, dados quecompunham o mapa do aluno: filiação, naturalidade, idade, datas de entrada e saída da escola, entreoutros. Estes dados conferiam um inventário do aluno ou uma catalogação dos sujeitos.

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Para Foucault (1998), um mapa (fiscal, eleitoral) pode ser entendido como o instrumentoproduzido arqueologicamente pela sucessão histórica da medida (entre os gregos), da investigação(Idade Média) e do inquérito (século XVIII). Mas, explica,

é claro que essas três técnicas não ficaram isoladas umas das outras. Elas imediatamentese contaminaram. O inquérito utilizou a medida e o exame utilizou o inquérito. Depois oexame sobressaiu com relação aos outros dois (...) o inquérito como modelo, comoesquema administrativo, fiscal e político, pôde servir de matriz a esses grandes percursos,realizados do final da Idade Média até o século XVIII, em que as pessoas que vasculhavamo mundo colhiam informações. Elas não as colhiam em estado bruto. Literalmente, elasinqueriam, seguindo esquemas para eles mais ou menos claros, mais ou menos conscientes.E acredito que as ciências da natureza se alojaram de fato no interio desta forma geral queera o inquérito – como as ciências do homem nasceram a partir do momento em queforam aperfeiçoados os procedimentos de vigilância e de registro dos indivíduos. (1998,p. 162).

Neste registro, o mapa é um instrumento privilegiado na relação entre saber e poder. Odiscurso geográfico teria na figura do inventário (ou catálogo) o triplo registro da arqueologiahistórica do mapa (inquérito, medição, mapa).

“Inventário que em estado bruto não tem grande interesse, e que de fato só é utilizávelpelo poder. O poder não tem necessidade de ciência, mas de uma massa de informações,que ele, por sua posição estratégica, é capaz de explorar.” (Foucault, 1998, p. 163).

Aprendeu-se a preparar os dossiês, a estabelecer as notações e classificações, a fazer acontabilidade integrativa desses dados individuais. Claro que a economia já – e o sistemafiscal – já tinham utilizado alguns desses processos. Mas a vigilância permanente de umgrupo escolar ou de um grupo de docentes é outra coisa. (Foucault, 1998, p. 160).

A referência ao modo como Foucault, diante da interpelação de um grupo de geógrafos,pensa a geografia, seus conceitos e métodos, parece ajudar na tentativa de mostrar o modo como qual se deu a difusão da escola de instrução primária paulista, a produção de mecanismos decontrole tanto sobre a escola como sobre os professores, inscrevem esta empreitada no conjuntodos esforços de caráter “político-estratégico” de inscrição de formas de discurso, (e o mapa éportador de certas formas de discurso) que inscrevem o domínio político estratégico na organizaçãoadministrativa de um território.

102

Assim sendo, parece imperioso pensar, mesmo que numa pequena incursão, a cartografiada escola de instrução primária inscrita na ordem escravista que regia a sociedade da época. Oque foi deflagrado pelo registro de matrículas da Escola Pública Masculina de Porto feliz. Ali,foram inventariadas informações que davam conta, entre outras, da origem sócio-econômica e

102“Território é sem dúvida uma noção geográfica, mas é antes de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que écontrolado por um certo tipo de poder.” (Foucault, 1998, p. 157).

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étnico-racial dos alunos. O livro de matrícula da Escola de Primeiras Letras de Porto Feliz, anosde 1850 a 1856, era apresentado como uma cartografia da escola de Porto Feliz. Num quadrodisposto em duas folhas traçadas em dez colunas com a inscrição dos seguintes dados deinformação: 1 – Números, 2 – Nomes de alunos, 3 – Idade, 4 – Naturalide., 5 – Filiações, 6– Cond.cão livre ou liberto, 7 – Cor, 8 – Se é pobre, se seus pais possuem meios de subsist.,9 – Epocha da matricula, 10 – Observações.

A partir deste quadro foi possível constatar que 191 alunos foram matriculados naquelaescola entre os anos de 1850 até 30 de junho de 1856. Do ponto de vista étnico-racial, havianeste universo, treze alunos que eram “pretos” (três libertos e demais livres), sessenta e sete (67)eram pardos e os demais eram brancos. As idades variavam entre o mínimo de cinco e o máximode catorze anos. Em pouco mais de seis anos de registro no livro, teriam passado 191 alunospela escola, o que corresponde a uma média aproximada de vinte e sete matrículas por ano. Oque corresponderia a 6,8% “pretos”, 35% de pardos e 58,1% de brancos.

No quadro abaixo estão sintetizados os dados dos alunos “pretos” (livres e libertos)matriculados na Escola de Primeiras Letras de Porto Feliz.

Quadro VIIMatrícula da escola de Primeiras Letras de Porto Feliz (1850-1856)

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Dois entre os treze pais “tinham meios” para garantir a subsistência, todos eram pobres,“pretos”, libertos ou livres. Dez entre os treze alunos matriculados eram filhos de pais desconhecidos.A provável intriga que marca o confronto inicial com crianças “pretas” (livres ou libertas) naescola paulista dos anos 50 do século XIX se dilui na constatação de que nenhum texto normativoda Instrução Pública no Império vetou a matrícula de crianças pretas cuja condição fosse “livre”ou “liberta”. A cor parecia relativizada pela condição, motivo pelo qual era quase impossível lerem algum jornal o anúncio de escravo fugido cuja relação de atributos não incluísse a “cor”. Deigual modo era possível encontrar anúncios de escravos fugidos de cor “parda”, às vezes “pardoclaro”(Diário de São Paulo, 30/01/1873, p. 30), “mulato meio vermelho” (Diário de São Paulo,13/08/1870, p. 4).

O diretor da repartição de estatístitica apresentada no ano de 1877 informava:Da população livre recenseada sabem ler e escrever 1.563.078 habitantes; não sabem ler6.858.594, dos que, excluídos os menores de 5 anos, restariam 5.579.945 analfabetos.‘Da população escrava os que sabem ler não passam de 1.403.’ (BARROS, 1959, p.200).

Os dados do mapa (Livro de matrícula de Porto Feliz) acima nos remete para o modocomo a questão escravista aparece nos textos normativos da Instrução Pública paulista. Verificou-se que a Lei de 1846 e o Regulamento de 1851 nada preceituaram sobre a matrícula de escravos.O intervalo marcado entre a omissão da matrícula do escravo e o veto expresso à matrícula doescravo na escola paulista pode ser compreendido como uma omissão em face daquilo que otexto constitucional (1827) assegurava “instrução primária gratuita a todos os cidadãos” (Art.179, XXXII, Constituição de 1824, p. 38). Na entrelinha de que o negro não era cidadão nãohaveria a necessidade de legislação expressa para o caso.

103 Mas a Lei Couto Ferraz (1854)

Fonte: Livro de Matrícula de Porto Feliz. Encadernados de Instrução Pública E1177 – AESP.

103Sobre a coisificação do escravo, ver Ilmar R. Mattos: “Expropriados da ‘mais preciosa’ das propriedades [a liberdade],excluídos do ‘primeiro dos direitos’, os escravos não eram considerados pessoas, não tinham reconhecida capacidades depraticar atos de vontade. Eram entendidos como coisas; não eram, pois, cidadãos”. (1987, p. 116). Ver também

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que legislava sobre a instrução primária no Município da Corte era expressa quanto ao veto àmatrícula de escravos o que poderia ter influenciado a incorporação desta disposição nos textosnormativos da instrução pública do Regulamento de 1868 e a reedição no Regulamento de1869.

104

A “cor” aparece como um dado do mapa de matrículas de Porto Feliz e que remete àscondições de alunos “libertos” e “livres” nos anos de 1850 a 1856. O exame da trajetória dasleis que normatizaram a “condição” dos negros no país

105 não esclarece sobre “libertos” e

“livres” na década de 50.106

Vale lembrar o estudo de Silvia Hunold Lara (1988), no qual aautora se detém sobre o de situações conflitivas entre escravos e respectivos proprietários nalocalidade de Campos de Goitacases (Rio de Janeiro), no período marcado entre a segundametade do século XVIII e o começo do século XIX. Ali, a autora tece a seguinte observação:

As designações de “negro”, “cabra”, pardo” e até mesmo de “criolo”, embora não digamnada a respeito da condição social das pessoas assim nomeadas, mas sim de sua origemou cor da pele, indicam a existência de outros níveis de diferenciação social que, paraaqueles homens e mulherres coloniais, não era subsumidos pelas distinções entre livres,forros e escravos. (p. 350)

A legislação sobre o elemento servil no país era circunscrita ao poder central, osproprietários podiam comercializar os escravos entre si, mas não poderiam abolir a escravidãonas províncias. (MAESTRI, 1994, 99).

CHALHOUB, S. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. 1990. Aí, o autorexamina a condição jurídica do escravo a partir das contribuições de Perdigão Malheiro, autor de obra publicada pelaprimeira vez, na década de 1860, além de estudos de Fernando Henrique Cardoso (1962), Jacob Gorender, entre outros.

104Entre os textos normativos da Instrução Pública paulista que foram examinados nesta pesquisa se constatou que adisposição sobre o veto à matrícula de escravos aparece no Regulamento de 1868, sendo reeditado no Regulamento de1869. O que não significa afirmar que no intervalo anterior não tenha havido algum documento oficial que legislassesobre a questão.

105Tratado de 1826, resultante de uma imposição inglesa, que forçava o Brasil a cessar o tráfico de cativos. Mas só coma lei Eusébio de Queirós, publicado em setembro de 1850, efetivou a proibição do tráfico de cativos. A Lei Rio Branco(Lei do Ventre Livre), publicada em setembro de 1871 concedia liberdade aos “ingênuos” nascidos após 1871, masatendendo aos interesses escravistas, os “ ingênuos” eram obrigados a trabalhar até os 21 anos de idade. Em 1885 foipublicada a Lei dos Sexagenários, libertando os escravos trabalhadores de sessenta anos de idade ou mais. Em13 demaio foi abolida a instituição da escravatura no país. (MAESTRI, 1994, p. 98-104).

106Sobre a questão da “cor” como condição de status, vale conferir Robert W. Slenes, no estudo Senhores e subalternosno Oeste Paulista. Ao tratar da propriedade de escravos no final da década de 20 do século XIX, o autor demonstraque havia negros proprietários de escravos mas “dados sobre a ‘cor’ dos proprietários em Campinas reforçam a tesede que os canais de mobilidade entre os grupos sem e com escravos, e entre as categorias de pequenos e médiossenhores eram restritos. Em 1829, apenas 8,6% dos proprietários de dez a dezenove cativos, não eram registradoscomo “brancos”. Entre senhores de mais de vinte escravos, não havia nenhum que não fosse “branco”. Do total devinte proprietários descritos como de tez escura, dezenove eram “pardos” e apenas um era “negro” (um carpinteiro,dono de dois ajudantes). Ora, na localidade o mesmo censo identifica 31% da população livre como “pardo” e“negro”. Há provavelmente sub-registro dos não-brancos, em particular na classe senhorial, em questões de statuspesavam mais, e muitos pardos e negros teriam tido motivo para assumir uma cor mais clara.” SLENES, 1997, P. 247-249.

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Algumas implicações da Lei Rio Branco podia ser vista na publicação do anúncio dejornal:

Matricula dos filhos livres de mulher escravaDe ordem de s. exc. o sr. dr. presidente da província, faz se publico a todos os senhoresde escravas, que não tiverem matriculado dentro de 3 mezes contados da data donascimento, os filhos ingênuos das mesmas, em virtude da lei n. 2040 de 28 de setembrode 1871, ou feito a averbação pelos fallecimentos, etc., que o facão durante o correntemez e o de Janeiro próximo futuro, para poderem gozar da equidade nos recursos dogoverno provincial, quanto á imposição das respectivas multas; pois que dessa época emdiante, cessando absolutamente toda a razão mais ou menos plausível de ignorância dosprazos fixados pelo decreto n. 435 de 1º de Dezembro de 1871, serão os documentos eprovas exhibidos apreciados com todo o rigor do direito.Secretaria do governo de S. Paulo 6 de Dezembro de 1873, – O secretario João Carlos daSilva Telles (Diário de São Paulo, 07/12/1873, 3).

A lei referida também conhecida como “Ventre Livre” reaparecia na legislação da instruçãodefinida pela omissão a qualquer referência de veto à matrícula de criança negra ou escrava nostextos normativos sucessivos da instrução pública. A “incapacidade phisica e moral” prevista nareforma de 1885 era a condição que inviabilizava o ato da matrícula. Esta condição pareciaatravessar a “cor”, constituindo amostra da manobra silenciosa que a legislação da instruçãopública faz para se apresentar no compasso das discussões da época.

107

Obrigatoriedade do ensino: dever dos pais

A obrigatoriedade do ensino foi discutida intensamente entre os deputados provinciais noperíodo que antecedeu a publicação dos regulamentos de 1868 e de 1869. Por seu turno, Dr.Diogo, o Inspetor Geral, remetia-se ao relatório por ele escrito no ano de 1869, documento noqual defendia “a urgência de instituir a obrigatoriedade da instrucção elementar sob a imposiçãode moderada multa”. Alegava que em “toda parte, na própria Capital, fóco de civilisação, osannalfabetos abundão. Por isso há longos annos Professores e Inspectores reclamão essaprovidencia”. (Relatório do Inspetor Geral de Instrução Pública, 1870).

JULIA (2001) chama a atenção para a instauração da instrução obrigatória em países daEuropa. Para ele, há uma tendência de substantivar aos projetos pedagógicos deste porte

107Carmem Vidigal Soares mostra a imbricação da maçonaria e do republicanismo no último quartel do século XIX, nacidade de Campinas, oeste paulista. A Loja Maçônica Independência teria aberto uma escola destinada ao ensinonoturno de adultos que incluíam escravos, imigrantes, entre outros. O ideário republicano e a educação. 1981, p.104-113. Ainda sobre a relação entre legislação e a presença de crianças negras, pardas (escravas ou livres) nas escolaspúblicas do Império, vale conferir Olhares sobre a criança no Brasil (Séculos XIX e XX), obra organizada por IreneRizzini, publicada em 1997, no Rio de Janeiro pela Petrobrás BR: Ministério da Cultura e AMAIS (editora daUnidade Universitária de Santa Úrsula). Sobre relação entre “Negros e Educação” num aspecto mais geral, ver RevistaHistória da Educação. SBHE. Campinas: Editora Autores Associados. nº 4 2002. Dossiê: “Negros e Educação”.

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(instrução obrigatória) como estratégias “totalitárias” ou “englobantes”. Esta tendência conduz auma prática, mais ou menos corrente, de se atribuir ao texto normativo o imperativo de umaaplicação uniforme, por exemplo. Contra esta tendência, JULIA (2001) acena para a fertilidadede se atentar para os processos de constituição do texto normativo, as resistências, as forças deadaptação às circunstâncias. “Os textos normativos devem nos reenviar às práticas; mais quenos tempos de calmaria, é nos tempos de crise e de conflitos que podemos captar melhor ofuncionamento real das finalidades atribuídas às escolas” (2001, 19). É preciso entender o projetopedagógico da instrução obrigatória com a realidade histórica que o conformou. Sobre ainstauração da instrução obrigatória em países da Europa no século XIX, diz ele:

(...) construiu-se mais freqüentemente ligada a um projeto pedagógico que visa associarcada cidadão ao destino da nação à qual pertence. Não se trata somente de alfabetizar,trata-se de forjar uma nova consciência cívica por meio da cultura nacional e por meio dainculcação de saberes associados à noção de “progresso” (2001, 23).

Continua: “Os professores primários tornam-se funcionários do Estado que se emancipamprogressivamente da tutela dos padres e dos notáveis locais, sendo encarregados de difundir asluzes trazidas pelo advento das ciências”. Observa que o estabelecimento desta nova escolaprimária não se realizou de forma pacífica.

É que, no momento em que uma nova diretriz redefine as finalidades atribuídas ao esforçocoletivo, os antigos valores não são, no entanto, eliminados como por milagre, as antigasdivisões não são apagadas, novas restrições somam-se simplesmente às antigas. Donde asinsolúveis contradições nas quais se exerceu o trabalho do professor primário, que constituemseu espaço de reflexão e de ação e o preservam dos totalitarismos institucionais contruídossobre a convergência de todos os meios em direção a um fim único. (2001, 23-24).

As reflexões de JULIA parecem muito pertinentes para se pensar alguns dos aspectos dainstauração do ensino obrigatório na Província Paulista, pois ajudam na definição dos contornosque são traçados na tentativa de apreender nuanças deste projeto pedagógico na sua versãooitocentista paulista. A proposição de que o texto normativo deve “reenviar” às práticas constituipor si uma amostra daquilo que JULIA compreende como cultura escolar.

O estudo de VINCENT, LAHIRE & THIN (2001) destaca a emergência da forma escolarcontemporânea com a preocupação sobre a ordem pública que presidiu o desenvolvimento dasescolas urbanas.

Colocar todas as crianças – “até mesmo as pobres” – em escolas, aparece como umvasto empreendimento que se poderia chamar de ordem pública, com a condição de nãoreduzi-lo a simples ato de dominação. (2001, p.14).

A dominação era característica da imposição da igreja na conformação de fiéis, o queconsolidava a relação imposição pela dominação. Entre os séculos XVII à primeira metade do

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século XIX, observa-se na França a constituição de formas relativamente invariantes de relaçõessociais: “certas formas escolares de relações sociais” (2001, 28). Estas formas estariamconsolidando a escola como um lugar cada vez mais central, “o ponto de passagem obrigatório”(28), lugar onde imperaria a sujeição pela obediência.

Neste, sentido, acredita-se que os estudos de cultura escolar (JULIA, 2001) e formaescolar (VINCENT, LAHIRE & THIN) constituem chaves importantes de leitura sobre aspectosda produção da escola como “ponto de passagem obrigatório”. Vale dizer que, o aspecto aquiressaltado é o do modo como o texto normativo que previa a instauração do ensino obrigatórioesboçou formas de controle da freqüência. Para tal empreitada, sugere uma incursão porprocessos que incidiram sobre professores que cometiam a fraude na escrituração escolar. Comeste percurso de método será possível apreender traços de cultura escolar em franco movimento,uma versão do movimento de método que atribui o valor do texto normativo na medida em quepromove o reenvio às práticas.

A escola pública de instrução primária aberta a “todas as crianças” é correlata do discursodo ensino obrigatório. No caso de São Paulo, como já se notou aqui, a discussão sobre o ensinoobrigatório já vinha se sedimentando algumas décadas antes de sua normatização em 1874. Arecorrência à necessidade da obrigatoriedade do ensino era apontada, especialmente porprofessores, como estratégia de combate ao descaso das famílias, que ainda não estavamconvencidas dos propósitos desta nova forma escolar de relação social. Por sua vez, as autoridadesdo serviço público da inspeção tendiam a remeter a infreqüência das escolas públicas à incúria eà inaptidão de professores. O que encontrava procedência na fala do Inspetor Geral da Instruçãoque, enredava os processos de admissão à carreira de magistério, à imposição viciosa dasforças locais numa rede que inviabilizava o êxito de seu próprio trabalho.

Naturalmente, o inspetor geral aspira com o mais intenso empenho a prosperidade doserviço, que especialmente lhe está confiado; lhe é impossível querer desprestigiar-se,deixando-o sob suas mãos decahir; mas que póde elle afim de obstar que o patronatodistribua o magistério pela inépcia, e ahi o mantenha? (Relatório do Inspetor Geral daInstrução Pública, 1872).

Contra os professores que ingressavam o magistério por meios de “documentosdemonstrativos” de reputação moral e civil da localidade de domícílio, não era dado ao inspetoro direito de recusa frente às provas comprobatórias previstas no regulamento e, mesmo queinsistisse sobre a recusa de algum candidato ao exercício de magistério, “nada” impediria oprovimento daquele professor. E eram estes os professores que dariam base ao trabalho daInspetoria Geral, por meio do encaminhamento de relatórios (método, móveis e utensílios,aproveitamento dos alunos) anexados de mapas que dariam conta do estado (matrícula efreqüência) da escola. Sobre os quais manifestava-se o Inspetor Geral: “Estes dados não produzocomo rigorosa expressão de verdade”. A dúvida sobre a exatidão dos dados ou a certeza

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quanto à inexatidão dos dados se dava pelo fato de que os inspetores não teriam encaminhadoinformações de escolas particulares que haviam sido instaladas em período mais recente, enquantopairava dúvida sobre a confiabilidade dos dados enviados das escolas públicas motivada pela“negligencia dos professores”. Neste enredo onde um atribui ao outro a responsabilidade peloproblema, a maior autoridade da instrução pública, não age de modo diferente.

Segundo as informações dos inspectores de districto, quase que não há professor ouprofessora que não desempenhe a contento do publico seu penível cargo, a verdade,porém, é que existem muitos que são omissos e negligentes, além de pouco aptos. Paraproceder contra elles é preciso provas, e todo o mundo recusa fornecel-as. (Relatório doInspetor Geral da Instrução Pública, 1872).

O Inspetor exemplifica: “Sei de uma professora publica de máo procedimento moral.Tenho invocado o testemunho de autoridades do lugar, sem nada obter. Ela é protegida de umainfluencia que ninguém se anima a desgostar”. E quando os professores são suspeitos, os dadosnão são confiáveis, ainda há o problema com os inspetores: “Raros são os inspectores de districtoque me transmittem os relatórios recommendados pelo artigo 192 § 12 do regulamento de1869, e indispensaveis a esse conhecimento”. Ao mesmo tempo, o Inspetor Geral se via atado,porque não poderia impor qualquer pena aos inspetores de distrito, que prestavam este serviçosem qualquer forma de remuneração logo, “multa-los por semelhante falta, seria o mesmo quenão querer encontrar mais quem se prestasse a aceitar o cargo”.

O Inspetor Geral sugere que a minimização dos problemas da Instrução poderia advir deuma idéia há muito defendida: “Desde 1852 todos os annos clamo pela obrigatoriedade dainstrucção primaria elementar nos povoados”. (Relatório de Instrução Pública Paulista, o últimoda gestão do Dr. Diogo de Mendoça Pinto, 1872).

O republicanismo, movimento que visava derrubar a monarquia, ganhou maior visibilidadecom a fundação do Partido Republicano em 1870. Era um tempo de tensões entre idéiascentralistas da monarquia e idéias federalistas republicanas. Estas tensões vinham embaladaspela idéia de “progresso” que, no Brasil teriam se infiltrado por meio do positivismo.

108 Para a

historiadora Emilia Viotti Costa o movimento republicano sintetizava a união de três forças: oexército, influenciado pelo pensamento positivista e guiado pela idéia de “salvar a pátria”, osfazendeiros do Oeste paulista que desejavam realizar suas “aspirações de mando” e osrepresentantes das classes médias urbanas, grupo antiescravista e que pretendia maior participaçãopolítica. As ações destas três forças contribuíram para o desprestígio da Monarquia e oenfraquecimento do segmento oligárquico tradicional. (1987, 361).

108Não será realizada uma incursão mais profunda sobre os diferentes matizes do positivismo “ortodoxo” ou “heterodoxo”que vise a distinção ou a conciliação das influências francesa (Auguste Comte) e inglesa (Herbert Spencer). Para talpode ser interessante conferir o estudo de ADDUCI (2000). Ver MONARCHA, 1999, p.111-164). Esse autor tratados processos de infiltração e difusão da teoria positivista entre os professores da Escola Normal paulista a partir deagosto de 1888, quando teria se dado a “terceira fundação” desta instituição.

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Décio Saes (1990) interpreta o movimento republicano como o momento de inscrição doprocesso de formação do Estado burguês no Brasil. A reivindicações de uma classe dominantebrasileira que não se sentia representada pelo poder monárquico só seriam realizadas numaforma republicana. Por isso, o autor indentifica no fim do escravismo, a criação de um igualitarismojurídico burguês, cuja responsabilidade teria saído das mãos de uma classe média nascente.

Sérgio Buarque de Holanda (1972) verifica na transição do Império para a Repúblicauma situação de instabilidade onde as províncias mais desenvolvidas economicamente teriamdificuldade de prevalecer, no âmbito político, sobre as áreas tradicionais. Em contextos assim, oliberalismo ganhava força, estivesse vinculado a monarquistas ou a republicanos.

O projeto de Nação estava sendo redimensionado.

(...) o elemento de influência mais direto no processo de pensar a nação brasileira foi aGuerra do Paraguai (1865-1870). Seus vários efeitos colocaram em xeque as estruturasde um país monárquico, agrário, escravocrata, e com forte interferência religiosa. Aguerra possibilitou a tomada de consciência do atraso do país, principalmente no campoda educação dos transportes e, certamente mais importante que isso, permitiu que adesigualdade formal reinante mostrasse sua contradição: a falta de homens livres obrigouo recrutamento dos escravos que, em retribuição por sua participação na guerra recebiamalforria. O que justificava essa súbita igualdade? Que lugar caberia a esses não-escravosao final da guerra? Em nome de quem ou do que lutavam? (ADUCCI, 2000, p. 46).

A Guerra do Paraguai também contribui para o redesenho político do período na medidaem que influenciou o Exército brasileiro, que por esta ocasião, se mostrou muito receptivo àinfiltração do positivismo, aliando-se assim à defesa da República, enxergando nesta forma degoverno a concretização do terceiro estágio – científico ou positivo – da filosofia positivistacomteana. Neste sentido, alcançar o estado positivo correspondia à instauração da república.Realizá-la implicaria conciliar “a ordem e o progresso”.

109

Era um momento de mudança no conceito de nação até então marcado pela conjunção detrês idéias: a influência do ambiente natural, uma tradição de retidão moral e a defesa da liberdade(CHABOD, 1987, 30 apud ADUCCI, 2000, p. 30). A nação inscrita no movimento das paixõesnacionais ocorre quando a nação deixou de ser um sentimento, passando a ser vontade e apolítica adquiriu um caráter religioso. “A nação se converte em pátria e a pátria se converte nanova divindade do mundo moderno. Nova divindade e, como tal, sagrada”. (CHABOD, 1987,p. 79-81 apud ADUCCI, 200, p. 31). Há, nos processos de cisão entre paixão “sentimental” epaixão “nacional” a infiltração de um discurso fundado nos padrões da racionalidade.

109“Nenhuma ordem legítima poderá daqui em diante estabeler-se e, principalmente, durar, se não for plenamentecompatível com o progresso. Nenhum grande progresso poderá se realizar eficazmente se não tender em última análisepara a evidente consolidação da ordem.” Este trecho traduz a filosofia comteana que impregnou alguns dos segmentosdefensores da implantação do republicanismo no país.

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“Poder-se-ia mesmo dizer que o Império terminara em 1870”, a frase é de Roque SpencerMaciel de Barros que completa: “desde então as novas idéias exigiam uma forma de governomais consentânea com as aspirações de liberdade; ‘mais moderna’ em relação ao espírito‘científico’.” (1959, p. 22).

Marco desta mudança será a publicação de A origem das espécies,

Charles Darwin, no ano de 1859. O darwinismo social seria especialmente difundido no Brasilpor Renan, Le Bon, Taine, Gonineau. (Aducci, 2000, p. 36-37). Nas palavras de Roque SpencerBarros: “é a partir desse momento [1970] que ganham corpo as novas idéias do século –positivismo, darwinismo, materialismo, etc. – “a revolução científica”’, expressão cunhada porBeviláqua, de quem a toma de empréstimo. (Barros, 1959, p. 21).

110

Cabe se perguntar pelo modo como as mudanças do início dos anos setenta teriamimpactado as reformas educativas na província de São Paulo.

110Barros (1959) nota que entre 1870 e 1889, o movimento da ‘“nossa ‘ilustração”’ teria vivido a sua juventude, ganhadoconfiança. Tratava-se de um movimento semelhante ao iluminismo na Europa do século XVIII, “a crença absoluta nopoder das idéias; a confiança total na ciência e a certeza de que a educação intelectual é o único caminho legítimo paramelhorar os homens, para dar-lhes um destino moral” (p. 22-23). Na operação em que talha a história da mentalidadeda época, Barros, localiza nos autores “populares” dos oitocentos que, herdeiros do iluminismo, abriam para essasconvicções, a dimensão nova, que o século XVIII não compreeendera totalmente, a dimensão histórica. (p. 23). Estadimensão teria sido traduzida no Brasil pelas apropriações realizadas a partir do liberalismo clássico, do positivismo,do cientificismo. Algo que BARROS (1959) definiu como “liberalismo cientificista”, uma referência que, em maior oumenor grau, encontra-se recorrente em diferentes trabalhos sobre diferentes recortes da história da educação: MORAES,1981; TANURI, 1979; HILSDORF (1986), entre outros.O comércio paulista de livros pode constituir uma referência para indicar traços da formação da “juventude” e quiçáda “fase adulta” do movimento “liberal cientifista” brasileiro.“Rousseau Emilio 5 vol. 4000” (Livraria do Largo do Collegio, Correio Paulistano, 23/05/1857, 4); “Ensaio sobre ainstrucção dos povos livres por Benjamim Constant 1 grande vol. 2$” (Livraria do Largo do Collegio, CorreioPaulistano, 03/01/1857, 4); “J. Simon (La liberte de conscience, 1 vol.), J. Simon (La Liberte, 2 vol.), Kant (Leçons deMethaphisique), Kant (Religion), Kant (De la moral), Kant (Critique do Jugement), Kant (Methaphisique du droit),Kant (Critique de la raison pure), Kant (Methaphisique de la vertu), Condillac (Lógica) (Correio Paulistano, 1º dejaneiro de 1862, página suplementar). No ano de 1878, a “Livraria L. Garraux & Companhia” oferecia, entre outros,os seguintes livros de “DARWIN (Charles) – Des Effets de la Fecondation Croisé et la fécondation directe dans lerégne animal. Ce nouveau livro, n’est a proprement parler que la suíte el le complément de son étude sur la “Fecondationdes Orchidées”. 1v. g. in –8º 8$000” e “DARWIN (Charles). – De la fécondation des Orchidées par les insects et desbons résultats du erisement, avec 34 gravuras, 1 v. gr. In – 8º” por 7$000. (Correio Paulistano, 7 de março de 1878, p.3), “SPENCER, (Herbert). – De l’Education intelectuelle, morale et physique, 1 vol. in –8 º” (Correio Paulistano, 07/03/1878, 3), “S. Mill – Economie politique, 2 vols. 8º 10$000” (Correio Paulistano, 02/04/1884,4), “Comte (A) –Opuscules de Philosophia Social (1819-1828) 1 v. in 12 4$000” e “Janet (Paul) Les origines du Socialism Contemporaine,1 v. in – 12 4$000” (Correio Paulistano, 03/05/1884,3), “Stuart Mill – L’utilitarisme, 1 v. in –12 3$000” (CorreioPaulistano, 03/05/1884,3), “SPENCER (Herbert) – Essaies de Morale, de science et d’esthétique, 1 vol. in – 8º”,“LITTRÉ (E.) Auguste Comte et la philosophie positive, 1 vol. in 8º 7$000”, “HAECKEL. (Ernest) – Antropogénie[...] histoire de l’évolution humaine, 1 vol. in 8º 14$000”, “HAECKEL. (Ernest) – Histoire de la Création [...] les loisnaturelles, 1 vol. in 8º 12$000”, “FERRAZ. – Le Socialisme, le naturalisme et le positivisme, 1 vol. in 12 4$000” (AProvíncia de São Paulo, 09/10/1877,4), “Philosophie positive, dirigée par E. Littré” (A Província de São Paulo, 10/11/1877,4), “NETTER (A) – De l’intution dans le decouvertes et inventions, sés rapports avec le positivisme et ledarwinisme. 1 vol. br. 7$000” (A Província de São Paulo, 27/06/1878,4), l“THEOPHILO BRAGA: Soluções Positivasda Politica Portugueza, incluindo a Historia das Idéias Republicanas em Portugual e a Dissolução do SystemaMonarchico representativo, 1 vol. br 1$000”, “TEIXEIRA BASTOS – Comte e o positivismo, ensaio sobre adoutrina de Comte, [...]”,“TEIXEIRA BASTOS – A Marselhesa, texto, traducção em versos, história e musica, rs200”, “TEIXEIRA BASTOS – Cathecismo republicano para uso do povo, rs. 120” (A Província de São Paulo, 27/11/1885, p. 4). “RECENTES PUBLICAÇÕES – (...) BIBLIOTHECA HISTORICO SCIENTIFICA: Historia daRevolução Franceza de 1789, (...) BIBLIOTHECA DAS IDÉAS MODERNAS; Obras de Drapper, Lubbork, [...],Wasir, Barthelo –M. [...]. Beaunis, Darwin, Barn, Littré, (...) Stuart, etc. publicações em 10 vols., a 50 rs. REVISTADE ESTUDOS LIVRES: orgam do modern [...] litterario e scientifico de Portugal e Brazil (...)” (A Província de SãoPaulo, 21/04/1885, 4).

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Para MORSE (1972), entre os anos de 1857 a 1867, a capital da província havia vivido“dez anos de hesitação” (p. 205). Mas era possível divisar o nascedouro da metrópole emdiferentes manifestações de crescimento que se dariam com a ampliação de ferrovias, a propalaçãoe consolidação de estrangeiros em diferentes atividades comerciais, a profusão de movimentosabolicionistas especialmente deflagrados por ex-alunos da Academia de Direto, com destaquepara a turma de formandos do período de 1866-1871, que incluía Joaquim Nabuco, Rui Barbosa,Antonio de Castro, Franciso de Paula Rodrigues Alves, atores atuantes nas diferentes frentesdecisórias da época: no parlamento, na difusão do abolicionismo. As atuações da imprensa, damaçonaria e de mulheres eram de reconhecida importância. (Morse, 1972, p. 200-202).

O quadro educacional da época constitui no registro de Morse, uma relação da participaçãoda iniciativa privada (escola feminina de propriedade do casal Pestana –1875, Escola Americana,“classes” fundadas pela colônia alemã), o descompasso das escolas públicas regulares com asnecessidades da época, o fechamento da Escola Normal em 1867 e a reabertura entre osperíodos de 1875-1877, os índices de alfabetização na capital que teriam subido de 5% em1836 para 30% em 1872. (214-215). Do ponto de vista das reformas normativas para o campoda instrução:

Uma lei provincial de março de 1874 levou avante a intenção da reforma de 1846 tornandocompulsória a educação para meninos de 7 a 14 anos e meninas de 7 a 11 anos em todasas cidades que tivessem escolas oficiais ou oficialmente subvencionadas. (p. 215).

Para MONARCA (1999) a introdução da máquina a vapor redimensionava a relaçãocom o trabalho com implicações sobre o nível de civilização da sociedade paulista. No imaginárioda época, a quebra do isolamento geográfico e social caracterizava o nascimento do “espíritocosmopolita”.

A multiplicação das estradas de ferro ocorre em um ritmo extraordinário. Em 1867,inaugura-se a São Paulo Railway Company Limited, em 1873, a Companhia Ituana; em1875, a Companhia Sorocabana e a Companhia Mogiana; e em 1877, a Companhia doNorte, ligando são Paulo à capital federal. Entram em desuso os velhos caminhospercorridos por tropeiros e os antigos locais de parada para comércio e descanso: Freguesiado Ó, Penha, Ipiranga, São Bernanardo. E a locomotiva – produto do moderno sistemade fábrica europeu – devassando os sertões, interligando regiões remotas e consolidandoa expansão das fronteiras agrícolas, transforma-se em símbolo do progresso provincial,causando impacto na percepção dos habitantes da província. (p. 59).

Naquilo que diz respeito aos impactos das mudanças da época sobre as reformaseducativas, MONARCA (1999) compreende na posse do Inspetor Geral da Instrução Pública,Dr. Francisco Aurélio de Souza Carvalho, o marco de um pensamento marcado pela “difusãoda instrução como uma das estratégias possíveis de combate à criminalidade e como meio eficazpara a defesa da civilização”. (p. 81).

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(...) o dr. Francisco Aurélio de Souza Carvalho tem como principal encargo implantar areforma da instrução pública votada pela Assembléia Provincial.

111

Através dessa refoma – Lei n. 9, de 22 de março de 1874 – introduz-se: uma escola normalprimária com um curso de dois anos; a obrigatoriedade de ensino primário para crianças de7 a 14 anos – sexo masculino – e de 7 a 11 anos – sexo feminino – nas vilas e cidades. (p.83).

HILSDORF (1986) ao reconstituir a trajetória do republicano Rangel Pestana demonstraa sua atuação na imprensa e instituições educativas, divulgando e lecionanado de modo regulare sistemático entre os anos 70 e 80 do século XIX em São Paulo.

Concretizava assim, de modo exemplar, a diretriz do pensamento, liberal da crença nopoder do ensino como elemento transformador da sociedade e, ao mesmo tempo, aorientação específica do partido Republicano de desenvolvimento da linha reformista deação mediante a propagação da instrução popular. “Ao futuro pela escola” seria o motearticulador mais geral proclamado pelas lideranças democráticas, liberais e republicanasatuantes em São Paulo naquele período, mesmo considerando-se os mais diferentes matizesideológicos que elas assumiram. (p. 171).

As interfaces operadas pelas mudanças de caráter industrial, novos usos do espaço público,trajetórias de publicistas, idéias abolicionistas perfaziam a reconfiguração do começo dos anossetenta, e era traduzido na produção de uma necessidade política de mudança do regimemonárquico para o republicano na qual o emprego da escola era redimensionado. Para Giglio(2001), até meados da década de sessenta os mestres tinham como tarefa “moralizar e civilizara criança” e após este período a escola passa a ser um “espaço da instrução que deve prepararo cidadão, nas letras e ofícios” (367). Esta revisão sobre a finalidade da escola é apresentadano conjunto das preocupações que incluem o Chefe da Polícia paulista que, fazendo uso daautoridade de Hippeau, reconhece o valor da escola como solução para os problemas sociaisretratados na estatística da pobreza e criminalidade.

Sobe a estatística das escolas, decresce a estatística do pauperismo e do crime. Isto,porém, consegue-se procurando que o mínimo da educação não fique abaixo da instruçãoque todo o homem deve possuir para compreender os seus deveres e vindicar os seusdireitos. Ele deve conhecer a lei, porque a ignorância dela não aproveita ninguém,entretanto, os casos de omissão freqüentemente não tem outra fonte, assim como oscrimes de ação têm a sua raiz no coração e não na materialidade dos atos, como bemdefiniu o criminalista.Isso consegue-se onde se compreende que na guerra feita à ignorância cumpre pelejarainda mesmo sem esperança de vitória; onde os esfarrapados, os vagabundos, os filhos

111O novo Inspetor Geral da Instrução Pública era formado em Direito e já havia exercido a advocacia na capital. “O dr.Francisco Aurélio de Souza Carvalho-Advogado na capital Além de causas cíveis, criminaes e commerciaes,encarrega-se de negócios administrativos, pendentes das repartições públicas. Escriptorio Ladeira de S. Francisco.”(texto do anúncio publicado no Diário de São Paulo, 30/05/1869,3).

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dos ladrões, gente sem classe, encontram o ensino caridoso e benevolente, levado àaltura do mais árduo e nobre sacrifício, qual o que se administra nas raggedsshoolsHippeau112

– instrução pública na Inglaterra (Relatório apresentado ao Ilmo. Exmo. Snr,Dr. João Theodoro Xavier, Presidente da Província de São Paulo, pelo Chefe de PolíciaJoaquim José do Amaral, Juiz de Direito apud GIGLIO, 2001, p. 390-391, nota 488).

A conciliação entre a obrigatoriedade (do ensino)e a imposição da formação

É no bojo de tantas mudanças que são publicados o “REGULAMENTO DE 5 DEJUNHO DE 1874 – Para o Ensino Primário Obrigatório” e o “REGULAMENTO DE 9 DEMAIO DE 1874 – Para a Escola Normal da Capital”. Os dois textos normativos pretendiama regulamentação da lei Provincial n. 9 de 22 de março de 1874, prevista no seu artigo 6º.Ambos os textos normativos publicados em 1874 não eram incompatíveis com o texto do“REGULAMENTO DE 18 DE ABRIL DE 1869 – Para a Instrucção Publica e Particularda Província”, que continuava em plena vigência. Os dois novos regulamentos precisam sercompreendidos como duas estratégias que dariam munição a um projeto político pedagógicoem gestação. O Regulamento que instrui sobre a Escola Normal pretendia reverter o quadro demá qualificação do pessoal em exercício no magistério das Escolas de Primeiras Letras daProvíncia a partir de uma nova organização do curso que formaria os candidatos aspirantes àcarreira.

113 O curso era dividido em dois anos, com a direção geral da escola sob a competência

do Inspetor Geral de Instrução Pública da Província. Os critérios de admissão à escola normalsofriam pequenas alterações. Estaria apto ao ingresso na Escola Normal, o indíviduo de idadeigual ou superior a dezesseis anos, que não portasse nenhuma moléstia contagiosa com prejuízopara o exercício do magistério de Primeiras Letras e comprovasse sua moralidade e idoneidadecom atestados comprobatórios do pároco e outras autoridades competentes.

112Célestin Hippeau (1803 – 1883)Em 1840, redigiu, juntamente com B. Julien, o juornal mensal “L’Enseignement”. Em1866, foi encarregado por M. Duruy, de organizar o ensino secundário feminino, em Paris. A partir de 1870, edita umasérie de volumes sobre o ensino em diversos países, com o objetivo de fazer conhecer na França a organização dainstrução pública em outros países. Participou do Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire de FerdinandBuisson. Ver mais em BASTOS, M H. C., Leituras da Ilustração Brasileira: Célestin Hippeau (1803-1883). In:Revista Brasileira de História da Educação. SBHE. Campinas: Editora Autores Associados. nº 3 . 2002. p. 67-114.“L’Instruction publique aux États Unis. Écoles publiques (colléges, universités, écoles, spéciales (1870), é o nome doprimeiro relatório de Hippeau a ser impresso no Brasil, em 1871.

113Estas mudanças impactavam o comércio paulista de livros relacionados com a formação de professores. “Campagne(E. M.) Dicionnario universal de educação e ensino; contendo o mais essencial da sabedoria humana. Segue umdicionário etymologico de todas as palavras technicas, provenientes das línguas grega e latina. Traduzido do francezpor C. Castello Branco 2 vol. in 4 enc. 24$000” (Correio Paulistano, 04/06/1876, p. 4), notou-se que o mesmoanúncio da obra de Campagne foi publicado no dia 4 de junho de 1876 no A Província de São Paulo, p. 3. “Elementosda pedagogia para servirem de guia aos candidatos ao magistério primário, por J. M. G. Affreixo e H. Freire 1 v. enc.2$500” (Correio Paulistano, 04/06/1876, p. 4), notou-se que o mesmo anúncio da obra de Affreixo e Freire foipublicado no A Província de São Paulo (04/06/1876, p. 3); “SPENCER (H.). – De l’Education intelectuelle, moralee physique, 1 vol in 8º 5$000” (Correio Paulistano, 07/03/1878. 3); “BRAUN – (Th). – Cours théorique et pratiquede Pédagogie et de Métodologie, 3 vols. In – 12”, “Buisson – Devoirs d’Ecoliers Americains [...] à l’exposition dePhiladelphie (1876), 1 vol. in-12 4$000” (A Província de São Paulo, 09/10/1877, p. 4).

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Quanto às faltas cometidas por professores da Escola Normal, as punições previstas nãoconferiam distinção ao tratamento previsto para casos de professores das escolas de instruçãoprimária.

Terão as mesmas vantagens concedidas aos Professores de instrucção primaria, e natransgressão dos seus deveres incorrerão nas penas impostas aos mesmos, como estádisposto no Regulamento de 18 de abril de 1869, capitulo 8º e 9º. (Artigo 16, capítulo III,Regulamento para a Escola Normal da Capital).

O texto normativo do ensino obrigatório pretendia constranger os pais a enviar seus filhosàs escolas pela força da lei. Os dois documentos possuem em comum a preocupação com avigilância sobre certos aspectos. O monitoramento com vistas ao controle e a garantia daobrigatoriedade do ensino se dá mediante a previsão de multas aos pais dos filhos com idadesentre 7 a 14 anos (sexo masculino) e 7 a 11 anos (sexo feminino) que não fossem enviados àescola. O Regulamento que instrui sobre a Escola Normal mantém diferentes mecanismos devigilância, naquilo que implica a relação entre falta e punição, observa-se que o mesmo tratamentodado ao professor de instrução primária, previsto no Regulamento de abril de 1869, será aplicadopara professores da Escola Normal.

Abaixo segue a diagramação dos dois textos normativos que dispuseram sobre a EscolaNormal da capital paulista e o Ensino Obrigatório na Província paulista.

Quadro VIIIDiagramação dos textos: Escola Normal da Capital (1874) e Ensino Obrigatório (1874)

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O texto normativo do Ensino Obrigatório é organizado segundo a seguinte estrutura: Daobrigação do ensino, Do Conselho de Instrucção e seus deveres, Das penas às infrações dalei e deste regulamento, Dos recursos, Da educação religiosa e Disposições Geraes. O tomque o atravessa é dado pelos atos de vigilância e pela punição. A leitura dos dois últimos itensrevela que também ali, onde a impressão inicial não pode traduzir o conteúdo, há o mesmo tomimpositivo. Os três artigos que compreendem o Capítulo IV prescrevem o ensino religioso comose, ao fazê-lo, a escola revelasse uma relação obrigatória e atemporal com a religião católica. Otom impositivo é endossado pela leitura da disposição contida no capítulo referido.

“O ensino da religião católica apostólica romana será sempre obrigatório nas escolaspúblicas, particulares, subvencionadas ou não, para os menores filhos de pais que a professem”.Mesmo quando os pais de menores não professassem a fé católica mas as crianças em questão,estivessem sob os cuidados de pessoas católicas, estas seriam obrigadas a lhes ensinar a religiãocatólica. E nos casos em que os progenitores tivessem divergências sobre a profissão de fé, umera católico o outro não, haveria a obrigatoriedade do ensino religioso (católico) da parte dequem fosse reponsável pela educação dos menores. (Artigos 41, 42 e 43, capítulo IV, RegulamentoPara o Ensino Obrigatório).

Disposições Geraes constituem a parte do texto que regulamenta o ensino obrigatório.Está preocupada com o registro das punições, em geral multas que são aplicadas a pais ouprofessores que tenham cometido alguma negligência em face da freqüência à escola. Os registrode multas teriam inscrição num livro, o mesmo que receberia os lançamentos sobre a demarcaçãode cidades e vilas, bem como a lista dos menores em idade de ensino obrigatório. A negligênciaquanto ao teor da regulamentação sobre o Ensino Obrigatório era reconhecida e punida comomá fé. Logo, professores, pais de alunos ou responsáveis que não envidassem os devidos esforçosde execução do ensino obrigatório, estariam sujeitos a multas. Estas multas seriam registradasem livros de poder do Conselho da Instrução. Tais livros eram necessariamente abertos,numerados, rubricados e encerrados pelo Inspetor Geral. As multas ali registradas eram publicadasna imprensa para que os devedores fossem notificados e providenciassem o pagamento num

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prazo de trinta dias. Findo esse processo, seriam emitidas certidões de multas ao TesouroProvincial.

Além da preocupação com o registro e a publicação da punição de professores, pais eresponsáveis por menores que estivessem fora da escola, havia uma preocupação expressa pelavigilância sobre os menores que estivessem dentro da escola. Vejamos como isto se depreendedo texto que produz no tempo escolar o espaço da recreação.

(...) os professores ficam obrigados a intercalar quinze minutos de descanso entre aterceira e a quarta hora durante os quaes os alumnos se entregarão a exercícios recreativose próprios para desenvolvimentos das forças phisicas realisando-se elles nos pateosinteriores das casas das escolas, limpos e arejados; ou ao menos no recinto das aulas, esempre sob cuidadosa vigilância. (Art. 48, Disposições Geraes, Reg. para o EnsinoObrigatório).

O projeto pedagógico que torna a escola “ponto de passagem obrigatória” ao abri-lapara todos os menores entre 7 e 14 anos, mantém o ensino de religião e insitui o aprendizadodos bons hábitos, conjugando os aprendizados da fé e da civilidade.

114

Os professores darão especial attenção a saúde de seus alumnos, ordenando-lhes o asseioe a simplicidade do vestuário. E quando suas ordens não forem cumpridas, aconselharãopor carta aos paes, tutores ou patronos

115, mostrando-lhes a utilidade que resulta de taes

hábitos contrahidos desde a infância. (Art. 49, Disposições Geraes, Reg. para o EnsinoObrigatório).

Quanto aos demais capítulos que integram o texto que normatiza o ensino obrigatório e,cujas denominações afiançam o tom de imposição, vigilância e punição, merecem destaquealgumas redefinições de temas permanentes. Exemplo disto é o tratamento dado àquilo que setem denominado aqui de geografia da instrução ou geografia da inspeção. A instauração daobrigatoriedade do ensino institui a relação de obrigação de freqüência nas localidades (vilas oucidades) providas de escolas. O que significa que os limites de uma cidade ou de uma vilacorresponderiam aos mesmos limites que eram traçados para a cobrança de impostos. Estacirnscunscrição territorial era de caráter obrigatório. O Conselho de Instrução Pública (Inspetordo Distrito, Presidente da Câmara Municipal e um cidadão nomeado pelo Presidente da Província),agremiação existente em cada município onde a instrução fosse obrigatória teria entre outras, aseguinte tarefa:

114Em 19 de fevereiro de 1875 podia se ler o anúncio: “Novo methodo de ensinar a lêr e a escrever, segunda edição muitomelhorada e acrescentada da Civilidade Primaria de L. B Chantal, de um resumo da Doutrina Christã, extrahida doCathecismo Histórico de Fleury, e das Primeiras Noções de [...], vol. cartonado 2$000 [...]. (A Província de São Paulo,19/02/75, p, 4).

115Derivado de Patronato, no Direito Penal, corresponde ao estabelecimento correcional de monores, que os recolhe paraprotege-los e reeduca-los. Também são os estabelecimentos ofociais ou particulares destinados a proporcionar, aliberados condicionalmente, meios necessários à sua readaptação à sociedade. ACQUAVIVA, 2000, p. 997.

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Organisar dentro do primeiro mez de seu exercicio, uma lista de todos os menoresexistentes na cidade ou villa, que estiverem nas condições do artigo 1º [idades entre 7 e14 anos, sem impedimento moral ou físico] – com declaração de seus nomes, idades,naturalidades, nacionalidades e filiações; graus de instrucção que possuam; escolas quefreqüentem; e se são orphaos ou filhos de paes indigentes (Artigo 18, §1º, capítulo II).

Esta lista era equivalente a um mapeamento dos menores em idade e condições (física emoral) de freqüentar a escola no lugar onde morassem ou nas imediações. O Conselho deInstrução repassaria a lista ao Inspetor Geral que, por sua vez, a encaminharia ao Presidente daProvíncia. Caberia ao Presidente a sua divulgação por meio da imprensa de modo a informaraos pais, tutores ou patronos que deveriam encaminhar à escola os menores

116 que estivessem

sob seus cuidados. A lista era a base sobre a qual seria definida a circunscrição territorial definitivacom vigência de um ano. A instrução obrigatória é colocada no domínio do poder territorial, pormeio do inventário dos menores na relação com a circunscrição territorial. Neste prazo detempo, caberia ao Conselho da Instrução editar os aditamentos necessários à circunscrição quedissessem respeito às alterações ocorridas, tais como falecimentos, mudanças dos menores ounovos habitantes da localidade.

O Conselho de Instrução no texto normativo do ensino obrigatório capitaliza a função doserviço público da inspeção e torna uma exigência a participação dos pais no processo deavaliação das ações da escola sobre a educação dos seus filhos. Vejamos como tal função doConselho de Instrução é descrita.

Exigir em cada mez ou trimensalmente, dos paes, tutores ou patronos dos menores, queos sujeitem á exames em dia, hora e lugar designados, ou em suas casas, se os preferirem,afim de conhecer a qualidade e o progresso da instrução que receberem. (Art. 19, §5º,capítulo II, Regulamento para o Ensino Obrigatório).

Ao Conselho também cumpria a designação sobre os nomes que comporiam as bancasde exames dos alunos das escolas públicas e a participação direta sobre a inspeção dos registrosda freqüência escolar. Esta vigilância era medida pela instrução prevista pela falta: a punição naforma de multa, cabendo ao Conselho da Instrução:

Examinar o livro das matriculas dos alumnos a cargo de Professores, impondo a estes amulta de 10$000, quando não estejam conforme o preceituado no Regulamento de 18 deabril de 1869 (...).Elevar até 20$000 a multa do paragrapho anterior, quando forem continuadas as infracçõesdo preceito ahi recommendado, por fórma que revelem habitual negligencia. (Art. 18,§13 e §14, Capítulo III, Regulamento para o Ensino Obrigatório).

116A expressão menor diz respeito aos meninos e meninas com idades inferiores ou menores àquela definida pelo textonormativo, para o ensino obrigatório.

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Também receberiam multas, os pais, tutores ou protetores que não cumprissem com adesignação da circunscrição territorial definida para o caso dos menores sob seus cuidados. Odescumprimento da circunscrição só isentaria da multa, aos pais ou responsáveis quecomprovassem, mesmo que, por outro modo, o oferecimento de instrução primária aos menoressob seus cuidados. Mas os pais que negligenciassem com as determinações legais estariampassíveis do sofrimento de multa com variações de 10$000 a 50$000 – valores só definidosmediante a constatação da reincidência e o uso de má fé.

Neste enredo onde cada um tem uma obrigação a cumprir, para cada falta uma multa, aspunições previstas para os professores que negassem ou forjassem informações do estado defreqüência das escolas eram assim prescritas.

Os Professores Públicos ou subvencionados que se negarem dar informações exigidaspelo Conselho ou por qualquer de seus membros em tempo rasoavel e com a devidacomminação, incorrerão na pena de suspensão do exercício do magistério se for ProfessorPúblico, na fórma dos arts. 118 e 120 §2º do regulamento de 18 de Abril de 1869; e dasubvenção e da liberdade de ensino se for particular nos termos do art. 15§1º da lei n. 54de 15 de Abril de 1868 Art. 125, Cap. III, Regulamento para o Ensino Obrigatório).

A emissão de informações falsas sobre a freqüência escolar implicaria a perda da cadeirado professor público ou particular, cabendo o direito de interposição de recurso àqueles (professor,pai de aluno, tutor ou protetor) que se sentissem lesados com a aplicação de multas.

Mapa de freqüência: prova documental de acusados e acusadores

O Regulamento de 1869 será o mais recorrente nas décadas de 70 e 80. Esta recorrênciapode ser explicada pela especificidade do texto, o de instruir sobre a normatização de questõesgenéricas da instrução da província, quando os outros dois incidiam sobre questões específicas– Ensino Obrigatório e Escola Normal – com devidas implicações sobre a instrução provincialpública e particular. Os dois últimos regulamentos instruíam sobre aspectos da instrução quedeveriam ser executados numa arquitetura já esboçada pelo Regulamento de 1869.

O relatório do estado da escola era sempre iniciado pela referência que o sujeitava ànormatização do regulamento em vigência. Um Inspetor Distrital iniciaria a redação do relatóriocom a seguinte menção de cumprimento de norma: “Na qualidade de Inspector da instrucçãopublica primaria d’este Município, passo pelo presente a satisfaser o dever que o respeito mesão impostos pelo § 8 de 10bro de 1851 (Inspetor Distrital, sr. João Manoel da Rosa, Cananéa,10 de abril de 1867. 4920 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

De igual modo, uma professora faria menção do cumprimento à prerrogativa legal: “Aprofessora Publica de 1as. Lettras da cadeira do sexo feminino da Villa de Cajurú, cumprindo opreceito do art. 11 do Regulamto. de 18 de abril de 1868 Lei nº 54 (Provincial) do abril do

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mesmo anno, passa a relatar a V. Sa. o estado de sua Escola e o de seus alumnos no simestre dejunho até 1º de 10bro do corrente anno.” (Relatório da Profa. Euphrasia Eugenia de Almeida.4920 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

Mudado o texto normativo, mantinha-se a relação de obediência ao cumprimento danorma: “Em cumprimento ao que dispõe o artigo 110 § 11, do regulamento de 18 de abril de1869, passo a informar a V. Sa. do movimento de minha escola no segundo semestre de Junhoa novembro do corrente anno” (Relatório da Profa. Julia Augusta do Amaral, Brotas. 4918 06,Série MIP – AESP) no primeiro ou segundo semestre do ano em questão.

“Em virtude do Art. 110 § 11 do Reg. de 18 de Abril de 1869, cumpre-me enviar a V. Sa.o relatório, acompanhado do Mappa, como dispõe o mesmo Art. já citado.” Padre AntonioAgostinho de Sant’Anna, Professor Publico de Primeiras Letras da Vila de São Vicente. (509069 – Série Ofícios Diversos – AESP).

A seqüência acima descrita mostra que o relatório é o cumprimento de uma formalidadereproduzida em períodos sucessivos segundo a legislação vigente, são reeditados os mesmoscuidados com o registro de dados solicitados pelos textos normativos. As variações pinçadas noespaço de tempo que substitui um por outro texto normativo incide sobre a periodicidade (mensal,trimestral, semestral), sobre aproveitamento dos alunos, número médio de alunos para criaçãode escola (15, 20, 25, 30), provisão material das escolas, entre outras. A freqüência escolar éo dado invariável nos documentos que, desde o início do século XIX relataram o estado daescola pública de instrução primária da Província paulista.

De 1º de Junho te esta data tem se matriculado mais 16 alumnos; e como alguns d’ellessó freqüentarão um mez e dias, deixo de mencionar no Mppa, bem como, os alumnosHeitor Augusto Porchat de Assis e Manoel Francisco dos Santos, quaes se retirarão diasdepois de ter enviado o memso mappa.Os alumnos que tenho freqüentes, tem tido com approveitamento, os que são applicados;outros, algum tanto rudes e pouco freqüentes como verá do mappa seguinte.Alguns alumnos não tem livros e papeis; para o que se torna precizo fornecer-lhes, paranão deixarem de estudarem e escreverem, motivo este, por falta de meios de seus pais.Com as epidemias, e as veses por causa dis banhos do mar; vem alguâs famílias, ematriculão seos filhos na escola; por isso, tem occasiões que freqüentam muitas, conformeo estado das mesmas neste logar. Alguns tem muitas faltas, por que, sendo seos paispobres, oe levão dias para a lavoura, pesca, ou outros misteres.Torno a representar a V. Sa. a necessidade de bancos escrivaninhas, traslados e lousas,sendo uma maior, para os mesmos alumnos faserem exercícios; bem como papel e tintapara os alumnos pobres. (Padre Antonio Agostinho de Sant’Anna – Professor Público,Vila de São Vicente, 1/11/1876. 5090 69 – Série Ofícios Diversos – AESP).

O relatório traduz o cumprimento da obrigação normatizada pelo Regulamento de 1869,nele a freqüência escolar aparece como o fio que puxa a descrição e dá visibilidade ao estado daescola que está sob a sua responsabilidade. Embora não haja nenhuma referência direta sobre otexto normativo da obrigatoriedade, o relatório do Professor Agostinho gira em torno da freqüência

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por meio do argumento que pretende justificar a infreqüência. Abaixo está uma série de dadosque explicam o estado da escola por meio das implicações com o tema da freqüência.

– O mapa continha um número maior de alunos porque alguns deixaram de freqüentar aescola depois que o mapa já tinha sido enviado.– Os alunos de bom aproveitamento são aqueles que mais freqüentam a escola.– Os alunos com baixo aproveitamento são aqueles que deixaram de freqüentar a escola.– Os alunos que não têm material (livros e papéis) para estudar poderão deixar de freqüentara escola.– Os alunos, filhos de pais pobres, deixam de freqüentar a escola para acompanhar ospais nos serviços de lavoura e na pesca.

O cumprimento do relatório, uma exigência legal da parte de quem exercia o magistérioda instrução pública de Primeiras Letras, constituía uma estratégia empregada pelo professor najustificativa sobre todos os aspectos supostamente questionáveis do estado da escola sob a suaresponsabilidade. Havia situações mais graves, em que o professor era envolvido em processodisciplinar, com pena de supressão dos vencimentos. Nestes casos, explicar as razões do estadoda sua escola na relação direta com o tema da freqüência era uma necessidade tanto para selivrar das penas previstas no regulamento como um instrumento usado para reparar os danoscausados à própria honra.

No ano de 1886, foram constatados quatro episódios de professores envolvidos emprocessos disciplinares motivados por problemas de freqüência. A Professora Ambrosina Mariado Espírito Santo, responsável pela cadeira feminina de M’Boy-mirim

117, era acusada de

comportamento desonroso para a profissão, o que implicaria na recusa dos pais quanto ao enviodas filhas à escola.

118 Previa-se a supressão da sua cadeira tendo em vista o número baixo de

alunos que freqüentavam a escola. Entre os documentos de defesa da Professora Ambrosinaestá um atestado de Jacob Gaspar, pai de Othilia, para quem a professsora em questão,

(...) tem tido sempre para com suas alumnas, o necessário desvelo, ensina-as com carinho,infundindo-lhes por seu comportamento, o respeito e obediência necessárias, e istodemonstra o aproveitamento que se nota das alumnas que freqüentam e têm freqüentadoa eschola. (Jacob Escobar, M’Boy, 13 de outubro de 1886. Episódio 9 – 4996 01.Processos – AESP).

O pai é cúmplice da professora, o argumento produzido tende a somar as qualidadeshonrosas da professora com o bom aproveitamento das alunas que “freqüentam e têm freqüentadoa eschola”. (Episódio 9 – 4996 01. Processos, MIP – AESP).

117Mboy (Mboi) – Proncuncia-se Emboú. Povoação pequena, entre o município de Santo Amaro e Cotia.Teve origempor aldeamento de índios domesticados. Situada há aproximadamente 33,3 km da capital. Havia até 1876 duas escolasde instrução primária para ambos os sexos. MARQUES, 1980, p. 111. Tomo II.

118Episódio 9 – Professora Maria Ambrosina do Espírito Santo, M’ Boy-mirim, 1886. 4996 01. Processos, MIP –AESP. MIP – AESP.

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Enquanto a acusação explica a infreqüência escolar pela conduta desonrosa da professora,em São Benedicto, Districto de Escada

119, foi negado ao Professor Luiz da Fonseca de Moraes

Galvão Júnior, o atestato do Inspetor de Distrito120

. O atestado correspondia à certificação dafreqüência mínima prevista pelo Regulamento de 1869 com punição traduzida na supressão dosvencimentos do professor. O acusado reuniu depoimentos de pais de alunos dando entrada numofício onde requeria ao Inspetor de Distrito que atestasse “a sua freqüência para o fim de receberseus vencimentos” declarando que a escola tinha “matriculados 17 alumnos, aos quaes freqüentes11”. (Episódio 10 – 4996 01, Processos – AESP).

A defesa do professor abria fenda para contradições como se observava no atestadoanexo da defesa, emitido por Antonio Pinto, segundo o qual o professor acusado cumpria“severamente com seus deveres”, tinha 13 alunos matriculados e 10 freqüentes, jamais deixouda dar aula um só dia, “estando, portanto, no caso de receber os seus ordenadoscorrespondentes” (1º de março de 1886. Episódio 10 – 4996 01, Processos – AESP). Afreqüência referida pelo testemunho de defesa compreendia o período de 8 de fevereiro até 1ºde março e confirma a contradição quanto aos números da freqüência. A acusação não cederiaaos argumentos dispensados pela defesa, além dos problemas mais evidentes como a freqüênciaduvidosa da escola, haveria de pesar a “inconveniência e arrogância” do Professor Luiz, queteria feito o seguinte comentário: “Quer eu cumpra exemplarmente os meus deveres, quer não, aestatua que me erigirão será de talos de couve, por isso cumpre que eu não prejudique a minhasaúde”. (Episódio 10 – 4996 01, Processos – AESP).

Em Paraibuna,121

o sr. Antonio Cândido d’Almeida da Silva, pai de Gastão d’Almeida,deu entrada num processo contra o Professor Adélio de Castro, sob alegação de que o filhoteria sido eliminado de sua escola.

122 Por tal razão, dirigiu uma carta ao professor referido,

solicitando a explicação do fato.“Constando-me ter meo filho Gastão d’Almeida, sido eliminado da matricula de sua escola,

tenho necesside. de saber qual foi o motivo da eliminação, por isso, peço á V. Sa. que m’odeclare”. (Episódio 11 – 4996 01, Processos – AESP).

119Bairro na freguesia da Escada, município de Mogi das Cruzes, onde foi criada uma cadeira de Primeiras Letras em1875. MARQUES, 1870, p. 233. Tomo II.

120Episódio 10 – Professor Luiz da Fonseca de Moraes Galvão Junior, São Benedicto (Distrito da Escada), 1886. 499601. Processos, MIP – AESP.

121Santo Antonio de Parahybuna – Povoação situada há 122,2 km da capital. Começou pela reunião de famílias que seestabeleceram nas imediações do rio do mesmo nome por volta de 1666, tendo sido edificada uma capela em homenagema Santo Antonio. Foi criada freguesia em 1812 e elevada à cidade pela Lei Provincial de 30 de abril de 1857. Cabeça decomarca. Além da matriz, possuía até o ano de 1876, a igreja do Rosário dos pretos, casa de Câmara e cadeia. Dapopulação de 10132 habitantes, 1084 eram escravos e 24 eleitores (1876). Exisitia à mesma época, quatro escolas deinstrução primária para ambos os sexos. MARQUES, 1980, p. 140.

122Episódio 11 – Professor Adélio de Castro, Parahybuna, 1886. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

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Para responder ao pai de aluno, o professor tomou como instrumento de recado, umoutro aluno, Francisco Sant’Anna, a quem instrui para que respondesse ao sr. AntonioCândido “que o alumno Gastão tinha attingido á idade competente, e que por isso, emvirtude da lei, o tinha eliminado” (Paraibuna, 10 de maio de 1885. Episódio 11 – 4996 01,Processos – AESP).

O pai de aluno sentia-se insultado frente à informalidade do professor: a “resposta verbal”transmitida por um aluno. Era um advogado que tinha como causa, a defesa do direito de seufilho à permanência na escola pública.

Hontem tive a honra de dirigir uma carta á V. Sa., pedindo-lhe que se dignasse declarar-me: – o motivo pelo qual foi eliminado da matricula de sua escola meo filho Gastãod’Almeida, e em resposta a minha carta, dignou-se V. Sa. mandar-me um recado verbal,que foi trasnsmittido a mando do Senr. por um seo alumno.

Ensistindo novamente pela declaração do motivo da eliminação, peço á V. Sa. m’a de porescripto (grifo do autor).(Parahybuna , 25/09/1885. Episódio 11 – 4996 01, Processos –AESP).

O pai de aluno “usando do direito que lhe assiste” insiste pela formalização escrita quejustificaria a eliminação de seu filho da escola. Até o dia 28 de novembro de 1885, o professorsó teria devolvido apenas “recados verbaes” ao suplicante. Por tal razão, o pai de aluno solicitaa mediação do Inspetor do Distrito que, por sua vez, situa a exigência do pai nos parâmetros dalegislação em vigor, ao recorrer à impessoalidade da norma, o inspetor se rende ao apelo daacusação.

O Suppe. que quis, no [...] do Art. 99 do Regulamo. vigente, da Instrucção Publica, de18 de Abril de 1869, recorrer contra a dita eliminação, precisa, primeiro que V. Sa., naforma dos artigos 110 §§ 9º e 12º e 192 §§ 5º e 7º, combinados com o arto. 98, todos docito. Regulamo. [...] ordene ao dito professor que, incontinenti – a vista do seo respectivolivro de matricula, declare, ao pé d’esta: qual o motivo da dita eliminação e a data d’esta.(Parahybuna, 03/12/1885. Episódio 11 – 4996 01, Processos – AESP).

A exigência recorrente do pai é contemplada pelo regulamento em vigor: “Logo que sejaeliminado um alumno, o Professor fará assentamento, adiante do seu nome, da data da eliminação,com declaração do motivo desta”. (Art. 98, Reg. 1869). A intervenção do Inspetor de Distritose dá pela coerção legítima da autoridade investida de poder que ele representa.

Da indevida admissão ou inadmissão á matricula, eliminação, e questões que a respeito sesuscitem, há recurso para o Inspector do Districto, e deste para o Inspector Geral, quedecidirá definitivamente, ouvindo o Professor, Inspector do Districto, e Presidente daCâmara Municipal. (Art. 99, Reg. 1869).

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A autoridade representada pelo Inspetor de Distrito se consolida na contra-face dasimposições dadas aos professores, a quem competem, entre outras, a obrigação de: “Prestar asinformações que lhe forem exigidas pelo Presidente da Câmara, e Inspector de Districto” (Art.110, §10). Os usos que o Inspetor de Distrito faz da norma em vigor são concessões àambigüidade própria do discurso normativo. A instituição da norma que obriga o professor nãopossui a força que assegura o cumprimento daquilo que é uma obrigação, por isso a legitimidadeda autoridade do Inspetor de Distrito, agente cuja atribuição é zelar para que o professor cumpracom a sua obrigação. “Cumprir e fazer cumprir nas escolas as disposições” previstas noRegulamento em vigor. Uma vez que o objetivo é a realização de um serviço público, o dainstrução, o Inspetor é agente de mediação entre pais de alunos e professores dos filhos dospais, competindo-lhe: “Receber reclamações, queixas ou representações, providenciando nocaso como lhe competir, ou levando-as ao conhecimento do Inspector Geral”. (Art. 192, §7º,reg. 1869). Neste caso, a queixa vinha de um pai com formação de Direito, o que lhe conferianão apenas a legitimidade da reclamação garantida pela lei mas a distinção conferida à poduçãoe sustentação da queixa.

O pai de Gastão, aluno eliminado pelo Professor da escola masculina de Parahybuna,acionava o discurso da norma na mediação e intervenção sobre a situação que envolvera o seufilho. O Inspetor acionava o discurso da norma para fazer valer a sua atribuição de zelar pelocumprimento da obrigação do professor. O Professor também explicava o seu ato pelo textonormativo que regia o ensino obrigatório (Reg. 1874) e dá pista clara de que o Inspetor deDistrito estaria a par de seus atos. A explicação inicialmente requerida pelo pai do aluno éendereçada ao Inspetor geral da Instrução Pública de São Paulo.

Como consta do mappa que, em 1º de Novembro de 1885, tive a honra de passar ásmãos de VSa. , eliminei, baseado no artigo 1º da lei nº 9 de 22 de março de 1874, e ouvidoo Dr. Inspector de Districto, da escola sob minha direcção, alguns alumnos que attingiramá edade de 14 annos, permittindo-se-lhes, entretanto, com annuencia do referido Dor.inspector litterario, continuassem a freqüentar as aulas e se submetessem mesmo a examefinal, como ficou consignado no termo do exame e que, a 5 de Dezembro de 1885, n’estaescola se procedeo, e que a V. Sa., pelo Dor. Inspector litterario, foi dirigido. (Parahybuna,04/03/1886. Episódio 11 – 4996 01, Processos – AESP).

Valendo-se da participação do Inspetor do Distrito e se sustentando sobre um regulamentorevogado, o professor prossegue na fala dirigida ao Inspetor Geral.

Ultimamente, foram eliminados, por haver attingido à edade de 14 annos, o alumno Gastãod’Almeida, filho do Dr. Antonio Candido d’Almeida e Silva, sussitou-se a questão, deserem os meus actos, n’esse sentido, illegaes por isso que acha-se revogada a lei em quetenho me baseado, para assim proceder. (Parahybuna, 04/03/1886. Episódio 11 – 499601, Processos – AESP).

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O professor tinha o seu ato questionado pelo pai que ao fazê-lo também informava dailegalidade do ato, tendo em vista, a revogação do Regulamento que normatizava a obrigatoriedadedo ensino limitando a oferta de escolas públicas a menores entre 7 e 14 anos de idade. OProfessor se rende ao argumento, admite ter outros dois alunos com idade de 14 anos e nãosabe como proceder em relação aos mesmos. Silencia-se em relação ao Inspetor de Distritocomo se aquele também não estivesse muito informado quanto à legislação vigente e dirigindo-se ao Inspetor Geral:

(...) solicito a bondade de esclarecer-me arespeito, a fim de que, não só rectificar osmeus actos, matriculando, de novo, os alumnos eliminados, e que, não obstante, assitemás aulas, se por V. Sa. for ordenado, senão ainda evitar a sua reproducção. (04/03/1886.Episódio 11 – 4996 01, Processos – AESP).

O advogado que era o pai do aluno eliminado da escola pública pelo fato de ter completado14 anos, requeria do Inspetor Geral, o Dr. Arthur Cezar Guimarães, uma “solução á questãosuscitada, e o merecido corretivo ao procedimento do professor” (Parahybuna, 10/03/1886).Pouco mais de dois meses se passaram quando o Inspetor Geral da Instrução se pronunciousobre o caso, com o seguinte despacho: “Expeça-se Portaria solvendo a duvida proposta peloprofessor e reprehendendo-o severamente pela falta de cumprimento do arto. do Reg. de 18 deabril de 1869” (São Paulo, 18 de maio de 1886).

Enquanto o professor da escola de Parahybuna baseando-se num texto normativo(revogado) eliminou um aluno da matrícula da escola, havia no bairro do Leme(Guaratinguetá)

123, um professor que respondia a processo disciplinar, pelo fato de que,

entre outras faltas, a escola sob sua direção jamais contara com freqüência superior a seisalunos.

124 O Inspetor do Distrito lhe negou o atestado de freqüência referente aos três

últimos meses de 1885. Contrariado, o professor interpôs recurso. O Inspetor alegava quea escola era, por muitas vezes, deixada ao abandono, o que talvez explicasse o número dealunos tão “diminuto, nunca excedendo de 6 discipulos”. (Episódio 12 – 4996 01, Processos– AESP). Mas a parte acusada se valia de argumentos que justificavam o “abandono” pelaobtenção de licença. O desdobramento da contenda instaurada atingia outras instâncias,

123Guaratinguetá – Situada a 200 km da capital paulista. Foi edificada à direita da margem do rio Paraíba.Foi fundada pelocapitão Domingos Leme, paulista notável e possante, que para lá emigrou com sua família na primeira metade doséculo XVII, em busca de minas de ouro. Foi elevada a cidade com a Lei Provincial de 23/01/1844. Até o ano de 1876possuía: a igreja matriz de Santo Antonio, dentro da povoação possui as igrejas do Rosário, Santa Rita e São Gonçaloe, no município, a igreja de Nossa Senhora da Aparecida, a capela da Senhora da Piedade no bairro da Roseira, capelado Senhor Bom Jesus no arraial do Potim, capela de Santa Ana no bairro dos Pilões, capela de são José no bairro deSão José e capela de Santa Ana no bairro do Paiolinho. Também possuía casa de Câmara, cadeia, hospital, quatrocadeiras de instrução primária para ambos os sexos e dois colégios de instrução elementar. A população até o ano de1876 era de 20837 almas sendo 4.352 escravos e 51 eleitores (1876). MARQUES, 1980, 306-307, Tomo I.

124Episódio 12 – Professor Theophilo Galvão de Oliveira França, Bairro do Leme, Guaratinguetá, 1886. 4996 01.Processos, MIP – AESP.

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que inscreviam o professor como um servidor público, responsável pela direção da escola,agência inscrita no cenário da urbanidade. Como tal esperava-se deste segmento dofuncionalismo público, códigos de socialização baseados na cortesia e polidez. Tanto comoa norma dava às relações interpessoais o caráter da impessoalidade, a discrição ou ocomportamento forjado pela cortesia reforçava o tom impessoal que conferia a distinçãodemandada pelo cenário. O cenário onde se dá a quebra da etiqueta do professor é constituídopelas imediações da estação onde o mesmo tomaria o trem que o conduziria à escola ondelecionava.

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Contrariando a este preceito, o comportamento do Professor Theophilo, por ocasião damanhã na qual foi denunciado, era descrito pelo Inspetor da seguinte maneira:

dirijia-se para a Estação da Estrada de Ferro para tomar o trem, em direcção ao bairro emque tem sua escola, ao ver-me na janela de minha casa dirijiu-me desaforos e insultos,que se manifestaram por mais de palavras e pelo modo pouco cortez e attencioso porqueforão ellas proferidas; esperando-se nesta occasião do simples dever de cortezia e deurbanidade, que todos nós temos uns para os outros em suavidade, qual o de cortejar-me; sendo que esta é a menor falta por elle commettida (12/04/1886. Episódio 12– 499601, Processos – AESP).

Na fala registrada acima, nota-se que, o Inspetor emparelha à palavra “cortezia”, a expressão“urbanidade”. Tais expressões são apresentadas num par que sugere identificação semântica.Sobre a questão, Norbert Elias ao estudar o desenvolvimento do conceito de civilidade nasociedade da côrte francesa localiza o seguinte sentido etimológico:

Urbanité é um termo de curso diferente de civilité, humanité, politesse, galanterie.Urbanitas deriva de Urbs, cidade romana – o uso do termo Urbanitas significava polidez dalíngua, mente e maneiras ligadas à esta cidade. (1994, vol. 1, p. 112). A palavra “cidade” referia-se à boa “sociedade burguesa” que era diferente da sociedade limitada da côrte. Tanto como oconceito de côrte, o conceito de civilidade vai se afundando sendo ambos absorvidos na novaexpressão: civilization.

O conceito de civilização indica com clareza, em seu uso no século XIX, que o processode civilização – ou, em termos mais rigorosos, uma fase desse processo – fora compelidoe esquecido. As pessoas querem apenas que esse processo se realize em outras noções,e também, durante um período, nas classes mais baixas de sua própria sociedade. Paraas classes alta e média da sociedade, civilização parece firmemente enraizada. Querem,acima de tudo, difundi-la, e no máximo, ampliá-la dentro de um padrão já conhecido.(ELIAS, 1994, vol. 1, p. 113).

125Em 1883, São Paulo possuía “4 estações”, o que causou admiração a KOSERITZ (1972) em sua passagem por SãoPaulo vindo do Rio de Janeiro em 7 de novembro de 1883: “é a particularidade que mais me inveja. A Estação doNorte, pela qual chegamos, fica no Braz, e na vizinhança fica a estação do Braz, que serve à estrada inglesa de SãoPaulo a Santos. Nas proximidades do Jardim Público, que é uma verdadeira jóia da cidade, fica a Estação da Luz,também da estrada inglesa, e perto está a estação da Sorocabana.” (Carl Von Koseritz, 1972, p. 246).

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Voltando ao Leme, percebe-se que, ainda que não se saiba do desfecho do recursointerposto ao processo disciplinar instaurado contra o Professor Theophilo Galvão (Bairrodo Leme), o registro da sua indisposição com a autoridade da inspeção distrital releva otema da freqüência escolar tal qual a especificadade conferida à escola e os agentes a elaligados direta ou indiretamente na década de oitenta do século XIX. A acusação casava ainfreqüência da escola com as constantes faltas do professor, cujo perfil era pouco ou nadaafeto aos códigos esperados de um servidor público responsável pelo ensino no ano de1886. As partes da acusação e defesa estavam cientes do processo que se arrolava porentre as mesas da repartição da Instrução Pública e a escola masculina do Bairro do Leme.Mas, mesmo estando em franca oposição, o Inspetor cobra do professor a reverênciamarcada pela posição subalterna na hierarquia do funcionalismo público, a discrição quegera a simulação da cordialidade interpessoal. Era legítima a punição do professor que nãodemonstrava a honradez demandada para o cargo ocupado e tampouco demonstrava cortesiano tratamento com seus superiores, causando um “vexame público”. A rua como espaçopúblico também está sendo redimensionada, um código de condutas ou de posturas redefineo padrão do comportamento humano esperado. De igual modo há mudanças dadas sobreoutras atividades, em diferentes períodos da “experiência histórica”, mudanças graduais nocomportamento observado à mesa ou na atitude de ir para a cama, como o mostra comrefinamento Elias.

Nestas e em outras atividades elementares, muda lentamente a maneira como oindivíduo comporta-se e sente. Esta mudança ocorre no rumo de uma “civilização”gradual, mas só a experiência histórica torna mais claro o que esta palavra realmentesignifica. Mostra por exemplo, o papel fundamental desempenhado nesse processocivilizador por uma mudança muito específica nos sentimentos de vergonha edelicadeza. Muda o padrão do que a sociedade exige ou proíbe. (ELIAS, 1994, p.14, Prefácio).

O caso do Leme inscreve o professor acusado numa posição de resistência a umconceito de moralidade que não está fundado na religião e nem é natural ao homem. Talconceito se constitui no engendramento das relações que no processo civilizatório, impingeà condição humana à etiqueta que asseguraria a previdência e previsibilidade da conduta. Aação invisível que governa os novos códigos da urbanidade também se traduz naimpessoalidade da norma – escrita na lei – é dada pela produção de uma moral que sefunda na reverência à honra.

“A idéia de moralidade é parte da cultura. A aplicação desta idéia, porém, queresulta apenas na analogia de moralidade no amor à honra e à decência visível, equivaleapenas ao processo civilizador.” (Kant, apud ELIAS, 1994, vol. 1, p. 27). Nesta passagem,Elias está operando a distinção entre cultura e civilização na Alemanha nos séculos XVIIe XVIII, a antítese entre kultur e Zivilization é sintetizada na antítese entre “cortesia”

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(externa, enganador, superficial, cerimônia) e “virtude” (autêntica, vida interior,profundidade de sentimento, desenvolvimento da personalidade individual).(1994, vol. 1,p. 27-29).

126

O comportamento cerimonioso do Inspetor do Leme, o inscreve, nos processos deprodução de um certo formalismo requerido pela consolidação da hierarquia nas relações dofuncionalismo público.

Nada mais tenho a dizer em abono da minha queixa contra o justificante, o que e comofica dito, eu sello com a palavra da minha honra, de cavalheiro e d’um funcionáriopublico, que tem procurado corresponder á confiança que tão honrosamente lhe foidispensada pelo governo. (Inspetoria do Districto Literário de Guaratinguetá em 12 deAbril de 1886. Episódio 12 – 4996 01, Processos – AESP).

Impostura parecida cometeu o professor João Baptista de Azevedo Marques que tambémera autor e ator de teatro em Tietê

127. Este professor estava sendo processado pelo Inspetor

Distrital por ter cometido fraude na escrituração da freqüência escolar e ter agido “malcreadamente”com o inspetor.

128

Diz o Inspector que sou o peior dos professores, e faço ostentação de tratal-o comexpressiva grosseria ou atrevimento, recusando-lhe ate a menor civilidade que o homemeducado deve não só a seus superiores, como ate a seus pares inferiores.(...) Sou grosseiroe atrevido, mas não diz o senhor Inspector em que consistem a minha grosseria eatrevimento. As suas expressões provam só a sua má vontade e o desejo de atirar injuriasa mim, pois que accusa-me sem a especificação de factos. Para accusar não há anecessidade de insultar. O insulto irrita e não convence. O modo porque sensura aincivilidade dos outros não denota civilidade.O Philosopho Diógenes dice que calcava com os pés sobre o tapete o orgulho de Platão,ao que responderam-lhe: – sim, com o maior orgulho.Não falto e jamais faltei com o respeito e civilidade à pessoa alguma, e tomo como normade procedimento respeitar á todos para ter o direito de ser respeitado. (Trecho da defesa

126Também se apresenta pertinente o estudo de João Adolfo Hansen, O discreto. In: NOVAES, A (org.) 1996. Aí o autoropera analiticamente com práticas de representações dos tipos discreto e vulgar, no curso do século XVII. Práticas dedissimulação, fingimento são associadas a conceitos de ‘honra’, virtude, agudeza, discrição. Discrição constitui,nalguma medida, “artifício das convenções que regulam a sociedade”. A honra resulta de uma opinião, ser discreto ésaber produzir a “representação adequada à honra, evitando com ela a murmuração vulgar, pois com a representaçãoadequada se mantém intacta a reputação da posição que aparece formalizada nos signos. Da mesma maneira, mantêm-se intactas também a reverência e a obediência que são devidas à posição. Por isso, nas práticas de representação doséculo XVII, ‘honra’, ‘reputação’, e ‘reverencia’ são sinônimos doutrinados politicamente como derivados da opinião”.HANSEN, O Discreto. In: NOVAIS, 1994, p. 95.

127Tietê – Em 1811, os moradores do lugar impetraram a criação de paróquia no lugar, desmembrando de Porto Feliz,com a invocação da Santíssima Trindade de Pirapora. A Lei Provincial de 8 de março de 1842 a elevou à condição devila com o título de Pirapora de Coruçá. Até o ano de 1876 não possuía nenhum edifício público além da matriz. Apopulação era de 10007 almas, sendo 3276 escravos, 25 eleitores (1876). Possuía quatro cadeiras de instrução públicaprimária para ambos os sexos. MARQUES, 1980, p. 285.

128Episódio 13 – Professor João Baptista de Azevedo Marques, Tietê, 1886. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

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de João Baptista de Azevedo Marques encaminhada ao Inspetor Geral, Tietê, 16/07/1886. Episódio 13 – 4996 01, Processo – AESP).

129

O Professor João Baptista teria realizado algumas para divulgar uma das últimas peças desua autoria. Estas viagens eram caracterizadas pela acusação como abandono da escola. Aoque o professor respondia, justificava e anexava declarações que pudessem atestar a sua licitude.Como fez ao ser acusado de apresentar mapas e atestado de freqüência com quantidadesdiferentes de alunos. O professor procedeu como era comum a qualquer envolvido num processodaquela natureza, recorreu a alguém que pudesse declarar ao seu favor, neste caso, o pai de umaluno. Mas diferentemente do que se convencionava para aquela situação na qual a forma dotexto era: “... [nome do acusado], professor publico da ... cadeira da localidade ..., a bem deseus direitos requer a V. Sa. que se digne attestar, ....[menção à boa conduta moral do acusado,ou referência ao objeto da acusação].E, finalizando: “Solicita autorização para o uso que lheconvier.” O Professor ator procedia à sua maneira, abaixo a transcrição do modo como sedirigiu ao pai:

Para que não passe como mentiroso, desejo que S. Sa. me declare n’esta si o seu filhoOzório não freqüentou dous dias a minha escola (Professor João Baptista dirigindo– seao Sr. José Rolim Dias, pai de aluno. Tietê, 04/08/1886. Episódio 13 – 4996 01, Processo– AESP).

Não querer se passar por “mentiroso” era, nalguma medida, uma declaração de recusaaos rituais de representação.

130 Aos olhos da acusação, esta atitude equivalia a uma falta

caracterizada pela impostura do professor ator, como atestava o Promotor Público, atendendoà solicitação do Inspetor:

Em resposta ao officio de V.Sa. attesto: 1º que o Sñr. João Baptista de Azevedo Marquesnão goza de bom conceito como professor publico; 2º que refere-se à pessoa de VSa.[Inspetor Literário do Distrito] em termos impróprios e pouco polidos; 3º que nega aV.Sa. o mais comesinho dever de cortezia, que seja tirar o chapéu ao encontro, do quetenho sido testemumunha ocular. (Promotor Público, João N. Nogueira dirigindo-se aoInspetor Literário, Sr. Raphael Augusto de Souza Campos. Tietê, 18/07/1887. Episódio13 – 4996 01, Processo – AESP).

129A existência de livros disponíveis sobre o tema da civilidade ou “boa criação” poderia ser constatada nos anúncios daslivrarias que eram publicados nos jornais de circulação paulista. “Escolla dos bons costumes 4 vol. 8$” (CorreioPaulistano, 23/05/1857, p. 4), “Elementos da civilidade e decenciaque practica entre gente bem criada 1$600, Codigodo bom tom ou regras da civilidade, e de bom viver de 19º século por Roquete 30$ ” (Correio Paulistano21/01/1858,p. 4).

130Erwin Goffman utiliza a matáfora da “ação teatral” para a análise que empreende no sentido de mostrar que todohomem, em qualquer situação social, apresenta-se diante de seus semelhantes, tentando dirigir e controlar as impressõesque possam ter dele. (GOFFMAN, 1985).

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“Tirar o chapéu, de chapéu na mão, varrendo as calçadas com o chapéu, significavam ascortesias exageradas ou louvaminheiras”. (Cascudo, 2000, p. 128). O chapéu pode serconsiderado como um emblema dos códigos de urbanidade. Kozeritz (1972) em passagem porSão Paulo no ano de 1883 descreveu a “impressão de sujeira e abandono” da Academia, o tipo“alegre e despreocupado do estudante brasileiro”, revela ter ficado “um pouco decepcionado”com o “Braz”. Mas a visita à uma fábrica de chapéus de um seu conterrâneo lhe teria deixado asmelhores impressões.

Hoje de manhã, em companhia do dr. Rath, visitamos a grande fábrica de chapéus do sr.João Adolfo Schritzmeyer, uma das maiores do país, na qual se ocupam 132 pessoas.Fica situada em uma das ruas de baixo, em um edifício especialmente construído. Ogenro do sr. Schritzmeyer, um pernambucano que fala o alemão, nos recebeu da maneiramais amável e nos conduziu à sala de receber da habitação da família, onde nos apresentouà senhora sua esposa. Daí prosseguimos nosso caminho pelos grandes espaços da fábrica,onde se pode acompanhar a fabricação de chapéus em todos os seus sucessivos aspectos.Como já disse trabalham 132 pessoas na fábrica, que tem as máquinas de mais recenteconstrução e cuja produção é colossal. É uma criação de primeira ordem, da qual o sr.Schritzmeyer deve estar orgulhoso a justo titulo. (KOSERITZ, 1972, p. 257).

O uso do chapéu131

também comporia o figurino de mulheres. Os anúncios publicitáriosde jornal davam conta da diversidade de ofertas. Estudando a corte nas últimas décadas doséculo XIX, Luiz Felipe Alencastro nota que:

No ambiente iluminado das casas, dos salões e dos cafés, a aparência individual devia serevestir de novos atributos estéticos. Chapéus, luvas e vestidos, muitas vezes provenientesde estoques em crises econômicas ou as viradas da moda haviam tornado invendáveis naEuropa ou nos Estados Unidos, são importantes no Rio de Janeiro. Alguns desses adereçosdeixam entrever os hábitos e as expectativas íntimas das camadas ascendentes da sociedadeImperial.(1999, p.85).

Os ritos que caracterizariam a reverência à honra incluíam certos usos do chapéu, mastambém implicavam por uma certa etiqueta que guiaria os códigos de comunicação oral ouescrita. Aliás, naquilo que diz respeito à formalidade escrita, a reverência à honra também seapresenta como uma viga na sustentação das relações da hierarquia do serviço público. Asevocações que conferem distinção à ordem vigente, aparecem como uma constante dascorrespondências oficiais

132. Por isso a recorrência de termos como honra e respeito em atos de

131As ilustrações de O Cabrião consituem uma boa amostra do uso deste adereço entre os paulistas. Ver: CABRIÃO.Semanário humorístico editado por Ângelo Agostini, Américo de Campos e Antonio Manoel dos Reis, 1866-1867.São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial do Estado, 2000. CASCUDO, L. da C. 2000. Dicionário do folclorebrasileiro. São Paulo: Global.

132Estas expressões de tratamento também são denominadas Formas de tratamento epistolar. Cf. ACQUAVIVA, p. 661a 663.

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escrita que formalizam situações conflitivas entre os diferentes agentes da hierarquia do serviçoda instrução pública. Abaixo, a transcrição de alguns trechos afins:

“Com o devido respeito volta o suppe. a presença de V. Sa. para ponderar que” (Ofícioda secretaria da Instrução Pública para o Inspetor do Distrito de Guaratinguetá, 03/01/1886);“Antonio Candido d’Almeida e Silva, usando do direito que lhe assiste, tem a honra de sujeitar-se” (Requerimento de Antonio Candido d’Almeida (pai de um aluno), Parahybuna, 10 de marçode 1886); “Hontem tive a honra de dirigir uma carta a V. Sa., pedindo que se dignasse declarar-me” (Antonio Candido d’Almeida para o Professor Helio de Castro, Parahybuna, 25/09/1886);“Em referencia a denuncia dada a V. Exa. pelo Digníssimo Inspector do Município da Cidade doSocorro, não me é licito negar o que fiz” (16/08/1886 – 4996 01). Aqui, relação amorosa coma honra corresponde à sujeição voluntária à impessoalidade instaurada pela norma que regulamentaas relações interpessoais, trata-se de uma versão oficial de uma modalidade de fingimento que énecessário para a sustentabilidade das relações.

De igual modo são as formalidades que constituem a abertura e o desfecho de umacorrespondência oficial. Poder-se-ia dizer que está se falando daquilo que Roger Chartierdenominou de “escrita de Estado”. Esta escrita corresponderia a uma das medidas quecaracterizariam as condições culturais da produção do Estado Moderno, que tem a ver com a“classificação dos materiais escritos produzidos pelos Estados – isto é, os príncipes, os juristas,as suas chancelarias, os seus agentes nas províncias.” (p. 218).

Para tanto, é necessário tomar em consideração as rupturas que afectaram os suportesmateriais ou os locais de produção da “escrita de Estado”, essa escrita dos representantesda autoridade pública ou a eles dirigida. Três grandes rupturas modificaram profundamentea maneira como o estado dá a conhecer as suas vontades ou registra as dos seus súditos:a que substitui a declaração oral pela fixação escrita (é o caso da Inglaterra, nos séculosXII e XIII, com a multiplicação dos Royal writs), a que substituiu o recurso ao notáriopelo desenvolvimento das chancelarias (o que representa uma evolução essencial dascidades-estado italianas, tanto pela constituição das documentações administrativas compela redacção das crônicas), e por fim a que faz recuar o manuscrito perante o textoimpresso, alterando a escala de circulação dos documentos oficiais e da literaratura dejustificação e também dos escritos denunciadores do Estado moderno nos seus abusosou nos seus fundamentos. (CHARTIER, 1985, p. 218).

Nota-se que a partir da década de 20, momento que coincide com emancipação políticado país, as correspondências oficiais constituirão espaço de representação de mudanças. Exemploé que no cumprimento do relatório, o responsável pela escola agregará à sua identificaçãoprofissional o adjetivo “público”, logo “Professor Publico”. A distinção estará representada nomodo com o qual se evoca a autoridade para quem se está encaminhando o relatório: “Ilmo.”,ou Ilustríssimo. N’alguns casos, “Illmo. e Exmo. Sor.” (S. Paulo, 10 de julho de 1837, Relatóriodo Prof. Carlos Jozé Teles, Escola de Primeiras Letras de Santa Efigênia. 4913 01, MIP –AESP). Noutros casos, “Illmo. Exmo. Rvmo. Snr.” (Relatório do Padre Manoel J. M. Barreto,

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diretor do “Liceo” encaminhado ao Presidente da Província, Taubaté, 24 de novembro de 1848.13 12, Ofícios Diversos – AESP). No mapa da freqüência da “Aula Publica de língua – Latina”,sob a direção do Professor André da Silva Gomes, um entre os “43 alumnos freqüentes” no anode 1824 era registrado como “Illmo. Lucas Evaristo Monteiro de Barros” tratava-se do filho doPresidente da Província. (Relação dos Estudantes, que freqüentarão a Aula Publica de Língua –Latina d’esta Imperial Cidade no prezente anno lectivo de 1824. 4013 01, MIP – AESP).

A forma de tratamento dada pelo “Illmo.” é, n’alguma medida, ressonante domovimento de ilustração originado na França do final do século XVIII, marco importanteda oposição entre fé e razão. A expressão do distintivo de evocação das autoridadespúblicas pode ser localizada em documentos que antecederam à emancipação políticabrasileira, formalidades de tratamento provavelmente marcadas pelas reformas pombalinas.Mas se apresentam num amálgama que mistura elementos da ilustração, da religião, entreoutros. Conforme se pode depreender dos relatórios dos professores das aulas régias. Aos17 de agosto de 1820, o Professor Francisco de Paula Ferreira era responsável pela AulaRégia de Gramática Latina na localidade de Taubaté. Ao cumprir a exigência de relatar a“disciplina” de sua aula, o referido professor empregou as seguintes formalidades detratamento: “Ilmo. Sor. Corel. Manoel da Cunha de Azevedo Coutinho Souza Chichorro”,ao concluir: “Ds. Ge. V. S.” [Deus guarde Vossa Senhoria]. (Ordem 337 90 MIP 1793-1822 . MIP – AESP). Já em Iguape, aos vinte e um dias de julho de 1820, o cumprimentodo relatório da “aula” era aberto pela evocação: “Ilmo. Snr. Coronel Secretario do Governo”e concluído assim: “Ds. Ge. a V. As. Ilmo. Snr. Manuel da Cunha d’Azevedo CoutinhoSouza Chichorro, Comendador da Ordem de São Bento de Aviz, Coronel Secretario doGoverno, e Inspetor Fiscal dos Estudos desta Capitania”, assinava “O mais reverente súdito.Francisco Mannuel da Silva e Mello”. (337 90 MIP 1793-1822. MIP – AESP). Nota-seque as evocações que marcam as formalidades de tratamento nas correspondências oficiaisdo período são produzidas num movimento que reúne matizes ideológicas e hitóricas dasmais distintas.

Chartier, ao discorrer sobre as condicionantes da produção da “escrita de Estado”, localiza“resistências tenazes das formas antigas de comunicação e de administração”, o que poderia sedar tanto pelo nível do domínio da leitura e da escrita como numa “escrita de Estado” queproduz uma “mistura do público e do privado que caracteriza a sua produção, a sua conservaçãoe os seus usos [séculos XII a XVII]” (p. 218 – 219). As formas de tratamento dascorrespondências oficiais, tanto como os seus caracteres (manuscrito ou impresso) ou símbolosoficiais como timbres, carimbos, selos, estampilhas podem ser classificados como aquilo queChartier chamou de “signos de poder” e, conforme nota o autor, ajudam a “apreender, nocampo da prática, a eficácia simbólica do Estado”. (p. 221). Chartier chama atenção para anecessidade de exploração de suportes materiais como estes, de modo a ultrapassar “o conteúdodocumental ou informativo” (p. 224), interrogando-os de outra maneira, atentos para o fato de

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que “todos eles supõem um destinatário, uma leitura, uma eficácia” (p. 223), e também atentosàs “formas de discurso codificadas e regulamentadas que aí são empregues, aos procedimentosretóricos de persuasão e justificação que aí funcionam”. (p. 24).

É assim que entendemos que as correspondências oficiais no circuito da instrução públicapaulista possam constituir uma amostra do lugar da escola na produção da “escrita do Estado”.

A correspondência abaixo transcrita porta a reivindicação de “hum Professor Régio parainstrucção da mocidade” da localidade de Itu , no dia 22 de julho de 1797.

A Câmara da Villa de Itu, capitania de São Paulo, se prostra aos pés de V. Mage. eseprezenta; que sendo esta villa huma das mais popolozas, eabundantes a mesma Capitania,ecom avultado [...] leterarios, não há nela hum Professor régio para instrucção da mocidade,por cuja falta ainda apezar do incommodo, e a despesa de seus respectivos [...] não podeesta fazerse útil a Igreja, e ao Estado. (337 90 Anos 1793-1822 MIP – AESP).

A linguagem empregada nas correspondências oficiais revela mais que uma representaçãoda escola na relação com a Igreja ou o Estado na Capitania de São Paulo ao final do séculoXVIII, como se deduz numa leitura rápida do trecho acima. Pode-se pensar que a linguagem dacorrespondência oficial é uma forma de “signo de poder” ou uma “sintaxe cerimonial”

133. A

linguagem inscreve a escrita na formalização de uma hierarquia, constituindo em algum graumedida para se apurar “até que ponto elas [tradições inventadas] podem ser forçadas a ampliaro vocabulário simbólico.” (Hobsbawn, 1997, p. 17).

A conjunção híbrida de elementos de matizes religiosos ou políticos diferentes correspondea um amálgama de elementos distintos: políticos, religiosos, cívicos, patrióticos. Tal constatçãoverificada na série de correspondências oficiais acima permite compreender o ritual de umacorrespondência oficial como a ritualização dentro de uma tradição inventada, como tal passívelde sofrer “adaptações de outros elementos antigos” (Hobsbawn, 1997, p. 14).

Vejamos como isso se dá nas correspondências oficiais entre servidores e autoridades,especificamente na representação que a “Câmara” produz ao solicitar um professor como

133A expressão sintaxe cerimonial é reapropriada do uso que David Cannadine a concedeu. Para este autor, a expressãoteria os correspondentes vocabulário do cerimonial e idioma ritualístico. David Cannadine a emprega para definir aforma mais acabada do aprimoramento e execução dos rituais na Grã-Bretanha, vistos especialmente no final do séculoXIX. O autor estuda a execução de cerimoniais no curso das quatro fases da monarquia britânica: “O primeiro período,que vão de pouco antes da década de 1820 até a década de 1870, é um período de ritual mal organizado, realizado numasociedade ainda predominantemente localizada, pré-industrial e provincial. A segunda fase, que se inicia em 1877,quando Vitória foi proclamada imperatriz da Índia, e vai até o irromper da I Guerra Mundial, foi, tanto na Inglaterraquanto na Europa, o auge da ‘invenção de tradições’, uma época em que os velhos cerimoniais eram encenados comuma competência e beleza antes inexistentes e, em que foram inventados propositalmente novos rituais para confirmartal progresso.” Outro período é aquele que vai de 1918 a 1953, sendo o último, aquele que data inicialmente de 1953.A sua tese é a de que, há um esforço concentrado nas atividades cerimoniais que compõem “teatro do poder” de cadauma das fases finais de vigência das monarquias britânicas. O autor destaca, entre os períodos estudados, o final doséculo XIX e o começo do século XX, como o “auge” na invenção das tradições. (CANNADINE, in: HOBSBAWN,1997, p. 111-174).

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condição de fundação de uma “aula” cuja formação tornaria a “mocidade” de Itu “útil a Igreja eao Estado”. Para tal, os integrantes da Câmara já dispunham de um candidato ao cargo de“Magistério de Grammatica Latina”. Tratava-se de João Feleciano de Aguiar e Silva, natural da“praça” de Santos, “de boas Luzes, estimável conducta equalidade” atestados pela mesmaCâmara. A carta era concluída:

Assim espera da Real Benevolência de V. Mage., Cuja Augusticima Pecoa Ge. deos muifelismente por delatados annos como nos he mister. Itu em câmara de 22 de julho de 1797

V. Mage.Muito humildes vassalosDomos. Barbosa Lima. Mel. de Campoz Almeida, Ignacio Xavier P. de Campos, AntonioDias leite, Francisco P. D. ( 337 90 1793-1822 MIP – AESP).

A distinção conferida na forma de tratamento que identifica o professor ou o Fiscal deEstudos da época também é extensiva aos alunos. Como se observa do relatório do Professorde “Philosophia” Francisco de Paula Oliveira aos 19 de junho de 1820. O cumprimento dorelatório da “disciplina, methodo, e ordem” de sua “aula” é assim justificado “tendo em vistas acultura intellectual de seus vassalos”. (337 90 02 MIP – AESP).

A “escrita de Estado” vista nas correspondências entre os diferentes agentes da instruçãoe as autoridades do poder estatal constituem fragmentos dos processos de constituição da escolapaulista na produção do estado brasileiro.

Hobsbawn, no estudo sobre “A Produção em Massa de Tradições: Europa, 1870 a 1914”nota como certas transformações sociais, como a mudança da sociedade de estamentos parauma sociedade de classe, ou a transformação dos súditos em cidadãos colocavam “problemasinéditos de preservação ou estabelecimento de obediência, lealdade e cooperação de seus súditos”(p.273). Para o caso italiano, ele observa que as “únicas coisas que poderiam mobilizar ocampesinato italiano além de suas aldeias eram a igreja e o Rei.” (p. 274). Muitos conservadoresdo século XIX teriam visto no “tradicionalismo” (que não deve ser confundido com passividade)dos camponeses “o ideal comportamento político dos súditos”. Para Hobsbawn, isto correspondiaà concepção de uma “modernização” que mantivesse a velha organização da subordinaçãosocial “um pouco de invenção ponderada das tradições”.

Possivelmente, tais tentativas de atualizar os laços sociais de uma ordem tradicionalimplicavam o rebaixamento da hierarquia social, um fortalecimento das ligações diretasentre o súdito e o governante central que, intencionalmente ou não, passou a representarcada vez mais um novo tipo de estado. (1997, p. 274).

Na seqüência, o autor relaciona o seguinte exemplo: “‘Deus salve o Rei’ passou a ser(embora por vezes simbolicamente) uma exortação política mais eficaz do que ‘Deus abençoe oproprietário e seus parentes e nos mantenha em nossas posições’”. (1997, p. 274).

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Nas correspondências oficiais (relatórios, peças de processos) entre os agentes diretamenteligados à instrução pública e as respectivas autoridades não era raro encontrar um desfechocomo: “Deus Guarde á V. Exca.” (José E. de Sá e Benevides, Diretor Interino da Escola Normalpara “Illmo. e Exmo. Snr. Senador João Alfredo Correia de Oliveria, M. D. Presidente daProvíncia – Capital de São Paulo, 21 de dezembro de 1882. 5130 02, MIP – AESP), “DeosGe. V. Sa.” (João d’Oliveira Fagundes, Professor Vitalício da Eschola Publica, 3ª Cadeira doSexo Masculino de Campinas, 1º de Junho de 1877. 4090 02, MIP – AESP), “Ds. Ge. V. S.”[Deus guarde Vossa Senhoria]. (Ordem 337 90 MIP 1793-1822 . MIP – AESP), “Ds. Ge. a V.Sa. Ilmo. Snr. Manuel da Cunha d’Azevedo Coutinho Souza Chichorro, Comendador da Ordemde São Bento de Aviz, Coronel Secretario do Governo, e Inspetor Fiscal dos Estudos destaCapitania”, assinava “O mais reverente súdito. Francisco Mannuel da Silva e Mello”. (337 90MIP 1793-1822. MIP – AESP). Note-se que “Deos ge. V.Sa. [ou Exa.]” é uma evocação queaparece na correspondência do professor régio do final do século XVIII e também é um doselementos da correspondência do professor público e “vitalício” do final do século XIX. Aevocação é recorrente nas peças que compõem um processo “Deos Ge. a V. Exa. pr. ms as”(Episódio 1, Professor Francisco Pereira Machado, Freguesia de São João da Boa Vista, 1853.0140 MIP – AESP), “Espero a proteção de V. Excia. que tenho a honra de cumprimentar aapresentar o meu profundo respeito e civilidades. Deos guarde a V. Excia por muitos annos”(Episódio 3 – Professora Francisca Augusta Cortez, Villa Bella da Princeza, 1858-59. 4996 01.Processos MIP –AESP), “Aproveito para reiterar o protesto da alta estima e consideração quetributo a V.Sa. a quem Deus Ge. pr. ms. annos” (Episódio 4 – Professor João Antonio deOliveira Campos, Vila de Nazareth, 1865. 4996 01. Processos MIP AESP), “Ds. G. a V. Sa.”(Episódio 16 – Professor Adelino Campos, Bragança, 1887. 4996 01 Processos MIP – AESP).Em toda a extensão do século XIX, a recorrência da evocação de matiz religioso não pode serlida com uma tradição inventada no final do século XVIII e cujo ritual de repetição teria atravessadoas correspondências oficiais da escola imperial. Deve-se atentar para o modo como a evocaçãoreligiosa aparece misturada a evocações que sugerem os sentimentos de “estima”, “respeito”,“proteção”, “consideração”, “honra” , “civilidade”, enfim toda uma sintaxe que tanto pode serreveladora de apropriações feitas por usuários deste suporte material de escrita (professores,inspetores, pais de alunos) como simplesmente podem constituir a repetição protocolar de umaforma de escrita. E não se deve perder de vista que, um olhar mais apurado sobre estas misturasou estes amálgamas produzidos entre evocações pessoais, ou exortações religiosas ou políticas,também guardam “um pouco de invenção ponderada das tradições”.

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A questão da freqüência escolar no “Parlamento Brazileiro”

A escola primária republicana “equivalente secular da igreja” é, segundo Hobsbawn, umaentre as três principais novidades das “tradições inventadas” no século XIX (1997, p. 279). Oautor faz referência especial ao caso da escola republicana francesa do início da TerceiraRepública. Uma bandeira quase universal entre os agentes do republicanismo era a InstruçãoObrigatória. Na Inglaterra ela teria se estabelecido em torno de 1880 (WALKERDINE, p. 159in SILVA (org.) 1998.

Esta era uma discussão bastante discutida no Brasil, sendo em 1882, um dos temasdiscutidos pelo “Parlamento Brazileiro”. A revogação do texto normativo do ensino obrigatórionão desobriga a freqüência ao ensino, sequer o torna uma pauta passada. O texto normativo de1874 assim como o debate que o antecedeu e podem ser pensados como instrumentos quecontribuíram para evidenciar a responsabilidade dos pais sobre a relação com o ensino público.O teor impositivo e punitivo sobre os pais esmoreceu quando da sua revogação para recair comintensidade sobre o professor. Mas permaneceu a participação de pais na relação com a vigíliada escola. De um lado estava o pai de aluno, que em vez de ato obrigatório, matriculava o filhona escola pública exercitando o direito subjetivo de acesso à educação. Do outro lado, estava oprofessor que, ao registrar o nome do aluno no livro de matrícula deveria se empenhar pormantê-lo na escola. O pai que não enviasse o filho à escola não seria punido com multa enquantoo professor que não mantivesse o número mínimo exigido pela lei (vinte alunos freqüentes)sofreria punição prevista no texto regulamentar. Os processos que constituíram base deste estudodão conta de que a manutenção ou não da freqüência escolar média era posta na relação imediatacom a probidade e boa moral do professor. Este traço tanto podia ser depreendido de certasdisposições dos textos normativos em vigência entre 1851 a 1874 como também era um argumentoapresentado na defesa de todos os professores envolvidos em processos. Dificilmente um professorou professora envolvido em processo administrativo ou disciplinar não recorreria à freqüênciaescolar registrada no livro de matrícula da respectiva escola como meio de atenuar o impactoofensivo da acusação ou minimizar as possíveis punições.

A freqüência escolar estava na pauta do “Parlamento Brazileiro” na sessão de 1882,quando Rui Barbosa, relator da Comissão de Instrução Pública

134 apresentaria os pareceres

134A Comissão de Instrução Pública era composta pelos deputados: Ruy Barbosa, Thmomaz do Bomfim Espínola eUlysses Machado Pereira Vianna. Câmara dos Deputados, Sessão de 12 de setembro de 1882. Reforma do Ensinoprimário e várias instituições complementares da Instrucção Pública. Rio de Janeiro: Typographia Nacional. 1883.In: Obras Completas de Rui Barbosa, vol X, Tomo I. Ministério da Educação e Saúde. 1947. Para Sérgio Buarque deHolanda, os pareceres de Rui Barbosa podem ser considerados um “projeto de reforma global da educação brasileira.Constituem ainda verdadeiro tratado que cobriu praticamente todos os aspectos da educação: filosofia, política,administração, didática, psicologia, educação comparada.” Brasil monárquico: o declínio e queda do Império. ColeçãoHistória Geral da Civilização Brasileira, 1995. p. 378, vol. 6.

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sobre a Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições Complementares da Instrução Pública.O parecerista estava munido de estudos comparativos de diferentes países. A preocupaçãocom a freqüência escolar dotava-se de contornos internacionais. Ao se apoiar sobre uma fala doministério da instrução pública francesa, Rui Barbosa estabelece o seguinte comentário acercado tema.

A verificação da freqüência escolar é “um problema que tem embaraçado os estatísticosde todos os países”; e infelizmente para a sua solução entre nós não se tem dado umpasso. Se não fossem intuitivas as causas essenciais da ilusão, que invalidam todaapreciação do estado escolar de um país firmada nos algarismo da matricula, aí estaria aexperiência, para nulificar o valor dessas cifras falazes, com que se urde, e sobredoira ateia do nosso imaginário adiantamento em matéria de instrução publica. Além de que,entre nós, a realidade dos quadros da inscrição não oferece todo o grau de autenticidadeexigível, pois a fiscalização do ensino primário, no município neutro, como geralmenteno Brasil, é, em grande parte, uma burla, accresce que, ainda suppono-os irreprehensiveis,a inscrição, não contrasteada pela freqüência, será sempre uma origem de enganos,convergentes a engrossar falsamente o número real de indivíduos a quem a escolaaproveita. Freqüentes occasiões de dúplice matricula conspiram neste sentido,“especialmente nas cidades, onde acontece inscrever-se uma criança sucessivamente emuma, duas, três escolas no decurso do mesmo ano, consoante varia o domicilio dos pais.Daí vem que, sem supor a intenção fraudulenta, nem a mínima exatidão nas declaraçõesdos professores, essas declarações constituem necessariamente números em demasiaelevados”. (p. 34-35).

A constatação da prática fraudulenta nos registros de matrícula das escolas brasileirasdescredenciava a estatística nacional, o que constituía motivo para que o relator desprezasse osnúmeros nacionais para pensar o problema da freqüência escolar a partir dos dados da escolaamericana e de outros países. (p. 38-76).

Luciano Mendes de Faria Filho, no estudo no qual relaciona a estado, legislação e estatísticano processo de produção do “modo de socialização” escolar na Província de Minas Gerais equiçá no Brasil no curso do século XIX, nota que

(...) uma das questões postas pelos administradores da Província ao longo do Império éa seguinte: como pode o Estado atuar na instrução pública, e nos demais ramos daadministração, se nem ao menos ele pode contar com dados fidedignos sobre a população,as escolas, os alunos e os professores? Como pode, enfim, gerir se não pode nem contar?Como pode atuar, enfrentar os problemas, se nem os conhece? (1999, p. 121-122 in:VIDAL & SOUZA (orgs), 1999.

Faria Filho também se vale dos pareceres de Rui, desenvolvendo uma tessitura na qualempreende as discussões sobre a baixa freqüência das escolas bem como discursos da literaturae de articulistas da época como instrumentos que, no curso do século XIX, teriam contribuídopara desautorizar a Igreja e a família na tarefa da educação, promovendo a escola como ainstituição responsável pelo processo de escolarização.

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Vejamos como Rui Barbosa promove a função do Estado em relação aos pais (família) nainterface entre a freqüência escolar e o ensino obrigatório. O relator retoma a subjetividadeassegurada no reconhecimento implícito do direito à instrução previsto na Lei de 1827.

Esse direito dos pais, simples elemento integrante da soberania irresponsável que lhesatribuem os adversários do ensino obrigatório, a certas facilidades para a formação moralda prole? Não, de certo; porque, se a esse direito correspondesse unicamente um deverde foro íntimo, sem nenhuma subordinação à lei exterior, o papel do Estado reduzir-se-iaao de mera abstenção ante uma questão de pura consciência individual; porque só asobrigações que envolvem direta responsabilidade do individuo para com os orgãos daordem coletiva podem impor às instituições sociais moldes e ônus como o da gratuidadedo primeiro ensino. (Tomo I, p. 182).

A obrigatoriedade escolar como preceito deveria ser internalizada num movimento quealiaria escola e família.

(...) a compreensão da lei se realiza mediante a manifestação dela, que é obra do ensino;e o propósito de obedecer-lhe procede, até certo ponto, da percepção mesma das suasvantagens, cuja reveladora é, ainda a instrução, combinada com a educação dos sentimentosmorais, em cujo disciplinamento a escola deve cooperar com a família. (Tomo I, p. 194).

A análise que o jurista Rui Barbosa apresenta nos pareceres sobre o tema daobrigatoriedade do ensino pensada a partir do direito constitucional à instrução pública gratuitaera:

Esse compromisso com que a Constituição grava o orçamento público, exprime doisdireitos, que teem a sua sanção na comunidade organizada politicamente: o direito,irrecusável a toda criatura humana, de que a sociedade lhe subministre, no primeiroperíodo da evolução individual, os princípios elementares de moralidade e intelectualidade,sem os quais não há homem responsável, sem os quais é cativeiro a lei, absurdo aimputabilidade e a repressão injustiça; e, a par desse direito do individuo para com acoletividade social, o direito correlativo, incontestável a esta, de negar à ignorância doindividuo a liberdade de obrigar a nação a receber no seio da ordem comum seresatrofiados pela ausência dessa educação rudimentar, à mingua da qual o ente humano sedesnatura, e inhabilita para a convivência racional. Pois bem: estes direitos sumos, cujasatisfação tem em mira a gratuidade do ensino serão iludidos sempre, enquanto a instruçãoprimaria não deixar de ser facultativa. (Tomo I, p. 182-183).

Rui era adepto convicto da idéia de que a educação era a grande aliada no combate àcriminalidade.

Se, com efeito, a priori as mais simples noções de justiça autorizam a afirmar que a maiordas enormidades concebíveis é impor o Código Penal, e não impor a escola, isto é,cominar, e punir, sem preparar a inteligência e os sentimentos do povo para conhecer alei, prezar a ordem, avaliar a perniciosidade da infração, perceber a inferioridade moralque ela denuncia no delinqüente, e adquirir horror ao estigma que a pena inflinge ao

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135Os quatro volumes que compreendem os pareceres de Rui Barbosa são sustentados por estatísticas, relatóriosministeriais e pareceres de especialistas de diferentes países da Europa e dos Estados Unidos. Para Sérgio BuarqueHolanda: “Rui fundamenta seus pareceres não apenas na análise quase exaustiva das deficiências do ensino no país,mas também no estudo da história das teorias práticas educacionais das nações mais adiantadas e ainda nas contribuiçõesteóricas dos mais eminentes educadores da época.” O Brasil Monárquico: Declínio e queda do Império. ColeçãoHistória Geral da Civilização Brasileira, 1995. vol. 6, p. 379.

condenado, – os fatos a posteriori demonstram cientificamente que o grau de difusão dacultura educativa exerce a mesma pressão sobre a escala da criminalidade, que o calóricoimpregnado na temperatura sobre a coluna termométrica. (p. 185).

Para comprovar a superioridade da escola no combate à criminalidade135, o pareceristaapresentava uma relação onde comparava a relação entre o número de igrejas, escolas e aincidência de crimes na Baviera no ano de 1870.

A reprodução do quadro acima é interessante na medida em que reforça o argumento daobrigatoriedade escolar por meio de uma estatística proveniente de um país europeu, o queconfere a dimensão internacional do problema colocado para a escola no final do século XIX. Eganha mais notoriedade quando nos deparamos com a impressão que a quantidade de igrejasexistentes em São Paulo deixou em Koseritz por ocasião da visita no ano de 1883.

A cidade com os seus 35.000 habitantes possue nada menos de 19 igrejas, sem contarvárias igrejas e conventos que são hoje destinados a fins oficiais como, por exemplo, opalácio presidencial. Pelos modos havia em São Paulo uma igreja para cada dez casas...Deve ter sido um paraíso dos jesuítas! E que igrejas! Edifícios enormes, construídos nasua maior parte de taipa, mas que ainda estão de pé. E será difícil demoli-las, pois com otempo a taipa empregada, que é de qualidade especial se petrifica. No coração da cidade,em uma distância de três quadras, se encontram sete igrejas, uma sempre olhando para aoutra, e às vezes nascidas aos pares, e se tocando como irmãos siameses. (1972, p.244).

Quadro IXRelação entre a quantidade de escolas, igrejas e a incidência de crimes (Baviera – 1870)

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Morse (1972) assinala que, em 1887, a província paulista tinha 29% da populaçãoalfabetizada e um professor para cada 1156 habitantes, ao mesmo tempo a capital paulista tinha45% da população alfabetizada. (p. 215). Os números conferem uma relação de aproximadamente1800 habitantes para cada igreja na capital paulista enquanto a província tem uma relação de umprofessor para cada 1156 habitantes. Assim, é possível estimar que em São Paulo, na década de80 do século XIX, havia mais igrejas do que escolas na relação com o número de habitantes.

Mas mesmo que fosse alto o número de templos, já em 1877, o jornalista AméricoCampos notava que o cenário citadino de São Paulo era redefinido por aquilo que denominava“cidade da civilização”. Para estudiosos dos espaços urbanos, a matéria veiculada pela imprensarepublicana, de autoria de Américo Braziliense era uma amostra da “ruptura com a tradiçãoreligiosa balizando a reordenação da sociedade e do espaço”, tratava-se do “projeto secular”.

O número de igrejas, vinte e duas mais ou menos, há muito está mobilizado, e tende adiminuir pela ação natural dos desmoronamentos. O que há de mais recente nessa relaçãoé um escândalo do século: um templo anglicano pequeno, mas limpo, decente, elegante.(...) As escolas, essas, ao invés das igrejas, crescem na quantidade. (...) Há na cidade esuburbios trinta e cinco ou trinta e seis escolas primárias (...) sem levar em conta ospreparatorios da Academia, a Aula Normal, o Seminario dos Educandos, o Episcopal, oInstituto Anna Rosa, o Instituto dos Artífices a també notável Propagadora da InstruçãoPopular. (Amérido de Campos. A cidade de São Paulo em 1877. Almanaque Literário daProvíncia de São Paulo: Tip. da Província, 1878, p. 1-4. apud BRESCIANI (org.) 1993,p. 187-189.

Quando Rui Barbosa apresentou a proporção entre o número populacional e a sua relaçãocom a quantidade de escolas e igrejas numa localidade, o fez, como estratégia de defesa daobrigatoriedade do ensino, numa avaliação que superdimensiona o papel da escola sobre aigreja no combate à ignorância. À medida que há aumento sobre o número de escolas verifica-se uma diminuição da escalada da criminalidade enquanto a quantidade de templos não produziriaqualquer interferência sobre a inibição deste mal social. O parecerista fez a seguinte análise doquadro de Baviera: “a criminalidade corre quase exatamente na razão inversa do número dasescolas, mostrando-se, entretanto, quase de todo indiferente ao maior ou menor número detemplos”.(Tomo I, p. 193). A distinção entre escola e igreja também ilustra a oposição dematizes ideológicos que eram traduzidos na defesa de uma instrução laica, enciclopédica deprincípio positivo.

A importância da freqüência escolar era reconhecida pelos professores paulistas por razõesóbvias ou imediatas, a demonstração de uma escola bem freqüentada era condição sine quanon do recebimento dos vencimentos dos professores desde o primeiro texto que pretendeuregulamentar a ação da inspeção escolar no século XIX, era também um dos trunfos de defesado professor que por algum motivo se visse envolvido em processo, durante todo o curso doséculo XIX.

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Capítulo 5

DO INSPETOR AO CONSELHO: PROCESSOSDE REFINAMENTO DO DISPOSITIVO DA INSPEÇÃO

Cenas da escola paulista no declínio do Império

Neste ponto do trabalho, o desafio será o de apreender algumas questões da instruçãopública que povoaram os últimos anos da monarquia na Província paulista num período delimitadopela vigência final do Regulamento de 1869, o que corresponde dizer, até julho de 1887. Entreos últimos processos que foram instaurados sob a vigência do Regulamento de 1869 sãoapresentadas, entre outras, duas questões comuns. A defesa marcada pela acusação deperseguição política sempre foi uma constante das contendas desde aquelas ocorridas nos anoscinqüenta. A especificidade da “perseguição” vista nos últimos processos da década de oitentado século XIX, que coincide com a derrocada do Império, é a perseguição política marcadapela explicitação de idéias estruturantes da organização política do país: abolicionismo,republicanismo, liberalismo, positivismo. A perseguição favorece o esboço do cenário políticovivenciado naquele momento.O outro aspecto, notado aqui como uma formação discursivapermanente é a freqüência escolar.

A participação da família na deflagração ou no desfecho de um processo contra professorde escola pública de Primeiras Letras da Província paulista podia ser tão decisiva como aparticipação das autoridades locais. A participação dos pais nas tramas conflitivas entre professorese inspetores distritais contrapesava o discurso dos legisladores da instrução pública que defendiama liberdade do ensino particular afiançada pela fiscalização natural dos pais. Nos processos queenvolveram professores públicos, a participação dos pais na vigilância sobre o professor públicoera uma constante, poderia ocorrer de modo voluntário quando um pai deflagrava o processoou quando solicitado a endossar ou refutar versões de verdade sobre a conduta do professor emquestão. O pai sempre fala do lugar de quem é o responsável pela família. A participação dos

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pais era empregada de modo ostensivo tanto da parte da acusação como da parte da defesa.Uma das interfaces importantes desta participação era a freqüência escolar. Algumas ocorrênciasdemandavam pela confirmação ou negação atestada da parte dos pais dos alunos.

Cena 1 – Ocorreu em Porto Feliz136

, no ano de 1886, quando o professor Eugenio daMotta Paes fora acusado “pelo gravíssimo delicto de pederastia

137 compendiado no artº. 121 §

3º do Regulamento de 1869”, que prescrevia punição para o professor quando este “tiver máoprocedimento moral; se entre os alumnos fomentar a immoralidade, ou se derem outras razõesfundadas de imoralidade” (Artº. 121 § 3º, Regulamento de 1869).

138 A acusação partiu de

Silvino Cavalcante de Moraes Fernandes, inspetor literário do distrito de Porto Feliz. De acordocom a acusação, há muito, havia comentários de “diversas pessoas” que denunciavam ocomportamento moral daquele professor “sem que se atrevissem a fasel-o por escripto”. Relatao caso de um pai que “retirara o filho da escola à cargo do mesmo professor, por que tendo esteconvidado aquelle para uma caçada no matto, o violentara afim de commeter acto libidinoso.”(Carta circunstanciada do Inspetor Geral dirigida ao Presidente da Província, 14 de maio de1886). Diante de acusação tão grave, o professor Eugenio, ex-aluno do Seminário Episcopal eda Escola Normal de São Paulo, reuniu diferentes documentos com vistas à produção de suadefesa. A versão dada pelo acusado atribuía ao aluno ou “ex-alumno” João Antonio de Aguiare Silva, apresentado como vítima do crime de pederastia, a responsável pela deflagração edesdobramentos daquele enredo. Diz o professor: “os accusadores para levarem adiante o seuintento não encontraram outro menino senão aquelle que vivendo longe de seus paes, foidesastradamente entregue aos cuidados d’um homem sem conceito qual é Joaquim Paes deAlmeida Moraes que serviu de instrumento para os accusadores” (Defesa do Professor EugenioMotta Paes, Porto Feliz, 23 de fevereiro de 1886. Episódio 14 – 4997 02, Processos – AESP).O menino que teria sido vítima do delito referido foi ouvido no inqueríto promovido:

136Porto Feliz – Antiga povoação denominada de Araritaguaba. Foi criada freguesia, e desmembrada da paróquia de Ituem 1728. Foi elevada a vila com o nome de Porto Feliz em 1797 e a cidade com a Lei Provincial de 16/04/1858. Atéo ano 1876 possuía cadeia, casa de Câmara, matriz, a igreja da Senhora da Boa Morte. População: 7669, sendo 1547escravos e 19 eleitores (1876). Há também duas cadeiras de instrução pública primária para ambos os sexos e umacadeira particular. MARQUES, 1980, p. 187, Tomo II.

137Pederastia – Do grego paides, pais, menino, e erastes, amante, daí paiderastés, aquele que tem desejo sexual pormeninos. Perversão sexual de um homem adulto consistente na inclinação a manter contato carnal com meninos ou,mesmo, adolescentes. ACQUAVIVA, 997.Ao examinar discursos médicos no século XIX, Gondra demonstra entre as representações produzidas pelo discursomédico-científico, aquela que conforma para a necessidade de produzir “individuo, colégio e sociedade moralmentebem constituídos”. O discurso médico inventava uma sociedade que seria regenerada pela reorganização escolar.“Escola que cria e pedagogiza a infância e a juventude nas múltiplas manifestações, que, da condição de “naturais’,passam a ser tratadas como “sociais”, “históricas” ou “culturais”. Nesse sentido, busca-se humanizar as paixões ealgumas manifestações da sexualidade, dentre elas, a abstinência sexual (o celibato), o excesso (prosituição) e osdesvios (onanismo e pederastia/homossexualismo)”. (GONDRA, 2000, p. 406).

138Episódio 14 – Professor Eugenio da Motta Paes Leme, Porto Feliz, 1886. 4997 02. Processos, MIP – AESP.

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Declaramos sob julgamento que, havendo interrogado o menino João Antonio de Aguiar eSilva sobre a ocurrencia immoral de que foi accusado pelo Inspector Litterario do Districtoo Professor desta cidade, Eugenio Motta Paes, affirmou o dito menino que tudo era mentiraporque não se dera nada disso; e que: dessa mentira era auctor Joaquim Paes de AlmeidaMoraes (Coletoria de São Paulo, 02/02/1886. Episódio 14 – 4997 02, Processos – AESP).

O menino não vivia mais sob os cuidados dos pais e sim sob a tutela de Joaquim Paes deAlmeida. Entretanto, a acusação procurou ao pai natural para obtenção de sua versão sobre aretirada do aluno da escola: “Declaro que retirei meu filho da escola supra, por ter o professôrconvidado elle para uma caçada no matto e forçosamente arrancou-lhe a calça e praticou umacto immoral (João de Aguiar da Silva, Porto Feliz, 05/02/1886. Episódio 14 – 4997 02,Processos – AESP).

Os “abaixo-assinados, Chefes de Famílias, etc, etc” totalizavam um número de trinta eoito assinaturas que atestavam os “comportamentos tanto civil como moral”. Vinte e nove alunostambém foram cooptados na defesa do professor, assinando um texto com o seguinte teor:

(...) declaramos ser completamente falsa a queixa que tem feito o ex-collega João Antoniode Aguiar e Silva, contra o nosso ex-collega por causa de ter tomado na escola umcastigo bem merecido, e quando recebeu o castigo protestou o nosso collega de nãovoltar mais a Escola. Disso somos testemunho, e tão voluntariamnte assignamos este emdefeza, do nosso Mestre. (Abaixo-assinado dos alunos, Porto Feliz, 03/02/1886. Episódio14 – 4997 02, Processos – AESP).

Na empreitada de realizar a própria defesa, o professor procedia de modo inusitado,tornava a sala de aula o espaço de inquérito dos próprios alunos que se tornavam cúmplices doacusado, ao que era testemunhado por três pessoas: “comparecêmos na sua escola, e, em nossapresença, pelo referido Professor foram formulados os quesitos abaixo, a que seus Discipulos,em numero superior a quarenta responderam unanimemente” o que pode se ler abaixo:

1º quesito: – Qual era o comportamento de meu ex-alumno João Antonio de Aguiar eSilva quando freqüentava ou estava nesta escola?R – Sempre mau, revelando sobretudo vestígios de immoralidade.2º quesito: – Qual foi a ultima falta por elle commetida nesta escola?R – Foi o ter practicado um acto immoral na pessoa do nosso collega José Corrêa deLeitte Siqueira, que o levou ao conhecimento de nosso mestre.3º quesito: – Que fiz eu após esta queixa?R – Impoz ao delinqüente o castigo de ficar de pé sobre um banco.4º quesito: – E fui promptamente obedecido?R – Pelo contrário; nosso ex-collega. Oppondo-se tenazmente a isso tomou o chapéo ecom todo o desplante, ia fugir quando o nosso mestre ordenou aos nossos collegas JoséCorrêa Leite de Siqueira e Izaltino Vaz de Almeida que o cercassem.5º quesito: Para expiar mais esta falta a que o sujeitei?R – Subjeitou-o ao castigo de ficar de pé sobre uma mesa.6º quesito: – E fui obedecido?R – Não, Senhor; como d’antes elle oppoz mais tenaz resistência, pelo que o nosso

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mestre ameaçou-o de que lhe daria algumas palmatoadas; o que effetivamente fez, apóstamanha obstinação.7º quesito: – E desta vez não encontrei resistência para appicar-lhe (sic) o devido castigo?R – Encontrou, e muita; pois que elle tendo se deitado no chão, cruzara os braços e atétinha cravado os dentes no braço de nosso mestre, que afinal foi auxiliado pelo nossocollega Izaltino Vaz de Almeida afim de não deixar impune tão revoltantes faltas.8º quesito: – Quaes foram as palavras que elle então pronunciou?R – Elle disse: “Eu juro que jamais hei de frequentar esta escola de merda”.9º quesito: – E com que palavras recebi este insulto?R – Nosso mestre disse-lhe: “Uma vez que os meus cuidados e desvelos são bastantespara desvial-o do abominavel caminho que trilha, e onde dá mostras de progredir – eu odeixo livre e mando-o ao pasto”. (Interrogatório realizado em 16 /02/1886 na Primeiracadeira Masculina de Porto Feliz, assinado por Antonio Galvão de Miranda, Joaquim doPrado Lima e Anastacio Lopes Torres/Professor de Humanidades. Episódio 14 – 499702, Processos – AESP).

A fidelidade das respostas “unânimes” dos quarenta alunos da escola é questionável, certamentesofreu os constrangimentos formais da codificação de um interrogatório escrito. Contudo, estereconhecimento não rivaliza com o inusitado ritual a que submeteu os seus alunos na produção de suadefesa, o de transformar a sala de aula numa sala de interrogatório de cúmplices (alunos) do réu(professor). Há ainda a forte indicação de que o tenha feito no horário destinado ao ensino.

Além dos pais dos seus alunos, o professor contava com a cumplicidade de outros paisque eram chamados a falar da relação daquele professor com os seus filhos. Num destesdepoimentos, o argumento da cumplicidade era produzido na revelação da confiança expressana abertura do espaço privado da família (a casa) num trabalho que implicava a relação entre oprofessor e a filha do dono da casa.

(...) logo que aqui chegou como Professor, eu o tomei por meu escripturario nas horasvagas e dias feriados. Escreve, elle aqui a mais de seis mezes, e a mor parte do tempotenho confiado-lhe a minha filha para lhe ajudar nos trabalhos das escripturações daMinha casa; deixando ambos sós, a maior parte das vezes e elle sempre tractou minhafilha com o devido respeito de homem educado e muito moralizado. (Catharina Briençeem nome do pai, Sr. Domingos Briençe, Porto Feliz, 15/02/1886. Episódio 14 – 4997 02,Processos – AESP).

O depoimento acima revela conhecimento do pai, Sr. Domingos, acerca do teor da acusaçãoimposta ao seu escriturário, o professor público, Sr. Eugenio. Assim podem ser entendidos alguns dosartefatos de seu atestado, como exemplo, a atenção sobre a definição dos horários em que o professorlhe prestava os serviços mencionados. O pai não pretendia com tal argumento livrar o acusado deoutro delito, o da duplicação de funções mas ao registrar horas vagas e, especialmente os feriados, opai está se referindo a um espaço de tempo no qual as famílias se encontram mais despojadas darigidez dos dias comuns. Não bastando, o pai acrescenta que os deixava (a filha e o professor) “a sós”pela maior parte do tempo em que trabalhavam na sua casa.

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Um outro pai, o Sr. Lourenço da Conceição dizia que “o mesmo Sñr. [Professor Eugenio]leccionou meu filho a noite em sua Eschola das sete as nove horas e nunca deu a meu filho omenor syntoma de immoralidade” (Atestado de Lourenço da Conceição, 16/02/1886). O mesmoartefato é usado nesta defesa, tanto o período, entre e nove horas da noite, como fica a sugestãode que ambos (professor e aluno) também ficariam a sós na escola àquelas horas da noite.

Cena 2 – Em Bananal139

, ano de 1881, a professora Maria Avelina é acometida de umprocesso onde é advertida pela possibilidade de supressão da cadeira da qual era a responsávelpela conduta questionável do seu marido.

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É meu dever communicar a V Sa. diversos factos que se tem dado na Escola Publica dosexo feminino d’esta cidade, e que estão no domínio publico. É professora a señra. D.Maria Avelina de Oliveira Baptista, casada com Manuel Pereira Baptista, homem de mauscostumes. O dito Baptista tem practicado perante as meninas que frequentão a Escola,actos de immoralidade de ordem tal que tem feito com que o numero das alumnas sejamuito limitado. (Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

No caso de Bananal, há ainda a explicitação de outro problema que acometia a instituiçãoda escola de instrução pública na Província paulista, trata-se das condições espaciais defuncionamento daquelas escolas. A Professora Maria Avelina convertia certos espaços da suacasa em espaços de funcionamento da escola pública sob a sua responsabilidade. Ao fazê-lo, adona de casa favorecia o desenvolvimento de condições conflitivas da imposição da ordem daexecução do serviço público da instrução para com a vida cotidiana na casa onde morava omarido da professora.

141 A seguir o Inspetor Distrital faz um relato no qual dá conta da

participação da família na apuração e encaminhamento do problema notado na condução dostrabalhos daquela escola.

139Bananal – Em 1783, João Barbosa de Camargo e sua mulher Maria Ribeiro de Jesus fundaram a primeira capela dalocalidade, dedicada ao Senhor Bom Jesus do Livramento. Foi elevada a vila em 1832 e a cidade com a Lei Provincialde 1849. Até o ano de 1876, possuía a igreja matriz, a capela de Santa Cruz (arraial de Cachoeirinha) e duas dainvocação de Santo Antonio, duas escolas de instrução pública primária para ambos os sexos. A população era de15606 almas, sendo 3281 escravos. A paróquia tinha 37 eleitores. MARQUES, 1980, p. 101-102. Bananal estavasituada no coração do Vale da Paraíba, vanguarda do avanço do café no Oeste Paulista na década de 70 do século XIX.ALENCASTRO, 1999, p. 92 in: História da vida privada no Brasil.

140Episódio 15 – Professora Maria Avelina do Amaral, Bananal, 1881. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

141As contradições da realização do serviço público da instrução nas dependências domésticas ganham vulto quando estasituação é confrontada com transformações ocorridas no território doméstico que incidiam sobre a previsão deespaços públicos no interior da casa. “Em meados do século XIX, ocorreu uma transformação territorial no espaçodoméstico e em sua relação com a rua, emergindo antes de tudo nas casas mais abastadas. Em primeiro lugar, as casasde porão alto distanciaram a sala dos olhares estranhos, acelerando o desaparecimento das rótulas e gelosias. Nasfachadas, as vidraças de vidro importado da Inglaterra substiuíram as janelas fechadas com tábuas de madeira epermitiram a entrada de luz na casa. Ao mesmo tempo, e provavelmente por essa razão, aparecem recuos: inicialmenteo afastamento lateral separou a casa do lote e edificação vizinhos para, em seguida, abancar em direção do isolamentototal da casa dentro do lote.No interior da casa apareceram corredores e uma sala de visitas, espaço paramentado para receber público seclecionado.Uma profusão de objetos decorativos surge então na casa rica: vasos de flores, caixas de música, relógios de mesa ouparede, espelhos de cristal, bibelôs, jóias e tapetes orientais. Esta sala de visitas decorada configurou um primeiro

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Hontem veio á minha presença o senr. Marciliano Ferreira Machado, honrado chefe defamília, moço geralmente estimado n’este Município e digno de toda a confiança, queixar-seque o marido da professora acompanha as meninas quando ellas necessitão exercer algumafuncção corpórea, e que com a sua innocente filhina practicou certo acto que nõa ousorelatar a V.Sa. neste officio. (Do Inspetor Distrital, sr. Zoroastro Nogueira Alves de Macedoao Inspetor Geral, Bananal, 11/06/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

Os cuidados em caracterizar o perfil do pai que teria deflagarado a denúncia mostram olugar que se conferia à honra do cidadão que deflagrava a denúncia. Este, não falava unicamentepor si, a sua denúncia era chancelada pela estima e honra validadas pelas relações sociais comdemais moradores da localidade. Entretanto o caso parecia dotar de uma gravidade comungadapor muita gente: “uma grande massa de povo geralmente composta de paes de família de todosos partidos nacionaes, extrangeiros, médicos, negociantes, artistas etc” exigia a expulsão domarido da professora da localidade de Bananal, sob a acusação de “attentados ao pudor”,crime previsto no “Código Criminal!” Interveio o Juiz de Direito, Sr. José da Motta AzevedoCorrêa que, dirigindo-se ao Presidente da Província, o sr. Florêncio Carlos de Abreu e Silva,temia por alguma convulsão incontrolada que traria “conseqüências compromettedoras datranqüilidade publica” alegando que Manuel Baptista, o marido da professora que respondia aoprocesso, dependia do salário da sua esposa e tinha o costume de deixar sobre a mesa de suacasa uma arma “carregada!”

A portaria que formalizou o texto de instauração do processo administrativo se justificasobre a reconhecida diminuição na freqüência àquela escola. Ainda que a causa da baixa freqüêncianão fosse de responabilidade direta da professora, ela é o alvo do processo, devendo portantoresponder pelo comportamento que o marido teria nas dependências da própria casa, espaçoonde a professora cumpria a função pública de professora de meninas.

O Inspector Geral da Instrucção Publica desta Província a quem constou que a frequenciade alumnas na escola publica primaria, regida pela Senra. D. Maria Avelina de OliveiraBaptista, tem diminuido consideravelmente em conseqüência de factos altamente immoraespraticados por Manuel Pereira Baptista, marido da Senhora Professora, o qual por vezesse há arrojado a tentar contra o pudor de suas alumnas, para o que da parte da Snra.Professora, ordena a esta que no passo de quinse dias, á contar da data em que receber,se defenda perante esta Inspectoria, por intermédio do respectivo Inspector de Districto,sob pena de ser julgada sob revelia, nos termos dos artos. 130, 131 e 132 do Reg. de 18de Abril de 1869. (Cópia da portaria encaminhada à Professora Maria Avelina, Secretariada Inspectoria de Instrucção Publica, Capital, 20/09/1886. Episódio 15 – 4996 01,Processos – AESP).

movimento de redefinição territorial das elites – o que desponta aqui é uma região pública no interior da casa, queprogressivamente vai se opor ao espaço da rua. Se a rua mistura grupos sociais, origens e sexos, a sala de visitasseleciona as misturas permitidas.” (1999, p. 31). O fato de se tratar de mudanças operadas na produção do espaçodoméstico de famílias abastadas não invalida a percepção sobre a mudança instaurada nas relações entre público eprivado abrigadas no interior do espaço doméstico. Ao contrário, explicita os constrangimentos impostos pelaprática de atividade profissional de caráter público realizada num espaço doméstico que independente da caracterizaçãosocial, também atendia as funções de visitas e se inscrevia na relação com vizinhos.

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A professora descumpre o prazo dos quinze dias previstos e retarda em sete dias aentrega da defesa na qual chama a atenção para sua “conduta moral e civil” pautada pela “maisrigorosa honestidade”. O marido, o sr. Manuel Pereira Baptista teria colaborado na produçãoda defesa da sua mulher: “Recebi da Secretaria da Inspectoria Gerar da I. Pubrica os docomentospeltencentes a minha Mulher Da. Maria Avelina de Oliveira Baptista; ex-profeçora Pubrica da1ª Cadeira da Cidade do Bananal”: sendo os atestados do presidente da Câmara, do delegadode polícia, do Juiz Municipal, do Vigário da Vara, de Manoel Antonio Gomes, de José AntonioFereira, de Balduino Dora, de José Feriol, de Maria Eugenia dos Santos, Domingos Belisario deSiqueira e Cândida Mariana da Pás Siqueira, Sinhorina de Souza Galvão, Francisca Carolinda edo subdelegado. (São Paulo, 28/04/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

A participação das autoridades locais e demais moradores da localidade se traduz naquiloque a professora denomina de “opinião da Cidade” que como nota, estaria “dividida” quanto àsacusações sobre o seu marido, razão pela qual ela se manifesta: “na duvida que há da veracidadedessas accusações, a pena não pode recahir sobre mim”. A Professora Maria Avelina deixa nasua fala a sugestão de que assumiria a imputação da pena pela ação condenável do marido. Maisque isto, pode-se reconhecer no caso do Bananal o emergente papel da mulher que não apenasse mostra disposta a salvar a própria honra (compromisso matrimonial) na assumência dosencargos derivados da conduta “imoral” do marido como era a responsável pelas despesas dacasa. No confronto em que o seu cargo é colocado em disputa, a professora conta com algunsdos pais de suas alunas.

Declaro que á um anno e tanto minha filha acha-se no collegio da Senhora D. MariaAvelina de Oliveira Baptista, e durante este tempo não me consta que tenha sido maltratadanem pela senhora e nem pelo seu marido. (Doc. nº 7, Bananal,12/07/1881. Episódio 15 –4996 01, Processos – AESP).

Outros pais assim declararam:

“durante o tempo que minha filha andou na éscolla da Snra. Da. Maria Avelina de OliveiraBaptista nada tenho a me queixar relativo a Snra. Profeçora nem a seu marido ManoelPereira Baptista” (Doc. nº 7, Bananal, 07/07/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos –AESP).

“declaro que tendo uma Filha no colégio da Exma. Profeçora Donna Maria Avilina de OBaptista – A qual tem cido bem tratada e respeitozamente tratada não só pella profeçoracomo pr. seu marido” (Doc. nº 8, Bananal, 30/06/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos– AESP).

“José Ferraiolo pai de Joanina (12 anos) e Julietta (8 anos) afirma que foramrespeitosamente tratadas seja por Dona Maria Avelina, seja por seu marido” (Doc. nº 9,Bananal, 30/06/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

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“durante o tempo qe. a minha filha esteve em o collegio da Snra. Da. Maria Avelina deOliveira Batista nada teve a se queixar da mesma Snra. e de seu marido”(Doc. nº 10,Bannanal, 11/07/1881. (Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

“durante o tempo q. as minhas filhas tem estado no Collegio da Sra. D. Maria Avelinad’Oliveira Baptista, nada tenho a dizer sob o máo trato, da ma. Sena. do mmo. do seomarido, pr. que tem tratado sempre com respeito e estima as mas. filhas” (Doc. nº 11,Bananal, 11/07/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

“durante o tempo em que esteve minha filha na escola de D. Maria Avelina de OliveiraBaptista professora publica desta cidade nunca queixouse de couza alguma da parte deSua professora, muito menos do seu marido o Snr. Manoel Pereira Baptista. (Doc. nº 12,Bananal, 01/07/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

O envolvimento dos pais das alunas na declaração sobre a boa conduta da professorasomente interessava à defesa nos casos em que a boa conduta observada na professora fosseestendida ao marido da mesma. Do lado da acusação, o Juiz de Direito, Dr. José da Motta deAzevedo Corrêa, mediava os srs. Carlos da Silva Pinto e Marcolino Ferreira, pais de duasalunas da Professora Maria Avelina que teriam sido vítimas da “pervesidade” e do “sangue frio”do marido da professora. Proceder aos encaminhamentos do processo disciplinar da ProfessoraMaria Avelina correspondia ao contrapeso das duas versões antagônicas da “opinião da cidade”acerca do caso que, entre outras, tinha implicações sobre a diminuição da freqüência escolar nacadeira feminina de Bananal em 1881.

Em tempo declaro que a escola de que se trata foi freqüentada pr. 25 alumnas não sepodendo julgar ou reconhecer o nº que a freqüenta digo freqüentava ate a data do seofexamento pr. que [...] não puderam ser abertos todos os mappas pr. falta de tempo. (Dr.Luis da Fonseca Galvão, secretário da Inspetoria de Intrução Pública de São Paulo, 14/07/1881. Episódio 15 – 4996 01, Processos – AESP).

Pais de alunos e vizinhos somavam-se aos responsáveis oficiais pelas ações desencadeadaspelos professores públicos numa participação que era mais ou menos marcada pelas relaçõesinterpessoais de amizade ou pelos padrões de moralidade postulados.

Cena 3 – Em Socorro142

, o problema se tornou “público” quando o responsável pela 2ªcaderia masculina, Sr. João Alves da Cunha Lima, foi removido para a cadeira de Bragança.

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Contrariando ao regulamento em vigência que previa que o ato da entrega da cadeira implicava

142Senhora do Socorro do Rio do Peixe – Começou no princípio do século XIX com a capela edificada pelo capitão Roquede Oliveira de Horta, à margem do Rio do Peixe, município de Bragança. Criada capela curada em 1829, elevada afreguesia em 1838. Até o ano de 1876 possuía a matriz, a capela da Senhora do Rosário, uma casa de detenção, duascadeiras de instrução pública primária para ambos os sexos. População: 7872 almas, sendo 547 escravos, 20 eleitores(1876). MARQUES, 1980, p. 272, Tomo II.

143Episódio 16 – Professor Adelino de Campos, Socorro, 1887. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

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a “obrigação de entregar-lhe [ao novo professor] tudo quanto pertencia sua escola, segundo oinventario della, o que não fes” e que por esta razão responderia a processo de delito previsto noart. 121 § 3º do Regulamento de 1869 em processo instaurado no dia 21 de maio de 1887. Aeste delito se somava a denúncia do Inspetor Literário daquele distrito, que acusava ao mesmoprofessor por “abandonar o exercicio de sua escola, recebendo pelo quintal da casa, durante asdelle, mulheres de vida duvidosa” motivo pelo qual já respondia a processo instaurado emmarço daquele ano. (Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

Os motivos geradores das acusações investidas sobre o Professor Adelino Campos eramdestrinçados no desencadeamento próprio do processo, momento no qual o acusado precisaacionar meios para a sua defesa e o acusador precisava sustentar o movimento deflagrado coma denúncia por meio de convencimento. É neste ponto que a participação de familiares, devizinhos, autoridades locais poderiam favorecer o lado da acusação ou da defesa. E para alémdo desfecho dado à contenda, as posições conflitivas acerca do episódio que envolvera oprofessor em crimes de peculato

144 (art. 70 do Código Criminal): “o accusado apropriou-se de

um effeito publico para vendel-o como se fora próprio” e atentado à moral e aos costumes, eraminformantes de questões constituintes da escola, da arqueologia das suas práticas, da especificidadeespacial demandada, da definição de um aspecto do perfil profissional daquele que exerceria oserviço público da instrução. De igual modo, as posições conflitivas entre as pessoas que dolado de fora da escola julgavam as práticas ocorridas na sua internalidade, também se revelavamcomo mecanismos de equilíbrio de interesses e conveniências entre os diferentes agentes sociais.

O delito que inscrevia o professor no crime de peculato correspondia ao ato de subtraçãodo relógio de parede e do contador mecânico, ambos pertencentes à segunda cadeira da escolapública masculina de Socorro, para onde chegava o novo professor (a Socorro) e como talprocedia ao rito comum de conferência do inventário dos bens da escola.

Chegado á esta Cidade o novo Professor Snr. João Alves da Cunha Lima, para tomarconta da 2ª cadeira de instrucção primaria, apresentou-me a Tabella dos moveis e utensisque devião existir na aula, e que foi-lhe entreggue por essa Secretaria de Instrucçãopublica, a fim de proceder-se ao inventario, o que fizemos em presença do 1º Suplente doJuiz Municipal d’este termo Snr. Felício Candido de Campos Paixão. (Ofício resposta doInspetor Literário do distrito de Socorro, Padre S. Mariano ao Inspetor Geral, Socorro,25/08/1886. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

O Professor acusado assumia a autoria do roubo do relógio, bem como oencaminhamento dado ao objeto furtado.

144Peculato – Do latim peculatus, peculato, concussão. Crime contra a Administração Pública, praticado por funcionáriopúblico, consistente na apropriação indevida ou desvio em proveito próprio ou alheio de dinheiro, valor ou qualquerbem móvel público ou particular, do qual tenha a posse em razão do cargo. ACQUAVIVA, 2000, p. 997.

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É verdade que vendi o relogio que falla a denuncia, ao Sr. Anacleto Olinto de Camargo,mas, não astuciosamte. como diz a tal denuncia, e sim com o fim de substituil-o por umoutro de algibeira o qual me servisse pa. meus trabalhos escolares pa. guiar-me nas horasde comida no hotel onde comia. (Professor Adelino Campos dirigindo-se ao InspetorGeral, Bragança, 16/08/1886. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

O professor assume o ato de furto de um objeto de uso público, assume que o vendeucom a finalidade de comprar um objeto de uso particular. O Padre S. Mariano, responsável pelaInspeção daquele distrito refutava a insinuação ardilosa de que a relação de amizade entre eleInspetor (Padre) e o Juiz fosse transformada num ato de conluio contra o professor.

Pela dignidade do meu caracter sacerdotal, e pelo respeito que professo a V. S. usei demuita indulgência com o professor Snr. Adelino Campos.Porem em vista da “ousadia”, e linguagem calumniosa do mesmo, acho-me na contingênciade ser mais explicito.Não é perseguição, como elle architectou no seu oco cerebro, nem de minha parte existiamotivo para isso. Como pode-se argüir de perseguição o meu procedimento, se eu logoque fui convidado pelo professor João de lIma para ir fazer o inventário na aula, e notandoa falta de vários utensílios, pedi ao Snr. Felício Candido de campos Paixão (1º Supplentedo Juiz Municipal, que se achava presente (amigo intimo do professor Campos) para quelhe escrevesse uma carta exigindo-lhe esclarecimentos a respeito dos moveis que faltavão?(...) Se dei parte que faltava o relógio e contador, é porque era publico e notório que ostinha vendido, (conforme a innocente pombinha perseguida confessou)”. (Inspetor Literáriodo Distrito de Sorocaba, Padre S. Mariano para o Inspetor Geral, s/d. Episódio 16 – 499601, Processos –AESP).

Ao empregar a expressão “publico e notório”, o Inspetor usa um artefato que confere talrelevância ao delito do professor que não precisa ser provado. (ACQUAVIVA, 2000, p. 649).

FIGURA III – Cidade de Sorocaba (da obra de Abreu Medeiros “Curiosidades Brasileiras”).MARQUES, M.E. de A., vol. 2, 1980

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Em ofício encaminhado ao Inspetor geral, o padre procedia ao julgamento que estabelecia frenteao caso:

Por tanto V. Sa. que tão zeloso tem-se mostrado no cumprimento de seus deveres, etanto se interessa pela instrucção publica na Província, não poderá desconhecer, que umprofessor do quilate do Snr. Adelino Campos, não poderá formar cidadãos probos ehonestos, não podendo inculcar nos seus alumnos o que elle não possue, e por isso lhefará a devida justiça . (Inspetor Literário do Distrito de Sorocaba, Padre S. Mariano parao Inspetor geral, s/d. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

Numa estratégia discursiva na qual pretende convencer por aquilo que embora não-ditoestá sugerido, o Inspetor, Padre S. Mariano, conclui: “Para não cansar mais a paciencia de V. S.não me delongo em relatar-lhe outros factos, que só em pensando nelles corre-me o rubor pelasfaces.” A medida do professor competente para a formação de cidadãos honestos era dadatanto pelo texto que regulamentava as ações dos envolvidos na inspeção, como por um códigosocial fundado na boa moral e nos bons costumes. Não era só, haveria que se considerar o olharvigilante da vizinhança. É para este último segmento que o acusado se dirigirá a partir desta novadireção dada ao seu caso, pista aberta pelo padre. O Professor fora enquadrado nos artigos118 §2º e 121 § 3º do Regulamento de 1869 sob a acusação de realizar

(...) constantemente ajuntamento de messalinas, na casa que funciona a eschola, ásquaes dão entrada pelo portão do quintal, que dá para a rua da Independência, sendo quea casa faz frente para a Rua Direita e estes factos que se achão no domínio publico muitodepõem contra o referido professor Campos, visto que são praticados de formaescandalosa (...) as messalinas dão entrada na casa do mesmo de dia e a qualquer hora,o que tem sido presenciado pelos moradores da Rua da Independência entre elles os snrs.Pedro Perralti e sua cunhada D. Emilia Aires Francisco da Silveira e Cunha ManoelFerreira Fontes Jose Falabella” (Francisco Antonio Pereira Paixão Silveira, Inspetor doDistrito Literário de Bragança. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

O Inspetor Distrital de Bragança revela que aqueles fatos teriam chegado ao seu conhecimentopor meio da “communicação verbal” do negociante daquela “praça”, Sr. Hermenegildo. A partir doseu relato, é possível afirmar que a vizinhança daquela “praça” tinha notícia dos expedientes dados nacasa onde funcionava a escola. O modo como cada um deporia e a favor de quem o faria, inscreviaa produção de uma versão de verdade atravessada pelo contrapeso de interesses e conveniênciasmúltiplos.

145 O que se depreende da participação de Jose Falabella:

146

145Trata-se de uma tática equivalente àquilo que OLIVATO & MOEHLECKE & LANDINI (1999) entendem como“Mentir e fingir: cumplicidade na observância do decoro”. No caso do episódio acima “mentir” ou “fingir” correspondea uma cumplicidade que se esclarece pelos lugares sociais ocupados por cada um dos agentes envolvidos. Uma dashipóteses formuladas sobre o estudo da mentira e do fingimento se dá na relação com as práticas de decoro na interaçãosocial, o fingimento e/ou a mentira são habilidades desenvolvidas para manter ou restaurar a interação social, expressascomo uma prática de proteção. In: MARTINS, 1999,p. 87.

146Jose Falabella é provavelmente um italiano que, entre muitos outros compunha o movimento imigrantista verificado

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(...) sciente do contiudo Inquando a respeito do Professor Sr. A de lino Campos nadaposo diser di mal proseder e: da mia parte cofesolhe que e moso de to do orispeto, e debuoa conduta. (Atestado emitido por Jose Falabela à defesa do Professor Adelino Campos,04/04/1887. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

Jose Falabella não sabia escrever e quando Snr. Francisco de Oliveria Campos, tabeliãode Bragança e irmão do professor acusado, o procurou solicitando-o que emitisse declaraçãoem favor de seu irmão, optou por não ferir as relações com o tabelião da cidade. Por issoprocurou pelo vizinho, o sr. Domingos Borleta, a quem solicitou que redigisse segundo a “norma”a declaração solicitada. Ao ser procurado pela acusação o Sr. Domingos Borleta delatou o seuvizinho, talvez, para não ferir as relações com o Inspetor Distrital.

Jose Falabella fôra a sua casa pedir-lhe que respondesse a uma carta do tabellião Campos,segundo a norma pelo mesmo fornecida, asseverando nessa occasião que bem sabia dosfactos ao accusado:Que era verdade, segundo elle declarara, que este recolhia mulheres pelo portão da casada escola, mas não querendo comprometter o professor, que era seu freguês, nemdesgastar ao tabellião campos, desejava responder-lhe benevolente.Que a vista disso satisfez o pedido de Falabella escrevendo a carta que referia-se ainterpelação (...) (Trecho do parecer sobre o processo instaurado contra o ProfessorAdelino Campos, do Inspetor Geral para o Presidente da Província, São Paulo, 31/05/1887. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

O equilíbrio de interesses e de conveniências fica claro no movimento deflagarado peloacusado que recorre ao irmão (o tabelião) com certo prestígio e poder de influência sobre oscidadãos da localidade. Estes por sua vez, tal qual o Sr. Falabella são aquiescentes porqueprecisam assegurar certos interesses, neste caso, o negociante (Falabella) que, no ímpeto de nãoperder o freguês, repete a “forma” do texto que atestava a boa reputação do professor acusado.

Os processos de escolarização do acontecimento escolar não se constituíam nummovimento isolado do mundo existente no seu entorno mas ao contrário, o professor da escolapública tinha suas práticas regradas por um texto normativo e por um compasso de condutabalizado pela vizinhança da casa da escola,

147 em vigília diuturna.

(...) sei que o professor Adelino Campos recolhia pelo portão do quintar de sua caza daescola prostitutas o que sei por ser vizinho e ter visto emtrar dia e noite. (João Mendes deFerreira, dirigido ao Inspetor Distrital, Bragança, arbril de 1887).

especialmente a partir dos anos setenta no século XIX. Também era possível encontrar professores cujos sobrenomes,se não atestavam a condição de imigrante, poderiam conferir relação de parentesco, ou configuravam a condição dedescendentes de imigrantes. (cf. Anexo I). Sobre aspectos da imigração na relação com a história da educação verMIMESSE, 2001; HILSDORF, 1977; LUIZETTO, 1984.

147A vizinhança é um instrumento de regulação do decoro social na medida em que a proximidade física permite oconhecimento de aspectos da vida privada de outro. Ao mesmo tempo, o fato de não serem amigos ou parentes, impõecerta distância nas relações. A preocupação com a possibilidade de ser “malfalado” pelo vizinho promove a sanção devergonha e, por tal razão, constitui também um instrumento de regulação social. Ver mais em SOUZA & MEDEIROS& ALBERINI. Os olhos, os ouvidos e a língua do vizinho. In: MARTINS, 1999, p. 63-86.

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(...) soube por mais de uma pêssoa que o Professor Sñr. Adelino Campos recolhiaprostitutas pelo portão da caza em que utlimamente residio, e em que funccionaram arespectiva eschola. (Joaquim de Cravalho Pinto, dirigido ao Inspetor Distrital, Bragança,20/04/1887).Declaro que não vi recolher prostitutas, más soube por um alumno da mesma eschola,que o Professor Adelino recolhia. (Romão Luiz de Vasconcellos, dirigindo ao InspetorDistrital, 04/1887. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

O proprietário da casa onde funcionava a escola pública exigia que o professor acusadoa deixasse, assumindo posição diante da situação de conflito estabelecida. Algumas das pessoasprocuradas demonstram que preferiam não se envolver com tais casos, ao mesmo tempo emque sugerem que a omissão poderia ter implicações maiores neste universo em que a equilibraçãodas conveniências se dá como numa representação de cabo de guerra. Por isso, quando omédico é procurado pelo Inspetor Distrital, nota-se que as suas respostas atendem à solicitaçãodo Inspetor mas o médico mantém distanciamento e discrição.

Attesto sob a fé do meu grau e sob a do cargo que exerço, que, até a dacta de 11 de Abrildo anno corrente, não tive sciencia de facto algum pelo qual podem mal ajuizar aocomportamento civil e moral do professor Adelino Campos; sabendo, mais tarde, emcasa de um cavalheiro respeitável que o referido professor tinha sido accusado, emvirtude de seu mau comportamento, pelo Inspector do districto litterario dé sta Cidade.Ahi fica exposto, com franquesa, o que sei em relação ao professor Adelino Campos.(Dr. Pedro d’Andrade Freitas – Presidente da câmara Municipal, Bragança, 21/04/1887.Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

Antes de ser comunicado de sua exoneração, o Professor Adelino já cumprindo a penade supressão da cadeira, reclamava a supressão de seus vencimentos. Tinha um grande trunfo.De acordo com documento emitido pela Secretaria da Inspetoria Geral da Instrução Pública,com base no livro de matrícula, a escola de responsabilidade daquele professor contara entre osmeses de fevereiro a abril de 1887, com sessenta e nove alunos matriculados e cinqüenta alunosfreqüentes. (João Theodoro Xavier Sobrinho, Oficial na falta do secretário, São Paulo, 28/05/1887. Episódio 16 – 4996 01, Processos –AESP).

Cena 4 – A Professora Francisca de Paula era responsável pela Escola Feminina daFreguesia de Santa Cruz da Conceição, no termo de Pirassununga

148 e respondia a processo

deflagrado pelo Inspetor Literário, sob a acusação de “relações illicitas” com o proprietário da

148Santa Cruz – Bairro no município de Pirassununga, onde foi criada em 1876 uma cadeira publica de primeiras letras.MARQUES, 1980, p. 225, Tomo II.

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casa onde morava.149

Sentia-se desonrada e respondia à acusação como se fora vítima decalúnia

150 ou difamação.

Cobrava escrúpulos da parte da acusação que não reconhecia que

(...) para conseguir um meio honesto de vida, estudou, e sujeitou-se á exame, e sabia cumpriros seos deveres com exactidão como provam os attestados passados pelo próprio Dr.inspector litterario desde Março ate Desembro (...) que nenhum dia a accusada deixou de daraula durante esse tempo e nunca deixou de ter o numero legal de alumnas que frequentassema eschola (Defesa, 28/04/1887. Episódio 17 – 4996 01. Processos – AESP).

Ao destrinçar as malhas que enredam seu processo, a professora emprega a tática de seapresentar como vítima da perseguição de interesses alheios e no mesmo ato, fornece uma cenapolítica da época.

Tendo sido nomeada professora de Santa Cruz da Conceição, sendo solteira, e não tendopae nem mãe, irmãos ou parentes que morassem em sua companhia; receiando vivercompletamente isolada em uma casa, em freguesia como esta, onde continuamente hádesordens devidas ao ajuntamento de escravos e trabalhadores da roça, principalmenteaos domingos em que se entregam aos excessos de álcool, e são fomentados pela turmade vadios que infestam a povoação; a accusada procurou para sua residência a casa deuma família honesta, que vio rodeada de todo respeito e concideração dos habitantes dolugar, honra essa a que tem incontestável direito.De duas cicunstâncias, porem, a accusada ignorava, e vinham a ser – que o chefe dessafamília era influencia política na localidade, tendo, por isso adversários seos, e que essesseos inimigos eram tão malvados, tão infames, tão despidos de sentimentos nobres quepara o offenderem e desmoralisarem perante o público, não tiveram o menor escrúpulode enxovalharem a honra de uma pobre mulher (Trecho da defesa da Professora Franciscade Paula, Freguesia de Santa Cruz da Conceição, 28/04/1887. Episódio 17 – 4996 01.Processos – AESP).

Cena 5 – Entre 1886 e 1887, na localidade de Ponte Nova, distrito de Lagoinha151

, oprofessor Benedicto Candido Corte Brilho respondia a um processo disciplinar, sob alegação

149Episódio 17 – Professora Francisca de Paula, Freguesia de Santa Cruz da Conceição, termo de Pirassununga, 1887.4996 01. Processos, MIP – AESP.

150Do latim calumnia, engodo, embuste. Crime contra a honra consistente em atribuir, falsamente, a alguém, fato definidocomo crime. Na mesma pena incorre aquele que, sabendo ser falsa a imputação, a propala ou divulga. A calúnia não seconfunde nem com a difamação nem com a injuria, outros dois crimes contra a honra. A difamação (do latimdiffamare), de fama, significa desacreditar, sendo um crime que consiste em atribuir a alguém fato ofensivo à suareputação de pessoa fiel à moralidade e aos bons costumes. Não se confunde com a calúnia, pois esta consiste numaimputação injusta de crime tipificado como crime. Na difamação o que se busca é desacreditar a vítima. (p. 262-263).Injúria – Do latim injuria, de in + jus, injustiça, falsidade. Crime contra honra em ofender verbalmente, por escrito oufisicamente (injuria real), a dignidade ou decoro de alguém. Conduta que ofende a moral da vítima, a injúria atinge seumoral, seu ânimo. (ACQUAVIVA, 2000, p. 736).

151Ponte Nova – Bairro no município de São Luis, onde existe (1876) uma cadeira de instrução pública primária.Lagoinha – Povoação a leste da capital, no município de São Luis de Piraitinga. Foi elevada à freguesia com a LeiProvincial de 26 de março de 1866, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição. Até o ano de 1876 possuíaaproximadamente 3000 almas, 12 eleitores (1876). Havia à mesma época duas cadeiras de instrução pública primáriapara ambos os sexos. (MARQUES, 1980, p. 180; 69).

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de conduta que o enquadrava no art. 121 §4º do Regulamento de 18 de abril d 1869, o quecaracterizava demissão do professor a quem fosse imputada a responsabilidade pela freqüênciaescolar inferior a vinte alunos.

152

Estando eu sendo perseguido no bairro da minha residência, a ponto de não achar casaonde possa funccionar a escola, e tendo motivo a isto o ter eu assignado uma petição emfavor da liberdade dum escravo, me acho fora do exercicio de meu cargo, forçado pelomotivo exposto, desde o dia 7 do corrente. (Professor Publico Benedicto Candido dirigindo-se ao Inspetor geral, S. Luiz, 14/09/1886. Episódio 18 – 4996 01. Processos – AESP).

A explicação sobre a perseguição dada pelo professsor recebia outra versão na fala doPresidente da Câmara que, dirigindo-se ao Inspetor Geral, fazia o seguinte esclarecimento:

Posso asseverar a V. Exa. que nomeação desse cidadão foi recebida com descontentamentopela população, que conhecendo a sua conducta e as suas convicção política e religiosas,não podiam confiar seos filhos, ao seu magistério. D’ahi a repugnância natural por partedos pais em dar-lhe casa. Ultimamente o Professor declarou-se abolicionista, aproveitandode um engano do Collector desta Cidade quanto a matricula de um escravo, para requerea lliberdade do mesmo. (Jose de campos Pereira, Presidente da Câmara de Lagoinha parao Inspetor Geral, 21/09/1886. Episódio 18 – 4996 01. Processos – AESP).

Ao que, tomado conhecimento de tal teor, revidava o professor: “Si eu fosse mal aceito nologar pelos Pais de família poderia ter matriculado 48 alumnos durante o pouco tempo que aliestava, e ter uma freqüência de vinte e tantos? (Professor Benedicto Candido Corte Brilhodirigindo-se ao Inspetor Geral, São Paulo, 05/11/1886. Episódio 18 – 4996 01. Processos –AESP).

Num universo onde as armas de luta têm a escrita como veículo, o argumento do professorera destruído pela declaração cujo texto reproduzia a “forma” dada pelo Inspetor Distrital. Adeclaração fortalecia o poder da acusação que era autorizado a fazer o uso que melhor lheconviesse do documento que contava com dezenove assinaturas de pais.

Declaramos nos abaixo assigandos moradores do Bairro da ponte nova Municípioda Lagoinha, e bairro circonvisinhos, ser verdade que matriculamos nossos filhosna escola Publica de 1ªs Lettras do mesmo bairro, da qual é professor BenedictoCandido Corte Brilho. (...) Declaramos mais que estávamos descontentes com odito professor por causa de suas opiniões religiosas e políticas, por que o mesmotem declarado não acreditar em Deus, e portanto não ensinava doutrina a nossosfilhos, alem disso disia elle ser republicano. Por todos estes motivos, estávamosresolvidos a retirar da dita escolla os nossos filhos preferindo que os mesmos vivessem[...] da ignorância, a serem affiançados e corrompidos pelas luses da descrença e doatheismo. (Declaração de pais de alunos, Lagoinha, 20/03/1887. Episódio 18 – 499601. Processos – AESP).

152Episódio 18 – Professor Benedicto Candido Corte Brilho, Ponte Nova, 1887. 4996 01. Processos MIP – AESP.

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O professor reunia em si os traços de um homem imerso nas discussões maiscontemporâneas. Diferentemente de uma oposição fundada em “paixões odientas” ou numabriga de vizinhos que não sabem quem foi o responsável pela novilha encontrada morta nafronteira dos dois quintais, se está diante de um professor que, ao matricular um escravocomo aluno, não apenas contrariou o art. 96 § 4º num drible sobre a distração do funcionárioda Coletoria do Governo da Província, mas que ao fazê-lo, evidenciou nos domínios daação da instrução pública, as contradições impostas por uma ordem escravocrata aindavigente. Como abolicionista era também simpatizante das idéias republicanas que propunhamas luzes da razão como substitutas à cegueira da fé. Quanto aos pais que repudiavam aoprofessor que corromperia seus filhos com as “luses da descrença e do atheismo” não épossível aquilatar o grau de correspondência do texto (“forma” repassada pela acusação)com as próprias convicções. Mas se pode, com certa margem de segurança, interpretar aação da acusação, no caso identificado no distrito de Lagoinha, como uma estratégia menorde confronto com o professor Benedicto que uma estratégia ofensiva na defesa de umaordem que sucumbia.

Para defender esta ordem até o Imperador entrava em cena.153

Conforme aconteceu na“Escola Publica, 3ª Cadeira do Sexo Masculino de Campinas, 1º de Novembro de 1886”. D.Pedro II teria visitado a escola e, segundo o registro do professor,

S. Magestade deplorou essa lacuna [Ensino de Doutrina Christã] no Reg. daquellainstituição, e o pouco zelo dos snrs. Parochos que, a excepção do de Taubaté, nãoauxilião os Professores nesta disciplina (Doutrina Christã), que elle considera tão importanteno ensino publico.”(Relatório do Professor Publico, João d’Oliveira Fagundes, 1º dejunho de 1886. 4920 02 – Série Ofícios Diversos – AESP).

A observação do Imperador deixa entrever que o ensino da Doutrina Cristã nas escolasda Província paulista, “à excepeçao” de Taubaté, não estaria cumprindo com sua função noensino público. O descaso com a Doutrina Cristã nas escolas paulistas não era bem vistopelo Imperador. A escola referida tinha 112 alunos matriculados, sendo que no dia davisita, havia 84 alunos presentes. A crítica sobre os párocos paulistas recaía sobre a questãometodológica do ensino da doutrina: “achou deficiente por só ser decorado e não explicado”.Ao que, o Professor não deixou por menos “Tive a honra de ponderar a S. Magestade, quenão comprehendendo o Curso da Escola Normal o ensino de Theologia, não poderíamosnós os Professores habilitados por essa escola – leccionar essa materia com vantagem,visto ignorarmos.”(Relatório do Professor Publico, João d’Oliveira Fagundes, 1º de junho

153A preocupação com a Instrução como estratégia de resistência da monarquia era sentida por diferentes integrantes dafamlía real, haja vista a participação do Conde d’Eu (genro de D. Pedro II) na presidência do Congresso de Instruçãorealizado em 1883, por ato de 19 de dezembro de 1882, ou seja, na seqüência dos trabalhos da Comissão de InstruçãoPública na qual Rui Barbosa teria sido o parecerista. (MOACYR, 1937, 537).

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Fonte: TÁVORA, Araken. Pedro II através da Caricatura, Rio de Janeiro: Bloch Editores S.A., 1975, p. 23.

Figura IV – Caricatura do Imperador D. Pedro II , em visita a uma escola.

FIGURA V – Caricatura: o Imperador D. Pedro II e o Conde d’Eu em visita a uma escola.

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de 1886. 4920 02 – Série Ofícios Diversos – AESP). A ponderação do professor revelaque ele não apenas era habilitado para a função que exercia como conhecia o Regulamentoem vigor.

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A ação da inspeção escolar nos textos normativos de 1885 e 1887

A organização do serviço público da instrução conforme os textos normativos (1851,1868, 1869) tinha como princípio a ação de vigilância e a previsão de punições para professoresnuma relação em que o serviço da inspeção era produzido na contra-face das práticasdesautorizadas ao professor público. Algumas vezes acontecia de um processo ser instauradocontra um professor sem que o delito promovido pelo acusado tivesse algum enquadramento notexto normativo vigente. Em casos assim, o processo era instaurado pela legitimação conferidaao inspetor de autoridade a quem competia a ação controladora de quaisquer condutas contráriasà boa ordem escolar. O caso ocorrido em 1881, na localidade de Bananal, ilustra esse caso. Aprofessora é suspensa da cadeira enquanto é instaurada uma sindicância com vistas à apuraçãode denúncia contra o seu marido que, segundo a acusação tinha conduta ofensiva à moral. Ainstauração de processo se justifica pelas atribuições competentes do inspetor distrital que deveestar atento a todos os atos que comprometem a boa ordem escolar. Ocorrências como estareforçavam o poder da ação da vigilância sobre a conduta do professor, o delito era alcançadoe autuado no conjunto de atribuições delegadas às instâncias competentes da ação inspecionária.

Algumas variações quanto ao formato da inspeção sobre a ação do professor sãoperceptíveis nos textos normativos sucessivos. O quadro abaixo sintetiza o modo como foiproposta a “direção” do ensino segundo o texto de reforma publicado em 02 de maio de 1885.

154Os actuaes professores observarão desade já os programmas do ensino primário desta reforma, não sendo porémobrigados a leccionar as materias accrescidas para cujas disciplinas não tenham sido habilitados. Aos actuaes professores,a contar da data da promulgação desta reforma fica concedido o praso de tres annos independente da matricula naescola Normal para se habilitarem perante a secção competente do Conselho Director afim de ensinar as novasmaterias incluídas no programma do primeiro grau. (Arts. 34 e 35, Reforma da Instrução Pública, 02/05/1885).

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Ao Conselho Diretor cumpririam as questões em torno da criação, supressão de cadeiras,denúncias e recursos nos processos administrativos de professores e demais empregados dainstrução pública, além da “direção e fiscalisação do ensino, adopção de methodos e instrucçoesdo professorado”. Questões relevantes na composição e nas atribuições do Conselho, destaquepara o caráter eletivo de alguns membros, a participação do diretor da Escola Normal sãoalguns dos componentes do novo texto. A presença deste último item referido pode ser lida nacorrelação com a nova “direção e fiscalisação” do ensino. Nota-se que a “direção e fiscalisação”aparecem na relação com os métodos não apenas no aspecto daqueles eram adotados nasescolas mas na previsão de “instrucções do professorado”.

155 Vale recordar que as críticas mais

severas ao ensino das escolas públicas do império incidiam sobre a inspeção deficitária e a máqualificação dos professores e que os textos normativos anteriores eram mais prestimosos notrato com a inspeção sendo econômicos sobre a formação dos professores.

Quadro XA direção do ensino segundo o texto de Reforma da Instrução de 02 de maio de 1885.

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A remuneração e a qualificação técnica do agente da inspeção local foram tratados doisanos antes da publicação da Reforma Provincial paulista (1885) quando foram publicados ospareceres de Rui Barbosa sobre a reforma Leôncio de Carvalho (1879). A questão da inspeçãogeral e distrital era colocada da seguinte maneira. “Sem a inspeção local, porem, a inspeçãogeral seria rematada burla. E a inspeção local seria necessariamente uma ficção absoluta, umanotória irrisão, como hoje em dia é (e ninguém o ignora)” (Tomo III, p. 219). Alguns princípiosdeveriam nortear o redimensionamento da inspeção escolar do país.

1º A inspeção local há de ser retribuída;2º Essa inspeção demanda condições de capacidade profissional.3º Remuneração – Não há inspeção local sem salário. (Tomo III, p. 220).

O terceiro princípio era especialmente tratado pelo parecerista como “uma razãosuperlativamente obvia”.

A inspeção local não existe, não pode existir realmente, se o inspetor se não dedicarexclusivamente aos deveres desse cargo. Pela mesma razão porque subsidiais o inspetorgeral, força é, pois, recompensardes os seus agentes no trabalho quotidiano da inspeção.(Tomo III, p. 220).

Do mesmo modo que um inspetor geral não poderia “repartir a atenção por outrosempregos” também o inspetor local deveria dedicar-se com exclusividade ao ofício da inspeçãolocal. As províncias brasileiras que insistissem na manutenção de um serviço público de inspeçãoescolar sem remuneração corroborariam a idéia de que tal serviço “é um acessório no organismoda educação popular!” Esta concepção não era partilhada pelos norte-americanos, para quem“de todos os elementos dos quais depende a educação popular num Estado, a inspeção éincomparavelmente o principal”. (Report of the Commissioner of education for 1879, pag.XXIII apud Rui Barbosa, Tomo III, p. 220).

155Em 1885 um anúncio de livros da “Casa Garraux” definia o destinatário “PARA A ESCOLA NORMAL: A H N(Língua franceza), AULLETE (Litteratura), AULLETE (Poesia), CARTAS do Padre Vieira, CORTAMBERT(Geographie), LABRUYERE (Caracteres), LACROIX (Geometrie), BURGAIN (Methodo francez), LA FONTAINE(Fables), MELO MORAES (Curso de litteratura), NOEL e CHAPSAL (Analyse logique, AS (Arithmetica), SEVENE(Grammatica franceza), DICIONARIO do novo, VOCABULARIO em branco, VOLTAIRE (Charles II). A Provínciade São Paulo, 10/03/1885, p. 3. Por sua vez, o Correio Paulistano anunciava “Herbert Spencer – A EducaçãoIntelectual, Moral, Physica, traduzida por Emydio de Oliveira. Capítulo I – Quaes são os conhecimentos de maiorvalor? Capítulo II – A Educação intellectual. Capitulo III – A educação moral. Capitulo IV – A educação physyca.Esta obra importantíssima está dedicada especialmente aos professores paes de família e ás pessoas encarregadas dedesenvolver as faculdades da mocidade, e assim preparar uma nova geração com a maior somma possível de forçasintellectuaes, moraes e physicas. 1 vol. bonito e bem impresso [...] 8$000.” (Correio Paulistano, 07/05/1884,3).

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A um inspetor local pago deveria se exigir não apenas a seriedade demandada pelo cargocomo também eram necessárias “aptidões técnicas”.

Sem certos títulos particulares de competência intelectual, sem um cabedal deconhecimentos específicos, o inspetor terá olhos, e não verá, ouvidos e não perceberá,no exame de um estabelecimento de ensino, as feições mais características do mérito oudo derrancamento da educação; não discernirá entre o progresso real, austero nos seusmeios, sóbrios nas suas pretensões, e o verniz de aparências habilmente polidas; nãodistinguirá entre a charlataria audaz e a superioridade discreta; não discriminará a multidãoinumerável de pecadilhos, de omissões, de execessos, de degenerescências que se insinuam,ocultos a vistas profanas, no ensino da primeira idade. (Tomo III, p. 221).

Essa inovação no modo de conceber as “aptidões técnicas” das autoridades da instruçãoera insinuada no tratamento dado pelo texto da Reforma Provincial de 1885, na qual o Diretorda Instrução é acometido de um requisito novo, o de ter alguma experiência profissional com ainstrucão. Afora a inovação, deveria “inspecionar e fiscalisar” as escolas, presidir exames econcursos para o magistério, informar os requerimentos encaminhados ao Presidente da Provínciae instaurar processos contra professores públicos primários e secundários.

Quanto à previsão de Delegados Litterarios que, aparentemente subsituiriam os InspetoresLiterários (ou Inspetores Distritais), as inovações sobre a instrução de suas competências incluíaalgum movimento na direção pecuniária. Eles não seriam remunerados pelos serviços prestadosmas receberiam ajuda para o custeio de suas atividades que previam visitas às escolas, seisvezes ao ano às escolas localizadas nas margens das estradas de ferro e visitas mensais àsdemais escolas.

A divisão dos distritos obedecia ao critério dado pela reunião de algumas comarcas,perfazendo um total de doze distritos literários (cinquenta e cinco comarcas) para doze delegadosliterários.

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O novo texto normativo da Instrução Pública da província paulista era resultado de fartasdiscussões da Assembléia Provincial, com traços de oposição entre idéias monarquistas erepublicanas. Entre os temas da reforma, a “inspeção” da escola ou a “direção” do ensino édaqueles que mais revela o novo tom da escrita da legislação da instrução. Por ocasião dodebate sobre a Reforma de 2 de maio de 1885, os deputados mais moderados sugeriam um“plano de concessões recíprocas”, tendo em vista os conflitos daquele momento de “transiçãodo systema despótico, centralisador, para um regime de liberdade, com maior intervenção popularnos negócios públicos”. Havia um discurso que tentava despregar a escola das questões partidárias,alertando para que se prevalecesse o “bom senso” já que à escola não competiria a formação dorepublicano, nem do conservador, nem do ultramontano mas do “cidadão, o homem útil a si, áfamília, á pátria e á humanidade”. Um republicano alertava para a necessidade de uma reforma

Fonte: Texto da Reforma da Instrução Pública publicado no Jornal Correio Paulistano, 07/05/1885, p. 2

Quadro XIProposta de divisão dos distritos de instrução segunda a divisão paulista de comarcas.

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no ensino público sob “critério scientifico” que fosse capaz de romper com os “vícios dasnomeações de tenente-coronéis e delegados de policia”. (Jornal A Província de São Paulo,Rangel Pestana, 12/05/1885, p. 1).

A Comissão da Instrução Pública que encabeçaria a reforma da instrução havia sidonomeadada pelo conselheiro Laurindo Abelardo de Brito

156, sendo composta pelos srs. Rodrigo

Lobato, Antonio Candido, João Moraes, Abranches e Muniz de Souza. Alguns burburinhosdavam conta de que alguns conservadores lançavam mão de certos artifícios com vistas àprotelação da discussão sobre a reforma. (Jornal A Província de São Paulo, 21/05/1885, p.1). O republicanista Rangel Pestana

157 manifestava a sua opinião acerca de um dos itens de

debate do novo texto de regulamentação da Instrução Pública, a proposta da constituição dosConselhos de Instrução (Conselhos Superiores e Conselhos Municipais). Para este deputado,os Conselhos cumpririam com uma função estratégica na instituição da nova ordem que seafigurava. A participação popular era fundamental na eleição dos componentes dos ConselhosMunicipais de Instrução Pública.

Devem ser chamados aos conselhos os cidadãos mais competentes, aquelles que áillustração reunirem a honestidade, a firmeza de caráter e o sentimento de justiça.A reforma, exprimindo uma transacção do espírito centralisador e autocrático dos nossoshomens de governo com o descentralisador e democrático que preparam um novo regimede liberdade, não deu aos conselhos uma organisação sob as verdadeiras bases populares;mas, assim como se acham estatuídas, já offerecem larga margem á acção do povo nainstrucção publica. (Rangel Pestana, Jornal A Província de São Paulo, 27/05/1885, p. 1)

Um Conselho composto por membros eleitos pelo povo deixaria de ser uma instânciade representação pura do poder constituído para se tornar uma instância de representaçãopopular, este, um princípio democrático importante na constituição das novas fundações doEstado.

Haverá em cada município um Conselho de Instrucção Pública, formado por tresmembros, dos quaes dous serão eleitos, pelos paes, tutores e protectores dos filhosmatriculados em escolas publicas e particulares do município, e pelas professoras eprofessores públicos e particulares, e o terceiro eleito pela Câmara Municipal. (Art. 19da Refoma da Instrução Pública, Jornal Correio Paulistano, 07/05/1885, p. 2).

156Liberal, advogado, Presidente da Província paulista no ano de 1880, quando sancionou a Lei n. 130 de 25 de abril domesmo ano, dando conta da reabertura da Escola Normal.

157 Francisco Rangel Pestana – constitui o alvo da tese de doutoramento de Maria Lucia Spedo Hilsdorf, que empreende

a tarefa de refazer a trajetória educacional, a formação acadêmica, a participação na imprensa, no parlamento e a suarelação com a educação pública e particular. Nascido no Rio de Janeiro, Rangel ligou-se profundamente à Província deSão Paulo pela sua participação nos acontecimentos de natureza política, cultural e pedagógica mais relevantes nelaocorridos nas últimas décadas do século XIX Integrou uma das mais brilhantes gerações acadêmicas da Faculdade deDireito, tendo se formado em 1863, época na qual jé desempenhava uma representativa liderança como jornalista.Republicano histórico, signatário do Manifesto de 1870, também se interessou pelo ensino público, fazendo daimprensa um canal para a promoção de suas concepções de ensino. Também se revelou inovador na fundação dealgumas instituições de iniciativa particular. HILSDORF, 1986.

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As primeiras e únicas eleições para os Conselhos Municipais de Instrução Públicaocorreram no dia 7 de junho do ano 1885, sendo que no dia 28 do mesmo mês e ano forameleitos os membros do Conselho Superior

158. Exaltando a importância da conquista assegurada

pela reforma, Rangel Pestana fazia o seguinte apelo:

(...) insistimos na conveniência de não deixar correr em abandono a organisação dosconselhos municipaes.Não foi sem custo que triumphou, apesar de mutilada, a instituição popular de taesconselhos com grande autoridade na administração do ensino.Convém, pois, que o povo, o mais interessado na organisação delles, não se esqueça decumprir o seu dever, escolhendo homerns capazes de se desempenharem dignamente nacommissão. (A Província de São Paulo, 27/04/1885, p. 1).

Passada a eleição, reconhecia-se que em muitos municípios prevalecia a influência partidáriadas autoridades locais, mas isto não invalidava a necessidade de envidar esforços no sentido deassegurar as conquistas traduzidas no texto de 1885, mesmo porque, “a educação de um povono regime centralisador não se faz em um dia ou por artigos de leis”, haveria que se dar “aotempo a grande parte na operação mental e na reforma dos costumes”, pontuava Rangel Pestana.

Defeituosa que seja, pois, a primeira, eleição, não será prudente nem acertado condenarlogo reforma como imprestável, como costumam fazer os latinos com as suas pretençõesde acharem moldes perfeitos para as instituições sociaes que não se formam segundo ostraços da imaginação e sim em virtude da longa elaboração das idéas e ajustamento áscondições e momento histórico. (A Província de São Paulo, 01/07/1885, 1)

Uma distinção relevante sobre as funções dos delegados literários e dos inspetoresliterários é a destituição das competências sobre a instauração de processos contra professores.Embora os delegados literários e inspetores literários tivessem de fazer cumprir o texto normativojunto aos professores, tivessem de responder a todas as questões da instrução do distrito de suacompetência, a função de instaurar processo administrativo é concentrada nas mãos do Diretorda Instrução. Isto significa dizer que a força da autoridade local sobre os professores éredimensionada na remodelação que refina os processos de vigilância sobre o professor. Nesterefinamento, nem o Delegado Literário, nem o Conselho Municipal têm competência para instaurarprocesso administrativo sobre o professor, ao mesmo tempo em que são agentes que deverãoser ouvidos “sobre todos os assumptos referentes à instrucção publica do município”.

Os membros dos Conselhos Municipais cumpririam um mandato de três anos, sendoque poderiam se reeleger. O Conselho Municipal representava a instância mais próxima daescola. Ao Conselho cumpriria, entre outras atribuições, inspecionar as instituições municipaisde ensino; emitir atestado de freqüência para que os professores recebessem os seus vencimentos;

158Rangel Pestana foi um dos membros eleitos para o Conselho Diretor de Instrução Pública. Não aceitou sua eleição efoi substituído por João Köpke. Cf. HILSDORF, 1986, p. 303.

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presidir exames nas escolas e informar mensalmente ao delegado literário sobre o procedimentodos professores: freqüência das escolas, aproveitamento dos alunos, queixas e representaçõesreferentes ao ensino. A representação local do correspondente ao serviço público de inspeçãoda escola é dada por uma comissão de três membros e não mais segundo os desígnios dorepresentante local do poder constituído, o inspetor literário do distrito (Cf. Regulamento de1869).

Quanto aos professores públicos, o texto de reforma de 2 de maio de 1885, estabeleciacomo critério que somente os professores normalistas acederiam à condição de vitaliciedade docargo. Aos professores que não tivessem o Curso Normal

159 era dado um tempo de dois anos

para que ingressassem na Escola Normal ou a cadeira seria preenchida por outro normalista, etrês anos para que o professor em exercício se preparasse para trabalhar com os “novosprogrammas do ensino primário”. Para tal, era preciso recorrer à Escola Normal e findo ocurso, se apresentar à seção do Conselho Superior responsável para habilitar o professor aoensino das matérias dos novos programas previstos no texto da reforma. O novo texto reeditavaa norma da incompatibilidade de funções paralelas ao exercício do magistério. A obediência àescrita da lei aparece no imperativo do texto, numa associação que pretende convencer de quea sujeição à lei e às autoridades por ela constituídas é uma lógica que garante o bom funcionamentoda engrenagem hierárquica.

Os professores públicos cumprirão todas as obrigações que, de conformidade com estareforma forem determinadas pelos regulamentos de governo, instrucções e ordens doconselho director, director da instrucção publica, delegados literários e conselhosmunicipaes. (art. 32, Texto de Reforma da instrução Pública, 1885).

A reforma conferia lugar ao ensino público de adultos e o estatuía na repetição da fórmulaque relaciona os vencimentos do professor com a freqüência escolar.

Em uma das escolas publicas de ensino de primeiro grau do sexo masculino, designadapelo conselho municipal com approvação do delegado litterario, é creado, em cada umadas cidades, um curso nocturno para adultos, comprehendendo as memsmas materiasque são leccionadas naquellas escolas, com excepção de gymnastica, devendo ter mobíliaapropriada a elles.O curso de que tracta o artigo antecedente, será regido pelo professor cathedratico dareferida escola, que perceberá a gratificação mensal de 1$000 por alumno freqüente.(Arts. 36, 37 – Reforma da Instrução Pública).

Os quatro últimos pontos tratados pelo texto da reforma da Instrução Pública de 1885incidiam sobre o Ensino Particular, o Ensino Obrigatório, a divisão do ensino primário (1º gráo,

159Sobre as disciplinas da Escola Normal no século XIX, ver VILLELA, 1998.

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2º gráo, 3º gráo) e “Das penas, do processo para sua imposição e recursos”. Com relação aoensino particular, era mantida a relação de dependência do poder público os casos de aberturade escola, envio anual de relatório sobre a “marcha” da escola: número de alunos matriculadose freqüentes, matérias ensinadas, estado de adiantamento, idade de cada aluno.

O retorno da obrigatoriedade do ensino era reeditado no novo texto de reforma segundoa nova divisão proposta para o ensino primário.

Até se mostrarem habilitados em todas as disciplinas que constituem o programma dasescolas primarias do 1º gráo, são obrigados a frequental-as nas cidades, os indivíduos deum e outro sexo, de 7 a 14 annos de edade. (Art. 66, Reforma da Instrução Pública,1885).

Aos pais, tutores ou protetores de crianças nas idades acima mencionadas caberiam multasem caso de desobediência ao preceito acima. A nova relação entre falta e punição prevista paraos pais inovava com o componente do grau do ensino na relação com a obrigatoriedade escolar.

Os meninos que não attingirem a edade de 14 annos antes de haverem concluído oestudo das disciplinas mencionadas no principio deste artigo [1º gráo: Educação cívica,Educação Religiosa, (facultativa), Lições de cousas, leitura, escrita, artimética elementar,ensino do sistema de pesos e medidas, noções de geographia e physica, desenho linear egymnastica; 2º gráo: Lição de cousas, leitura, escrita, aritmética, gramamtica, Geographiae physica, Álgebra, desenho linear; 3º gráo: Leitura, grammatica, Álgebra, Desenho aplicadoàs Artes, Geographia, Physica, Chimica, Cosmographia, Historia do Brazil e da Provínciade S. Paulo, Declamação e Estylo; com o incremento do ensino de costura, bordados,economia domestica e afins nas escolas femininas] são obrigados a continual-o, noscursos nocturnos, onde os houver, incorrendo seus paes, tutores ou protectores, pelafalta, nas penas do § antecedente. (Art. 66,§2º, Reforma da Instrução Pública, 1885).

A principal distinção que se confere no tratamento da instrução pública da escola primáriana província paulista dada pelo texto de reforma (1885) está nas práticas que especificam ofazer escolar, só podendo ser apurada na atuação profissional do professor quando do exercíciodo ensino. O ensino é dado pelo novo programa, nas relações com a nova divisão e as imbricaçõescom a obrigatoriedade escolar. A reforma não trancou a pauta da inspeção, mas explicitououtra, a do ensino e as implicações sobre a qualificação profissional do professor e reeditou ocompromisso dos pais com a freqüência escolar.

A direção do ensino era assegurada pela fiscalização do professor e do ensino, do agentee de sua ação profissional. Há um propósito de contrapesar as ações de direção e fiscalizaçãoque é correlato de uma estratégia de incrementação do poder de controle sobre o serviçopúblico da instrução, por meio do refinamento da escrita da lei, como também constitui umrefinamento da idéia de controle no ponto em que uma ação é explicada pela outra.

Do ponto de vista dos “programmas de ensino”, pode-se compreeender o deslocamentoda “inspeção” para a “direção” como o refinamento do controle por meio de um investimento de

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marca positivista sobre o programa de ensino proposto para as escolas de instrução primária. Oano é 1885. A reforma apresenta um programa de ensino que prevê o ensino de matérias decunho científico, sobreleva o trabalho empírico em contraposição ao ensino “theorico”, propõeo ensino de Educação Cïvica paralelo com o ensino “Educação religiosa (facultativa)”.

Quanto à relação entre faltas e penas (admoestação, reprehensão, multa, suspensão, perdada cadeira) previstas ao professor público, há pequenas variações que incidem sobre valores demultas, às vezes sobre os critérios de aplicação, a mais relevante é aquela que instrui sobre aautoridade competente para a imposição da pena ou a abertura de processo. Com base notexto, a competência da imposição de processos era transferida do Inspetor Literário Distrital(1869) para o Conselho Superior de Instrução Pública.

No mês de agosto de 1885 podia ser lido um anúncio que indicava a suspensão dareforma ocorrida em 5 de setembro de 1885. A denúncia de um “pai de família” era encaminhadaao “sr. inspector da instrucção publica” e não ao Diretor da Instrução Pública, como previa areforma de 2 de maio de 1885. Voltava a vigorar o texto normativo anterior, o Regulamento deabril de 1869.

Ao illmo. sr. inspector da instrucção publicaRecommenda-se muito a [...] para fazer uma visita a escola do arraial de Sant’Anna, eexaminar a mocidade que freqüenta a mesma e verificar o grande adiantamento dosalumnos, devido as horas que o mesmo sr. professor dá a escola. É bom também perguntarquanto tempo há de recreio.Um pae de família. (A Província de São Paulo, 19/08/1885, 2).

Enquanto o pai opera uma crítica ao professor da escola de Sant’Anna, Rangel Pestanatecia uma crítica à legislação da Instrução na relação com o tratamento concedido ao professor.

Quem examina seriamente a legislação acerca do ensino publico ou particular, e mede osseus effeitos sobre a sociedade, não pode deixar de duvidar do pouco interesse que ellestoma pela instrucção do povo.Tudo se faz sem methodo, desordenadamente e sob a influencia de certos preconceitosou arranjos pessoaes.Só assim se explica a formação d’esse meio viciado em que se debatem os professorescoagidos pelas necessidades e pelas leis que pretendem á força tornal-os heróe, typos devirtudes, como se estivesse na alçada dos legisladores. (Rangel Pestana, A Província deSão Paulo 18/10/1885,1).

Rangel Pestana tinha a sua fala originada na crítica à legislação que impedia o professor doexercício paralelo de função distinta do magistério mas ao tratar este tema localizava-o no enredovicioso das séries sucessivas de textos normatizadores e as implicações sobre a relação entre oprofessorado e o serviço público de fiscalização do ensino.

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Não foi sem duvida que dissemos serem os professores victimas de muitas censuras,quando não passam de productos desse meio viciado de regulamentação que os suffocae esterilisa.Dão-lhes privilegio, firmam com isso uma ordem absurda de cousas, exigem umaabnegação impossível e depois, não obtendo-a desacreditam-no por actos governamentaes.E por fim – bem afirmada a desonestidade dos funccionarios, sophismam os regulamentos,annulam os Avisos e olham impassíveis para aquillo mesmo que proclamaram ser umaimmoralidade.Isto é triste para todos; para as victimas para os que fiscalisam o ensino e para os quetiram o proveito do procedimento condenado officialmente. (A Província de São Paulo,Rangel Pestana, 18/10/1885,1).

Quando o Inspetor está fora da lei

A seguir está a reconstituição dos textos normativos da instrução pública paulista vistosneste estudo. Agora, com a inserção do texto compreendido pela Reforma da Instrução Pública,sancionada em 02 de maio de 1885

160 pelo Presidente da Província, Almeida Couto e a Lei n.

81 de 06 de abril de 1887. No conjunto sumariado dos textos normativos da instrução, odestaque para o modo como o serviço público da inspeção escolar foi sendo sedimentado nocurso do período estudado.

160Este texto normativo foi revogado em 05 de setembro de 1885, pelo vice-presidente em exercício, Elias Chaves. ORegulamento de 1869 voltou à vigência.

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Fontes: Lei n. 310 de 16 de março de 1846 ou Lei n. 34 de 1846. Coleção Leis Provinciaes de São Paulo (1844-1849) FFCHL– USP. Regulamento de 25 de setembro de 1846 – Para a Commissão Inspectora das escholas de 1ªs lettras – Coleção LeisProvinciaes de São Paulo (1844-1849) FFCHL – USP. Regulamento n. 4 de 17 de abril de 1868 – Para a Instrucção Publica.Regulamentos expedidos pelo Exmo Governo Provincial para execução de diversas Leis Porvinciaes de São Paulo. Pres. JoãoTheodoro Xavier. Typographia “Correio Paulistano” – 1874. FFCHL – USP. Regulamento de 18 de abril de 1869 – Para aInstrucção Publica e Particular da Província. Regulamentos expedidos pelo Exmo Governo Provincial para execução dediversas Leis Provinciaes. Pres. João Theodoro Xavier. Typographia “Correio Paulistano” – 1874. FFCHL – USP. Reformada Instrucão Pública , 02 de maio de 1885 – Jornal A Província de São Paulo, 12 e 21 de maio de 1885, p. 1. Lei Provincialn. 81 de 6 de abril de 1887 – Coleecção de Leis e Posturas Municipaes promulgados pela Assembléa legislativa Provincial deSão Paulo. São Paulo: Typographia do “Correio Paulistano” 1887.

161 No curso da pesquisa não se encontrou nemhum processo orientado pelas disposições normativas da Reforma de 2 de

maio de 1885. O que não invalida a proposta de uma leitura por contraste entre os dois últimos textos normativos daInstrução Pública paulista no período imperial. Acredita-se que este procedimento possibilite o destaque de aspectosque justificassem a sua curta duração.

Quadro XIICompetência da ação da inspeção nos textos normativos entre 1827 – 1887.

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Nota-se que os dois últimos textos normativos da instrução pública paulista dentro doperíodo imperial não contemplavam o inspetor entre os demais agentes responsáveis pelas funçõesde “direção” e “fiscalização” do ensino na província paulista. O que parece constituir um artefatoda escrita da lei que, ao suprimir a figura do inspetor, pretendia o deslocamento da idéia da açãoinspecionária para uma ação que, embora ainda mais paramentada de controle, pretendiadesmarcar o tom inspecionário do poder público para a vigília realizada por Conselhos formadossegundo a participação eleitoral da população. O texto que resultou na reforma da InstruçãoPública (1885) excluía o agente inspetor mas resguardava e refinava a ação da inspeção. AInstrução Pública se daria pela “direção” que somava os esforços do Presidente da Província,do Conselho Diretor, do Diretor da Instrução Pública, Delegados Literários e ConselhosMunicipais.

A diagramação da Lei nº 81 de abril de 1887 era a seguinte:

Quadro XIIIDiagramação da Lei nº 81 de abril de 1887

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A disposição sobre o “Ensino Obrigatório” é suprimida do texto de 1887. O texto anterior(1885) reestabelecia o preceito de 1874, obrigando aos responsáveis pela matrícula dos menoresde 7 a 14 anos de idade, sob pena de multa variável entre 50 e 100$000rs. O texto trazia umnovo componente que refina o trato sobre a obrigatoriedade prevista no texto de 1874. Tratava-se da participação dos responsáveis pelos menores em idade escolar não apenas com a matrículade seus dependentes mas com a regularidade desta freqüência certificada na habilitação gradualdas disciplinas programadas em graus.

Até se mostrarem habilitados em todas as disciplinas que constituem o programma dasescolas primarias do 1º gráo, são obrigados a freqüental-as nas cidades, os indivíduos deum e outro sexo, de 7 a 14 annos de edade. (Art. 66, Reforma da Instrução Pública,1885).Os meninos que attingirem a edade de 14 annos antes de haverem concluído o estudo dasdisciplinas mencionadas no primeiro deste artigo [1º gráo], são obrigados a continual-o,nos cursos nocturnos, onde os houver, incorrendo seus paes, tutores ou protectores,pela falta nas pennas do § antecedente[50$000 a 100$000rs.]. (Art. Art. 66, § 2º, Reformada Instrução Pública, 1885).

A supressão da disposição que tratava da obrigatoriedade do ensino no texto de 1887parece fortalecer o tom republicano do texto de 1885 por oposição ao tom conservador liberalmais evidente no texto de 1887. Prova disso é que as discussões que antecederam a publicaçãodo Regulamento de abril de 1887 vinham se desenvolvendo desde 2 de maio de 1885. Oprojeto previa o Ensino Obrigatório. (38ª Sessão Ordinária, 8 de abril de 1886, Annaes daAssemblea Provincial de São Paulo, p. 237). Nesta sessão tanto os deputados Rangel Pestanacomo Raphael Costa teriam sido “vencido quanto á obrigatoriedade do ensino”. (38ª SessãoOrdinária, 8 de abril de 1886, Annaes da Assemblea Provincial de São Paulo, p.333).

O quadro abaixo contrasta os modos como os dois últimos textos de normatização dainstrução pública do Império propuseram a constituição dos agentes da “direção” do ensino daProvíncia Paulista.

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Fontes: Reforma da Instrucão Pública , 02 de maio de 1885 – Jornal A Província de São Paulo, 12 e 21 de maio de 1885, p.1. Lei Provincial n. 81 de 6 de abril de 1887 – Coleecção de Leis e Posturas Municipaes promulgados pela Assembléa legislativaProvincial de São Paulo. São Paulo: Typographia do “Correio Paulistano” 1887.

Quadro XIVConcepção do serviço de “direção” do ensino na Província paulista por meio dos textos

normativos de 1885 e 1887 (colar nomes)

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Algumas das tendências vistas no texto de reforma (02/05/1885) são reeditadas pelaLei de abril de 1887, algumas reproduzem com fidelidade o tratamento recebido no textoanterior mas muitos temas apresentam modificações que, apesar de sutis, promovem umadescaracterização dos propósitos formatados no texto anterior. Exemplo é a manutençãode quase todo o quadro que reunia os agentes diretamente vinculados com a ação de “direção”do ensino: Conselho Diretor, Diretor da Instrução Pública, Professores Públicos, ConselhosMunicipais. O Delegado Literário que, no texto da reforma de 2 de maio de 1885 entravaem lugar do Inspetor de Distrito não era mantido na nova lei da instrução, sequer era resgatadoo seu antecessor, o Inspetor Literário de Distrito. Nota-se, entretanto, que o ConselhoMunicipal é mantido e aparece acompanhado de inovação, a disposição que normatizaria oprocesso da “eleição” dos seus membros. Os Conselhos Municipais são mantidos, osdelegados literários suprimidos. O que poderia traduzir em certo afrouxamento dos serviçosda “direção” e da fiscalização pode ser uma pista falsa. As eleições para a composição doConselho Diretor e dos Conselhos Municipais proposta na Lei n. 81 e Regulamento de1887 seria realizada por membros da Câmara Municipal e não por pais, tutores e protetoresde alunos (Cf. Reforma, 02/05/1885). Enquanto o texto de 1885 estabelecia a passagempela Escola Normal como critério para a candidatura ao cargo de membro do ConselhoMunicipal, o texto de 1887 estabelecia:

Os membros do conselho, que poderão ser tirados dentre os vereadores, servirão portres annos, podendo ser reeleitos e reconduzidos. (Lei n. 81 de 06 de abril de 1887, Art.12, Dos Conselhos Municipaes).Os professores em exercicio, quer de ensino primário quer de ensino secundário, nãopoderão fazer parte do conselho superior e municipal nem mesmo por eleição.Podem ser membros dos conselhos superiores e municipaes todos os funccionariosgeraes e provinciaes, com excepção dos professores públicos e empregados das repartiçõespublicas. (Lei n. 81 de 06 de abril de 1887, Arts. 117 e 127, Disposições Geraes).

É vetada a participação de professores e empregados de quaisquer repartições públicas aum só tempo em que há uma predisposição clara para a candidatura de membros componentesdas Câmaras Municipais. Considerando que os votantes eram restritos aos membros das CâmarasMunicipais, pode-se verificar uma estratégia tendenciosa na composição destas instâncias da“direção” e “fiscalização” do ensino. Fica resguardado o caráter descentralizador do serviço dedireção e fiscalização do ensino na medida em que são mantidos os Conselhos Municipais comoutros critérios de composição. Mas tais critérios que incidem sobre quem iria compor osConselhos Municipais (integrantes das Câmaras Municipais) e de que modo (eleição onde quemvota são os integrantes das Câmaras Municipais) também permitem pensar a nova configuraçãodo serviço público da direção e fiscalização do ensino como uma estratégia que garantiria aogoverno provincial paulista o controle sobre as instâncias municipais. Pode-se entender o veto àeleição popular e o privilegiamento da candidatura e do voto de integrantes das Câmaras

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Municipais como um movimento de reação monárquica às investidas republicanas expressadaspelo texto da refoma de 1885.

Nas discussões que antecederam a formatação do Regulamento de abril de 1887, oconfronto entre a bancada liberal conservadora e a bancada republicana foi explícito. No debatepromovido entre E. Cruz (liberal conservador) e Lobato (republicano) a discussão sobre opapel do Presidente da Província na relação com o serviço de inspeção das escolas dá umaamostra da dimensão conferida à escola na relação com o Estado.

O Projeto torna o presidente da província com relação á instrucção publica e inspecçãodo ensino uma nullidade, limita as suas attribuições de modo a deixal-o quase sem acçãoalguma nesse ramo do serviço publico. É assim que, no complicado mecanismo doprojecto, as únicas attribuições, que encontro, dadas ao presidente da província, sãoestas: nomear quatro indivíduos para comporem o conselho director que é de 15 membros;nomear o director da instrucção publica, mas também restringindo-se á uma lista de tresnomes, que lhe é imposta pelo conselho director da instrucção publica. (3ª Discussão doprojeto nº 109 que reforma a instrucção publica da Província, Annaes da AssembleaProvincial, 1886, p. 497).

Os dois parlamentares confrontam posições e concepções. A homogeniedade do ensinocomo condição de “imprimir no povo o carater brazileiro” é para o (liberal conservador)representada pela centralização expressa na figura do presidente da Província como o principalagente fiscalizador da escola. Sendo o Presidente indicado pelo Imperador, cada provínciaestaria representada pelo poder central. Ao se propor a diluição do Inspetor Geral num Conselhocuja formação era de natureza eletiva, sobrepunha-se o princípio descentralizador e, para oparlamentar liberal conservador, era a destruição do emprego da instrução pública comoinstrumento “homogeneizador”. Já o parlamentar republicano entendia que a necessáriahomogeneização seria viabilizada graças ao “programma de ennsino” igual entre as diferenteslocalidades da província.

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E. Cruz – Portanto a instrucção publica deve assentar sob um plano geral, de accôrdocom o systema político que nos rege, de modo a imprimir no povo o caráter brazileiro,por meio de uma educação homogênea e uniforme. (...).R. Lobato – Mas esse pensamento esta assignado no projecto.E. Cruz – Não está; já mostrei que pelo projecto sem a organisação do conselho directore conselhos municipaes, o presidente da província, que é delegado do governo geral e orepresentante da província dos interesses geraes do estado, fica quase sem seção.R. Lobato – Mas o programma de ensino é o mesmo em toda a província (...) o ensino éhomogêneo porque o programma é o mesmo.

162 A diferença posta pelos dois deputados sobre uma certa homogeneização nacional versus uma homogeneização

circunscrita à Província paulista, remete para os bastidores do movimento separatista paulista de 1887. Sobre aquestão, ver ADUCCI, 2000.

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E. Cruz – “(...) Não se trata de uniformidade do ensino na província, sim no estado: éesta homogeneidade que o projécto destróe” (...) é um fato que a direcção do ensino daeducação popular não póde ser indifferente ao estado.Dessa verdade decorre, como concectario necessário que o presidente da província,representante dos interesses geraes da sociedade, não pode absolutamente ser excluídoda inspeçção e superintendência do ensino publico. (...) o projecto tira o presidente daprovíncia, entidade quase sempre extranha ás paixões políticas, collocada quase semprefora das luctas partidárias da província, a suprema direcção do ensino...R. Lobato – Não tira tal.E. Cruz – (...) entre a direcção do presidente da província, como actualmente se faz [Cf.Regulamento de 1869], e a do conselho director, que ora se quer estabelecer, eu prefiroa do presidente da província.R. Lobato – Quando o Partido Liberal subir o nobre deputado aceita o projecto.E. Cruz – (...) se o systema de eleição, que é inaugurado no projecto, quer para acomposição do conselho director, quer para a composição dos conselhos municipaes,não podia prestar, porque trazia os vícios e defeitos, que a política e paixões partidáriaspodem acarretar, a conseqüência a tirar-se era que o systema representativo estavafalseando em sua base, visto que se baseava todo nas elleições. (...) confio muito poucono systema, pelo qual se devem compor esses conselhos municipaes.R. Lobato – Confia nos inspectores de districto? (Sala das sessões, 27 de abril de 1886,Annaes da Assemblea Provincial, 1886, p. 499).

Enquanto alguns deputados entravam em choque sobre temas estruturadores do serviçopúblico da instrução, alguns professores também entravam em conflito com as autoridades diretasda instrução. Havia caso de professor que era acusado de se opor ao ensino da Religião doEstado cabendo-lhe a instauração de processo, de igual modo quando um professor era acusadode promover a difusão de idéias contrárias à ordem instituída.

163 Nestes casos, a acusação

personalizada pelo inspetor literário do distrito, acionava as pessoas de representatividade local.Juízes, padres, comerciantes e pais eram chamados a endossar a posição da acusação. O Inspetordo distrito era um agente nomeado pelo presidente da província de um país monárquico, logoum representante dos princípios da monarquia nos diferentes distritos de cada província.

O texto de 1885 é uma manifestação importante da efervescência política do começo dadécada de 70 e a consequente hibridação do corpo legislativo provincial, composto de liberais,republicanos e conservadores entre outros grupos menores. No texto de reforma da instruçãode 1885 prevaleceu o tom republicano, que logo cedeu a vez para um texto mais híbrido, decaráter liberal na supressão da obrigatoriedade, positivista no trato com o programa de ensino,fiel na reafirmação de certos preceitos centralizadores da monarquia. Um arauto da monarquia,espaço das concessões possíveis no enfrentamento das forças que tentavam empenhar a novaordem.

163 José Maria Correia de Sá e Benevides, católico ultramontano, “adepto sincero do Syllabus”, era professor da Escola

Normal paulista, no ano de 1882, quando condenou o estudante positivista Francisco Peixoto de Lacerda Werneck aperder dois anos de estudo por ofensa à religião do Estado. Cf. SOARES, 1981, p. 146.

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Vale a pena trazer algumas contribuições da obra A invenção das tradições, organizadapor Hobsbawm. Ali, no estudo realizado por David Cannadine acerca do ritual na monarquiabritânica (1820-1977) ele ressalta a importância da repetição do ritual em contextos de crise.

Pois naturalmente, mesmo que o texto de um ritual repetido, como o de uma coroação,não sofra alterações com o tempo, seu significado” pode alterar-se profundamente,dependendo da natureza do contexto. Numa época essencialmente estática, a conservaçãode riquezas imutáveis pode ser um indício e um reforço genuínos da estabilidade e doconsenso. Porém, num período de mudança, conflito ou crise, o ritual pode permanecerdeliberadamente inalterado, de maneira a a dar a impressão de continuidade, comunidadee segurança, embora existam indícios contextuais esmagadores em contrário. (p. 115)

No contraponto realizado entre os textos normativos da Instrução de 1885 e 1887, arepetição de estratégias de direção da escola é dada no mesmo movimento que pretende deslocaro tom explícito da inspeção como instância controladora para uma ação de controle sintetizadapor um Conselho Superior. Esta mudança que se traduz numa manifestação de uma ordemvigente e decadente ao mesmo tempo em que realça o poder monárquico na reafirmação do tomconservador na legislação da instrução não tem a força de frear a “escalada da impotência” damonarquia.

David Cannadine (1997) notou este fenômeno na Inglaterra dos anos oitenta do séculoXIX, “à medida que minguava o poder real da monarquia, abria-se um caminho para que ela setornasse novamente o centro dos cerimoniais magníficos.” A ameaça do prestígio à monarquia érevidada pelo investimento sobre a invenção ou reinvenção de tradições. Entretanto, conformeobserva o autor, a promoção dos grandes cerimoniais não teria tido a força de trazer de volta oteatro do poder monárquico mas “a estréia da escalada da impotência” (p. 131).

Uma olhada sobre os critérios de composição do Conselho Diretor (1885) e ConselhoSuperior (1887) mostra que não houve apenas uma mudança no adjetivo que acompanha ainstância maior na hierarquia do serviço público da direção do ensino. A acepção dicionarizadada palavra diretor permite compreender o Conselho Diretor como uma instância responsávelpela administração da instrução provincial, instância que assume a responsabilidade geral sobreatividades distribuídas entre outras instâncias menores. Já a concepção dicionarizada da palavrasuperior permite compreender o Conselho Superior como a instância que exerce autoridadesobre as demais. Uma estabelece a relação de superioridade sobre a organização geral dofuncionamento do serviço realizado pelos demais envolvidos, a outra revela verticalidade narelação com os demais envolvidos no serviço em questão.

Quanto à questão quantitativa dos Conselhos Diretor (1885) e Superior (1887) vejamos:

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O Conselho Diretor previsto pelo de 1885 seria composto por quase o dobro de membrosdo texto de 1887. O primeiro texto contaria com a participação feminina de duas professorasnomeadas pelo Presidente da Província. De igual modo é preciso destacar a participação dovoto de representantes do ensino privado (diretores de colégios e professores) que responderiampor uma representação de dois dos dezessete membros do Conselho Diretor. Outro detalhesobre o qual cabe registro é a freqüência com que aparecem os atos de nomeação e os atos deeleição nos dois textos. Embora esteja prevista eleição para certos membros nos dois textos, háum tratamento substancialmente diferenciado no procedimento definido pela restrição eespecificação do público votante no Conselho Superior (1887): os integrantes das CâmarasMunicipais. Ao discorrer sobre o “poder de nomeação”, Bourdieu no estudo A força do Direitose detém sobre a etmologia da palavra nomos: princípio universal de visão e divisão (nemosignifica separar, dividir, distribuir), logo se trata de uma distribuição legítima, neste caso dadistribuição legítima de cargos: “representa a forma por excelência da palavra autorizada, palavrapública, oficial, enunciada em nome de todos e perante todos (2001, p. 236). Os atos denomeação são “enunciados performativos” “juízos de atribuição” que são formulados publicamentepor agentes que atuam como mandatários autorizados de uma coletividade. Tratam-se de atosdotados de legitimidade ao mesmo tempo que são “actos mágicos”. Quer isto dizer que, “estãoà altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto de conseguir que ninguém possarecusar ou ignorar o ponto de vista, a visão que eles impõem.”(2001, p. 236). O ato de nomeaçãose firma no “constrangimento” e constitui um acordo tácito e parcial, fundado na aparência deuma necessidade real.

Fontes: Reforma da Instrucão Pública , 02 de maio de 1885 – Jornal A Província de São Paulo, 12 e 21 de maio de 1885, p.1. Lei Provincial n. 81 de 6 de abril de 1887 – Coleecção de Leis e Posturas Municipaes promulgados pela Assembléa legislativaProvincial de São Paulo. São Paulo: Typographia do “Correio Paulistano” 1887.

Quadro XVComposição dos Conselhos Diretor (1885) e Conselho Superior (1887)

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Entre os dezessete membros propostos no texto de 1885 prevalece o critério da eleiçãosobre os atos de nomeação, nove serão eleitos e seis nomeados. A participação de representantesdo ensino particular é representada na eleição de dois membros enquanto a nomeação garante aparticipação de duas professoras públicas como membros do Conselho Diretor.

Já as mudanças que imprimiram diretividade na forma eletiva e os atos de nomeaçãovistos no texto de 1887 podem ser compreendidas como estratégias políticas que pretendiam aconservação da monarquia através da reafirmação da legitimidade do poder constituído que seconferia na nomeação da grande maioria dos membros do Conselho Superior de InstruçãoPública. Com isto não se está fazendo uma operação que atrela à monarquia o ato de nomeaçãomas se está operando com a hipótese de que o governo constituído usa dos meios formais deconstrangimento, especialmente quando o emprego de tais meios, é justificado para resguardara própria legitimidade, neste caso, afugentar as investidas republicanas e retardar o fim damonarquia.

Os textos de 1885 e de 1887 conferem uma certa distinção no modo como os professorespúblicos são tratados, esta distinção é mais sensível na relação com a qualificação técnica, isto é,na relação entre o professor e o novo programa de ensino. Esta característica que privilegia aformação do professor é dada no modo como o texto normatiza a questão da vitaliciedade docargo de professor. Isto pode ser notado nos processos de admissão, quando o professornormalista acederia à condição de vitalício, tão logo assumisse a cadeira. Ao mesmo tempo, otexto elege a formação de normalista como o único critério para a obtenção deste benefício decarreira. A formação do professor era colocada como uma ameaça aos professores providosnas escolas da província e que não eram normalistas. Nos casos das localidades onde nãohouvesse professores qualificados, manter-se-iam professores destituídos de qualificação. Masestes professores seriam dispensados desde que algum normalista pretendesse a cadeira, nelaseria provido. (Art. 27§ 1º, Reforma de Instrução Pública, 02/05/1885).

Vejamos como o texto de 1885 estabelece a relação entre a formação dos professoresem exercício nas escolas (não normalistas) e o novo programa de ensino:

Os actuaes professores observarão desde já os programmas do ensino primário destareforma, não sendo porém obrigados a leccionar as materias accrescidas para cujasdisciplinas não tenham sido habilitados.Aos actuaes professores, a contar da data da promulgação desta reforma fica concedidoo praso de tres annos independente da matricula na escola Normal para se habilitaremperante a secção competente do Conselho Director afim de ensinar as novas materiasincluídas no programma do primeiro grau. (Arts. 34 e 35, Reforma da Instrução Pública,02/05/1885).

O texto de 1887 somente concederia a condição de vitaliciedade aos professores que,mesmo assumindo a cadeira como normalistas, viessem a cumprir um período de três anos deexercício. Os professores em exercício e que não eram normalistas poderiam aceder ao grau de

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vitalícios desde que fossem aprovados em exames para este fim, promovidos por uma dasseções do Conselho Superior. Como reconhecimento haveriam de receber o acesso à condiçãode vitaliciedade (três anos contados a partir da data de admissão) e uma gratificação mensal de100$000rs. Abaixo, o trecho que atrela à formação o ensino.

Os actuaes professores observarão desde já, os programmas de ensino primário destalei, não sendo, porém, obrigados a leccionar as materias accrescidas para cuja disciplinanão tenham sido habilitados. (Art. 31, Lei n. 81, 06 de abril de 1887).

A aparente tolerância para com o professor que, em exercício, não tivesse habilitaçãopara o novo programa deve ser pensada na relação com a condição estatuída pelo mesmodocumento que estabelecia um tempo máximo de quatro anos para que estes professores sematriculassem na Escola Normal ou se aprovassem em exames propostos pelo Conselho Diretor.A habilitação do professor é o novo critério para exercer o magistério e deveria ser comprovadapor uma carta de normalista

164 impressa ou litografada em pergaminho ou “papel de duração”,

redigida segundo uma “forma egual” e concedidas aos alunos que teminassem o curso normal eàqueles aprovados em exames extraordinários.

A “formula” para as cartas era a seguinte:

ESCOLA NORMAL DE S. PAULO

Eu....... director da Escola Normal de S. Paulo, tendo em vista os termos de habilitação....(com distincção, plena ou simples) nas materias do curso normal, obtida pelo sr. ....nascido em ...... a ....... de ....... de ...... filho de ...... e em cumprimento do que dispõea lei e regulamento respectivos, dou esta carta de habilitação para o magistério primárioao dito sr....... para que com ella goze de todos os direitos e prerrogativas que lhe sãoinherentes.Imperial Cidade de S. Paulo, aos ...... de ..... de....

O director...........................................

(Sello)O normalista O Secretario.................................... ................................................

A entrega da carta impunha a instituição de um cerimonial que reunia o Presidente daProvíncia, o Inspetor Geral da Instrução Pública, o Diretor da Escola Normal, os alunosformandos e convidados.

164A carta de normalista é vista por Tanuri (1979) como uma das principais inovações do Regulamento de 22 de agosto1887. Ela correspondia à supressão dos exames vagos e extraordinários que contribuíram para descaracterizar a EscolaNormal como escola profissional, pela introdução da exigência do curso completo, para a obtenção da carta denormalista. (p. 38).

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As cartas serão entregues, em acto solemne, pelo presidente da província a cada um doshabilitados.No dia e hora designados para o acto, na sala principal do edifício da escola, presentes opresidente da província, o inspector geral da instrucção pública, os professores da escolae convidados, dará o director principio á solemnidade proferindo ou lendo um discursoanálogo ao acto; em seguida será pelo presidente da província feita a entrega das cartas,terminando o acto por um discurso de agradecimento do representante dos habilitados.(Art. 100, Regulamento da Escola Normal, 3/01/1887).

Já não basta ter uma morigeração comprovada pelo padre, o juiz, o verador e a vizinhançada localidade. Junto ao quesito da boa moral emparelha-se o quesito da competência técnica.

165

O concorrente a este cargo, antes do concurso “exhibirá provas de sua capacidade physica,moral e intelectual”. (Art. 48, Reforma da Instrução Pública, 2 de maio de 1885).

A preocupação com a “capacidade intelectual” do professor público era acordada entreo diretor da Escola Normal e o Diretor da Instrução Pública: “No dia seguinte ao encerramentodas matriculas o director da escola remetterá ao da instrução publica uma relação dos professorespúblicos matriculados em cada um dos annos da mesma escola”. (Art. 101, Lei n. 81, 06 deabril de 1887). Tal preceito era previsto pelo Regulamento da Escola Normal (publicado aos 3de janeiro de 1887): “Encerradas as matriculas será enviada á inspectoria da instrucção publicauma relação dos professores públicos que estiverem matriculados” (Art. 59).

As variações entre os dois textos (Reforma de 1885 e Regulamento da Instrução de1887), naquilo que diz respeito à composição das disciplinas do programa para o ensino primáriodividido em três graus são pequenas, quase imperceptíveis e nem por isto irrelevantes. Sobre oensino religioso, o texto de 1885 prevê “Educação religiosa (facultativa)” (Art. 75, Reforma daInstrução Pública, 1885) enquanto o texto de 1887 prevê “educação religiosa, facultativa paraos filhos dos acatholicos” (Art. 71, lei n. 81, 06 de abril de 1885). Tais sutilezas não contrariama afirmação de que os dois textos apresentam uma proposta de ensino primário que reconhecea imposição de uma nova ordem imposta pelo conjunto dos novos saberes necessários à formaçãodos alunos. A produção do novo programa de ensino operava uma mudança de paradigma. Aescola de instrução primária até o metade da década de oitenta do século XIX teria de ensinar:“Leitura e escripta, Noções essenciaes de grammatica portugueza, Principios elementares dearithmetica, Systema métrico de pesos e medidas, Doutrina da religião do Estado e princípios demoral respectiva” (Art. 2º da Lei n. 54 de 15 de abril de 1868). A escola de instrução primáriado final da década de oitenta do século XIX tinha um programa que incluía educação cívica,

165Leonor Tanuri assinala a reabertura da Escola Normal Paulista, dada no ano de 1875, como um momento no qualavultavam as formulações teóricas a respeito do importante papel da instrução no progresso social e econômico dopaís. Tudo isso configuraria a instrução como a “questão do século” e justificaria o redimensionamento sobre asnecessidades da formação específica do elemento responsável pela instrução: o professor. (1979, p. 34). A autorasegue falando da reforma curricular promovida pela Lei n. 130 de 25 de abril d e1880, se detendo sobre a ampliação docurso e a diversificação ampliada de matérias oferecidas. (p. 34-38).

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ensino religioso facultativo, lições de cousas, leitura, escrita, gramática, geografia, química,ginástica, álgebra, cosmografia, canto –, numa programação dividida em três graus comprivilegiamento de exercícios práticos. “As lições serão mais empíricas do que theoricas e oprofessor se esforçará por transmittir aos seus discípulos noções claras e exactas da materia,provocando o desenvolvimento gradual das dificuldades.” Art. 73, Lei n. 81, 04/04/1887). Apergunta talvez não seja sobre a concessão ou cessão da monarquia face às pressões republicanase de outras ordens, mas o fato é que há um novo tratamento dado ao ensino, visto entre outros,no trato da religião e na incorporação das matérias científicas e é claro, sobre o professor,responsável por excelência no trato das novas matérias. A instrução é meio de consolidar a idéiade progresso. Não há progresso sem ordem, a máxima do positivismo.

A hipótese de que à vigilância sobre a conduta moral se acrescenta o controle sobrea qualificação intelectual do professor aparece muito sutilmente nalguns episódios ocorridosentre setembro de 1887 e julho de 1889. O tom do texto normativo assinala o monitoramentosobre a moral emparelhada à qualificação técnica do professor. Entre as questões maisfortes colocadas pelos processos estará a questão dos partidarismos políticos, o ensino dereligião, ou seja, questões que suscitavam o monitoramento intelectual de tom ideológico.Os processos não desdizem o texto normativo, representam as preocupações da monarquiadiante de uma escola ou de agentes ligados à escola que produzem situações destoantes daordem monárquica. O outro motivo, a grande invariante do conjunto dos processosexaminados é a freqüência, bem como os aspectos paralelos à noção de tempo e correlatosda idéia de freqüência. Exemplo disto é o controle sobre o tempo dos professores: prazo detomada de posse, prazo de vencimento de licença. Este controle ostensivo do tempo eraum entre outros mecanismos uns mais outros menos visíveis de inscrição de regularidadeaos tempos modernos. A freqüência, tanto como os cuidados sobre os prazos expirados deposse ou licença, eram comandados pela necessidade da disciplina e previsibilidade própriasde um discurso de racionalidade anunciado.

Neste período, estava em vigência o Regulamento de Instrução de 22 de agosto de 1887,correspondente da Lei n. 81 (06/04/1887).

A gestão da “falta” do professor nosúltimos processos da monarquia

No quadro abaixo está a síntese de alguns dos processos deflagrados a partir daregulamentação da Lei n. 81 de 6 de abril de 1887, Regulamento da Instrução Pública de 22 deagosto de 1887.

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Localidade/PeríodoAcusado

Bairro do Taboão, mu-nicípio da Cunha – 04/08/1888 a 06/1889Professor Leopoldinode Paula Fernandes166

Vila de Cotia 26/10/1888 a 31/07/1889.Processo disciplinarcontra a ProfessoraAmbrosina de Toledo1ª Cadeira Femininade Primeiras Letras167

Parahybuna 13/04/1889 a 12/07/1889.Processo disciplinarcontra a ProfessoraClaudina Elisa deMedeiros, 1ª CadeiraFeminina de PrimeirasLetras168

Motivo gerador do processo

Fraude na escrituração esco-lar, registros de alunos quenão frequentava a sua esco-la.O professor não teria voca-ção para o ensino”. O traba-lho que deveria ser levadocomo um “sacerdócio” era“meio illicito de vida”, faziapropaganda de doutrina con-tra a Religião do Estado,ofendia a moral vivendo comuma “amásia” na casa ondefuncionava a escola.

A foi professora foi nomea-da e não tomou posse no pra-zo regulamentar

A foi professora foi nomea-da e não tomou posse no pra-zo regulamentar

Quem deflagra o processo(representação)

Demais envolvidos

Cidadão Luiz Alves da RochaBarretoConselho Superior de Instru-ção PúblicaDiretor da Instrução PúblicaConselho Municipal de Ins-truçãoSeção de RecursosPais de AlunosTabelião, Secretaria da Ins-trução, Escrivão.

Conselho Municipal de Ins-truçãoDiretor da Instrução PúblicaConselho Superior de Instru-ção Publica

Secretaria Geral da InstruçãoPública

Conselho MunicipalDiretor Geral da InstruçãoPúblicaSecretaria da Instrução Públi-ca

Desfecho

O ConselhoMunici-pal dianteda defesa do acu-sado entendeuque “desmanchamtodas as [..] daacusação”.

O Diretor da Ins-trução Públicasuspendeu a penade multa

O diretor de Ins-trução Pública nãoaplicou a pena demulta previstapara a falta come-tida.

166Episódio 19 – Professor Leopoldino de Paula Fernandes, Bairro do Taboão, município de Cunha, 1888-89. Processo,MIP – AESP.

167Episódio 20 – Professora Ambrosina de Toledo, Vila de Cotia, 1888-89. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

168Episódio 21 – Professora Claudina Elisa de Medeiros, Parahybuna, 1889. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

Quadro XVIProcessos deflagrados sob vigência do Regulamento da Instrução Pública

de 22 de agosto de 1887 (Lei nº 81 de 6 de abril de 1887).

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Árêas 21/09/1887 a17/02/1888.Professor PedroAlves Marques169

Bairro de Santa Bár-bara, município deSão José dos Camposfevereiro de 1888 a 31/04/1888170

Freguesia de SãoBernardo, Capital deSão Paulo [...]/1887 a31/01/1888. Processoadministrativo contraa Professora PúblicaAntonia VidalDomingues171

PindamonhangabaNovembro de 1888 aabril de 1889.Professor Napoleãode Paula França, 3ªCadeira de PrimeirasLetras172

O Professor Pedro AlvesMarques da escola deVarginha publica no JornalCorreio Paulistano uma ma-téria onde denuncia a prote-ção concedida pelo Conse-lho Municipal às práticas doProfessor ZabulonRaymundo de Oliveira Salles,responsável pela 1ª CadeiraFeminina de Primeiras Letrasde Áreas

A Professora Pública MariaGertrudes dos Santos Perei-ra é acusada de não ter enca-minhado o mapa mensal dafreqüência de sua escola.

A professora é acausadapelo Conselho Municpal porter reassumido o exercício desuas funções em prazo queexcedeu à data regulamentar.

O Professor é acusado peloPresidente do ConselhoMunicipal de Instrução deprocedimento irregular dian-te dos alunos e em espaçospúblicos como ruas e ven-das. O vício do álcool o leva-ria ao cometimento de desa-tinos em público com ofen-sas à moralidade da instru-ção.

Diretor Geral da InstruçãoPúblicaConselho Municipal deinstrução Pública

Conselho Municipal deInstrução PúblicaDiretor geral da InstruçãoPública

Conselho Municipal deInstruçãoDiretor Geral de InstruçãoPúblicaDr. José Luis T., médicoAgência do Correio,Freguesia de São Bernardo

Conselho Municipal deInstruçãoSeção de RecursoDiretor Geral de InstruçãoPúblicaJuiz Municipal, Escrivão,Oficial, Vigário, Contador,Advogado (da parte doprofessor acusado) eTestemunhas

O Presidente doC o n s e l h oMuncipal reúneoutras faltas doprofessor Pedro esugere ao Inspe-tor Geral a aplica-ção de multa novalor do dobrodos vencimentosmensais do acusa-do.

O Conselho Muni-cipal de Instruçãoaplicoumulta de 20$000 àprofessora

169Episódio 22 – 4996 01. Professor Pedro Alves Marques, Áreas, 1887-88. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

170Episódio 23 – 4996 01. Professora Gertrudes dos Santos Pereira. Bairro de Santa Bárbara, São José dos Campos.1888. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

171Episódio 24 – Professora Antonia Vidal Domingues, São Bernardo, 1887-88. 4996 01. Processos, MIP – AESP.

172Episódio 25 – 4996 01. Professor Napoleão de Paula França, Pindamonhangaba, 1888-89. 4996 01. Processos, MIP– AESP.

Fonte: Processos inscritos na ordem 4996 01, Série Manuscritos de Instrução Pública – AESP.

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O conjunto dos processos acima revela a ação de diferentes agentes: Conselho Municipalde Instrução, o Conselho Superior, Secretaria Geral da Instrução, Diretor da Instrução, além dejuízes, escrivães, advogados, médico, pais de alunos e professores. Constituem os alvos dosprocessos quatro professoras e três professores. As sessões dos Conselhos eram devidamenteregistradas pelo secretário e podiam ter a seguinte forma dada pelos registros da quarta sessãodo Conselho Municipal da Capital de São Paulo.

Aos tres dias do Mez de Novembro de Mil Oitocentos oitenta e sete, n’esta ImperialCidade de São Paulo, em casa de residência do Sñr. Manoel Antonio Dutra Rodrigues –á Rua do Carmo nº 9 – ás cinco, e meia horas da tarde, presentes todos os Membros doConselho, o Snr. Presidente declarou aberta a presente Sessão. (4ª Sessão do ConselhoMunicipal da Capital de São Paulo, 01/11/1887, E01661 – AESP).

O expediente da quarta sessão, foi dado pela leitura de um ofício do Inspetor do TesouroProvincial, este que requisitava o “fac simile” das assinaturas dos três membros do Conselho deInstrução da Capital paulista, que eram: Manoel Antonio Dutra Rodrigues, Antonio GabrielFranzen e Francisco Rangel Pestana.

173

Na seqüência, foi lido um ofício da parte do Diretor geral da Instrução Pública, Dr. ArthurCésar Guimarães, que solicitava informações ao Conselho a respeito da seguinte denúnciaanônima.

Desejamos saber de V. Sa. Se o tempo que os professores públicos dão Aula, são, apenasduas horas, isto é – abrir ás dez ... e tanto, e fechar ás doze! Isto se dá com a professorada rua do Gazometro! A continuar assim, não vale a pena ter filhos em tal escola! Rogamosa V.Sa., dar providencias; ao contrario teremos de ir aos Jornaes. Assignado Os Pais defamília 18-09-87. (4ª Sessão do Conselho Municipal da Capital de São Paulo, 01/11/1887, E01661 – AESP).

De acordo com o registro do secretário: “O Snr. Dr. Pestana, declara que, tendo procuradocolher todas as informações necessárias, a este respeito, nada soube que levasse o Conselho aproceder contra a Professora; devolvendo-se o anonymo ao Diretor”. O encaminhamento foiaprovado e assinado pelos membros do Conselho. A urgências impostas pelos novos tempossão sentidas pelo Conselho da capital. Os tempos sociais promovem uma redimensão que impelepela especificidade do tempo escolar.

Para Viñao Frago (1996) os tempos escolares precisam ser considerados a partir de “susrelaciones y correspondência – u oposición – com otros tiempos o sistemas sociales” (p. 51). O

173Rangel Pestana pediu sua exoneração do cargo na 13ª sessão do Conselho de Instrução da Capital paulista, ocasião naqual a Câmara Municipal não se julgou competente para definição do caso, sugerindo o encaminhamento para oDiretor Geral da Instrução Pública. Documento assinado pelo secretário José Guilherme da Costa. Rangel provavelmentetenha sido substituído por Vicente Ferreira da Silva, membro que integra o Conselho nos registros de sessõesposteriores. E0661 – AESP

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autor indica a importância de explicitação das “relaciones entre el tiempo o tiempos escolares yotros tiempos sociales tales como los ritmos diários – comida, sueño, trabajo, ócio,desplazamientos,... – los fines de semana o las vacaciones annuales”. (p.52). Estas influênciasrecíprocas entre os tempos social e escolar possibilitariam a compreensão do trabalho escolarcomo meio disciplinador, mecanismo de organização e racionalidade curricular e instrumento decontrole externo, “es decir, como aspecto básico condicionante y condicionado por la culturaescolar”. (p. 53).

Uma amostra da influência recíproca dos tempos social e escolar pode ser vista na“indicação” do Comendador Franzen na 12ª sessão do Conselho de Instrução da capital, anode 1889.

Parecendo-lhe de proveito para o ensino primario em geral a mudança do actual horário,visto uma parte das professoras servirem-se das estradas de ferro; attendendo a que oensino assim perde quando menos uma hora de trabalho; autorisado pelo §único do Art.161, sem esquecer de que a hora, em geral, do almoço, entre nós, é de 8 ½ ás 9horas,indica que se officie ao Dr. Director da Instrucção Publica pedindo sua approvação nosentido de principiarem os trabalhos escolares ás 10 horas da manham até as tres datarde, em vez de durarem, como ate aqui – das 9 ás 2. O aproveitamento de uma hora emfavor do ensino publico lhe inspira a presente indicação para que siga seu destino se foraceitável. (12ª Sessão do Conselho Municipal da Capital de São Paulo, E01661 – AESP).

Adiada para a sessão seguinte, a discussão sobre a mudança no horário destinado aocumprimento do exercício escolar diário, contava com o apoio de Rangel Pestana e do Presidentedo Conselho, Manoel Antonio Dutra Rodrigues. O próprio autor da medida se incumbiria deencaminhar a indicação ao Diretor geral da Instrução Pública, sob a justificativa de “traser lucroaos alumnos pelo aproveitamento do tempo”. (13ª Sessão do Conselho Municipal da Capital deSão Paulo, E01661 – AESP). As sessões dos conselhos também constituíam instâncias decelebração de algumas realizações da Instrução. Como se pode deduzir da 44ª sessão doConselho da Capital, realizada às 17:30h do dia 24 de janeiro de 1889 na residência do Presidentedo Conselho, situada à R. do Carmo, nº 9. Naquela sessão, o expediente era dado pela realizaçãodos exames escolares no final do ano de 1888 na zona de atuação compreendida pelo sr.Franzen. Os trabalhos dos professores D. Eulina, D. Maria Stephania, João Machado. D. RitaCarolina, Jose Alves Sza. Pinto, D. Anna R. Nóbrega, Antº. Monteiro Guimarães e D. Augustade Paula Petitat e o marido Gustavo Wertheimer eram reconhecidos na Sessão do Conselho. Osexames eram marcados pelo Conselho Municipal, sendo um evento de caráter público. Porocasião deste evento ocorrido na escola da professora Augusta de Paula Petitat

174, esta teria

174D. Augusta Petitat Wertheimer – No ano de 1897, será adjunta da diretora (D. Felicia Puiggari Sola) na seção femininado Grupo Escolar, situado à rua de Santa Thereza, n. 20, 2º Distrito do norte da Sé. Ensino público, Almanak doEstado de São Paulo, 1897. p. 37. Biblioteca do AESP.

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convidado ao “Exmo. Snr. Conselheiro, Lioncio de Carvalho”, que teria presidido a “distribuiçãode premios, como para assisitir aos diversos cantos dos alumnos acompanhados ao piano peloseu professor, marido da professora”. (44ª Sessão do Conselho Municipal da Capital de SãoPaulo, 24/01/1889. E0661 – AESP).

Os exames constituíam um acontecimento social de promoção da escola pública nos anosterminais da monarquia e, além de comporem a pauta da Sessão do Conselho, também eraparte integrante do relatório periodicamente apresentado pelos professores.

A estas festas, que costumo fazer com o maior brilhantismo possível, concorrem aImprensa local, e os principaes Professores Públicos e Particulares desta cidade, alem demuitos senhores cavalheiros, os quaes, de ordinário saem saptisfeitos, confe. se externãono livro de visitas. (Professor João D’Oliveira Fagundes, Escola Publica 3ª Cadeira doSexo Masculino de Campinas, 4 de novembro de 1885. 4920 02– Série Ofícios Diversos– AESP).

Os exames das escolas públicas tinham uma periodocidade anual e aconteciam nofinal do ano. A data era marcada pelo inspetor distrital e também a este competia a indicaçãodos integrantes da comissão, que podiam ser padres, vereadores, professores das escolasparticulares ou pessoas de prestígio social. Tais eventos eram o alvo da denúncia de RangelPestana no dia 22 de novembro de 1885, que via no problema, um motivo para reclamar areforma da legislação vigente. Há uma sugestão de que havia a prática de “empréstimos” dealunos (com bom aproveitamento) de uma escola para outra, observação com base no“facto de apparecerem os mesmos examinandos em varias escolas”. “Esse facto, ainda quenos custe denuncial-o, não e novo na capital, nem ignorado por autoridades fiscaes doensino”. As comissões responsáveis “arranjadas de momento” veriam na realização dosexames o “simples” cumprimento da “formalidade da lei”. (22 de novembro de 1885, AProvíncia de São Paulo, p. 1).

Era início de 1889, quando o Conselho da Capital celebrava o êxito dos exames realizadosem algumas das escolas públicas e, ao mesmo tempo demonstrava preocupação com outrosacontecimentos verificados nas mesmas escolas, tais preocupações eram apresentadas como sefossem comuns ao ilustre convidado, o ministro do Império, Dr. Leôncio de Carvalho.

Infelizmente não foi completa a sua satisfação porquanto professores há que mostrão-seadversos ao cumprimento da disposição do Art. 112§ do Regulamento, para cujo pontopede attenção do Conselho, por que não pode entender – instrucção sem educação eeducação sem religião. E assim sendo lembra para que sollicite-se do Exmo. BispoDiocezano a designação de um Sacerdote para a explicação do cathecismo na Parochiada Sé, onde só é feita aos Domingos, e por tanto sem aproveitamento ás escolas publicase outros externatos. (44ª Sessão do Conselho Municipal da Capital de São Paulo, 24/01/1889. E0661 – AESP).

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A questão do ensino de religião nos interstícios da instrução reaparece como um problemaem meio aos êxitos da escola pública do final da monarquia. Enquanto o registro da sessão doConselho da Capital sugere que o Ministro Leôncio teria levado a boa impressão da execuçãodo programa de ensino, apurada na sessão dos exames, havia a observação da preocupaçãocom a relação instrução – educação – religião. Além dos exames da escolas públicas, do ensinode religião, as sessões de Conselho também incluíam nas suas pautas, assuntos como a reformade escolas (pintura, colocação de janelas, forros, calhas, latrina), aluguel de sala para as Sessõesdo Conselho, além da aquisição de móveis, mobília e livros para a secretaria do Conselho, sobjustificativa da necessidade de “principiar a coordenar-se o respectivo Archivo”. (44ª Sessãodo Conselho Municipal da Capital de São Paulo, 24/01/1889. E0661 – AESP). Até esta data jáhaviam sido realizadas 44 sessões do Conselho de Instrução Pública da Capital paulista, todaselas em espaços domésticos, provavelmente na casa do sr. Manoel Antonio Dutra Rodrigues,Presidente do Conselho.

A questão da mudança no horário de funcionamento da escola era retomada na 46ª sessãodo Conselho, ocasião na qual aos motivos que justificavam a demanda eram acrescidos outros,cuja natureza era a exposição da escola pública ao julgamento público.

(...) rara será a escola que tenha alumnos, para freqüência legal, antes de 10 horas, porser geralmente as refeição do almoço entre nove e nove e meia; já porque forão estasmesmas rasões que motivaram a mudança de horário na Secretaria do Governo e ThesouroProvincial, e finalmente porque os que tiveram de servir-se das estradas de ferro ou terãode embarcar-se ás 6 horas da manham, o que é grande sacrifício, mormente no inverno,ou ás 10, únicos trens de passageiros, alem do mau juízo que qualquer visitante formariada nossa Instrução Publica quando por acaso se lembrasse de visitar uma de nossasescolas ás nove horas da manham. (46ª Sessão do Conselho Municipal da Capital de SãoPaulo. E0661 – AESP).

A atuação do Conselho confere amostra significativa da escola na fase terminal damonarquia, configurando uma situação na qual a escola é colocada como um evento espetaculare aberto ao público. A inflexão do tempo escolar sobre o tempo social é marcada pela ameça deum novo tempo político (república). O que abre espaço para parafrasear a reflexão de Hynes,tratava-se de pensar a escola da monarquia como a “afirmação do espetáculo e da grandiosidade,da extravagância e da bravata, numa época em que o poder real já estava decaindo. (apudCannadine, 1997 in: HOBSBAWN, p. 135).

A partir de agora, nos deteremos sobre a atuação dos Conselhos em face de situaçõesconflitivas demandadas pela instauração de processos administrativos e disciplinares, referidosno quadro 227. Dos sete episódios concentrados nos sete processos, quatro, dizem respeito aquatro professoras. Os motivos dos processos gravitam em torno da ordem temporal, trêsincidem sobre o descumprimento de prazos estabelecidos e no quarto processo, o descumprimentodo prazo estabelecido é estritamente vinculado à freqüência escolar de alunos.

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A professora Antonia Vidal Domingues, da “Escola publica de 1º grau da freguezia de S.Bernardo”

175 foi enquadrada em processo administrativo no mês de setembro de 1887, por

“excesso do praso de 30 dias para reassumir a cadeira”. (Cf. art. 115 do Regulamento daInstrucção Provincial de 22 de agosto de 1887). No dia 13 de setembro de 1887, a Professorarecebeu a Portaria nº 91, encaminhada pelo Diretor Geral da Instrução Pública. No dia 19 desetembro de 1887 a professora recebeu a intimação (data de 15) trazida na “mala” do agente doCorreio daquela freguesia. (Ofício da Professora Antonia Vidal Domingues encaminhado aoPresidente do Conselho da Capital, Dr. Manoel Antonio Dutra Rodrigues. Freguesia de SãoBernardo, 24/09/1887, Episódio 21, 4996 01, Processos, MIP – AESP). A intimação eraencaminhada pelo secretário do Conselho Municipal de Instrução, concedendo à acusada, oprazo de oito dias para efetuar a sua defesa. A cronologia dos acontecimentos revela a ação doConselho, que não aparece de imediato na autuação da falta da professora mas é responsávelpela informação dos acontecimentos da escola às autoridades. O Diretor Geral instaurou oprocesso com a emissão da portaria, o secretário do Conselho instruiu sobre a intimação e otempo de defesa. O motivo pelo qual a Professora Antonia estava afastada parece ter a ver coma sua formação. Ela estava realizando as provas do 3º ano do Curso Normal quando foi informadada sua reprovação numa das cadeiras.

A 1º de Agosto, na qualidade de alumna do 3º anno da Escola Normal, vendo do editalaffixado na porta do respectivo edifício a minha perda de anno na cadeira de Physica eChimica decretada pela congregação dos Professores, em sessão de 30 de julho, comoincursa na primeira parte do art. 64 do regulamento em vigor naquela instituição. (24/09/1887, Episódio 21, 4996 01, Processos, MIP – AESP).

A professora (estudante do Curso Normal) acusada estava surpresa com a deliberaçãoda Congregação

176 pois entendia que embora tivesse perdido alguns pontos das sabatinas que

aconteciam todas as semanas na cadeira de Physica e Chimica, apresentara justificativas plausíveis:“um pequeno desastre por incêndio de que fui victima, assim como uma filhinha, e, mais tarde,constantes encommodos provenientes do estado em que me achava”. A normalista reuniu os

1751 S. Bernardo – Povoação situada ao sul da capital. A sua origem data de 1735, data em que o paulista Antonio PiresSantiago fundou a capela da Senhora da Conceição. Até 1876, não havia nenhum edifício público que não fosse amatriz. A população era de 4787 almas, destes 6 eram eleitores. MARQUES, 1980, p. 233, vol 2.

176Congregação – Conselho, cujas reuniões periódicas deviam contar com pelo menos metade dos professores da EscolaNormal que, a convite do diretor e, sob a sua presidência, discutiam as questões da instituição: programa de ensino,faltas de alunos, pontos para os exames, punição para delitos. A Congregação deveria se reunir no último dia de cadamês e, extratordinariamente, quando fosse convocada. (Capítulo VI, Regulamento da Escola Normal de 1887).Sobre aspectos intelectuais e humanos das vidas dos 32 professsores que passaram pela Escola Normal Paulista noperíodo entre 1846 e 1890, ver Márcia Hilsdorf Dias (2002). A autora reúne informações biobibliográficas encontradasem diversas fontes de modo a produzir a relação entre a inserção profissional dos professores aos embates políticos,ideológicos e culturais, especialmente no período que explicita o embate Império versus República. Ver mais emDIAS, M. H. 2002.

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documentos comprobatórios desta situação e, junto de outras petições, solicitou nova sessão daCongregação, que se realizou no dia 8 de agosto de 1887. O resultado foi o indeferimento e asustentação da perda do ano.

Diante do resultado, a normalista decidiu recorrer ao “Exmo. Snr. Presidente da Província”que, sendo a autoridade “suprema” teria a competência para a “decisão final”. O despacho daparte do Presidente viria aos 26 de agosto de 1887, sustentando o ato da Congregação (EscolaNormal) e cobrando da professora o dever de reassumir a cadeira. Sobre o atraso no retorno àcadeira, a professora se fazia valer da lei, e tecia a transição da vigência do Regulamento de1869 para o Regulamento de 1887.

Considerando ainda em vigor, com relação a este facto, as disposições regulamentares177

anteriores á publicação do regulamento de 22 de Agosto, as quaes sujeitaram á licença doExmo Governo da Província o regresso á Cadeira do alumno-mestre que deixasse aEscola Normal, tanto mais quando esse regresso emanava de um acto anterior a data docitado regulamento e ainda em pleno domínio d’aquelas disposições, parecendo-me que,para o caso especial de perda de anno, não havia a mesma disposição, expressa e terminantedo actual regulamento de obrigatoriedade de exercicio de cadeira, independentemente delicença, no praso de 30 dias. (24/09/1887, Episódio 21, 4996 01, Processos, MIP –AESP).

Demonstrando conhecer a legislação em vigência, a professora conta que, com apermissão do Diretor Geral da Instrução, solicitou junto ao Governo Provincial, a manutençãoda licença e, apresentando um atestado médico (10/09/1887), provava não estar em condiçõespara “sahir fora da capital por estrada de rodagem”. E assim que a professora consegue fornecerao Conselho de Instrução da Capital paulista a equação matemática que a desabonaria daimputabilidade da falta.

A 6, indo meu marido a sua repartição saber do despacho, pela recepção do novoregulamento de 22 de agosto de, conhecer a obrigação que me assistia de reassumir oexercicio no praso de 30 dias, imposto pelo artigo 115 do mesmo regulamento, que só noreferido 6 de setembro me veio ás mãos, por intermédio de meu marido, suppondo-me,então; dentro do praso dos 30 dias”. (24/09/1887, Episódio 21, 4996 01, Processos,MIP – AESP).

Tendo sido informada oficialmente no dia 6 de agosto, tendo ocorrido a sessão daCongregação da Escola Normal no dia 8 de setembro, a professora alega ter assumido a cadeirano dia 9 “primeiro dia útil subseqüente”, tal qual determinava o ofício do Presidente do Conselhode Instrução. Quando teve “sciencia da disposição expressa no regulamento, já havia excedido

177 Disposições gerais – Normas jurídicas integrantes de um diploma legal que abordam assuntos de caráter genérico,

diretamente ligados ao texto e que, segundo a boa técnica, são agrupadas num só capítulo, embora seguindo a seriaçãonatural dos artigos. Ao contrário das disposições transitórias, apresentam duração indeterminada. ACQUAVIVA,2000, p. 534-535.

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praso, e, sendo os dous seguintes, um feriado e outro, santificado, só a 9 podia reassumir oexercicio”.

(...) jamais passou em meu espírito o propósito de iniciar a transgressão de umregulamento, tão sabiamente elaborado para o aperfeiçoamento do mais importanteelemento do Progresso d’esta Província, mormente sob a direção de um funccionario tãorespeitável [...] illustrado, como V Sa. que, com tanta sabedoria e circumspecção,desempenha o honroso cargo que lhe foi dignamente confiado, esperando que as razõesque humildemente expuz attenuarão a falta que se me imputa. (24/09/1887, Episódio 21,4996 01, Processos, MIP – AESP).

As alegações da professora foram levadas à sessão do Conselho de Instrução da capital,realizada no dia 27 de outubro de 1887. Na seqüência, a defesa da professora foi encaminhadapara o Diretor Geral da Instrução Pública que, aos 31 dias de janeiro de 1888 emitiu o seguintedespacho.

De conformidade com a informação do Conso. Mpal., sendo procedentes os motivosallegados pela professora a que refere-se o presente processo, relevo-o da multa, dando-se o conhecimento deste despo. ao mesmo Conselho pa. q. o faça constar á [...] professorae archive-se. Spo. 31, 1º 88,Arthur César Guimarães (Episódio 21, 4996 01, Processos, MIP – AESP).

Em março de 1888, no Bairro de Santa Bárbara, a professora Maria dos Santos GertrudesPereira dos Santos, foi notificada com uma portaria encaminhada pelo Secretário do ConselhoMunicipal de Instrução Pública de São José dos Campos

178, pelo cometimento da infração dos

arts. 71 e 112 § 15 do Regulamento de 22 de Agosto de 1887.A professora respondendo aos “Illmos Senrs”(membros do Conselho Municipal) se

propõe a explicar “os motivos involuntários” da falta cometida.

Exigindo a nova Reforma que entrou em execução em Agosto o numero de 20 alumnosfreqüentes para o recebimento de nossos vencimentos; nos meses de Setembro e Outubro,por ter só 14 alumnas matriculadas e 9 frequentes, e nos mezes seguintes até o fim doanno, não tendo se augmentado o numero das alumnas matriculadas, julguei desnecessárioaprenzen, digo, aprezentar o Mappa mensal, visto que não tinha direito de receber meusvencimentos por falta do numero legal; alem disso como Mae que sou, estava com oespírito e coração preocupado com grave incommodo em dous filhos meus, e não tendoainda pleno conhecimento do actual Regulamento ignorava que essa falta involuntáriamotivaria a pena de multa a que estou sujeita. (Bairro de Santa Bárbara, 22 de março de1888, Episódio 20 – 4996 01. Processos – AESP).

178 Era denominada São José do Parahyba até o ano de 1871, ano no qual a lei provincial de 2 de abril, mudou a

denominação para São José dos Campos. Até o ano de 1876, possuía casa de Câmara, cadeia, igreja matriz e as capelasde São Benedito e Senhora do Rosário. A população era 13800 almas, sendo 1255 escravos, 32 eleitores (1876).Também possuía duas cadeiras de instrução pública primária para ambos os sexos e uma particular para o sexomasculino. MARQUES, 1980, p. 236-237, vol 2.

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O Conselho Municipal de São José dos Campos emitiu o seguinte parecer.

Multada em 20$000 a Professora D. Maria Gertrudes dos Santos Pereira, por não terexhibido o mappa relativo ao mez de Novembro do anno p. p., seja remetido o processoao Dr. Director da Instrucção, nos termos do art. 187 do Reg., para ser achivado naSecretaria Geral. S. José dos Campos, 17 de Abril de 1888.Franco. Paes de BrittoFranco. De Oliveira LimaDonato F. Mascarenhas (Episódio 21, 4996 01, Processos, MIP – AESP).

O Conselho Municipal de Instrução Pública da Vila de Cotia179

(Jose Joaquim PedrosoJunior, Luiz Antonio Candido de Faria, Joaquim Jose da Luz) notificava (23/10/1888) ao DiretorGeral da Instrução Pública, o caso da professora D. Ambrosina de Toledo que, arquivado pelaSecretaria Geral da Instrução era repassado ao Diretor pelas mãos do secretário daquelarepartição:

tendo-lhe sido marcado, por despacho de 25 do dito mez, o prazo de 30 dias para tomarposse da cadeira . – Conseqüentemente, só dentro do lapso de tempo decorrido de 19 deSetembro a 18 de Outubro devia a alludida professora entrar em exercicio. – Do officioretro verifica-se que só o fez a 20 de Outubro, isto é fora do praso que lhe foi assignado,pelo que parece-me caber ao caso a applicação do art. 174 §7º do reg. de 22 de Agostodo anno findo. (Secretaria Geral da Instrução Pública de São Paulo, 20 de julho de 1889,Thomaz P. do Bonsucesso Galhardo (secretário), Episódio 24 – 4996 01. Processos –AESP.

Em 29 de outubro de 1888, o Diretor Geral encaminhou ofício (nº 1100) para o ConselhoMunicipal de Cotia, instruído de documentos relativos e uma portaria na qual determinava àprofessora Ambrosina dez dias para sua defesa. A notificação à professora foi realizada peloConselho Municipal no dia 5 de novembro de 1888 (Sala das Reuniões do Conselho Municipalda Villa da Cotia, 5 de Novembro de 1888, Episódio 24 – 4996 01. Processos – AESP).

A professora procedeu à defesa no dia 12 de novembro de 1888.

(...) declaro que si comecei a funccionar no dia 20 de Outubro e não antes, foi por faltade casa, por que nesta villa não há casas de aluguel; as que existem, umas são occupadaspor seus proprietários, e outras pertencentes a Fazendeiros ou moradores de sítios. Parase obter uma destas é preciso recorrer ao prestigio de algumas das pessoas preponderantes

179Cutia – Incialmente denominada de Acutia. A primeira capela foi fundada no local onde ficava o sítio do cidadãoAntonio Manuel Vieira (1876), sendo tal feito atribuído a Fernão Dias Paes e Gaspar Godói Moreira. A segundacapela foi elevada à freguesia no ano de 1723, sendo o primeiro vigário o padre Salvador Garcia de Pontes, e à vila porlei provincial de 2 de abril de 1856. Até o ano de 1876, possuía uma “decente”matriz e uma casa de detenção em “mauestado”. Eram-lhe sujeitas (até 1876), as capelas de São João de Carapicuíba, do Senhor Bom Jesus de Itaqui, daSenhora de Brotas no bairro de São João, e a da Senhora da Penha. Também possuía duas cadeiras de instrução públicaprimária para ambos os sexos. A população era de 5024 almas, sendo 504 escravos e 12 eleitores (1876), 112 fogos.MARQUES, 1980, 210-211, vol. 1.

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do lugar e que se prestem a servir de maedianeiros, o que não e fácil. Do exposto concluoque a falta comettida teve por origem – força maior independente de minha vontade.Professora Ambrosina de Toledo, Villa de Cotia, 12 de novembro de 1888, Episódio 24 –4996 01. Processos – AESP).

Atendendo à solicitação do Diretor Geral, o Conselho Municipal informava que era“verdade o que allega a referida professora em sua defesa, porque aqui chegando no dia 18 deOutubro, e não tendo ainda podido obter nesse dia uma casa para sua residencia, e nellla abrirsua escola, não podendo por isso entrar em exercicio, e sendo o dia 19 do mesmo mez feriadoNacional, só conseguio nesse dia obter uma casa, para entrar no dia 20 em exercicio, como defacto entrou. (Conselho Municipal da Villa de Cotia, 22 de novembro de 1888, Episódio 24 –4996 01. Processos – AESP).

Diante dos esclarecimentos prestados pelo Conselho, o Diretor geral “releva” a pena demulta e, por intermédio do Conselho, pede que a referida seja comunicada. (São Paulo, 31 dejulho de 1889, Arthur César Guimarães).

Infração parecida cometeu a professora Claudina Elisa de Medeiros, que se atrasou três diasna posse da escola de Parahybuna. Aos 6 dias de julho de 1889, o Diretor da Instrução Pública, pormeio de seu secretário, Thomaz Paulo do Bom Sucesso Galhardo, delegava ao Conselho Municipalde Parahybuna, a competência de informar à acusada o tempo para sua defesa.

Sai de S. Paulo com tempo de chegar a esta cidade para entrar no exercicio do meumagistério antes de findar-se o prazo que me foi concedido, ma sendo acommetida deuma forte bronchite e para peiorar, dezandando um grande temporal que durou tres dias,e fazendo eu a viagem em carro puchado a Bois, tive de gastar cinco dias em minhaviagem a qual foi a mais penoza dar se póde, attendendo ao péssimo estado em que ficoua estrada que de Guarareira se dirige a esta Cidade. Verá por tanto. V Sa. que a falta pormim commetida foi motivada por força maior, e não voluntária, pois o meo dezejo eraentrar quanto antes no exercicio porq. não tendo recursos próprios e somente o meuemprego, o que me cumpria era entrar quanto antes no exercicio, o que contra minhavontade não aconteceu. (Professora Publica Claudina Elisa de Medeiros, Aula Publica da1ª Cadeira do sexo feminino da cidade de Parahybuna, 30 de maio de 1889, Episódio 24– 4996 01. Processos – AESP).

O Conselho Minicipal enviou a defesa produzida pela professora ao Diretor Geral daInstrução Pública que emitiu o seguinte parecer.

Julgando improcedente a prova do motivo allegando – de força maior – relevo a professoraDa. Claudina Eliza de Medeiros da multa imposta por posse fora do praso concedido. Dê-se conhecimto. disso ao interessado ao [...] Govo. em complemento ao officio nº 529 eao Conselho Municipal interessado para sciencia da mesma professora. Torne-se a notaprecisa tanto no apontamto da cadeira, como em a estatistica e archyve-se. S. Paulo 12de Julho de 1889.Arthur Car. Guimarães. (Episódio 24 – 4996 01. Processos – AESP).

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Muitos dos motivos alegados pelas mulheres que, no exercício da profissão de professoras,se viam enquadradas em processo, alegavam, no ato de suas defesas, argumentos que incidiamsobre a doença do filho, a bronquite, o temporal, o incêndio, motivos dados por uma “forçamaior” ou “motivos involuntários” que colocavam a força da natureza em oposição à força da lei.A força da natureza era correlata da forma feminina que se despontava pela maternidade eafinidade com a função do magistério. A questão de gênero aparece como um aspecto dedistinção entre os processos que envolvem professoras e professores. Nenhum dos processos(examinados) que envolveram a figura feminina revelaram algum matiz político partidário,ideológico, alguma ação que se chocasse com a questão escravista, religiosa, com o podervigente. O destaque para estas notas não é depreciativo da participação feminina vista por meiodos processos, mas constitui um ingrediente a mais para compreender o reconhecimento dacondição feminina da época como uma qualificação desejável para o exercício do magistério.

180

A seguir serão tratados os três últimos processos (examinados) que envolveram professores.É de se notar que os três, por vias específicas de cada episódio, colocam em questão a ação doConselho Municipal de Instrução.

Em Arêas181

, o Conselho Municipal de Instrução Pública era o alvo da denúncia publicadano Jornal Correio Paulistano em caráter anônimo. O motivo da denúncia era dado pela supostaproteção que o Conselho daria ao descumprimento do horário previsto para a duração dasaulas do Professor Zabulon Raymundo de Oliveira Salles. No dia 20 de setembro de 1888, arevelação do autor da denúncia teria se apresentado no Correio Paulistano.

Declaro que fui o autor dos dois artigos que appareceram publicados no Correio Paulistanocom referência á escolas existentes nets cidade e seu município.Assim o querem, saem e fecham.

180Lanuri apresenta uma tabela com o movimento na matrícula da Escola Normal paulista, demonstrando que entre osanos de 1847 e 1866 o número anual de matrículas oscilou entre o mínimo de 11 e o máximo de 21 (p. 17) Entre os anosde 1875 e 1878, houve 176 matrículas anuais masculinas e 79 femininas. (TANURI, 1979, p. 33). O número demulheres que exerciam a profissão do magistério ao longo do século XIX sempre foi inferior ao número de homens,mas mudou no final do século. Na terceira fase de reabertura da Escola Normal, verificou-se que, entre os anos de 1880e 1889, foram diplomados 51 homens e 64 mulheres normalistas. (TANURI, 1979, p.41). Do total de normalistasdiplomados entre 1890 e 1910, 73,52% eram mulheres e 26,48% eram homens. (TANURI (1967, p. 20). Outraperspectiva que verifica a revisão sobre a condição da mulher é dada por Roque Spencer Maciel Barros, para quem amudança estaria relacionada com a “Ilustração brasileira” (movimento nascido entre o ano de 1868 e 1870) e a suaexpressão na formação da opinião pública, o que teria colaborado para dar início ao processo de emancipação damulher. O autor exemplifica com a presença de quatro moças na Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro (1959,184).Sobre a profissionalização da professora na escola da Província de Minas Gerais, ver GOUVEIA, M. C. Mestre:profissão professor (a) – processo de profissionalização docente na província mineira no período imperial. RevistaBrasileira de História da Educação. SBHE. Campinas: Editora Autores Associados. nº 2. 2001. p. 39-58.

181Áreas (Areias) – Sant’Ana e São Miguel das. Teve origem no estabelecimento de lavradores atraídos pela fertilidadedo solo. Foi elevada a cidade pela lei provincial de 24 de março de 1857. Até o ano de 1876, contava com a matriz, ascapelas de Santa Cruz e Senhora do Socorro, cadeia e casa de câmara, duas escolas públicas de instrução primária paraambnos os sexos, quatro escolas particulares e um colégio para instrução elementar. A população era de 5717habitantes, sendo 1897 escravos, 14 eleitores (1876) e 381 fogos. MARQUES, 1980, p. 91, vol. 1.

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E visto estar com a penna em punho aproveito o ensejo para peguntar aos illustres edignos membros do conselho municipal si a lei é igual para todos.Si é igual por que motivo o sr. Zabulon Raymundo de Oliveira Salles leccionaparticularmente das 7 horas ás 9 e das 9 ás 12 e meia quando é obrigado á dar aula das 9ás 2 da tarde?Si o sr. Zabulon está nas condições de ser protegido ou eu e o meu illustre collegaAntonio Braga também temos direito aos mesmos favores.VoltareiPedro Marques,Professor Publico. (Jornal Correio Paulistano, 20 de setembro de 1887, p, 2. Episódio22 – 4996 01. Processos – AESP).

O exemplar do jornal acima chegou às mãos do dr. Arthur César Guimarães, Diretor daInstrução Pública, no mesmo dia da publicação. Num ato de despacho, o Diretor encaminhou omesmo (exemplar de nº 9314) ao Conselho Municipal de Instrução Pública “a fim de darinformação”. No dia seguinte (21 de setembro de 1887), o Conselho Municipal endereçou umofício ao Diretor da Instrução.

Rezidindo em frente a casa do professor da 1ª cadeira e na qual funccionão em salasdistinctas a eschóla por elle dirigida, e a dirigida por sua mulher, a professora da 1ªcadeira, tenho observado, e nas vizitas que fiz as mesmas escholas observei, ser elle fielcumpridor de seus deveres impostos aos professores no Regulamento em vigor, como jáo era dos que impunha o Regulamento de 1869. (Luiz Augusto Chaves, Presidente doConselho Municipal, endereçado ao Diretor Geral da Instrução Publica, Dr. Arthur CezarGuimarães, Episódio 22 – 4996 01. Processos – AESP).

Para o presidente do Conselho Municipal, a denúncia era esclarecida pelo “despeito’’ doProfessor Pedro pela “completa decadência pela continua falta de assiduidade em sua eschóla”.

Como tinha procurado com alguma energia, tomando mesmo o encommodo de irvizitar siguida e inesperadamente a eschóla, impedir tal abuso, procura por tal meiomolestar me considerando-me protector de outros professores. Exercido como tenhoexercido, e ainda continuo a função n’esta cidade cargos públicos, diz me aconsciência e apello para sua população que no cumprimento dos meus deveresnunca fui protector de quem quer que fosse, e nunca tive protegidos, amigos ouinimigos. Costumo fazer justiça, costumo fazer justiça a quem a tem, tomando aomesmo tempo o mérito onde quer que elle se ache. Sei que com esse procedimentonão posso agradar aquellles que me sendo subordinados, não cumprem, como deve,as suas obrigações. (Luiz Augusto Chaves, Presidente do Conselho Municipal,endereçado ao Diretor Geral da Instrução Publica, dr. Arthur Cezar Guimarães,Episódio 22 – 4996 01. Processos – AESP).

O Presidente falava em nome de todos os membros do Conselho “da calumnia que nosfoi sacada, ainda que indirectamente pelo professor Marques”. No dia 24 de setembro o Conselhoemitiu um documento junto ao qual estava “devolvendo a VSa o Correio Paulistano” e demaiscorrespondências oficiais. A questão central da denúncia do Professor Marques, alteração do

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horário de duração das aulas era totalmente esquecida, dando lugar à supervalorização do atode confronto com a instância representada pelo Conselho Municipal.

Em additamento porem á mesma julga o Conselho Municipal conveniente pedir a VSauma repressão contra o procedimento do mesmo professor, Pedro Marques (EscolaPública do Bairro de Varginha, município de Áreas), quer relativamente á falta decumprimento de seus deveres, quer contra a calumnia que, revestido do seu cargo,assacou ao seu companheiro de magistério e aos membros do Conselho Municipal.E para que o Conselho Municipal não se esteja encomomodando em dar informaçõessobre quantas mofinas appareçam nos Jornaes, o Conselho ainda declara que o ProfessorPedro Marques [...] em publicas mofinas, algumas das quaes tem offendido a honra degrande parte das famílias d’esta cidade. (Luiz Augusto M. Chaves, Miguel Jose de MoraesCaetano, Oleigario Cassiano Rodrigues da Silveira, membros do Conselho Municipal deInstrução, endereçado ao Diretor Geral da Instrução Publica, dr. Arthur Cezar Guimarães,Episódio 22 – 4996 01. Processos – AESP).

Três dias depois (27 de setembro de 1887), Arthur César Guimarães emitiu o seguintedespacho.

J. aos papeis relativos á questão, responda se que ao Conselho Municipal assistecompetência para reprimir a falta do professor no cumprimento de seus deveres em vistado arto. 171 combinado com o arto. 184 §18 do Reg. de 22 de agosto ulterino.SPaulo 27-9-87.ACGuimarães (Episódio 22 – 4996 01. Processos – AESP).

O Professor Pedro Marques sofreu penas de suspensão do exercício da cadeira e multacorrespondente ao dobro dos seus vencimentos. O Conselho incrementou os motivos da“repressão” e neste ato, fazia valer a própria instituição. A apoio do Diretor Geral não constituíaa simples atitude de execução da legislação em vigor, mas a defesa de uma instância representativada ordem vigente.

Pindamonhangaba182

, 4 de novembro de 1888. O Presidente do Conselho Municipal deInstrução Pública, não pôde comparecer à sessão do Conselho, por “encommodo de saúde empessoa minha família”. Sugere a necessidade de convocação para uma sessão extraordinária.

Erão mais ou menos tres horas da tarde, quando, me dirigindo para casa, encontreicasualmente na rua o professor Napoleão de Paula França. Este veio immediatamente emdireção a mim e apresentando-me os seus atestados de exercicio pediu-me que os

182Pindamonhangaba – Senhora do Bom Sucesso de. Foi fundada pelo padre João de Faria Fialho, que nella edificou igrejae a dotou com patrimônio pelos fins do século XVII. Foi elevada a cidade pela lei provincial de 3 de abril de 1849. Atéo ano de 1876, a cidade possuía casa de Câmara, cadeia em edifício próprio, matriz (“belo templo”), as igrejas doRosário, de São José e nos subúrbios a capela dos Corrêas, Casa de Misericórdia, um pequeno hospital paramorféticos, quatro cadeiras de instrução pública primária para ambos os sexos, dois colégios de instrução elementar,647 fogos. A população era composta de 14636 almas, sendo 3718 escravos, 36 eleitores (1876). MARQUES, 1980,p. 169-170, vol. 2.

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assignasse. Observei que, sendo o lugar impróprio, apparecesse em casa de minharesidência e nehuma duvida teria em assignal-os. Foi quanto bastou para que o professordesacatasse-me em publico, dirigindo-me palavras insultuosas, e offencivas á moralidadepublica. Conservei a maior prudência, não me alterando absolutamente, mesmo por quereconheci que o referido professor não se achava em seu estado normal, pois, é causapublica e notória que o mesmo tem por costume alcoolisar-se. (Frederico MarcondesGomes, Presidente do Conselho Municipal de Instrução de Pindamonhangaba, 4 denovembro de 1888, Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP).

O Presidente do Conselho notou que “differentes pessoas” teriam presenciado o “grave”acontecimento que, em sua opinião deveria ser “prompta e severamente punido a bem da dignidadedo cargo que exerço por nomeação do Governo”. Mas a autuação sobre o caso não eraconsensual entre os demais membros do Conselho Municipal de Instrução.

Ora, em taes condições torna-se nulla a pena que deve soffrer o professor que desacatapublicamente e falta ao respeito devido o seu superior, e torna-se nulla por que sou levadoa pensar que o procedimento inconveniente e irregular do referido professor para com opresidente do conselho municipal encontrará sempre, como encontrou hontem todo oapoio por parte dos outros dois membros do conselho, que até o insufflarão para assimpraticar. (Frederico Marcondes Gomes, Presidente do Conselho Municipal de Instruçãode Pindamonhangaba, 4 de novembro de 1888, Episódio 25 – 4996 01. Processos –AESP).

Em seguida ao episódio, o professor Napoleão (3ª cadeira) teria ido “apressadamente”à casa de Jose V. Marcondes, membro do Conselho Municipal.

Em 23 de “9bro” de 1888 “às dez horas do dia na sala das audiências, aconteceria a“justificação” solicitada pelo presidente do Conselho Municipal, que relacionou as testemunhas(total de treze homens) para deporem e o justificado183 para a inquisição”. O caso, como se vê,escapou ao Conselho Municipal, à instância da repartição da Instrução Pública, para ser geridopelo Juiz Municipal de Pindamonhangaba, Dr. Candido M. de Cunha Bueno.

Dis Frederico Marcondes Torres, Presidente do Conselho Municipal de Instrucção publicad’esta cidade, que a bem de seus direitos tem necessidade e vem por isso requerer a VSa.que se digne admitil-o a justificar perante VSa. os seguintes itens:

1ºQue o professor publico da 3ª cadeira d’esta cidade Napoleão de Paula França, procedehabitualmente de modo irregular e de maneira a não gozar do respeito de seus discípulos.

2ºQue o procedimento do dito professor tem sido por demais escandaloso n’estes últimostempos por quanto anda o mesmo constantemente a provocar desordens nas ruas d’estacidade com insultos e [...] ora a uns, ora a outros.

183Refere-se à Justificação (Direito Civil) – Procedimento cautelar consistente na oitiva de testemunhas, visandodemonstrar a existência de fato ou relação jurídica, seja para simples documento e sem caráter contencioso, seja paraservir de prova em processo regular. ACQUAVIVA, 2000, p. 806-807.

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3ºQue há poucos dias estando o referido professor em uma venda n’esta cidade forão ahitantas as suas inconveniências que travou-se de rasões com o praça do destacamentoAntonio Fortunato B. sendo esbofeteado e deixando nessa ocasião de ser preso pelaintervenção do cidadão belisario de Godoy, que o recolheu para sua caza, em reconhecidoestado de embriagues, sendo o fato presenciado por mais de uma pessoa.

4ºQue o referido professor é dado habitualmente ao vicio de alcoolisar-se e n’esse estadocostuma a praticar desatinos em publico, em offensa da moralidade da Instrucção.

5ºQue n’esse estado encontrando-se o Suppte. em uma das ruas n’esta cidade no dia 3 docorrente com o referido professor este dirigiu-lhe em palavras obscenas insultos e offensas,desacatando-o assim publicamente e taes forãos os seus desmandos que tornou-se precisaa intevenção da policia, dirigindo-se apressadamente n’essa ocasião o dito professor paraa casa do Dr, Jose Vieira Marcondes membro do conselho municipal e onde nãoencontrando o Dr. Vieira d’ahi correu a ter com o Dr. Daniel Rezende, cunhado d’aquelleDr. e em casa de quem abrigou-se fugindo da policia. (Pindamonhangaba, 22 de novembrode 1888, Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP).

O Juiz emitiu requerimento convocando as testemunhas: Jose Ignacio da Silveira, EugenioOlegário Pereira, Belisario de Godoy, Benedicto Maria de Toledo, Francisco Fortunato Pires,Antonio Fortunato B., Manoel Franco. de Paula e Silva, João Vieira de Barros, Jose de CerqueiraLeite César, Bruno Lessa, Eloy d’Almeida, Capm. Adriano Ferras d’Araujo, Benedictod’Almeida Cezar. (Climério M. de Oliveira, escrivão, Pindamonhangaba, 22 de novembro de1888, Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP).

O Professor Napoleão constituiu “seu bastante procurador e advogado o Dr. José Fortunatoda Silveira Balcão, ao qual confia amplos, ilimitados poderes para o fim de defender todos osseus direitos em qualquer cauza cível ou crime”. (Pindamonhangaba, 23 de novembro de 1888,Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP).

O trabalho do advogado foi apresentado aos 24 dias de novembro de 1888 num conjuntode nove páginas manuscritas: “Autos de Suspeição”.

184 Entre os motivos apresentados nos atos

de suspeição estava a indicação de parcialidade do Juiz responsável:

(...) além de parente do justificante, é amigo intimo, conselheiro, director político, protectordo justificante, que procede sob as instrucções e conforme as ordens, desejos e finspolíticos, conveniências e interesses do grupo partidário do ql. são chefes do mesmorecusado e o cônego vigário da parochia. (Autos de Suspeição, Dr. Jose Fortunato,Pindamonhangaba, 24 de novembro de 1888, Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP).

184Auto – É a descrição escrita e minuciosa de fatos ocorridos em juízo. Difere do termo, pois é descritivo e o termo nãoo é. ACQUAVIVA, 2000, p. 204.Suspeição – Do latim suspectionem, do verbo suspicere, olhar, obervar, presumir. Suposição da ocorrência de umafato ou de uma prática de um ato por alguém. Juridicamente, a expressão indica a presunção de certa qualidade ouestado suscetível de restringir o exercício de direitos. ACQUAVIVA, 2000, p. 1247-1248.

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Além de “Professor Publico”, o sr. Napoleão era “eleitor”, observava o advogado conferindoqualificação que distinguia o perfil do seu cliente. A condição de eleitor conferia distinção aoProfessor em questão. Para se ter uma idéia da representação de ser eleitor, vejamos a condiçãoda população de Pindamonhangaba no ano de 1876, quando era composta de 14636 e, destetotal somente 36 eram eleitores (MARQUES, 1980, p. 169-170, vol. 2). Mas o que ocorria em1888, era que aquele professor teria abandonado o “partido monarchico” ao qual estava vinculadoo Presidente do Conselho, para filiar-se ao Partido Republicano com o qual teria votado naúltima eleição senatorial. A argumentação do advogado apontava para

perseguição contra o recusante [Professor Napoleão], pelo grupo dirigido [“partidomanrchico”] pelo recusado [Presidente do Conselho Municipal] e vigário Tobias Rezende,sendo o justificante [Presidente do Conselho Municipal] o instrumento dessa perseguição,qui começou pela negativa illegal e injusta do attestado para o recusante receber os poucosvencimentos de que vive (...).(Autos de Suspeição, Dr. Jose Fortunato, Pindamonhangaba,24 de novembro de 1888, Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP).

A argumentação do advogado prossegue em mais 107 linhas de uma narrativa que pretendedesmontar a ação do justificante [Presidente do Conselho Municipal de Instrução dePindamonhangaba]. Conta com o endosso de catorze assinaturas que incluem um dos membrosdo Conselho Municipal, Dr. José Vieira de Mascarenhas e Antonio da Silva Salgado (Presidenteda Câmara).

A participação do advogado teria contribuído para o retardamento das oitivas previstas.O Presidente do Conselho Municipal insistia junto ao Juiz para que “se digne marcar novamentedia lugar e hora para produsir a sua justificação”, alegando superação do “incidente” dos Autosde Suspeição apresentados pelo advogado do Professor Napoleão. (5 de dezembro de 1888,Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP). De igual modo, contribuíam para o retardamentoda Justificação, o não comparecimento de algumas das testemunhas arroladas. O Presidente doConselho insistia junto ao juiz que “se sirva de ordenar de novo a citação das testemunhas” (18de dezembro de 1888, Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP). Procedidas as juntadas eassentadas

185, veio a sentença, tendo sido emitida pelo Juiz Municipal no dia 21 de Dezembro

de 1888.

Julgo por sentença a justificação produzida e constante de fs. 23 a 29 para que surta oseffeitos que por direito possa ter. Entregue-se os autos ao justificante passe ao mesmo oscustos em que o condeno. Pindamonhangaba, 21 de Desembro de 1888. Candido Monteiroda C. Bueno, Episódio 25 – 4996 01. Processos – AESP). (Anexo 2)

185Assentada – Sessão forense para inquirição de testemunhas. Termo que se lavra do depoimento de testemunhas.Juntada – Termo cartorial que atesta a entrada, nos autos processuais, de uma petição ou documento. ACQUAVIVA,2000, p. 794.

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A sentença definida pelo Juiz, na sucessão das oitivas chegou ao Conselho Superior deInstrução Pública.

(...) tendo em vista a denuncia do presidente do conselho mal de Pindamonhangaba,contra o professor da 3ª cadeira daquela cidade, Napoleão de Paula França – é de parecerque se instaure processo pelo delicto definido no art. 180 §3º do Reg. de 22 de Agosto de87, observando-se a que prescreve o art. 186, combinado com o art. 194 do mmo. Reg.(Sessão de Recursos, 19 de janeiro de 1888, Francisco Abranches Ribeiro e Lis, Episódio25 – 4996 01. Processos – AESP).

O Presidente do Conselho precisou percorrer todo este percurso porque o ConselhoMunicipal de Instrução de Pindamonhangaba não constituía uma representação coesa, haviadiferenças entre os membros que inviabilizavam uma ação do grupo sobre a falta do professorem relação ao Presidente do Conselho. Diferenças de matizes pessoais e ideológicosdescredenciavam o professor que se filiasse a um partido contrário à monarquia. O caso dePindamonhangaba tanto revela a permanência das relações privatistas sobre a definição dequestões de ordem pública, como demonstra que, a instituição da Seção de Recursos como umdispositivo que ilustra o refinamento das estratégias de fiscalização, punição e controle das práticasnão autorizadas de professores das escolas públicas. É de se notar que a referência aoRegulamento da Instrução em vigor só se faça após o desfecho da Justificação. O caso definidoem juízo volta à instância da Instrução, em reunião realizada pela Comissão de Seção de Recursosnas instalações do Conselho Superior de Instrução Pública.

A Commissão de Seção de Recursos, tendo [...] assumpto relativo ao abandono da cadeirado professor publico da 3ª cadeira de Pindamonhangaba, Napoleão Paula de França – éde parecer que:Seja o mesmo officio junto ao respectivo processo e que se remette por copia ao recusado,nos termos do Regulamento. (Sala das Sessões de Conselho Superior de Instrução Publica,15 de Fevro. 1889. Dor. Francisco Abranches. Episódio 25 – 4996 01. Processos –AESP).

Há uma sugestão de que o professor está sendo punido pela falta de abandono da escola,não havendo qualquer referência às divergências ideológicas que poderiam povoar o cenáriodaquele episódio. De igual modo, o professor não está sendo punido pelas instâncias da InstruçãoPública mas por uma instância paralela, o poder judiciário. A legislação em vigor não prescrevesobre as adesões ideológicas de um candidato ao exercício do magistério. Alguns homens do“Conselho”, intérpretes e executores destas leis aderem à estratégia do silêncio sobre o aspectoideológico. Em casos de conflitos, produzem o descredenciamento do professor à função pelaoperação que desqualifica os hábitos da vida particular, o vício da embriaguez, a insubordinaçãoface à constituição de hierarquias no serviço público. Este silêncio da lei sobre as opções políticasdos professores pode ser lido como a sugestão de que ao funcionário público competiria a

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adesão irrestrita aos princípios ideológicos da ordem vigente. Assim se poderia entender a omissãoda opção ideológica no ato da produção do texto normativo em contraposição com a puniçãono ato da apuração de casos infiltrados sobre o conjunto dos professores públicos da província.

Napoleão não era o único professor que divergia dos princípios ideológicos do regimemonárquico. De igual modo, poderia se encontrar casos de divergências políticas sobre as quaiso Conselho não seria a instância deflagradora do processo. Como se houvesse guardiões damonarquia à espreita da escola. Assim podemos entender a postura do “Agente de Registro”,residente do Bairro Taboão da Cunha há dezesseis anos (estamos em 1888). Este homem nãoera pai de aluno, não era membro do Conselho Municipal, seu nome Luiz Alves da RochaBarreto. Foi este senhor que, dirigindo-se ao Inspetor Geral da Instrução Pública, denunciou aoProfessor Leopoldino de Paula Fernandes, sob a alegação de que o referido professor não tinha“vocação para o ensino, tomando a nobre e elevada missão mais como um illicito meio de vidado que como um sacerdocio!!!”, abandono da escola para fazer passeios à Província do Rio deJaneiro “antes e depois da lei que reformou a Instrução Publica”, emissão de mapas falsosdesrespeitando a “boa fé do Conselho Municipal”. (Luiz Alves da Rocha Barreto, Taboão daCunha 4 de Agosto de 1888, Episódio 19 – 4996 01. Processos – AESP).

O caso foi comunicado ao Presidente do Conselho Superior de Instrução, Dr. JoaquimJosé Vieira de Carvalho. (22 de novembro de 1888, Episódio 19 – 4996 01. Processos –AESP).

Para sustentar a denúncia, o “cidadão” Luiz não teria se poupado de esforços, reunindoatestados de pais, juízes e escrivães com o objetivo de comprová-la. O episódio se estendeuaté o ano seguinte, sendo que aos oito dias de março de 1889, fazia nova investida, incorporandooutros elementos à acusação do Professor Leopoldino.

Tomo a liberdade de levar ao conhecimento de VSa., que o Porfessor Leopoldino dePaula Fernandes continua no mesmo estado quanto ao cumprimento de seus deveresperdendo a mocidade deste bairro, digna de melhor sorte, todo o seu tempo pelo abuzoem que permanece o referido Professor que não duvida em alardeár aqui com os caipiras,influencias perante correligionários republicanos e amigos liberáes nessa capital, dizendonada temer sobre o processo pendente, do qual tem de ser intimado pelo Conselho Municpaldeste termo. (grifo do autor, Luiz Alves da Rocha Barreto dirigindo-se ao Diretor Geralda Instrução Pública, Taboão da Cunha 8 de março de 1889, Episódio 19 – 4996 01.Processos – AESP).

O denunciante dava pista de que o Conselho Municipal não estivesse em situação regularquando menciona a necessidade de uma providência sobre o caso mesmo havendo“impossibilidade de reunir o conselho”. Nota-se que o denunciante tem dois alvos, um é explícitoo Professor Leopoldino, o outro aparece implícito, um dos membros do Conselho Municipal. Éo que se pode depreender de um trecho do ofício encaminhado ao Diretor da Instrução Pública.

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É certo que esse Sñr. recebe escandalosamente, attestados com mappas falsos e a párdisto faz aqui propaganda de doutrina contra a Religião do Estado; tendo procedimentooffensivo á moral, estando com uma amazia em sua companhia a qual mora na mesmacasa em que dis ter escola! (Luiz Alves da Rocha Barreto dirigindo-se ao Diretor Geral daInstrução Pública, Taboão da Cunha 8 de março de 1889, Episódio 19 – 4996 01. Processos– AESP).

Fazendo-se identificar como o defensor do “interesse de pobres crianças que vão crescerviciadas, tendo talves como causa de todos estes males e ainda o da escravidão da ignorancia!”,o denunciante deixa no não dito a sugestão de que o Conselho Municipal não fosse uma instânciacredenciada para a apuração do caso.

“Estou convencido de que se pára aqui vier um fiscalizador da confiança de VSa., melhorpoderia informar de todas as verdades que até hoje tenho expedido e que só assim este estadode couzas tem um paradeiro.” (Luiz Alves da Rocha Barreto dirigindo-se ao Diretor Geral daInstrução Pública, Taboão da Cunha 8 de março de 1889, Episódio 19 – 4996 01. Processos –AESP).

A denúncia acima foi repassada à Seçãode Recursos (Sala das Comm. 13 de abril de1889, Episódio 19 – 4996 01. Processos – AESP) que, por sua vez, a anexou ao processo queestava sendo instaurado contra o Professor Leopoldino (Antonio Xavier, Presidente do ConselhoMunicipal, 9 de maio de 1889, Episódio 19 – 4996 01. Processos – AESP). O ConselhoMunicpal realizou uma sessão onde foi analisada a defesa do Professor Leopoldino no dia 17 dejunho de 1889 e emitiu a seguinte apreciação encaminhada ao Conselho Superior de InstruçãoPública (Dr. Joquim José Vieira de carvalho, Antonio Xavier F., Antonio de Serpa Pinto Jr.):“Este Conselho tendo lido a defesa offerecida pelo dito professor acha que desmancham todasas [...] da acusação. Deus guarde a V. Exa. por mtos annos.”A defesa produzida pelo ProfessorLeopoldino era tão extensa quanto guarnecida de documentação comprobatória de suaargumentação e endereçada ao “Illmos. Snrs. Presidente e Membros do Conselho Municipal deCunha”.

Fossemos eu e o denunciante sujeitos dos mesmos supervisores, tivéssemos de serjulgados pelos mesmos juizes e mesmos supervisores e eu me limitaria a promover amais rigorosa syndicancia sobre os nossos actos quer como homens públicos quer comoparticulares e do confronto que [...] se estabelecesse resultaria expendido, a minha defezasem me ser necessário accrescentar um ponto mais. Mas assim não acontece e nemtambém os que me hão de julgar teem conhecimento da individualidade que subscreve adencuncia! (Professor Normalista, Leopoldino de Paula Fernandes, Taboão da Cunha, 4de junho de 1889, Episódio 19 – 4996 01. Processos – AESP).

Discorre longamente sobre a acusação de emissão de mapas falsos apresentando provasque destruíam os atestados apresentados pelo cidadão Luiz. Quanto à acusação de “procedimentooffensivo á moral com uma amazia na casa em que dava escola”:

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Vive em minha companhia alem de outras pessoas, uma pobre mulher que o acaso embôa hora deparou-me e que se encarrega com todo o zelo do governo de minha casa; deuma conducta e uma moralidade irreprehensivel, é estimada e respeitada por quantos aconhecem e ninguém teve ainda a idea de m’a dar como amasia, a não ser o denunciante.Num lugar como este, falta completamente de recurso e onde eu tinha de fixar residênciana qualidade de empregado vitalício, impunha-se-me, imperiosa, a necessidade de montarcasa visto não ter família aqui. Ora, desde que há uma casa há necessidade de quem agoverne de quem cuide della, de quem cosinhe, lave, engomme etc, etc posso eu fazeresses serviços para os quaes não me sinto apto e nem as minhas occupações permitem?Serei obrigado a procurar entre os do meus sexo, pessoa que os faça? (ProfessorNormalista, Leopoldino de Paula Fernandes, Taboão da Cunha, 4 de junho de 1889,Episódio 19 – 4996 01. Processos – AESP).

O Professor agrega ao seu nome o distintivo de “Normalista”, o que lhe confere avitaliciedade do cargo. A qualificação de sua formação não apenas lhe conferia a competênciatécnica exigida pela legislação vigente como lhe concedia o status de “empregado vitalicio”.Como tal havia a necessidade de “fixar residência”, o que corresponderia à “necessidade demontar casa”. Aí surge o problema traduzido na “necessidade de quem a governe de quem cuidedella, de quem cosinhe, lave, engomme etc, etc”. Com “aptidão intelectual” assegurada pelacompetência técnica advinda da condição de “normalista”, o professor não se sentia “apto” àstarefas domésticas e, ainda que se dispusesse a realizá-las, estava impedido pelas “occupações”de professor. Procurar a um representante do outro sexo para o desempenho do serviço domésticosoava como uma idéia absurda, o governo da casa era apresentado como atividade natural dacondição feminina.

186 De igual modo, poderia se pensar que era esta condição feminina que se

despontava como qualificação para o governo da sala de aula.O professor respondia à questão do ensino de religião: “oriundo de uma família

iminentemente catholica sou e espero continuar a ser um bom catholico”. Quanto ao envolvimentocom o movimento republicano, não fez qualquer menção.

Não se sabe da posição do Conselho Superior sobre o desfecho do processo do ProfessorLeopoldino mas o fato de o Conselho Municipal desconsiderar a acusação diante das provas

186O comércio paulista de livros também pode constituir uma referência para apreensão de representações da condiçãofeminina na segunda metade do século XIX. A “Livraria do Largo do Collegio” oferecia o livro “Educação das mães defamilia” (Correio Paulistano, 31/01/1859,4), “De L’education des filles, par Fenelon, 1 vol”, “Educação das meninas,por Fenelon, 1 vol.” (Correio Paulistano, 01/01/1862, página suplementar), “ALEXANDRE DUMAS FILHOALTA NOVIDADE As mulheres que amam e as mulheres que votam, 1 vol. 1$000” (A L. Garraux, CorreioPaulistano, 04/09/1878, 2), “FLAUX (Louis) – La femme, le mariage et le divorce. Étude de physiologie et desociologie. 1 vol. in 12 [...] 4$000” (Correio Paulistano, 27/06/1878, 4). Na mesma perspectiva, algumas matériaspublicadas nos diferentes jornais de circulação à época também constituíam amostras de uma representação da mulher.“Litteratura: O sr. dr. França e a sai conferência sobre a mulher” (Correio Paulistano, 05/12/1873 – 25/12/1873);“Variedade: Semelhanças entre a mulher e a natureza” (Correio Paulistano, 17/12/1873,2); “A ociosidade feminina”,(Correio Paulistano, 20/11/1877, p. 1); “A mulher governa e rege moralmente, Ass. F. G. Lomonaco” (Diário de SãoPaulo, 19/11/1869, 1-2); “A mulher no sentido burlesco”(Diário de São Paulo, 20/11/1869, p.2-3); “Qualidade econdição da mulher”(Diário de São Paulo, 24/12/1869, 2); “Mulher”(Diário de São Paulo, 08/12/1872, 2); “Folhetim:A mulher e a literatura”(A Província de São Paulo, 19/11/1881,1); “Lettras e Artes: A mulher na China” (21/11/1884,1-2); “Variedade: A mulher e a historia”(A Província de São Paulo, 25/01/1885,1).

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apresentadas não apenas confere credibilidade ao “Professor Normalista” como reforça a idéiasugerida pela acusação de desconfiança quanto aos envolvimentos político partidários dosmembros do Conselho Municipal.

Esta possibilidade sinalizada pelo processo do Professor Leopoldino e reunida aos doisepisódios anteriores ocorridos em Arêas e Pindamonhangaba contribuem para reforçar aconstatação de que os Conselhos – instâncias que pretendiam a direção da escola pública dePrimeiras Letras em âmbito municipal, por subsituição aos Inspetores Literários ou Distritais -,constituíam agremiações fissuradas pelas contradições internas, ora de natureza pessoal, ora denatureza ideológica, nunca por uma questão técnica quanto ao exercício da sua função. Emborafosse possível extrair do último embate do qual resultou a Lei de abril 1887 (Reg. de agosto de1887), alterações substantivas quanto aos mecanismos de controle sobre o professor, tal comose observou, ao monitoramento da conduta moral se acrescentou o controle sobre a qualificaçãotécnica. Mas o que se viu nos processos cujos procedimentos foram instruídos pelo último textonormativo da instrução no Império ainda não traduziam esta perspectiva. Entre os processosinstaurados sob a denúncia de professores (homens), a qualificação técnica ou intelectual teriasido preterida pela urgência monárquica de efetuar o controle sobre condutas de professorescujas adesões ideológicas eram desafetas do regime. Já os processos que, no mesmo período,foram instaurados contra professoras eram caracterizados por motivos circunscritos à questãodo descumprimento de aspectos formais do tempo: o tempo do atraso na posse da cadeira,atraso no retorno da licença.

A ação dos Conselhos Municipais de Instrução Pública parecia compatível com a gestãodas faltas das professoras, enquanto as faltas cometidas pelos professores extrapolavam com ascompetências dos Conselhos (Municipais e Superiores) de Instrução Pública, constituindo casoscuja ingerência era deslocada para a instância judicial. O episódio no qual o Presidente doConselho Municipal não pode contar com o apoio dos membros do Conselho na gestão da faltado professor não é apenas revelador de animosidades de ordem pessoal no interior daquelainstância, revela também a coloração política da diferença. Diante da fissura do Conselho, a faltado professor contribui para explicitação do caráter político da escola. O professor não eraapenas o agente que estava diretamente envolvido com a tarefa de constituição da escola,entendendo-se por esta escola uma instituição inscrita num projeto político maior. O professortambém era um agente político. Quando a dimensão política da falta explicitou a face política doprofessor, os procedimentos regulamentares para atuação sobre sua falta, se mostraraminsuficientes porque acabaram revelando, na sua contraface, a própria face política da autoridadea quem competiria a gestão da falta do professor.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa permitiu verificar que, da relação entre a “falta” (infração) e a pena, vista nocruzamento entre os processos e os textos normativos, foi possível delinear a produção dedispositivos de um tipo profissional – o professor, e também do inspetor como funcionáriopúblico – representante do Estado e, por meio deles, a produção da escola. A relação entreinfração e pena vista na relação trazida pelos processos cruzados com o textos normativos (leis,regulamentos) foi alçada à condição de um dispositivo que implicava a relação professor-inspetor-escola. Tal qual o estudo de Michel Foucault (1987) quando observa que, entre o final do séculoXVIII e o começo do século XIX, teria havido uma substituição importante quanto aos ritos depunição baseados no suplício do corpo e na exposição pública que passam a se revestir de umacerta discrição e se tornam mais sutis. Este autor localiza neste deslocamento da pena umarevisão conceitual sobre o delito que aqui é tratado pela “falta”. Naquele momento eramredefinidos os critérios que perfaziam a hierarquia da gravidade da falta, as margens de indulgênciaenfim, aquilo que poderia ser tolerado de fato e aquilo que não era permitido de direito.

Vimos que os processos confrontados com os textos normativos da época permitiramverificar que, os desdobramentos promovidos pela acusação e defesa em torno da apuração deuma falta, vistos na ambigüidade inscrita na produção de versões de verdades, atingiam asinstâncias subjetivas dos envolvidos. A pena tinha como objetivo, não apenas atuar sobre a faltapropriamente apurada e, nem sempre prevista no texto regulamentar. Os procedimentosdesencadeados pela acusação fosse esta, vista do lugar do professor ou do lugar do inspetor ouainda, do lugar de algum pai de família anônimo, tendiam não raro, a mobilizar constrangimentosque expunham condições de ordem humana, subjetiva. Neste processo, a caracterização dafalta ou da punição precisava romper a caracterização de um objeto jurídico para irromper ocampo das paixões, dos instintos, das enfermidades, das inadaptações. A punição da falta do

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professor tinha o alvo ampliado nos contornos da falta, para produzir a disciplina da vontade,das disposições pessoais da cada um.

Nesta perspectiva, a repressão da falta corresponde à estratégia de inscrever o acusadono compasso de um modo específico de sujeição à um conjunto normativo (leis, regulamentos)que produzidos por princípios formulados numa teoria geral de contrato também supõem quecada cidadão deve aceitar todas as leis da sociedade, inclusive aquelas que poderão puni-lo. Aruptura do pacto implica a punição, porque uma vez que o contrato é de natureza social, a faltaimplica uma afronta à sociedade. No caso da falta apurada na conduta moral ou na condutafuncional de um professor da segunda metade do século XIX, esta falta correspondia a umaprática de afronta à estratégia caracterizada na escola pública oferecida pelo Estado. Por isto, anecessidade de tornar a lei de conhecimento público, facultando o acesso por via jornais emcirculação. Tais procedimentos contribuíam para que, por via do acesso ao texto normativo(leis, regulamentos), também se difundisse na definição da falta e na prescrição das penas “asações criminosas e as ações virtuosas”, ou as faltas e os deveres do professor ou do funcionáriopúblico envolvido direta ou indiretamente com a empreitada da instrução pública.

A distinção de um modelo de falta versus um modelo de virtude se fazia ver no avesso darelação entre as práticas autorizadas (deveres) do professor e as práticas desautorizadas queeram inscritas naquilo que não era permitido a um professor e, por extensão a um funcionário doEstado. Na qualidade de funcionário público tanto o professor como o inspetor, também sãomediadores entre a norma e a prática, entre o Estado e a escola, sendo que, o perfil de um ououtro é delineado na qualidade de um funcionário público, tanto em termos de uma condutamoral como em termos de uma conduta funcional.

A relação entre a falta e o dever ou, a relação entre aquilo que o professor deveria ser,também era definida na contra-face daquilo que o professor não poderia fazer. Neste ponto, arelação entre cultura e forma escolares, aflorou no cruzamento entre as práticas preceituadaspara a prática da inspeção escolar e as práticas preceituadas para a prática do professor. Esteúltimo era colocado na posição de sujeição ao inspetor, cumprir o dever de sujeição constituíaum dos seus deveres. Mas esta sujeição não é correlata de uma relação simplista de hierarquizaçãode funções de um segmento do funcionalismo público. Tal sujeição implica a normalização deuma hierarquia que também está inscrita naquilo que VINCENT & LAHIRE &THIN (2001)chamam de “regras supra-pessoais”. Mesmo quando os procedimentos desencadeados pelaacusação e defesa irrompem as fronteiras inscritas no campo das paixões, numa caracterizaçãode resistência ao discurso da norma, a própria resistência se dá, porque se supõe o confronto, atensão entre um poder instituinte e o poder instituído.

As disposições que pretenderam normalizar a conduta moral e funcional do professortambém podem ser lidas como traços de uma cultura escolar, vistos nos aspectos deprofissionalização do professor. Ao estabelecer uma “seleção discricionária” (2001:30), para oingresso à carreira, por meio de exames escritos e orais, conteúdos de saberes propostos aos

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candidatos ao magistério, atestados de conduta moral, os textos normativos também estabeleciamos critérios para a manutenção do professor no cargo. Estes eram claros no monitoramento daconduta moral do professor com alcance sobre a sua conduta funcional, haja vista o controlesobre os horários da duração da aula, o controle sobre os dias letivos da semana, o controlesobre os atrasos quanto à posse da cadeira ou o retorno de uma licença. Com isto está sedizendo que, os preceitos quanto à conduta moral ou funcional do professor devem ser lidoscomo formas de “saberes” e “habitus” (JULIA, 2001: 24) que integram os processos deprofissionalização do professor. Estes aspectos de profissionalização do professor também podemser desprendidos dos debates entre os legisladores da instrução pública, quanto à questão davitaliciedade do cargo colocada na relação com a qualificação técnica dos professores normalistas.

Ainda quanto às questões de cultura escolar segundo os processos de profissionalizaçãodo professor, os episódios examinados neste estudo apontaram para a especificidade da função,aspecto notado naqueles casos nos quais, o professor exercia uma função paralela ao ofício domagistério. JULIA (2001) nota que esta questão também foi colocada pela Prússia entre osséculos XVI e XVII, o que levava os professores ao exercício de funções paralelas ao magistério,quase sempre a de alfaiates. O que se via nos textos de normatização da instrução pública naProvíncia paulista era o impedimento de práticas paralelas que fossem incompatíveis com omagistério ou o inviabilizassem de alguma forma. Embora o texto normativo não denominasse ostipos de funções incompatíveis com o magistério, entendemos que, ao especificar a necessidadedo cuidado com a incompatibilidade de funções com prejuízo da prática do magistério, estamosdiante de uma representação que implica a especificidade da função de ensinar. Mesmo que osconteúdos de ensino propostos pela escola pública de instrução primária da segunda metade doséculo XIX ainda sejam incipientes, as questões quanto ao número de alunos que freqüentam aescola, bem como as questões quanto ao horário em que os trabalhos escolares devem seriniciados ou concluídos, temos aí, a produção de uma cultura escolar que sinaliza para a produçãode uma escolar. Quer isto dizer que, as condutas de irregularidade quanto ao descumprimentodos horários estabelecidos, ou o monitoramento continuadamente driblado quanto à freqüênciaescolar constituem aspectos que sinalizavam para a produção das condições espaciais e temporaisnecessárias à produção de um modo de relação entre professor e aluno, entre professor einspetor.

A recorrência da obrigatoriedade do ensino não pode ser reduzia pelo fato de que nãoteria vingado até que se operassem mudanças de maior vulto como a transição de regime degoverno. A sua recorrência deve ser entendida como traço importante do movimento de formae cultura escolar que produzia no intervalo entre a norma e as efetivas condições dadas para oexercício da atividade escolar, a produção da urgência de aspectos constituintes de uma formaescolar em construção. A freqüência escolar na relação com a obrigatoriedade sobrelevava opapel do Estado na empreitada da instrução da sociedade. No movimento de institucionalizaçãodesta função pública, se estabelecia a desautorização da família nesta tarefa. Por isso, não raro,

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as reedições das disposições normativas da obrigatoriedade do ensino coincidiam com asreedições das disposições normativas das competências da Escola Normal. Ou seja, paraestabelecer a aliança entre pais de alunos e escola, o Estado precisa abrir mão de estratégias queajudariam no convencimento de que estava mais qualificado para a tarefa de oferecer umaformação mais aprimorada que aquela dada pela família.

A relação entre a obrigatoriedade, a freqüência e a inspeção, vista nos diferentes textosnormativos e continuadamente contemplada na prática da fraude da escrituração da freqüênciaescolar conforme se viu nos processos, também reeditava a preocupação quanto a um númeromínimo para abertura e manutenção de uma escola. Esta constatação também contribui parapensar o conjunto dos aspectos constituintes de uma forma escolar tal qual aquela que se instalaráa partir da fundação dos grupos escolares, caracterizados pela composição de classes seriadas,com graduação de um programa de ensino, entre outros. Enfim, mesmo com as variações quantoao número básico apresentado por cada um dos textos normativos da instrução que foramexaminados nesta pesquisa, se está diante de ensaios que intentaram por pensar o número dealunos que fosse mais apropriado para a consolidação de um modo de fazer que se estabeleciana relação entre professor e aluno.

No conjunto das urgências também se inscreviam aquelas de ordem espacial e temporalda escola. Não se pode desprezar o quanto certas dimensões da relação tensa entre o espaçodoméstico com função do exercício público do magistério teria contribuído na explicitação dademanda da especificidade de um espaço apropriado para aquela função. A produção dosaspectos constituintes da escola chamada moderna, vistos por meio da base documentalcaracterizada pelos processos examinados nesta pesquisa, apontam para a produção de umaforma escolar que se dá nas situações que exprimiam os limites entre o tempo do professor e otempo do homem que era exercia a função de professor. Neste caso, vale lembrar aquilo queVINCENT et alii (2001: 40) caracteriza como o emprego do tempo na perspectiva daconsolidação da forma escolar. Para este autor, as diferentes estratégias de ocupação intensivado tempo das crianças, caracterizam não apenas uma função que pretende enquadrar e vigiarmas também gera disposições de regularidade. A regularidade teria como especificidade aprodução de um comportamento propício, previsível de modo a produzir “a forma de umamoralidade que é a do dever” (2001:40).

Ora, a especificidade que supõe pensar a escola e as condições dadas para a suaimplementação no século XIX, não pode desconsiderar que, a recorrência do tema da freqüênciaà escola do século XIX, também guardava em si os germes da pretensão de instauração de umaregularidade. Esta regularidade garantiria a previsibilidade de necessária para a definição doscontornos de uma forma escolar afeita às imposições políticas, sociais e culturais da modernidade.Era eivada de uma moralidade de caráter cívico, o que, na sua especificidade também relacionavaa moralidade como um dever. A regularidade se aplica às virtudes fundamentais do tempodisciplinar, como expunha Foucault.

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Nesta perspectiva, a regularidade ainda teria implicações mais explícitas sobre a disposiçãoespacial e temporal da escola. Tal como nos permitiu ver os processos examinados, os conflitossurgidos na oposição marcada pelo exercício da função doméstica nos domínios do espaçodoméstico onde morava o professor ou, em alguns casos, o casal de professores, constituemamostras extremadas da urgência de um espaço específico para o cumprimento do serviçopúblico da instrução.

Numa incursão sobre a história do espaço escolar, na qual analisava fotografias afins,VIÑAO FRAGO (1998) assinala uma tendência à atribuição de um espaço determinado comolugar do ensino. “Um lugar estável e fixo.” Para este autor, esta tendência teria sido reforçada notempo, por uma outra, paralela: “aquela que concebe a escola não como um espaço rotuladocomo tal, como ainda um espaço de natureza própria.(p. 69). As contradições expostas peloexercício de uma função pública no espaço doméstico, também contribuíam para se pensar ademanda de uma especificidade quanto ao tempo escolar. Isto podia ser visto em episódioscomo aquele, no qual o professor, estando em sua casa (local de funcionamento da escola), sevia na condição de afrontado pelo inspetor que chegava em ato de visita à escola, antes dohorário estabelecido para o início das aulas.

Outros episódios confirmavam por esta demanda ampliando-a na relação entre espaço e tempo,entre tempo escolar e tempo social. As situações onde o tempo escolar é pensado na relação com otempo social, tal qual se pode acompanhar nas sessões do Conselho de Instrução da capital paulistano ano de 1889, inscreviam a escola numa relação entre o tempo social e o tempo escolar queredimensionava o lugar da escola no conjunto das transformações ocorridas no final do século. Deigual modo, o tempo escolar era pensado segundo o tempo social das pessoas. Assim, o horário dotrem implicava o horário de início dos trabalhos escolares, já que alguns professores se serviamdaquele meio de transporte para se trasladarem de casa para a escola. Quanto à distribuição semanaldos dias letivos, era preciso considerar que alguns alunos que moravam em lugares mais distantes daspovoações onde ficavam as escolas, teriam mais possibilidades de freqüentar uma escola que oferecesseaula nos dias de segunda a sexta e reservasse sábados e domingos para a visita aos pais. Quanto àdistribuição do tempo da duração horária da aula em duas horas pela manhã e duas horas pela tarde,também se apresentava como incompatível com o horário habitual das refeições de muitas famílias.Enfim, o conjunto de questões postas pelos episódios que foram cruzados com os textos normativosde instrução pública do período estudado, dão a ver a constituição de uma forma escolar que seinscreve no detalhe, na qual a cultura escolar se promove no movimento que implica a revisão danorma. Este movimento não corresponde a uma inflexão da norma que visa a incorporação da forçados costumes de uma determinada localidade. Embora também seja isto. Mas este movimento quepromove na relação entre forma e cultura escolar, traduzida na incorporação da demanda suscitadapela imposição cultural na inflexão da norma, tende a realizar este movimento como uma estratégiaque, sob a representação de um certo consenso, consolida o seu domínio como uma estratégialegítima de poder.

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Enfim, o exame da produção dos textos normativos da instrução pública visto por meiodos embates ocorridos em diferentes sessões legislativas (1850-1887) e o seu acompanhamentono enredo das situações conflitivas reunidas no conjunto das peças dos processos (1853-1889),permitiu pensar o “diálogo das vozes dissonantes” (acusação e defesa) como um instrumentodelineador dos contornos da especificidade da produção da escola dada pelas condições deimplicação cultural, espaço-temporal e política numa ocasião em que a escola ainda era umanovidade para alunos, pais de alunos, professores, vizinhança e responsáveis diretos ou indiretospela sua inspeção. Este mesmo percurso permitiu a realização de alguns flagrantes que a um sótempo que se apresentam como intervalos no conjunto do texto, também se constituem comoperspectivas que contribuem para dimensionar a escola na relação mais ampla com as dimensõessocial, política e cultural.

Ao destacar a produção do serviço público da inspeção escolar como núcleo central narelação com os processos e os textos normativos, percebeu-se que o dispositivo da inspeção seconstituía na contra-face de um outro agente da instrução, o professor. Este movimento deinfluências recíprocas urdidas no embaraço das “vozes dissonantes” promovia a produção deum tipo profissional, o professor. Como dispositivo de um tipo profissional, o professor, ambos(inspetor e professor) também se constituíam como dispositivos de produção da escola. Nomesmo movimento que promovia a produção dos elementos de regulação da conduta do professorproduzia também os elementos constitutivos da escola. É assim que o aspecto recorrente davida particular ou das relações pessoais, ou das influências locais tão comuns na sociedade dosegundo império se afloram nos embates entre acusação e defesa e promove na indisposiçãoentre professor e inspetor, a urgência da especificação de uma relação de tom impessoal comocondição importante na instituição do serviço público da instrução. Como extensão ou nomovimento recíproco de influências, a realização do serviço escolar nas dependências do espaçodoméstico contribui para explicitar algumas das dimensões miúdas, e nem por isso irrelevantes,da tensão entre o público e o privado, vistas nos episódios de roubo de um móvel (a mesa) e deum utensílio (o relógio). Outro aspecto que dá conta da tensão entre a impessoalidade e ademanda por uma forma impessoal de tratamento foi apurada quando dos episódios que marcaramos conflitos gerados pela prática de recados verbais, ou da quebra de certos protocolos (chapéu)entre autoridades e funcionários públicos do serviço da instrução.

A quebra do horário regulamentar previsto para a duração da “eschola”, a troca do feriadoda quinta-feira pelo sábado, constituem burlas com recorrência em diferentes escolas da capitale do interior da província. Tais burlas incidem sobre uma modalidade de temporalidade que tema ver com a demanda pela inscrição da regularidade no tempo das pessoas. Daí que a freqüênciaescolar como o tema mais recorrente, entre aqueles apurados no conjunto das peças deprocessos, tema recorrente nas sessões parlamentares que antecedem a publicação de um novotexto normativo, questão que ganhava corpo especialmente nos debates quanto à instituição daobrigatoriedade do ensino. Esta pesquisa se interessou por explicitar o intervalo marcado pelo

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apelo para a freqüência e as justificativas para a baixa freqüência dadas por pais, professores einspetores. O texto normativo delegava ao inspetor o poder de emitir o atestado de freqüênciacomo condição de que o professor recebesse os seus vencimentos. Neste movimento que atrelavaà freqüência a condição de receber ou não receber os salários também promovia porcontraposição o estímulo à prática da fraude na escrituração da freqüência (mapas). No jogo noqual cada um imputava ao outro a responsabilidade pela baixa freqüência escolar era possívelvislumbrar os contornos de uma ordem que pretendia inscrever certa previsibilidade ou regularidadenos comportamentos das pessoas. O que confere aos processos de produção da escola, ostatus de um projeto político pedagógico nas influências recíprocas com as questões de ordemsocial, política e cultural da época.

Observou-se que o apelo à freqüência escolar apareceu quase sempre, no compasso deuma estratégia que visava emparelhar à freqüência a qualificação técnica do professor. A cadavez que se propôs a obrigatoriedade do ensino também se reeditou disposições regulamentaresque intentaram por atrelar a escola de instrução primária à relação com a formação dada pelaEscola Normal. O que também poderia ser visto nos critérios que procediam à vitaliciedade ounão do cargo de professor. Esta relação mais ou menos clara entre o apelo à freqüência pelaforça coercitiva da obrigatoriedade do ensino e a qualificação do professor era correlata daconcepção de que ao imputar ao pai a relação de dever para com a matrícula do filho, o Estadodeveria oferecer um profissional melhor qualificado (que a família) para a tarefa da instrução (oprofessor). As tentativas de instituição da obrigatoriedade do ensino no curso de Império nãovingaram como também a qualificação técnica de professores cedeu vez para as urgências políticaseleitas à época.

Mas o serviço da inspeção sofreu mudanças significativas ainda na fase terminal do império.Desde a tentativa de implantação de Comissões Inspetoras (setembro de 1846), passando porreformulações sobre a concepção de organização do serviço de inspeção e controle da escolanos textos normativos sucessivos: Regulamento de 1851, Regulamento de 1869, Reforma daInstrução Pública de 1868, Lei de abril de 1887 (Regulamento de agosto 1887), o último textoera aquele que marcava a maior distinção na relação entre a direção da escola e o professorresponsável pela escola. Ao diluir a idéia de “inspeção” na eleição e nomeação de membros deconselhos em nível municipal (Conselhos Municipais de Instrução) e provincial (ConselhosSuperiores de Instrução) com a atribuição de “direção” e fiscalização da escola, o discurso legalteria fortalecido o poder local e enfraquecido o poder provincial como extensão da representaçãoda ordem imperial em nível municipal. Este aspecto se manifestou nos últimos episódiostrabalhados, dos quais se deu a ver as fissuras de ordem pessoal e ideológica internas aosConselhos, a um só tempo que revelava o professor público de instrução primária como umagente político no território escolar. O que permitiu pensar não apenas o emprego político daescola na transição do regime monárquico para o republicano como abriu fenda para verificar oprofessor de atuação na instrução elementar como um agente nos processos de transição do

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regime. O que se verá é que, o primeiro texto normativo da Instrução marcado pelo regimerepublicano, reeditará a o agente inspetor na composição dos Conselhos. Haverá umaintensificação sobre os procedimentos de falta, agora com uma distinção relevante. O professornão será o único alvo da instauração de processos.(Anexo 1). Com isto não se está sugerindoque o professor tenha sido vítima das autoridades da inspeção nos quarenta anos que antecederama República. Ao contrário, parte-se da perspectiva de que a direção dada pelo acusado noconjunto das peças de processos, isto é, aos desdobramentos de uma contenda formalizadosnum processo, correspondia também o redimensionamento do motivo gerador do processo,inscrevendo entre os agentes relacionados direta ou indiretamente com a escola (alunos,professores, inspetores, autoridades locais, vizinhança) nas temáticas demandadas pelosprocessos instituidores da escola.

A trajetória de produção deste texto deu a ver flagrantes importantes da produção daescola, entre estes, se pode destacar o mapa como um instrumento que ao registrar os dadosdos alunos produzia uma perspectiva da cartografia da sociedade escravista da época, deigual modo a presença de professores de instrução primária formados em Direito. Se por umlado, era tão comum a figura do bacharel nos mais diversos postos da organização social epolítica da época, não se pode desconsiderar a presença destes homens que provavelmenteviam na carreira do magistério, a possibilidade de inserção no serviço público. E sobre apresença da mulher, viu-se que ela é marcada pela posição do casal, marido e mulher exercema função do magistério numa sociedade cujos códigos de moralidade condenam a prática daescola que mistura meninas entre os meninos, do mesmo modo que preceitua a divisão querelaciona professor para meninos e professora para meninas. A mulher aparece nos processosnuma freqüência menor àquela observada entre os homens. Dos vinte e cinco episódios tratadosno curso deste texto, a mulher na condição de professora, era o alvo de dez deles. A diversidadede motivos que colocaram estas mulheres em situações que lhes questionavam a honradez nãodesautoriza a constatação de que o modo como cada uma se movimentava na produção dasua defesa lhe conferia um grau maior de reverência à ordem.

O episódio havido em Bananal, no qual a professora era suspensa das atividades pelofato de que o seu marido tinha uma conduta imoral frente às alunas que freqüentavam a escola(com funcionamento na casa onde residiam), contribui para pensar o processo comoinstrumento de produção de uma representação da condição feminina como uma qualificaçãopara o exercício do magistério. Os últimos episódios endossam ainda mais esta hipótese.Mesmo a Professora Francisca de Paula cuja conduta moral é questionada nega a acusaçãode relações “illicitas” com o proprietário casa onde mora e ensina para numa manifestaçãovoluntária, se demitir. Mais aquiescentes com a ordem instituída, as mulheres conhecidas nose pelos processos também não se envolveram nas questões de conotação político-ideológica.Tais posturas, entre outras, pareciam conferir à condição feminina a qualificação condizentepara a função do magistério segundo os padrões da época.

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As questões tematizadas pelo cruzamento entre os processos e os textos normativosproduzidos no período estudado, permitem afirmar que a forma da escola denominada modernatambém era gerada na tensão marcada entre a produção ambivalente de versões de verdade.Tanto da perspectiva da acusação como da perspectiva da defesa, a relação entre a falta, ainspeção e a pena, possibilitava pensar um tipo profissional de conduta moral, funcional e técnicaespecífico para a realização de uma tarefa específica: o ensino. A “briga de vizinhos” instaladanos processos e alimentada pela contradição posta nas situações conflitivas que marcavam avida doméstica e a vida pública, apontavam para a urgência dos aspectos constituintes da escolamoderna.

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Episódio 7 – Professor Joaquim Jose Rodrigues Ramos, Villa de Nazareth, 1865. 4996 01. Processos,MIP – AESP.Episódio 8 – Professor Bernadino de Almeida Gouvêa Prata, Ribeirão Preto, 1874 e Vila de Cajurú,1880. 4996 01. Processos, MIP – AESP.Episódio 9 – Professora Maria Ambrosina do Espírito Santo, M’Boy-mirim, 1886. 4996 01. Processos,MIP – AESP.Episódio 10 – Professor Luiz da Fonseca de Moraes Galvão Junior, São Benedito (Distrito daEscada), 1886. 4996 01. Processos, MIP – AESP.Episódio 11 – Professor Adélio de Castro, Parahybuna, 1886. 4996 01, Processos, MIP - AESP.Episódio 12 – Professor Theophilo Galvão de Oliveira França, Bairro do Leme, Guaratinguetá,1886. 4996 01. Processos, MIP – AESP.Episódio 13 – Professor João Baptista de Azevedo Marques, Tietê, 1886. 4996 01. Processos, MIP– AESP.Episódio 14 – Professor Eugenio da Motta Paes Leme, Porto Feliz, 1886. 4997 02. Processos, MIP– AESP.Episódio 15 – Professor Professora Maria Avelina do Amaral, Bananal, 1881. 4996 01. Processos,MIP – AESP.Episódio 16 – Professor Adelino de Campos, Socorro, 1887. 4996 01. Processos – AESP.Episódio 17 – Professora Francisca de Paula, Freguesia de Santa Cruz da Conceição, termo dePirassununga, 1887. 4996 01. Processos, MIP – AESP.Episódio 18 – Professor Benedicto Candido Corte Brilho, Ponte Nova, 1887. 4996 01. Processos,MIP – AESP.Episódio 19 – Professor Leopoldino de Paula Fernandes, Bairro do Taboão, município da Cunha,1888-1889. 4996 01. Processos, MIP – AESP.Episódio 20 – Professora Ambrosina de Toledo, Vila de Cotia, 1888-1889. 4996 01. Processos,MIP – AESP.Episódio 21 – Professora Claudina Elisa de Medeiros, Parahybuna, 1889. 4996 01 – Processos,MIP – AESP.Episódio 22 – Professor Pedro Alves Marques, Áreas, 1887-1888. 4996 01. Processos, MIP –AESP.Episódio 23 – Professora Maria Gertrudes dos Santos Pereira. Bairro de Santa Bárbara, São Josédos Campos, 1888. 4996 01. Processos, MIP – AESP.Episódio 24 – Professora Antonia Vidal Domingues, São Bernardo, 1887-1888. 4996 01. Processos,MIP – AESP.Episódio 25 – Professor Napoleão de Paula França, Pindamonhangaba, 1888-1889. 4996 01.Processos, MIP – AESP.Carta da Câmara de Itu dirigida à “V. Mage.” aos 22 de julho de 1877. Assinada por Domos.Barbosa Lima, Mel. de Campoz Almeida, Ignácio Xavier P. de Campos, Antonio Dias Leite, Francisco

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P. Dames. Ordem 337 90 MIP - AESP.Relatório do Professor de Folisofia Francisco de Paula Oliveira dirigido ao Inspetor Fiscal dosEstudos da Capitania paulista Illmo. Sor. Manoel da Cunha d’Azeredo Coutinho aos 19 de junho de1820. Ordem 337 90, Pasta 04, Doc. 23 MIP - AESP.Ofício do Professor Francisco Mannuel da Silva e Mello endereçado ao Inspetor Fiscal dos Estudosda Capitania paulista, Manuel da Cunha d’Azeredo Coutinho Souza Chichorro. MIP – AESP.Relatório do Professor Francisco de Paula Oliveira dirigido ao Inspetor Fiscal dos Estudos daCapitania paulista, Manuel da Cunha d’Azeredo Coutinho Souza Chichorro aos 17 de agosto de1820. 337 90 MIP - AESP.Livro de Matricula de Porto Feliz, Série Encadernados de Instrução Pública – E1177 AESP.Relatório do Professor Publico João D’Oliveira Fagundes, “Escola Publica, 3ª Cadeira do SexoMasculino de Campinas, 4 de novembro de 1885, 4920 02 - Ofícios Diversos. MIP – AESP.Relatório do Professor Publico João D’Oliveira Fagundes, “Escola Publica, 3ª Cadeira do SexoMasculino de Campinas, 1º de Novembro de 1886”, 4920 02 - Ofícios Diversos – AESP.Prova de Pedagogia Ponto Terceiro. São Paulo, 19 de Desembro de 1876. Felismino Vieira Cordeiro.Provas escriptas de 1876. Escola Normal de São Paulo. 5129 01, MIP – AESP.4ª Sessão do Conselho Municipal da capital de São Paulo, 3 de novembro de 1887. E01661 –AESP.12ª Sessão do Conselho Municipal da capital de São Paulo. E01661 – AESP.13ª Sessão do Conselho Municipal da capital de São Paulo. E01661 – AESP.44ª Sessão do Conselho Municipal da capital de São Paulo, 24/01/1888. E01661 – AESP.46ª Sessão do Conselho Municipal da capital de São Paulo. E01661 – AESP.

Periódicos

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Anais da Assembléia Provincial paulista

Annaes da Assemblea Provincial de São Paulo (1842-1845). Biblioteca do AESP.Annaes da Assembléia Provincial de São Paulo (1850-1851). Biblioteca do AESP.Annaes da Assembléia Provincial de São Paulo (1868 –1869). Biblioteca do AESP.Annaes da Assembléia Provincial de São Paulo (1873). Biblioteca do AESP.Annaes da Assembléia Provincial de São Paulo (1886). Biblioteca do AESP.

Anais da Assembléia Provincial paulista

http://www.sampa.art.br/http://wwwcrl-jukebox.uchicago.edu/bsd/hatness/crl.html

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ANEXOS

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Anexo ISíntese dos episódios de contendas e Processos (1853-1897) - São Paulo

Referência

0140

4935 02

4935 02

4917 05

4 9 9 6 - 1

Período

1853

1859

1859

1864

1859

Local

São João da Boa Vis-ta (56º Districto)

Vila do Bráz

Capital

Villa da Penha

Villa Bella da Princeza

Classificação

Episódio 1

Episódio 4

Episódio 2

Episódio 6

Episódio 3

Síntese

O Professor Francisco Pereira Ma-chado é informado por uma porta-ria de que o sr. Maximiano JoséSoares será o Inspetor Distrital res-ponsável pela fiscalização da es-cola onde trabalha. Contrariado, oprofessor ameaça exonerar-se docargo de professor caso o cargode Inspetor seja ocupado por aque-le senhor. O professor indica al-guns nomes que julga competen-tes para a função, reúne atestadosque qualificam a si próprio. Ao fi-nal é exonerado.

O professor da cadeira masculinade Primeiras Letras, sr. João Antô-nio de Oliveira Campos é acusadopelo inspetor distrital, sr. IgnácioJosé de Araújo, de empregar lin-guagem imprópria para o trato comas autoridades da instrução.

Maria do Espírito é “educanda” doSeminário de Educandas do“Acu”. Diagnosticada como“morphetica”, a “educanda” é pres-sionada a deixar a instituição paraser transferida para o Hospital dosLázaros da Corte.

O professor da escola masculinade Primeiras Letras, sr. João Mariade Toledo é denunciado por um paide aluno, segundo o qual, o referi-do professor não estariacorrespondendo às funções de um“funcionário público” pago pela“nação”. A denúncia é anônima eé encaminhada ao inspetor geral deinstrução pública, dr. Diogo deMendonça Pinto.

A professora da cadeira femininade Primeiras Letras, sra. FranciscaAugusta Cortez pelo inspetordistrital, sr. Antônio Luiz Pereira daCunha de manter entre as “meni-nas” aquela de nome JosephinaDias Barbosa. Josephina já teriasido aprovada em todas as “maté-rias do ensino primário”, estavacom 12,4 anos e era “pardinha”.

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4996 01

4996 01

4996 01

4996 01

4996 01

4996 01

1864

1865

1874-1875

1881

1885

1887-88

Villa de Santa Izabel

Vila de Nazareth

Ribeirão Preto/Villa de Cajurú

Bananal

N.Sra. Aparecida(Sorocaba)

Bairro do Taboão(município de Cu-nha)

Episódio 5

Episódio 7

Episódio 8 -ProcessoAdministrati-vo

Episódio 15

Episódio 19 –ProcessoDisciplinar

O caso do professor da cadeiramasculina de Primeiras Letras, sr.Vicente Antônio da Cunha é enca-minhado para a subdelegacia depolícia local, sob a alegação decomportamento civil e moral quedestoava dos “seos deveres naqualidade de empregado publico”.

O professor responsável pela ca-deira masculina de Primeiras Letras,sr. Joaquim José Rodrigues é acu-sado de, entre outras coisas, en-volver alguns de seus alunos ematividades particulares do próprioprofessor. A acusação é encami-nhada ao inspetor geral de instru-ção pública, dr. Diogo de Mendon-ça Pinto e assinada por um “pai defamília” que não se identifica.

O professor da cadeira masculinade Primeiras Letras, sr. Bernardinode Almeida Gouveia Prata é inicial-mente responsável pela escola lo-calizada em Ribeirão Preto e, pos-teriormente pela escola da Vila deCajurú, tendo sido acusado pelosinspetores distritais de exercer aadvocacia quando não poderiaexercer outra atividade profissio-nal que não fosse o magistério pú-blico.

A sra. Maria Avelina de OliveiraBaptista é a professora responsá-vel pela cadeira feminina de Primei-ras Letras, tendo sido processadae pressionada a suspender as ati-vidades escolares realizadas emsua casa sob a alegação de que, oseu marido, o sr. Manuel PereiraBaptista, era homem de maus cos-tumes.

O professor “primário”, sr. Francis-co de Almeida Garret é acusadopelo inspetor distrital, sr. Coriollanod’Uttra de perceber ordenado pú-blico quando sequer comparecia aescola.

O professor Leopoldino de PaulaFernandes foi acusado de infraçãodos arts. 180 e 194 do § 4º, Reg. de22-08-1887. Entre outras, o profes

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4996 01

4996 01

4997 02

4997 02

4997 02

4997 02

4997 02

1887

1890

1886

1890

1895

1895

1895

Socorro

Batatais

Porto Feliz

Jundiaí

Vila de Santo Amaro

Ribeirão Preto

Sorocaba

Episódio 16

Episódio 14 –ProcessoDisciplinar

Disciplinar

Averigüação

Disciplinar

sor era acusado de fraudar a escri-turação escolar, morar com suaamásia na casa de dar escola.

O professor da 3ª cadeira masculi-na de Primeiras Letras, sr. Adelinode Campos é acusado de ter rou-bado o relógio de parede da escolapara comprar um relógio de bolso.

O professor da 1ª cadeira, sr.Américo Alves Vieira, dirige-se aogovernador do estado de São Pau-lo, sr. Prudente de Moraes, alegan-do perseguição da parte do Con-selho Municipal local.

O professor da 1ª cadeira masculi-na, sr. Eugênio da Motta Paes éacusado de pederastia, em acusa-ção formalizada pelo inspetordistrital, sr. Silvino Cavalcante deMoraes.

O professor “público”, sr. Hercu-lano Corrêa de Moraes Silveira, éacusado de não tomar posse docargo na devida data.

A Câmara Municipal acusa ao ins-petor literário de não ter procedidoà criação de novas escolas tal qualdemandava o resultado do recen-seamento realizado por aquela ins-tituição. A omissão do inspetordesqualificava-o para o “ramo doserviço publico”.

Os professores Antonio RaggioNobrega, Arthur Raggio Nobregae Olympia Raggio Nobrega sãoacusados de infração do “art. —do Reg. de 27 de nov. de 1893”.Estes professores exerciam o ma-gistério no Grupo Escolar “Dr. JoséAlves Guimarães Júnior” e discor-davam dos procedimentos do ins-petor em face da organização daescola: divisão dos alunos em clas-ses, adoção de métodos de ensi-no, etc.

O professor Joaquim IzidoroMarins (normalista) era responsá-vel pela 4ª escola masculina de

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4999 04

4999 04

4999 04

4998 03

4997 02

1895

1896

1897

1895

1891-95

Rio Claro

Franca

Capital

Capital

Guaratinguetá

Disciplinar

Disciplinar

Administrati-vo

Disciplinar

Sorocaba e, teria sido acusado pelaprática de “senas tristes, em logarespúblicos.”

O professor Flaviano JustinoBorges de Barros é acusado peloinspetor distrital de infração do“art. — do Reg. de 27 de novem-bro de 1893”, tendo fraudado ma-pas de freqüência, apresentar es-crituração escolar viciada de bor-rões e riscaduras, insultar ao ins-petor distrital.

O professor Theofilo Lopes da Sil-va é acusado de infração do “art.—do Reg. de 27 de novembro de1893”. Tendo se embriado, o pro-fessor abordou ao inspetor demodo escandaloso. Dessa manei-ra, rompiam-se “as mutuas rela-ções de urbanidade e cortezania”que anteriormente animavam a re-lação de ambos.

O diretor do Grupo Escolar “SantaIphigenia”, sr. Joaquim Lopes daSilva, cuja “vida pública” contavacerca de “um quarto de século” éacusado de cometer atos deindisciplina e imoralidade. A acu-sação parte de um grupo de pro-fessores da instituição. Entre asdezenove acusações, estão: omis-são acerca da organização da es-cola em classes; indicação de mé-todo a ser seguido pelos profes-sores, etc.

Antônio Monteiro Guimarães, 2ºoficial da 2ª seção da Secretaria deInstrução Pública é acusado de terrealizado emprego particular de umdocumento (livro de escrituraçãodos livros didáticos distribuídos àsescolas públicas) de “natureza pu-blica”.

A professora Lydia Cortez Ferreiraé acusada de falhas cometidas so-bre a escrituração escolar. No livrode matrícula da escola de sua res-ponsabilidade faltavam entre ou-tros, os registros de: épocas dasmatrículas primitivas, graus de adi-antamento dos alunos.

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Sorocaba

Vila de São José doRio Novo

Bairro do Leme(Guaratinguetá)

M’Boy-mirim

Freguezia de SãoBnenedicto, Distritoda Escada, municípiode Mogy das Cruzes.

Parahybuna

Bairro de Remédios

Bairro do Quilombo(Vila de Cruzeiros)

Administrati-vo

Episódio 12

Episódio 9

Episódio 10

Episodio 11

Disciplinar

O professor é acusado de abando-no da escola.

O professor (liberal) é acusado doexercício de advocacia paralelo aomagistério e de ter fundado um in-ternato para meninos.

O professor Theophilo Galvão deOliveira França é acusado de infra-ção do art. 118 § 3º, Reg. 18-4-1869.É acusado de fechar a escola emdias de aula e ter número de alu-nos abaixo do mínimo estabeleci-do pela lei. O inspetor não dá a ru-brica que possibilita o pagamentodo salário do professor, este porsua vez interpõe recurso.

A professora Maria Ambrosina doEspírito Santo é acusada de nãoter o número mínimo de alunas es-tabelecido pela lei e se defendeapelando para a necessidade daobrigatoriedade do ensino.

O professor Professor Luiz da Fon-seca de Moraes Galvão Junior éacusado de delito inscrito no art.118 § 4º, Reg. 18-4-1869. O profes-sor se defende sob a argumenta-ção de que é “novo na vida públi-ca” e o máximo que a profissão demagistério pode lhe ofertar é aedificação de uma “estátua de talode couve”.

Antonio Candido de Almeida e Sil-va é formado em Direito e é pai deum dos alunos do professor Adeliode Castro (normalista). O pai nãoaceita a eliminação de seu filho damatrícula da escola.

O professor é processado por terantecedentes criminais e por estarazão impedido da “direção morale intellectual”.

O inspetor distrital morre. Um ou-tro inspetor ocupa seu lugar e soba alegação de desconhecimentodas suas competências, não emiteo atestado de freqüência do pro-fessor, provocando a suspensãodo pagamento deste último. O pro-fessor interpõe recurso e reúne

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atestados de sua probidade e abai-xo-assinados dos pais de seus alu-nos.

O inspetor é formado em Direito eacusa a professora Francisca dePaula de manter relações “ilícitas”com o proprietário da casa ondemora e ensina. A professora teriase engravidado de um filho destehomem. Ela nega, produz sua defe-sa e pede demissão.

O professor Benedicto Candido deCorte Brilho é acusado de infraçãodo art. 121 § 4º, Reg. 18-4-1869. Oprofessor pugnou pela liberdade deum escravo, se dizia “republicano elivre pensador”, “abolicionista”,matriculou um escravo. Matriculou-se na Escola Normal. Não acredita-va em Deus e não ensinava Doutri-na Cristã. A defesa produzida con-tra o professor contém um abaixoassinado dos pais que diz: “estamosdispostos a retirar os nossos filhospreferindo que os mesmos vivessemnas trevas da ignorancia, a seremoffuscados e corrompidos pelas lu-zes da descrença e do atheismo.” Oprofessor não foi demitido.

O professor Pedro Alves Marquesdenuncia o professor ZabulonRaymundo de Oliveira Salles, ale-gando que este seria preguiçoso eoferecia aulas particulares que cho-cavam com a duração horária daescola pública prevista pelo regu-lamento. O inspetor é acusado deproteção ao professor Zabulon. Aacusação é feita no Jornal CorreioPaulistano, cujo editor é JoaquimRoberto de Azevedo Marques.

O Conselho Municipal de Instru-ção acusa ao professor AntonioGalvão Cuba de abandono da es-cola por três dias.

O Professor João Baptista de Aze-vedo é acusado de infração do art.118 § 4º e art. 115 § 4º do Reg. de 18de abril de 1869. O professor teriaabandonado a escola localizada emTietê para atuar como ator dramá-tico em Sorocaba.

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1887

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1886

Freguezia de SantaCruz da Conceição(Pirassununga)

Ponte Nova(Lagoinha)

Àreas (B. daVarzinha)

Guaratinguetá (B. deSanta Rita)

Tietê

Episódio 18Disciplinar

Episódio 22

Disciplinar

Episódio 13

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A professora Maria Gertrudes dosSantos Pereira é acusada de infra-ção do art. 186 do Reg. 22-9-1887.O Conselho Municipal de Instru-ção acusa a professora de não terenviado o mapa de freqüência dasua escola. A professora alega con-tar com 14 alunas freqüentes, nú-mero inferior ao mínimo estabele-cido pela lei (20) e como não rece-besse há dois meses, julgou quenão precisasse enviar tal mapa. Aprofessora é multada em 20:000rs.

O professor Napoleão de PaulaFrança é acusado de infringir o art.180 § 3º, Reg. 22-8-1887. O inspe-tor lhe veta o atestado de freqüên-cia, o professor o aborda na rua elhe dirige palavras “insubalternase offencivas a moralidade publica”.Ao que o inspetor diz conservar a“maior prudencia”. A “inquirição”é marcada para as 10:00h na “Saladas audiências” com presença detestemunhas. O professor é acu-sado de embriagar-se e se envol-ver em confusões cujo desfechose faz com a presença da polícia. Oprofessor é eleitor, abandonou opartido monárquico e filiou-se aopartido republicano.

O secretário do Conselho Munici-pal de Instrução acusa a professo-ra Antonia Vidal Domingues de in-fração do art. 115, Reg. 22-8-1887.A comunicação do processo foifeita pelo “Agente do Correio”. Aprofessora não teria reassumido acadeira no prazo legal depois docurso normal. A professora aleganão ter conseguido os 20 pontosnas avaliações de Física e Quími-ca. Por ocasião do exame, a profes-sora teria sido vítima de um incên-dio. Solicita novo exame.

A professora Claudina Elisa deMedeiros é acusada pelo C. M. deInstrução de infringir o art. 105,Reg. 22-8-1887 e teria 15 dias paraproduzir a defesa. A acusada ale-ga não Ter ocupado a cadeira noprazo legal por ter sido acometidade bronquite. Um temporal de trêsdias fez com que a viagem durasse

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1888

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1889

Bairro de Santa Bár-bara (São José dosCampos)

Pindamonhangaba

Freguesia de SãoBernardo

Parahybuna

Episódio 23

Episódio 25

Episódio 24Administrati-vo

Episódio 21

Disciplinar

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5 dias no carro puxado por bois naestrada [péssimo estado] deGuarareira. A professora não foipenalizada.

A professora Elisa Nogueira deAndrade (normalista) é acusada deinfração do art. 105, Reg. 22-8-1887.A acusada se defende sob a alega-ção de que o atraso na ocupaçãoda cadeira para a qual teria sidonomeada se deu em razão de trata-mento de saúde feito em Águas deCaxambu, fato comunicado pesso-almente no dia ao presidente doConselho Municipal de Instrução.Foi isenta da penalidade.

A professora Ambrosina é acusa-da de infringir o art. 105, Reg. 22-8-1887. A acusada se defende sob aalegação de que o atraso na aber-tura da escola se deu por não terencontrado casa para alugar. Amaioria das casas, diz a professo-ra, pertenciam a fazendeiros oumoradores sitiantes que as usavamnos domingos e dias de festas.Conseguir uma casa para o funcio-namento de uma escola implicava“prestigio”— ajuda de um “media-neiro”.

O professor José AthaideMarcondes interpõe recurso con-tra o inspetor por não ter o últimoremetido o atestado, impedindo opagamento do professor. O inspe-tor alega que a escola está fora dos“limites urbanos” e que, ao profes-sor interessava dar aula em lugarcômodo para si e não para os alu-nos. Segundo o inspetor, não de-nunciou ao professor antes porquetinha receio de que tal atitude fos-se tomada como perseguição polí-tica (eleição geral e provincial).O professor é acusado de infraçãodo art. 105, Reg. 22-8-1887. O acu-sado alega não ter ocupado a ca-deira no prazo legal porque ia secasar. Foi multado em 25:000rs.

O casal de professores, JoãoBaptista Moreira da Glória e MariaElisa da Cunha Glória são acusadosde infração do art. 174 § 6º e 193 do

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1889

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Pirassununga

Cotia

B. do Jardim (Jundiaí)B. do Jardim (Jundiaí)

B. da Capoeirinha(Mogi das Cruzes)

Disciplinar

Disciplinar

Socorro(Pindamo-nhangaba)

Disciplinar

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Reg. 22-8-1887. O casal exerce o ma-gistério “público” há 20 anos e jus-tifica não ter reassumido o magisté-rio no prazo legal devido a obten-ção de outra licença (6 meses) con-cedida para tratamento de saúde.

José Umbelino Fernandes era mem-bro do Conselho de Instrução Pú-blica e presidia o conselho do “go-verno conservador”. Foi acusadode não ter repassado às escolaspúblicas, a mobília concedida pelaAssembléia Provincial via Barão dorio Pardo. Tal mobília teria ido pa-rar em casas particulares. A Inten-dência Municipal de Caconde quersaber onde estão os móveis.

O professor Lindolpho ProcopioGomes é acusado de infringir o art.174 § 6º Reg. 22-8-1887. O profes-sor alega não ter tomado posse noprazo legal devido ao seu estadode enfermidade e a não existênciade médico no lugar onde morava.A pena foi suspensa.

A professora Balissa Fernandes deOliveira é acusada de infringir o art.174 § 6º, Reg. 22-8-1887. A profes-sora não reassumiu o cargo no pra-zo legal.

A professora Maria Perpetua SallesDamasco é acusada de infringir oart. 192, Reg. 22-8-1887. A escolaestava fechada no dia 8 de novem-bro de 1890, data marcada para osexames. A professora alega ter so-licitado antecipação dos examesporque estava enferma. Na datamarcada, o presidente do Cons.Mun. e o Promotor Público dacomarca apareceram em sua casa(local de funcionamento da esco-la). Três dias depois (11-11-1890),a professora é denunciada no Jor-nal Correio Paulistano de ser orgu-lhosa e de que não estava doente.O Conselho emite um parecer noqual, a defesa da professora, quese dizia “encomodada” é tido comoinfundada. A professora é multa-da em 20:000rs.

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Caconde (EspíritoSanto do Rio do Pei-xe)

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Rio Claro (B. dosCordeiros)

Caçapava

Cananéia (B.deTarapandé)

Disciplinar

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O professor João José Pedroso éacusado de infringir o art. 180 § 3º,Reg. 22-8-1887. O professor referi-do é acusado de se dedicar a ou-tros serviços de “empreitadas pu-blicas” e incitar aos alunos queentrem nos quintais alheios. Tam-bém é acusado de amasiar-se coma professora Joanna Francisca dosSantos Reis. Um anônimo o acusade obter serviços de sexo de pro-fessoras “putas”. O acusado sedefende sob a alegação de que as“empreitadas publicas” são incum-bidas pelo dr. Rafael Tobias deAguiar ao seu filho que tem maisde 21 anos. O parecer final dá a acu-sação como improcedente por fal-ta de provas.

A professora Joanna Franciscados Santos Reis é acusada de in-fração do art. 180 § 3º, Reg. 22-8-1887. A professora teria comporta-mento escandaloso, constituindo-se amásia de João José Pedroso. Ocasal recebeu 30 dias para produ-zir defesa. A acusada diz ter 27alunas “filhas das pessoas maismorigeradas da terra” e a relaçãocom o professor João José Pedrosaé de “puro coleguismo”. Segundoo parecer final, a acusação é im-procedente devido a falta de pro-vas.

O professor Joaquim Manoel deSant’Anna (instrução primária,música vocal e instrumental) foiacusado de infração do art. 180,Reg. 22-8-1887. O professor alegaque o baixo número de alunos dasua escola acontece porque o ma-jor José Flaminio de Vasconcellosinduz os pais a retirar os filhos dasua escola. Segundo o professor,a fundação da república elimina as“velhas instituições” e também os“mandões de aldeia”, as novas“divisas” da “Republica FederalBrasileira” são: “Igualdade, Liber-dade e Fraternidade”. O parecer do Conselho é favorá-vel ao major, ao que o professor seinterpõe: “Se quereis cortar o nógórdio e alijar os antigos regulos

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1890

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Capella de Pirapora(Parnahiba)

Capela de Pirapora(Parnahyba)

Araçariguama

Disciplinar

Disciplinar

Disciplinar

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da aldeia, está em vossas mãos: épedirdes o ensino obrigatório edepois da constituinte os homensda lei que reformem.” O conselhoo acusa de exercer o ofício detaberneiro na casa de sua “teuda emanteuda”. O professor propõe oretorno das Ordenações Filipinasdo Livro V.

O professor João Pereira de O. Pen-teado é acusado de infringir o art.180 § 3º, Reg. 22-8-1887. O profes-sor teria cometido atos imorais di-ante dos alunos, usado trajes “in-decentes e sujos” e atirado pedranum de seus alunos. O professorse diz vítima da perseguição de“regulos da aldeia”.

O professor Penteado acusa aoinspetor Moura Lacerda de infra-ção do “art.— do Reg. de 27 denovembro de 1893”. O professorteria procedido ao recenseamentoescolar, constatando um númerosuperior a 40 alunos em idade defreqüentar escola. A lista teria sidoenviada ao inspetor que nada fez.O professor é a favor daobrigatoriedade do ensino. O ins-petor diz que é “ridiculo” que oprofessor Penteado alegue não teralunos “porque o ensino não éobrigatório”. O professor é acusa-do de afixar editais daobrigatoriedade do ensino nas por-tas da intendência, da igreja, dacadeia e de casas comerciais.

O professor Emilio Leonardo de C.Filho é acusado de infração do art.174 § 4º, Reg. 22-8-1887. O profes-sor atrasou-se na posse da cadei-ra. Na sua defesa justifica-se combase na enfermidade de sua “San-ta Mãe”, e se diz surpreso por tersido “julgado como indisciplinado,tendo uma causa tão justa”.

A professora Adelina Brasilia deMacedo Rocha (20 anos de magis-tério público) é acusada de infra-ção do “art.— do Reg. de 30 dedez. de 1892”. A acusada teria fal-sificado a escrituração escolar aoinscrever como suas, alunas com

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1890

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1895-1896

1892

Bom Sucesso

Santo Antonio daBoa Vista (Faxina)

Ribeirão Preto

Guaratinguetá

Disciplinar

Disciplinar

Disciplinar

Disciplinar

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freqüência constada em outra es-cola. A professora se defende soba alegação de que, à ocasião emque realizava os serviços de escri-turação escolar, estava“perturbadissima” com seus“encommodos phisicos e molestia”em pessoa da sua família.

A Câmara Municipal de Brotasacusou ao inspetor literário deomissão frente ao procedimento doprofessor (substituto) LuigiPericles Salmena. A denúncia foipublicada no dia 11 de dezembrode 1895 no jornal: Gazeta de Brotassob o título: “CastigosCorporaes”. O presidente da Câ-mara teria ouvido choro dos alu-nos e foi até a escola quando veri-ficou e advertiu o professor sobrea prática de sanções corporais. Oprofessor Luigi admitiu a prática decastigos descrevendo-os mas, es-clarece, palmatória ou vara de mar-melo eram utensílios “legados” deseu antecessor e que já os haviabanido da escola.

A Câmara Municipal acusa ao ins-petor literário de não procedido àcriação de novas escolas tal qualdemandava o resultado do recen-seamento realizado por aquela ins-tituição. A omissão do inspetordesqualificava-o para o “ramo doserviço publico, porquecomprehende que a consolidaçãodo progresso deste Estado depen-de hoje principalmente dodesinvolvimento intellectual e mo-ral das classes sociais.”

O professor Ignacio Ferreira deAlbuquerque é acusado de infra-ção do art. 472 § 1º, Reg. 27 de nov.de 1893. Teria abandonado a es-cola sob a alegação de resolvernegócios do seu interesse. O acu-sado alega ter avisado ao inspetorque deveria proceder à substitui-ção do mesmo. O inspetor acusaao professor de falhas na“escripturação” escolar. O inspe-tor geral da Instrução dirige-se aoConselho Superior e diz que faltampapéis substanciais e alerta, tra

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1892

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Jaú (21º distrito)

Santo Amaro

Freguesia deAlambary(Itapetininga)

Averigüação

Averigüação

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tam-se de dois processos distin-tos.

O professor adjunto (formado emDireito) Frederico José TorresNetto (Grupo Escolar—) é acusa-do de infração do art. 477 § 1º, letraB, Reg. 27-11-1893. O acusado te-ria espancado “brutalmente oalumno Manoel Ignacio Romeirode 12 annos de edade”. O diretordo Grupo Escolar é o sr. Júlio Pes-tana que alega ter sido replicadopelo professor “em termos poucourbanos perante os professores doGrupo”. O “O pai do aluno” (for-mado em Direito) era uma “pessoabem conceituada na cidade” e te-ria exigido providências do diretordo Grupo. O diretor de InstruçãoPública, dr. Arthur César Guimarãesdirige-se ao Presidente do Conse-lho Superior de Instrução Públicae alega que o art. 489 do Regimen-to interno das escolas como o Re-gimento interno das escolas man-dado executar pelo Decreto nº 248de 26 de julho de 1894 “são omis-sos na attribuição da competênciarelativa á pena de suspensão, deque nenhum dos citados Decretoscogitou”. Para o diretor, é neces-sária uma “acção” de reforma quenão apenas possa “obviar” o casoapresentado por este processocomo a previsão daqueles que ocor-rerem no futuro.

O professor Francisco Xavier deMoura Galvão Lacerda, responsá-vel pela 5ª cadeira (Inglês) do cur-so normal. Em “congregação extra-ordinária” para definir “pena derepreensão” ao referido professor,este teria se exaltado ao ponto dequebrar uma carteira com um sôco.O acusado comunicou sua retira-da da reunião e advertiu de que“defenderia seus direitos pelosjornaes e por toda a parte.” Adver-tiu que naquela escola havia uma“claque positivista”. O diretor daEscola Normal, sr. Gabriel Prestessolicitou a instauração de proces-so baseado no art. 493 §1º do Có-digo Disciplinar. O Presidente do

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1895

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Pindamonhangaba(Santo Antonio doPinhal/9º distrito)

Capital

“instruçãodisciplinar”

Disciplinar

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Estado decretou a suspensão pre-ventiva do professor.

O professor Arthur Victor de Aze-vedo Segurado (curso noturno)não ocupou o cargo no prazo le-gal. O professor se defende sob oargumento de que a casa ondefuncionava o curso diurno não ofe-recia as condições necessárias parao funcionamento de um curso no-turno, tendo se demorado para en-contrar a casa com as condiçõesrequeridas para o funcionamentodevido da escola.

O presidente da Câmara acusa aoinspetor “Escolar” de não ter com-parecido à reunião de “apuração”dos resultados do recenseamentorealizado por três professores e ele[o presidente da Câmara].

A professora Izabel Brazileira Car-neiro, do Grupo Escolar dr. CesarioMotta tem atestado negado pelaIntendência de Itú. *livro de pon-to do Grupo.

O inspetor literário é acusado peloPresidente da Câmara Municipal,Ernesto Goulart Penteado (forma-do em Direito) de ter mudado do-micílio para Xiririca, para ondetransferiu também o “distrito”. Talfato impediu a conclusão do recen-seamento no prazo legal. O inspe-tor também era acusado de ter “fei-to uma só visita a maior parte dasescolas publicas, deixando dessemodo em abandono”. Na sua defe-sa, o inspetor se diz “educado sobos principios da moral christan”,“filho de um chefe politico” e per-tencente a uma “familiainfluentissima” do estado. As“pequeninas accusações” são “fi-lhas da inveja”, defende-se o acu-sado. Informa que no período de15 meses recebeu 829 ofícios e ex-pediu 711, além de outros trabalhos:conferências de mapas, organiza-ção de estatística distrital, distri-buição de livros didáticos e de es-crituração escolar.

Campinas (13º distri-to)

Cananéia (5º distrito)

Itú (18º distrito)

Iguape (5º distrito)

Disciplinar

Disciplinar

Iguape (5º dis-trito)

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A professora e diretora do Collegio“Moreira”, sra. Brasilia Moreira éacusada de infração do art. 487 §4º, Reg. de 1893. A acusada abriu“colégio” sem participação préviaao Conselho Superior de InstruçãoPública.

A professora Leonor Augusta Ri-beiro é acusada de abandono dacadeira no período de 12 de julho a15 de agosto de 1895.

Antonio Monteiro Guimarães, 2ºoficial da 2ª seção da secretaria deInstrução Pública é acusado porJosé Cortes Bernardino Silva, 2ºoficial da 3ª seção da mesma insti-tuição. Segundo o acusado, Anto-nio teria feito um emprego particu-lar de um documento (livro de es-crituração dos livros didáticos dis-tribuídos às escolas públicas) de“natureza publica”.

O inspetor distrital acusa ao pro-fessor Arthur Fontes de infraçãodo art. 472 § 1º, Reg. 27-11-1893. Oacusado não teria dado aula entreos dias 15 e 30 de maio de 1895.

O professor Emilio L. de CamposFilho é acusado de infração do “art.— do Reg. de 27 de novembro de1893”. O inspetor distrital teria vi-sitado a escola do referido profes-sor e lá chegando, foi recebido em“tom arrogante em presença deseus alumnos” e perguntado “emque caracter visitava sua escola eexigia-lhe os attestados devaccinação?” O professor não acei-taria a visita e se recusaria a pres-tar qualquer informação sob a ale-gação incompatibilidade entre ele[professor] e o inspetor [visitan-te].

O professor Theophilo Lopes daSilva (11 anos de magistério) é acu-sado de infração do “art. — do Reg.de 27 de novembro de 1893”. O pro-fessor estaria se embriagando eabordou ao inspetor de modo es-candaloso. O inspetor enviou men-sagem telegráfica ao Diretor Geralde Instrução Pública informando-

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Casa Branca (15ºdistrito/São José doRio Pardo)

Santa Izabel

Capital

Rio Claro (São Carlosdo Pinhal)

Ribeirão Bonito (20ºdistrito/São Carlos doPinhal)

Franca

Disciplinar

Administrati-vo

Disciplinar

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o e solicitando sugestão de provi-dências. O professor pediu demis-são do cargo e mandou que um alu-no fosse entregar a chave da esco-la na casa do inspetor. Fato ocorri-do durante as eleições realizadasem 30 de julho de 1896 teria provo-cado o rompimento das “mutuasrelações de urbanidade ecortezania” antes existente entre oprofessor e o inspetor.

O professor Joaquim Luiz de Britoé avisado de alteração da data deexames. Entretanto o professor in-siste na manutenção da data sob oargumento de que terá a visita dodr. Alfredo Pujol. O acontecimentodos exames realizados na escola doreferido professor é publicado pelaimprensa. Durante os exames seteria “servido um profuso copod’água, trocando-se por essa oca-sião diversos brindes.”

Fragmentos esparsos de proces-sos que, aparentemente portamquestões de fraude na escrituraçãoda freqüência escolar.

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1896 Capital (8º distrito)

A classificação “episódio”, seguida de um número foi usada no curso do texto e, aqui reproduzida,para efeito de identificação dos processos que foram examinados neste estudo, tendo em vista o conjuntodos processos encontrados e devidamente reproduzidos e classificados na pesquisa.

À exceção dos episódios 2 e 4 que foram encontrados na Série Ofícios Diversos - AESP, todos osdemais fazem parte da Série Manuscritos de Instrução Pública –AESP. Deve-se observar ainda que, desteconjunto maior, os episódios 1 e 6 encontram-se juntos de relatórios de professores enquanto os demaisestão agrupados na categoria Processos , Série MIP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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Anexo IIEpisódio 25 – Professor Napoleão de Bula França, Pindamonhangaba, 1888-1889.

4996 01 – Processos – MIP – AESP.

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Anexo IIIEpisódio 2 – 4935 02 – Série Ofícios Diversos – AESP.

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Anexo IVMapa da Capital da Província de São Paulo, 1877. Jules Martin. Litografia.

MOURA, Carlos Eugênio M. de, Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX, 1988, p. 234-235.Igrejas, Bondes, Passeios, Escola etc.

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Anexo VEpisódio 13 – Professor João Baptista de Azevedo Marques. Tietê, 1886.

4996 01 – Processos – MIP – AESP.

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