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José Carlos da Silva Garcia Nas Fronteiras da Constituição O MST entre reivindicação, protesto e democracia Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Profª. Gisele Guimarães Cittadino Rio de Janeiro Setembro de 2013.

TESE NAS FRONTEIRAS DA CONSTITUIÇÃO FINAL · Conselho de Administração do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região. Um abraço muito especial, em se tratando do Tribunal, merecem

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José Carlos da Silva Garcia

Nas Fronteiras da Constituição

O MST entre reivindicação, protesto e democracia

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito.

Orientador: Profª. Gisele Guimarães Cittadino

Rio de Janeiro Setembro de 2013.

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José Carlos da Silva Garcia

Nas Fronteiras da Constituição

O MST entre reivindicação, protesto e democracia

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª. Gisele Guimarães Cittadino Orientadora

Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Fábio Carvalho Leite Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva UNESA

Prof. Marildo Menegat UFRJ

Prof. Gilvan Luiz Hansen

UFF

Profª. Monica Herz Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2013.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

José Carlos da Silva Garcia

Graduou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1989 e obteve o grau de mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1998. É juiz federal na Seção Judiciária do Rio de Janeiro desde 1996, sendo desde 1999 juiz titular da 5a. Vara Federal de Niterói. É pesquisador na área de Direito Constitucional nos temas democracia deliberativa, interpretação constitucional, movimentos sociais, desobediência civil e ação comunicativa.

Ficha catalográfica

Garcia, José Carlos da Silva. Nas Fronteiras da Constituição: O MST

entre reivindicação, protesto e democracia /José Carlos da Silva Garcia; orientadora: Gisele Guimarães Cittadino. – Rio de Janeiro PUC, Departamento de Direito, 2013.

267 f. : 29,7 cm 1. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. Inclui bibliografia 1. Direito - Teses. 2. Movimentos sociais 3.

questão agrária. 4. direito constitucional. 5. desobediência civil. 6. democracia deliberativa. 7.protesto; 8.interpretação. I. Cittadino, Gisele Guimarães. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

CDD: 340

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A Rejany e Gabriela,

presenças fundamentais no território que habito.

Ao Inácio, que aos poucos redefine suas próprias fronteiras.

A Ilírio e Edi, que há tanto já cruzaram a

última fronteira, mas ainda deixam pegadas pelo caminho.

A todos aqueles que vivem nas fronteiras que

procuro começar a entender neste trabalho.

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Agradecimentos

Não há trabalho ou atividade humana, aí obviamente incluído o fazer

acadêmico, que se desenvolva ou aperfeiçoe sem a participação, direta ou indireta,

de uma multidão de gentes e fatores. Cada pessoa que lê, fala, ouve, comenta,

escreve, critica, zomba, sugere, elogia, desfaz, ignora, busca, se irrita, se afasta,

retorna, se contrapõe, ataca, defende, compartilha, copia, não entende, entende

errado, entende diferente, faz que não entende ou qualquer outra reação humana

dá, a seu modo, uma contribuição não só para este pequeno e provisório resultado

final, mas para o seu aperfeiçoamento e o de seu autor. Feliz ou infelizmente, esse

imenso mar de pessoas continuará sendo sempre um mistério para nós.

Mais pragmaticamente, um grupo menor de pessoas, um pouco mais

definível, interferiu de modo mais perceptível no desenvolvimento do presente

trabalho. Correndo sempre o risco da injustiça que vem com a omissão

involuntária, pretendo elencar se não todos, ao menos alguns que participaram

mais ativamente deste esforço.

O povo da PUC-Rio é uma evidência. Todos os professores que

participaram da difícil seleção para o doutorado em 2009, e eram muitos, e que

decidiram aprovar este projeto, estão sem dúvida nesta lista. Dentre estes, os que

ministraram as aulas a que assisti foram fundamentais, todos, sem exceção: José

Ribas Vieira, José Maria Gómez, Francisco Guimaraens, Bethânia Assy, Nádia de

Araújo, Fábio Leite, Adriano Pilatti, João Ricardo Dornelles, Letícia de Campos

Velho Martel e Gilvan Luiz Hansen, da UFF.

Se Letícia não me dissesse que eu precisava encontrar o meu “N” (que, ao

final, não precisei encontrar), e que deveria pensar em obter um programa que

organizasse os dados da internet em planilhas, muito da metodologia aqui

utilizada teria virado uma piada. Um almoço, e uma sugestão que me abriu os

olhos e me fez ganhar meses.

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Foi Náiron José Correia Guimarães quem desenvolveu o programa que

extraiu os dados da internet e os enviou para planilhas em formato xml ou xls.

Não saberia contar quantas horas passamos trocando emeios ou discutindo

problemas nas tabelas e como resolvê-los via mensagens instantâneas. Não o

conheço pessoalmente (mais um traço desse mundo virtual com o qual

convivemos), mas foi sempre um excelente profissional, cujo trabalho confiável e

sempre disponível mostrou-se fundamental para este projeto, e vale em si um

agradecimento muito especial não apenas a ele, mas também ao amigo Philipe

Kling David, que o indicou. Meu abraço especial e muito carinhoso também ao

meu cunhado, Leonardo Ferreira Leão, que ajudou com a sintaxe de algumas

fórmulas para operar as planilhas com os dados.

Bethânia Assy foi uma grande incentivadora, fosse nos contatos iniciais com

vistas à França, fosse na banca de qualificação, com observações críticas, precisas

e sempre úteis.

Foi de Nádia Araújo a sugestão de instrumento de avaliação de decisão

judicial que, posteriormente modificado por mim, foi aqui utilizado. Foi também

ela a responsável, no Seminário de Pesquisa que ministrou em 2010, pela troca e

análise de projetos dos alunos do doutorado uns com os outros, primeiro momento

para o teste de nossas pretensões e das pernas que teríamos para cumpri-las. O que

nos leva aos colegas de turma do doutorado 2009: Alexandre Mendes, Junya

Barletta e Rodrigo Tavares, companheiros de jornada e de primeiras críticas e

trocas sobre as pesquisas que ainda viriam a ser.

Este esforço também seria inútil sem o apoio administrativo muito além do

óbvio e do formal prestado por Carmen e Anderson, sempre prontos não apenas a

fazerem seu trabalho, mas a ajudarem e a sustentarem, com simpatia e

envolvimento.

Minha orientadora, Gisele Cittadino, confiou e estimulou desde a primeira

hora, e foi ao mesmo tempo cuidadosa, atenta aos detalhes e generosa para dar

espaço e autonomia para que autor e pesquisa respirassem, qualidade e grandeza

nem sempre presentes no meio acadêmico, e que fazem desta professora o grande

nome e a grande pessoa que com justiça é.

A ida para a França foi em si mesma uma grande empreitada, que contou

com muitos apoios. Os primeiros contatos para além-mar jamais se concretizariam

sem o auxílio e a generosidade tão característicos de Roberto Kant de Lima.

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O apoio da CAPES, com a concessão de uma bolsa-sanduíche1 junto à École

des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, de Paris, permitiu que o desejo

se tornasse realidade, assim como a liberação para estudos no exterior pelo

Conselho de Administração do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região.

Um abraço muito especial, em se tratando do Tribunal, merecem os

queridos amigos Liliane Roriz, André Fontes, Carlos Guilherme Lugones, Jonas

Coutinho e Fátima Bandeira de Mello, cuja presença em momentos decisivos foi

fundamental, muitas vezes para estimular e não deixar a peteca cair. E sem minha

substituição atenciosa por Priscilla Costa Corrêa, durante os meses na França, e

ainda o sempre fantástico e inestimável apoio da equipe da 5.ª Vara Federal de

Niterói, que aqui personifico na Diretora de Secretaria Marlis Cristina de Souza e

na Oficial de Gabinete Flávia Rappini Lemos, conciliar o doutorado e a

magistratura seria bem mais difícil do que já foi.

Daniel Cefaï, orientador francês, Liora Israël, Antoine Garapon e Lisa

Hilbink foram nomes que não apenas se interessaram ou apoiaram ou sugeriram

ou deram ideias - deram ainda acolhida e solidariedade quando a distância e a

saudade se fizeram sentir, e acabaram virando bons amigos. Daniel e Liora

trouxeram ainda o aporte que fui buscar do outro lado do grande mar, as formas

de lidar com tantos dados de maneira razoável, o que fizeram através de

excelentes conselhos e observações (além de seus maravilhosos seminários na

EHESS). O resultado disso nesta tese, entretanto, é evidentemente de minha

exclusiva responsabilidade.

Fernanda Duarte, Rogério Carvalho, Vanessa Reis, Leopoldo Muylaert,

Andréia Fonte Boa, Bruno Dutra, Beatriz Dutra, foram amigos incansáveis no

antes, no durante e no depois. Sem Moacir Rega, quando voltasse não teria mais

uma casa, mas uma pilha de contas e títulos protestados. E Valquíria da Silva

Souza manteve a casa funcionando, quando ninguém mais poderia fazê-lo.

Lúcio Abbondati Júnior, Antônio Chaer Filho e Thereza Machado, mesmo à

distância, cuidaram do corpo e o fizeram não descolar muito da alma (viva o

Skype!).

1 Processo n.º BEX 4589/11-4.

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Fábio Leite, ao conciliar simpatia, envolvimento e rigor, desempenhou um

papel muito importante, e parte do que discutimos em sua disciplina está aqui,

ainda que sob outra roupagem.

Fernanda Duarte é uma antiga parceira de felicidades e infelicidades,

acadêmicas e judiciais, testemunha ocular do início desta viagem que talvez ainda

não se encerre, antes quem sabe recomece aqui de outra forma.

Gilvan Hansen é um homem com um coração maior que si mesmo, o que

nem sempre é fácil. Amigo, companheiro, parceiro, gaúcho, gremista e generoso

para compartilhar o muito que sabe e se indagar junto o pouco que não sabe.

Marildo Menegat, outro gaúcho errante, contemporâneo de muitas lutas e

descobertas e da aposta em um outro mundo possível, aceitou seguir-me até um

pouco antes do fim do mundo na minha defesa, e sou-lhe profundamente grato por

isso.

Vários amigos, parentes, pessoas muito próximas, participaram desse

esforço com ajuda efetiva, energias positivas e suporte emocional. São muitos, e

nem seria possível listá-los todos. Espero que se sintam contemplados de alguma

maneira, e não rejeitados pela representação, na menção que faço a Manuel

Gavilán e a Eva Loesch, amigos queridos que de várias formas sintetizam este

apoio carinhoso e indispensável.

Nenhuma palavra seria suficiente não exatamente para agradecer, mas para

dimensionar o que Rejany Dominick e Gabriela Dominick Garcia significam na

minha vida. Com coragem, tensões, irritações, solidões, carinhos, skypes, frios,

calores, assoberbamentos, saudades, crises, ausências, presenças, elas se

inscrevem na minha pele, na minha carne, na minha alma, em toda a minha

existência. Há muito delas aqui, portanto, a ponto de eu não saber definir o

quanto. Talvez seja mais óbvia a presença de Rejany, com a sólida formação

teórica e a enorme experiência acadêmica que tem, e pelo fato de compartilhar,

dividir e multiplicar a vida comigo há tantos anos; mas Gabi é também a figura

que ensina a cada dia ao mesmo tempo em que aprende, e cuja alegria de viver e

capacidade de aprender e desaprender são sempre surpreendentes. Sem essas duas

mulheres na minha vida e o amor imenso e maravilhoso que vivemos, ainda que

amores tão diferentes entre si, minhas fronteiras seriam ridículas e sem sentido, e

eu mesmo, uma sombra de mim.

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Por último, agradeço a uma mulher simples que jamais passou da 4.ª série

do ensino primário no interior do Rio Grande do Sul, mas que, apesar de me

deixar tão cedo, me ensinou as mais importantes lições de amor, dignidade,

coragem, perseverança, confiança e resiliência, e que ainda hoje me fazem sentir

como alguém potente e capaz. Obrigado, Edi, de alguma forma uma fase se

superou aqui.

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Resumo

Garcia, José Carlos da Silva; Cittadino, Gisele Guimarães. Nas fronteiras da Constituição: O MST entre reivindicação, protesto e democracia. Rio de Janeiro, 2013. 267p. Tese de Doutorado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O autor analisa como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra –

MST interfere na geração e interpretação de direitos a partir de suas

reivindicações e formas de mobilização, em especial ocupações de terra.

Comparando-as com as decisões proferidas a respeito pelo Supremo Tribunal

Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça ao longo de mais de dez anos, ele

discute qual o papel que atos de protesto e de desobediência civil podem

desempenhar na revitalização e na permanente relegitimação de sistemas jurídico-

normativos em sociedades complexas, sob um ponto de vista ligado à democracia

deliberativa e a um alargamento do conceito de sociedade aberta dos intérpretes

da Constituição.

Palavras-chave

Movimentos sociais; questão agrária; direito constitucional; desobediência

civil; democracia deliberativa; protesto; interpretação.

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Resumée

Garcia, José Carlos da Silva. Cittadino, Gisele GUimarães (Directeur de thèse). Aux frontières de la Constitution : le MST entre la revendication, la protestation et la démocratie. Rio de Janeiro, 2013, 267p. Thèse de doctorat – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

L'auteur analyse comment le Mouvement des travailleurs ruraux sans-terre –

MST interfère sur la génération et sur l'interprétation des droits à partir de ses

revendications et des formes de mobilisation, spécialement les occupations de

terre. En les comparant avec les décisions prises à ce propos par le Suprême

tribunal fédéral et par le Supérieur tribunal de justice tout au long de plus de dix

ans, il discute le rôle que les actes de protestation et de désobéissance civile

peuvent jouer dans la révitalisation et dans la relégitimation permanente des

systèmes juridiques-normatifs dans des sociétés complexes, d’un point de vue lié

à la démocratie délibérative et à un élargissement du concept de société ouverte

des interprètes de la Constitution.

Mots-clés

Mouvements sociaux – question agraire – droit constitutionnel –

désobéissance civile – démocratie délibérative – protestation – interprétation

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Sumário

introdução.................................................................................................16

1 Sobre Cidadãos e Fronteiras.................................................................24

1.1 Para pensar Cidadãos e Fronteiras....................................................24

1.2 Olhando sobre a Fronteira.................................................................41

2 Fronteiras, Movimentos, Mudanças ......................................................73

2.1 Demarcando as Fronteiras .................................................................73

2.2 Fronteiras Abertas e Vigiadas ............................................................87

3 Piquetes e Mangrulhos........................................................................133

4 Conclusões: Uma Democracia nas Fronteiras ....................................181

5 Bibliografia...........................................................................................193

Anexos ...................................................................................................202

Anexo 1 ..................................................................................................203

Modelo de Ficha de Análise Judicial ......................................................203

Anexo 2 ..................................................................................................206

Fichamento Das Decisões-Tipo .............................................................206

Anexo 3 ..................................................................................................259

Códigos-Fonte dos Programas para Acesso aos Dados de

Jurisprudência ........................................................................................259

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Lista de Tabelas

Tabela 1 – Base de Dados da Pesquisa ..................................................39

Tabela 2 – Número de Ocupações e Famílias – 1990 – 2010.. .............. .44

Tabela 3 – Movimentos Sociais e Redes Terroristas ...............................56

Tabela 4 – Conflitos, Pessoas Envolvidas e Assasinatos 1990 - 1999 ....64

Tabela 5 – Ocupações, Área Ocupada e Famílias Envolvidas –

2000 - 2010 .......................................................................................71

Tabela 6 – Assentamentos por Origem (Ocupações ou Governo)

1986 - 1997 .....................................................................................135

Tabela 7 – Ocupações, Assentamentos e Ocupações/Assentamentos –

2000 – 2010.......................................................................................... ..138

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Lista de Gráficos

Gráfico 1 – Apoio Ao Mst Ibope 2006.......................................................46

Gráfico 2 – Responsável Por Conflitos Ibope 2006..................................46

Gráfico 3 – Mst Sinônimo De Violência Ibope (Jornal O Globo) 2008......47

Gráfico 4 – Conflitos De Terras E Pessoas Envolvidas – 1990 – 1999....65

Gráfico 5 – Conflitos E Assassinatos No Campo – 1990 - 1999 ..............66

Gráfico 6 – Famílias E Ocupações – 2000 – 2010 ...................................71

Gráfico 7 – STF– Decisões Cíveis E Criminais ........................................74

Gráfico 8 – STF – Tipos De Ação.............................................................74

Gráfico 9 – STF – Objeto Principal Decisões ...........................................75

Gráfico 10 – STF – Invasão/Ocupação Como Objeto Por Subcategoria..76

Gráfico 11 – STJ – Decisões Cíveis E Criminais......................................77

Gráfico 12 – STJ – Tipos De Ação ...........................................................78

Gráfico 13 – STJ – Competência Originária/Recursal, Cível/Criminal .....79

Gráfico 14 – STJ – Objeto Principal Decisões..........................................80

Gráfico 15 – STJ – Ocupações X Hcs Julgados.......................................83

Gráfico 16 – STF – Decisões X Ocupações X Assentamentos ............88

Gráfico 17 – STJ – Decisões X Ocupações X Assentamentos ............90

Gráfico 18 – Respostas Judiciais X Ocupações X Assentamentos..........90

Gráfico 19 – Ocupações E Assentamentos – 2000 – 2010....................136

Gráfico 20 – Ocupações/Assentamentos 2000 – 2010 ..........................137

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“Eu tenho fé, sim eu tenho fé

Que nós viveremos sem medo e confiantes

Numa era mais risonha

Olhar de nossas crianças

Torna a brilhar de inocência

E no meio das gritarias

O temporal talvez vai amainar

Na doçura e calmaria

Nosso amor vem descansar

De sua luta e resistência

Para sobreviver nessa tormenta”

(“Yamore”, Salif Keita2)

2 Trecho cantado por Cesária Évora, originalmente em crioulo cabo-verdeano. Agradeço imensamente a Eugênia Luz a gentileza desta tradução para o português.

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Introdução

O tema desta tese é a forma de resposta do Estado brasileiro à atuação dos

movimentos sociais na atualização dos conteúdos normativos do ordenamento

constitucional no Brasil. Minha análise será feita a partir da atuação do

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST3 e sua leitura pelo

Supremo Tribunal Federal – STF e pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ. Serão

enfocados os planos da responsividade e da forma de processamento sistêmico das

demandas do movimento pelos subsistemas estatais, especialmente o judicial:

como os discursos ou ações gerados pelo movimento são interpretados ou

incorporados ou reelaborados pela institucionalidade?

Figurarão como pano de fundo os mecanismos concretos pelos quais a

atuação daquele ator social, posicionando-se como intérprete constitucional (e

também infraconstitucional), interfere na redefinição da compreensão de direitos,

com projeção para os campos da geração, interpretação e efetividade de direitos

constitucionais.

Em minha dissertação de mestrado em Teoria do Estado e Direito

Constitucional, orientada pelo Professor Carlos Alberto Plastino e defendida na

PUC-Rio em 1998 (Garcia, 1999), averiguei a compatibilidade ou não das

principais estratégias empregadas pelo MST, especialmente ocupações de terras

improdutivas e de prédios públicos, com os fundamentos da ordem constitucional

vigente no Brasil, o que foi feito a partir da teoria da ação comunicativa, de

Habermas, da noção de constituição aberta, de Häberle, e da ideia de

desobediência civil4. A metodologia então adotada privilegiou a análise da

3 O MST é o mais reconhecido movimento social de luta pela reforma agrária do Brasil, possivelmente do mundo, e articula sem dúvida a maior parte das ocupações de terras e atos públicos pela reforma agrária em nosso país. Apesar disso, não é o único movimento nem a única organização que atua nesta área. No presente estudo, trabalharei exclusivamente com o MST, e não com nenhuma outra organização ou entidade do movimento pela reforma agrária. 4 A noção de desobediência civil com a qual trabalhei naquele momento, e que recupero na presente tese, seguiu, com algumas variações que serão oportunamente indicadas, as três exigências correntes na literatura política para identificação de um ato como de desobediência: publicidade, ilegalidade (ao menos aparente) e não violência (para mim, significando a não iniciativa de atos de violência e, nos casos em que os manifestantes venham a sofrê-la, reação de forma moderada e proporcional). Como veremos mais à frente, estas precisões não se fazem sem algum grau de polêmica. Por outro lado, o papel que a desobediência civil tem a desempenhar no contexto geral deste trabalho prende-se inicialmente às elaborações de Habermas sobre o tema,

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autoimagem do movimento, a partir de seus documentos internos e manifestações

públicas; o exame das representações sociais construídas sobre ele, partindo das

matérias sobre o MST e a questão agrária publicadas em veículos de grande

circulação nacional; e pelo estudo de algumas decisões do Superior Tribunal de

Justiça, especialmente quanto à criminalização ou não das ações do movimento

vinculadas ao desenvolvimento daquelas estratégias estudadas5.

A conclusão daquele trabalho foi no sentido de que as estratégias adotadas

pelo MST, ainda que eventualmente espetaculosas, eram em geral não apenas

compatíveis com o ordenamento jurídico democrático, mas de fato essenciais para

coadjuvar no processo constante e permanente de atualização dos seus conteúdos

normativos, além de buscarem a viabilização de programa traçado na Constituição

quanto à reforma agrária, inserindo-se no âmbito da ampliação do leque de

intérpretes constitucionais em sociedades abertas (Häberle, 1997).

Nesta tese de doutorado, analisarei o processo de interferência do MST na

atualização dos conteúdos normativos do ordenamento constitucional no Brasil, a

partir da confrontação de sua atuação com a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal – STF e do Superior Tribunal de Justiça – STJ no período de 1.° de

janeiro de 2000 a 31 de dezembro de 20106.

Uma das características centrais dos sistemas jurídicos democráticos reside

em sua reflexividade, sua mutabilidade, sua capacidade de adaptarem-se não só à

passagem do tempo, mas também às respectivas mudanças na conformação da

opinião pública e da cultura. Boa parte das questões de legitimação dos sistemas

jurídicos democráticos talvez possa, inclusive, ser remetido à maior ou menor

adequação entre manifestação desta opinião pública e a efetividade do sistema de

garantias constitucionais (Habermas, 1997; Post & Siegel, 2007).

especialmente em Habermas, 1997b (Faticidade e Validade, v. 2) e 1997d (Desobediência civil: pedra de toque do estado democrático de direito), e Borradori, 2004 (Filosofia em tempo de terror: diálogo com Habermas e Derrida), ainda que com redimensionamentos em vários níveis. Ver, a propósito, pp. 147 e seguintes. 5 A análise dos julgados do STJ, naquele momento, tinha caráter meramente exemplificativo e não implicava de modo algum uma análise da jurisprudência daquela Corte sobre o tema. 6 O período me pareceu o mais indicado seja por representar um corte bastante amplo, essencial para verificar as variações ou constâncias na jurisprudência, e que engloba toda a primeira década do século atual, seja por se tratar de um período bastante recente e cuja análise ainda lança projeções para a realidade em curso. Além disso, como na pesquisa de mestrado examinei o MST, ainda que sob aspectos, critérios e com objeto inteiramente diversos, tal como atuante na segunda metade da última década do século XX, considerei que seria academicamente mais interessante tomar o período de onze anos subsequente, de 2000 a 2010.

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Neste sentido, o foco central desta pesquisa situa-se na busca por

compreender e sistematizar, ao menos em parte, os procedimentos de interferência

dos movimentos sociais sobre os conteúdos das normas jurídicas constitucionais

através de mudanças na sua interpretação e aplicação pelas instâncias funcionais

do sistema jurídico, notadamente o judicial.

Alguns autores consideram que, ao menos nos EUA, as relações entre

interpretação profissional e popular da Constituição não tenham sido ainda

suficientemente estudadas (Post & Siegel, 2007: 13). Na realidade daquele país,

em vários aspectos muito distinta da brasileira, tem-se entendido que são

basicamente duas as formas principais através das quais se apresenta a

interferência dos movimentos sociais nas decisões judiciais de conteúdo

constitucional: através da influência sobre os partidos políticos para a indicação de

membros do Judiciário, em especial da Suprema Corte, e mediante apelos aos

valores da elite ou pressões para alteração da opinião pública (Balkin, 2005; Post

& Siegel, 2007). Parece indispensável compreender como se apresentam os

mecanismos concretos desta influência no Brasil, com seu sistema misto de

controle de constitucionalidade e sua forma de acesso aos cargos judiciais, em

regra, via concurso público7.

Evidentemente, não se pretende aqui sugerir que a única forma de mudança

dos referidos conteúdos normativos decorra da atuação dos movimentos sociais.

Inúmeros são os mecanismos, formais ou não, que interferem na interpretação e

aplicação das normas constitucionais pelos órgãos estatais. O que se afirma é que

a ação pública dos movimentos sociais sem dúvida desempenha um papel

relevante na atualização dos conteúdos normativos em sociedades democráticas

(Garcia, 1999), o que, por vezes, pode se fazer mesmo sem a perfeita consciência

dos responsáveis diretos pela decisão, funcionando antes como redefinidores do

senso comum ou do conteúdo da opinião pública sobre determinado assunto

polêmico ou controvertido. É neste sentido a opinião de Balkin (2005: 35)8:

7 Certamente devem ser consideradas as importantes exceções a esta regra geral representadas tanto pelo quinto constitucional, no caso dos tribunais de apelação, quanto pelas formas de indicação para os tribunais superiores, em especial, no que diz respeito a este trabalho, ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça. 8 As eventuais citações em língua estrangeira serão livremente traduzidas por mim e terão seu texto original lançado em nota de rodapé. Quando não se cuidar de citação feita no corpo do texto, ocasionalmente as citações poderão ser mantidas em nota de rodapé em seu idioma original, mesmo sem tradução.

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quando movimentos sociais apelam com sucesso por mudanças no mundo social, eles não apenas modificam percepções de fatos, mas também redefinem os valores, pressuposições e significados sociais que são usados para interpretar e enquadrar estes fatos. (...) Quando um movimento social é plenamente bem sucedido, os juízes perceberão suas mudanças sobre concepções acerca do mundo social não como uma imposição não autorizada de valores pessoais sobre um público relutante, mas como a simples utilização do senso comum9. Por outro lado, a busca pela verificação da forma de resposta do Estado

brasileiro à atuação dos movimentos sociais se fará focalizando o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. É possível que alguns aspectos aqui

analisados se mostrem comuns a outros movimentos sociais, na forma como são

relidos pela institucionalidade quanto à sua intervenção na produção e difusão de

discursos jurídicos e na geração e efetivação de direitos. Mesmo que cada

movimento social apresente suas peculiaridades, que tenderão a formas

específicas de auto-organização, de mobilização social e de estruturação de

discursos e identidades, a maior ou menor permeabilidade do Estado em

reconhecê-los como legítimos participantes do processo interpretativo e

generativo de normas jurídicas talvez se mostre similar para outros movimentos

sociais. Ainda que isto esteja fora do escopo deste trabalho, é possível que ele seja

de utilidade para outras análises neste mesmo sentido10.

9 “...when social movements successfully appeal to changes in the social world, they not only shift perceptions of facts but also reshape the values, assumptions, and social meanings that are used to interpret and frame those facts. (…) When a social movement is truly successful, judges will see their changed conception of the social world not as the forbidden imposition of personal values on an unwilling public but as the application of simple common sense.” Op. loc. cit. 10 Não ignoro as enormes polêmicas envolvendo os eventuais limites da racionalidade moderna para abarcar inúmeros movimentos sociais que não se amoldariam às lógicas identitárias próprias da modernidade, nem nego a racionalidade que estes movimentos carreguem consigo, seja nas suas estruturações de visão de mundo, seja na forma como articulam seus diálogos com a institucionalidade moderna. Entretanto, esta severa limitação parece dirigir-se mais a movimentos que não desejam apenas sua inclusão como outro sob um mesmo paradigma racional hegemônico, mas que reivindicam, pela sua forma de vida e visão de mundo, um conjunto de “direitos epistêmicos”, na feliz definição de Mignolo (2007: 139) que ganhou recentemente expressão muito concreta na polêmica desocupação da antiga sede do Museu do Índio, próxima ao Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro: segundo a fala indignada de uma das ocupantes, a índia Márcia Guajajara, “não estamos negociando hospedagem. Queremos preservar um centro histórico. Também não queremos ir para Jacarepaguá. Lá ficaremos escondidos. Queremos mostrar nossa cultura, ficar em um local com visibilidade” (disponível em http://tinyurl.com/mp8ru88, acesso em 05/04/2013). Por outro lado, o paradigma descolonial, ou da coexistência, ou da simultaneidade, não pretende substituir o paradigma moderno em sua pretensão universalista, mas antes questionar os fundamentos de tal pretensão, defendendo um mundo pluriparadigmático. Do ponto de vista adotado neste estudo, o MST é um movimento a princípio estrutural e constitutivamente compatível com as demandas de reconhecimento e distribuição de bens articuladas na modernidade e, por isso mesmo, pode ser abarcado sem contradição por um paradigma conceitual de modernidade retificada vinculado à noção de democracia deliberativa em que se priorize a ideia

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A escolha pelo Movimento dos Sem-Terra, portanto, deve a princípio ser

explicada: por que este movimento social e não outro? Vários são os elementos

que determinam esta escolha.

O primeiro destes elementos reside no fato de ser indiscutível a natureza

controvertida das relações entre o MST e o sistema jurídico, ou seja, o fato de que

aparentemente este sujeito social se apresenta diante ou é percebido pelo restante

da sociedade como um tensionador que levaria o ordenamento próximo a, ou além

de, seus limites democraticamente aceitáveis. Em outras palavras, é um

movimento social cujas vinculações com a legalidade ou com a ilegalidade estão

permanentemente em debate por parte da opinião pública.

Apesar da questão agrária e das lutas camponesas no Brasil serem

extremamente antigas, a existência do MST representou uma nova forma de

articulação social e de mobilização pela conquista da terra. As raízes do

movimento encontram-se no final dos anos 70 do século passado, no bojo do

amplo processo de mobilização social que marcou a fase terminal da ditadura

militar, através da unificação de várias mobilizações esparsas no campo, em

especial na região sul11. Desde então, o MST firmou-se inquestionavelmente

como um dos movimentos sociais protagonistas da cena política contemporânea

no Brasil. Priorizando estratégias de mobilização pública, ocupação de terras e

prédios públicos e vinculação com outros movimentos sociais, inclusive urbanos,

em geral seus participantes são identificados pela mídia com baderneiros,

agitadores ou movimentos pela derrubada da democracia (Petry & Oinegue, 1998:

44; Prates, 2005)12.

O segundo elemento consiste no fato de que o MST é um movimento social

facilmente reconhecível por pessoas de diferentes origens geográficas, classes

sociais, níveis de renda, identidades étnicas ou formação escolar. Em outras

palavras, é um movimento conhecido ou reconhecido socialmente quanto a sua

existência, independentemente do juízo de valor que se faça sobre ela, sendo

considerado “o movimento social mais fortemente organizado no Brasil

de conflito, como é o caso de minha percepção sobre a obra habermasiana. De qualquer sorte, as vicissitudes e limitações eventuais da modernidade retificada não são objeto desta pesquisa, ainda que possam eventualmente lançar suas sombras e suas luzes sobre ela. 11 Para uma breve história do MST, ver, dentre outros, Garcia, 1999, especialmente pp. 45-56. 12 O movimento já foi comparado até mesmo com grupos como a Ku Klux Klan (ver quadro à p. 35).

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contemporâneo e apontado como referência mundial de resistência de populações

marginalizadas” (Scherer-Warren, 2009: 111).

Finalmente, cuida-se de um movimento social cuja existência se faz no

quadro de uma fronteira simbólica que sintetiza de várias formas os dilemas

contemporâneos das sociedades democráticas e da própria viabilidade de

democracia. O Movimento dos Sem-Terra simboliza muito nitidamente a fronteira

entre o Brasil agrário e o Brasil urbano, conectando-se à gigantesca transformação

ocorrida ao longo do Século XX que fez do antigo país rural que prevaleceu até os

anos 1940 o grande Brasil de desenvolvimento concentrada e problematicamente

urbano pós década de 1980, período no qual a população rural brasileira caiu de

68,8% para 32,4% (Navarro, 1996:72)13; representa ainda a tensa fronteira entre a

pequena agricultura familiar e outras estruturas a ela conectadas na pequena e

média propriedade rural e o grande agronegócio concentracionista voltado à

produção de commodities para exportação. Mais que tudo, o MST se mostra na

principal fronteira versada neste trabalho: a da segregação e exclusão nas bordas

do sistema constitucional, desafiando as possibilidades de sua efetividade

democrática e, como tal, as fronteiras entre cidadania e exclusão, entre diálogo e

repressão, entre reconhecimento e segregação e, por conseguinte, buscando trazer

à luz as próprias fronteiras das ordens constitucionais atuais, fronteiras onde se

encontram e se separam simultaneamente democracia e autoritarismo.

Este texto organiza-se, além desta breve introdução, em três capítulos e uma

conclusão. No primeiro capítulo, Sobre cidadãos e fronteiras, apresenta-se o

panorama geral da pesquisa e sua contextualização histórica e teórica, seja através

da explicitação de seus pressupostos conceituais e metodológicos, dos objetivos

da pesquisa e da recuperação dos aspectos mais relevantes da pesquisa de

mestrado (Para pensar cidadãos e fronteiras), seja pela atualização dos dados e

informações sobre o MST, seja ainda pela recuperação do histórico das ocupações

como forma de atuação prioritária do Movimento e da legislação recente que

procura reprimir esta prática (Olhando sobre a fronteira).

13 Segundo dados divulgados pelo IBGE relativos ao Censo 2010, este percentual, atualmente, mal ultrapassa 15% (vide a Tabela 1.8 - População nos Censos Demográficos, segundo as Grandes Regiões, as Unidades da Federação e a situação do domicílio - 1960/2010, disponível em http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8, acesso em 18/07/2013).

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O segundo capítulo, Fronteiras, movimentos, mudanças, abre com a

apresentação dos dados e sua metodologia de análise (Demarcando as fronteiras),

e nele procuro indicar o caminho metodológico entre a coleta, os critérios de

definição para permanência ou exclusão dos dados na base, as categorizações e

definições quanto à ocorrência de certos tipos de ação ou recurso, julgados a partir

do exercício de que tipo de competência e versando quais objetos, pontos

essenciais para estabelecer critérios minimamente objetivos a partir dos quais

procedi à seleção dos dados qualitativos, as decisões-tipo que apresentei na parte

seguinte deste mesmo capítulo, Fronteiras abertas e vigiadas. Nesta parte

procurei explicitar o conteúdo do voto de todos os ministros, quando esta

informação estava disponível na página do tribunal respectivo, ou ao menos do

relator, quando fosse o caso, para em seguida fazer sua análise a partir de um

ângulo de coerência interna e externa sistêmica e de sua articulação com os

pressupostos de nosso sistema legal a partir de uma análise no plano jurídico-

formal, buscando explicitar uma das indagações desta tese – como o Estado,

através de seu sistema judicial aqui representado pelos seus dois principais

tribunais, responde às demandas e formas de atuação do Movimento?

Piquetes e mangrulhos é o terceiro capítulo, onde se procede à análise geral

do conjunto dos dados em seus aspectos mais conceituais e gerais, vinculando

concretamente o resultado da pesquisa de dados a outra das problematizações

levantadas nesta tese – como o Movimento interfere na geração das respostas

do Estado a suas reivindicações e formas de atuação? Neste capítulo veremos a

relação de eficácia entre ocupações e assentamentos, o que significam as

ocupações como recurso mobilizado para o acesso à terra e como contexto de

socialização e conformação de identidade para o Movimento, e como esta forma

de mobilização se articula com as noções de desobediência civil, de ampliação da

esfera pública a partir de um alargamento do conceito de sociedade aberta dos

intérpretes da Constituição e a relação que estas elaborações podem vir a assumir

com o discurso jurídico sob o ponto de vista assumido nesta tese. As relações

entre os níveis sistêmico e não sistêmico, entre o subsistema jurídico e o mundo

da vida, serão problematizadas a partir das ações de protesto e de ocupação

levadas a cabo pelo MST, vistas como constituição de discursos simbólicos que

partem do mundo da vida e se dirigem ao núcleo do subsistema jurídico.

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Finalmente, nas Conclusões: Uma democracia nas fronteiras, procuro

realizar o inventário do esforço global desta tese e explicitar como uma

democracia radicalizada a partir de imperativos deliberativos não pode deixar de

ser uma democracia baseada no conflito e no reconhecimento horizontal entre

semelhantes diferentes, uma democracia agonal14, onde a legitimidade que brota

da geração contínua de consensos precários na esfera pública reporta-se

permanentemente aos conflitos e disputas inevitáveis nas sociedades

contemporâneas.

Esta é a sistematização do esforço de quatro anos ao longo do curso de

doutorado, por sua vez coroamento de um ciclo de estudos e pesquisas que se

iniciou na segunda metade dos anos 1990, no qual procurei apreender elementos

que considero relevantes para o debate sobre o papel central que os movimentos

sociais têm a desempenhar – e, como veremos aqui, efetivamente já desempenham

– na reconfiguração permanente de nossa democracia e de nosso sistema legal.

Aqui procuro apontar ao mesmo tempo aspectos que acredito não devam ser

negligenciados no âmbito de análises jurídicas menos formalistas sobre os

fenômenos e conflitos sociais, o caráter contraditório de algumas versões

conservadoras das críticas às ações por vezes radicalizadas que partem da

sociedade civil e como poderíamos buscar sustentar outras visões sobre elas que,

aproveitando sua energia renovadora e crítica, suscitem caminhos mais largos e

generosos de superação inclusiva de uma sociedade historicamente injusta,

excludente, opressiva. Como todo esforço desta natureza, é parcial e limitado, e

não pode indicar senão fragmentos de perguntas e insinuações de respostas,

buscando participar de um debate cuja efetiva definição caberá sempre mais às

ruas do que às academias.

14 No sentido utilizado por Frankenberg (2007). Vide as Conclusões deste trabalho, especialmente pp. 190 e seguintes.

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1

Sobre Cidadãos e Fronteiras

“Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.” (Gabriel García Márquez15)

1.1

Para pensar Cidadãos e Fronteiras

Se ao início desta jornada, ainda no mestrado, a questão a ser enfrentada

respeitava à legitimidade das ações mais espetaculosas do MST frente à

institucionalidade democrática, e se, naquela oportunidade, a conclusão a que se

chegou era de sua compatibilidade em termos gerais com o ordenamento

constitucional, ainda que não sem ressalvas16, agora podemos dizer que aquela

conclusão é o ponto de partida sobre o qual a presente investigação se processa e,

portanto, um pressuposto seu. Em que pesem manifestações diametralmente

opostas no senso comum, na mídia e mesmo em vários setores do meio jurídico,

aqui já não deverá causar espécie a pressuposição de que estas ações são

compatíveis com a Constituição, e mesmo que elas, em sua radicalidade e nas

tensões que articulam – eventualmente, nos desconfortos e incertezas e

inseguranças que engendram – são assimiláveis pela ordem constitucional

democrática vigente no Brasil. Mais do que isso, o que nos interessa em primeiro

15 García Márquez, 1995: 51. 16 Já naquela oportunidade, frisei que não seria qualquer ação do movimento que poderia ser considerada legítima diante do ordenamento jurídico então vigente, mas apenas que as principais estratégias utilizadas pelo MST, a saber, as ocupações de terras improdutivas e de prédios públicos, não poderiam ser consideradas em si mesmas como atos ilícitos, salvo se outros fatores autônomos determinassem esta conclusão. Contrariando o pretenso senso comum fomentado pela grande mídia e por juristas mais conservadores, os chamados atos de violência contra o patrimônio privado que ordinariamente teriam lugar em tais eventos não deveriam ser suficientes para provocar a ação repressiva do Estado no plano criminal. Isto não significa, entretanto, que eventuais atos de violência contra a pessoa, ou mesmo outras ações de destruição de patrimônio, não pudessem levar um intérprete democrático que adotasse a mesma perspectiva que então adotei à conclusão de reprobabilidade social da conduta, inclusive autorizando eventual persecução criminal. Esta questão será inevitavelmente retomada mais à frente. A este respeito, ver Garcia (1999: 73-101).

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plano é como estas ações são absorvidas e processadas pela institucionalidade e

como a influenciam.

Se naquele primeiro momento nosso enfoque já se dirigia mais às

instituições que ao movimento, agora esse giro se completa inteiramente,

mantendo-se uma firme focalização nas estruturações institucionais que melhor

possam responder17 às pressões e reivindicações do movimento e mais

construtivamente aproveitá-las para a preservação da oxigenação reflexiva

inerente a qualquer estruturação social democrática. Ou dito de outro modo, não

se trata de saber se as reivindicações do movimento são ou não aceitas, mas como

são processadas no âmbito das respostas do Estado e convertidas em elementos de

permanente relegitimação democrática deste mesmo Estado, ampliando o espaço

da esfera pública e a produção de instâncias discursivas e de autonomias.

Está evidente que, ao se partir do pressuposto de legalidade genérica

daquelas ações espetaculosas, uma gama de respostas que sejam

fundamentalmente repressivas e/ou indeferitórias tout court ou a priori dos pleitos

do MST tenderá a ser vista como em si mesma incompatível com a ordem

democrática18. Em contrapartida, como já indicado anteriormente, tampouco essa

pressuposição de legalidade genérica das formas de atuação do MST pode nos

levar legitimamente a uma conclusão apriorística de legitimidade de toda e

qualquer atuação sua – qualquer ator social pode praticar atos arbitrários não

democraticamente fundamentáveis em termos jurídicos ou morais. Mas esta seria

uma situação-limite, em que não houvesse qualquer mediação possível entre

reivindicações, formas de as externalizar e resposta dos subsistemas de Estado

(político, administrativo, judicial). Conquanto tais situações possam ser

17 “Responder” ou “resposta”, no presente trabalho, refere-se à reação racional e institucionalmente construída pelo Estado às demandas ou pressões apresentadas pelo Movimento, sejam estas respostas positivas ou negativas, acolhedoras, repressivas ou articuladoras de outras abordagens possíveis. Dizer que tal ou qual ação se caracteriza como “resposta” ao Movimento não incorpora em si qualquer conteúdo de valor: um assentamento ou um massacre de sem-terras por policiais são igualmente “respostas” do Estado à sua forma de atuação social, ainda que valorativamente opostas entre si. Por outro lado, a presente pesquisa não é neutra em relação à construção de pressupostos democráticos de legitimação, o que significa que a análise da qualidade das respostas implicará a avaliação, pelo autor, daquelas que, coerentemente com os pressupostos teórico-práticos aqui adotados, confluam mais e melhor para o fortalecimento de práticas abertas e deliberativas de democracia. 18 Como salienta Felipe Gonçalves Silva no tópico “Democracia deliberativa” da obra organizada por Marcos Nobre (2008: 299-300), “esse princípio de legitimidade procedimental é defendido como uma radicalização do pensamento democrático. Com efeito, ele não permite que seja atribuída a qualquer norma substantiva uma legitimidade a priori, vale dizer, uma legitimação necessária e presumida anteriormente aos seus próprios processos de autodeterminação política”.

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efetivamente encontradas no cotidiano, não podem em um estudo de cunho

científico funcionar como pressupostos de análise dos mecanismos concretos de

interferência do movimento na geração e interpretação de direitos.

Por isto esta investigação versará sobre a identificação das formas de

releitura sistêmica das reivindicações do movimento durante determinado período

(análise quantitativa) e sua apreciação quanto aos níveis ou qualidades desta

resposta (análise qualitativa).

Durante a pesquisa de mestrado, os levantamentos empíricos dirigiram-se

fundamentalmente ao acompanhamento da mídia de massa sobre o movimento.

Foram acompanhadas, entre junho de 1996 e julho de 1998, as matérias relativas

ao movimento dos sem-terra e à reforma agrária nos jornais Folha de São Paulo e

Jornal do Brasil e na Revista Veja. Este levantamento, entretanto, não foi

sistemático, no sentido de apurar efetivamente toda e qualquer referência às

matérias indicadas nestas publicações. A ideia não era a de apurar

quantitativamente todas as matérias do período ou sistematizar quais seriam

globalmente favoráveis, desfavoráveis ou indiferentes ao MST, ainda que um tal

levantamento fosse sem dúvida interessante de ser feito. O que se pretendeu

naquele momento foi captar episodicamente elementos do discurso do governo, de

vários setores sociais e dos próprios órgãos de imprensa, tais como veiculados por

estes, sobre a atuação do MST, revelando, ao menos parcialmente, as

representações socialmente construídas sobre o Movimento. Vale repetir aqui a

citação então feita de Howard Becker (1994: 137):

Modos de representação fazem mais sentido quando vistos num contexto organizacional, como maneiras que as pessoas usam para contar o que pensam que sabem, para outras pessoas que querem sabê-lo, como atividades organizadas moldadas pelo esforço conjunto de todas as pessoas envolvidas. Nós compreendemos rapidamente que nos concentrarmos em objetos - como se os assuntos de nossa investigação fossem tabelas, gráficos, etnografias ou filmes - seria um erro que provocaria confusão. Faz mais sentido olhar para estes artefatos como remanescentes congelados da ação coletiva, trazidos à vida sempre que alguém os utiliza, como pessoas que fazem ou lêem mapas ou prosa, fazem ou vêem filmes. Falar sobre um filme é uma redução para ‘fazer um filme’ ou ‘ver um filme’.

Considerando-se, portanto, que toda representação social é sempre parcial,

menor do que aquilo que representa, não pretendi naquele momento levar a cabo

qualquer levantamento estatístico de menções jornalísticas ao MST. Partindo do

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pressuposto, então facilmente verificável, de que o movimento ocupava à época

espaço crescente nos meios de comunicação, busquei articular alguns elementos

dos discursos sobre ele e alguns dados julgados relevantes a partir dos filtros

previamente estabelecidos – basicamente os três eixos fundamentais daquele

estudo: teoria da ação comunicativa, constituição aberta e desobediência civil –,

como forma de indicar as representações sociais existentes sobre o Movimento

dos Sem-Terra e suas formas de atuação e aferir sua compatibilidade com o

funcionamento regular de uma sociedade democrática.

De modo geral, os três principais eixos teóricos que foram articulados

naquele trabalho original de mestrado (teoria da ação comunicativa habermasiana,

concepção de constituição aberta häberleana e desobediência civil) são mantidos

neste momento. Entretanto, as especificidades deste trabalho implicam que eles

sejam rearticulados de outra forma.

Sem sombra de dúvida, será a primeira destas pernas teóricas de sustentação

a que se manterá com mais firmeza aqui: as concepções habermasianas de ação

comunicativa, democracia deliberativa, relações entre sistemas e mundo da vida e

justificação racional discursiva das ações de Estado estarão no centro das análises

e construções metodológicas a serem desenvolvidas, e neste sentido permearão

tanto a definição do objeto, o tratamento dos dados e sua análise, quanto

atravessarão as próprias redefinições dos demais eixos, como veremos mais

adiante.

A noção de constituição como processo social aberto fundada em Peter

Häberle parece ainda ser um referencial interessante para tratamento da

vinculação entre mobilização social e produção, interpretação e aplicação do

Direito em termos propriamente jurídicos. A ruptura que estabelece com o

monopólio dos agentes estatais ou intérpretes profissionais do Direito, cuidando

do que ele próprio chama de uma “democratização da interpretação

constitucional” (Häberle, 1997: 14), põe em relevo o papel dos membros da

sociedade civil na definição do sentido das normas que os regulam, e é um passo

decisivo na visualização do objeto a ser aqui analisado.

Todavia, a distinção entre intérpretes em sentido amplo e em sentido estrito,

tal como formulada por Häberle, deverá ser mais à frente problematizada a partir

de uma perspectiva que considero mais compatível com a noção habermasiana de

democracia deliberativa. Segundo Häberle, o papel dos intérpretes em sentido

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amplo, não profissionais, seria mais o de fornecer elementos hermenêuticos aos

intérpretes profissionais do Direito, notadamente àqueles que desempenham um

papel-chave na administração funcional da justiça estatal. Desde já me parece

possível indicar, entretanto, que aos intérpretes não profissionais não se deva

reservar apenas este papel mais limitado, que todavia também exercem, mas em

muitos casos o de intérpretes propriamente jurídicos da Constituição, sobretudo, e

das leis, secundariamente. Parece-me um caminho promissor para esta

problematização a definição de sujeito deliberativo feita por Klaus Günther

(2006). Segundo ele, a legitimação do Direito a partir de uma concepção

vinculada à democracia deliberativa não repousa na mera positividade da lei, antes

exige a possibilidade e pressupõe a capacidade de participação de todos os

cidadãos, destinatários das normas jurídicas, na elaboração do Direito através de

procedimentos democráticos. O conceito que estabelece, para ele, a conexão entre

cidadão e sujeito de direito é o de sujeito deliberativo, cujas características serão

examinadas oportunamente, mas que acredito permite uma vinculação mais forte

entre intérpretes profissionais e não profissionais do Direito. Assim, a hipótese a

ser aqui desenvolvida envolve a natureza propriamente jurídica da interpretação

feita pelos intérpretes não profissionais, numa espécie de ampliação ou

“radicalização” da noção de intérprete em sentido amplo de Häberle.

Finalmente, as questões envolvendo desobediência civil, mesmo que a

legitimidade constitucional das ações principais ou mais usuais do MST já tenha

restado fixada na pesquisa anterior, ainda estará presente nas análises e

interpretações sobre os dados a serem trabalhados. É visualizável desde logo que a

forma específica de legitimação dos atos de desobediência nas sociedades

contemporâneas conecta-se diretamente aos mecanismos de atuação racional dos

integrantes de movimentos sociais na esfera pública e à forma de agendamento

político de suas demandas pelas instâncias funcionais do Estado, quando tais

canais estiverem obstruídos, naquilo que Habermas chama de modelo de iniciativa

externa19. Portanto, este tema retornará ao desenvolvimento do presente trabalho,

19 Segundo Habermas (1997b), há três formas básicas pelas quais se pode incluir um tema na agenda política em sociedades complexas: o modelo de acesso interno, o modelo de mobilização e o modelo de iniciativa externa. Nos dois primeiros, a iniciativa de inclusão do tema na agenda pertence aos dirigentes políticos ou detentores do poder; o que os diferencia entre si é que, no primeiro caso (modelo de acesso interno), antes de ser discutido formalmente o tema segue seu percurso no âmbito do sistema político, sem a influência perceptível da esfera pública, ou mesmo

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em parte nas bases em que oferecidas na pesquisa anterior (Garcia, 1999), em

parte nas readequações próprias ao presente objeto, como uma referência analítica

relevante. Além disso, o tema da não-violência dos atos de desobediência e sua

caracterização ou não no caso das ações do MST deverá ser revisitado20.

A partir deste panorama inicial, creio que ficará mais evidente o conjunto de

opções e pressupostos do presente estudo. O pano de fundo em que este trabalho

se torna possível é indiscutivelmente o de vinculação à ideia de que o sistema

jurídico não pode ser visto em termos normativistas, como um sistema fechado de

normas jurídicas cuja validade esgota-se em si mesma, no interior do próprio

sistema, ou decorre de sua simples positividade, e onde considerações de natureza

moral refogem ao âmbito de interesse do Direito (Garcia, 1999: 09-13; Villa,

1993).

Talvez exatamente por isso, não entendo que se trate de considerar o

pesquisador como dotado de uma liberdade de escolha que se assemelha àquela

experimentada pelo consultor, ou pelo advogado, na qual o fazer pretensamente

acadêmico equivaleria à elaboração de pareceres, como adverte Marcos Nobre

(Nobre et al., 2005: 30-32): especificamente neste caso, conquanto não se trate de

com sua exclusão. Já no segundo caso (modelo de mobilização), os detentores do poder são obrigados a mobilizar a esfera pública, pois necessitam do apoio ao menos de certos setores do público para a implementação de um programa de ação já votado, ou em vias de o ser. Somente na terceira hipótese (modelo de iniciativa externa) a iniciativa pertence efetivamente às forças que estão fora do sistema político, impondo um tratamento formal ao tema em questão através da mobilização da esfera pública. Habermas indica que este modelo de composição de uma agenda formal pode prevalecer em sociedades mais igualitárias, mas isto não determina, por si só, que a deliberação das autoridades atenda às pretensões do grupo: “Em caso normal, os temas e sugestões seguem um caminho que corresponde mais ao primeiro e ao segundo modelos, menos ao terceiro. Enquanto o sistema político for dominado pelo fluxo informal do poder, a iniciativa e o poder de introduzir temas na ordem do dia e torná-los maduros para uma decisão pertence mais ao governo e à administração do que ao complexo parlamentar; e enquanto os meios de comunicação de massa, contrariando sua própria autocompreensão normativa, conseguirem seu material dos produtores de informações - poderosos e bem organizados - e enquanto eles preferirem estratégias publicitárias que diminuem o nível discursivo da circulação pública da comunicação, os temas em geral serão dirigidos numa direção centrífuga, que vai do centro para fora, contrariando a direção espontânea que se origina na periferia social” (1997b: 114). 20 Após tratar da questão conceitualmente (Garcia, 1999: 33-44) e contextualizadamente em relação ao MST (ibidem: 73-83), naquela outra ocasião concluí que “a exigência de não-violência para a caracterização dos sem-terra como desobedientes não deve ser entendida necessariamente como sinônimo de vocação para o martírio, e sim como uma dupla exigência de outra ordem: que eles não tomem a iniciativa do confronto violento; e de que, quando agredidos, limitem sua eventual reação de forma proporcional e moderada, o que exigirá sempre uma atividade de ponderação por parte do intérprete não diferente daquela sempre necessária para caracterizar ou não o exercício da legítima defesa”. A identificação das práticas gerais do MST com a desobediência civil feita por mim naquela obra foi severamente criticada, ainda que com base em uma versão resumida (Garcia, 2000), por Mario Losano (2006, 140-142), tanto no que tange à utilidade desta assimilação quanto aos termos em que ela se deu. As críticas deste autor serão oportunamente tomadas em consideração (vide Capítulo 3, especialmente pp. 157 e seguintes).

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modo algum de uma pesquisa axiologicamente “neutra” (ao contrário, assumo

explicitamente aqui meu compromisso com o aprofundamento e o alargamento

dos parâmetros democráticos de nossa sociedade em termos deliberativos, e com o

reconhecimento em abstrato do papel essencial desempenhado pelos movimentos

sociais neste processo), ela é uma pesquisa condicionada pelos meus pressupostos

teórico-metodológicos e pelo conjunto de dados que coletei servindo-me de uma

metodologia que busquei que fosse expressa, transparente, reprodutível e

adequada a meu objeto de pesquisa. Longe de ser um parecer, este esforço em seu

conjunto, inclusive em suas conclusões, não poderá deixar de ser delimitado pelo

universo de coisas conhecidas e dadas a conhecer para e na pesquisa, de tal modo

que as hipóteses de trabalho não equivalem a pré-conclusões em busca de uma

justificação.

Entretanto, esse limite que os dados coletados e o desejo de objetividade nos

impõem não os transformam, os dados e a objetividade, em “fetiches acadêmicos”

de qualquer metodologia quantitativa de cunho inconfessadamente positivista: o

dado é a expressão de uma parte da realidade coerente com o corte que o

pesquisador fez, não encerra ou enclausura a realidade nas margens estreitas de

sua tabela. Significa apenas que, adotando-se aquele método e aquele recorte,

apuram-se aqueles dados, que podem ser relacionados a partir de certos critérios

de modo a buscar respostas racionais e coerentes para certas perguntas. Recortes,

pressupostos teóricos, formas de os relacionar e a própria definição das perguntas,

todavia, não respondem a um critério mágico-transcendental definido a partir de

alguma força externa ao pesquisador dotada de uma posição ontologicamente

verdadeira, antes equivalem a opções que o pesquisador faz em busca de

coerência com seus temas de pesquisa, seus engajamentos teóricos e pessoais e

sua biografia. E o produto deste esforço – este texto – não é a realidade tal como é

ou como se me apresenta, mas uma reconstrução teórico-racional sobre este

mundo, procurando dotar-lhe de algum sentido e assumir o papel de uma

contribuição útil.

Finalmente, as formas específicas de acomodação das imensas tensões entre

opções, métodos, objetividade, escolhas, dados, mundo, subjetividade do

pesquisador, não se fazem fora do amplo contexto social de trocas entre

participantes em ações e discursos, de modo que a pretensão de utilidade antes

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mencionada tampouco é uma pretensão abstrata, mas dirigida a uma finalidade

concreta de intervenção numa parte da esfera pública com argumentos racionais.

Não se trata, portanto, nem de uma narrativa construída como parecer

jurídico, nem de um arremedo de pesquisa de “ciências duras” que teria como

diapasão paradigmas da Física clássica que a própria Física já não sustenta depois

da Física Quântica: trata-se de um esforço ao mesmo tempo de dar conta de um

tema específico e de tensionar as metodologias tradicionais de pesquisa em

Direito, quiçá participando modesta a anonimamente de um campo de (re)

construção de novos paradigmas metodológicos e de um amplo compromisso

plurimetodológico, nem avesso, nem confundido, nem meramente justaposto,

como água e óleo, às/com contribuições das demais ciências sociais.

A fim de dar conta do objeto desta tese, o trabalho de pesquisa tem,

portanto, os seguintes objetivos:

a) identificar e delimitar as características e reivindicações fundamentais

do movimento no período estudado (2000-2010), servindo-se, para

tanto, de documentos internos seus ou produzidos por terceiros

(intelectuais, mídia), que contribuam para conformar uma representação

social sobre os mesmos21;

b) atualizar a análise, já realizada na pesquisa de mestrado, relativa aos

pontos centrais de tensão entre o movimento e a ordem constitucional

vigente, bem como as possíveis contradições formais quanto a estas

tensões – como a sua eventual fundamentabilidade nos próprios

princípios da ordem constitucional questionada;

c) identificar se efetivamente a intervenção do movimento cumpre algum

papel ativo na atualização dos conteúdos normativos constitucionais e,

em caso positivo, como se dá o desempenho deste papel22;

21 Uma parte considerável desta análise já foi feita no âmbito da pesquisa de mestrado, até os anos de 1997/1998, inclusive com uma análise da evolução histórica do MST; é indispensável, agora, atualizar os dados respectivos no que tange às modificações de orientação política e estratégica do Movimento até os dias atuais, especialmente quanto ao período em estudo (2000 a 2010), o que será feito no item 2 do Capítulo I, Olhando sobre a fronteira. 22 No plano conceitual, esta possibilidade já foi fixada na pesquisa de mestrado e serve, de fato, como pressuposto lógico para o desenvolvimento do presente estudo. Aqui, o que será investigado será antes a análise das formas e mecanismos concretos desta interferência, a fim de verificar se, como e em que medida ela ocorre na prática.

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d) identificar ou sugerir as adaptações institucionais e paradigmáticas que

poderiam potencializar a participação dos movimentos sociais no

aprimoramento do sistema jurídico em termos democráticos.

A metodologia utilizada no desenvolvimento da pesquisa serviu-se do

levantamento e da análise quantitativa e qualitativa de documentos internos do

MST e principalmente de decisões judiciais do STF e do STJ cuja elaboração

tenha levado em conta a atuação do movimento ou se refira a ele, ainda que

eventualmente não atendendo inteiramente a suas reivindicações ou concordando

com sua atuação, ou mesmo refutando-as ou reprimindo a ação de seus militantes.

Avaliou-se, a partir destas fontes, aspectos das representações sociais construídas

sobre o movimento e suas reivindicações, e ao mesmo tempo buscou-se averiguar

como e em que medida as estratégias do movimento foram absorvidas ou

incorporadas pelo discurso jurídico e seus processos decisórios judiciais.

Conquanto as respostas de Estado23 evidentemente projetem-se em todos os

âmbitos de sua atuação, abrangendo tanto o Judiciário quanto o Legislativo e o

Executivo, optei pela restrição ao exame de decisões do Poder Judiciário por

vários motivos.

A ação do Executivo, ainda que seja a quantitativamente mais relevante,

porquanto a ele cabe a implementação do conjunto de políticas públicas ligadas à

Reforma Agrária e ao atendimento ou não das reivindicações do Movimento,

traduz-se em uma miríade de atos e medidas administrativas infralegais que, em

que pese apresentar alta relevância fático-política e enormes implicações para as

vidas concretas das pessoas envolvidas, não apresenta efetivamente maior caráter

normativo abstrato. As medidas de assentamento, liberação ou não de crédito,

escoamento de produção e tantas outras, são as que efetivamente concretizam, ou

não concretizam, a reforma agrária, mas elas se expressam fundamentalmente

como atos de administração que fazem atuar textos normativos mais gerais.

23 Ainda que a expressão “Estado” abranja todos os entes federativos, neste caso em particular estamos nos referindo mais especificamente à União Federal, dado que é a ela que a Constituição comete a atribuição privativa de legislação sobre direito agrário (art. 22, I) e de desenvolvimento e implementação de políticas ligadas à reforma agrária, em especial a de desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (art. 184). Logo, salvo eventual menção expressa em sentido diverso, quando me refiro neste texto a Executivo, quero dizer Governo Federal, e quando menciono Legislativo, refiro-me à Câmara de Deputados e ao Senado Federal. No caso do Poder Judiciário, salvo indicação expressa, as análises limitam-se, pelas razões metodológicas que serão a seguir apontadas, ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça.

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Decretos, portarias, resoluções e atos normativos variados baixados pelo Governo

podem modificar parcialmente atos normativos mais amplos e gerais, mas não

podem deixar de inserir-se nas molduras que elas traçam, sob pena de invalidade,

de modo que não é aqui que residem fundamentalmente as bases da normatização

jurídica da matéria, e como o tema desta pesquisa é a interferência do Movimento

nesta normatização, esta atuação de grande relevância pragmática não se mostra,

todavia, de grande relevância para este trabalho.

O mesmo não se pode dizer do Poder Legislativo. Mesmo as iniciativas que

o Executivo possa ter no campo da normatização geral e abstrata passam

forçosamente pelo Legislativo, sejam projetos de lei ou de emenda constitucional,

sejam medidas provisórias, sejam quaisquer outras proposições legislativas24.

Entretanto, este trabalho descartou esta análise por motivos pragmáticos ligados

ao cronograma de desenvolvimento da pesquisa e ao escopo geral desta tese.

Legislativo e Judiciário apresentam dinâmicas internas, estruturas,

temporalidades, formas de atuação e de relacionamento com a sociedade civil,

mecanismos de estruturação de discurso e de deliberação tão diversos entre si que

abarcar a ambos numa mesma pesquisa individual destinada ao cumprimento dos

requisitos para obtenção de grau de doutor em Direito seria virtualmente inviável,

e mesmo indesejável – seriam duas teses somadas, sobrepostas, ao menos em se

seguindo os pressupostos e metodologias aqui traçados. Além disso, o amplo

espaço de judicialização a que as políticas públicas em geral estão sujeitas levam-

me mais a buscar, na apreciação do que a norma jurídica é, aquilo que ela se torna

após interpretada e aplicada pelos órgãos jurisdicionais, o que me parece melhor

24 No período estudado, foi significativa a atuação do Legislativo sobre o tema pesquisado. Na Câmara Federal, foram 79 proposições legislativas, das quais 55 projetos de lei, 07 projetos de emenda constitucional, 07 medidas provisórias (desconsideradas as reedições sem modificação de texto), 06 projetos de lei complementar, 02 projetos de decreto legislativo e outros 02 de resoluções. A maior parte das proposições dizia respeito a dívidas e financiamento da produção rural (12 proposições), fixação ou alteração de parâmetros de produtividade (07), programas ou políticas de governo correlatas à reforma agrária (06), ocupações e invasões de terras (05), condições para aquisição da terra ou assentamento (05), trabalho escravo ou infantil e plantas psicotrópicas (05), função social da propriedade (04) e cadastros relativos a reforma agrária (04). No Senado Federal, foram 31 proposições legislativas no período, sendo 09 projetos de lei do Senado, 07 projetos de lei da Câmara, 03 projetos de emenda constitucional, 03 medidas provisórias (desconsideradas as reedições sem modificação de texto), 02 requerimentos do Congresso, 02 mensagens do Senado, 02 projetos de resolução do Senado, 01 requerimento do Senado, 01 projeto de lei de conversão e 01 projeto de decreto legislativo. Quanto ao objeto, os que apareceram mais recorrentemente foram dívidas ou financiamento (04 proposições), programas ou políticas de governo relacionadas com reforma agrária (04), autorização para o Governo realizar operação de crédito externa (04) e 03 requerimentos de CPI, dentre outros.

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refletir a normatização abstrata tal como compreendida e orientada à sua aplicação

efetiva, do que a norma apenas como foi aprovada pelas casas legislativas25.

Portanto, ainda que a visualização das respostas do Legislativo à atuação do

MST seja extremamente pertinente à discussão e relevante tanto acadêmica

quanto institucionalmente, este trabalho delimitou sua abrangência ao estudo das

respostas judiciais a ela.

Especificamente quanto às decisões judiciais, a lógica mesma desta pesquisa

já indica que o centro de análise não residiu tanto na forma pela qual o Poder

Judiciário lida com especificidades fáticas inerentes a cada caso concreto, o que

implicaria apreciação e valoração de prova, por exemplo, mas como se conforma

uma racionalidade jurídica que sirva de moldura à análise de casos concretos – ou,

em outras palavras, o aspecto propriamente normativo inerente a decisões

judiciais que interpretam ou uniformizam a interpretação e a aplicação de regras e

princípios. Deste enfoque geral traduz-se uma opção metodológica inafastável: as

decisões judiciais analisadas não abarcaram nem juízos de primeiro grau, nem

tribunais de apelação, fixando-se exclusivamente nos Tribunais que têm por

função constitucional a uniformização da interpretação da Constituição e das leis

federais, respectivamente o Supremo Tribunal Federal – STF e o Superior

Tribunal de Justiça – STJ. Para os fins desta pesquisa, por outro lado, os casos de

busca ou efetividade de direitos constitucionalmente assegurados não se

prenderam à tese que fundamenta a jurisprudência defensiva do STF

relativamente à violação ou ofensa reflexa de direitos constitucionais26, daí a

necessidade de inclusão do STJ no âmbito do presente estudo.

25 Esta preferência metodológica não implica qualquer visão de prevalência valorativa da interpretação judicial sobre a legislativa. Não desconheço as inúmeras problematizações a respeito da judicialização da política e os questionamentos, ora fundados, ora talvez um tanto alarmistas, sobre esta questão. O ponto traçado neste argumento limita-se a dizer que, dada a situação institucional do país e as vigentes condições históricas do desenvolvimento desta institucionalidade, acertadamente ou não, a norma se aplica e se tem como válida não necessariamente tal como editada pelo Legislativo, mas tendencialmente tal como interpretada pelo Judiciário. Muitos caminhos promissores se abrem quando indagamos sobre as razões de prevalência de um Poder sobre outro ao dizer o que a Lei é (por ex., as teorias ligadas à ideia de diálogo institucional), mas elas não cabem neste trabalho que, diferentemente, problematiza menos a presença das instituições nos processos decisórios e interpretativos e mais a ausência (ou o modo e as condições de presença) dos intérpretes não institucionais, não profissionais, do Direito na determinação do conteúdo destas normas. 26 Segundo a tese da ofensa reflexa à Constituição, o STF não conhece do recurso sobre matéria constitucional (em regra, o Recurso Extraordinário) se a violação não for diretamente ao texto da Constituição, e sim a norma infraconstitucional (lei, por exemplo), o que implicaria o exame dos contornos de aplicação desta, e não apenas daquela. No contexto da Constituição atual, em vigor

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A pesquisa coletou material referente ao período entre 01/01/2000 e

31/12/2010 em fontes de acesso público, dando-se prioridade às páginas oficiais

daqueles órgãos do Poder Judiciário na internet. Um dos elementos centrais para

esta opção está na controlabilidade do levantamento de dados e na possibilidade

de sua repetição por qualquer outra pessoa utilizando-se dos mesmos recursos e

procedimentos. Do ponto de vista metodológico, ganha-se em publicidade,

transparência e reprodutibilidade da coleta de dados. Por outro lado, eventuais

discrepâncias decorrentes da forma de alimentação, atualização ou indexação

destes bancos de dados são variáveis impassíveis de controle pelo pesquisador e

poderiam, em tese, implicar flutuações nos resultados empíricos27.

Acredito que o corte temporal amplo utilizado e os resultados originalmente

obtidos, com aportes consideráveis de documentos, tendem a reduzir

significativamente qualquer efeito prático destas eventuais flutuações sobre o

universo geral de análise, mantendo-as no campo de desvios marginais sem

grande importância estatística. Como o objetivo final do trabalho é a análise

qualitativa a partir de categorias ligadas ao objeto de estudo, o caráter objetivo e

aleatório tanto da coleta quanto das eventuais flutuações estatísticas afasta (ou ao

menos reduz grandemente) a possibilidade de interferência subjetiva indevida no

universo considerado, sendo, acredito, motivos suficientes para a manutenção da

abordagem escolhida.

O período de levantamento de dados considerou as datas de julgamento, e

não de publicação: como pode haver um intervalo considerável entre julgamento e

publicação, e este intervalo refere-se a variáveis muitas vezes não diretamente

controláveis pelos próprios órgãos julgadores, a busca por data de julgamento

desde 5 de outubro de 1988, isso implicaria violação da competência do STJ, por exemplo. Entretanto, é de se notar que esta noção vem sendo aplicada no STF desde antes da Constituição vigente. Sem qualquer compromisso com levantamento histórico a respeito, ao se proceder a uma busca sobre o tema na página de pesquisa de jurisprudência do Supremo encontram-se decisões neste sentido desde pelo menos 1986 (RE 109585, Relator Min. CÉLIO BORJA, Segunda Turma, julgado em 18/12/1986, DJ 27-02-1987 PP-02958 EMENT VOL-01450-03 PP-00515, disponível em http://tinyurl.com/mua4uck, acesso em 03/06/2013). Por outro lado, diz-se defensiva este tipo de jurisprudência porque ela visa limitar o acesso aos tribunais, especialmente superiores, através de uma maior rigidez no exame de condições de admissibilidade dos respectivos recursos e, com isso, “defender” ou “proteger” estes tribunais de uma avalanche de recursos, em geral, repetitivos, impossível de ser julgada. 27 Essas discrepâncias ou inconsistências foram indicadas expressamente no texto, quando significativas e tenham sido detectadas no curso da pesquisa.

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mostra-se mais representativa do efetivo entendimento das questões em análise

nos tribunais no momento mesmo em que julgam.

A busca de registros foi feita a partir das palavras-chave “mst ou sem adj

terra ou reforma adj agrária”, ou variações conforme as exigências de utilização

de conectores lógicos de cada página de pesquisa que implicassem o mesmo

resultado de conteúdo, ou seja, busca indexada pelos termos “mst”, ou “sem terra”

como expressão inteira, ou “reforma agrária”, igualmente como expressão inteira.

Uma coleta preliminar foi feita no momento de preparação do texto de

qualificação de tese. Esta coleta preliminar teve tanto o objetivo de indicar a

escala de grandeza dos dados a serem trabalhados e eventuais problemas na sua

coleta e manipulação, quanto o de explicitar à banca de qualificação o caminho

metodológico seguido. Apenas páginas iniciais de consulta e resultado foram

anexadas ao texto de qualificação, de modo a permitir à banca uma visão

panorâmica deste levantamento preliminar.

O ensaio geral caracterizado por aquela coleta inicial mostrou-se

fundamental do ponto de vista metodológico, pois evidenciou ser pouco racional e

bastante contraproducente proceder-se à separação do material a partir daquele

tipo de procedimento: cuidando-se de conjuntos muito significativos de dados

(originalmente quase 1.300 registros), seu exame evidentemente não poderia ser

finalizado em um único dia, e sucessivas pesquisas diárias aos sítios daqueles

órgãos na internet gerariam enorme caos na tentativa de organizar o trabalho. Em

função disso, o autor contratou especialista na área, Náiron José Correia

Guimarães, responsável pelo desenvolvimento de programa informatizado

destinado a extrair os dados das páginas originais de busca na internet e alocá-los

em arquivos xml ou xls (planilhas eletrônicas) com seus dados identificadores

elementares (fundamentalmente tribunal, órgão julgador, número e natureza da

decisão, data, relator, ementa e link para o arquivo correspondente na sua página

original na internet). A partir destes arquivos, foi possível manusear os dados de

maneira racional e prática.

Referidos arquivos passaram por duas (no caso do STJ) ou três (no caso do

STF) diferentes triagens cada um, até redundarem no conjunto de dados

efetivamente utilizados na pesquisa. Uma primeira leitura foi feita no próprio

arquivo xml ou xls, a partir do resumo dele constante (que, repita-se, era extraído

diretamente da página de busca do órgão pesquisado, ou seja, era exatamente o

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mesmo resumo visualizado pelo consulente que acessasse diretamente a página do

órgão respectivo na internet). A partir desta primeira leitura, era já possível

eliminar-se o material que evidentemente não tinha qualquer relação de conteúdo

com os critérios versados neste trabalho. Em uma segunda triagem, acessaram-se

os links disponíveis nas planilhas para, consultando-se diretamente os registros

nas páginas dos órgãos em questão, verificar-se a natureza da matéria, o que em

geral permitia uma segunda leva de descartes relativamente evidentes. Finalmente,

uma terceira rodada de triagens, quando necessária (caso do STF), permitiu,

acessando-se o conteúdo geral das proposições ou o inteiro teor das decisões

judiciais, avaliar mais minuciosamente a pertinência temática do registro em

questão para o presente estudo e, a partir desta análise, decidir sobre sua

manutenção ou não na base de dados final. Dada a forma como as ementas são

estruturadas, no caso das decisões do Superior Tribunal de Justiça foram feitas

apenas duas triagens, a primeira com os descartes mais evidentes (redução de 925

registros gerais para 94 aproveitáveis), a segunda com abertura da íntegra dos

acórdãos duvidosos e análise de seu conteúdo quanto à pertinência para este

estudo, onde se obteve uma redução de mais 44 casos não conformados ao

projeto, resultando uma base final de dados de 50 decisões.

Buscou-se trabalhar exclusivamente com o material que efetivamente

apresentasse caráter normativo relativamente à matéria objeto da pesquisa. Isto

implicou a eliminação de todas as decisões que, ainda que potencialmente

versando matéria de fato conexa a este estudo, fossem tomadas com fundamento

exclusivamente processual28, como é o caso das inúmeras hipóteses de não

provimento, ou não cabimento ou não conhecimento de recurso, notadamente ou

28 As exclusões referiram-se às decisões com fundamento unicamente processual, o que não inclui, por exemplo, o acórdão proferido pela 1.ª Turma do STJ no Agravo Regimental na Medida Cautelar n.° 11386/PR, analisado qualitativamente neste trabalho. Naquele feito, o STJ negou liminar para dar efeito suspensivo a recurso especial em caso no qual a área controvertida estava ocupada por militantes sem-terra desde 1999, enquanto o julgamento se deu em maio de 2006. Ainda que o fundamento tenha sido o de que não havia risco de dano irreparável ou de difícil reparação que pudesse ser evitado com a concessão da liminar, daí chegando-se à conclusão de ausência dos requisitos legais para a concessão da medida, o fato é que aquela decisão considerou a presença de cerca de trezentos militantes do MST por vários anos como um elemento de fato para relativizar ou flexibilizar parcialmente, ainda que em termos, sua própria jurisprudência acerca dos efeitos da ocupação de áreas em processo de desapropriação para fins de reforma agrária, mais restritiva ao Movimento do que a do STF quanto à aplicação do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, que determina que o imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não poderia ser vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do imóvel, ou no dobro deste prazo, em caso de reincidência.

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por implicar necessidade de reexame de prova29, ou porque a matéria não teria

sido oportunamente suscitada30, ou ainda por ausência de prequestionamento da

matéria nas instâncias inferiores31, ou mesmo simplesmente porque o Tribunal se

considerasse incompetente para a causa ou recurso – o caráter normativo, na

hipótese, quando existente (nos exemplos dados, manifestos em súmulas de

jurisprudência), se referiria evidentemente à matéria processual em questão, não

ao mérito da causa.

Igualmente excluídas foram as decisões que apenas indiretamente (por

vezes, muito indiretamente) versavam os temas aqui pesquisados. É o caso de

impugnações a contribuições sociais devidas ao Incra, matéria de cunho

obviamente tributário, ou referentes à extensão ou não de gratificações de

servidores ativos daquela autarquia aos inativos, ou validade de seus planos de

carreira, dentre outros. Mesmo temas pertinentes à fixação de indenizações por

desapropriação para fins de reforma agrária, quando não diretamente conectados

às reivindicações de demandas próprias do Movimento, foram descartadas – no

mais das vezes, sequer havia oposição dos proprietários às desapropriações,

fixando-se a controvérsia exclusivamente nos critérios legais ou constitucionais

para determinação do valor da indenização, tema que não se relaciona com o que

aqui se analisa.

Tem ainda peso relevante a jurisprudência defensiva consistente em

considerar a violação indireta à Constituição como afastadora da competência do

STF, impedindo o conhecimento da tese constitucional porventura ventilada na

ação ou no recurso. Nestas hipóteses, o Tribunal não adentra o mérito da questão,

implicando evidentemente a exclusão da decisão da base de dados desta pesquisa.

Uma parte importante dos registros relativos a decisões do STJ dizia

respeito a polêmicas acerca do valor da justa indenização; do momento em que se

deve fixar este valor de justa indenização pela perícia, se no momento da imissão

na posse do Incra ou no momento da realização da própria perícia; da

produtividade ou improdutividade do imóvel; da incidência ou não de juros

29 Súmula n.º 279 do STF: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. 30 Súmula n.º 282 do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. 31 Súmula n.º 356 do STF: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.

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compensatórios na hipótese de imóvel improdutivo; da possibilidade ou não de

indenização em separado pela cobertura vegetal do imóvel, dentre outras. Boa

parte destas matérias já encontra solução normativa pacífica, seja porque há

norma jurídica válida e em vigor a respeito, seja porque os tribunais superiores em

questão não mais controvertem sobre a sua aplicação. Como o objeto deste estudo

refere-se a modificações de interpretações ou geração de novos direitos a partir da

ação dos movimentos sociais, estas matérias somente seriam relevantes quando e

se fosse constatada uma modificação significativa da orientação jurisprudencial da

Corte sem que houvesse modificação expressa da norma jurídica – o que

caracterizaria uma modificação de interpretação da Corte na resolução de

conflitos a partir da mesma norma32. Além destes casos, há inúmeros outros em

que a Corte não se posicionou sobre a matéria de fundo em decorrência da

necessidade, para tanto, de reexame do conjunto fático-probatório, o que militaria

contra a sua própria natureza e função como corte de cassação, e afrontaria o

disposto no Enunciado n.º 07 da sua Súmula de Jurisprudência33.

O conjunto de dados originais, a base final de dados e a íntegra da

dissertação de mestrado defendida em 1998 ficarão disponíveis no blog

nasfronteirasdaconstituicao.blogspot.com.br para consulta pública e uso, desde

que indicada a fonte.

Após os procedimentos de triagem tais como descritos acima nos conjuntos

de dados envolvidos, observou-se uma variação entre dados brutos e líquidos tal

como indicada na Tabela 1.

TABELA 1

BASE DE DADOS DA PESQUISA

ÓRGÃO NÚMERO DE REGISTROS ORIGINAL

APÓS 1ª. TRIAGEM

APÓS 2ª. TRIAGEM

APÓS 3ª. TRIAGEM

BASE FINAL

PERCENTUAL BASES FINAL /

ORIGINAL

STF 346 158 37 30 8,67%

STJ 925 94 50 50 5,41%

TOTAIS 1.271 252 87 80 6,29%

32 Caso se tratasse de modificação de posicionamento como decorrência de norma nova, a modificação deveria ser apreciada não como sendo derivada do funcionamento do Judiciário, e sim do Legislativo, o que não pode ser examinado neste estudo. 33 “Súmula 07 do STJ: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.

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As estratégias e táticas ordinariamente utilizadas pelo MST, em especial as

ocupações de terras improdutivas ou de prédios públicos, não são propriamente

itens de sua pauta de reivindicações, assim entendidas as linhas políticas gerais

tais como estabelecidas em seus Encontros Nacionais. Entretanto, elas não só

expressam a forma cotidiana de ação do Movimento e sua identidade coletiva,

como ainda apresentam mais do que expressiva ocorrência nas decisões judiciais

que se referem a ele, razões pelas quais elas evidentemente não poderiam ser

excluídas do presente estudo.

Após a seleção de dados, as informações básicas de cada decisão foram

lançadas em fichas de análises que continham duas partes, uma descritiva, outra

analítica. Na parte descritiva eram registradas informações referentes ao Tribunal

responsável pela decisão, órgão julgador (turma, seção etc.), se a matéria era cível

ou criminal, se a competência era originária ou recursal, qual o tipo de ação, o

número do processo, a identificação das partes, data de ajuizamento e julgamento

na Corte, e identificação do relator e relator para o acórdão, se fosse o caso. Na

parte analítica era inserida a ementa da decisão, uma síntese analítica do caso e as

ideias-força da decisão, as demandas do Movimento conexas com a decisão, a

forma de resposta à demanda em questão (se a decisão a acolhia totalmente, a

rejeitava totalmente ou outra opção e, neste último caso, uma breve descrição). O

modelo de ficha de análise encontra-se no Anexo 134.

Em seguida, os dados foram organizados em categorias por objeto de

decisão, de modo a permitir uma visualização quantitativa das matérias versadas

nas respostas de cada órgão e seu peso relativo no período estudado.

A partir desta identificação geral de dados, foram gerados inúmeros gráficos

e tabelas que serão apresentados mais à frente e que permitiram traçar o perfil

geral das decisões em questão a partir de variados critérios (objeto principal, tipo

34 Apesar de já registrado nos agradecimentos, gostaria de reiterar que o modelo de ficha de análise por mim adotado nesta pesquisa inspirou-se naquele oferecido pela professora Nádia de Araújo na disciplina Seminário de Pesquisa, tendo sido por mim adaptado às necessidades próprias deste estudo. Na prática, nem todos os campos destas fichas de análise foram utilizadas para o conjunto dos dados após a triagem. Para uma primeira fase de catalogação e tabulação, apenas os elementos descritivos foram lançados à mão, permitindo a elaboração das categorizações quantitativas relativamente à incidência de tipos de ação, natureza das matérias, objeto das decisões ou correlação de incidências com números de ocupações, por exemplo. Posteriormente, a totalidade dos campos foi complementada apenas para aqueles casos que, dentre todos os constantes da base de dados final, foram selecionados para serem objeto de análise qualitativa, a que denominei decisões-tipo, cujos fichamentos encontram-se no Anexo 2.

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de proposição, número de decisões por ano, dentre outros), boa parte dos quais

inseridos nesta pesquisa.

Com base nestas generalizações quantitativas, foi possível selecionar

decisões-tipo que se encaixassem nas ocorrências mais relevantes encontradas

dentre as compatíveis com o tema desta pesquisa, proposições estas que foram

analisadas de forma mais detalhada. Para confrontá-las, proposições de temas

correlatos, mas de sentido diferente, também foram analisadas mais em detalhe,

buscando-se, através desta oposição entre o que é regra e o que é exceção nas

proposições, trazer luz ao sentido geral do que os órgãos judiciais efetivamente

decidiam, ou não decidiam – eventualmente permitindo o vislumbramento de

algum sentido ou tendência geral que pudesse ser revelado.

1.2

Olhando sobre a Fronteira

Explicitado como os dados foram obtidos, é preciso abordar as

características fundamentais do Movimento estudado. Uma breve recuperação

histórica sobre a trajetória do MST já havia sido feita na pesquisa de mestrado35,

abarcando desde suas origens mais remotas, com a ocupação de áreas em Nonoai

e Encruzilhada Natalino entre 1978 e 1981, ambas no Rio Grande do Sul,

passando pela sua criação formal, em 1984, até 1998, quando aquele trabalho foi

redigido. Não se trata de repetir aqui aquele esforço, mas acredito necessário

recuperá-lo ainda que resumidamente como preâmbulo para uma atualização das

bandeiras e formas de luta articuladas pelo MST no período aqui estudado (2000-

2010), todo ele posterior ao abordado naquela ocasião.

Para aquilo que mais nos importa aqui, gostaria de chamar a atenção para a

necessidade de uma periodização sobre as principais formas de luta e

autocompreensão estratégica do MST. Na ocasião, parti de análises sugeridas por

Maria da Glória Gohn (1997) a respeito, mas critiquei-as parcialmente, optando

por fixar eu próprio uma divisão daquela história em três fases distintas,

35 Garcia, 1999: 45-56.

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articuladas com os lemas e reivindicações que orientavam a sua militância36.

Atualizando-as, teríamos as seguintes fases:

a) de 1979 até 1988, em que o lema principal do Movimento era “terra para

quem nela trabalha”, caracterizando-se uma identificação da luta pela terra com a

luta pela reforma agrária;

b) de 1988 até 1995, em que a reforma agrária passou a ser entendida como

algo mais amplo do que a simples conquista da terra, referindo-se a um complexo

de políticas e medidas governamentais destinadas a alterar a estrutura fundiária do

país37. É o período em que se decidiu resistir às ordens de desocupação da terra,

passando-se a produzir diretamente nas áreas invadidas. Esta fase corresponde ao

lema “ocupar, resistir, produzir”38;

c) de 1995 a 2000, que correspondeu à consigna “reforma agrária, uma luta

de todos”, elaborada em seu III Congresso Nacional, e que priorizava a

articulação com os demais trabalhadores da cidade e do campo e a redefinição do

36 “Maria da Glória Gohn (1997) divide genericamente a história do MST em três fases distintas: a primeira, de 1979 a 1985, caracterizada pela luta pela terra como identificada à luta pela Reforma Agrária; a segunda, de 1985 a 1988, caracterizada pela nacionalização do movimento e sua organização nos estados em que há lutas e ocupações; finalmente, de 1988 aos nossos dias, no qual a orientação básica da luta passa a ser expressa no lema ‘ocupar, resistir, produzir’, desenvolvendo-se a consciência da necessidade de superar a agricultura artesanal e estabelecer novas formas de relações sociais no campo. A periodização citada anteriormente parece mesclar elementos estratégicos com organizativos. Sob o ponto de vista específico da evolução da estratégia de luta do MST, e principalmente de sua autocompreensão estratégica, entretanto, podemos dividir esta história também em três fases, segundo documento do próprio Movimento (MST, 1996), mas de distinta periodização, identificando-as com as diferentes consignas sustentadas pelo MST” (Garcia, 1999: 52-3). A ênfase então dada à autocompreensão estratégica do movimento explicava-se pelo caráter daquela pesquisa, orientada para o vislumbramento do processo de constituição do MST como sujeito na cena constitucional brasileira. No entanto, ela igualmente se mostra pertinente a esta tese, dada a necessidade de identificar o desenvolvimento das reivindicações do movimento como um elemento de estruturação de sua identidade e de seus posicionamentos frente ao Estado. 37 “Permeada pelo contexto politizador das pressões e dos enfrentamentos envolvidos na elaboração da Constituição hoje vigente, representaria uma consciência mais ampla e amadurecida do caráter político da questão agrária, a qual passa a ser integrada em uma concepção diferente de mundo - a luta pelo socialismo” (Garcia, 1999: 53). 38 A decisão de resistência às desocupações prende-se ao aumento da repressão às ocupações de terra, e era justificada por parte do Movimento de forma muito interessante: “Ocupar era a reafirmação da forma de luta, resistir era devido à repressão; e produzir era em contestação à UDR, que chamava os sem-terras de ‘preguiçosos e vagabundos’” (MST, 1996: 12). A UDR – União Democrática Ruralista, era à época a grande adversária do MST e dos movimentos camponeses, entidade que congregava os grandes produtores rurais e era extremamente ativa no cenário político, tendo então como uma de suas principais lideranças o hoje deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO). Este papel, atualmente, é desempenhado principalmente pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA, sob a liderança da senadora Kátia Abreu (DEM-TO). A disposição dos sem-terra de resistir às ocupações prende-se à utilização da violência por parte dos fazendeiros proprietários das terras ocupadas, fenômeno que parece ter sua origem, segundo Zander Navarro (1996), na ação de desocupação violenta da Fazenda São Juvenal, no Rio Grande do Sul, em 1987, onde sequer houve intervenção da Brigada Militar.

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perfil da política de reforma agrária de distribuição de terra e apoio através de

financiamentos e insumos para o desenvolvimento de uma nova estrutura agrária

baseada na implantação da agroindústria através do sistema cooperativado;

d) de 2000 a 2007, o lema passa a ser “Reforma Agrária, por um Brasil sem

latifúndio”, e agrega a explicitação dos projetos e reivindicações sociais do

Movimento e a luta contra os transgênicos e contra o uso de agrotóxicos na

agricultura, como definido em seu IV Encontro Nacional;

e) finalmente, a partir de 2007, ano em que se realizou o V Encontro

Nacional do MST, quando adota o lema “Reforma Agrária, por justiça social e

soberania popular” e a explicitação da crítica ao desmantelamento dos

mecanismos de controle público sobre aspectos da produção rural, à crescente

internacionalização da produção agrícola, ao agronegócio e à substituição de áreas

de plantio de alimentos por plantações destinadas à produção de etanol ou de

commodities passa a ser central39.

Vê-se, portanto, que às modificações nas bandeiras de luta do Movimento

correspondem importantes variações nas demandas concretas que as espelham e

nas estratégias utilizadas com vistas à sua consecução. Se no surgimento do

Movimento, a princípio, a luta por distribuição de terra e créditos agrícolas era

praticamente sinônimo de luta pela reforma agrária, sem a presença de disposição

para resistência às desocupações, mais tarde as manifestações transcendem o

próprio espaço da produção agrícola, referindo-se simbolicamente ao crédito

(ocupação de agências bancárias), à distribuição (bloqueio de rodovias) e aos

espaços públicos em geral. As reivindicações, por outro lado, deixam o terreno

ligado diretamente à produção (terra, máquinas, financiamento, garantia de safra)

e dirigem-se a reivindicações gerais de cidadania e qualidade de vida (educação,

saúde, cultura, lazer, democratização dos resultados das grandes descobertas

científicas e dos avanços tecnológicos), e mesmo às condições de concretização

de certas formas de vida social, aí incluídas formas de produção econômica

(banimento de agrotóxicos ou manipulação genética, exigência de produção

ecologicamente sustentável, oposição à grande concentração de riqueza etc.).

A alteração das concepções estratégicas do Movimento, entretanto, não

significa um abandono das táticas até então desenvolvidas, como a ocupação de

39 As consignas referentes às duas últimas fases serão explicitadas mais à frente (vide pp. 47 e seguintes).

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terras, e sim sua recontextualização no bojo de novas e mais amplas

reivindicações sociais e bandeiras de luta, como já havia sido feito antes. Os focos

e alvos é que passaram a ser diferenciados, incorporando estas novas percepções

sobre o mundo, a conjuntura e as transformações estruturais da produção

capitalista na área rural.

Três eventos que ficaram muito em evidência na mídia confirmam o sentido

desta afirmação: a invasão e destruição de material relacionado a pesquisa de

transgênicos pertencente à multinacional Monsanto em Não-Me-Toque, no

interior do Rio Grande do Sul, durante o Fórum Social Mundial de 2001, e a

ocupação das Fazendas Santa Henrique, da Cutrale, em Borebi, interior de São

Paulo, e Maria Bonita, do banqueiro Daniel Dantas, em Eldorado dos Carajás, no

Pará, ambas em 2009. Nestes últimos dois casos, havia a alegação, por parte do

Movimento, de que as áreas em questão seriam públicas e estariam sendo

ilegalmente utilizadas por seus pretensos proprietários.

TABELA 2

NÚMERO DE OCUPAÇÕES E FAMÍLIAS 1990 – 2010

ANO OCUPAÇÕES FAMÍLIAS

1990 43 11.484

1995 93 31.531

2000 393 64.497

2005 437 54.427

2010 180 16.865

O número de ocupações de terras, além disso, mostra-se ainda bastante alto

no país, tendo experimentado um crescimento consistente ao longo da década de

1990, apesar da queda relativa na segunda metade da primeira década de 200040.

A Tabela 2 bem expressa os dados respectivos, relativos ao período entre 1990 e

40 A Tabela 2 ilustra globalmente o quadro histórico geral, com intervalos largos, de cinco anos, entre os dados expostos. As Tabelas 4 e 5 apresentarão, mais à frente, estes dados ano a ano, abrangendo respectivamente a última década do século passado e a primeira deste, permitindo uma melhor visualização das flutuações do número de ocupações e conflitos agrários.

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201041.

Na introdução mencionei que o MST é visto de forma polêmica pela opinião

pública em geral, e retratado de forma majoritariamente negativa pela imprensa

nacional. Segundo o Ibope, em 1998 a população dava amplo apoio à reforma

agrária, mas 59% desaprovavam as ocupações de terra:

Em pesquisa realizada pelo IBOPE, 80% dos 3 mil entrevistados afirmaram que são favoráveis à revisão das terras improdutivas, enquanto 12% se posicionaram contra. A aceitação é maior ainda no Nordeste (86%) e a rejeição tende a ser mais representativa no Sul do país (15%). Quanto maior o município, maior a valorização da reforma agrária, especialmente nas periferias. A afirmação ‘o respeito ao direito de propriedade é essencial para o país’ ganhou 83% das adesões dos entrevistados, notadamente, os de renda familiar superior a 5 salários mínimos (87%) e do Nordeste (86%). Quando questionados se o Movimento dos Sem-Terra (MST) usa a reforma agrária como pretexto para agitar o país e fazer política, as opiniões se dividiram. Enquanto 48% concordam, 43% discordam dessa posição. As pessoas com mais de 50 anos tendem a acreditar mais nessa declaração (53%), assim como as de renda familiar superior a 5 salários mínimos (52%). Um segmento de 65% dos entrevistados disse que os Sem-Terra não deveriam invadir propriedades produtivas para forçar o governo a desapropriá-las em nome da reforma agrária. Tanto a UDR quanto o MST têm atuação regular, por 32% e 33% dos entrevistados, respectivamente. A UDR não é reconhecida por 38%, que não sabem ou não opinaram sobre essa instituição. O MST tem melhor aceitação nas regiões Norte e Centro-Oeste (27%), mesmas áreas onde há a maior concentração de avaliação boa para a atuação da UDR (18%). Na opinião de 38% dos entrevistados, o MST pensa mais nos resultados sociais de suas ações, para 45%, está mais interessado nos resultados políticos e 7% disseram o movimento está preocupado com os dois aspectos. Para 52%, o MST é ligado ao PT, enquanto 23% acham que não é. Quanto maior a renda familiar, maior a crença da ligação do Movimento com o partido político. No aspecto da invasão de terras, 59% desaprovam a idéia, enquanto 34% concordam. A resistência é maior em torno da faixa etária superior a 35 anos (61%) e no Sudeste (65%). (Ibope, 1998. Grifei.)

Oito anos depois, já se dizia ser crescente a indisposição da opinião pública

para com o Movimento, mas o fato é que o percentual de pessoas entrevistadas

que avaliavam negativamente as ações do MST (supõem-se, suas ações públicas

espetaculosas, especialmente ocupações de terras e de prédios públicos) era de

41 Fontes: anos de 1990 e 1995, Gohn (1997: 144), baseada em dados do MST; anos de 2000, 2005 e 2010, sítio da Comissão Pastoral da Terra na internet: http://tinyurl.com/l7hwzdk, acesso em 28/05/2010 para os dois primeiros anos, e acesso em 11/05/2011 para o último. Os números de ocupações relativos a determinados anos apresentados nesta tese podem variar de acordo com a entidade responsável pelo seu acompanhamento ou divulgação. Neste trabalho, utilizei tanto dados da CPT – Comissão Pastoral da Terra, quanto dos relatórios do Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra, organizado pelo Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária da Universidade Estadual Paulista – NERA/UNESP. Em qualquer caso, as fontes dos dados e informações foram sempre indicadas, e sempre que foram utilizados para o fim de comparações, estas se fizeram sempre com base nos mesmos dados.

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56%, ou seja, consistente com o índice de rejeição de ocupações de terra de 1998.

Os resultados desta pesquisa, divulgada em 16 de maio de 2006 e disponível no

site do Ibope42, podem ser conferidos nos Gráficos 1 e 2.

GRÁFICO 1 APOIO AO MST IBOPE 2006

Aspecto particularmente curioso e relevante nesta pesquisa de 2006 é o fato

de que tanto os fazendeiros quanto o MST foram igualmente cotados em segunda

posição como responsáveis pelos conflitos no campo, com 27% dos votos dos

entrevistados cada, bem atrás do Governo Federal, primeiro colocado isolado,

com maior responsabilidade para 48% dos entrevistados.

GRÁFICO 2

RESPONSÁVEL POR CONFLITOS IBOPE 2006

42 Dados disponíveis em http://tinyurl.com/lwyollo. Acesso em 19/07/2013.

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O tratamento que a mídia conferia ao Movimento, por outro lado,

continuava sendo extremamente negativo, podendo-se mesmo perceber alusões no

mínimo exageradas ao MST, como no caso de sua comparação com a Ku-Klux-

Klan, em 12 de junho de 200843:

Finalmente, pesquisa do Ibope divulgada pelo jornal O Globo de 15 de

junho de 2008 constatava que cerca de 60% dos entrevistados viam o movimento

aproximando-se da criminalidade, como se pode ver pelo Gráfico 3.

GRÁFICO 3 MST SINÔNIMO DE VIOLÊNCIA IBOPE (O GLOBO) 2008

43 Jornal O Globo, 12 de junho de 2008, p.12.

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Fugiria ao alcance da presente pesquisa analisar, em primeiro lugar, se

efetivamente há um crescimento no nível de rejeição da opinião pública ao MST,

já que estes índices variaram de 59% a 46% entre 1998 e 2008, mas com base em

perguntas distintas entre si, e em segundo lugar, se esta hipotética mudança na

opinião pública, caso existente, teria ou não sido influenciada, e em que medida,

pela continuidade de linhas editoriais manifestamente contrárias ao Movimento44

44 O Movimento reagiu à divulgação desta pesquisa no dia seguinte, ressaltando que ela aponta que 46% dos entrevistados são favoráveis ao MST, enquanto 50% são desfavoráveis, e que entre as palavras que descrevem o MST, 27% é “coragem”, 24%, Reforma Agrária; 21%, organização da sociedade; e 21%, justiça e 21%, igualdade social. 65% dos entrevistados manifestaram afinidade com o MST, embora 31% tenham declarado não concordar com o Movimento. Ao mesmo tempo, 45% dos pesquisados associam MST à violência, 61% a prejuízos à economia e 28% não concordam com seus objetivos, e ainda que 40% dos entrevistados acreditam que os fazendeiros não aceitam negociação com os Sem Terra e reagem às ocupações utilizando métodos próprios (com a ação de jagunços, pistoleiros e outros), sem amparo judicial. Dos entrevistados pela pesquisa, 90% afirmam receber informações sobre os movimentos sociais por meio da televisão, outros 34% pelos jornais; 24% por rádio; 18% pela internet; 8% por revista. "A pesquisa demonstra apoio da sociedade e do povo brasileiro ao MST, com 46% de aprovação à nossa luta. No entanto, a pesquisa apresenta resultados contraditórios, que atestam o bombardeio de notícias e caracterizações distorcidas dos movimentos sociais pela mídia. Logo, a pesquisa serve muito mais para condenar a mídia pela cobertura limitada e parcial do que a atuação dos movimentos sociais

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e que apresentam seus integrantes reiteradamente como desordeiros e baderneiros,

quando não como criminosos, ainda que esta última seja uma hipótese de trabalho

que me parece, a princípio, razoável. A constância de matérias que abordam

fundamentalmente fatos negativos relacionados ao MST, entretanto, já foi

evidenciada por mim anteriormente (Garcia, 1999).

Mencionei acima o acompanhamento de mídia realizado ao longo da

pesquisa de mestrado, entre junho de 1996 e julho de 199845. Mais recentemente,

já durante a pesquisa que redundou na presente tese, busquei proceder a uma

pequena atualização daquele esforço, ainda que em contexto e abrangência

significativamente menores, a fim de confrontar os dados obtidos com as

conclusões de 1998 (Garcia, 2009). Entre 18 de agosto e 6 de dezembro de 2009,

retomei parcialmente aquele levantamento, utilizando os jornais Folha de São

Paulo e O Globo, constatando que permanecia uma orientação geral bastante

negativa quanto às formas de atuação do movimento. Este período foi marcado

por basicamente quatro grandes eventos envolvendo o MST, com grandes hiatos

de cobertura fora dos períodos imediatamente subsequentes a eles: o assassinato,

com um tiro nas costas e por integrante da Brigada (Polícia) Militar, do militante

sem-terra Elton Brum da Silva, em São Gabriel, interior do Rio Grande do Sul,

em 21 de agosto46; a ocupação e desocupação da área da Fazenda Santa Henrique,

do nosso país", afirma nota do MST. Vide http://www.mst.org.br/node/5797, acesso em 08/07/2013. 45 Vide p. 12. 46 O Ministério Público ofereceu denúncia contra o PM Alexandre Curto dos Santos pelos disparos de espingarda calibre 12 que vitimaram Elton Brum da Silva, como incurso no delito previsto no art. 121, § 2.°, IV, do Código Penal (homicídio qualificado pelo uso de recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido, no caso, atirar pelas costas). O juiz da comarca de São Gabriel, entretanto, recebeu parcialmente a denúncia, apenas quanto ao delito de homicídio, sem a qualificadora, o que foi objeto de recurso ministerial julgado procedente à unanimidade, em 12/05/2010, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, decisão esta já transitada em julgado (processo n.° 70035067362) – o tribunal, entretanto, frisou que considerava apenas os aspectos estritamente processuais, sem adentrar no mérito das acusações, já que a denúncia não pode ser recebida em parte, mas apenas recebida ou rejeitada em sua totalidade. Conforme consulta no sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (http://www.tjrs.jus.br) realizada no dia 08/07/2013, o último andamento então registrado no processo n.° 031/2.09.0002390-0 consistia, após a realização de audiência para oitiva de testemunha de defesa e depoimento pessoal do réu no dia 19/03/2013, a expedição de mandado, em 21/05/2013, para atendimento a requerimento do Ministério Público no sentido de que a Brigada Militar informasse ao Juízo se o acusado retirou munição letal nos trinta dias que antecederam o assassinato, com a finalidade de complementar a diligência já realizada pela Brigada, tendo em vista a dificuldade de interpretação de planilhas relativas a esta informação que já teriam sido remetidas e constariam dos autos. Segundo a denúncia, a perícia e o inquérito haviam já determinado que a morte de Elton Brum da Silva fora causada pelos disparos da espingarda calibre 12, que esta arma estava sendo utilizada pelo denunciado, que ele efetuou os disparos e que os disparos foram efetuados pelas costas da vítima;

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da Cutrale, em Borebi, interior de São Paulo, entre 27 de setembro e 7 de outubro;

as tentativas, a final bem sucedidas, de instalação da CPI mista do MST, entre

setembro e dezembro daquele ano47; e a ocupação e desocupação da Fazenda

Maria Bonita, do banqueiro Daniel Dantas, em 4 de novembro, em Eldorado dos

Carajás, no Pará.

À exceção do primeiro episódio, que, por motivos evidentes, implicou uma

abordagem mais moderada pelos veículos em questão, nos demais as matérias

tendiam a marcar imagens negativas para o Movimento, conferindo-se um

destaque muito maior a episódios envolvendo o MST e atos de violência

(atribuídos a ele ou não) – o que poderia em tese ser justificado pelo fato de que,

nestes casos, a matéria envolve evidente interesse jornalístico, mas que não

explica porque somente este tipo de ação do MST gera interesse jornalístico

naquilo que a ele se refere.

Merece destaque, no período monitorado, a iniciativa presente na edição de

5 de dezembro de 2009 da Folha de São Paulo, em que dois articulistas, Zander

Navarro e Plínio de Arruda Sampaio, foram chamados a escrever sobre a reforma

agrária, o primeiro fazendo-o de forma contrária, e o segundo, a seu favor, em

artigos sequenciais e de página inteira. Em que pese a inspiração aparentemente

democrática e jornalisticamente correta de “ouvir os dois lados da história”,

percebe-se uma tendência à redução maniqueísta de um conjunto de questões

complexas – a estrutura fundiária brasileira, suas modificações, a luta pela terra e

a forma como é travada, os impasses entre agronegócio e agricultura familiar, seus

desdobramentos nas questões climática e ambiental, na produção de alimentos e

de commodities, seus respectivos papéis na estrutura econômica do país – a duas

posições antagônicas, em vez da abertura da possibilidade de múltiplas e variadas

perspectivas de análise que podem ter pontos convergentes e divergentes entre si.

as implicações jurídicas decorrentes da determinação da culpabilidade, todavia, estavam evidentemente em aberto. 47 Em que pese a aprovação do requerimento de criação da CPMI do MST em 21 de outubro de 2009, assinado originalmente pelos deputados do DEM Onyx Lorenzoni (RS) e Ronaldo Caiado (GO) e pela senadora do mesmo partido Kátia Abreu (TO) – tarefa facilitada após a ocupação da fazenda da Cutrale e o episódio da derrubada de alguns pés de laranja da fazenda com tratores dirigidos por militantes do movimento – a comissão somente veio a ser formalmente instalada em 9 de dezembro, em virtude de impasses na indicação de nomes para integrá-la. Após inúmeras vicissitudes de procedimento, a comissão restou encerrada no dia 31 de janeiro de 2011, sem aprovação de seu relatório final. Para maiores detalhes sobre o andamento da CPMI do MST, ver página do Senado Federal na internet (http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp? p_cod_mate=93831).

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Em outra oportunidade48, procurei relacionar estes dados e a forma de

tratamento ao movimento com aspectos do discurso conservador e da formação do

Estado no Brasil e suas possíveis ressignificações diante do quadro combinado de

“guerra ao terror” pelos EUA e seus aliados (dramaticamente atual após a

execução de Osama Bin Laden) e de “guerra ao crime organizado” no Brasil e em

vários outros países periféricos. Sua função aqui, todavia, é outra: demonstrar a

atualidade das abordagens elaboradas na dissertação de mestrado e oferecer uma

atualização parcial sobre estes dados desde então. Mesmo assim, cuidando este

texto da forma de intervenção dos movimentos sociais no sistema jurídico do país,

e tendo-se em conta a persistência e a abrangência de discursos de amplo alcance

social que identificam o MST com grupos armados ou terroristas, muito

comumente as FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia49, é

inafastável que algumas considerações sejam tecidas a esta altura sobre o seu

efetivo enquadramento como movimento social e sua distinção, quaisquer que

sejam os aspectos polêmicos de suas intervenções públicas, com redes

terroristas50.

48 Como disse naquela ocasião, a “hipótese com a qual procuro trabalhar aqui é a de que esta relação entre articulação de um discurso conservador sobre os movimentos sociais em geral, os do campo em particular e o MST especificamente, e um texto constitucional que, em tese, o rechaçaria, ganha sentido através de uma tradição de pensamento conservador no Brasil, de cunho marcadamente totalitário, e que encontra em aspectos da obra de Francisco Campos sua expressão mais elaborada, e de que este discurso que, apesar de entranhado na lógica de construção do Estado brasileiro depois da Era Vargas e da ditadura pós-1964, já tendia a ser visto em alguns espaços urbanos como algo atrasado, algo remetido a um passado a ser superado, ganha novos ares de modernidade com o ressurgimento da figura de Carl Schmitt no cenário mundial após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA” (Garcia, 2009: 13). Naquele texto, ainda inédito e que foi elaborado como monografia de conclusão do curso de Teoria Constitucional Contemporânea ministrado pelo professor José Ribas Vieira, indicava como essa conexão Campos-Schmitt se mostrava atual para a contextualização da criminalização dos movimentos sociais, servindo-me de algumas pontuações de Zaffaroni para este fim. O levantamento atualizado sobre a forma de tratamento do MST na imprensa e os dados do Ibope aqui apresentados foram originalmente tratados naquele texto. 49 A própria qualificação das FARC como grupo terrorista, diga-se de passagem, é polêmico. Segundo o verbete “FARC” na Wikipedia, “as FARC são consideradas uma organização terrorista pelo governo da Colômbia, pelo governo dos Estados Unidos, Canadá e pela União Europeia. Os governos de Equador, Bolívia, Brasil, Argentina e Chile não lhes aplicam esta classificação” (http://pt.wikipedia.org/wiki/For%C3%A7as_Armadas_Revolucion%C3%A1rias_da_Col%C3%B4mbia, acesso em 27/03/2013). Ainda que a fonte não seja academicamente relevante, é útil para o fim desta nota, que é de mera ilustração, e há naquele artigo links que remetem a sites de veículos idôneos de informação. 50 Além de Petry & Oinegue, 1998: 44, Prates, 2005, e “KKK”, já mencionados acima, veja-se também, apenas exemplificativamente, “Líder do DEM: MST é 'Farc brasileira' mantida pelo governo” (http://tinyurl.com/ny4659g, acesso em 27/03/2013), sobre declarações de parlamentar que é conhecida liderança de ruralistas, “MST e Farc alimentam polêmica entre vices” (http://tinyurl.com/n7dsclo, acesso em 27/03/2013) ou “Indio bate em Dilma por MST e Farc em debate de vices” (http://tinyurl.com/kqsumhh, acesso em 27/03/2013), sobre repercussão desta

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Aparentemente, o fundamento para a disseminação deste tipo de crítica no

Brasil residiria no fato que movimentos como o MST se dirigiriam mais para o

confronto político e o estabelecimento de agendas políticas do que propriamente

para o atendimento às suas reivindicações mais imediatas. Se o que o MST deseja

é distribuição de terras para seus integrantes, por que há dirigentes profissionais

do Movimento que não são sem-terras, ou que não estão assentados? E por que

suas pautas de reivindicação extrapolam tanto os limites estreitos do que seria

uma reforma agrária? E por que eles participam de protestos sobre temas que não

os atingem diretamente?

Tais críticas parecem, de fato, partir de uma confusão, deliberada ou não,

sobre o que sejam movimentos sociais, aquilo que os caracteriza e os distingue de

outras formas de ação coletiva51. Sem dúvida não se pode dizer que exista uma

única definição do que sejam movimentos sociais, e a referência a uma das muitas

possíveis definições ou conceituações implicaria a necessidade de um

posicionamento crítico em relação ao paradigma a que ela se prende52.

Extrapolaria muito o âmbito deste trabalho uma tentativa de mapeamento do

conjunto de polêmicas sobre este conceito, mas creio ser legítimo dizer que,

grosso modo, a existência de confrontos políticos e a superação de suas

reivindicações materiais imediatas, bem como a capacidade de manterem a

assimilação até mesmo no debate entre os principais candidatos à Vice-Presidência da República em 2010, ou “À espera dos bárbaros: país permanece sem estratégia antiterror” (Chimanovitch, 2013), sobre, dentre outros aspectos, as dificuldades políticas tanto do governo quanto de parte importante da oposição em fazer aprovar no Brasil ainda antes da realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos uma lei antiterror adequada, que não penalize igualmente atentados terroristas e protestos de movimentos sociais, ainda que eventualmente mais radicais (também disponível em http://tinyurl.com/lvdrphq, acesso em 27/03/2013). 51 Digo que a confusão pode ou não ser deliberada na medida em que ela se produz e se reproduz a partir de sujeitos com níveis de informação inteiramente diferentes e que podem ou não apresentar motivações estratégicas na definição de seu agir e de seus discursos. Quando vemos, por exemplo, intelectuais ou a grande mídia reproduzindo estas críticas, é bem menos aceitável operar com a ideia de que haja desconhecimento sobre o alcance das definições (ou das correspondentes polêmicas) teóricas sobre o tema, e a possibilidade de que haja interesse estratégico deliberado na ampliação da confusão intelectual se robustece. Diferentemente, se pensamos na produção de opinião pública como um processo complexo de adesão de indivíduos ou grupos a determinadas formulações socialmente construídas e disseminadas, adesão que pode se basear tanto em critérios racionais quanto em não racionais, comumente em um amálgama complexo deles, e ainda, no caso brasileiro, tendo-se em conta as precariedades estruturais ligadas ao nosso sistema de ensino formal, então o caráter intencional da confusão conceitual se reduz. 52 “...poucos autores se dedicaram a definir ou a conceituar o que entendem por movimentos sociais. Acrescente-se a esta lacuna a profusão de tipos e espécies de movimentos sociais que têm sido tratados da mesma forma, além da não-diferenciação entre movimentos propriamente ditos, lutas, protestos, revoltas, revoluções, quebra-quebras, insurreições e outras formas de ações coletivas. (...) Desde logo afirmamos que não há um conceito sobre movimento social mas vários, conforme o paradigma utilizado.” (Gohn, 2008: 13)

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permanente possibilidade de geração de agendas políticas, são traços geralmente

comuns senão em todas, pelo menos na grande maioria e nas mais relevantes

definições de movimentos sociais.

Para Diani (1992: 02), os movimentos sociais consistem em um amplo

processo pelo qual diferentes atores, sejam indivíduos, grupos informais ou

organizações, constroem, através de ações conjuntas ou comunicações

compartilhadas, uma definição comum sobre eles próprios como partes de um

mesmo lado em um conflito social. Ele procura mapear os elementos de

aproximação e diferenciação entre os conceitos de movimento social nos

principais campos teóricos de sua análise desde os anos 1960, que agrupa

genericamente em quatro grandes ramos, identificados por autores de grande

influência: o que ele chamava das então mais recentes expansões da perspectiva

do “Comportamento Coletivo”, representadas por Turner e Killian; as várias

aproximações genericamente identificadas como “Teorias da Mobilização de

Recursos”, que ele sintetiza nos conceitos de movimentos sociais de Zaid e

McCarthy; a perspectiva do “processo político”, com base na conceituação de

Tilly; e finalmente o campo dos “Novos Movimentos Sociais”, representado por

Touraine e Melucci.

Após apresentar conceitos utilizados por todos estes autores para

movimento social, Diani (1992: 06) salienta que

As definições introduzidas acima enfatizam ao menos quatro aspectos da dinâmica dos movimentos sociais: a) redes de interação informal; b) compartilhamento de crenças e solidariedade; c) ação coletiva em questões conflituosas; d) ação que se apresenta em grande parte fora da esfera institucional e da rotina de procedimentos da vida social53.

Em síntese, movimentos sociais não existem como clubes de chá.

Movimentos sociais somente existem quando implicam auto-organização de

indivíduos ou grupos na definição ou estruturação de temas políticos ou

reivindicações que lhes são relevantes, em cujo processo os próprios participantes

ou aderentes se definem a si mesmos e estabelecem uma dinâmica de conflitos,

com isso determinando qual o campo de conflito, de que lado eles estão e quem

53 “The definitions introduced above emphasise at least four aspects of social movement dynamics: a) networks of informal interaction; b) shared beliefs and solidarity; c) collective action on conflictual issues; d) action which displays largely outside the institutional sphere and the routine procedures of social life.” (op. loc. cit.).

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são seus adversários. Portanto não será a existência de conflitos, mesmo agudos,

que indicará que determinados coletivos não são caracterizados como movimentos

sociais, pois estes movimentos organizam-se precisamente para participarem de

forma mais vantajosa, ou menos desvantajosa, de tais confrontos. Para utilizarmos

uma definição mais próxima do campo teórico de Charles Tilly, anteriormente

mencionado:

O confronto político surge como uma reação a mudanças e restrições políticas em que os participantes reagem a uma variedade de incentivos: materiais e ideológicos, partidários ou baseados no grupo, de longa duração ou episódicos. A partir dessas oportunidades e usando repertórios conhecidos de ação, pessoas com recursos limitados podem agir de forma contenciosa – embora esporadicamente. Quando suas ações se baseiam em densas redes sociais e estruturas conectivas e recorrem a quadros culturais consensuais e orientados para a ação, elas podem sustentar essas ações no conflito com opositores poderosos. Em tais casos – e apenas em tais casos – estamos diante de um movimento social. (Tarrow, 2009: 27; grifo no original)

Para Cefaï (2009), que parte de uma abordagem inspirada no pragmatismo

de Chicago e em uma releitura de Dewey,

As organizações de movimentos sociais foram tratadas durante muito tempo como ‘infraestruturas materiais de mobilização’, máquinas de guerra mais ou menos eficazes contra o adversário, ou jazidas de capital social para se investir e rentabilizar. Essa visão se complexificou com o tempo. Elas são também meios de sociabilidade, onde emergem ocasiões de encontro que moldam as formas de coexistência. São agenciamentos de objetos, normas e pessoas que ordenam o que os membros podem fazer, ver ou dizer. Elas constituem ambientes práticossensíveis, que fixam hábitos de cooperação e de conflito e que fornecem parâmetros de experiência cognitiva e normativa. Elas são indissociavelmente vetores de concentração de capitais materiais e humanos, incubadoras de redes de ativistas, chocadeira de empreendimentos de militância, geradores de energia simbólica, instâncias de representação coletiva.54

54 “Les organisations de mouvements sociaux ont longtemps été traitées comme des ‘infrastructures matérielles de mobilisation’, des machines de guerre plus ou moins efficaces contre l’adversaire ou des gisements de capital social à investir et à rentabiliser. Cette vue s’est complexifiée avec le temps. Elles sont aussi des milieux de sociabilité, où émergent des occasions de rencontre et qui façonnent des formes de coexistence. Elles sont des agencements d’objets, de normes et de personnes qui ordonnent ce que les membres peuvent faire, voir ou dire. Elles constituent des environnements praticosensibles, qui fixent des habitudes de coopération et de conflit et qui fournissent des repères d’expérience cognitive et normative. Elles sont indissociablement des vecteurs de concentration de capitaux matériels et humains, des incubateurs de réseaux d’activistes, des couveuses d’entreprises militantes, des générateurs d’énergie symbolique, des instances de représentation collective” (op. loc. cit.). Há uma versão deste artigo em português (CEFAÏ, Daniel. “Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista à sociologia da ação coletiva”. Trad. Bruno Cardoso. Rio, Dilemas, v. 2, n. 4., abr-mai-jun 2009, pp. 11-48, disponível em http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/Dilemas4Art1.pdf, acesso em 27/03/2013).

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Segundo Scherer-Warren (2009), a questão da territorialidade e da

reterritorialização de espaços de conflito ainda é o palco dos conflitos mais

acirrados nas sociedades contemporâneas, estabelecendo-se a necessidade de uma

conexão entre as dimensões geográfica e sociológica para perceber mais

adequadamente estas realidades. Trabalhando a partir de uma análise do MST e do

MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), ela resgata primeiramente a

noção de coletivos em rede, que se referem a conexões entre organizações

empiricamente localizáveis e que podem ser segmentos de redes mais amplas.

Para que estes coletivos em rede se transformem em movimentos sociais em rede,

três dinâmicas sócio-político-culturais coletivas devem se concretizar: a formação

de uma identidade coletiva ou identificação em torno de uma causa comum; a

definição de uma situação de conflito e de seus adversários; e a construção de um

projeto ou utopia de mudança:

A possibilidade da construção de sujeitos e da transformação destes sujeitos em atores politicamente ativos nas redes não transcorre como uma necessidade imediata da vivência de carências. A carência por si só não produz movimentos sociais. O movimento resulta do sentido coletivo atribuído a esta carência e da possibilidade de identificação subjetiva e da subseqüente possibilidade de criação de símbolos de representação em torno dela (p. ex: as músicas, o boné, a bandeira, etc. no MST). Neste processo há que se considerar o reconhecimento recíproco sobre a vivência da exclusão ou da discriminação dos sujeitos e a tradução desta vivência em novos valores coletivos dos grupos, na definição dos conflitos geradores da exclusão e dos principais adversários políticos. Resulta também da subseqüente transformação dos sujeitos em atores políticos, da respectiva transformação das carências em demandas, destas demandas em pautas políticas e das pautas políticas em ações de protestos, calcados em projetos e utopias de mudança. (Scherer-Warren, 2009: 115-6) Neste contexto, a reiterada assimilação dos militantes do MST a criminosos

ou terroristas mostra-se inteiramente inadequada, em especial quando se

evidenciam o que especificamente caracteriza uma rede de movimentos sociais e

uma rede terrorista e, portanto, aquilo que as diferencia entre si, o que faço mais

uma vez com o apoio de Scherer-Warren (2009: 113):

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TABELA 3 MOVIMENTOS SOCIAIS E REDES TERRORISTAS

Tipos Visibilidade

Pública Estratégia Objetivos Empoderamento

Movimentos sociais

Esfera Pública Redes de

informação Emancipação Sociedade Civil

Redes terroristas

Células clandestinas

Nós das redes-guetos

Coerção ilícita Grupos

fundamentalistas

Por certo não se trata de considerar indevida a divulgação de atos

controvertidos de qualquer movimento social, o MST em particular, ou mesmo de

interpretações francamente negativas sobre suas ações. A evidência que se

procurou mostrar em 1998, e que se busca aqui brevemente reatualizar, é que não

é possível construir uma esfera pública democrática e permitir o livre fluxo de

ideias, concepções e proposições num contexto em que a mídia não permita

acesso a variadas e complexas, eventualmente contraditórias, opiniões, análises e

razões sobre formas concretas de atuação de atores sociais. A intervenção radical

de alguns destes movimentos, como é o caso do MST, pode e deve ensejar

intensas polêmicas no seio da sociedade, mas este grau elevado de polêmica

deveria se traduzir numa gama variada de posicionamentos onde os próprios

atores deveriam ter voz ativa para apresentar justificações sobre seus atos, ao lado

de críticas e opiniões de variados matizes sobre as razões apresentadas, e não num

preocupante e uníssono discurso repressivo.

O papel da mídia em uma sociedade democrática na qual se assegurem

direitos discursivos a seus participantes, em especial da mídia eletrônica, deveria

ser o de desempenhar o papel de “mandatária de um público esclarecido, capaz de

aprender e de criticar”, como diz Habermas (1997b). Os veículos desta mídia

deveriam preservar sua independência frente a atores políticos e sociais, “imitando

nisso a justiça; devem aceitar imparcialmente as preocupações e sugestões do

público, obrigando o processo político a se legitimar à luz desses temas”

(Habermas, 1997b: 112). Este seria o caminho para evitar que o poder da mídia se

convertesse em influência político-publicitária. Todavia, como salienta o próprio

pensador alemão, não é este o papel que concretamente joga a grande imprensa

nos dias de hoje nas sociedades avançadas. Ao contrário, a esfera pública parece

mesmo em muitos aspectos submetida às estratégias de dominação dos meios de

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comunicação de massa, dificultando as chances de que a sociedade civil possa

exercer um papel decisivo de influenciar o sistema político, assegurando sua

legitimidade democrática.

Além disso, a avaliação segmentada do que se apresenta formalmente ao

público em geral como “atos de violência” praticados pelo Movimento,

desconectados da contextualização histórica, política e social dos parâmetros de

violência tanto na composição da estrutura agrária brasileira quanto do próprio

Estado brasileiro55, tende a unilateralizar esta avaliação e sobrepenalizar os

militantes envolvidos. Pior, tende a penalizá-los não por suas condutas, mas por

sua identidade, num jogo autoritário que remete à figura schmittiana do inimigo

(Garcia, 2009; Zaffaroni, 2005 e 2007).

Mais uma vez deve-se ressaltar que não se propugna aqui a

irresponsabilização por vitimização dos militantes sociais e nem a “abolição do

Código Penal” para integrantes de movimentos sociais (Garcia, 1999), que é

vulgarmente traduzida de forma jocosa e cínica por setores conservadores e por

parte da mídia – eventualmente até mesmo por um discurso fácil e superficial

pretensamente de esquerda – como a noção de que pessoas postas à margem do

acesso a bens e direitos fundamentais “são coitados porque são vítimas do

sistema”: o resgate da dignidade de sujeitos autônomos que possam atuar

racionalmente na esfera pública como cidadãos não pode evidentemente coexistir

com essa caricatura de discurso social com que periodicamente se busca

desqualificar iniciativas de inclusão e infantilizar setores marginalizados da

sociedade. Fenômenos sociais complexos somente podem ser compreendidos

quando se busca apreendê-los em sua complexidade, e as decisões políticas que

produzirão respostas de Estado a estas demandas somente serão legítimas, do

ponto de vista de uma democracia deliberativa, quando todos os concernidos

puderem expressar-se livre e validamente em espaços comunicativos abertos nos

quais não operem formas sistemáticas (e sistêmicas) de violência.

Por outro lado, apesar das inúmeras e significativas mudanças de orientação

e organização observadas pelo MST ao longo dos últimos anos, este levantamento

55 Dentre inúmeros outros, ver, por exemplo, Florestan Fernandes (2006), Raymundo Faoro (1989 e 1991), Victor Nunes Leal (1997), Caio Prado Jr. (2000) e Jacob Gorender (1994); em termos mais recentes, especificamente sobre os massacres de Corumbiara e Eldorado de Carajás, ver Varella (1998) e Garcia (1999); quanto ao número de mortos no campo, vide Tabela 4 e Gráfico 5.

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põe em evidência que as principais formas de atuação pública do Movimento

continuam sendo as ocupações de terras e de prédios públicos, ocasionalmente de

rodovias, e que estas intervenções continuam no centro da conformação de

representações sociais sobre ele. Como veremos mais adiante, situam-se também

no centro estatístico das judicializações de conflitos que o envolvem, ao menos no

âmbito dos tribunais e do período pesquisados.

Para aquilo que se pretende no presente estudo, podemos recuperar as

principais reivindicações e bandeiras das últimas duas fases antes indicadas

(2000-2007 e após 2007) com base nas decisões dos respectivos Encontros

Nacionais56:

Linhas políticas reafirmadas no IV Congresso Nacional do MST (2000):

1. Intensificar a organização dos pobres para fazer lutas massivas em prol da Reforma Agrária;

2. Construir a unidade no campo e desenvolver novas formas de luta. Ajudar a construir e fortalecer os demais movimentos sociais existentes no campo, especialmente o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores);

3. Combater o modelo das elites, que defende os produtos transgênicos, as importações de alimentos, os monopólios e as multinacionais. Projetar na sociedade a reforma agrária que queremos para resolver os problemas de: trabalho, moradia, educação, saúde e produção de alimentos para todo povo brasileiro;

Realizar debates com a sociedade em geral, nos colégios, etc.; Promover campanhas para evitar o consumo de alimentos transgênicos pelo

povo; Realizar ações de massa contra os símbolos do projeto deles, e deixar claro

qual é o nosso projeto para a sociedade; 4. Desenvolver linhas políticas e ações concretas na construção de um novo

modelo tecnológico, que seja sustentável do ponto de vista ambiental, que garanta a produtividade, a viabilidade econômica e o bem estar social;

5. Resgatar e implementar em nossas linhas políticas e em todas atividades do MST e na sociedade, a questão de gênero;

6. Planejar e executar ações de generosidade e solidariedade com a sociedade desenvolvendo novos valores e elevando a consciência política dos trabalhadores Sem Terra;

Organizar calendários para as atividades solidárias; Implementar ações de solidariedade com trabalhadores de outros países (de

todo mundo); Desenvolver ações de solidariedade com crianças abandonadas; Organizar viveiros de mudas para distribuir nas cidades; Transformar a prática da solidariedade como uma forma permanente de

nossas atividades; Desenvolver na nossa base e na sociedade ações políticas contra a repressão

política, que atinge militantes e organizações sociais;

56 Fonte: http://www.mst.org.br/taxonomy/term/328, acesso em 07/072010.

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7. Articular-se com os trabalhadores e setores sociais da cidade para fortalecer a aliança entre o campo e a cidade, priorizando as categorias interessadas na construção de um projeto político popular;

Desenvolver com os trabalhadores desempregados a ocupação das áreas ociosas nas periferias das cidades e organizar atividades produtivas;

Realizar atividades de formação política em conjunto com jovens da classe trabalhadora;

Apoiar os movimentos de luta pela moradia; Organizar acampamentos; 8. Desenvolver ações contra o imperialismo combatendo a política dos

organismos internacionais a seu serviço como: o FMI (Fundo Monetário Internacional), OMC (Organização Mundial do Comércio), BIRD (Banco Mundial) e a ALCA (Acordo de Livre Comércio das Américas). E lutar pelo não pagamento da dívida externa;

Lutar contra as privatizações das empresas brasileiras; Defender a cultura brasileira frente às agressões culturais imperialistas; 9. Participar ativamente nas diferentes iniciativas que representem a

construção de um projeto popular para o Brasil; 10. Resgatar a importância do debate em torno de questões importantes

como: meio ambiente, biodiversidade, água doce, defesa da bacia de São Francisco e da Amazônia. Transformando em bandeiras de luta para toda a sociedade, como parte também da reforma agrária;

Articular-se com os demais setores sociais para desenvolver esse trabalho, e intensificar o debate na nossa base e escolas de assentamentos;

Desenvolver e participar de campanhas nacionais em torno destas questões; Desenvolver campanha de preservação do meio ambiente em todos

assentamentos; Promover o desenvolvimento de políticas específicas à situação do cerrado e

do semi-árido; 11. Continuar conscientizando a população do campo e da cidade sobre a

importância da Reforma Agrária; 12. Preparar desde já, junto com as demais forças sociais e políticas, uma

jornada de lutas, prolongada e massiva para o primeiro semestre de cada ano (tendo como referência dia 17 de abril).

Linhas políticas reafirmadas no V Congresso Nacional do MST (2007):

Nós, 17.500 trabalhadoras e trabalhadores rurais Sem Terra de 24 estados do Brasil, 181 convidados internacionais representando 21 organizações camponesas de 31 países e amigos e amigas de diversos movimentos e entidades, estivemos reunidos em Brasília entre os dias 11 e 15 de junho de 2007, no 5.º Congresso Nacional do MST, para discutirmos e analisarmos os problemas de nossa sociedade e buscarmos apontar alternativas.

Nos comprometemos a seguir ajudando na organização do povo, para que lute por seus direitos e contra a desigualdade e as injustiças sociais. Por isso, assumimos os seguintes compromissos:

1. Articular com todos os setores sociais e suas formas de organização para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro;

2. Defender os nossos direitos contra qualquer política que tente retirar direitos já conquistados;

3. Lutar contra as privatizações do patrimônio público, a transposição do Rio São Francisco e pela reestatização das empresas públicas que foram privatizadas;

4. Lutar para que todos os latifúndios sejam desapropriados e prioritariamente as propriedades do capital estrangeiro e dos bancos;

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5. Lutar contra as derrubadas e queimadas de florestas nativas para expansão do latifúndio. Exigir dos governos ações contundentes para coibir essas práticas criminosas ao meio ambiente. Combater o uso dos agrotóxicos e a monocultura em larga escala da soja, cana-de-açúcar, eucalipto, etc;

6. Combater as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produção e o comércio agrícola brasileiro, como a Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, Basf, Bayer, Aracruz, Stora Enso, entre outras. Impedir que continuem explorando nossa natureza, nossa força de trabalho e nosso país;

7. Exigir o fim imediato do trabalho escravo, a super-exploração do trabalho e a punição dos seus responsáveis. Todos os latifúndios que utilizam qualquer forma de trabalho escravo devem ser expropriados, sem nenhuma indenização, como prevê o Projeto de Emenda Constitucional já aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados;

8. Lutar contra toda forma de violência no campo, bem como a criminalização dos Movimentos Sociais. Exigir punição dos assassinos – mandantes e executores – dos lutadores e lutadoras pela Reforma Agrária, que permanecem impunes e com processos parados no Poder Judiciário;

9. Lutar por um limite máximo do tamanho da propriedade da terra. Pela demarcação de todas as terras indígenas e dos remanescentes quilombolas. A terra é um bem da natureza e deve estar condicionada aos interesses do povo;

10. Lutar para que a produção dos agrocombustíveis esteja sob o controle dos camponeses e trabalhadores rurais, como parte da policultura, com preservação do meio ambiente e buscando a soberania energética de cada região;

11. Defender as sementes nativas e crioulas. Lutar contra as sementes transgênicas. Difundir as práticas de agroecologia e técnicas agrícolas em equilíbrio com o meio ambiente. Os assentamentos e comunidades rurais devem produzir prioritariamente alimentos sem agrotóxicos para o mercado interno;

12. Defender todas as nascentes, fontes e reservatórios de água doce. A água é um bem da Natureza e pertence à humanidade. Não pode ser propriedade privada de nenhuma empresa;

13. Preservar as matas e promover o plantio de árvores nativas e frutíferas em todas as áreas dos assentamentos e comunidades rurais, contribuindo para preservação ambiental e na luta contra o aquecimento global;

14. Lutar para que a classe trabalhadora tenha acesso ao ensino fundamental, escola de nível médio e à universidade pública, gratuita e de qualidade;

15. Desenvolver diferentes formas de campanhas e programas para eliminar o analfabetismo no meio rural e na cidade, com uma orientação pedagógica transformadora;

16. Lutar para que cada assentamento ou comunidade do interior tenha seus próprios meios de comunicação popular, como por exemplo, rádios comunitárias e livres. Lutar pela democratização de todos os meios de comunicação da sociedade contribuindo para a formação da consciência política e a valorização da cultura do povo;

17. Fortalecer a articulação dos movimentos sociais do campo na Via Campesina Brasil, em todos os Estados e regiões. Construir, com todos os Movimentos Sociais a Assembléia Popular nos municípios, regiões e estados;

18. Contribuir na construção de todos os mecanismos possíveis de integração popular Latino-Americana, através da ALBA – Alternativa Bolivariana dos Povos das Américas. Exercer a solidariedade internacional com os Povos que sofrem as agressões do império, especialmente agora, com o povo de CUBA, HAITI, IRAQUE e PALESTINA.

Conclamamos o povo brasileiro para que se organize e lute por uma sociedade justa e igualitária, que somente será possível com a mobilização de todo o povo. As grandes transformações são sempre obra do povo organizado. E, nós do MST, nos comprometemos a jamais esmorecer e lutar sempre.

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REFORMA AGRÁRIA: Por Justiça Social e Soberania Popular!

Apesar das alterações de orientação política do Movimento ao longo de

todos estes anos, acompanhadas por sensíveis diferenciações no plano

organizativo e na forma de sua articulação com outros movimentos do campo e da

cidade, o levantamento de dados quantitativos que será apresentado no próximo

Capítulo demonstra claramente que o núcleo da judicialização de conflitos

envolvendo o MST no período e nos tribunais aqui estudados prende-se mais à

sua forma de atuação, em especial às ocupações, do que a qualquer reivindicação

integrante das extensas pautas acima transcritas. Este fato implica a necessidade

de recuperar minimamente o histórico do uso das ocupações como forma de

protesto pelo MST e da legislação que pretende inibi-lo, já que estes elementos

serão essenciais para a posterior compreensão da análise qualitativa dos dados.

João Pedro Stédile, uma das principais lideranças do MST, considera que

um dos elementos fundamentais que determinaram o nascimento do Movimento

foi o conjunto de transformações estruturais pelo qual passou a agricultura

brasileira nos anos 1970, quando se deu uma intensa modernização capitalista do

campo, com acelerado nível de mecanização da lavoura, gerando em um período

muito curto um grande excedente de camponeses sem terra e sem ocupação:

Eram famílias que viviam como arrendatárias, parceiras ou filhos de agricultores que recebiam um lote desmembrado da já pequena propriedade agrícola de seus pais. (...) Com a entrada da mecanização, se liberou enorme contingente de pessoas. Num primeiro momento, essa massa populacional migrou para as regiões de colonização, especialmente Rondônia, Pará e Mato Grosso. (...) Essas regiões não tinham vocação para a agricultura familiar e os migrantes estavam acostumados, no sul do país, a produzir grãos, como feijão, arroz, milho etc. As dificuldades também eram grandes porque o próprio governo, que promovia a colonização das fronteiras agrícolas, tinha na prática uma política de estímulo à pecuária. Na verdade, o governo queria promover com esse êxodo uma transferência de mão de obra para o garimpo e para o extrativismo de madeira. Esse era o grande projeto ao deslocar populações para lá, assim como colocar grandes contingentes populacionais nas fronteiras internacionais do Brasil, de acordo com a ótica da política de segurança nacional da época. (Stédile & Fernandes, 1999: 15-16)

As notícias de que não havia perspectivas reais para que estes camponeses

vivessem enquanto tais no Centro e no Norte do país desestimulou-os

grandemente de aderirem a estas iniciativas de colonização promovidas pelo

governo militar. Por outro lado, o clima geral de milagre econômico dos anos

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1970 estimularam ainda o êxodo de parte destes excedentes populacionais rurais

para as grandes cidades, atraído pelo intenso desenvolvimento industrial do

período. Este crescimento, contudo, em breve se mostraria limitado e a indústria

entraria em crise, a partir do fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Logo, as

alternativas a estas populações começaram a se mostrar limitadas e muito pouco

atraentes:

Do ponto de vista socioeconômico, os camponeses expulsos pela modernização da agricultura tiveram fechadas estas duas portas de saída – o êxodo para as cidades e para as fronteiras agrícolas. Isso obrigou-os a tomar duas decisões: tentar resistir no campo e buscar outras formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam. É essa a base social que gerou o MST. Uma base social disposta a lutar, que não aceita nem a colonização nem a ida para a cidade como solução para seus problemas. Quer permanecer no campo e, sobretudo, na região onde vive. (Stédile & Fernandes, 1999: 17)

Não foi o MST quem inventou ocupações de terra e acampamentos como

forma de luta pela reforma agrária, mas ele sem dúvida os ressignificou

inteiramente no contexto histórico atual desde o processo de sua gênese como

movimento social. Poderíamos dizer que a ideia das ocupações de terra remonta

aos movimentos camponeses pré-1964, e que elas, juntamente com os

acampamentos às margens de estradas, já eram utilizadas como estratégias de

sensibilização para a necessidade de reforma agrária naquele período. Desde antes

da criação formal do MST57, como nas mobilizações de 1978/1979 na reserva de

Nonoai, no Rio Grande do Sul, que acabaram redundando em sua criação, as

ocupações de terra estavam no centro de seu leque de formas de atuação. Como

exemplo histórico fundamental da adoção da tática de acampamentos de famílias

de agricultores ao longo das estradas, podemos resgatar o acampamento de

Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, em março de 1981, que reuniu

cerca de 300 famílias, rapidamente evoluindo para 600 em maio daquele ano. Em

1984, a maioria dos acampados teve acesso à terra.

Com o nascimento e o crescimento do MST, nos anos 80 do século

passado58, houve uma recuperação desta antiga forma de mobilização59,

57 Como já anteriormente indicado (nota 7), para uma breve história do MST, ver, dentre outros, Garcia, 1999, pp. 45-56. 58 Oficialmente, o MST nasceu em um Encontro Nacional realizado em Cascavel, no Paraná, no ano de 1984, com representantes de 12 estados brasileiros. O I Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais Sem Terra ocorreu em 1985, com a presença de cerca de 1.500 delegados de

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especialmente a partir de 1988, quando o Movimento passa a ver a luta pela

reforma agrária como algo mais amplo do que a simples conquista da terra,

referindo-a a um complexo de políticas e medidas governamentais destinadas a

alterar a estrutura fundiária do país, e quando assume a disposição de resistir às

ordens de desocupação da terra, passando a produzir diretamente nas áreas

invadidas.

Dentre as primeiras grandes ocupações promovidas pelo Movimento, é

preciso relembrar a ocupação da Fazenda Annoni, em outubro de 1985, quando

cerca de 6.500 pessoas provenientes de quase 50 municípios gaúchos ocuparam

aquela propriedade rural de 10 mil hectares que já havia sido desapropriada em

1974 para assentamento de agricultores desalojados pela construção da barragem

de Passo Real, mas que ainda não havia sido desocupada pelo antigo proprietário;

ou ainda a ocupação da Fazenda São Juvenal, na região central do Rio Grande do

Sul, em 1987, aparentemente o início da disposição dos sem-terra em resistirem às

desocupações das áreas invadidas, segundo Zander Navarro (1996: 62-105)60.

A concretização da efetiva disposição de permanência na terra ocorreu na

ocupação da Fazenda Santa Elmira, em 1989, um dos primeiros grandes

todo o país, onde se começou a estabelecer o conjunto de normas e princípios organizativos do Movimento. A conjuntura nacional era de intensa mobilização social, com a campanha das Diretas-Já e a eleição, ainda que por via indireta, do primeiro Presidente civil desde o golpe militar de 1964. 59 De acordo com Lygia Sigaud (2005: 255): “Esse tipo de ocupação constitui fato novo na história brasileira. As ocorridas no período anterior a 1964, como as do Rio Grande do Sul e do estado do Rio de Janeiro, não tinham as mesmas características e amplitude das que se generalizaram nos últimos vinte anos, nem se tornaram a forma adequada de demandar desapropriação de terras”. No artigo citado a autora trata de uma forma específica de atuação, a forma acampamento, além de situar o histórico e contexto desta forma de luta na região canavieira de Pernambuco. Não se trata aqui, de modo algum, de divergir de sua abordagem, mas antes de dizer outra coisa, ou seja, que havia uma referência histórica a acampamentos e ocupações de terra como formas de protesto pela reforma agrária antes mesmo de 1964, ainda que aquelas manifestações não apresentassem as mesmas características nem se articulassem com a conquista da terra da mesma forma que as ocupações atuais. O que Sigaud procura fazer é estabelecer os contornos da forma acampamento, em especial a partir de suas pesquisas na Zona da Mata pernambucana. Forma, no sentido utilizado pela autora ao se referir aos acampamentos, parece remeter à noção de modelo ou tipo ideal weberiano, ou seja, a tipos gerais que são construídos a partir da presença de um certo número de elementos ou de relações entre eles, e que dão suporte às análises empíricas em sociologia, onde são testados. São tipos ideais não porque correspondam a qualquer idealização em sentido normativo (de fato, supõem mesmo o entendimento de que, na vida real, tais tipos conceituais não são, ou não precisam ser, inteiramente correspondidos pelas ações concretas que buscam elucidar), mas porque correspondem a uma tipologia abstrata baseada na constatação empírica da relevância daquelas ações ou relações – como “feudal”, “patrimonial” ou “burocrático”, exemplos dados pelo próprio Weber. “A casuística sociológica”, diz ele, “somente se pode construir a partir destes tipos puros (ideais)” (Weber, 1996: 17). 60 Naquela ocasião, os agricultores foram expulsos por cerca de 400 fazendeiros organizados, não havendo sequer a presença da Brigada Militar (PM gaúcha).

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confrontos do MST com a Polícia Militar no Rio Grande do Sul. Um novo

conflito extremamente violento foi registrado em agosto de 1990 na Praça da

Matriz, no centro de Porto Alegre, quando cerca de 450 sem-terra ocupavam a

praça e a Brigada Militar pretendeu desalojá-los, deixando o saldo de um soldado

morto e dezenas de pessoas feridas.

A agudização da luta pela terra nos anos 1990/2000 findou por se expressar

em um aumento do número de ocupações de terra. Mais adiante veremos a

atualização destes dados sobre ocupações para o período aqui estudado (2000-

2010). Entretanto, se focarmos por um momento na categoria mais ampla conflitos

de terra, que engloba além das ocupações outras formas de conflitividade no

campo, veremos que os números de conflitos eram significativamente crescentes

ao longo da década de 199061 (vide Tabela 4).

Estes dados eram percebidos pela população em geral como a sinalização de

um conflito crescente no campo brasileiro, conflito que muitas vezes se

expressava sob a forma de ampliação do uso da violência, fosse pelas forças

policiais, fosse por milícias organizadas pelos grandes proprietários de terras,

como demonstram os números de assassinatos abaixo indicados.

TABELA 4 CONFLITOS, PESSOAS ENVOLVIDAS E ASSASSINATOS 1990-1999

Número de Conflitos Pessoas Envolvidas Assassinatos

1990 401 1.991.550 75

1991 383 242.196 49

1992 361 154.223 35

1993 361 252.236 42

1994 379 237.501 36

1995 440 318.458 39

1996 653 481.490 46

1997 658 477.105 29

61 Fonte: Conflitos no Campo Brasil – 1999, Comissão Pastoral da Terra, p. 11 . Disponível em http://tinyurl.com/cptconflitos1999, acesso em 10/05/2013; Conflitos no Campo Brasil ’92, Comissão Pastoral da Terra, p. 75. Disponível em http://tinyurl.com/cptconflitos1992, acesso em 13/05/2013.

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1998 751 862.590 38

1999 870 536.220 27

TOTAL 5.257 5.553.569 416

O Gráfico 4, servindo-se dos mesmos dados da Tabela 4, busca demonstrar

de modo visualmente mais claro o crescimento do número de conflitos de terra ao

longo dos anos 1990.

GRÁFICO 4

Conflitos de Terra 1990-1999

401 383 361 361 379440

653 658

751

8701.991.550

477.105

862.590

481.490318.458

237.501252.236

154.223

242.196 536.220

0

100

200

300

400

500

600

700

800

900

1000

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

Co

nfl

ito

s

-

500.000

1.000.000

1.500.000

2.000.000

2.500.000

Pes

soas

En

volv

idas

Número de Conflitos Pessoas envolvidas

Com o crescimento da tensão no campo, cresceram também os atos

repressivos contra os movimentos que lutam pela reforma agrária e suas

estratégias históricas de mobilização, como as ocupações, ampliando os casos de

violência e violações a direitos humanos, especialmente contra trabalhadores

rurais sem-terra. O número de assassinatos no campo, ainda que tenha sofrido

ligeiro declínio no fim da década de 1990 (vide Gráfico 5), era preocupantemente

crescente nos anos que precederam a aprovação das primeiras regras limitadoras

às ocupações de terra pelos movimentos, fechando-se o decênio com uma média

superior a 40 assassinatos por ano62.

62 A situação não se modificou até o presente. Segundo matéria do jornal O Globo de 04/03/2013, assinada por Gustavo Uribe, o número de mortos em conflitos por terras cresceu 10,3% em todo o país entre 2011 e 2012. Apesar de não ser este o sentido da matéria, entretanto, ao se olhar com mais atenção os dados divulgados pelo próprio jornal, que cita como fonte a Comissão Pastoral da Terra – CPT, percebe-se que este crescimento seria apenas relativo, porque o número de mortos

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Dois grandes massacres relacionados a conflitos agrários marcaram

profundamente a segunda metade dos anos 1990: em agosto de 1995, o ocorrido

em Corumbiara (RO), que deixou doze mortos, sendo dez sem-terra (dentre os

quais, uma criança) e dois policiais militares; o segundo, em abril de 1996, em

Eldorado dos Carajás (PA), que deixou dezenove mortos, todos sem-terra.

Este processo, curiosamente, implicou uma resposta institucional do Estado

consistente na edição de normas restritivas à realização de vistorias do Incra e

desapropriações de imóveis ocupados pelos movimentos de trabalhadores rurais

sem-terra, em vez de uma ação decidida contra os assassinatos ou a impunidade

no campo, mesmo que paralela àquela limitação63.

GRÁFICO 5

CONFLITOS E ASSASSINATOS NO CAMPO 1990-1999

401 383361 361 379

440

653 658

751

870

75

49

39

46

38

2729

3635

42

0

100

200

300

400

500

600

700

800

900

1000

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

0

10

20

30

40

50

60

70

80

CONFLITOS NO CAMPO ASSASSINATOS NO CAMPO

Fonte: Comissão Pastoral da Terra

Org.: José Carlos Garcia

em 2012 (32) é superior ao de 2011 (29) mas inferior ao de 2010, por exemplo (34) ou mesmo ao de 2006 (39). Ainda segundo aquela notícia, Isolete Wichinieski, da coordenação nacional da CPT, considera que “os conflitos continuam, e a violência aumenta não tanto pela ação estatal, como se via há muito tempo, mas agora pela iniciativa privada de pistoleiros, jagunços e até de empresas contratadas para fazerem esse tipo de violência” (O Globo, Rio de Janeiro, 04 mar 2013, p. 03), o que apontaria mais para uma mudança do perfil da violência no campo contra agricultores do que para um aumento ou diminuição do número de casos, de qualquer forma ainda inaceitavelmente alto. 63 Segundo Antônio Canuto, membro da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra, os 1.645 assassinatos registrados pela CPT entre 1985 e 2012 foram reunidos em 1.239 processos no Judiciário, dos quais somente 101 casos foram julgados (8,1% do total), com a condenação de apenas 22 mandantes e 79 executores. Fonte: http://www.mst.org.br/Relat%C3%B3rio-da-CPT-revela-aumento-de-assassinatos-de-trabalhadores-do-campo, acesso em 10/07/2013.

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Para Fernandes, Welch & Gonçalves (2012), o primeiro governo Fernando

Henrique Cardoso (1995-1998) tentou promover uma política de assentamentos

rurais de modo a atender os movimentos em luta pela reforma agrária, como o

MST. Com isso, esperava resolver o problema fundiário, mas o número de

ocupações crescia na mesma medida dos assentamentos64. Diante do fracasso

dessa investida, o presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu segundo

governo (1999-2002) teria decidido reprimir as ocupações através da edição de

medidas provisórias que proibissem as desapropriações das áreas ocupadas. Ainda

segundo aqueles autores, essa iniciativa efetivamente diminuiu o número de

ocupações, mas também o de assentamentos, já que sem a pressão dos

movimentos sociais as desapropriações deixaram de ocorrer65.

Contudo, a primeira tentativa de estabelecer uma norma limitadora

especificamente para as ocupações de terras pelos movimentos sociais ligados à

reforma agrária parece ter ocorrido ainda na segunda metade do primeiro governo

Fernando Henrique Cardoso: o Decreto n.° 2.250/97, de 11 de junho de 1997,

editado cerca de dois anos após o massacre de Corumbiara e no ano seguinte ao de

Eldorado dos Carajás. Este decreto assim dispunha, em seu art. 4.°:

Art. 4.º O imóvel rural que venha a ser objeto de esbulho não será vistoriado, para os fins do art. 2.º da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, enquanto não cessada a ocupação, observados os termos e as condições estabelecidos em portaria do Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA.

Esta regra, entretanto, teve sua aplicabilidade esvaziada pela ausência da

Portaria regulamentadora ali mencionada, a cargo do Presidente do Incra, o que se

expressou nitidamente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como

veremos oportunamente.

64 Os números para o período são os seguintes: 1995 – 186 ocupações e 389 assentamentos (média de 0,48 ocupações por assentamento); 1996 – 450 ocupações e 471 assentamentos (média de 0,96 ocupações por assentamento); 1997 – 500 ocupações e 711 assentamentos (média de 0,7 ocupações por assentamento) e finalmente 1998 – 792 ocupações e 758 assentamentos, com média de 1,04 ocupações por assentamento. Fonte: Relatório DATALUTA 2011. 65 Para este período, houve 856 ocupações e 672 assentamentos em 1999, ou 1,27 ocupações/assentamento; 519 ocupações e 431 assentamentos em 2000 (média de 1,20); 273 ocupações e 483 assentamentos em 2001 (0,57) e 269 ocupações e 395 assentamentos no ano seguinte, com média de 0,68 ocupações por assentamento. Fonte: Relatório DATALUTA 2011.

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Em 04 de maio de 2000 foi editada pelo mesmo Presidente da República a

Medida Provisória n.° 2.027-38, que conferia a seguinte redação ao art. 2.° da Lei

8.629/93:

Art. 2o ................................................................................... ................................................................................................ § 6o O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do imóvel. § 7o Na hipótese de reincidência da invasão, computar-se-á em dobro o prazo a que se refere o parágrafo anterior. § 8o A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos. § 9o Se, na hipótese do parágrafo anterior, a transferência ou repasse dos recursos públicos já tiverem sido autorizados, assistirá ao Poder Público o direito de retenção, bem assim o de rescisão do contrato, convênio ou instrumento similar. Depois de várias reedições66, o texto finalmente estabilizou-se com a

Medida Provisória n.° 2.183-56, de 24 de agosto de 2001, ainda em vigor, a qual,

naquilo que aqui nos interessa, em seu art. 4.° introduziu os seguintes parágrafos

no art. 2.° da Lei n.° 8.629/93:

Art. 2º A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais. (...) § 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001)

66 A medida provisória n.° 2.027-38, de 04 de maio de 2000, sofreu sucessivas reedições até a final, de n.° 2.183-56, de 24 de agosto de 2001, a saber, as medidas provisórias 2.027-39, 2.027-40, 2.027-41, 2.027-42, 2.027-43, 2.027-44, 2.027-45, 2.027-46, 2.109-47, 2.109-48, 2.109-49, 2.109-50, 2.109-51, 2.109-52, 2.109-53, 2.183-54 e 2.183-55. Como a MP 2.183-56 foi editada antes da publicação da Emenda Constitucional n.° 32 (isto é, antes de 12 de setembro de 2001), ela permanece em vigor até que medida provisória ulterior a revogue explicitamente, ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional, nos termos do art. 2.° daquela Emenda. Em virtude deste cenário, é possível que algumas decisões judiciais mencionadas nesta tese refiram-se a MPs diferentes, segundo aquela que estivesse em vigor à época dos fatos ou do julgamento, ou sobre a qual se referisse o processo, mas todas darão redações similares ao art. 2.° da Lei 8.629/93, inserindo, naquilo que nos importa, a vedação à vistoria, à avaliação ou à desapropriação de área ocupada por motivo de conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo.

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§ 7o Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001) § 8o A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001) § 9o Se, na hipótese do § 8o, a transferência ou repasse dos recursos públicos já tiverem sido autorizados, assistirá ao Poder Público o direito de retenção, bem assim o de rescisão do contrato, convênio ou instrumento similar. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001)

Estes dispositivos normativos visavam expressamente estabelecer uma

limitação à eficácia das mobilizações sociais no campo, em especial no que se

refere às ocupações de terras pelos movimentos sociais que lutavam pela reforma

agrária. Ainda em 1997, o Presidente Fernando Henrique Cardoso chegou a fazer

declaração pública em que “alertava” a sociedade sobre os riscos da “baderna” e

da escalada dos conflitos sociais, salientando que “as invasões repetidas de

prédios públicos e de propriedades particulares são ações coordenadas com

objetivos políticos que constituem abusos antidemocráticos”, e que a “sociedade

não quer a desordem. Pedras, paus e coquetéis molotov são argumentos tão pouco

válidos quanto as baionetas. Só que menos poderosos” (Cardoso, 1997). Apesar

dos anos de consolidação democrática, este discurso é visivelmente marcado pelo

temor do retrocesso que ainda permeava o discurso político no período,

reaparecendo ocasionalmente.

Note-se que entre o Dec. 2.250/97 e a MP 2.027-38/2000 há uma

significativa evolução na redação da norma proibitiva: enquanto a primeira

referia-se apenas a esbulho, a segunda menciona esbulho possessório ou invasão

motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo. À frente veremos

que esta modificação redacional não é casual, nem preciosista.

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Segundo Fernandes, Welch & Gonçalves (2012), após a posse de Lula na

Presidência da República para seu primeiro mandato, em 2003, o número de

ocupações voltou a crescer, já que MST, CONTAG e todos os demais

movimentos pela reforma agrária esperavam que ela finalmente fosse realizada,

vez que ela fora prometida em todas as suas campanhas presidenciais (1989, 1994,

1998 e 2002).

Ainda conforme estes autores,

Em 2003, o governo [Lula] formou uma equipe de estudiosos e membros dos movimentos camponeses, coordenada pelo militante veterano Plinio de Arruda Sampaio, para elaborar o segundo Plano Nacional de Reforma Agrária – II PNRA. Todavia, a correlação de forças que havia elegido Lula e mesmo o próprio Partido dos Trabalhadores – PT não tinham a intenção de enfrentar os ruralistas e o agronegócio. Paralelamente à elaboração do II PNRA pela equipe do Sampaio, havia outra equipe do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA elaborando outro plano que atendesse aos interesses do governo. Duas diferenças entre os planos foram: quantidade de famílias a serem assentadas e a forma principal de arrecadação de terras. Enquanto o plano “Plínio” definia um milhão de famílias a serem assentadas em terras a serem desapropriadas, o plano do MDA também definia o assentamento de 400 mil novas famílias e em torno de 500 mil famílias em terras a serem regularizadas e 130 mil em terras a serem compradas (Brasil, 2003). O II Plano Nacional de Reforma Agrária, elaborado pela equipe de Sampaio, foi rechaçado pelo governo Lula que adotou o plano do MDA. Esta atitude demonstrava que a reforma agrária prometida não seria cumprida. De fato, assim foi. Em 2010, no Brasil havia mais de oito mil assentamentos onde vivem mais de um milhão de famílias. A maior parte dessas terras são áreas regularizadas, ou seja, as famílias já viviam nestas terras e receberam seus títulos. O governo denominou este procedimento de incorporação à reforma agrária. Nas duas gestões do governo Lula (2003-2006/2007-2010) a regularização fundiária predominou em seu plano de reforma agrária (Fernandes, 2010). As ocupações de terra têm sido uma importante forma de pressão para a realização da reforma agrária, que resultou em assentamentos em todo o território nacional (Fernandes, Welch & Gonçalves, 2012: 42-43).

Se tomarmos os dados da Comissão Pastoral da Terra67 sobre a evolução do

número de ocupações, área ocupada e número de famílias relativos ao período

estudado (2000 a 2010), expressos na Tabela 5, perceberemos que na parte nele

compreendida pelos últimos anos do segundo mandato do Presidente Fernando

Henrique Cardoso (até 2002) há uma queda importante no quantitativo de

ocupações, que cresce abruptamente entre 2003 e 2004, dois primeiros anos do

primeiro mandato do Presidente Lula, para daí em diante decrescer continuamente

67 Fonte: Cadernos Conflitos no Campo Brasil, Comissão Pastoral da Terra, publicação anual disponível em http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/conflitos-no-campo-brasil, acesso em 13/05/2013. Os dados quanto a totais e médias são de minha responsabilidade.

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71

até o fim do seu primeiro mandato e todo o curso do segundo, com um “soluço”

de crescimento em 2009.

Por outro lado, em que pesem os crescimentos relativos de 2003 e 2007, o

número médio de famílias que participam das ocupações de terra caiu

sistematicamente ao longo daquela década, como fica ainda mais evidente no

Gráfico 6.

TABELA 5 OCUPAÇÕES, ÁREA OCUPADA E FAMÍLIAS 2000 – 2010

ANO NÚMERO DE OCUPAÇÕES

ÁREA OCUPADA

(HECTARES)

NÚMERO DE FAMÍLIAS

PARTICIPANTES

FAMÍLIAS POR

OCUPAÇÃO (MÉDIA)

ÁREA POR OCUPAÇÃO (MÉDIA EM HECTARES)

2000 393 534.804 64.497 164,11 1.360,82

2001 194 344.513 26.120 134,64 1.775,84

2002 184 753.903 26.958 146,51 4.097,30

2003 391 677.302 65.552 167,65 1.732,23

2004 496 941.265 79.591 160,47 1.897,71

2005 437 1.029.201 54.427 124,55 2.355,15

2006 384 813.104 44.364 115,53 2.117,46

2007 364 652.450 49.158 135,05 1.792,45

2008 252 363.988 25.559 101,42 1.444,40

2009 290 408.438 27.278 94,06 1.408,41

2010 180 186.496 16.865 93,69 1.036,09

TOTAL 3.565 6.705.464 480.369 1.437,69 21.017,85

MÉDIA 324,09 609.587,64 43.669,91 130,70 1.910,71

GRÁFICO 6

80

180

280

380

480

580

680

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

FAMÍLIAS / OCUPAÇÃO 2000 - 2010

FAMILIAS POR OCUPAÇÃO OCUPAÇÕES

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72

No Capítulo 3, ao analisar o significado das ocupações como meio efetivo

de conquistar o acesso à terra e como meio simbólico de construção de identidade

do Movimento, retomarei a questão do número de ocupações e sua relação com o

número de assentamentos. Para este momento, creio ser suficiente estabelecer,

como contexto para a melhor compreensão dos dados e informações relativos às

decisões do STF e do STJ que serão expostos no próximo Capítulo, que os anos

1990 testemunharam um efetivo crescimento e agudização da luta no campo e da

violência contra camponeses e militantes sem-terra, e que esta agudização

traduziu-se, entre 1997 e 2001 – isto é, entre a segunda metade do primeiro e a

segunda metade do segundo mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso,

em tentativas de resposta normativa do Estado no sentido de desestimular as

ocupações, ainda que não acompanhadas por medidas de igual alcance para

reprimir a violência contra os sem-terra, e que esta resposta normativa

materializou-se em especial no Decreto 2.250/97 e nas sucessivas reedições da

MP 2.027-38/2000 que redundaram na atualmente vigente MP 2.138-56/01; que

esta resposta inibidora surtiu ao menos parcialmente o efeito desejado pelo

Governo, dado que o número de ocupações efetivamente diminuiu, em especial

após o advento da MP 2.027-38/2000, já que o Decreto 2.250/97 teve pouca

aplicabilidade; que o número de ocupações voltou a crescer nos primeiros anos do

primeiro Governo Lula, mais caiu novamente pouco depois, sendo acompanhado

pela diminuição do número de assentamentos em geral e particularmente dos

assentamentos de reforma agrária, já que há um questionamento quanto à

contabilização de assentamentos de regularização fundiária como se fossem

assentamentos de reforma agrária. É neste contexto histórico-normativo que se

produziram as decisões judiciais que serão apresentadas no próximo Capítulo.

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2

Fronteiras, Movimentos, Mudanças

“Ele diz [apelo] ‘à misericórdia’, porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada.” (Ariano Suassuna68)

2.1

Demarcando as Fronteiras

No capítulo anterior, apresentei genericamente os marcos teóricos,

metodológicos e conceituais gerais que norteiam o presente trabalho, além de

proceder a uma recuperação histórica das reivindicações do MST, da utilização

por ele da ocupação de terras como forma de mobilização social e do contexto

histórico que envolveu as iniciativas governamentais de edição de normas

jurídicas que inibissem seu uso.

No âmbito metodológico, procurei resgatar as metodologias, os

procedimentos e os critérios de decisão adotados para estabelecer minha base final

de dados e como ela seria trabalhada do ponto de vista quantitativo de modo a

permitir justificadamente a escolha de decisões-tipo que fossem representativas

daquele conjunto e, portanto, do discurso jurídico que os tribunais aqui estudados

construíram sobre a atuação do MST. Agora passarei a apresentar estes dados e as

respectivas categorizações e reagrupamentos que me permitem analisá-las e

definir critérios de seleção das decisões-tipo, que serão em seguida apresentadas

criticamente e analisadas sob um ponto de vista jurídico-formal.

Os quantitativos totais e parciais de dados coletados já foram indicados

anteriormente69: 1.271 decisões judiciais proferidas entre 01/01/2000 e

31/12/2010 foram separadas, com base nos critérios objetivos já indicados, para

compor o conjunto bruto de dados, sendo 346 do STF e 925 do STJ. Após o

processo de triagens, realizado na forma anteriormente descrita, restaram 30

decisões do STF e 50 do STJ, totalizando apenas 80 decisões. Isto significa que

68 Suassuna, 2012: 18. 69 Ver Tabela 1.

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pouco mais de 6% do total original foi mantido no conjunto final de dados (8,67%

no caso do STF, 5,41%, no do STJ).

No STF, foram 29 decisões cíveis e apenas uma criminal. 27 destas ações

eram mandados de segurança, uma era medida cautelar, uma era ação direta de

inconstitucionalidade e a outra, um habeas corpus (vide Gráficos 7 e 8).

GRÁFICO 7

STF DECISÕES CÍVEIS / CRIMINAIS

2997%

13%

CÍVEL CRIMINAL

GRÁFICO 8

TIPOS DE AÇÃO STF

2791%

13%

13%

13%

MANDADO DE SEGURANÇA MEDIDA CAUTELAR ADIN HABEAS CORPUS

Todas as ações são de competência originária daquela Corte. A alta

concentração de mandados de segurança se explica pelo fato de que tais demandas

são impetradas contra a autoridade responsável pelo decreto desapropriatório, o

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75

Presidente da República, e compete ao Supremo Tribunal Federal julgar os

mandados de segurança impetrados contra atos desta autoridade70.

Quanto ao objeto das ações (vide Gráfico 9), o HC fora impetrado em favor

de paciente militante do MST acusado de roubo e receptação e todos os outros 29

casos (a ADIn71, a cautelar e os 27 mandados de segurança) versavam

controvérsias em que houvera a invasão/ocupação das áreas em conflito por

militantes do MST, todas elas reportando-se ao alcance efetivo das normas

inibidoras contidas no art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/9372.

GRÁFICO 9

OBJETO PRINCIPAL DECISÕES STF

2894%

13%

13%

INVASÃO / OCUPAÇÃO

EFEITO SUSPENSIVO A RE SOBRE IMPRODUTIVIDADE

HC MILITANTE MST ROUBO E RECEPTAÇÃO

Para compreendermos melhor o que efetivamente foi levado ao STF durante

o período sob esta grande categoria invasão/ocupação é preciso dividi-la em

subcategorias que evidenciem melhor seu verdadeiro objeto, como veremos no

Gráfico 10. Os temas eram múltiplos e variáveis, analisando se havia ou não

ocupação comprovada, se se tratava apenas de receio de invasão da área, qual o

70 Art. 102, I, “d”, da Constituição. 71 Em que pese a página do STF na internet utilizar a sigla ADI para identificar as ações diretas de inconstitucionalidade que lá tramitam, optei por referir-me a este tipo de ação por ADIn, que sempre teve largo uso corrente. 72 Ainda que o objeto da Cautelar 911 MC-QO / GO (de fato, uma questão de ordem na medida cautelar em ação cautelar) fosse a atribuição de efeito suspensivo ao recurso extraordinário manuseado pela parte requerente, recurso que de regra não teria aquele efeito, o fundamento de seu ajuizamento era a invalidade jurídica do laudo que declarava a improdutividade do imóvel porque realizada a vistoria após a ocupação da área por militantes do MST, tendo o dispositivo do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, sido parte essencial da fundamentação da concessão da medida pelo relator, Min. Gilmar Mendes, e de seu referendo pelo Pleno da Corte.

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76

efeito jurídico da ocupação sobre o processo desapropriatório quando a

improdutividade anterior da área fosse evidente, se os efeitos jurídicos devem ser

os mesmos para áreas ocupadas conforme sejam significativas ou diminutas em

relação à propriedade total, dentre outros. Mas um tema domina as decisões do

STF a respeito, abrangendo nada menos do que 17 das 28 ações pertinentes: o

efeito jurídico das ocupações quando realizadas antes ou depois da vistoria a ser

realizada pelo Incra para constatação da improdutividade da área a ser

desapropriada, se ela inibe ou não a desapropriação da área em questão73.

GRÁFICO 10

INVASÃO / OCUPAÇÃO COMO OBJETO STF POR SUBCATEGORIA

931%

828%

311%

27%

27%

14%

14%

14%

14%

INVASÃO APÓS VISTORIA NÃO INIBE DESAPROPRIAÇÃO

INVASÃO ANTES DA VISTORIA INIBE DESAPROPIAÇÃO

INVASÃO ALEGADA NÃO COMPROVADA

INVASÃO NÃO CONHECIDA QUESTÕES PROCESSUAIS

INVASÃO ANTES DA LEI INIBIDORA DESAPROPRIAÇÃO

INVASÃO PARTE DIMINUTA NÃO INIBE DESAPROPRIAÇÃO

INVASÃO EM TESE INIBE DESAPROPRIAÇÃO (ADIN)

RECEIO DE INVASÃO NÃO INIBE DESAPROPRIAÇÃO

INVASÃO ANTERIOR IMPRODUTIV EVIDENTE NÃO INIBE

Se de um ponto de vista estritamente quantitativo não pode haver dúvida

quanto àquilo que é deduzido perante o STF no que respeita a processos sobre a

atuação do MST, de um ponto de vista dos efeitos gerais que têm tais ações

perante aquela Corte, tampouco – ainda que 29 das 30 ações ajuizadas tratem de

procedimentos individuais ou plúrimos, há uma ADIn ajuizada, processo cuja

decisão tem potenciais efeitos gerais, erga omnes74, e esta ação versa

73 Art. 2.°, § 2.°, da Lei 8.629/93: “Para os fins deste artigo, fica a União, através do órgão federal competente, autorizada a ingressar no imóvel de propriedade particular para levantamento de dados e informações, mediante prévia comunicação escrita ao proprietário, preposto ou seu representante”. 74 A Lei 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal

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precisamente o sempre controvertido tema das ações espetaculosas do MST,

muito especialmente as ocupações de terra: trata-se da ADIn 2.213/DF, ajuizada

em 25/05/2000 pelo Partido dos Trabalhadores e pela Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Agricultura – CONTAG contra aspectos da Lei 8.629/9375, o

que engloba o já mencionado § 6.° do art. 2.° desta Lei, que veda a realização de

vistoria em áreas ocupadas.

No Superior Tribunal de Justiça, apesar de ser mais significativo o número

de feitos criminais enquadrados na pesquisa, há ainda uma clara predominância de

feitos cíveis sobre aqueles (Gráfico 11).

No que respeita aos tipos de ação, o Gráfico 12 nos mostra uma razoável

variedade, com ampla prevalência para recursos especiais (16), agravos (11) e

habeas corpus (10), totalizando 37 dos 50 casos levantados.

GRÁFICO 11

STJ DECISÕES CÍVEIS / CRIMINAIS

3672%

1428%

CÍVEL CRIMINAL

Federal, prevê em seu art. 28, parágrafo único: “A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”, seguindo a moldura traçada no art. 102, § 2.°, da Constituição. 75 A ação objetiva a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Medida Provisória n.° 2.027-38, de 2000, que introduziram o art. 95-A e parágrafo único na Lei 4.504/64 e os §§ 6.°, 7.°, 8.° e 9.° no art. 2.° da Lei 8.629/93. A liminar na respectiva cautelar foi indeferida em 04/04/2002, mas até o dia 11/07/2013 a ADIn ainda não havia sido julgada, encontrando-se conclusa ao Relator, Min. Celso de Mello, desde 19/11/2009. Está apensada à ADIn 2.411.

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GRÁFICO 12

STJ - TIPOS DE AÇÃO

1632%

1122%

1020%

612%

24%

24%

36%

RESP AGRAVO

HABEAS CORPUS INTERVENÇÃO FEDERAL

CONFLITO DE COMPETÊNCIA CAUTELAR

OUTROS

Contrariamente ao STF, em que todos os feitos eram de sua competência

originária, aqui a variedade de tipos de ação expressa-se também na natureza da

competência do Tribunal, como facilmente se vê do Gráfico 13. Percebe-se que a

competência cível é predominantemente recursal (27 dos 50 casos, contra apenas

09 de competência originária), ao passo que a criminal é majoritariamente

originária (11 casos, contra apenas 03 recursos)76. Curiosamente, a proporção

entre eles, ainda que de modo inverso, é bastante aproximada – o total de feitos

cíveis de competência originária do STJ representa um terço dos de competência

recursal, enquanto que os feitos de competência recursal criminal representam

pouco mais de 27% dos de competência originária.

76 Mas é preciso notar que os habeas corpus, ainda que sejam ações de competência originária do Tribunal, funcionam na prática como recursos, no sentido de que se referem em regra à legalidade ou ilegalidade de prisão determinada em outro processo judicial em trâmite. Veja-se que, nos termos do art. 105, I, “c”, c/c alínea “a”, da Constituição, o STJ será competente para conhecer dos habeas corpus apenas quando o coator ou o paciente for Governador de Estado ou do Distrito Federal, em crimes comuns, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais, ou quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição, Ministro de Estado ou Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral. Assim, os dados obtidos indicam que 40% dos casos são de competência originária do STJ e 60%, de competência recursal, mas se adotássemos essa “licença poética” para considerar os HCs como tendo natureza recursal, 10 dos 11 processos criminais originários passariam a ser classificados como sendo de competência recursal, e então, nesta situação hipotética, 80% dos feitos analisados no STJ seriam de competência recursal.

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GRÁFICO 13

STJ COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA/RECURSAL, CÍVEL/CRIMINAL

918%

2754%

1122%

36%

COMPET ORIG CIV

COMPET REC CIV

COMPET ORIG CRIM

COMPET REC CRIM

Contudo, a variedade de tipos de ação e de competência não se reproduz

tanto quando o tema é o objeto das ações. Como se pode ver no Gráfico 14, das 50

ações pesquisadas, 32 diziam respeito a ocupações (64% do total), incluindo

pedidos de suspensão dos processos desapropriatórios em virtude das ocupações e

mesmo seis pedidos de intervenção federal por descumprimento de ordem judicial

de reintegração de áreas ocupadas (cinco delas no Paraná, entre 2003 e 200877, e

uma em Rondônia, em 200578):

77 As decisões coincidem com os dois mandatos do Governador Roberto Requião (PMDB), de 2003 a 2006 e de 2007 a 2010. Fontes: http://tinyurl.com/wikipediagovsparana e http://tinyurl.com/wikipediarrequiao, acessos em 04/03/2013. 78 Primeiro mandato do Governador Ivo Cassol, de 2003 a 2007. O atual senador Ivo Cassol foi filiado ao PSDB de 1995 a 2005, ao PPS de 2005 a 2010 e hoje é filiado ao PP. Fontes: http://tinyurl.com/wikipediagovsrondonia e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ivo_Narciso_Cassol, acessos em 04/03/2013.

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GRÁFICO 14

OBJETO PRINCIPAL DECISÕES STJ

1836%

612%

816%

510%

1326%

OCUPAÇÃO POR SEM TERRAS E SUSPENSÃO DE PROCESSODESAPROPRIATÓRIOINTERVENÇÃO FEDERAL DESCUMPRIMENTO ORDEM JUDICIAL DEREINTEGRAÇÃOOCUPAÇÃO OUTROS

HC EM FAVOR MST

OUTROS

Além destas 50 decisões, há ainda no período estudado a Súmula n.° 354 do

STJ, aprovada em 25/06/2008, e que consolida a jurisprudência daquele Tribunal

quanto aos efeitos da ocupação da área controvertida sobre o processo de

desapropriação:

Súmula 354 – A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária.

Esta apresentação inicial dos dados coletados já demonstra claramente que,

para além das muitas e eventualmente polêmicas teses sustentadas pelo MST

através das reivindicações que constam das resoluções de seus Encontros

Nacionais, o que se expressa de forma amplamente majoritária nos casos

judicializados, ao menos no âmbito dos tribunais aqui pesquisados, são suas

formas de mobilização e de intervenção social. Seguindo a tendência que já havia

sido percebida durante o monitoramento dos veículos de imprensa entre 1996 e

1998, e parcialmente renovada em 2009, assim como a representação social do

MST na mídia vincula-se a uma imagem de violência ligada basicamente às

ocupações de terras, prédios públicos e rodovias, também a estruturação das

demandas judiciais que chegam aos tribunais superiores põe em evidência esta

faceta do Movimento, em detrimento de outras eventual ou possivelmente

existentes.

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Além disso, este levantamento quantitativo serviu de base para a seleção de

decisões-tipo que se encaixassem nas ocorrências mais relevantes encontradas na

base de dados final, proposições estas que foram analisadas de forma mais

detalhada. Para confrontá-las, proposições de temas correlatos, mas de sentido

diferente, também foram ocasionalmente analisadas mais em detalhe ou referidas,

buscando-se, através desta oposição entre o que é regra e o que é exceção nas

proposições, trazer luz ao sentido geral do que os órgãos judiciais efetivamente

decidiam, ou não decidiam – eventualmente permitindo o vislumbramento de

algum sentido ou tendência geral que pudesse ser revelado.

Com base nisso, não há como se negar que tais decisões-tipo devessem

necessariamente corresponder a decisões cíveis e majoritariamente a mandados de

segurança, no caso do STF, e a recursos especiais e agravos, no do STJ, relativas a

ocupações organizadas pelo MST e seus efeitos sobre a desapropriação para fins

de reforma agrária, em ambos os casos.

Entretanto, não me parece possível deixar de tecer algumas considerações

sobre o elevado número de decisões envolvendo matérias criminais no STJ, o que

se evidencia ainda mais quando de sua confrontação com os dados do STF onde,

para um total de 30 decisões no período em questão, apenas uma era relativa a

feito criminal, todas as demais (97% do total) tendo natureza cível.

Das 50 decisões oriundas do STJ analisadas neste estudo, 14 (28%) eram

criminais: 10 eram Habeas Corpus (HC), 01 Recurso Ordinário em Habeas

Corpus (RO em HC), 01 Recurso Especial e 02 Conflitos de Competência.

Os HCs cobrem boa parte do período estudado, tendo um deles sido julgado

em 2000, outro no fim de 2003, dois em 2004, dois em 2005, um no fim de 2006,

um em 2007, um em 2008 e outro em 2010; o RO em HC (afinal de contas, a eles

correlato) foi julgado no início de 2008. Na maior parte deles, os pacientes são

militantes do MST, e têm contra si acusações de roubo ou furto qualificado e

formação de quadrilha (quatro casos), eventualmente esbulho possessório

(curiosamente, um caso apenas, contrariando a expressiva maioria do tema na área

cível) ou corrupção de menores, pela sua participação nas supostas ações

criminosas (um caso), ou ainda resistência qualificada e desobediência (é o caso

do RO em HC). Há um HC em caso de obstrução de rodovia. O caso mais antigo

é interessante, mas quase fora do objeto deste estudo: um servidor público foi

acusado de peculato por tentar desviar recursos públicos para o Movimento,

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controvertendo-se nos autos sobre a motivação política ou não do crime, afinal

reconhecida79.

Entre 2000 e 2006, o julgamento dos habeas corpus por aquele Tribunal

segue a mesma dinâmica de crescimento ou diminuição do número de ocupações

(vide Gráfico 15), o que é intrigante, já que esta correspondência não é tão

diretamente observada ao se examinar a totalidade das decisões judiciais, seja do

STJ, seja do STF, seja de ambos conjuntamente, sobre o tema80.

Chamam a atenção, entretanto, três casos específicos, todos envolvendo

acusações de homicídios dolosos qualificados, consumados e tentados, em

nenhum dos quais os réus acusados de homicídio eram militantes do Movimento,

que figuravam antes entre as vítimas. Todos dizem respeito ao julgamento dos

acusados pelo Massacre de Felisburgo81.

79 STJ, HC 9443/SP, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 06/06/2000, DJ 01/08/2000, p. 282. Disponível em http://tinyurl.com/peculatomotivopolitico, acesso em 13/03/2013. 80 A respeito, comparem-se os Gráficos 15, 16, 17 e 18. Uma possível explicação para a curiosa semelhança entre as curvas no Gráfico 15 poderia residir na circunstância de que, em havendo mais ocupações, podem em tese haver também mais prisões ligadas a elas e, com isso, maior número de habeas corpus impetrados e julgados. Lembremos, todavia, que nem todos os HCs têm militantes do MST por pacientes, ainda que eles sejam maioria nesta posição (em sete dos onze casos), e que é relativamente pequeno o número de decisões deste tipo aqui consideradas (apenas onze ao longo de onze anos, ou seja, média de apenas uma por ano), elementos que devem a princípio relativizar um pouco aquela conclusão, até porque aquele raciocínio nada esclarece quanto à total divergência das curvas no período seguinte, de 2007 a 2010. 81 “O massacre de Felisburgo aconteceu em 20 de novembro de 2004 quando 17 homens, liderados pelo latifundiário Adriano Chafik Luedy, invadiram o acampamento Terra Prometida, onde viviam trabalhadores rurais e atearam fogo nos barracos e em uma escola. Armados com pistolas, escopetas e rifles, mataram cinco integrantes do MST e deixaram 20 pessoas feridas, entre elas uma criança de 12 anos. O fazendeiro Adriano Chafik Luedy seria o dono das terras onde estava instalado o acampamento. As famílias que viviam no local já tinham denunciado à Polícia Civil as ameaças recebidas desde 2002. Algumas pessoas ainda ocupam o local, mesmo vivendo em barracos, já que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) considerou 500 hectares da fazenda como terras públicas estaduais. O suspeito do massacre foi preso duas vezes, confessou participação no crime em depoimento, mas ganhou o direito de responder ao processo em liberdade.” (Fonte: http://tinyurl.com/mstocuparodovfelisburgo. Acesso em 13/03/2013)

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GRÁFICO 15

OCUPAÇÕES x HCs JULGADOS NO STJ

0

100

200

300

400

500

600

700

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

-0,5

0

0,5

1

1,5

2

2,5

OCUPAÇÕES HCs STJ

Fontes: Relatório DATALUTA Brasil 2011 e STJ Org.: José Carlos Garcia

O primeiro HC em questão foi impetrado pelo acusado de ser o mandante do

massacre, o fazendeiro Adriano Chafik Luedy, alegando ausência das condições

legais para manutenção de sua prisão preventiva, que havia sido mantida tanto

pelo juiz singular quanto pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A 5.ª Turma

do STJ concedeu a ordem por unanimidade82.

No segundo habeas corpus83, outro dos corréus no mesmo massacre

impetrou o HC requerendo anulação de sua prisão preventiva, em um contexto

muito parecido com o caso anterior e a ele aludindo expressamente, e ainda no

qual militantes do MST teriam invadido o fórum local para protestar contra a

soltura de outros corréus no mesmo processo. A mesma 5.ª Turma concedeu a

ordem, à unanimidade.

No último caso, o HC fora impetrado por alguns dos acusados pela chacina,

que se insurgiram contra o desaforamento de seu julgamento da Comarca de

Felisburgo para Belo Horizonte, alegando nulidades e ausência de qualquer risco

82 STJ, HC 41601/MG, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 07/04/2005, DJ 18/04/2005, p. 360, RSTJ vol. 190, p. 500. Disponível em http://tinyurl.com/stjhc41601MG, acesso em 13/03/2013. 83 STJ, HC 69762/MG, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 12/12/2006, DJ 05/02/2007, p. 321. Disponível em http://tinyurl.com/stjhc69762MG, acesso em 13/03/2013)

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para sua segurança caso mantido o julgamento no local. A 5.ª Turma do STJ, por

unanimidade, denegou a ordem84.

O único outro caso em que há crimes de homicídio imputados aos réus é um

Recurso Especial85 interposto pelo Coronel Mário Colares Pantoja e pelo Major

José Maria Pereira de Oliveira, ambos da Polícia Militar do Pará, condenados pela

sua participação no Massacre de Eldorado dos Carajás86, o primeiro a 228 anos de

reclusão, o segundo a 158 anos e 04 meses de reclusão. No recurso, alegavam

nulidades no procedimento que culminou em suas condenações, mas ao recurso

foi negado provimento pela unanimidade da 5.ª Turma do STJ.

Em 06 dos HCs, a ordem foi concedida, em 05 dos quais, por unanimidade,

sendo que em 04 destes, os pacientes eram militantes do MST. Nos outros 04, a

ordem foi denegada, em 03 deles, por unanimidade; em 02 deles, os pacientes

eram do MST; em um, o servidor acusado de peculato em favor do MST; e no

outro, alguns dos acusados na chacina de Felisburgo.

Apenas para complementar esta breve avaliação, o caso julgado pelo STF

em 200787 tinha por paciente militante do MST acusado de roubo qualificado e

receptação, versando inúmeros aspectos, dentre os quais a alegação de que o

processo de reconhecimento do acusado teria sido viciado. O Pleno do STF

84 STJ, HC 84932/MG, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), QUINTA TURMA, julgado em 25/10/2007, DJ 12/11/2007, p. 265. Disponível em http://tinyurl.com/stjhc84932MG, acesso em 13/03/2013. 85 STJ, REsp 818815/PA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 25/08/2009, DJe 01/02/2010. Disponível em http://tinyurl.com/stjhcREsp-818815PA, acesso em 13/03/2013. 86 “O Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, ocorreu em virtude da ordem de desocupação da rodovia PA-150, interditada pelos agricultores. Estes pretendiam a desapropriação da Fazenda Macaxeiras, a qual já havia sido ocupada no dia 5 de março de 1996 e desocupada no dia seguinte, mediante o compromisso do governo do Estado do Pará de negociar junto ao Incra a desejada desapropriação. Fracassadas as negociações, os trabalhadores fariam uma caminhada de Curionópolis a Belém, mas decidiram interditar a rodovia após 40 quilômetros de marcha. O Governador Almir Gabriel ordenou a retirada imediata dos trabalhadores rurais, com recomendação de cautela. No dia 17 de abril, por volta das 15h, na curva ‘S’, próxima à bifurcação da PA-150 com a PA-275, um grupo de homens da Polícia Militar de Marabá chegou ao local, no qual estavam acampadas cerca de mil e quinhentas pessoas. Os policiais teriam sido ameaçados pelos sem-terra e forçados a recuar até um caminhão, tendo jogado uma bomba de gás lacrimogêneo e atirado para o alto. Neste momento, chega pelo outro lado um grupo de policiais de Paraupebas comandado pelo Major Oliveira, deixando os manifestantes encurralados. Este grupo recebe ordens para retirar suas tarjetas de identificação, conduta absolutamente irregular que no meio policial significa que os agentes têm ‘autorização para matar’. O resultado foram dezenove mortos, evidenciando-se mais uma vez, pela necropsia, sinais de execução sumária, como pessoas mortas com um único disparo de arma de fogo em pontos vitais do corpo (na nuca ou entre os olhos, por exemplo).” (Garcia, 1999: 51-52). 87 STF, HC 89799, Relator Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 11/09/2007, DJe-152 DIVULG 29-11-2007 PUBLIC 30-11-2007 DJ 30-11-2007 PP-00128 EMENT VOL-02301-02 PP-00391. Disponível em http://tinyurl.com/lda3rsa, acessado em 13/03/2013.

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conheceu do HC apenas quanto a este argumento, indeferindo esta parte por

unanimidade, seguindo o voto do relator, Min. Joaquim Barbosa. As acusações

ligavam-se aos saques que por vezes são imputados aos militantes do Movimento

Sem-Terra88. Como consta do relatório e voto do Min. Joaquim Barbosa,

em 28.05.1999, na Rod. Castelo Branco, altura do km 94,5, agindo em concurso e unidade de propósito, mediante violência física e emprego de facas, foices e arma de fogo, subtraíram da vítima Antônio Carlos da Silva aproximadamente 14.000 quilos de macarrão, pertencentes à Indústria Alimentícia Liane Ltda. Ainda na mesma data, pessoas não identificadas subtraíram 12.000 quilos de carne bovina, sendo que o réu e demais co-réus receberam e transportaram a ‘res furtiva’, sabendo de sua origem ilícita (pp. 401-402)

Evidentemente, o universo de decisões consideradas, ao se limitar quase

exclusivamente ao STJ, não evidencia a globalidade dos casos de acusações

criminais contra o Movimento Sem-Terra ou seus militantes. Entretanto, é de se

notar, já pela descrição acima, que os fatos encontrados nas decisões daquela

Corte Superior não estão em sintonia, a princípio, com a representação social

estabelecida pela mídia sobre o MST como um bando de desordeiros e

criminosos, seja porque nem todos os casos criminais examinados têm militantes

do Movimento como réus ou acusados (eles assim figuram em seis dos dez casos

de habeas corpus), eventualmente figurando como vítimas (e de fato figurando

como vítimas na totalidade dos casos que envolvem crime contra a vida), seja

porque na maioria dos casos em que o faziam, as ordens de habeas corpus lhes

foram concedidas por unanimidade, o que evidencia a princípio a ilegalidade da

88 Estas acusações são antigas, e estavam muito em voga em fins dos anos 1990, quando minha dissertação de mestrado foi defendida, tendo sido inclusive lá mencionada (Garcia, 1999: 57-60). Resgato aqui, pela sua pertinência mais estreita, apenas uma nota de pé de página lançada naquele trabalho: “Fernando Henrique Cardoso chegou mesmo a defender a prisão de líderes do Movimento, ao argumento de que quando ‘esses movimentos, tipo MST, incentivam o saque, eles estão contra o povo. É preciso prender, não o povo que está saqueando porque está com fome, mas quem está organizando para saquear, porque isto é bandidagem’ (Fagundes, 1998a). Apesar de toda a tentativa de responsabilizar, através da imprensa, o MST pelos saques no Nordeste, a população não parece partilhar esta convicção. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Gerp, que ouviu 3,7 mil eleitores entre 26 e 31 de maio em 143 municípios, à pergunta ‘Por que têm ocorrido saques no Nordeste?’, 57% responderam que os mesmos aconteciam em virtude da fome, 34% em virtude da seca, 22% por causa da pobreza ou miséria, 8% como decorrência do desemprego e apenas 5% os atribuíram a incentivo político, contra 4% que responsabilizam a falta de um bom governo. Apesar disso, o corpo da matéria insiste na identificação, para o eleitor, entre saques e MST, o que se mostra de certo modo paradoxal (Noel, 1998). Seria interessante dispor do conjunto dos dados coletados e da metodologia utilizada para uma análise mais criteriosa do indício de tentativa de sua manipulação, mas isto não foi possível. Fontes históricas indicam, entretanto, que os saques são uma constante na região das secas; o primeiro registro data de 1877, quando cerca de 110 mil flagelados invadiram a cidade de Fortaleza (CE), então com apenas 25 mil habitantes (Neves, 1998)” (Garcia, 1999: 57, nota 27).

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prisão, ao menos pelos critérios do Tribunal89, e o caráter controvertido da

ilegalidade ou não de suas ações.

A questão apresenta relevância do ponto de vista da crítica à criminalização

dos movimentos sociais enquanto tais, pois mostra que os militantes de

movimentos sociais que adotam estratégias de ação mais radicalizadas podem ou

não praticar crimes tanto quanto podem ser vítimas deles, e que a atuação do

sistema judicial, quando concede o habeas corpus em alguns casos e os denega

em outros, parece a princípio estar atenta mais aos casos concretos, aos fatos

narrados e às formalidades legais do processo do que às representações sociais

sobre o Movimento que tendem a criminalizá-lo a priori, ao menos no âmbito dos

casos aqui investigados. Tais representações sociais, ao projetar sobre os

movimentos e seus militantes uma condição apriorística de culpados ou inocentes

(como vimos, geralmente de culpados), apostam no esvaziamento do sistema legal

formal, porque ou os romantizam, justificando antecipadamente seus eventuais

excessos, ou os demonizam, pressupondo sua culpa, independentemente do exame

concreto de culpabilidade que o sistema judicial moderno, fundado na

reconstrução argumentativa dos fatos baseada em provas, em tese exigiria90.

89 Dos 06 HCs em que figuram militantes do MST como pacientes, em 04 a ordem foi concedida por unanimidade, e em 02, denegada, também por unanimidade. 90 Não se quer com isso dizer que representações sociais não sejam consideradas pelo sistema judicial, até porque não há como elas serem descartadas pelas pessoas que o integram, mas apenas que não deveriam ser determinantes para o fim de condenar ou absolver. De fato, é possível que elas sejam consideradas de forma válida pelo sistema judicial, como é o caso, por exemplo, do HC 84932/MG, relativo à Chacina de Felisburgo. Segundo transcrição da Relatora deste HC no STJ, assim se manifestou a juíza da Comarca de Jequitinhonha – MG ao julgar o pedido de desaforamento do feito: “(...) trago à colação o fato ocorrido na sede desta Comarca, quando integrantes de tal Movimento estiveram prestes a invadir as dependências do fórum, a fim de manifestar repúdio contra a decisão monocrática que, sob o fundamento de que não havia indícios suficientes da autoria a justificar a custódia cautelar, revogou a prisão preventiva dos pronunciados, decisão que foi confirmada pelo e. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Tal episódio, que deixou assustada a população desta cidade de Jequitinhonha, inegavelmente comprova que a realização do julgamento nesta Comarca, certamente colocará em risco, não somente a segurança dos libelados, mas também a incolumidade dos jurados, dos servidores, do ilustre Promotor de Justiça, desta Magistrada, bem como a ordem pública, considerando que eventual resultado contrário ao esperado pelos integrantes do ‘Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terras’ poderá desencadear incontrolável manifestação. Por outro lado, receio que os jurados não sejam imparciais, porque não obstante a comoção social causada pela ação criminosa na pequena cidade de Felisburgo, é cediço que muitos cidadãos da região não aceitam com tranqüilidade a atitude dos integrantes do chamado ‘Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terras’, de invadir propriedade de terceiros e fazem questão de mostrar solidariedade aos acusados. Esta Magistrada pode testemunhar que, não raro, algumas pessoas indagam sobre ‘a data do julgamento da chacina de Felisburgo’, na intenção de nele comparecerem para ‘torcerem pelo fazendeiro’, em demonstração de que há a possibilidade dos jurados estarem influenciados por este

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Ambos os comportamentos apriorísticos, condenatório ou absolutório, contornam

o fundamento geral de legitimidade do sistema penal que remete à comprovação

de materialidade e autoria do delito, e apóiam-se ou numa variação do direito

penal do inimigo, que reduz os militantes a uma qualidade impessoal hipotética do

movimento ou grupo a que pertencem e cujo pertencimento implica em si mesmo

uma culpa preestabelecida, ou numa argumentação exclusivamente política que

exclui o elemento jurídico inerente ao conflito, prejustificando todo e qualquer ato

pela pretendida justiça de sua finalidade.

Na perspectiva do presente texto, entretanto, não se pretende nem absolver

nem condenar antecipadamente a ninguém; sustenta-se, ao contrário, que em

sociedades complexas, os conflitos sociais são, em primeiro lugar, inevitáveis

(dada a própria complexidade social e o conjunto de diferenciações e

eventualmente oposições de interesses que ela engendra e reengendra

permanentemente), em segundo lugar, desejáveis (no sentido de expressar

democraticamente a pluralidade desta sociedade) e, em terceiro lugar, ao menos

parcialmente juridicizados (porquanto em tais sociedades cabe ao Direito um

papel central na mediação entre inclusão/exclusão, liberdade/opressão,

legalidade/moralidade, faticidade/validade, entre estruturação concreta no mundo

da vida e estabelecimento autônomo de regras jurídicas pelos seus próprios

destinatários com base em critérios racionais expressos publicamente através de

argumentos)91.

2.2

Fronteiras Abertas e Vigiadas

Estabelecido no item anterior que as decisões-tipo devem versar ocupações

organizadas pelo MST e seus efeitos sobre a desapropriação para fins de reforma

agrária, dado o elevado nível de sua ocorrência em ambos os tribunais superiores

estudados, antes de passarmos à sua análise podemos nos indagar se há alguma

sentimento de vingança que parte da população acalenta contra os acampados, o que coloca em risco a necessária imparcialidade do julgamento” (p. 05, inteiro teor do acórdão disponível em http://tinyurl.com/mus662z, acesso em 19/07/2013). 91 É precisamente neste sentido que se defende não qualquer atuação concreta de qualquer movimento social, e sim a indispensabilidade genérica desta atuação para a preservação e ampliação da pluralidade e da multiplicidade nos e dos espaços democráticos.

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relação observável entre o número de ocupações ou de assentamentos e o número

de decisões proferidas por aquelas cortes a respeito, como procurou-se fazer antes

com os julgamentos de HCs.

Confrontando-se os dados gerais sobre ocupações e assentamentos e sobre

decisões do STF a cada ano para o período 2000 a 2010 (Gráfico 16), o que se

percebe é uma não correspondência geral e direta entre número de ocupações e

número de decisões, senão em segmentos de tempo muito específicos: há

dinâmicas distintas, eventualmente opostas, entre as linhas de ocupações e

decisões, salvo entre 2003 e 2004, quando se observam, nestas duas categorias,

linhas ascendentes similares. Se o referencial de comparação para o número de

decisões no STF, entretanto, for o número de assentamentos, há uma coincidência

na dinâmica das linhas para um período maior, de 2003 a 2007 (com maior ênfase

nesta correspondência entre 2005 e 2007). Em qualquer dos casos, entretanto,

tende-se a visualizar uma certa defasagem entre ascensão ou queda da variável

ocupação ou assentamento e a de decisões do Tribunal.

GRÁFICO 16

DECISÕES STF x OCUPAÇÕES x ASSENTAMENTOS

0

100

200

300

400

500

600

700

800

900

1000

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

0

1

2

3

4

5

6

7

OCUPAÇÕES MST ASSENTAMENTOS DECISÕES STF

Fontes: Relatório DATALUTA Brasil 2011 e STF Org.: José Carlos Garcia

A primeira inferência, relativa à maior relação entre assentamentos e

decisões do que entre ocupações e decisões, pode talvez derivar da natureza dos

processos sobre ocupações do MST deduzidos perante o Supremo – como vimos,

são fundamentalmente mandados de segurança que impugnam aspectos dos

decretos presidenciais desapropriatórios, por isso é mais evidente que aumente o

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número de impetrações, e consequentemente de decisões, conforme aumente o

número de assentamentos, e vice-versa. Por outro lado, uma explicação razoável

para a defasagem entre o movimento das curvas de ocupações e mesmo

assentamentos e de decisões é o tempo entre o ajuizamento e o julgamento da

ação: mesmo em se tratando de mandado de segurança, feito de tramitação

simplificada, célere e sobretudo legalmente prioritária92, ainda assim há um tempo

a ser ocupado por este processamento antes de seu julgamento93.

Quanto ao Superior Tribunal de Justiça, o comportamento das linhas parece

ainda mais errático (vide Gráfico 17): mesmo com algumas significativas

discrepâncias, podemos dizer que há, grosso modo, um paralelismo entre a

evolução das curvas para estas variáveis entre 2000 e 2005, mas a partir de então

elas passam a ter dinâmicas praticamente opostas. E tendo-se por referência o

número de assentamentos, parece haver uma dinâmica um pouco mais integrada

apenas entre 2003 e 2006, não se percebendo uma correspondência de dinâmicas

nos demais anos.

Pondere-se, entretanto, que no caso do STJ não estamos mais, como no

STF, diante de questionamentos de validade do decreto ou do processo

desapropriatório via mandados de segurança de competência originária, e sim de

recursos (principalmente recursos especiais e agravos) os quais, se por um lado

têm processamento muito mais simples do que feitos originários, em especial de

conhecimento, por outro guardam uma natural defasagem em relação aos fatos

que é própria mesma de sua natureza recursal.

Considerando-se as respostas judiciais como um todo, isto é, totalizadas as

decisões de STF e STJ para o período, não se chega a perceber uma modificação

significativa na relação entre as variáveis analisadas, conforme se constata com

base no Gráfico 18.

92 Lei 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança), art. 20: “Os processos de mandado de segurança e os respectivos recursos terão prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo habeas corpus.” 93 Considerando-se apenas as onze decisões-tipo que serão à frente analisadas, o tempo médio entre ajuizamento e julgamento dos seis mandados de segurança no STF foi de pouco mais de 22 meses, variando entre 10 e 41 meses; a cautelar em ADIn teve seu julgamento finalizado em 23 meses; a média para julgamento dos quatro recursos no STJ foi de quase 14 meses, variando de 01 a 22 meses. A média geral de tempo para julgamento considerando-se as onze decisões nos dois tribunais foi de 19 meses.

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GRÁFICO 17

DECISÕES STJ x OCUPAÇÕES x ASSENTAMENTOS

0

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300

400

500

600

700

800

900

1000

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0

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OCUPAÇÕES ASSENTAMENTOS DECISÕES STJ

Fontes: Relatório DATALUTA Brasil 2011 e STJ

Org.: José Carlos Garcia

GRÁFICO 18

RESPOSTAS JUDICIAIS x OCUPAÇÕES x ASSENTAMENTOS

0

100

200

300

400

500

600

700

800

900

1000

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

0

2

4

6

8

10

12

14

16

18

OCUPAÇÕES ASSENTAMENTOS RESPOSTAS JUDICIAIS

Fontes: Relatório DATALUTA Brasil 2011, STF e STJ

Org.: José Carlos Garcia

O conjunto de dados disponíveis nesta pesquisa, portanto, não nos permite a

princípio articular qualquer relação direta constante entre número de ocupações ou

assentamentos e número de decisões judiciais no período considerado, salvo as

pequenas coincidências acima indicadas. É possível que o conjunto de filtros

sistêmicos que se interpõem entre o conflito social propriamente dito e sua versão

judicializada, bem como o relativo afastamento temporal decorrente dos tempos

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de processamento e aguardo para julgamento, neutralizem a possibilidade de uma

relação mais direta entre estas duas esferas a qual, de qualquer sorte, não pode ser

aqui detectada. Isto significa que a interferência da forma de atuação do MST

sobre as decisões, portanto, deve a princípio ser buscada mais na formação de

sentidos e representações sociais sobre o Movimento e suas práticas, e em como

aqueles tribunais lidaram com estas imagens ao decidirem, o que será possível

através da análise das decisões-tipo escolhidas dentre as que compunham a base

geral de dados pesquisada.

As decisões-tipo foram selecionadas, como dito, de modo a expressarem os

critérios anteriormente expostos, vinculados à sua ocorrência estatística na base de

dados quantitativos obtida. No caso do STF, foram escolhidos seis mandados de

segurança em que são discutidos aspectos ligados aos efeitos das

ocupações/invasões de terra pelo MST sobre o processo de desapropriação para

fins de reforma agrária, todos de competência do Pleno:

- MS 23.054/PB, ajuizado em 18/02/1998 e julgado em 15/06/2000, relator

o Ministro Sepúlveda Pertence;

- MS 23.818/MS, ajuizado em 21/11/2000 e julgado em 29/11/2001, relator

o Ministro Maurício Corrêa;

- MS 24.136/DF, ajuizado em 21/11/2001 e julgado em 11/09/2002, relator

o Ministro Maurício Corrêa;

- MS 24.133/DF, ajuizado em 16/11/2001 e julgado em 20/08/2003, relator

o Ministro Carlos Velloso, relator para o acórdão o Ministro Carlos Britto;

- MS 24.764/DF, ajuizado em 06/01/2004 e julgado em 06/10/2005, relator

o Ministro Sepúlveda Pertence, relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes;

- MS 25.124/DF, ajuizado em 16/11/2004 e julgado em 09/04/2008, relator

o Ministro Carlos Britto.

Dados sua amplitude, gama de efeitos e conteúdo tanto da ementa quanto da

decisão do voto condutor e dos debates entre os ministros, tive por relevante

também examinar mais detidamente a ADIn 2.213 DF, que versa, dentre outros,

este mesmo tema, ao impugnar o art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93. A ADIn foi

ajuizada em 26/05/2000 e ainda não foi julgada no mérito. A liminar em medida

cautelar, entretanto, teve sua apreciação iniciada em 10/05/2001, sendo seu

julgamento concluído em 04/04/2002, com o indeferimento da liminar. O relator é

o Ministro Celso de Mello.

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Optei por selecionar um número maior de casos no STF porque lá, segundo

a fundamentação da própria decisão, teria havido uma modificação relevante de

posicionamento no julgamento do MS 24.764, especificamente quanto à

relevância ou não da dimensão da área ocupada para fins de caracterização de

impedimento do prosseguimento do processo desapropriatório. Mais adiante

veremos o real alcance desta modificação de posicionamento.

Quanto ao STJ, foram selecionados dois Recursos Especiais, um Agravo

Regimental em Recurso Especial e um Agravo Regimental em Medida Cautelar:

- Ag. Reg. na MC 11.386/PR, ajuizada em 06/04/2006 (a MC) e julgado em

04/05/2006, relatora a Ministra Denise Arruda;

- REsp 819426/GO, ajuizado em 23/02/2006 e julgado em 15/05/2007,

relatora também a Ministra Denise Arruda;

- REsp 934546/RJ, ajuizado em 30/03/2007 e julgado em 19/08/2008,

relator o Ministro Castro Meira;

- Ag. Reg. no REsp 1055228/PA, interposto em 13/05/2008 e julgado em

04/03/2010, relator o mesmo Ministro Castro Meira.

Todas as decisões do STJ também se referem aos efeitos, sobre o processo

de desapropriação, da ocupação pelo MST das áreas a serem desapropriadas. Os

dois primeiros foram julgados pela sua 1.ª Turma, os dois últimos, pela 2.ª.

No que diz respeito ao STF, duas decisões são marcos importantes para a

compreensão de sua jurisprudência sobre o tema, mais do que as outras aqui

selecionadas: a ADIn 2.213 DF, cuja apreciação da medida liminar foi concluída

em 04/04/2002, e o MS 24.764/DF, julgado em 06/10/2005. A primeira, por

razões evidentes: ela analisou em sede de controle concentrado, ainda que até

agora apenas liminarmente, a constitucionalidade da inserção da regra limitadora

do art. 2.°, § 6.°, na Lei 8.629/93; a segunda porque implicou, como consta de sua

própria ementa, uma modificação na jurisprudência até então dominante naquele

Tribunal sobre que tipo de ocupação ou invasão produziria o efeito de incidência

da norma inibidora, impedindo a desapropriação, ainda que temporariamente.

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A inicial da ADIn 2.213/DF, segundo o voto do Ministro Relator,

enfrentava expressamente a utilização da repressão às ocupações por movimento

sociais como critério de bloqueio às desapropriações94, sustentando que

Com o advento da medida ora impugnada, criou-se óbice que não encontra amparo no Ordenamento à intervenção Estatal para fazer valer a função social da propriedade rural, nos termos preconizados pela Constituição. Ademais, sabemos que as ocupações de terras, nas suas variadas formas, não se constituem em esbulho, ao contrário, têm se revelado em instrumento legítimo de luta e meio eficaz, para que o próprio governo possa agilizar o processo de reforma agrária, e nada justifica o retardo na desapropriação do imóvel para cumprimento de sua função. Nessa toada, vale ressaltar importante precedente consubstanciado pelo Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus n.° 4.399-SP – Relator Ministro William Patterson cuja íntegra dos votos dos Ministros Luiz Vicente Cernicchiaro, Vicente Leal e Adhemar Maciel segue acostado, integrando a presente ação, onde vemos o reconhecimento de que as ocupações movidas por grupo organizado que reivindica o direito ao trabalho e à efetiva implementação da Reforma Agrária, assegurada constitucionalmente, não configura esbulho, mas sim, reveste-se de ‘sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja, a implantação da Reforma Agrária’ (ver voto do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro). (pp. 366-36795) Ainda segundo aquele relatório, as informações prestadas pelo Presidente

sustentaram a não taxatividade do rol de hipóteses insuscetíveis de desapropriação

para reforma agrária, o que teria mesmo eco na jurisprudência do Supremo, e,

mais diretamente no tocante ao tema versado,

que os preceitos inscritos na medida provisória em exame, precisamente por objetivarem neutralizar situações de abuso causadas por determinadas organizações e movimentos sociais, buscam inibir atos de esbulho possessório contra a propriedade privada e contra bens públicos, não ofendendo, desse modo, o princípio que veda o retrocesso social, pois ‘a violência direta, imediata e contrária às instituições dificilmente pode ser percebida como um avanço social’ (fls. 85). (p. 311; grifo no original)

94 Como a ADIn impugnava vários dispositivos da MP 2183-56, e não apenas a inserção do § 6.° no art. 2.° da Lei 8.629/93, vários outros fundamentos foram apontados, desde aspectos de inconstitucionalidade formal, por desatendimento aos pressupostos de relevância e urgência previstos no art. 62 da Constituição, até conflitos materiais variados com o disposto nos arts. 5.°, VIII, IX, XVII, XVIII, XIX, XXIII, XXXV, XXXVI, LIII, LIV, LV e LVII, 6.°, 184, 185, I e II, 186, I, II, III e IV, e 193 da Constituição. Após o extenso voto do Ministro Relator sobre o vício formal por violação dos requisitos de relevância e urgência, por exemplo, de 29 páginas, este fundamento foi afastado pela unanimidade do Pleno. Minha análise aqui, entretanto, limitar-se-á fundamentalmente ao tema proposto, relacionado à inserção daquela regra limitadora, salvo quando outro aspecto mostrar-se pertinente ou útil para a sua apreciação. 95 Nas decisões do STF aqui analisadas, os números de páginas indicados referem-se à numeração constante do inteiro teor dos correspondentes acórdãos na página do Tribunal na internet, presumivelmente reportando-se ao número da folha dos autos respectivos.

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Impõe-se aqui a transcrição, ainda que longa, dos aspectos essenciais do

voto do Relator a respeito do tema, pelo conjunto de aspectos nele versados, tanto

do ponto de vista da possibilidade das ocupações interferirem na capacidade

efetiva de se aferir o grau de produtividade da área, quanto pelas observações

acerca do caráter das ocupações e seus enquadramentos jurídicos:

Não vislumbro plausibilidade jurídica em tais alegações, mesmo porque – tal como precedentemente enfatizado – as normas em questão buscam neutralizar os excessos a que têm dado causa grupos organizados de trabalhadores rurais, que transformaram, o esbulho possessório, praticado contra bens públicos ou contra a propriedade privada, em instrumento de ação política e de pressão social – nem sempre legítima – sobre o Poder Público, com grave ofensa a postulados e a valores essenciais resguardados pela ordem constitucional vigente em nosso país. Não se pode desconsiderar, neste ponto, a circunstância de que, mais do que ilícito de ordem meramente civil, o esbulho possessório também pode configurar conduta revestida de tipicidade penal, caracterizando delito previsto tanto no art. 161, § 1.°, II, do Código Penal, quanto no art. 20 da Lei n.° 4.947/66 [omissis, o Ministro transcreve aqueles dispositivos legais]. Cabe registrar, por necessário, que os atos configuradores de violação possessória, além de instaurarem situações revestidas de inegável ilicitude civil e penal, traduzem – segundo jurisprudência que se vem formando no Supremo Tribunal Federal – hipóteses caracterizadoras de força maior, aptas, quando concretamente ocorrentes, a infirmar a própria validade da declaração expropriatória. Esta Suprema Corte, por mais de uma vez, pronunciando-se sobre a questão específica do esbulho possessório, praticado, mediante ação coletiva, por movimentos de trabalhadores rurais, não hesitou em censurar essa ilícita manifestação de vontade política, ao mesmo tempo em que invalidava o decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória de imóveis rurais, pois, com a arbitrária ocupação de tais bens, não se viabiliza a realização de vistoria destinada a constatar se a propriedade invadida teria atingido, ou não, coeficientes mínimos de produtividade fundiária. Esse entendimento – que identifica, no ato de esbulho possessório, causa impeditiva de declaração expropriatória do imóvel rural, para fins de reforma agrária (MS 23.323/PR, Rel. Min NÉRI DA SILVEIRA, v.g.) – acentua que a ocupação ilícita de propriedade imobiliária, notadamente nos casos em que esta se faz de modo coletivo, além de impedir, injustamente, que o proprietário nela desenvolva regular atividade de exploração econômica, representa motivo legítimo que justifica, ante o caráter extraordinário de tal situação, a impossibilidade de o imóvel invadido atender os graus mínimos de produtividade exigidos pelo ordenamento positivo, para, desse modo, realizar a função social que lhe é inerente. Esse particular aspecto da questão resultou evidenciado, quando do julgamento plenário, por esta Suprema Corte, do MS 22.666/PR, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, ocasião em que o Tribunal anulou declaração expropriatória que incidira sobre imóvel rural cujas atividades foram injustamente paralisadas, por efeito de esbulho possessório praticado, coletivamente por movimento de trabalhadores rurais. [omissis, o Ministro transcreve a ementa do acórdão e cita outros julgados que entende no mesmo sentido] O Senhor Presidente da República, a meu juízo, bem justificou a legitimidade constitucional das normas em exame, quando, ao prestar as informações que lhe foram requisitadas, assinalou (fls. 69/70):

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‘(...) é patente o embaraço do Requerente com a notória jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que o imóvel rural invadido não se encontra em condições de submeter-se a vistoria para configurar o não-atingimento dos índices mínimos de produtividade. O próprio Requerente vê-se obrigado a reconhecê-lo e a tentar contorná-lo com a precaríssima alegação de que essa orientação não se viu firmada no controle abstrato de normas, mas antes em casos concretos. (...) O Requerente comete outro grosseiro equívoco ao sugerir que a disciplina da matéria haveria de constar tão-somente da Lei Complementar n.° 76, de 06 de junho de 1993. Tal como esclarecem as informações colhidas junto à Consultoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário (fl. 4), a vistoria a que se refere a Lei Complementar n.° 76, de 1993, é aquela relativa ao processo judicial de desapropriação e não ao procedimento administrativo disciplinado pelas Leis n.° 8.629, de 1993, e 4.504, de 1964. A Medida Provisória ora impugnada disciplina tão-somente a vistoria relativa ao procedimento administrativo de desapropriação e alcança apenas a matéria que se encontra disciplinada pelas já referidas Leis n.° 8.620, de 1993, e 4.504, de 1964 – estas sim, alteradas pela Medida Provisória n.° 2.027-38, de 2000. Parece evidente, por conseguinte, que não se promove qualquer intervenção ilegítima no processo judicial de desapropriação ou na disciplina imposta pela Lei Complementar n.° 76, de 1993. [omissis, considerações sobre a MP em questão apenas acomodar a legislação aos entendimentos pacificados do STF] As normas ora em exame – que impedem a vistoria de imóveis rurais dentro de determinado prazo, contado do término da ocupação ilícita – prendem-se à circunstância de que o processo de reforma agrária, em nosso país, não pode ser conduzido de maneira arbitrária, nem de modo ofensivo à garantia constitucional da propriedade. (pp. 367-373)

Após relativizar o conceito de propriedade e tê-lo por submetido, em nosso

ordenamento constitucional, à sua função social, bem como citar trechos de

artigos de Paulo Brossard e Miguel Reale na imprensa, prossegue o Ministro

Relator:

Nada pode justificar o desrespeito à autoridade das leis e à supremacia da Constituição da República. A força da lei, editada em harmonia com o estatuto constitucional, não pode ser comprometida por práticas ilícitas, ditadas por razões ideológicas – quaisquer que sejam – ou motivadas por inconformismo político ou social. O respeito ao ordenamento jurídico e a submissão de todos à idéia e à autoridade da lei (‘rule of law’) traduzem comportamentos que prestam reverência ao princípio da legalidade, cuja primazia representa verdadeira pedra angular no processo de construção e de consolidação do Estado Democrático de Direito. O dever de fidelidade à lei, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, atua como importante elemento de preservação da ordem jurídica e constitui pressuposto essencial à prática legítima das liberdades públicas. Nenhuma comunidade social pode subsistir sem a necessária observância de leis justas e legítimas, pois é no texto das leis, desde que votadas livremente por representantes eleitos pelo Povo, que se contém a fórmula da ordem democrática, cujos fundamentos derivam do respeito a certos princípios essenciais, como aquele

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que faz prevalecer, no âmbito das formações sociais, a idéia básica do pluralismo político. Eventuais contestações à autoridade da lei, quando tornadas inevitáveis, deverão efetivar-se com observância de mecanismos institucionais, que, estabelecidos pela própria Constituição, destinam-se a superar, seja pela via política do processo legislativo, seja pela utilização do processo judicial, os conflitos de interesses que hoje se pluralizam, qualificados, até mesmo, pela nota da metaindividualidade. Impõe-se observar, por isso mesmo, que a instauração de processos judiciais traduz legítima expressão de uma prerrogativa constitucional assegurada, pela Carta Política, a qualquer pessoa, entidade ou organização que se sinta lesada ou ameaçada de lesão, em seus direitos, por comportamentos abusivos ou ilegais praticados pelo Poder Público, ou em virtude de omissões governamentais na formulação e implementação de políticas públicas, inclusive em tema de promoção e execução de uma política de reforma agrária. (...) O legislador constituinte, ao consagrar o postulado assegurador do ingresso em juízo, fez uma clara opção de natureza política, pois teve a percepção – fundamental sob todos os aspectos – de que, onde inexiste a possibilidade do amparo judicial, há, sempre, a realidade opressiva e intolerável do arbítrio do Estado ou, até mesmo, dos excessos de particulares (ou de movimentos sociais organizados), quando transgridem, injustamente, os direitos de qualquer pessoa. (...) Veja-se, portanto, que a necessidade de respeito ao império da lei e a possibilidade de invocação da tutela jurisdicional do Estado – que constituem valores essenciais em uma sociedade estruturada em bases democráticas, organizada sob a égide do princípio da liberdade – devem representar, para o Povo de nosso País, o sopro inspirador da harmonia social, significando, ainda, na expressiva concreção de seu alcance um veto permanente a qualquer tipo de comportamento que extraia a sua motivação do intuito deliberado de incidir em gestos inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de invasão de propriedade alheia, de violação possessória e de desrespeito à autoridade das leis da República. Em suma: a possibilidade de solução jurisdicional dos conflitos sociais representa índice revelador do grau de desenvolvimento cultural dos povos e significa, por isso mesmo, a diferença fundamental entre civilização e barbárie, nada podendo justificar, desse modo, ainda que no contexto de luta pelo acesso à terra, a prática ilícita e arbitrária de invasões de imóveis rurais e de prédios ou estabelecimentos públicos. (...) Todos estes aspectos bem justificam, a meu juízo, a formulação, pelo Senhor Presidente da República, da norma ora impugnada, pois, ao Estado, não é lícito aceitar, passivamente, no que concerne a quaisquer movimentos sociais organizados, a imposição de uma agenda político-social, notoriamente caracterizada por práticas ilegítimas e invasão de propriedades rurais, em desafio inaceitável à integridade e à autoridade da ordem jurídica. (pp. 388-397)

Este trecho do relatório veio a público na sessão do STF de conclusão da

apreciação da medida liminar na ADIn, em 04/04/2002. Nos seis anos que

antecederam a leitura deste relatório (1996-2001), 189 trabalhadores e

trabalhadoras rurais foram assassinados em conflitos no campo. No ano em que a

decisão foi tomada, outros 43 teriam o mesmo fim. No ano seguinte, 73 pessoas

seriam assassinadas no campo, entre assentados, trabalhadores rurais, índios,

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posseiros e lideranças camponesas96. No entanto, há um ensurdecedor silêncio

sobre este aspecto das “inaceitáveis práticas ilícitas e abusivas que comprometem

a supremacia da Constituição e o império da lei” no voto do Ministro Relator. A

única violência focada no voto é a violência simbólica contra a propriedade e a

produção, ou até mesmo contra a “improdução”, e não há uma única linha sobre a

violência física e as violações a direitos humanos perpetradas contra populações

de trabalhadores rurais. Este é talvez o aspecto mais impressionantemente visível

dos termos deste debate na Suprema Corte, a apresentação de um problema como

sendo de extrema gravidade sem que se lhe atribua o conjunto de fatores, em

especial humanos, que lhe dão tanto gravidade quanto complexidade extremas.

Não estou dizendo que isto mudasse o voto do Ministro ou a decisão da

Corte, sequer que o STF devesse chancelar como legais e legítimos os atos de

ocupação por movimentos sociais que defendem a reforma agrária. Digo apenas

que não é possível desconsiderar de uma questão complexa um de seus

componentes mais dramáticos, os assassinatos em massa no campo, nem me

parece sustentável em termos constitucionais que se anteponha crimes contra o

patrimônio a crimes contra a vida. No entanto, foi precisamente o que aconteceu –

se alguém deseja uma prova documental do velho chavão de esquerda de que sob

o capitalismo os crimes contra o patrimônio preferem àqueles contra a vida, terá

neste julgamento uma situação exemplar.

A rigor, sequer os votos divergentes abordaram a questão. O mais elaborado

deles foi sem dúvida o do Ministro Sepúlveda Pertence, mas tampouco ele tratou

do tema. Quanto à questão aqui em exame, o disposto no art. 2.°, § 6.°, da Lei

8.629/93, considera-a uma sanção genérica pela ocupação que não sanciona os

ocupantes/invasores, mas toda uma classe social, os pretendentes à terra,

premiando o proprietário eventualmente improdutivo. Além disso, considerava

essencial a concessão da suspensão liminar do dispositivo, porque

No Brasil e no mundo, reforma agrária é uma política movida por um processo social dinâmico, que se desenvolve necessariamente em um ambiente de tensão entre o arraigado e explicável sentimento de apego à propriedade do senhor rural e a reivindicação dos excluídos de acesso à terra improdutiva. De outro lado, as ocupações sempre foram um dos sintomas, um dos sinais agudos da existência de uma situação de conflito que induz à reforma agrária. (p. 448)

96 Fonte: Caderno Conflitos no Campo Brasil 2003, CPT, p. 27. Ver bibliografia.

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Para o Ministro Sepúlveda Pertence, isto não quer dizer que as ocupações

não possam efetivamente obstar a desapropriação naquelas hipóteses em que

inviabilize a vistoria indispensável para qualificar a propriedade rural como

produtiva ou improdutiva para fins de reforma agrária; quer dizer apenas que esta

mensuração deve ser feita caso a caso, de acordo com as especificidades de cada

situação, sem a cominação de uma proibição abstrata:

No entanto, ao contrário dos casos decididos pelo Tribunal na consideração das circunstâncias de cada caso, e tendo em vista não a punição difusa a que antes me referi, mas o comprometimento objetivo da possibilidade de aferição da improdutividade de suas causas [rectius, deve ser “e suas causas”], ao contrário disso, o que está na medida provisória, no § 6.° do art. 2.°, que estamos a examinar, é uma proibição abstrata: se houve turbação, não pode haver vistoria; conseqüentemente, não pode haver expropriação. Por isso, entendo violado o art. 185 da Constituição, neste juízo liminar, e tenho por plausível a argüição de inconstitucionalidade. (pp. 447-448)

Autor de outro voto dissidente quanto ao particular, o Min. Marco Aurélio

menciona que

É desconhecer-se – e vivemos ainda sob a influência do Plano Real – o que ocorre por esse Brasil afora, em que inúmeros imóveis estão ocupados. Há um pormenor, também salientado pelo ministro Sepúlveda Pertence. O preceito surge como revelador de verdadeira pena, no que prevê, na hipótese de reincidência, ainda que com um interregno mínimo, ainda que a ocupação primeira tenha sido diminuta considerando o fator tempo, a majoração do prazo, projetando-o para quatro anos. (p. 462) E prossegue, analisando o § 8.° do mesmo art. 2.°, mas com fundamentação

sem dúvida também aplicável ao anterior dispositivo em análise:

A meu ver, a cláusula encerra uma indesejável coerção política: de um lado, o Estado não implementa o que quis o legislador constituinte de 1988, não providencia, com a largueza suficiente, a reforma agrária; de outro, para evitar certo exercício - que considero como um direito natural – de ocupar terras improdutivas, os latifúndios –, impõe uma coerção política, obstaculizando, portanto, o fluxo de numerários que visem a este ou àquele benefício inicialmente de cunho social – e presumo que todos sejam de cunho social –, isso diante da necessidade de ter-se, no repasse de recursos públicos, sempre envolvido o interesse público primário, que é o interesse de toda a sociedade. (p. 463)

O terceiro voto vencido foi o do Ministro Ilmar Galvão, que de início

deferia a liminar apenas para suspender o prazo de reincidência (quatro anos de

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proibição de vistoria), e finalmente deferiu a liminar para considerar

inconstitucional toda a vedação, seguindo na prática a linha inaugurada pelo

Ministro Sepúlveda Pertence, qual seja, a de que a análise quanto aos efeitos da

ocupação por sem-terras sobre a produtividade da área deveria ser feita caso a

caso, sem uma vedação genérica prévia às vistorias. O interessante desse voto está

no debate que ele ensejou e que, apesar de longo, transcrevo a seguir, porque situa

com clareza aspectos importantes do que o Tribunal levou em conta na sua

decisão naquele dia:

O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Senhor Presidente, se o prazo de dois anos dado ao proprietário do imóvel, para torná-lo novamente produtivo, pode ser visto como razoável, o mesmo não se dá com o prazo em dobro, de quatro anos, só pelo fato de reincidência da invasão, independentemente de ter havido desorganização do sistema de produção da gleba. Muito menos se o caso é de latifúndio improdutivo. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Não se pode ignorar, considerada a natureza predatória que usualmente caracteriza os atos ilícitos de invasão fundiária, que esta, quase sempre, culmina por desestruturar o próprio sistema de produção existente no imóvel rural objeto de ilegal violação possessória. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Como já disse, o prazo de dois anos concedido ao proprietário do imóvel para torná-lo produtivo e, como tal, imune à desapropriação, pode não ofender o princípio da razoabilidade. O de quatro anos, sim, se as invasões, nas circunstâncias em que se deram, não comprometeram a produtividade da gleba. Aí, o prazo soa, ao mesmo tempo, como uma punição ao invasor – como se tivesse ele lugar assegurado como futuro ‘assentado’ no imóvel –; e uma compensação de todo injustificada ao proprietário, cujo imóvel bem pode ser um latifúndio improdutivo. Na verdade, os §§ 6.° e 7.° instituem uma limitação à desapropriação imposta, ao arrepio da Constituição, ao Poder Público que, certamente, não está obrigado a desapropriar um determinado imóvel, não necessitando, por isso, de barreira dessa ordem, já que é o juiz da conveniência e da oportunidade de um ato dessa natureza. Quanto aos outros dispositivos, estou de acordo com o eminente Relator, embora não entenda a razão de ser dos §§ 8.° e 9.°, não podendo conceber quando uma invasão possa ser considerada financiada pelo Estado. O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – O verdadeiro objetivo disso, parece-me, são os convênios de assentamento com movimentos sociais. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Seria a invasão de um assentamento? Senhor Presidente, em conclusão, defiro parcialmente quanto à dobra do prazo, e, ainda, quanto aos dois anos. Somente os considero razoáveis se a invasão destruiu o sistema de produção da propriedade. Se foi uma invasão de dez dias, se foi a derrubada de uma cerca, não se justifica. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Ministro, a aferição disso só é possível com a vistoria que o preceito proíbe, porque, senão, acabaríamos assumindo a posição de legisladores positivos. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Parece-me que só proíbe quando é uma invasão prolongada. O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – A invasão prolongada pode até ser produtiva.

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O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Claro, pegar-se um imóvel improdutivo e torná-lo produtivo. O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Parece-me que nisso a jurisprudência já vinha fixando os parâmetros, quer dizer, se atingiu concretamente a produtividade, então, se considera impossível a verificação da improdutividade. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Como diz o eminente Ministro Maurício Corrêa, é uma desorganização total da propriedade, que, por exemplo, era pecuária e, de repente, os currais, as cercas, as pastagens são destruídas. Por isso digo: só se comprometeu o sistema. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Mas Vossa Excelência não acha que há de se chegar a uma conclusão pelo exame da hipótese concreta, ou seja, caso a caso? Vossa Excelência mesmo foi relator, e eu o acompanhei, em situações nas quais restou demonstrado que a invasão provocara a ausência de produtividade.

O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Veja V. Exa. Que essa norma dispõe: (omissis, transcreve a norma). Enquanto ocupado, não há possibilidade de vistoria. Ele não será vistoriado até dois anos depois da desocupação, que é o tempo razoável para restabelecer a produção. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Ministro, devemos presumir sempre o razoável, o que decorre da ordem natural das coisas. Então, se há a invasão de um imóvel, Vossa Excelência pode imaginar que, sendo produtivo esse imóvel, ele se torne necessariamente improdutivo? O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Mas não se faz vistoria. Por exemplo, essa rumorosa invasão da semana passada, destruiu o sistema de produção do imóvel? Não. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Mas aquele imóvel não poderá ser vistoriado – pelo preceito, nos dois anos seguintes – após a desocupação. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Esse imóvel vai passar dois anos imune? O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Por isso, devemos deixar para resolver, caso a caso, a situação. Agora, proibir, de antemão, a vistoria por dois anos é passo demasiadamente largo. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Essa invasão recente, que tumultuou o País, ao que consta não prejudicou o imóvel como imóvel rural produtivo. Senhor Presidente, defiro em parte. (pp. 437-441)

Curiosamente, o indeferimento da liminar quanto ao § 6.° do art. 2.° da Lei

8.629/93, na redação determinada pela MP 2.183-56/2001, por 07 votos a 03, não

implicou qualquer modificação significativa na jurisprudência do STF sobre o

tema, cuja postura prática continuou sendo aquela sustentada pelos votos

vencidos neste julgamento, ou seja, de que a norma restritiva somente incidiria se

e quando a ocupação interferisse concretamente na produtividade da terra. O

critério geral adotado pela Corte passou a ser o do momento da ocupação: se ela

se realiza após a vistoria, não interfere de modo algum nem na produtividade,

nem na possibilidade da vistoria mensurá-la; se ocorre antes da vistoria, uma série

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de condicionantes passa a ser considerada pelo Tribunal, especialmente a área

efetivamente ocupada, se grande ou pequena em relação à totalidade da

propriedade a ser desapropriada: pequena a área ocupada, ainda que anterior à

vistoria, a ocupação é tida como não relevante para fins de determinação da

produtividade do imóvel97. A análise dos demais casos selecionados, anteriores e

posteriores ao exame de constitucionalidade do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, o

explicita claramente.

O MS 23.054/PB foi ajuizado em 18/02/1998 e julgado em 15/06/2000, ou

seja, pouco menos de dois anos antes do fim da apreciação da cautelar em ADIn.

O mandado de segurança foi impetrado pelos proprietários de área invadida por

militantes do MST cerca de uma semana antes do início da vistoria pelo Incra.

Alegavam que o Dec. 2.250/97 proibia a vistoria de áreas ocupadas, e que a sua

realização tornaria nulo o decreto presidencial desapropriatório. O relator do feito,

que conduziu esse julgamento mas restaria vencido na ADIn 2.213, Ministro

Sepúlveda Pertence, salientou em seu voto que o decreto não poderia ser aplicado

por ausência de portaria da presidência do Incra que o regulamentasse, como

exigido pelo seu art. 4.º, e que, além disso, a área ocupada pelos sem-terra era

ínfima, cerca de 30 ha em um total de mais de 928 ha. Ainda segundo ele, a

ocupação se deu oito dias antes do início da vistoria, não afetando a produtividade

do imóvel, já que o laudo de vistoria tomou em conta a produtividade no ano

anterior, sendo, portanto, irrelevante a ocupação. Tudo isso o levou a caracterizar

o “quadro de bucólica virgindade – mal bolida pelos arrendatários – e de chapada

improdutividade do latifúndio” (p. 349).

Contrastam grandemente com suas posições no julgamento da ADIn 2.213

os votos dos Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio neste caso. Para o primeiro,

a invasão do imóvel, na verdade, não deve impedir a desapropriação. O imóvel não fica imune à desapropriação porque foi invadido. Essa não é uma das razões constitucionais para a não-desapropriação do imóvel. Pelo contrário, a invasão deve até ser um motivo para que o imóvel seja desapropriado, a fim de que aquelas famílias que ali estão sejam aquinhoadas, ou recebam o seu lote de terra, e acabem tendo uma ocupação útil. (p. 352)

97 Esta posição, como veremos mais à frente, perdurou ao menos até o julgamento do MS 24.764/DF, em 06/10/2005, ou seja, por cerca de três anos e meio após a conclusão do julgamento da MC na ADIn 2.213.

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Com isso acaba por fazer coro com passagem do voto do relator, para quem

a reforma agrária,

por um dado inconteste da experiência histórica, raramente se efetiva em latifúndios que, além de improdutivos e virtualmente abandonados, sequer despertam a atenção dos “sem-terra”. (p. 344)

Em seu voto dissidente, o Min. Marco Aurélio considera que o decreto

expropriatório é nulo por questão formal, já que, invadido o imóvel, não poderia

ser vistoriado, e tal vício seria o mesmo que não realizar a vistoria, quando a Lei a

impõe. Seu voto abre com uma proclamação clara de observância das regras que

implicam inibição da “realização de justiça pelas próprias mãos”:

observo com absoluto rigor as normas que visam a inibir o exercício de um direito pelas próprias mãos, já que esse exercício, inclusive, é tipo penal – artigo 345 do Código Penal. (p. 354)

Ainda que diametralmente oposta à sua manifestação no julgamento da MC

na ADIn 2.213, que seria julgada pouco menos de dois anos depois, o Ministro

Marco Aurélio introduz, ainda que implicitamente, o interessante questionamento

de que não se cuidaria de hipótese de crime de esbulho, mas de exercício

arbitrário das próprias razões98, posição que aparentemente viria a abandonar no

julgamento da ADIn, quando tomou a ocupação de terras improdutivas por um

direito natural.

A decisão final acompanhou o voto do relator, denegando-se a segurança

por 07 votos a 01, vencido apenas o Min. Marco Aurélio.

Impetrado em 21/11/2000 e julgado em 29/11/2001, o MS 23.818/MS teve

por relator o Ministro Maurício Corrêa. Seu julgamento insere-se entre as sessões

de início e fim do exame da liminar na ADIn 2.213, respectivamente 10/05/2001 e

04/04/2002. O mandado de segurança foi impetrado pelos proprietários contra o

Presidente da República, buscando anular o decreto desapropriatório, ao

98 Diz o art. 345 do Código Penal, mencionado pelo Ministro em seu voto: “Exercício arbitrário das próprias razões Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:

Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.”

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fundamento de que a área não poderia ser objeto de expropriação se havida

invasão pelo MST, como determinado pelo art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, com a

redação da MP 2027-43/2000. O relator entendeu ser inconteste nos autos que a

vistoria se realizou quase sete meses antes da ocupação que, portanto, foi

irrelevante para a mensuração de produtividade do imóvel. Além disso, a vistoria

ocorreu antes da vigência da MP que alterou a redação da Lei, instituindo a

vedação, e a norma prevista no Dec. 2.250/97 era menos restritiva – e, como

vimos ao analisar o MS 23.054, não fora regulamentada99. Houve denegação

unânime da segurança, com o voto de todos os 07 membros que participaram do

julgamento.

Todos os demais casos selecionados foram examinados pelo Supremo já

após o indeferimento da liminar na cautelar na ADIn 2.213. O primeiro deles é o

MS 24.136/DF, impetrado em 21/11/2001 e julgado em 11/09/2002, também sob

a relatoria do Ministro Maurício Corrêa. A empresa proprietária impetrou a

segurança contra o decreto expropriatório de área que teria sido ocupada por

militantes do MST já na vigência da norma restritiva prevista no art. 2.°, § 6.°, da

Lei 8.629/93, em redação tal como determinada pela MP 2.109/01. O relator

chegou a conceder a liminar com base em documentos juntados à inicial, em

especial relativos a uma anterior ação de reintegração de posse aforada pela

impetrante. Após as informações, entretanto, e principalmente após manifestação

da Advocacia Geral da União – AGU, verificou-se haver dúvida quanto à efetiva

ocorrência da ocupação. Intimada a impetrante a se manifestar sobre tais

alegações da AGU, quedou silente.

Em face destas circunstâncias, o relator votou pela denegação da segurança

com dois fundamentos quanto ao mérito (havia ainda uma preliminar de

representação que é aqui irrelevante): se há dúvida quanto à ocorrência ou não da

ocupação, trata-se de fato controvertido cuja demonstração demandaria dilação

probatória incompatível com o rito do mandado de segurança, com o que não se

pode falar em direito líquido e certo; além disso, restou evidenciado nos autos que

seguramente não havia nem tinha havido ocupação no momento de realização da

99 Ainda que o Ministro relator não tenha levado este fundamento em consideração, chegando a dizer em seu breve voto de três páginas que, à vista do Dec. 2.250/97, “de qualquer sorte, se o imóvel estivesse ocupado, a vistoria não poderia ser realizada” (p. 168). No entanto, eram incontroversas as datas da ocupação e da vistoria.

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vistoria pelo Incra, e que, mesmo pela narrativa da impetrante, a invasão, se

havida, teria ocorrido após a realização da vistoria, e, segundo o relator,

a proibição de que a área invadida seja vistoriada, avaliada ou desapropriada nos dois anos seguintes à sua desocupação, conforme dispõe o § 6.° do artigo 4.° [rectius, 2.°] da Lei 8629/93, com a redação dada pela MP 2109/01, alcança apenas as hipóteses em que a vistoria ainda não tenha sido realizada ou quando feitos os trabalhos durante ou depois da ocupação. De qualquer sorte, parece-me que a vedação supõe, pelo menos, que haja probabilidade de que a invasão tenha desfigurado a classificação da área, modificando-a de produtiva para improdutiva, ou tenha causado danos que a possam ter desvalorizado. Caso contrário, a norma proibitiva se desvestiria de sua finalidade. (pp. 510-511)

Nestes termos, todos os demais sete ministros participantes do julgamento

acompanharam o voto do relator, que cassou a liminar anteriormente concedida e

denegou a segurança.

Em 20/08/2003, o Pleno do STF julgou o MS 24.133/DF, ajuizado em

16/11/2001, relator o Ministro Carlos Velloso, relator para o acórdão o Ministro

Carlos Britto. O espólio proprietário impetrou o writ contra ato do Presidente da

República, alegando ocorrência da praga “vassoura de bruxa”, que teria sido

debelada com apoio da CEPLAC – Comissão Executiva do Plano da Lavoura

Cacaueira, mediante projetos elaborados em 1996, 1998 e 1999. Além disso, teria

ainda ocorrido a invasão da fazenda pelo MST, com o que os proprietários

ajuizaram ação de reintegração de posse em 14/12/1999. Nessa ação, a liminar foi,

segundo os impetrantes, concedida, mas não cumprida. Na inicial, narra-se a

ocorrência de abuso de poder por parte do Superintendente Regional do Incra,

pela sua omissão quanto à impugnação do impetrante ao laudo da vistoria

realizada em propriedade invadida e afetada por praga. A 7.ª Vara Federal da

Seção Judiciária da Bahia teria ainda deferido liminar determinando à

Superintendência do Incra que se abstivesse de prosseguir no procedimento de

desapropriação. Após a concessão desta medida, teria sido editado o decreto

desapropriatório. Alegou expressamente a tese de impossibilidade de vistoria de

imóvel invadido, nos termos do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, por não ser viável

a aferição da produtividade em área invadida e afetada por praga, além de outros

argumentos.

A liminar foi deferida pelo relator, Ministro Néri da Silveira, solicitando-se

as informações, que foram prestadas pelo Presidente da República, reportando-se

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a pronunciamentos da AGU e do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA,

sustentando que a propriedade estava desocupada quando da realização da

vistoria; inocorrência de violação ao art. 6.°, § 7.°, da Lei 8.629/93, além do que,

não sendo demonstrada de forma incontroversa a alegada produtividade anterior à

praga, por meio de prova preconstituída, e havendo mesmo “evidências extremes”

de improdutividade, não haveria direito líquido e certo a ser amparado naquela

via; inexistência de projetos técnicos de recuperação das lavouras de cacau, tendo

a vistoria constatado que as referidas lavouras estavam abandonadas; ausência de

impugnação ao laudo no prazo legal; à época da vistoria, não havia dispositivo

legal que impedisse a sua realização em caso de esbulho ou invasão motivada por

conflito agrário, o que igualmente afastaria a presença de direito líquido e certo. O

parecer do Ministério Público foi pelo indeferimento.

Os votos espelham um intenso debate entre os ministros na sessão, onde

voltou à baila o tema da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da MP

2.183-56/2001, em relação à qual o Pleno do Tribunal havia indeferido a liminar

em ADIn cerca de um ano e quatro meses antes. Os ministros Sepúlveda Pertence

e Carlos Britto expressamente mencionaram suas posições pela

inconstitucionalidade da MP, ainda que este último não tenha participado daquele

julgamento. Em se tratando de mandado de segurança, uma das questões a serem

sempre consideradas pelo Tribunal é o que está ou não está provado de plano. No

caso em exame, parte do questionamento sobre a prova residia na não

demonstração, pelos impetrantes, de que a propriedade fosse produtiva antes da

ocupação pelos militantes do MST. A Ministra Ellen Gracie sugeriu que a área

estava assim cadastrada junto ao Incra até a vistoria realizada supostamente

durante a ocupação, no que foi acompanhada pelo Ministro Carlos Velloso. O

próprio Ministro Marco Aurélio, que votara pela inconstitucionalidade da MP

quanto a este aspecto, seguiu a princípio esta orientação, porque considerava que

o registro de produtividade no cadastro do Incra o fazia presumir que, caso não

fosse invadida a fazenda, ela assim permaneceria. Todavia, retificou

posteriormente seu voto, denegando a segurança, em virtude da área diminuta que

teria sido invadida – menos de um hectare de uma área total de cerca de 895 ha, o

que, a seu juízo, não seria suficiente para levar à improdutividade da fazenda

como um todo. O Ministro Joaquim Barbosa também considerou a pequena área

invadida para fins de determinação de seu voto, mas noutro sentido: entendeu ele

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que esta circunstância fazia controvertida a relação causal entre ocupação e

improdutividade, o que tornava a matéria insuscetível de apreciação em mandado

de segurança. O Presidente, Ministro Maurício Corrêa, também entendeu que a

ocupação de área diminuta não é suficiente para levar à improdutividade. Ao final,

a decisão foi pela denegação da segurança por maioria de 06 a 04, vencidos o

relator, Ministro Carlos Velloso, e ainda os Ministros Ellen Gracie, Nelson Jobim

e Celso de Mello, impedido o Ministro Gilmar Mendes.

Esta orientação do STF mudaria parcialmente com o julgamento do MS

24.764/DF, ajuizado em 06/01/2004 e decidido em 06/10/2005, a partir de voto do

Ministro Gilmar Mendes, que abriu a dissidência com o relator, Ministro

Sepúlveda Pertence. O voto deste seguia expressamente a jurisprudência anterior

do Tribunal: a área ocupada seria de aproximadamente 19 ha, parcela ínfima de

uma propriedade com 459,71 ha de área total, anuindo com a invocação, feita nas

informações, dos precedentes do Supremo naquele sentido – MS 23.054, relatado

por ele mesmo e acima analisado, e MS 23.857, de 23/04/2003, relatado pela

Ministra Ellen Gracie; entendia o Ministro Pertence que, para que o impetrante

pudesse invocar as ocupações como escusa para a improdutividade da área,

deveria fazer prova de que o imóvel era produtivo antes delas, para isso invocando

também a jurisprudência do Tribunal (MS 23.857, já mencionado, e ainda o MS

24.494, de 03/03/2004, igualmente relatado pela Ministra Ellen Gracie). Além

disso, o Ministro Sepúlveda Pertence afirmou que os conflitos agrários

significativos tinham se observado em uma das glebas que integram a área, o

Engenho Prado, mas que ela estaria excluída da que foi declarada de interesse

social para fins de reforma agrária. Considerou ainda, em seu voto, que as

informações prestadas pela autoridade coatora põem em dúvida a natureza dos

conflitos possessórios, que seriam, de fato, conflitos com arrendatários, e não com

militantes pela reforma agrária.

O voto do Ministro Gilmar Mendes foi bastante conciso, de pouco mais de

meia página, e não versou os aspectos fáticos ou mesmo jurídicos traçados pelo

relator. Manifestou suas “profundas dúvidas quanto à terra invadida”, aduzindo

que se “tal invasão for na porteira de uma propriedade, compromete radicalmente

a administração do imóvel” (p. 108). Fixou-se no fato de que comumente as

invasões, ainda que ocupando áreas diminutas da propriedade, se localizam “em

áreas onde haja água, passagens, caminhos”. E indagava: “como é que se convive

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com tal estado de coisa? Quem tem um mínimo de experiência sabe! E vinte

hectares em quatrocentos hectares é algo significativo”. E com este fundamento

concedeu a ordem em relação à Gleba Dependência.

Em seguida votou o Ministro Marco Aurélio, que acompanhou a

dissidência, mas considerando a área como única, por ser objeto de cadastro único

junto ao Incra, em que pese o fato das diversas matrículas no registro de imóveis.

Diante do cadastro único, considerou que as vistorias não poderiam ser

parceladas. Aparentemente não insistiu neste entendimento após um breve aparte

do Ministro Sepúlveda Pertence, que esclareceu que até cerca de um ano antes do

decreto, cada uma das glebas se encontrava em mãos de arrendatários diferentes, o

que igualmente caracterizaria a multiplicidade de imóveis e justificaria a vistoria

parcelada. Ainda assim, depois do aparte, considerou que o decreto não poderia

ser considerado válido em função do “esbulho” havido (ao que parece, o núcleo

final de sua fundamentação), razão pela qual acompanhou o Ministro Gilmar

Mendes, concedendo a ordem.

O voto do Ministro Carlos Velloso foi breve, mas permeado de apartes

igualmente breves do relator (que esclareceu se tratarem de cinco glebas, mas que

uma não estava incluída no decreto), do Ministro Marco Aurélio (que versou

sobre outro caso similar, na Bahia, em que o Ministro Carlos Velloso votara como

o Ministro Gilmar Mendes no presente caso), do Ministro Carlos Britto

(indagando sobre a quem beneficiaria a dúvida quanto a se uma parte importante

da fazenda estaria ou não invadida, dadas as limitações próprias do mandado de

segurança), do Ministro Gilmar Mendes (mencionando que havia lei que dizia que

não se deve desapropriar imóvel invadido), e depois uma sucessão de breves

posicionamentos dos Ministros Sepúlveda Pertence, Gilmar Mendes, Carlos

Velloso e Ellen Gracie, com reiterações, a fim de elucidar se se cuidava de

propriedade única ou de glebas diferentes, concluindo finalmente o Ministro

Carlos Velloso que, dada a unicidade do cadastro do Incra, o imóvel deveria ser

considerado como uma unidade, no que destoa do voto condutor do Ministro

Gilmar Mendes, que concedeu a ordem apenas para a gleba Dependência.

O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do Ministro Eros Grau,

que trouxe um voto minucioso de dez páginas em que, naquilo que nos importa

mais diretamente neste momento, considera a área como composta por glebas

autônomas, e suscita o fato de que a impetrante vinha procurando obstar a

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desapropriação de qualquer modo, inclusive “contaminando” todas as áreas a

serem desapropriadas com um conflito possessório com arrendatários de uma área

que nem estava abrangida pelo decreto expropriatório, ou amplificando os efeitos

da invasão de área diminuta do Engenho Dependência (no que reitera a

jurisprudência anterior do STF), além de mencionar outros artifícios processuais

de que teria lançado mão a impetrante para tentar burlar a distribuição por

prevenção. Com isso, votou pela denegação da ordem.

Em seguida votou o Ministro Celso de Mello, acompanhando a dissidência,

em voto de cinco páginas em que sustentou que as invasões comprometem a

possibilidade de manter a produtividade do imóvel, e que tais invasões têm

evidente caráter de ilicitude. Reafirmou a importância da declaração de

constitucionalidade do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, com a redação que lhe foi

conferida pela MP 2.183, nos autos da ADIn 2.213-MC/DF, da qual fora relator.

Logo após, pediu vista a Ministra Ellen Gracie, que presidia. Em seu voto

de vista, apesar de ressalvas pertinentes ao fato de que o STF já tratara a mesma

área como una em outro caso (MS 23.073), considerou que se tratavam de áreas

distintas, em virtude da diversidade de matrículas no registro de imóveis e pelo

fato da exploração econômica da área se fazer por arrendatários distintos e

mediante diversas culturas. Quanto ao impedimento representado pelas invasões,

acompanhou o posicionamento já manifestado pelos Ministros Gilmar Mendes e

Celso de Mello, reiterando a evidência de invasão no Engenho Dependência, com

o que concedeu a ordem para excluir apenas este último dos efeitos do decreto

expropriatório.

Não constam da íntegra do acórdão os votos dos Ministros Joaquim

Barbosa, Cezar Peluso e Carlos Britto, que indeferiam o pedido segundo as atas

do julgamento, com a ressalva deste último, que retificou seu voto logo após o da

Ministra Ellen Gracie, para acompanhar o posicionamento do Ministro Gilmar

Mendes, nos termos do voto da Ministra.

Com este conjunto de fundamentos, a decisão final da Corte, por maioria de

06 a 04, foi pela concessão parcial da segurança, apenas excluindo do âmbito de

incidência do decreto expropriatório o Engenho Dependência, nos termos do voto

do relator designado para o acórdão, Ministro Gilmar Mendes. Houve interposição

de embargos declaratórios em 29/03/2006, pela impetrante, e em 05/04/2006, pela

União, ambos rejeitados em 11/02/2008. Contudo, foram opostos novos embargos

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de declaração em 13/03/2008 e 02/09/2009 (respectivamente, da impetrante e da

União), ainda pendentes de julgamento, conforme consulta ao andamento do

processo feita na página do STF na internet em 11/07/2013100. Seria preciso

aguardar o efetivo trânsito em julgado da decisão para verificar se alguma

modificação em seu alcance irá ocorrer, ainda que não me pareça muito provável

uma modificação significativa em segundos embargos declaratórios em embargos

já rejeitados em acórdão que modifica a jurisprudência do Supremo. O relator

designado foi substituído pela Min. Ellen Gracie, na forma do art. 38 do

Regimento Interno do STF – RISTF, em 02/09/2009, posteriormente mais uma

vez substituída, então pela Min. Rosa Weber, em 19/12/2011 (já fora, portanto, do

corte temporal adotado nesta tese).

Como salientado pelo Ministro Celso de Mello em seu voto, parte da

matéria já fora superada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade

n.° 2.213, de que fora o relator, anteriormente analisada. A partir do julgamento

da ADIn, ficou estabelecida a possibilidade de limitação de desapropriação para

fins de reforma agrária por norma infraconstitucional, ao menos no que tange a

restrições relativas às ocupações de terras. Ao ser julgado o MS 24.764, portanto,

esta questão já estava previamente fixada. O que foi de fato enfrentado neste

julgamento já não era a validade da norma restritiva, mas as eventuais condições

em que a restrição operaria. Mesmo após o indeferimento da liminar na medida

cautelar da ADIn 2.213, o Supremo sempre reconheceu uma margem na qual,

ainda que houvesse ocupação da área a ser desapropriada para fins de reforma

agrária, a regra restritiva seria afastada, implicando a autorização de um juízo de

ponderação ao STF (ou ao Judiciário em geral, poderíamos dizer), a fim de apurar

se havia ou não uma relação de causação entre a ocupação e a improdutividade,

para cuja apuração a dimensão da área ocupada, se grande ou pequena em face do

conjunto da propriedade, jogava um papel relevante. Com o julgamento deste MS,

estabeleceu-se claramente que a dimensão diminuta da área invadida não era

motivo suficiente para afastar-se de plano a restrição: a definição em concreto

sobre a representatividade ou não da área ocupada em face da área total do imóvel

e sua efetiva influência na mensuração da sua produtividade partiria mais da

relevância desta área ocupada para a preservação da produtividade (saber, por

100 http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2192774

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exemplo, se ela inibe ou não o ingresso na fazenda, ou o acesso a fontes de água,

ou a caminhos para escoamento da produção). Mas a mudança então observada

não eliminou o juízo de ponderação que o STF se reservou nesta matéria, ainda

cabendo aos proprietários, segundo a orientação da Corte, a demonstração da

relação de causalidade entre ocupação e improdutividade, além do dever de

comprovar a produtividade anterior à ocupação.

Finalmente, o último dos casos selecionados, o MS 25.124/DF, foi ajuizado

em 16/11/2004 e julgado em 09/04/2008, tendo por relator o Ministro Carlos

Britto. O mandado de segurança foi impetrado contra o decreto expropriatório aos

fundamentos de ausência de notificação prévia da vistoria preliminar de que trata

o § 2.° do art. 2.° da Lei 8.629/93; violação do § 6.° do mesmo art. 2.°, porque o

imóvel estaria invadido pelo MST; violação do contraditório e da ampla defesa

como decorrência da ausência de notificação da reabertura de prazo para se

manifestar sobre o laudo da vistoria; impossibilidade de desapropriação do imóvel

dada a situação de calamidade pública da região; falta da notificação à Federação

da Agricultura exigida pelo art. 2.° do Dec. 2.250/97; violação do § 4.° do art. 2.°

da Lei 8.629/93 porque o Incra, passados seis meses da vistoria do imóvel,

desconsiderou a alteração que se deu nas condições de uso da propriedade; e,

finalmente, não abatimento da área de reserva legal para efeito de cálculo do grau

de utilização da terra.

O Ministro Carlos Britto afastou cinco dos fundamentos, concedendo a

princípio a ordem apenas com base em dois: vício na notificação prévia à vistoria

e vício na notificação da reabertura de prazo para manifestação sobre o laudo da

vistoria. O Ministro Menezes Direito dissentiu, denegando inteiramente a ordem,

por entender que não havia vício no primeiro caso e, no segundo, a ausência de

manifestação sobre o laudo decorria de negligência da parte, não de violação ao

devido processo legal, já que a parte se fazia representar no processo

administrativo por advogado.

O voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que pedira vista após a

divergência, foi no sentido de reafirmar jurisprudência da Corte de que não há

vício na ausência de notificação para vistoria se o perito é acompanhado por

preposto do proprietário e não há posterior impugnação ou recurso quanto ao

laudo, mas concedia, entretanto, a ordem quanto ao segundo vício apontado pelo

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relator, ou seja, a ausência de notificação para falar sobre o laudo – houvera

tentativa da parte, mas inviabilizada por greve dos servidores do Incra.

O relator retificou seu voto, acompanhando o do Ministro Lewandowski

quanto à primeira questão, com o que se acabou por conceder a ordem para

invalidar o decreto presidencial e o processo administrativo de desapropriação

apenas a partir da decisão concessiva de novo prazo para manifestação sobre o

laudo, impondo-se nova notificação pessoal, com isso preservando-se a higidez de

todos os demais atos do processo administrativo, sendo vencido apenas o Ministro

Menezes Direito, que não concedia a ordem.

O curioso deste caso é a existência, no voto do relator, de referência a ofício

da Direção Nacional do MST negando que os ocupantes fossem do Movimento e

informando que se trataria de pessoas a mando do proprietário101. O STF levou em

conta esta informação, juntamente com outras, para o fim de considerar

controvertida a invasão e, assim, afastar a possibilidade de se conceder a ordem

em mandado de segurança com este fundamento.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, selecionei, como representativos

da base de dados total, dois Recursos Especiais, um Agravo Regimental em

Recurso Especial e um Agravo Regimental em Medida Cautelar, julgados entre

2006 e 2010, portanto quando já fixado o entendimento do STF tanto sobre a

constitucionalidade da redação do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, a partir do

indeferimento da liminar na ADIn 2.213, quanto sobre a relação entre ocupação

por militantes sem-terra e dimensão da área invadida sobre os feitos

desapropriatórios, com base no julgamento do MS 24.764/DF. Todas se referem

aos efeitos, sobre o processo de desapropriação, da ocupação pelo MST das áreas

a serem desapropriadas, e abrangem as duas Turmas competentes para este tipo de

processo, a 1.ª e a 2.ª Turmas.

A Medida Cautelar 11.386/PR foi distribuída no STJ em 11/04/2006, tendo

seu seguimento negado pela Ministra Relatora, Denise Arruda, em 17/04/2006.

Em 24/04/2006 foi interposto o Agravo Regimental analisado, julgado pela 1.ª

Turma daquele Tribunal em 04/05/2006. Os proprietários tentavam obstar o curso

do procedimento desapropriatório com a alegação de que seu imóvel estava

101 “... a Direção Nacional do MST encaminhou ofício à Procuradoria Federal do INCRA em Sergipe, afirmando que, segundo declaração dos próprios ocupantes – que, a seu turno, não integravam o MST -, a invasão teria ocorrido a mando do fazendeiro (fls. 309)”. (p. 122)

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ocupado por cerca de trezentas pessoas ligadas ao MST desde 1999. Eles já teriam

proposto ação de reintegração de posse, onde obtiveram liminar, mas esta decisão

não teria sido cumprida. Ingressaram, então, em 2006 com esta medida cautelar,

alegando ser produtivo o imóvel, o que o tornaria impassível de desapropriação

para fins de reforma agrária, em seguida agravando regimentalmente da decisão

que indeferiu a liminar e negou seguimento à cautelar. O tribunal fundou-se na

ausência de requisitos da cautelar em sua decisão – daí a referência aos mais de

sete anos de ocupação pelo MST constante da ementa102 –, indicando que mesmo

a eventual suspensão do processo desapropriatório não alteraria a existente

situação de fato de perda da posse. A antiguidade da ocupação afastava o perigo

na demora como requisito para concessão da cautelar. Além disso, o STJ

reconheceu limites à apreciação da produtividade pelo Tribunal, com base na

Súmula 7 de sua jurisprudência103, enfraquecendo a fumaça do bom direito. Havia

uma alegação de nulidade de laudo pericial que era importante para a decisão, mas

irrelevante para o objeto desta tese.

Esta decisão parecia a princípio contrariar o entendimento dominante no

STJ (que em 2008 viria a ser consolidado na Súmula 354) de divergir do Supremo

quanto aos efeitos da ocupação da área a ser desapropriada para fins de reforma

agrária, ao reconhecer a situação de fato consistente na ocupação de mais de sete

anos pelo MST. Entretanto, a decisão se refere exclusivamente às condições para

concessão de medida cautelar, reconhecendo que não pode haver requisito

essencial da medida, ou seja, o perigo na demora ou risco de perecimento de

direito, se o alegado esbulho durava já à época da propositura da medida mais de

sete anos, e se mesmo a obtenção, pelos proprietários, de liminar de reintegração

de posse não fora suficiente para superar aquela situação. Trata-se, portanto, de

decisão que se orienta mais para a mensuração dos efeitos práticos da decisão

processual do que qualquer dissidência quanto à orientação dominante da Corte.

Apesar disso, a apreciação do Tribunal sobre a ocupação é bastante

negativa, especialmente considerando-se a existência de decisão judicial de

102 “5. Inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação que justifique a suspensão do procedimento administrativo de desapropriação, tendo em vista que a perda da posse, decorrente da ação de membros do MST, já perdura por tempo superior a sete anos” (ementa disponível em http://tinyurl.com/kwt83vl, acesso em 19/07/2013). 103 Vide p. 25, nota 27.

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reintegração de posse não cumprida. Assim manifestou-se a Relatora, a respeito,

em seu voto:

Não resta dúvida de que o descumprimento de uma ordem judicial, além de constituir crime tipificado no Código Penal, atenta contra o Estado Democrático de Direito e o princípio constitucional da separação dos poderes. A questão, todavia, deve ser resolvida nos autos da ação possessória, não cabendo ser analisada neste momento. Inexiste, portanto, a iminência de dano irreparável ou de difícil reparação que justifique a suspensão do procedimento administrativo anteriormente mencionado, tendo em vista que a perda da posse, decorrente da ação de membros do MST, já perdura por tempo superior a sete anos. Daí a inexistência do periculum in mora . Eventuais danos, a esta altura, já estão consolidados, sendo improvável imaginar-se que a suspensão do procedimento administrativo de desapropriação implicaria o restabelecimento do imóvel ao estado em que se encontrava antes da ocupação. Na hipótese de provimento do recurso especial, ainda que processado somente com efeito devolutivo, as dificuldades para o restabelecimento do status quo ante serão idênticas às enfrentadas acaso deferido o provimento de natureza cautelar ora pleiteado. Fica patente, desse modo, que a continuidade do procedimento administrativo, culminando até mesmo na expedição do decreto expropriatório, não traz qualquer prejuízo mais extenso do que os já definitivamente suportados pelos agravantes. (p. 02104)

A Turma negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto da

Relatora, por unanimidade. Votaram os Ministros José Delgado, Luiz Fux e Teori

Zavascki, estes dois últimos, hoje no STF.

Ainda na 1.ª Turma e sob a mesma relatoria, o Recurso Especial – REsp

819426/GO, ajuizado em 23/02/2006, foi julgado em 15/05/2007. Trata-se de

recurso interposto pelo Incra contra acórdão do TRF da 1.ª Região que fora assim

ementado:

ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL. REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL INVADIDO. IMPOSSIBILIDADE DE DESAPROPRIAÇÃO. CARÊNCIA DE AÇÃO. 1. O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações. § 6º do art. 2º da Lei 8.629/93, com a redação da Medida Provisória 2.183-56/01.

104 A numeração de páginas indicada nas citações das decisões do STJ analisadas nesta tese seguem a paginação do arquivo contendo o inteiro teor do acórdão disponível na página do tribunal na internet. A julgar pela paginação que considera apenas o arquivo, presume-se que o STJ utilize critério inteiramente diverso do STF para este fim (vide nota 95 supra).

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2. Comprovada a invasão da propriedade do expropriado impossível se torna a desapropriação do imóvel ante a vedação legal. 3. Apelação e remessa oficial não providas.

O Incra apontava violação do art. 2.º, §§ 1.º e 6.º, da Lei 8.629/93, e

afirmava que: (a) o imóvel rural fora invadido por pessoas ligadas ao Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST no dia 20 de maio de 2003, quando já

legalmente classificado como propriedade improdutiva, não-cumpridora da sua

função social, época, inclusive, em que o decreto expropriatório já estava editado;

(b) o esbulho possessório não influenciou e nem implicou alterações da situação

agronômica do imóvel para sua classificação como propriedade improdutiva; (c) a

vedação do § 6.º do art. 2.º da Lei 8.629/93 alcança apenas as hipóteses em que a

vistoria administrativa ainda não tenha sido realizada, ou quando feitos os

trabalhos durante ou após a ocupação.

O Ministério Público Federal opinou pelo não-conhecimento do recurso e,

se conhecido, pelo seu não provimento.

Este é um dos cinco precedentes citados na Súmula 354 do STJ105. Segundo

o voto da Relatora, a redação do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, tal como

determinada pela MP 2.027-38, de 4 de maio de 2000, ainda poderia ensejar

dúvidas quanto à possibilidade de desapropriação em casos de ocupações

posteriores à vistoria, já que fixava que “o imóvel rural objeto de esbulho

possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter

coletivo não seria vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do imóvel” (p.

04). Mas depois da edição da MP 2.109-52, de 24 de maio de 2001, reeditada

como MP 2.183-56/2001, a redação da aludida regra mudou, abrangendo ainda a

avaliação e a desapropriação nos dois anos seguintes ao esbulho ou à invasão, ou

no dobro desse prazo, em caso de reincidência. Este voto polemiza diretamente

com as decisões do STF, que afirma explicitamente não desconhecer, mas,

105 Súmula 354 do STJ: “A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária”. Esta súmula foi aprovada pela 1.ª Seção do STJ em 25/06/2008. Além do REsp 819426 GO, aqui analisado, os outros precedentes citados são REsp 938895 PA 2007/0072231-8 (Decisão:25/03/2008, DJe DATA:24/04/2008, LEXSTJ VOL.:00226 PG:00175, RSSTJ VOL.:00031 PG:00072), REsp 893871 MG 2006/0220274-8 (Decisão:11/03/2008, DJe DATA:03/04/2008, RSSTJ VOL.:00031 PG:00063), REsp 964120 DF 2007/0149852-8 (Decisão:19/02/2008, DJe DATA:07/03/2008, LEXSTJ VOL.:00224 PG:00192, RSSTJ VOL.:00031 PG:00079), REsp 590297 MT 2003/0149327-9 (Decisão:26/06/2007, DJ DATA:03/08/2007 PG:00324, RSSTJ VOL.:00031 PG:00055). Disponível em http://tinyurl.com/pdsplc4, acesso em 29/05/2013.

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diante da clareza da aludida norma, proibindo a vistoria, a avaliação ou a desapropriação nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo em caso de reincidência, não se pode interpretá-la de outra forma senão aquela que constitui a verdadeira vontade da lei, destinada a coibir as reiteradas invasões da propriedade alheia. (p. 05)

A Ministra cita ainda passagem do voto do Ministro Celso de Mello, do

STF, ao relatar a MC na ADIn 2.213-0/DF, para quem a reforma agrária “supõe,

para regularmente efetivar-se, o estrito cumprimento das formas e dos requisitos

previstos nas leis e na Constituição da República”, concluindo que a ocupação

poderia inviabilizar posterior discussão sobre a produtividade ou improdutividade

do imóvel por parte do proprietário em outra via – em ação ordinária, por

exemplo. A Turma negou provimento ao recurso, por unanimidade, com o voto da

Ministra Relatora, Denise Arruda, e ainda dos Ministros José Delgado, Francisco

Falcão, Luiz Fux e Teori Zavascki.

Os outros dois casos selecionados dentre os julgados pelo STJ foram

decididos pela sua 2.ª Turma, ambos relatados pelo Ministro Castro Meira. O

primeiro deles é o REsp 934546/RJ, ajuizado em 30/03/2007 e julgado em

19/08/2008. O recurso foi interposto de decisão do TRF da 2.ª Região que

acompanhava a jurisprudência do STF, com a qual a do STJ já colidia, e que

estava assim ementado:

DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL, PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA – ESBULHO PRATICADO POR INTEGRANTES DO MST APÓS A VISTORIA DA FAZENDA – INAPLICABILIDADE DO ART. 2º, § 6º, DA LEI Nº 8.629/93. Consoante jurisprudência do Supremo, a vedação prevista no art. 2º, § 6º, da Lei nº 8.269/93 ‘alcança apenas as hipóteses em que a vistoria ainda não tenha sido realizada ou quando feitos os trabalhos durante ou após a ocupação’ [24.136-5/DF, STF, rel. Min. Maurício Correa, DJ. 08.11.2002]. Caso em que o imóvel foi vistoriado pelo Incra em dezembro de 2004, e sua invasão ocorreu nos meses de outubro e dezembro de 2005, o que afirma a aplicação do citado entendimento pretoriano, impossibilitando liminar que paralisa o procedimento expropriatório. Agravo interno desprovido. O recorrente alegou, dentre outras coisas, que teria havido apenas uma

vistoria prévia, faltando a definitiva, com a avaliação do imóvel e das construções.

O parecer do MPF foi pelo improvimento do recurso, tanto que sua

fundamentação foi transcrita como razão de decidir do Relator.

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Esta decisão é particularmente curiosa porque proferida por unanimidade

quase dois meses depois da vigência da Súmula 354 do STJ: a Súmula é de

25/06/2008, enquanto que o julgamento deste REsp se deu em 19/08/2008. Apesar

de referir-se diretamente à MP 2.183-56/2001, ou seja, sendo bem posterior à

modificação da redação da regra que proíbe vistorias, avaliação e desapropriação

da área invadida nos dois anos seguintes ao esbulho ou à invasão, ou no dobro

desse prazo, em caso de reincidência, a decisão neste REsp segue a mesma

orientação do STF, no sentido de que somente a ocupação anterior à vistoria e de

área significativa, capaz de alterar a produtividade do imóvel, impede a

desapropriação.

Os Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques e Eliana

Calmon votaram com o Relator. Ausente, justificadamente, o Ministro Humberto

Martins.

O mesmo não se passou com o Agravo Regimental no REsp 1055228/PA,

de 13/05/2008, julgado em 04/03/2010. O regimental foi interposto em REsp de

acórdão originalmente proferido pelo TRF da 1.ª Região, que manteve sentença

aplicando estritamente o art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, vedando a vistoria, a

avaliação ou a desapropriação em áreas esbulhadas ou invadidas,

independentemente do tamanho de tal área. O REsp não havia sido conhecido,

com base na Súmula 211 do STJ106, porque o TRF não teria conhecido dos

declaratórios sobre a pretensa omissão quanto a dispositivos legais considerados

pelo agravante essenciais para o deslinde da questão. Foi então interposto o

agravo regimental, ao argumento de que houve o prequestionamento da matéria,

pois a questão da invasão fora tratada pelo Tribunal de origem, com o que haveria

omissão, visto que o acórdão simplesmente rejeitou os embargos de declaração

interpostos. O agravante sustentava que o esbulho somente suspenderia o

procedimento administrativo de desapropriação quando a ação descaracterizasse o

imóvel a ponto de alterar a sua classificação ou desvalorizá-lo, conforme julgados

do STF.

Entretanto, o regimental foi rejeitado tanto por razões formais quanto de

conteúdo. No que respeita ao cerne da polêmica – a divergência entre as

106 Súmula 211 do STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”.

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orientações do STJ e do STF –, reafirma a interpretação consolidada na Súmula

354 do STJ, cita ementa de decisão então recente do STF (MS 25283, Rel. Min.

Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe 05/03/2009), em que a Suprema Corte teria

reafirmado sua posição em sentido distinto da do STJ, mas ressalta que, ainda que

o entendimento do STF fosse seguido, seria inaplicável ao caso, dado que a

invasão, no caso concreto, antecedeu à vistoria.

A decisão aqui, mais uma vez por unanimidade, foi no sentido de negar

provimento ao agravo regimental nos termos do voto do Ministro Relator, que foi

acompanhado pelos Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Mauro

Campbell Marques e Eliana Calmon.

Da análise de todas estas decisões, uma primeira conclusão inafastável é a

profunda incongruência sistêmica decorrente da fixação, nas duas mais altas

cortes do País, de entendimentos diametralmente opostos sobre a mesma questão

jurídica – o alcance da limitação à desapropriação para fins de reforma agrária de

área objeto de ocupação coletiva por movimento que a defenda. A permanência

desta inconsistência reside basicamente no fato de que ao STF compete a

uniformização da interpretação sobre as normas constitucionais, ao passo que ao

STJ cabe a uniformização da interpretação sobre a lei federal. Caso a liminar na

cautelar na ADIn 2.213 houvesse sido deferida, ou caso a ação direta venha a ser

julgada procedente no mérito, declarando a inconstitucionalidade da regra prevista

no art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, não restaria, ou restará, ao STJ nenhuma outra

alternativa que não acatar a decisão do Supremo em matéria constitucional.

Entretanto, como a liminar foi indeferida, continua aplicável a norma, cuja

interpretação cabe, em última instância, ao STJ.

Ocorre que o STF não é uma Corte Constitucional em sentido europeu, mas

uma corte com competência constitucional. Cabe a ela, além do julgamento de

Recursos Extraordinários ou ações de controle concentrado de

constitucionalidade, ainda o julgamento de várias hipóteses de demandas

concretas como órgão originário, sendo este o caso dos mandados de segurança

contra ato do Presidente da República (art. 102, I, “d”, da Constituição), como o

são todos os decretos desapropriatórios para fins de reforma agrária. E nestes

casos, evidentemente, o Supremo não apenas interpreta ou aplica a Constituição,

mas também as leis, averiguando a validade formal do ato presidencial para

preservá-lo, pela denegação da segurança, ou invalidá-lo, com sua concessão. E

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nesta atuação, sua jurisprudência pode confrontar a de outros tribunais, inclusive a

do STJ.

A meu ver, esta dissintonia entre as duas mais altas cortes do País não tem a

princípio solução formal: a reclamação para preservação da competência e

garantia da autoridade das decisões do Supremo (art. 102, I, “l”, da Constituição)

não pode evidentemente alargar-se a ponto de suprimir a competência

constitucionalmente cometida ao STJ (art. 105, III, da Constituição) – que,

portanto, não invade qualquer competência, apenas exerce a sua; e a Constituição

não prevê hipótese de qualquer incidente de uniformização entre os dois tribunais,

nem cabe, como é evidente, Recurso Extraordinário sobre matéria não

constitucional, com exceção da hipótese prevista no art. 102, III, “d”, da

Constituição, mas que não tem qualquer aplicação ao caso em exame107. De modo

que o antagonismo entre as decisões do STF e do STJ quanto à extensão do art.

2.°, § 6.°, da Lei 8.629 somente se pode superar, s.m.j., ou pela modificação da

jurisprudência de algum deles, ou pela procedência da ADIn 2.213, que

reafirmaria em abstrato a jurisprudência já consolidada do Supremo sobre a

107 Diz a Constituição: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...)

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional

nº 45, de 2004)”

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matéria108, ou por uma profunda alteração constitucional que transformasse o STF

em uma Corte Constitucional em sentido estrito, de modelo europeu109.

No que respeita ao Superior Tribunal de Justiça, ainda que quanto ao

resultado prático tenhamos dentre os casos listados um aparente empate de dois

acórdãos contra dois, isto é, dois reconhecendo a limitação legal à desapropriação

e dois aparentemente não, as condições fáticas e as razões de cada decisão são

muito distintas entre si. No primeiro caso, a validade da regra limitadora é de fato

reafirmada, e a apreciação da ocupação, francamente negativa, mas a decisão se

profere em desfavor dos autores por uma combinação de ausência de duas

condições legais processuais para o deferimento da medida: a falta de perigo na

demora ante uma ocupação de mais de sete anos, e o que parece ser quase a

ausência de uma condição da ação, o interesse processual, que via de regra se

traduz na utilidade e na necessidade do processo para a parte que demanda. É o

que de outra forma diz a Ministra Relatora ao atestar em seu voto que o

deferimento da cautelar não modificaria a situação de fato já consolidada há

vários anos, ainda mais quando sequer a liminar em reintegratória de posse o fez.

Vale dizer, a medida não guardava utilidade prática, o que levaria à falta de

interesse processual – e, a rigor, à sua extinção sem julgamento do mérito, daí

108 Outras alternativas possíveis como, por exemplo, a edição de uma súmula vinculante sobre o tema, parecem-me não responder adequadamente à questão: ainda que a súmula vinculante tenha por objeto possível a interpretação de normas determinadas sobre as quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários, o que seria o caso, sua adoção pressuporia ainda a existência de reiteradas decisões sobre matéria constitucional no âmbito do STF, de modo que, diante do indeferimento tout court e sem ressalvas da cautelar na ADIn acerca da norma em questão, sua utilização ainda me pareceria inconsistente, salvo se compreendêssemos todos os casos de mandados de segurança referidos neste trabalho como reiteradas decisões em matéria constitucional. Ainda assim, todavia, a repercussão coerente deste hipotético posicionamento da maioria do STF no julgamento do mérito da ADIn 2.213 deveria implicar o uso da interpretação conforme a Constituição daquele dispositivo, excluindo de seu alcance interpretações que não se coadunassem com a prevalecente no Supremo Tribunal, o que nos levaria finalmente a um julgamento de procedência parcial da ADIn - hipótese que de qualquer maneira nos conduziria à segunda alternativa por mim aventada no texto. Agradeço, de qualquer sorte, as problematizações sugeridas pelo professor Fábio Carvalho Leite sobre a existência ou não de alternativas ao quadro que visualizei. Sobre interpretação conforme a Constituição, ver nota 112 abaixo. 109 Porque então ele, ao menos em tese, não mais julgaria ações originárias em que aplicasse a lei. Uma tal alteração, entretanto, ensejaria enormes modificações e acomodações institucionais, implicando, também ao menos em tese, o fim do sistema misto de controle de constitucionalidade das leis hoje em vigor no Brasil, com a adoção de um sistema puramente concentrado; a transferência de toda competência sobre matéria não estritamente constitucional ao STJ; e a necessidade de abertura de um debate nacional quanto à revisão dos mecanismos de composição do Supremo, inclusive quanto à vitaliciedade de seus membros.

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porque, me parece, a Relatora lhe havia negado seguimento com base no art. 34,

XVIII, do Regimento Interno do STJ – RISTJ110.

É apenas no REsp 934546/RJ que vemos uma coincidência propriamente

dita entre a orientação da 2.ª Turma do STJ e a do Pleno do Supremo, aquele

efetivamente antepondo à aplicação do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93 condições e

limitações que este igualmente erige, a saber, que a ocupação seja significativa e

anterior à vistoria, de modo a comprometer ou a própria produtividade da fazenda,

ou ao menos a capacidade da vistoria medi-la. Como diz o Relator, Ministro

Castro Meira:

Concluo, apenas, com os seguintes dizeres:

a) o esbulho possessório que impede a desapropriação art. 2.º, § 6.º, da Lei n.º 8.629/93 [sic], na redação dada pela Medida Provisória n.º 2.183/01, deve ser significativo e anterior à vistoria do imóvel, a ponto de alterar os graus de utilização da terra e de eficiência em sua exploração, comprometendo os índices fixados em lei; b) se o INCRA já havia vistoriado o imóvel rural, em data anterior à ocupação por parte dos integrantes do MST, conforme conclusão descrita no laudo Agronômico de Fiscalização, o qual afirmava que se tratava de ‘grande propriedade improdutiva’, é suscetível, portanto, de desapropriação pretendida. (p. 03)

A única possível diferença desta com a posição do STF é que, como já

vimos, este Tribunal, após o julgamento do Mandado de Segurança 24.764, em

2005, deixou de considerar a dimensão da área como elemento em si suficiente

para definir se a ocupação afetou ou não a produtividade do imóvel – e digo

“possível diferença” porque a decisão do STJ em comento, que é de 2008, não

evidencia se por “significativo” refere-se à dimensão da área ocupada ou à sua

relevância sobre a produção do imóvel, como ficara assentado para o STF.

As outras duas decisões selecionadas determinam a aplicação da norma

limitadora das ocupações e reafirmam a orientação do STJ como divergente

daquela seguida pelo STF. O REsp 819426/GO, como vimos, é um dos

precedentes da Corte referidos na edição da Súmula 354 do STJ, ao passo que o

REsp 1055228/PA, julgado em 2010, lhe é quase dois anos posterior. A posição

do STJ é uma posição não apenas de aplicação da lei tout court, mas de

reconhecimento da legitimidade da imposição da regra restritiva. Ele não faz

110 RISTJ: “Art. 34. São atribuições do relator: (...) XVIII - negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente, contrário a súmula do Tribunal, ou quando for evidente a incompetência deste.”

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qualquer acomodação interpretativa na aplicação da Lei, por um lado, e reconhece

nela a legítima intenção de coibir as ocupações de terra, por outro, o que

transparece nitidamente do voto da Ministra Denise Arruda no REsp 819426/GO,

quando afirma que não se poderia interpretar a lei senão conforme aquilo que, a

seu ver, constitui sua verdadeira vontade ou destinação social, “coibir as reiteradas

invasões da propriedade alheia”; ao fazê-lo, evidentemente entende, ainda que de

modo implícito, ser este fim social da lei juridicamente válido e legítimo.

Não à toa se trata de um dos precedentes citados pela Súmula 354: esta

orientação é a que mais claramente se mostra comprometida com o teor da

Súmula, já que, para ela, “a invasão do imóvel é causa de suspensão do processo

expropriatório para fins de reforma agrária”, orientação que, como vimos,

contrasta frontalmente com a do STF. É, portanto, interessante notar que neste seu

voto de maio de 2007 a Ministra Relatora tenha inserido citação de passagem do

voto do Ministro Celso de Mello, de abril de 2002, na condução do indeferimento

da liminar na MC na ADIn 2.213. É que os membros do STJ, cuja interpretação

divergia da do STF, evidentemente conheciam os termos desta divergência que já

se estendia por mais de cinco anos, de tal sorte que a presença da menção ao voto

do Relator da ADIn no Supremo parece invocar como razão de decidir contra o

Supremo a sua própria decisão anterior. Por outro lado, o recurso à citação de

autoridade, já que não calcada em uma autoridade formal decorrente de uma

necessária prevalência sistêmica do entendimento do STF sobre o do STJ, parece

aqui equivaler a um “pedido de licença” para a divergência, uma espécie de “data

vênia” argumentativo de que se vale a jurisprudência dissonante para como que

sustentar que “sim, divirjo, ma non troppo, faço-o com base em outras decisões

suas”.

Provavelmente porque já calcado na Súmula 354, talvez também porque

sustentara posição divergente em outras oportunidades, como visto acima, o

Relator do Agravo Regimental no REsp 1055228/PA o fez diferentemente,

reafirmando a jurisprudência consolidada do STJ e expressa na sua Súmula de

Jurisprudência contra decisões inclusive então recentes do STF, como o MS

25283 (Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, Dje 05/03/2009). A

deferência do Relator para com a posição do Supremo expressou-se noutro

sentido, mas também está presente em sua fundamentação, quando sustenta que

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mesmo que o STJ seguisse a orientação do STF, no caso então em exame ela seria

inaplicável, já que a invasão antecedera à vistoria do Incra.

Em relação ao Supremo, vimos um conjunto de sete decisões tomadas pelo

Tribunal entre 2000 e 2008, aí incluídas aquelas duas que teriam a princípio maior

abrangência do que as demais, a ADIn 2.213 e o MS 24.764. Duas foram julgadas

antes da apreciação da liminar na ADIn 2.213 e quatro depois; usando-se como

referência o MS 24.764, cinco lhe antecedem e uma lhe sucede. Elas sem dúvida

formam um interessante mosaico do posicionamento desta Corte quanto ao tema

das ocupações do MST e seus efeitos sobre os processos de desapropriação.

Entretanto, apesar da constitucionalidade da norma ter sido examinada em 2002,

ainda que apenas liminarmente, em acórdão de 171 páginas, a única modificação

sensível na jurisprudência do Supremo a respeito em todo o período encontra-se

no MS 24.764, descartando a circunstância da área ocupada ser pequena em

relação ao total como critério suficiente para determinar se a ocupação obsta ou

não a desapropriação. Antes ou depois da decisão na MC na ADIn 2.213,

nenhuma modificação de nota ocorreu no entendimento do STF sobre a matéria,

seja nos casos aqui analisados, seja nos demais que compõem a base de dados

utilizada nesta tese111. Como esta jurisprudência implica o estabelecimento prático

de limites à aplicação daquela norma fora dos que ela expressamente contém,

111 Vejam-se, por exemplo, MS 22965, Relator Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 10/02/2000, DJ 31-08-2001 PP-00037 EMENT VOL-02041-02 PP-00363, disponível em http://tinyurl.com/p4xacpk; MS 23563, Relator Min. ILMAR GALVÃO, Relator p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/05/2000, DJ 27-02-2004 PP-00021 EMENT VOL-02141-04 PP-00709, disponível em http://tinyurl.com/olzvut7; MS 23260, Relator Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 22/08/2001, DJ 11-10-2001 PP-00005 EMENT VOL-02047-02 PP-00346, disponível em http://tinyurl.com/o8qe7wh; MS 23018, Relator Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 18/10/2001, DJ 07-06-2002 PP-00083 EMENT VOL-02072-02 PP-00288 RTJ VOL-00183-02 PP-00607, disponível em http://tinyurl.com/q6kfx2r; MS 23759, Relator Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 17/04/2002, DJ 22-08-2003 PP-00021 EMENT VOL-02120-35 PP-07156, disponível em http://tinyurl.com/onkj532; MS 23738, Relatora Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2002, DJ 28-06-2002 PP-00089 EMENT VOL-02075-03 PP-00580, disponível em http://tinyurl.com/p6f83bs; MS 24984, Relator Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2010, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-01 PP-00172 RDDP n. 88, 2010, p. 135-137, disponível em http://tinyurl.com/p5xlvdy; MS 25391, Relator Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 12/05/2010, DJe-185 DIVULG 30-09-2010 PUBLIC 01-10-2010 EMENT VOL-02417-01 PP-00102 RTJ VOL-00218- PP-00187 RDDP n. 93, 2010, p. 134-143, disponível em http://tinyurl.com/ohopltk. Aliás, o mesmo pode ser dito inclusive sobre decisões fora do período aqui pesquisado, como indica o MS 24924, ainda que por maioria, Relator Min. MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2011, DJe-211 DIVULG 04-11-2011 PUBLIC 07-11-2011 EMENT VOL-02620-01 PP-0000, disponível em http://tinyurl.com/o5jpttt. Todos os acessos em 29/05/2013.

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resta sem dúvida intrigante o indeferimento daquela liminar, e mais ainda sua

absoluta irrelevância para a fixação e manutenção do entendimento do

Supremo112.

Mesmo assim, dada a natureza do debate sobre a constitucionalidade em

tese de uma lei ou dispositivo de lei, é aquele o acórdão mais extenso dentre os

analisados, e o que mais amplamente espelha o conjunto de aspectos considerados

pelo Tribunal em suas decisões, razões pelas quais me parece inafastável

examiná-lo mais detidamente.

As eloquentes passagens do voto do relator da medida cautelar na ADIn

2.213, Ministro Celso de Mello, trazem os fundamentos principais da decisão no

aspecto particular que nos interessa aqui: caracterização dos atos de ocupação por

movimentos sociais como esbulho possessório; o caráter ilegal, tanto cível quanto

criminalmente, deste tipo de ato (e mesmo sua “natureza predatória”, segundo seu

aparte ao voto do Ministro Ilmar Galvão, como transcrito); a defesa do império da

lei e da preservação da ordem jurídica; e o fato de não ser lícito ao Estado aceitar,

passivamente, a imposição, por qualquer entidade ou movimento social

organizado, de uma agenda político-social, quando caracterizada por práticas

ilegítimas de invasão de propriedades rurais, em desafio inaceitável à integridade

e à autoridade da ordem jurídica. De variadas formas, estes temas, que foram

concentrados no julgamento da ADIn, visitam as decisões do STF (e mesmo do

112 Uma hipótese de leitura deste comportamento poderia ser a de que o STF na prática estivesse realizando uma interpretação conforme à Constituição dos dispositivos impugnados, pois que, sem redução de texto, estabeleceu as restrições que entendeu passíveis de compatibilizar o texto legal com o constitucional – no caso, fixando que as ocupações apenas fazem incidir as normas limitadoras tratadas no dispositivo legal quando se refiram a área significativa da propriedade, antecedam a vistoria do Incra e impliquem a improdutividade do imóvel ou a inviabilidade de sua mensuração por aquela vistoria. No entanto, militam contra esta observação a absoluta ausência de referência à interpretação conforme à Constituição tanto dos debates ocorridos no julgamento da cautelar na ADIn 2.213, como vimos, onde a controvérsia fixou-se na constitucionalidade ou não da norma impugnada, quanto nos casos julgados posteriormente; além disso, a interpretação conforme assemelha-se a modalidade de declaração de nulidade sem redução de texto e, segundo Luis Roberto Barroso (1998: 176-181), esta semelhança tem se expressado na jurisprudência do Supremo pelo menos desde o julgamento da ADIn 581, em 12/08/1992, como declaração de procedência em parte das ações diretas de inconstitucionalidade que a exercitam, e não de improcedência (o que, se fosse o caso, deveria ter levado, na hipótese concreta da cautelar na ADIn 2.213, a uma concessão parcial da liminar, não a seu indeferimento); finalmente, Gilmar Mendes (1996: 271) sustenta somente ser admissível o uso desta técnica quando não houver “violência contra a expressão literal do texto e não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador”, ainda que ele mesmo ressalve que a prática tem demonstrado que o Supremo não investiga muito a vontade do legislador se a interpretação conforme se mostra viável dentro da literalidade do texto. Sobre interpretação conforme à Constituição, dentre outros, ver os autores citados, ambos atualmente Ministros do Supremo, Barroso, 1998: 174-181, e Mendes, 1996: 268-277.

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STJ) a respeito – ainda que, como vimos, ele fundamentalmente leve em

consideração outros aspectos, como a efetiva relação causal entre ocupação e

improdutividade, ao apreciar cada caso. De qualquer sorte, eles merecem ser visto

com mais atenção.

Comecemos, então, pela noção de esbulho, que é um conceito jurídico – e

como muito bem lembrado pelo Ministro Celso de Mello em seu longo voto, um

conceito jurídico que se prende a um ilícito civil e a um ilícito penal. Não são,

entretanto, comuns os limites dos conceitos de esbulho nestas duas esferas

jurídicas.

De Plácido e Silva (1991: 186), em seu conhecido Vocabulário Jurídico,

conceitua esbulho e seus correlatos da seguinte forma:

ESBULHADO. Também se diz espoliado, do verbo latino spoliare (despojar), indicando a coisa que é esbulhada, ou a pessoa, que sofre um esbulho. Refere-se, assim, àquilo que se pilhou ou despojou, ou à pessoa que sofreu uma pilhagem ou espoliação em coisas de sua posse ou de seu patrimônio. O esbulhado difere do turbado. Naquele, já a violência sobre a posse da coisa está efetiva: ocorreu a espoliação, efetivando-se a retirada da coisa da posse da pessoa que a tinha consigo. Turbado tem sentido apenas de ameaçado de esbulho. É empregado também como substantivo, significando a própria pessoa esbulhada: o esbulhado, ou aquele que se privou da coisa contra sua própria vontade. O que caracteriza a violência, no esbulho. ESBULHADOR. É a pessoa que pratica o esbulho ou, por ato seu, vem privar outrem daquilo que lhe pertence ou está em sua posse, sem que lhe assista direito ou autoridade legítima para a execução de semelhante ato. ESBULHO. Derivado do latim spolium, de spoliare (espoliar, despojar), foi admitido na terminologia jurídica com o sentido próprio de ato violento, em virtude do qual é uma pessoa despojada (desapossada), contra sua vontade, daquilo que lhe pertence ou está em sua posse, sem que assista ao violentador qualquer direito ou autoridade, com que possa justificar o seu ato. Diz-se, também, espoliação, distinguindo-se, no entanto, de espólio, com a mesma origem etimológica, mas de sentido diferente. Na técnica jurídica, o esbulho se mostra uma usurpação. E a lei assegura ao usurpado ou esbulhado o direito imediato de defender a sua posse, mediante a ação, que se diz de esbulho, de reintegração ou força espoliativa, a qual tem por objetivo integrá-lo na posse, de que foi violentamente privado. Como se pode perceber, tratam-se de definições mais restritas à área cível.

Náufel (2008), por sua vez, assim cuida dos mesmos conceitos, abrangendo

também a área penal:

ESBULHADO (Dir. Civ.). Aquele que sofre esbulho. Privado da posse. Espoliado.

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ESBULHADOR (Dir. Civ.). O autor do esbulho. ESBULHAR (Dir. Civ.). Privar alguém da posse de alguma coisa, com o emprego de violência por meio de ato clandestino, ou ainda, de abuso de confiança. ESBULHO (Dir. Civ.). “É o ato em que o possuidor é privado da posse violentamente, clandestinamente, ou por abuso de confiança” (Clóvis Beviláqua). Todo aquele que sofre esbulho na sua posse pode ser nela restituído (CC, art. 1.210). O possuidor esbulhado pode restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo, mas os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à restituição da posse (art. cit., § 1º). Não obsta a reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa (§ 2º). O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização, contra o terceiro, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era (art. 1.212). Essas regras não se aplicam às servidões não aparentes, salvo quando os respectivos títulos provierem do possuidor do prédio serviente, ou daqueles de quem este o houve (art. 1.213). V. Ação de reintegração na posse. ESBULHO JUDICIAL (Dir. Proc. Civ.). “É o que faz o juiz quando tira de alguém a posse de quaisquer bens, com preterição de fórmulas essenciais do processo – juris ordine non servato.” ESBULHO POSSESSÓRIO (Dir. Pen.). Constitui crime invadir, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório. Pena: detenção, de um a seis meses, e multa. Constitui crime de ação pública, punido com a pena de detenção de 6 meses a 2 anos e multa de 5 a 20 salários mínimos, invadir alguém, ou ocupar, com o fim de esbulho possessório, terreno ou unidade residencial, construída ou em construção. Se o agente usa de violência, incorre também nas penas a esta cominada, mas é isento da pena de esbulho o agente que, espontaneamente, desocupa o imóvel antes de qualquer medida coativa. (Lei nº 5.741, de 01.12.1971, art. 9º e seus §§.) Se o agente usa de violência, incorre também na pena a esta cominada. (Cód. Pen., art. 161, § 1.°, n.° II e § 2.°)

O traço comum a estas definições é a noção de espoliação: para que haja o

ilícito civil de esbulho, alguém deve ser privado injusta e violenta ou

clandestinamente, ou com abuso de confiança, de sua posse. Para que haja o

ilícito penal de esbulho, é preciso que haja não apenas clandestinidade ou abuso

de confiança, mas violência, ou grave ameaça, ou que seja praticado por no

mínimo quatro pessoas (o agente e o concurso de mais de duas); e que a

finalidade seja o esbulho possessório. Vale aqui a menção ao tipo penal:

Alteração de limites Art. 161 – Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, e multa. § 1º - Na mesma pena incorre quem: Usurpação de águas

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I – desvia ou represa, em proveito próprio ou de outrem, águas alheias; Esbulho possessório II – invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório. § 2º - Se o agente usa de violência, incorre também na pena a esta cominada. § 3º - Se a propriedade é particular, e não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

Ao que parece, a condicionante do § 3.° (“e não há emprego de violência”)

refere-se às hipóteses de grave ameaça e concurso de pessoas. Por outro lado, o §

2.° evidencia que, quando o caso não foi de grave ameaça, mas de violência

contra a pessoa, o agente responde também pela pena cominada a esta violência.

Há no fim do inciso II do art. 161 a presença de um elemento subjetivo do tipo, “o

fim de esbulho possessório”, que se aplica a todas as hipóteses do crime de

esbulho: se a finalidade for outra que não o apossar-se da coisa para si, exercendo

diretamente sobre ela a sua posse (que é o que caracteriza o esbulho possessório),

não estará presente este elemento, o que deveria forçosamente conduzir à

atipicidade.

Esta parece ser a orientação dos tribunais113, ainda que num exame sumário,

ou seja, a de somente caracterizar-se a ocorrência do crime de esbulho quando há

violência contra a pessoa ou grave ameaça, sem o que se poderia, quando muito,

cogitar do delito previsto no art. 20 da Lei 4.947/66, desde que em se tratando de

imóveis de propriedade da União, dos Estados ou dos municípios ou que,

destinados à reforma agrária, pertençam a órgãos ou entidades federais, estaduais

ou municipais114 - não abrangem, de qualquer sorte, terras de particulares. O que

comporia o núcleo comum dos dois tipos penais seria a intenção de ocupação,

dolo específico que caracteriza os dois delitos, o do art. 20 da Lei 4.947/66 e o do

art. 161, § 1.º, II, do Código Penal. “Invadir”, descrito no tipo penal do art. 20 da

113 Por exemplo, STF, HC 98.770/PE, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, 1ª Turma, unânime, DJe de 09/04/2010, ou ACR 200741000019221, DESEMBARGADORA FEDERAL ASSUSETE MAGALHÃES, TRF1 - TERCEIRA TURMA, e-DJF1 DATA:18/04/2011 PAGINA:24, com excelente diferenciação entre os tipos penais previstos no art. 161 do CP e no art. 20 da Lei 4.947/66; ou RHC 200200687784, JORGE SCARTEZZINI, STJ - QUINTA TURMA, DJ DATA:24/03/2003 PG:00240, valendo-se da mesma diferenciação (disponíveis em http://www.jf.jus.br/juris/unificada/, acesso em 23/05/2013). 114 Lei 4.947/66, art. 20: “Invadir, com intenção de ocupá-las, terras da União, dos Estados e dos Municípios: Pena: Detenção de 6 meses a 3 anos. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, com idêntico propósito, invadir terras de órgãos ou entidades federais, estaduais ou municipais, destinadas à Reforma Agrária.”

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Lei 4.947/66, significa entrar à força, penetrar, fazer incursão, dominar, tomar,

usurpar. Guarda semelhança, quanto ao núcleo, com o crime de esbulho

possessório, que também se caracteriza pela invasão de terreno ou edifício alheio,

diferenciando-os, como vimos, a presença ou ausência de violência contra a

pessoa ou grave ameaça, ou concurso de agentes. Em qualquer dos dois tipos

penais, entretanto, há necessidade de dolo especial, o fim de ocupação.

O próprio STF, ao julgar matéria penal, entende que o núcleo do tipo do art.

20 da Lei 4.947/66 (“invadir”) não exige ingresso necessariamente violento às

terras públicas, diferentemente da descrição normativa do crime de esbulho

possessório, em que a invasão requer, expressamente, conduta com violência à

pessoa ou grave ameaça, ou que se produza pelo concurso de quatro ou mais

pessoas, mas igualmente entende indispensável o elemento subjetivo daquele tipo,

“com intenção de ocupá-las”, “denotando o verbo ocupar a exigência legal de que

o invasor tenha como objetivo o de ‘conquistar’, ‘tomar’, ‘obter’ para si’” (STF,

HC 98.770/PE, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, 1ª Turma, unânime, DJe de

09/04/2010). O mesmo se dá com o elemento subjetivo do tipo esbulho

possessório, isto é, deve haver o dolo específico de praticar esbulho possessório,

de apossar-se, ter como seu, obter para si.

Esta é ainda a posição de vários e renomados autores criminalistas, dentre os

quais ressalto dois que são por demais conhecidos e cujos manuais há várias

décadas formam nossos bacharéis nas faculdades de Direito, Damásio de Jesus e

Júlio Fabbrini Mirabete. Para Damásio de Jesus (Jesus, 2000: 585-586), o Código

Penal não tutela a simples turbação da posse, sendo indispensável, para a

ocorrência do tipo penal, que o ato seja praticado com a específica intenção de

submeter o bem à sua disponibilidade, já que há, no caso, dois elementos

subjetivos do tipo, um que é o dolo, a vontade de invadir, com violência ou grave

ameaça, e o outro

contido na expressão ‘para o fim de esbulho possessório’. A figura típica exige que o sujeito realize a conduta com um fim determinado: o de excluir o sujeito passivo do exercício da posse, submetendo o imóvel à sua disponibilidade. Mirabete (1999: 1.039-1.043), ao analisar a exigência do fim específico de

apossar-se da terra como elemento subjetivo do tipo esbulho possessório previsto

no art. 161, § 1.°, II, do Código Penal, expressamente ressalta que

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O dolo é a vontade de invadir o imóvel, exigindo-se o elemento subjetivo do tipo que é o fim de esbulho possessório. Inexistente tal finalidade, pode ocorrer outro ilícito. Assim, não se caracteriza o ilícito se a finalidade for de mera turbação da posse, sem o fim de esbulho possessório exigido no tipo penal. (Mirabete, 1999: 1.041) O autor chega mesmo a referir uma decisão do STJ sobre invasão por

movimento popular pela reforma agrária, quando não haveria crime115 (Mirabete,

1999: 1.040), abrindo a possibilidade de caracterizar-se, eventualmente, o delito

de exercício arbitrário das próprias razões, no qual se tem como pressuposto uma

pretensão ou reivindicação que deve corresponder a um direito de que o agente é

ou supõe ser titular116. Foi este inclusive, como vimos, o posicionamento do

Ministro Marco Aurélio em seu voto no MS 23.054 PB, em 15/06/2000.

A mim já me parece difícil operar com o conceito civil de esbulho

possessório para os atos em regra praticados pelo MST, por variados motivos:

porque já é difícil falar genericamente em violência nestas ocupações117, a não ser

que assim se interprete a presença eventualmente intimidatória de grande número

de famílias sem-terra, o que na prática se traduziria mais como uma forma de

ameaça do que uma forma de violência; seguramente inexiste a clandestinidade

115 Mirabete cita apenas um trecho da ementa, cuja íntegra é a seguinte (caixa alta no original): “HC - CONSTITUCIONAL - "HABEAS-CORPUS" - LIMINAR - FIANÇA - REFORMA AGRARIA - MOVIMENTO SEM TERRA - "HABEAS-CORPUS" E AÇÃO CONSTITUCIONALIZADA PARA PRESERVAR O DIREITO DE LOCOMOÇÃO CONTRA ATUAL, OU IMINENTE ILEGALIDADE, OU ABUSO DE PODER (CF/1988, ART. 5., LXVIII). ADMISSIVEL A CONCESSÃO DE LIMINAR. A PROVISIONAL VISA A ATACAR, COM A POSSIVEL PRESTEZA, CONDUTA ILICITA, A FIM DE RESGUARDAR O DIREITO DE LIBERDADE. FIANÇA CONCEDIDA PELO STJ NÃO PODE SER CASSADA POR JUIZ DE DIREITO, AO FUNDAMENTO DE O PACIENTE HAVER PRATICADO CONDUTA INCOMPATIVEL COM A SITUAÇÃO JURIDICA A QUE ESTA SUBMETIDO. COMO EXECUTOR DO ACORDÃO, DEVERA COMUNICAR O FATO AO TRIBUNAL PARA OS EFEITOS LEGAIS. NÃO O FAZENDO, PREFERINDO EXPEDIR MANDADO DE PRISÃO, COMETE ILEGALIDADE. DESPACHO DO RELATOR, NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, NÃO FAZENDO CESSAR ESSA COAÇÃO, POR OMISSÃO, A RATIFICA. CASO DE CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR. MOVIMENTO POPULAR VISANDO A IMPLANTAR A REFORMA AGRARIA NÃO CARACTERIZA CRIME CONTRA O PATRIMONIO. CONFIGURA DIREITO COLETIVO, EXPRESSÃO DA CIDADANIA, VISANDO A IMPLANTAR PROGRAMA CONSTANTE DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA. A PRESSÃO POPULAR E PROPRIA DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRATICO.” (STJ, HC 5.574/SP, Rel. Ministro WILLIAM PATTERSON, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 08/04/1997, DJ 18/08/1997, p. 37916. Disponível em http://tinyurl.com/k55w7vs, acesso em 24/05/2013. Grifei o único trecho mencionado por Mirabete) 116 Vide p. 97, nota 98. 117 O que não quer dizer que não possa haver violência em alguns casos concretos, falo genericamente do procedimento padrão do MST em suas ocupações e tomo por base o conjunto de decisões judiciais que foram examinadas nesta tese.

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do ato que, ao contrário, é público, atrai veículos de imprensa e não raro está

previsto em calendários nacionais de mobilização (caso reiterado do “abril

vermelho” que se repete todos os anos); a própria injustiça da turbação é elemento

controvertido, porque se trata de um lado de famílias de despossuídos que lutam

pela terra, e de outro de propriedade cuja improdutividade é alegada como

fundamento para a reivindicação de sua inclusão no programa de reforma agrária

previsto na Constituição – vale dizer, há sempre um questionamento sobre o

cumprimento da função social da propriedade estabelecida na Constituição;

finalmente, em raríssimas ocasiões o proprietário é privado da posse sobre o

conjunto da área, sendo-o em geral de apenas parte dela, inclusive diminuta, como

vimos nas decisões do STF118. Ainda que não concorde com sua caracterização, a

invocação genérica do ilícito civil de esbulho possessório, que me parece muito

mais adequado a conflitos inter-individuais do que a conflitos sociais de natureza

coletiva, me soa ainda com algum sentido técnico-jurídico, isto é, pode ser

tecnicamente compreensível dentro de certos pressupostos.

Entretanto, creio ser perfeitamente possível, a esta altura, afirmar

categoricamente119 que o ilícito penal correspondente, mesmo que possa ocorrer

em um ou outro caso, não está presente no tipo de ocupação que o MST

118 Até porque, como vimos nas decisões do Supremo, quando as ocupações são significativas e suficientes para comprometer a produtividade, sua ilicitude é reconhecida. 119 Estou longe de ser partidário na noção, a meu ver equivocada sob muitos aspectos cuja análise não cabe aqui, de que haja uma interpretação correta ou válida, em Direito ou em qualquer área do conhecimento. Mesmo a respeito das chamadas ciências duras ou exatas, Popper (1978) já dizia não ser possível demonstrar o acerto, mas apenas o erro de uma dada teoria. Precisamente pelos mesmos motivos, não tenho dúvida de que é possível detectar mais ou menos claramente quando há um erro ou invalidade. Quando um elemento constitutivo do tipo penal está ausente, dadas as vedações à interpretação extensiva ou analógica para punição criminal como conquistas civilizatórias praticamente unânimes nos sistemas jurídicos ocidentais, pode-se dizer com segurança que a imputação de crime é um erro técnico-jurídico grave, não importando a corrente de pensamento a que se filie o jurista em questão, e a conclusão não poderia ser senão o reconhecimento da atipicidade. O mesmo, inclusive, se dá com as sucessivas acusações a militantes do MST de prática do delito de formação de quadrilha ou bando, previsto no art. 288 do CP, e que virou uma “coqueluche” na tentativa de criminalizar movimentos sociais no Brasil: como está manifesto naquele tipo penal, é absolutamente indispensável que a associação de mais de três pessoas deva ter como fim principal o cometimento de crimes; se o fim é qualquer outro, como, por exemplo, realizar protestos autorizados pela Constituição ou reivindicar a implantação de um programa nela previsto, ainda que em um ato de protesto ou reivindicação ocorra um crime, este tipo penal estará descaracterizado a princípio. Não quero dizer, obviamente, que indivíduos não possam se associar para praticar crimes no seio de um movimento social, quando então estas pessoas estarão praticando o delito de formação de quadrilha, nem que pessoas legitimamente associadas não possam praticar eventualmente crimes durante manifestações legítimas, quando não haverá formação de quadrilha, e sim concurso de agentes (art. 29 do Código Penal), mas apenas que o movimento em si não pode jamais ser visto como uma organização criminosa, não só por imperativos democráticos gerais, mas por uma inescapável violação do princípio da legalidade penal.

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promove em geral: ainda que seja evidente o “concurso de mais de quatro

pessoas”, pois que são atos públicos praticados por dezenas ou centenas de

famílias camponesas, em geral não há violência contra a pessoa ou grave ameaça,

e definitivamente a finalidade não é o esbulho possessório, o apossar-se do bem

como seu, com exclusão do possuidor, a fim de exercer diretamente sua posse

sobre o imóvel: a finalidade do Movimento é a de obter o decreto expropriatório

do Presidente da República e incluir a área ocupada no programa de Reforma

Agrária, que é um programa oficial do Governo Federal previsto expressamente

na Constituição, enquanto que nas ocupações de prédios públicos a finalidade é

estritamente de protesto. É inteiramente impossível fazer a assimilação entre

finalidades diametralmente opostas – apossar-se como quem furta ou rouba e

exigir implementação de programa oficial do Governo, com consequente titulação

formal da propriedade – sem romper com os parâmetros mais elementares da

lógica formal e com as vedações ao uso da analogia in malam partem ou da

interpretação integrativa ou ampliativa em matéria criminal.

O próprio texto da Lei 8.629/93 implicitamente reconhece que não se trata

de caso de esbulho. Primeiro porque a redação da MP 2.027-38/2000 e as que lhe

sucederam não se limita a mencionar esbulho, referindo-se a esbulho possessório

ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo. Se há

alternativa, evidentemente não se trata da mesma coisa, e sim de duas coisas

distintas entre si a cuja ocorrência se emprestam os mesmos efeitos jurídicos

(sempre que ocorrer um ou outro fato, aplicam-se tais e quais efeitos jurídicos);

segundo, porque esta redação que insere invasão motivada por conflito agrário ou

fundiário de caráter coletivo ao lado de esbulho possessório é distinta da redação

do Decreto 2.250/97, que cuidava apenas deste – em outras palavras, a vedação

contida no decreto e dirigida apenas aos casos de esbulho não se mostrou

suficiente para inibir não ele propriamente, mas o verdadeiro alvo específico da

norma, que eram as invasões motivadas por conflito agrário ou fundiário de

caráter coletivo, cuja inserção se fez na norma precisamente porque não são a

mesma coisa, mas coisas diversas120. Evidentemente, se o tipo penal esbulho só

120 Esta finalidade estava expressa na exposição de motivos daquela medida provisória, de onde igualmente se pode inferir a inexistência, até então, de proibição válida que abrangesse estas ocupações coletivas: “No sentido de coibir os excessos praticados pelos movimentos dos trabalhadores rurais sem terra com relação à invasão de imóveis rurais como a de bens públicos acrescentou-se ao art. 2.° da referida Lei n.° 8.629, de 1993, os §§ 6.° a 9.° e o art. 2.°-A, que, ao

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está presente quando a finalidade do ato praticado pelo agente é o esbulho

possessório, e a própria lei discrimina que ocupações, ou invasões, motivadas por

conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo são uma outra coisa diferente de

esbulho, à qual se cometem os mesmos efeitos jurídicos ali previstos, eu não

posso considerar como praticado o crime de esbulho em uma destas situações;

talvez outro crime, mas seguramente não o de esbulho.

De outro lado, é na ausência de clandestinidade do ato de ocupação que

reside um dos elementos mais relevantes de distinção entre a desobediência civil

e a desobediência criminal, e aspecto fundamental para minha recusa em

equiparar a qualquer título as ocupações que em geral são promovidas pelo MST,

que são atos públicos de protesto e reivindicação, a atos criminais em qualquer

sentido, inclusive exercício arbitrário das próprias razões (ainda que, para aqueles

que veem nas ocupações algum ilícito criminal, ao menos haja mais pertinência

entre aquelas ações e este tipo penal do que com esbulho).

Como já dito anteriormente, não se trata de abolir o Código Penal para

quaisquer manifestantes, independente da causa que professem, ou de absolver ou

condenar antecipadamente quem quer que seja: opero aqui com o comum das

ocupações promovidas pelo MST e tal como narradas nas decisões que acabamos

de analisar, onde estes elementos estavam, em princípio, ausentes da

caracterização dos fatos; trabalho com a identificação das ações penais que

tramitaram no STJ e no STF no período assinalado, onde não há crime contra a

vida imputado a militantes do MST, mas apenas a fazendeiros que os mataram;

onde os únicos crimes violentos que são imputados a militantes sem-terra (roubo e

furto qualificado, em cinco casos num total de oitenta decisões judiciais), não

estavam ligados a ocupações, mas a saques a caminhão de carga121; sirvo-me

ainda dos dados relativos à violência no campo, e notadamente quanto a

assassinatos no campo brasileiro, onde o elevado número de mortos é quase

exclusivamente de camponeses e militantes sem-terra, e que somaram, de acordo

com a Comissão Pastoral da Terra, 1.645 assassinatos entre 1985 e 2012122. Todos

mesmo tempo, proíbe a realização de vistoria de imóveis rurais que venham a ser invadidos, venda [sic, rectius, “veda’] a transferência de recursos para entidade, organização social ou movimento e sociedade de fato que direta ou indiretamente concorram para a prática dos referidos atos delituosos.” Disponível em http://tinyurl.com/expomotivmp2027, acesso em 08/07/2013. 121 Vide p. 76, em especial nota 88. 122 Vide nota 63 supra.

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estes elementos concretos apurados nesta pesquisa levam-me à identificação de

que, ao menos tomando por base os casos judicializados perante o STF e o STJ

entre 2000 e 2010, não posso validamente presumir a prática de atos violentos por

parte dos militantes do MST em suas ocupações, nem sua “natureza predatória”,

nem a prática de crimes cujos elementos constitutivos do tipo estejam ausentes.

Se e quando houver atos de violência contra a pessoa ou de grave ameaça, é

evidente que a aplicação da lei penal se imporá ao Estado Democrático, tanto

para prevenir ou fazer cessar ou punir a violência ou a ameaça, quanto para

individualizar os agentes, mensurar pessoalmente sua culpabilidade e assegurar-

lhes o devido processo legal, as garantias da ampla defesa e do contraditório. O

amplo direito de defesa, o devido processo legal, o contraditório, a

individualização da pena, a tipicidade, a reserva de lei formal e a vedação à

interpretação extensiva ou analógica e à retroação da lei penal mais severa ou

incriminadora não são adereços formais num Estado Democrático de Direito, eles

compõem o núcleo mínimo de legitimidade do sistema punitivo estatal, em cuja

ausência não resta qualquer fundamento legítimo (moral, no sentido kantiano da

expressão) para a persecução ou a punição penal, mas apenas o fundamento

pragmático da força: puno porque posso; não porque devo, mas porque quero; não

porque sigo as balizas traçadas coletivamente, mas porque atendo aos interesses

estratégicos para os quais existo.

Se o sistema legal se autodescreve como legítimo e democrático e obediente

àquelas balizas mínimas, aquelas condições sine qua non para sua validade, não

lhe há escapatória formal sem incorrer em flagrante delito de contradição

performativa: ou ele rompe com estes pressupostos e assume esta ruptura; ou

sustenta os pressupostos e deriva deles suas conseqüências normativas; ou ainda

explicita a dilaceração da contradição sistêmica que vivencia, e a submete à crítica

discursiva na esfera pública.

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Piquetes123 e Mangrulhos124

“Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que pra se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!” (Ariano Suassuna125)

Tendo apresentado no capítulo anterior os dados quantitativos e qualitativos

desta pesquisa, estes consistentes nos acórdãos selecionados com base naqueles, e

procedido a uma breve avaliação daquelas decisões sob um ponto de vista

jurídico-formal, é preciso agora visualizá-los a partir da análise de sua

significação conceitual e pragmática no contexto jurídico-social brasileiro. Se até

aqui cuidamos do que o Estado vê nas ocupações promovidas pelo MST e como

responde institucionalmente a elas, é preciso ver também o que estas ocupações

representam para a luta dos sem-terra e como se articulam com suas

reivindicações e conformação identitária. De um ângulo jurídico-formal, já

percebemos que as críticas que são de regra feitas ao MST se prendem, tanto na

mídia quanto nas decisões judiciais analisadas, especialmente na ADIn 2.213, ao

caráter violento e ilícito das ocupações praticadas por seus militantes, inclusive

com referências aos tipos penais de esbulho e, em muito menor escala, exercício

arbitrário das próprias razões, e eventualmente a crimes de violência contra a

pessoa e dano, dentre outros. Vimos também como é precária a imputação

genérica destes delitos aos militantes do Movimento em termos gerais, sem

123 Piquete: (ê) [Do fr. piquet.] Substantivo masculino. 1. Troço de soldados que formam guarda avançada. 2. Porção de tropa, a cavalo, incumbida de guarda de honra, etc. 3. Porção de empregados a quem toca certo serviço por turno. 4. Pequena estaca, de madeira ou metálica, que se crava no terreno para marcar com exatidão um ponto importante em trabalho topográfico. [Var., nesta acepç.: piqueta.] 5. Bras. Fig. Pessoa que a cada momento está sendo solicitada por outro trabalho. 6. Bras. Grupo de pessoas que se posta à entrada de fábricas, empresas, estabelecimentos de ensino, etc., para impedir a entrada de outras, por ocasião de greve. 7. Bras. MG Pequeno pasto ou plantação. 8. Bras. RS Pequeno potreiro, próximo das habitações, onde se recolhem os animais para serviços diários. 9. Bras. RS Cavalo que está permanentemente pronto para qualquer necessidade nas estâncias; piqueteiro. [Pl.: piquetes (ê). Cf. piquete e piquetes, do v. piquetar.] (Ferreira, 2004: 1.566) 124 Mangrulho: [Do esp. plat. mangrullo.] Substantivo masculino. 1. Bras. Posto militar de observação, em lugar elevado, e formado de madeiras toscas. 2. Mar. Armação, metálica ou de madeira, erigida sobre um baixio, e sobre a qual se fixa uma luz ou um farolete como auxílio à navegação, ou uma bandeira ou outro sinal para outros fins. (Ferreira, 2004: 1.266) 125 Suassuna, 2012: 104.

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prejuízo de que estes ou outros possam ocorrer em circunstâncias específicas.

Agora é preciso compreender o que efetivamente são e representam as ocupações

de terra para os próprios sem-terra como estratégia geral de atuação de seu

Movimento para que sua contextualização sócio-histórica nos permita lançar um

olhar distinto sobre elas de um ponto de vista não meramente formal, mas que

parta da indagação sobre a compatibilidade de tais estratégias com a democracia.

Ao lançar-se este olhar sobre as ocupações como estratégia usual do MST

para viabilizar o acesso à terra, precisamos tentar apreendê-las tanto em sua

dimensão pragmática quanto simbólica, isto é, tanto como modo eficiente de

conquistar a terra, quanto como o que elas representam para seus praticantes e o

conjunto da sociedade em termos de construção de sentidos sobre o Movimento.

De um ponto de vista estritamente pragmático, apesar dos protestos

conservadores, que em geral clamam para que os movimentos sociais aguardem a

iniciativa do Estado brasileiro no atendimento dos dispositivos constitucionais

sobre acesso à terra, a análise histórica demonstra categoricamente: não há

reforma agrária no Brasil onde não há ocupação de terra. Trata-se de uma

vinculação quase que direta a que existe entre a definição de áreas de conflito pelo

Movimento, sua ocupação e a posterior iniciativa de desapropriação para fins de

reforma agrária pelos órgãos governamentais, em especial o Incra.

Lygia Sigaud (2005) enfatiza que o Estado brasileiro jamais pôs em curso

uma política de desapropriações de terras destinadas à reforma agrária, fosse ela

tópica ou em larga escala, ainda que a Constituição e a regulamentação pós-1993

o permitissem, e que na ausência de uma tal política, o governo federal depende

estritamente da indicação das áreas passíveis de desapropriação pelos movimentos

sociais:

as fazendas desapropriadas são aquelas que foram ocupadas. Basta cotejar as listas de desapropriações feitas nos últimos três governos (Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula), e fornecidas pelo Incra, com as das ocupações e dos acampamentos fornecidas pelos movimentos para constatar a relação estreita entre desapropriações e ocupações (Sigaud, 2005: 270). Ainda que Sigaud não demonstre esta confrontação de listas no artigo

referido, Bernardo Mançano Fernandes (2001) o faz. Segundo ele, a ocupação

tornou-se uma importante forma de acesso à terra, já que, no período de 1986 a

1997, aproximadamente 77% dos assentamentos implantados nas regiões Sul e

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Sudeste, nos estados de Mato Grosso do Sul e Goiás, e nos estados do Ceará,

Alagoas, Sergipe e Pernambuco, originaram-se de ocupações de terra, conforme

Tabela 6.

TABELA 6 ASENTAMENTOS POR ORIGEM (OCUPAÇÕES OU GOVERNO)

1986 – 1997

ESTADO

ORIGEM OCUPAÇÃO PELOS SEM-

TERRA

ORIGEM PROJETO

DO GOVERNO

SEM INFORMAÇÕES

Rio Grande do Sul 159 0 0

Santa Catarina 94 6 2

Paraná 158 22 4

São Paulo 79 4 0

Rio de Janeiro 45 3 0

Espírito Santo 32 3 0

Minas Gerais 80 16 0

Mato Grosso do Sul 22 25 7

Goiás 63 23 31

Ceará 92 89 4

Alagoas 21 7 6

Sergipe 28 12 0

Pernambuco 106 22 0 Fonte: DATALUTA, 1998, apud Fernandes (2001)

Mesmo que se cuide acima de período fora do recorte temporal versado na

presente tese, esta tabela refere período que engloba aquele no qual se estruturou a

legislação inibidora das ocupações126. Além disso, estes dados são essenciais para

compreender tanto a consolidação das ocupações de terra como estratégia dos

movimentos pela reforma agrária, e do MST em particular, quanto o caráter

indissociavelmente estruturante que elas têm em relação à dinâmica da reforma

agrária no Brasil nas últimas décadas. A respeito deles, prossegue Fernandes:

126 Lembre-se aqui que o Decreto 2.250 foi editado em 11 de junho de 1997, e a Medida Provisória 2.027-38, em 04 de maio de 2000.

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Evidente que a interpretação desses dados está associada às análises feitas desde os processos de espacialização e territorialização dessa luta, dos quais o MST participou e participa intensamente. Quando o governo federal afirma ter assentado centenas de milhares de famílias, na verdade, essa realidade foi construída predominantemente por causa das pressões resultantes das ocupações de terra, principalmente nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Desde 1995 até abril de 1999 foram implantados 2.750 assentamentos com 299.323 famílias. No entanto, ocorreram 1.855 ocupações com 256.467 famílias, ou seja, proporcionalmente o número de famílias ocupantes representa 85% das famílias assentadas. É importante destacar que parte do que o governo chama de assentamento são, na verdade, áreas de regularização fundiária de terras de posseiros. Para a região Nordeste e Centro-Oeste, os índices de famílias ocupantes representam proporcionalmente 84% das famílias assentadas. Para as regiões Sul e Sudeste, representam 273% e 175%, respectivamente. Ou seja: 45.845 famílias lutaram pela terra na região Sul, enquanto o governo assentou 12.272. Das 44.225 famílias que lutaram pela terra na região Sudeste, os assentamentos implantados beneficiaram apenas 16.068 famílias. A maior atuação do governo aconteceu na região Norte, onde assentou e ou regularizou posses de 98.657 famílias. (...) Neste sentido, a luta pela terra impulsiona a política de assentamentos rurais do governo federal. Por essa razão é que questionamos: que reforma agrária? Chamar de reforma agrária essa realidade é interpretá-la na linguagem do Estado, das classes dominantes. De fato, os assentamentos implantados são resultados da luta pela terra, que tem contribuído para a efetivação da política de assentamentos rurais. E a isso, muitos chamam incorretamente de reforma agrária. (Fernandes, 2001: 15-16)

Verificando-se os dados relativos a números de ocupações e assentamentos

no período aqui estudado (2000-2010), também podemos perceber, no Gráfico 19,

uma correlação, ainda que nem sempre direta, entre número de ocupações e de

assentamentos.

GRÁFICO 19

OCUPAÇÕES E ASSENTAMENTOS 2000 - 2010

0100200300400500600700800900

1000

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

OCUPAÇÕES ASSENTAMENTOS

Fonte: Relatório Dataluta Brasil 2011

Org.: José Carlos Garcia

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Em cinco dos onze anos considerados, o número de assentamentos superou

o de ocupações (2001, 2002, 2005, 2006 e 2010), enquanto que em todos os

demais, essa relação se inverte. Esses dados nos permitem estabelecer uma relação

matemática geral entre o número de ocupações por assentamento para o período,

dividindo-se o número das primeiras pelo dos segundos, indicando-nos a

correspondência entre número de ocupações e número de assentamentos em cada

ano. Os resultados, que podem ser conferidos no Gráfico 20, variarão entre um

mínimo de 0,57 ocupações/assentamento, em 2001, até um máximo de 1,62

ocupações/assentamento, em 2003, equivalendo a uma amplitude de cerca de 2,8

vezes entre o mínimo e o máximo.

O ano da década com maior número de assentamentos foi 2005, com 885, e

daí em diante tanto o número de ocupações quanto o de assentamentos vai

decrescendo. Aquele é também o segundo ano com maior número de ocupações,

561, atrás apenas do ano imediatamente anterior, 2004, com 662 ocupações.

Apesar da grande variação no número de ocupações/assentamento, computando-se

as médias do período encontramos uma impressionante correspondência de

praticamente uma ocupação por assentamento, como se vê na Tabela 7.

GRÁFICO 20

OCUPAÇÕES / ASSENTAMENTOS

0,00

0,20

0,40

0,60

0,80

1,00

1,20

1,40

1,60

1,80

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Fonte: Relatório Dataluta Brasil 2011

Org.: José Carlos Garcia

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TABELA 7

ANO OCUPAÇÕES ASSENTAMENTOS OCUPAÇÕES/ASSENTAMENTOS

2000 519 431 1,20 2001 273 483 0,57 2002 269 395 0,68 2003 539 333 1,62 2004 662 457 1,45 2005 561 885 0,63 2006 545 711 0,77 2007 533 391 1,36 2008 389 322 1,21 2009 391 297 1,32 2010 184 206 0,89 TOTAL 4.865 4.911 0,99 MÉDIA 442,3 446,5 1,1

Fonte: Relatório Dataluta Brasil 2011

Org.: José Carlos Garcia

A análise dos dados expressos nas tabelas e gráficos acima deve ser feita

com extrema cautela, já que se trata exclusivamente de um exercício aritmético:

eles não expressam o número de vezes que uma determinada propriedade precisou

ser ocupada, desocupada e reocupada antes de ser desapropriada, não especifica se

as ocupações ocorreram na mesma área ou em área próxima dos assentamentos e,

portanto, não servem para estabelecer uma relação de causação direta entre

aquelas ocupações e aqueles assentamentos127. Contudo, talvez precisamente por

este fato, e por cuidar de um corte temporal relativamente amplo, de onze anos, a

matemática nos permita ver aquilo que nem sempre o calor dos conflitos sociais e

as múltiplas especificações em busca de relações diretas de causalidade permitem

– a relação de uma ocupação para cada assentamento como média geral em um

período recente de mais de uma década128.

127 Ao contrário, é até muito provável que as ocupações listadas não se refiram aos assentamentos realizados nos mesmos anos, já que é comum a necessidade de manutenção de conflitos de longa duração para obter a desapropriação e o assentamento, como inclusive indicado em alguns dos acórdãos aqui analisados. 128 Esta relação é tão consistente que, se expandirmos a análise destas mesmas médias matemáticas para um período bem mais longo, da redemocratização formal do país ao fim do período aqui pesquisado (ou seja, os 23 anos de 1988 a 2010), elas não se alterarão substancialmente: segundo dados da mesma fonte, o número de ocupações seria então de 8.310, para um total de 8.493 assentamentos no mesmo intervalo, o que nos daria uma média de 0,98 ocupações/assentamento, em que pesem todas as variações anuais na relação entre estes dois indicadores. Estes detalhamentos estatísticos, apesar de refugirem ao escopo desta pesquisa, podem ser obtidos a partir dos Relatórios DATALUTA Brasil na internet. No caso do Relatório 2011, utilizado para a

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Logo, mesmo que a flutuação anual desta relação me permita dizer, ao

menos estatisticamente, que o nível de eficiência da utilização de ocupações de

terras como meio de mobilização social e obtenção de terras tenda a variar de ano

para ano, conforme inúmeros elementos de conjuntura, e as tabelas e gráficos

acima poderiam ilustrar isso de modo geral, a conclusão a que se pode chegar ao

observarem-se as médias em cortes temporais mais largos é a de uma estreita

relação entre número de ocupações e número de assentamentos, à proporção

global de um por um.

Entretanto, não é de matemática que se trata aqui. Para Sigaud (2005), não

há apenas uma correlação objetiva entre as ocupações e a identificação das áreas

para desapropriação e assentamento, e sim uma verdadeira dependência

recíproca entre movimentos sociais e Estado, segundo a qual o Estado serve-se

da atuação do Movimento para esta dupla identificação, tanto de áreas por

desapropriar, quanto de pessoas a assentar, que serão os sem-terras participantes

das ocupações e acampamentos. Por outro lado, os movimentos, dentre os quais o

MST, dependem do Estado para continuarem a existir, na medida em que o

sucesso da estratégia de ocupações implica diretamente também o sucesso de sua

capacidade de recrutamento de novos militantes dispostos a terem acesso à terra e,

portanto, de se multiplicarem como movimentos sociais.

Partindo de seus estudos na Zona da Mata pernambucana, Sigaud sustenta

ainda que, contrariamente ao que se imagina, não há propriamente uma massa de

sem-terras reivindicando assentamento em conflitos agrários pré-existentes –

segundo ela, são os movimentos que geram demanda por terra quando convidam

trabalhadores para ocupar fazendas, tornando possível uma perspectiva de

conquista da terra que não fazia parte do repertório de soluções tradicionais das

questões agrárias naquela região:

Foram os movimentos que, ao promoverem a entrada nos engenhos e os acampamentos, produziram uma inflexão no rumo dos acontecimentos: criaram um conflito de terra ali onde ele não existia e solicitaram ao Incra a desapropriação. Não cabe aqui especular o porquê da ocupação daqueles engenhos, uma vez que se sabe que esse era o objetivo dos movimentos naquele momento e que aqueles engenhos, salvo Serra d’Água e Minguito, poderiam se enquadrar nos novos critérios do Incra. Trata-se tão-somente de destacar que foi por meio da forma

obtenção de todos os dados aqui referidos, ele pode ser encontrado em http://www2.fct.unesp.br/nera/projetos.php, acesso em 01/07/2013.

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acampamento que problemas passíveis de uma solução costumeira foram transformados em um conflito por terra. (Sigaud, 2005: 267) Isto não quer dizer, como sustentam leituras conservadoras, que a luta pela

terra seja uma criação artificial de tensões sociais por movimentos orientados pela

“derrubada do Estado” ou pela instabilização da democracia, como vimos

anteriormente em algumas referências de imprensa. Significa apenas que não se

tratam de “lutas espontâneas” que brotem “naturalmente” de contradições sociais

“objetivas”, porque carências não geram espontaneamente participação política

(Scherer-Warren, 2009). Estas lutas são momentos de geração de identidades e de

construção de significados simbólicos que se articulam com desejos e projetos de

vida e mundo. É ainda Lygia Sigaud, nas conclusões de seu artigo, quem salienta

que se não fosse a geração desta luta pela terra, movimentos sociais não seriam

fortalecidos e centenas de milhares de indivíduos não teriam obtido a atenção do

Estado brasileiro, recebendo terras e crédito, e não apenas a ação de programas

emergenciais pontuais (Sigaud, 2005: 277).

Quando vimos, anteriormente, o conceito de movimentos sociais,

salientamos que todos os principais campos teóricos que procuram estudá-los os

definem como redes de interações informais entre participantes que geram

compartilhamento de crenças e solidariedade no bojo de ações coletivas em

condições conflituosas nas quais tanto o conflito quanto o conjunto de seus

elementos, inclusive os adversários a serem confrontados, são estabelecidos pelo

movimento na sua definição histórica, quando ele forja sua própria identidade e se

diferencia de outros atores. Por isso mesmo, como diz Cefaï (2009), os

movimentos são, além de estruturas que mobilizam recursos no âmbito de suas

intervenções sociais, meios de sociabilidade onde se moldam formas de

coexistência. Tanto que, segundo Scherer-Warren (2009), para que estas redes se

convertam em movimentos sociais, precisarão necessariamente formar uma

identidade coletiva ou identificação em torno de uma causa comum, definindo

uma situação de conflito e seus adversários e constituindo um projeto ou utopia de

mudança. Disso resultará a transformação dos sujeitos participantes em atores

políticos: não diretamente das carências a que estão individualmente submetidos,

mas do reconhecimento recíproco do caráter comum delas, e principalmente do

sentido que eles coletivamente atribuírem a suas carências, às suas respectivas

causas, às formas de superá-las, aos adversários que deverão enfrentar para tanto,

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às suas formas de atuação. Neste processo, gerarão símbolos de representação

em torno de sua ação coletiva, inclusive quanto à forma de sua intervenção e

mobilização social.

Nada espanta, portanto, perceber-se que quando os movimentos sociais de

luta pela terra e pela reforma agrária passam a recrutar e organizar estas

populações, eles geram o conflito social enquanto tal, de modo que aquilo que era

espontâneo e disperso, e tenderia a ser reorganizado de modo tradicional e

costumeiro, de regra reproduzindo quadros antigos de exclusão social e opressão,

passa a ter novas perspectivas de resolução, em contextos e com resultados

inteiramente diferentes. Se o poder dos grandes proprietários de terras era

incontestado e a vitória em eventuais conflitos praticamente garantida até a

organização de massas trabalhadoras rurais pelos movimentos sociais, depois

dessa organização não há qualquer garantia na vitória de um conflito social entre

estas forças momentaneamente contrapostas, pois que uma das principais

finalidades dos movimentos sociais é precisamente a de organizarem de modo

permanente recursos que tornem maiores as chances de sucesso de seus

integrantes nas lutas sociais que protagonizam contra os adversários que

constituíram. Ou, no dizer de Stédile,

é um perigo nesse país o cara ser pobre e organizado. Os pobres existem por aí dispersos e ninguém se queixa deles. Se se organizam e fazem uma ocupação, ela é tão evidente e tão contundente que obriga a sociedade a se manifestar (Stédile & Fernandes, 1999: 113).

Daí porque não é possível pensar as ocupações apenas como um recurso

pragmaticamente manuseado por movimentos sociais para obter a terra, como se

tais movimentos simplesmente dispusessem de um repertório conceitualmente

ilimitado de formas de atuação e escolhessem livremente, dentre elas, as de maior

eficácia e de resultados mais comprovados. Ainda que a consolidação de uma

forma específica de atuação pelos seus praticantes prenda-se sem dúvida à sua

eficácia, no sentido de ser pouco provável a adesão de muitas pessoas a estratégias

que comprovadamente não funcionam, a forma de agir de militantes e

movimentos sociais envolve uma profunda dimensão simbólica que articula

geração de identidades, de formas de pertencimento e de reconhecimento

recíproco neste caminho “de sem-rosto a cidadão”. Se de um lado as ocupações

são a única forma eficiente de acesso à terra pela população rural pobre do Brasil

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nas últimas décadas, por outro elas transformam essas pessoas de pobres dispersos

e desorganizados, de “sem-rostos” cujas histórias desinteressam ao poder e ao

Estado, em cidadãos mobilizados em luta por direitos, ou seja, em sem-terras, e

depois eventualmente em assentados.

A constatação deste processo de identificação simbólica nas formas de

atuação de movimentos sociais não é um aspecto localizado no MST, ou no

Brasil. Penissat (2005), por exemplo, ao analisar o que chama de “reinvenção” das

ocupações de local pelo movimento sindical francês nos anos 1960-1970, em

especial após o maio de 1968, chama a atenção para o fato de que aquelas

ocupações não eram apenas um recurso eficiente para obter o atendimento a suas

reivindicações na luta contra os patrões, mas também um elemento importante

para a definição e redefinição de identidades dos movimentos e correntes

envolvidos nas greves e mobilizações operárias daquele período na França. Ao se

confrontarem militantes da CGT – Confédération Générale du Travail, ligada ao

Partido Comunista Francês, e da CFDT – Confédération Française Démocratique

du Travail, ligada a partidos e organizações de esquerda críticos ao PCF, para

além da eficiência das formas de luta distintas, estava também em jogo uma

diferenciação de identidades entre aqueles polos do movimento operário e dos

temas que seriam ou não incluídos nas suas agendas políticas:

Para os dirigentes da CGT, as ocupações remetiam à responsabilidade e à disciplina do movimento operário. Todo esforço dos dirigentes residia em mostrar, apesar das acusações de ‘extravasamento pelas massas’, que o sindicato controlava o movimento: ‘A opinião pública, sacudida pelos problemas e pela violência, angustiada pela ausência completa de autoridade do Estado, viu na CGT a grande força tranquila que chegou para restabelecer a ordem a serviço dos trabalhadores’. Esta empreitada é quase militar nos termos empregados. O caráter militar correspondia também a uma vontade de impedir toda intrusão de elementos estranhos na condução do movimento, ‘esquerdistas’ especialmente. Para eles, as ocupações eram o meio de administrar a prova das capacidades de direção do movimento operário e, portanto, da aptidão da CGT de enquadrá-lo e representá-lo. Elas lhe permitiam afirmar-se como um poder de substituição. Para os responsáveis pela CFDT, ao contrário, as ocupações eram sinônimos de democracia, de poder sindical e de perspectiva de autogestão: ‘A fábrica ocupada é o símbolo do poder sindical mais forte que a lei, mais forte que o suserano da empresa, detentor ao mesmo tempo, na sua ‘propriedade privada’, dos poderes legislativo, executivo e judiciário. A irrupção dos trabalhadores de 1968 na história operária francesa marcou o início de uma

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mudança: para democratizar a empresa numa perspectiva de gestão democrática, isto é, de autogestão. (Penissat, 2005: 75-77)129 Enquanto os sindicatos ligados à CGT enfatizavam o controle e gestão do

sindicato sobre a fábrica, a CFDT sublinhava elementos de autogestão e de

democracia direta, incluindo grupos que normalmente ficariam de fora da

definição das linhas de ação, como mulheres, jovens e imigrantes. O modo

concreto de adoção destas formas de mobilização, portanto, implicava uma

disputa no plano simbólico entre os principais atores coletivos ali considerados,

CGT e CFDT, conformando elas próprias elementos de identidade das

organizações e de seus militantes (Penissat, 2005: 81-82).

Situação paralela é identificada por Sigaud (2000) no seu estudo sobre a

chegada da forma acampamento na Zona da Mata de Pernambuco. Com os

camponeses da região tradicionalmente organizados nos sindicatos de

trabalhadores rurais ligados à Fetape – Federação dos Trabalhadores na

Agricultura de Pernambuco, havia ao longo dos anos 1980 registro de alguns

acampamentos reivindicando reforma agrária ou cumprimento da legislação

trabalhista, mas sua utilização era francamente limitada: dentro de engenhos,

contabilizaram-se naquela década apenas dois, com 193 famílias. Os que se

organizavam em espaços públicos eram mais frequentes, chegando-se a contar

mais de três mil pessoas reunidas em frente à usina Central Barreiros, no sul do

estado, em 1989. Mas em abril de 1999, segundo dados por ela obtidos junto ao

129 Pour les dirigeants de la CGT, les occupations renvoyaient à la responsabilité et à la discipline du mouvement ouvrier. Tout l’effort des dirigeants était de montrer, malgré les accusations de “débordement par les masses”, que le syndicat contrôlait le mouvement: ‘L’opinion publique, bouleversée par les troubles et la violence, angoissée par l’absence complète d’autorité de l’État, a vu en la CGT, la grande force tranquille qui est venue rétablir l’ordre au service des travailleurs.’ Cette emprise est quasi militaire dans les termes employés. Ce caractère militaire correspondait aussi à une volonté d’empêcher toute intrusion dans les usines et toute intervention d’éléments étrangers dans la conduite du mouvement, “gauchistes” spécialement. Pour eux, les occupations étaient le moyen d’administrer la preuve des capacités de maîtrise du mouvement ouvrier et donc par là, de l’aptitude de la CGT, de l’encadrer et de le représenter. Elles lui permettaient de s’affirmer comme un pouvoir de remplacement. Pour les responsables de la CFDT, au contraire, les occupations étaient synonymes de démocratie, de pouvoir syndical et de perspective d’autogestion: ‘L’usine occupée, c’est le signe du pouvoir syndical plus fort que la loi, plus fort que le suzerain de l’entreprise, détenteur tout à la fois dans sa “propriété privée” des pouvoirs législatif, exécutif, et judiciaire. L’irruption des travailleurs de 1968 dans l’histoire ouvrière française a marqué le début d’un changement: pour démocratiser l’entreprise dans une perspective de gestion démocratique, c’est-à-dire d’autogestion’ (Op. loc. cit.).

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Incra, contavam-se 101 acampamentos em todo o estado de Pernambuco,

reunindo cerca de 6.700 famílias, 56 deles organizados pelo MST.

Segundo a autora, não se pode comparar os acampamentos dos anos 1980

com aqueles realizados a partir dos 1990, já que os primeiros, ao contrário dos

segundos, não duravam vários meses, eventualmente anos, e naqueles os

participantes eram exclusivamente trabalhadores rurais, ao passo que nestes, ainda

que predominante esta categoria, reuniam-se também pescadores, operários, ex-

funcionários de prefeituras, migrantes retornados do Sudeste e, em sua maior

parte, desempregados (Sigaud, 2000: 73). Trata-se de uma ressignificação dos

acampamentos no contexto daquela região que remonta à chegada de militantes do

MST vindos do sul, em especial após a primeira grande ocupação, no sentido

contemporâneo, realizada por este movimento em conjunto com os sindicatos

locais, em 1992, na Usina Camaçari, reunindo 1.200 pessoas.

Estes acampamentos apresentam vários elementos comuns, que se articulam

como símbolos identitários, fundamentalmente a lona preta (de fato, um pedaço

grande de plástico preto que cobre as barracas) e a bandeira do Movimento

hasteada. Outros elementos lhes são ainda bastante recorrentes: são geralmente

montados em locais elevados, próximos à mata e aos cursos d’água, sendo visíveis

a alguns quilômetros de distância; as barracas são geralmente alinhadas em ruas

paralelas; cada barraca pertence a uma família de trabalhador, apesar de

eventualmente abrigar indivíduos sós; nem todos os ocupantes permanecem todo

o tempo nos acampamentos, saindo ocasionalmente para trabalho eventual; a

adesão ao acampamento pode ser feita por representação, desde que fique alguém

ligado ao ocupante na barraca (filho, pai, parente), mas a associação ao

acampamento é sempre vinculada à barraca (Sigaud, 2000: 82).

Todos estes elementos diferenciam os acampamentos organizados pelo

MST, normalmente ligados a ocupações em que se reivindicam desapropriação da

área ocupada, de outras formas de mobilização de outras organizações ou

movimentos pela reforma agrária, ou mesmo de ocupações organizadas por outros

movimentos. Como disse João Pedro Stédile, a ocupação é uma forma de

mobilização aglutinadora e que “desmascara a lei”:

Outro aspecto da ocupação, este do ponto de vista da nossa organização, é que ela é fundamental, é a essência do movimento. O que o MST faz é aglutinar pessoas. Imagine fazer um acampamento abrindo inscrição. Seria uma loucura, pois isso não

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tem nada de unidade. É por isso que não dá certo quando algum sindicato faz inscrições por meio de cadastro, porque não tem nada que una as pessoas. (...) A ocupação dá esse sentido de unidade às pessoas, para lutarem por um mesmo objetivo. Passar pelo calvário de um acampamento cria um sentimento de comunidade, de aliança. (...) Outro aspecto é que ele desmascara a lei. Se não ocupamos, não provamos que a lei está do nosso lado. É por essa razão que só houve desapropriações quando houve ocupação. É só comparar. Onde não tem o MST, não tem desapropriação. Onde o movimento é mais fraco, menor é o número de desapropriações, de famílias beneficiadas. A lei só é aplicada quando existe iniciativa social, essa é a norma do direito. Nossos alunos aprendem isso no primeiro dia de aula. A lei vem depois do fato social, nunca antes. O fato social na reforma agrária é a ocupação, as pessoas quererem a terra, para depois se aplicar a lei. Nesse sentido, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso tem consciência. Ele afirmou: ‘Eu não condeno o movimento de vocês. É justo. Se não fizer pressão, não sai’. (Stédile & Fernandes, 1999: 114-115)

Aqui parecem ecoar as palavras do Ministro Sepúlveda Pertence em seus

votos nos julgamentos da cautelar na ADIn 2.213 e do MS 23.054/PB,

anteriormente apresentados. Para ele, a reforma agrária, no mundo todo, apenas

ocorre sob a tensão gerada entre o apego à propriedade do senhor rural e a

reivindicação dos excluídos à terra improdutiva, e a experiência histórica

demonstra que raramente se efetiva a reforma agrária em latifúndios que sequer

despertam a atenção dos sem-terra. O discurso conservador segundo o qual

agricultores sem-terra devem aguardar passiva e ordeiramente a iniciativa do

Estado em realizar a reforma agrária não tem qualquer respaldo histórico ou

estatístico e traria por consequência exclusivamente a perpetuação da

concentração de propriedade e a exclusão daquelas pessoas da cidadania e dos

padrões mínimos de dignidade humana, tornando letra morta os dispositivos

constitucionais relativos à reforma agrária130.

130 O discurso conservador que cobra passividade e paciência dos cidadãos não é, infelizmente, privilégio local. Como já disse Habermas (1997d: 51-52), ao analisar as reações do governo alemão a intensas mobilizações ocorridas naquele país no início dos anos 1980: “Desde la perspectiva de una autoridad, que ha de velar por el mantenimiento del orden y la tranquilidad, la construcción de la voluntad democrática del supuesto soberano muestra una aparencia pálida, atemorizada y sin garra. Por razones de orden público, las manifestaciones deberían celebrarse en salas cerradas y, en todo caso, no desviarse en modo alguno de la imagen habitual del desfile ordenado de ciudadanos adultos y correctamente vestidos, con una alocución al cierre del acto ante el Ayuntamiento. Este pensamiento trata de encontrar seguridad en la falsa univocidad de dicotomías impuestas por la fuerza. La imagen del manifestante pacífico, ‘perturbador del orden público que no se retira a su casa a toda velocidad tras la primera invitación de la policía y que, al mismo tiempo, no puede demostrar haber contribuido de modo concreto a ‘pacificar la situación’ es un típico producto de esta forma de pensar”. Passagem que bem se amolda ao que o discurso oficial ou oficioso espera dos militantes do MST, mas seguramente também de qualquer manifestante, inclusive os que foram às ruas em junho de 2013.

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É neste nível que as ocupações articulam pretensão de eficácia na

reivindicação da terra, efetivando uma reforma agrária que é prevista na

Constituição e na Lei, mas que somente ocorre onde há pressão popular e geração

de conflitos sociais, com a construção de um espaço simbólico de identidade,

onde pessoas e grupos sociais desempoderados se reconhecem reciprocamente em

uma prática comum de luta pela terra e de constituição coletiva como cidadãos –

que reivindicam a aplicação da lei pela denúncia simbólica da sua frustração.

Disputam coletivamente, desta maneira, uma atribuição de sentido à lei que

difere daquela que deriva do fluxo normal (no duplo sentido de usual e de

normalizador) de relações de exclusão, de dominação, de opressão.

Como vimos, não são os discursos verbalizados pelo MST, malgrado suas

extensas pautas de reivindicação, que são predominantemente tidos em conta na

judicialização dos conflitos de que participa nos tribunais superiores, e sim o

discurso simbólico que ele estrutura a partir de suas práticas e de sua intervenção

social. Assim, pode-se dizer, mais uma vez com Sigaud, que

As ocupações de terras com montagem de acampamentos constituem uma linguagem simbólica, um modo de fazer afirmações por meio de atos, e um ato fundador de pretensões de legitimidade. Ao promover uma ocupação e um acampamento, o movimento diz ao Incra que deseja a desapropriação das terras, ao proprietário, que quer suas terras, e aos outros movimentos, que aquela ocupação tem um dono. Essa linguagem é bem compreendida por todos: o Incra entende que há um pedido de desapropriação e desencadeia o processo, o proprietário percebe a possibilidade de ficar sem suas terras e age na defesa de seus interesses, solicitando a reintegração de posse, e os outros movimentos respeitam a bandeira do concorrente e não ocupam aquela terra. Com o ato de ocupar, os movimentos legitimam suas pretensões à desapropriação e ao reconhecimento de que aquela ocupação é sua. Ao montar sua barraca, o trabalhador diz que quer a terra. Essa afirmação está dirigida ao Incra, que no momento de selecionar os futuros parceleiros irá contabilizar os que se encontram debaixo da lona preta; ao movimento, que o incluirá em suas listas a serem apresentadas ao Incra; e aos demais que se encontram no acampamento, que irão reconhecê-lo como alguém que quer a terra. A barraca legitima a pretensão de pegar a terra; é a prova material do interesse a ser contemplado no momento da redistribuição das terras. O estar debaixo da lona preta é representado como um sofrimento que torna aqueles que a isso se submetem merecedores da recompensa terra. (Sigaud, 2005: 269)

Como ressaltei anteriormente131, em uma sociedade na qual os fluxos

comunicacionais da esfera pública estejam fundamentalmente desimpedidos, a

identificação de problemas sociais e sua resolução, isto é, o agendamento político

131 Vide nota 19.

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de um determinado problema público com vistas à sua solução, tenderá a se

originar no próprio sistema político, seja pelo seu funcionamento regular, no que

Habermas (1997b) chama de modelo de acesso interno, seja pelo modelo de

mobilização, no qual os detentores do poder são obrigados a mobilizar a esfera

pública com o fim de angariar apoio ao menos parcial do público para a adoção

das soluções por eles preconizadas. Os grandes meios de comunicação de massa

desempenharão neste esquema um papel fundamental, pois sua intervenção na

produção e reprodução de opinião pública é essencial em sociedades complexas, e

como eles se articulam com o que Habermas (1997b: 114) chama de “produtores

de informações - poderosos e bem organizados”, e como também preferem

“estratégias publicitárias que diminuem o nível discursivo da circulação pública

da comunicação”, os temas em geral seguirão um fluxo centrífugo, brotando mais

do sistema político do que da periferia social.

Em determinados casos, porém, e principalmente em sociedades mais

igualitárias, ele entende possível que prevaleça, ou ao menos que ocorra em

grande medida, o modelo de iniciativa externa, no qual as forças sociais que estão

formalmente fora do sistema político impõem um tratamento formal a certo tema

através da mobilização da esfera pública – ainda que isso não determine o

atendimento às reivindicações do ou dos grupos envolvidos. Nestes casos,

atores sociais até então negligenciados, podem assumir um papel surpreendentemente ativo e pleno de consequências, quando tomam consciência da situação de crise. Com efeito, apesar da diminuta complexidade organizacional, da fraca capacidade e ação e das desvantagens estruturais, eles têm a chance de inverter a direção do fluxo convencional da comunicação na esfera pública e no sistema político, transformando destarte o modo de solucionar problemas de todo o sistema político. As estruturas comunicacionais da esfera pública estão muito ligadas aos domínios da vida privada, fazendo com que a periferia, ou seja, a sociedade civil, possua uma sensibilidade maior para os novos problemas, conseguindo captá-los e identificá-los antes que os centros da política (Habermas, 1997b: 115).

Vimos anteriormente que a articulação de movimentos sociais visa, dentre

outras coisas, precisamente compensar as enormes disparidades de recursos entre

os manifestantes e os detentores de poder no Estado ou no Mercado, ampliando as

chances de que militantes mantenham conflitos por períodos mais prolongados

com alguma chance de sucesso, contrabalançando ao menos parcialmente,

portanto, as dificuldades que Habermas sublinha acima. Mas ele se refere, nesta

passagem, a sociedades com algum desimpedimento de fluxos comunicacionais

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na esfera pública e basicamente alude à identificação de novos problemas até

então não percebidos pelo sistema político, citando exemplos como a questão do

armamento nuclear, dos riscos de experimentos genéticos, as ameaças ecológicas

ou temas ligados ao feminismo. Segundo ele, não são o aparelho de Estado ou as

grandes organizações ou sistemas funcionais quem articula tais temas em

sociedades complexas, mas “intelectuais, pessoas envolvidas, profissionais,

profissionais radicais, ‘advogados’ autoproclamados etc’”:

Partindo dessa periferia, os temas dão entrada em revistas e associações interessadas, clubes, academias, grupos profissionais, universidades, etc., onde encontram tribunas, iniciativas de cidadãos e outros tipos de plataformas; em vários casos transformam-se em núcleos de cristalização de movimentos sociais e de novas subculturas. E estes, por seu turno, têm condições de encenar e de dramatizar as contribuições, fazendo com que os meios de comunicação de massa se interessem pela questão. Pois, para atingir o grande público e a ‘agenda pública’, tais temas têm que passar pela abordagem controversa da mídia. Às vezes é necessário o apoio de ações espetaculares, de protestos de massa e de longas campanhas para que os temas consigam ser acolhidos e tratados formalmente, atingindo o núcleo do sistema político e superando os programas cautelosos dos ‘velhos partidos’ (Habermas, 1997b: 114-115). O pensador alemão salienta que mesmo nas esferas públicas que foram mais

ou menos absorvidas pelo poder, as relações de força começam a se modificar

assim que a percepção de problemas sociais relevantes suscita uma consciência de

crise na periferia. A extrema atualidade do trecho a seguir e sua pertinência para o

tema desta tese certamente perdoam a longa citação:

E se nesse momento [de crise] atores da sociedade civil se reunirem, formulando um tema correspondente e o propagarem na esfera pública, sua iniciativa pode ter sucesso porque a mobilização endógena da esfera pública coloca em movimento uma lei, normalmente latente, inscrita na estrutura interna de qualquer esfera pública e sempre presente na autocompreensão normativa dos meios de comunicação de massa, segundo a qual, os que estão jogando na arena devem a sua influência ao assentimento da galeria. Pode-se dizer que, à medida que um mundo da vida racionalizado favorece a formação de uma esfera pública liberal com forte apoio numa sociedade civil, a autoridade do público que toma posição se fortalece no decorrer das controvérsias públicas. Pois, em casos de mobilização devido a uma crise, a comunicação pública informal se movimenta, nessas condições, em trilhos que, de um lado, impedem a concentração de massas doutrinadas, seduzíveis populisticamente e, de outro lado, reconduzem os potenciais críticos dispersos de um público que não está mais unido a não ser pelos laços abstratos da mídia – e o auxiliam a exercer uma influência político-publicitária sobre a formação institucionalizada da opinião e da vontade. É certo que apenas em esferas públicas liberais as ações políticas dos movimentos sub-institucionais – que caem fora dos trilhos convencionais da política de interesses, a fim de fortalecer a circulação do sistema político regulado pelo Estado de direito – possuem uma linha diferente da

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das esferas públicas formadas, que servem apenas como foros de legitimação publicitária. No topo desta escada, que é escalada pelos protestos sub-institucionais das pessoas privadas quando agudizam protestos, torna-se claro esse sentido de uma pressão acentuada de legitimação. O último meio para conferir uma audiência maior e uma influência político-jornalística aos argumentos da oposição consiste em atos de desobediência civil, os quais necessitam de um alto grau de explicação. Tais atos de transgressão simbólica não-violenta das regras se auto-interpretam como expressão do protesto contra decisões impositivas as quais são ilegítimas no entender dos atores, apesar de terem surgido legalmente à luz de princípios constitucionais vigentes. Eles têm como alvo dois destinatários. De um lado, apelam aos responsáveis e mandatários, para que retomem deliberações políticas formalmente concluídas, e para que revisem eventualmente suas decisões, tendo em conta a persistente crítica pública. De outro lado, eles apelam para ‘o sentido de justiça da maioria da sociedade’, formulado por Rawls, portanto, para o juízo crítico de um público de pessoas privadas, a ser mobilizado através de meios não-convencionais. Independentemente do respectivo objeto da controvérsia, a desobediência civil sempre reclama implicitamente que a formação legal da vontade política não pode se desligar dos processos de comunicação da esfera pública. A mensagem desse subtexto dirige-se a um sistema político que, devido à sua estrutura constitucional, não pode se desligar da sociedade civil nem se tornar independente da periferia. Deste modo, a desobediência civil refere-se à sua própria origem na sociedade civil, a qual, quando entra em crise, serve-se da opinião pública para atualizar os conteúdos normativos do Estado democrático de direito, e para contrapô-los à inércia sistêmica da política institucional. (Habermas, 1997b: 116-117; grifos no original)132

132 Esta me parece uma passagem particularmente bela de ser lembrada àqueles que não veem em Habermas senão uma formalização teórica blasé sobre o consenso, evitando a visualização de sua contraface necessária em sua obra, o dissenso e o conflito. É certo que ele se empenha em dar uma tradução normativa à possibilidade de geração de consensos racionais legítimos nas sociedades contemporâneas, sem o que a democracia não seria possível, mas isso não implica que esses consensos derivem de uma sociedade cujos integrantes sejam estritamente racionalizados em todos os âmbitos de suas vidas ou que não se articulem à contraposição de interesses, desejos, projetos, sonhos. Autorizei-me a transcrever este longo trecho porque termino de redigir esta tese no momento mesmo em que as ruas são tomadas por milhões de brasileiros durante a Copa das Confederações, em protestos originados pelo aumento de passagens de transportes coletivos nas principais cidades do país. Na esteira de duas semanas de mobilizações convocadas através de redes sociais, à margem dos partidos tradicionais, inclusive os de esquerda, esse impressionante movimento fez vibrar as estruturas convencionais de poder, atacou expressamente a grande mídia, forçando que ela se explicasse em público e modificasse suas linhas editoriais, a cobertura das manifestações e até a linguagem empregada, impôs a revogação do aumento das passagens na maior parte das cidades, mobilizou os três poderes da República, acelerou a agenda de votação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em especial quanto à PEC 37, que barrava os poderes de investigação do Ministério Público, e à alocação dos recursos provenientes dos royalties do petróleo, inclusive do pré-sal, em 70% para a educação e 30% para saúde, dentre outras coisas. É um movimento contraditório, com bandeiras dispersas e confusas, sem eixos claros ou lideranças identificáveis, fortes segmentos conservadores, eventualmente reacionários, e mesmo alguns componentes preocupantemente fascistas. Ainda assim, no calor das análises polissêmicas que se projetam sobre o que está agora acontecendo em nossas ruas, este trecho de Habermas em uma de suas obras mais conhecidas apresenta uma impressionante vitalidade e pode nos ajudar a pensar esta experiência histórica e fundamentalmente aquilo que aqui me ocupa, que é a oxigenação das instituições democráticas a partir do conflito e das enormes energias vitais liberadas pelos movimentos sociais.

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O discurso em Habermas, portanto, não se resume à verbalização do

discurso racional, passível de filtragens pelo mundo sistêmico – ainda que isso

seja essencial e esteja evidentemente no núcleo de suas elaborações sobre a

democracia em sociedades contemporâneas. Ele também implica e envolve as

dramatizações e encenações das contribuições que, como protestos, devem abrir

caminho na esfera pública impedida, abrange ainda o topo desta “escalada” de

protestos, que é a desobediência civil, que se serve claramente de linguagens

simbólicas, e abarca mesmo, no limite, protestos que podem transbordar as

fronteiras da ordem constitucional vigente, desde que se justifique plausivelmente

“no espírito e na letra da constituição e seja conduzida por meios simbólicos que

emprestam à luta o caráter de um apelo não violento à maioria” (Habermas in

Borradori, 2004: 54).

Em sociedades complexas como a brasileira, com populações

esmagadoramente urbanas e enormes distâncias geográficas, a grande mídia joga

um papel decisivo na conformação da opinião pública. Todavia, como vimos

anteriormente, ela sistematicamente contraria sua autocompreensão normativa,

como diz Habermas, reduzindo, ao invés de ampliar, o fluxo de circulação de

informações na esfera pública em momentos de crise ou conflito. A agudização

destes conflitos, que deveria amplificar a demanda por justificação das ações

praticadas (por manifestantes, pelos agentes do Estado, pelos adversários eleitos

pelos manifestantes) e, em decorrência, multiplicar as vozes dissonantes na esfera

pública no sentido de compreender tais fenômenos, acaba gerando,

contraditoriamente, discursos alinhados de uma mídia controlada por uma elite

econômica articulada com a elite política (dentre outros fatores, porque os canais

de rádio e televisão no Brasil são monopólios da União cedidos a empresários por

regime de autorização, concessão ou permissão133), e que não espelham senão um

agir estratégico orientado para a superação do conflito pelo isolamento do

movimento social em questão. Pouco importa aqui qual a reivindicação, qual o

movimento, quais os meios de protesto utilizados, quem está ou não certo –

133 Constituição, art. 21: “Compete à União: (...) XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)”

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importa é que não cabe aos meios de comunicação de massa decidir pela

audiência quais posições apoiar e a quem emprestar legitimação social.

Dessa articulação profunda entre Estado e Mercado baseada não em um

“mundo da vida racionalizado”, ou no favorecimento da formação de uma “esfera

pública liberal com forte apoio numa sociedade civil”, mas em um agir

estritamente estratégico e instrumental calcado num misto de discurso liberal

econômico, rejeição de uma agenda política liberal e financiamento público do

grande capital privado, resta ao público a consciência de que sua tomada de

posição não irá propriamente “fortalecer-se no decorrer das controvérsias

públicas”, mas antes apenas existir e ganhar expressão diante de agudas

controvérsias públicas. Sociedades como a nossa mal escondem sob o verniz da

civilidade a extrema violência utilizada para a preservação das posições sociais

historicamente determinadas dos estratos subalternos de sua hierarquização. Os

massacres de sem-terras, o assassinato de indígenas nas disputas por suas áreas, a

excessiva violência na repressão a manifestações de rua ou a usual truculência

policial em especial nas favelas134 demonstram que quando estes setores sociais

historicamente oprimidos ou esquecidos tentam romper as barreiras de silêncio

que lhes são impostas por uma esfera pública colonizada e ameaçam abandonar os

esquemas clientelistas de favores para suprir suas necessidades imediatas,

passando em vez disso a exigir direitos e o desenvolvimento de políticas públicas

para atendê-los, poderosas estruturas formais ou informais, dos agentes de Estado

ou dos agentes de Mercado, normalmente de ambos, passam a atuar à margem da

ordem constitucional e da legalidade de modo a conter estas massas “no seu

lugar”, isto é, no lugar que lhes foi reservado por esta hierarquia cristalizada de

poder.

Ocorre que esta ação tradicional, historicamente compatível com a

estruturação da sociedade e do Estado brasileiros em tempos passados, não é

sequer remotamente adequada ao discurso de justificação jurídico-constitucional

de sua legitimidade perante a sociedade depois de 1988. Variados mecanismos

não-liberais ou antiliberais eram acionados para a “preservação da ordem, da

segurança pública e do império da lei”, sobre estas populações, mas isso sempre

134 Um exemplo gritante desta forma de atuação pode ser encontrada na ação do BOPE na Favela da Maré em 25/06/2013 (vide http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/06/bope-faz-operacao-na-mare-apreende-drogas-e-mata-suspeitos-pm-e-morto.html, acesso em 17/07/2013).

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ocorreu em nosso país por entre ciclos de sociedades rurais patriarcais,

autoritarismo burocrático-militar e populismo autoritário. A emergência de um

processo de participação de massas a partir do fim da ditadura militar, que começa

com a Lei de Anistia em 1979, ganha fôlego com o retorno dos exilados e a

eleição de governadores em 1982, toma as ruas em 1984 com a campanha pelas

Diretas-Já e desemboca na grande participação popular no processo constituinte

que elaborou a Constituição atual, entre 1987 e 1988, engendra um texto que,

ainda que hegemonizado tardiamente pelo Centrão135, apresenta um nítido perfil

democrático e cidadão, participativo, pós-liberal, ecoando os textos nos quais se

inspirou, em especial as constituições portuguesa e espanhola da democratização.

Como fruto do processo de superação institucional da ditadura militar, a

Constituição de 1988 apresenta não apenas um leque generoso e aberto de direitos

fundamentais, mas evidencia mesmo um perfil comunitário e pluralista (Cittadino,

1999). Desde a Constituinte, houve intensa mobilização social pelo

reconhecimento de direitos no texto constitucional, com uma atuação até então

sem precedentes da sociedade civil brasileira, especialmente em se tratando de

processos constituintes, ao mesmo tempo em que se gerou uma comunidade de

intérpretes da Constituição como decorrência deste processo (Pilatti, 2008: 1;

Cittadino, 1999: 43, nota 70, e 48).

Se a volta do povo às ruas iniciou-se claudicante, tateando os espaços e

permanentemente temeroso dos movimentos nos quartéis e do risco de retrocesso

político, cenários que foram inteiramente afrontados pelo MST em sua trajetória

histórica136, as gerações atuais já não viveram este período de luz e sombra, de

meias-palavras, não conhecem aquilo para o que se poderia retroceder e, portanto,

não temem qualquer retrocesso, cuja enunciação lhes soa vazia e despropositada.

É isto, a meu ver, que traz ainda mais sentido à denúncia da contradição entre

discurso de justificação e práxis histórica por parte da elite política e econômica

do país através dos atos simbólicos de desobediência de movimentos como o

135 Bloco conservador majoritário na Constituinte de 1987-1988 que se organizou a partir de novembro de 1987, e que era composto pelo PDS – Partido Democrático Social, pelo PFL – Partido da Frente Liberal, pelo PL – Partido Liberal, pelo PDC – Partido Democrata Cristão, pelo PTB – Partido Trabalhista Brasileiro e pela ala conservadora do PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro (Pilatti, 2008: 04). 136 Lembre-se apenas, por exemplo, a resistência ao cerco imposto pelo Coronel Curió e sua tropa a uma das primeiras grandes manifestações de massa organizadas, dentre outros, pelo que viria a ser pouco mais tarde o MST, em Encruzilhada Natalino (RS), no ano de 1981, em plena ditadura militar. Vide Stédile & Fernandes, 1999: 22-23.

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MST. Se antes se tratava apenas de uma luta por correlação de forças, em um

esquema metaforicamente estratégico-militar, hoje se trata efetivamente de

desbloquear a esfera pública e torná-la plural, polissêmica e vibrante, exigindo

que discurso e prática se aproximem, não que se neguem137.

A meu ver, esta é a validade algo ambígua do pensamento de Habermas

numa realidade como a brasileira. Se não se pode dizer que se haja ainda

constituído plenamente uma esfera pública desimpedida, baseada num mundo da

vida racionalizado, em tese condições para que dinâmicas de ação comunicativa

possam fundar as bases procedimentais de legitimação de uma democracia

deliberativa, por outro os discursos de justificação das instituições se projetam

como efetivos delimitadores de legitimidade de seu campo de ação quando se

apartam discurso e prática no contexto das ações políticas. Após o processo de

democratização, e principalmente depois da entrada em vigência da Constituição

de 5 de outubro de 1988, não foram poucas as iniciativas populares de luta para

atribuição de sentidos à Constituição e às leis de modo a acolher reivindicações

concretas ou formas específicas de viver e de estar no mundo. Estas

reivindicações e protestos, como os do MST, invocam tanto dispositivos

constitucionais expressos, quanto coerência performativa às instituições, que se

apresentam a partir de um discurso a que corresponde uma autocompreensão

normativa de cunho (pós-) liberal, mas cuja prática não raro não se compatibiliza

com este discurso justificador. A mídia, por outro lado, também funciona como

um limitador ao livre fluxo de ideias e demandas na esfera pública, de tal modo

que tende a estabilizá-la como esfera pública controlada, cujas fronteiras são

permanentemente vigiadas contra a intrusão de elementos nocivos aos interesses

políticos e econômicos dominantes. Não obstante, essa esfera pública –

bloqueada, limitada, controlada, impeditiva – existe e impõe restrições lógico-

137 A crítica à grande mídia assumiu um papel central nas grandes mobilizações de junho de 2013. Palavras de ordem eram expressamente dirigidas contra ela, os repórteres mais conhecidos eram impedidos de cobrir as manifestações, veículos das principais emissoras chegaram a ser atacados e manifestações foram organizadas inclusive em frente à sede da Rede Globo, no Rio de Janeiro. Esta situação incomum obrigou aquela emissora a justificar sua forma de atuação publicamente em pleno Jornal Nacional, e visivelmente produziu alterações significativas na linguagem e na cobertura das manifestações e conflitos de rua. Sem dúvida este deslocamento só foi possível porque o monopólio da (re) construção (e manipulação) de verdades de que ela se cria detentora era cotidianamente ameaçado pela divulgação de informações, eventualmente de vídeos ao vivo, sobre os conflitos de rua nas redes sociais: a negação à sua autocompreensão normativa havia sido exposta, a Rede Globo foi pega em flagrante de contradição performativa e a arena precisou justificar-se diante da galeria.

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formais às contradições entre enunciação e ação. A atuação de movimentos

sociais organizados que, como o MST, mobilizam recursos eficazes e ao mesmo

tempo repletos de intenso material simbólico em suas manifestações, instabiliza as

bases de acomodação desta esfera pública limitada e força caminho na liberação

de suas reivindicações e na exposição das contradições normativas entre aquilo

que deveria ser aberto, mas não é, e aquilo que deveria derivar da lei, mas não

deriva.

É neste esgarçamento dos sentidos normativos da Constituição, das leis, do

papel dos atores políticos e do mercado e das contradições que decorrem da

necessidade normativa de enunciação de um discurso democrático e da

necessidade estratégica de constituição de uma prática não democrática, ou ao

menos não conforme ao sentido normativo democrático, que brota e germina uma

outra esfera pública, contra, em torno, à margem, por dentro dos mecanismos de

controle da mídia. Mesmo bombardeado pela grande mídia por um discurso

monocórdio de exclusão do campo do jurídico pelo menos no curso dos últimos

17 anos (intervalo em que se situam os períodos que monitorei entre mestrado e

doutorado), ainda assim o MST permanece não apenas intensamente ativo, mas

estruturando a viabilização de aplicação de uma política pública e procurando

abrir espaço para sua voz na muralha de silêncio que instrumentalmente se eleva

diante dele138.

Se o discurso racional não aparece, nem na mídia, nem na Justiça, ele brota

como discurso simbólico, como ato espetaculoso que concentra várias

reivindicações, inclusive uma de atribuição de sentido à lei – uma interpretação da

Constituição e da Lei (Häberle), e com ela gera coletivamente um e vários

sujeitos deliberativos (Günther), movimento e seus integrantes, que não aceitam

ser meros destinatários passivos de uma lei que não criam, que não os representa e

que eles não podem interpretar.

138 De onde, talvez, além de suas relações genéticas com as Igrejas Católica e Luterana, venha a significativa participação do MST desde o início no evento popular que ocorre todo ano, no 7 de setembro, o Grito dos Excluídos, organizado pela Pastoral Social da Igreja Católica em parceria com as demais Igrejas do CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, e com vários outros movimentos sociais, entidades e organizações. O Grito como forma de romper um muro de silêncio imposto de fora é sem dúvida inspirador, e me remete aos versos de Mautner e Jacobina: “Quem, quem, quem a não ser o som / Poderia derrubar a muralha dos ódios / Dos preconceitos, das intolerâncias / Das tiranias, das ditaduras / Dos totalitarismos, das patrulhas ideológicas / E do nazismo universal?”. Ver bibliografia.

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Por este motivo a desobediência civil ganha uma importância essencial na

conformação dos mecanismos atuais de democracia no Brasil, porque ela é o

veículo pelo qual a esfera pública formal e limitada se informaliza e se

desbloqueia, é ela quem tensiona as fronteiras entre o tradicional e o novo, e quem

remete ao núcleo do sistema jurídico ao mesmo tempo uma denúncia (do

descumprimento da Constituição e da Lei), uma reivindicação (de aplicação da

Constituição e da Lei) e uma atribuição de sentido (para a Constituição e a Lei)

diversa daquela que se funda sobre o congelamento do espaço público, de tal

modo que denúncia, reivindicação e interpretação se fazem simbolicamente no

mesmo e único ato. E é precisamente em decorrência do papel de mediação entre

faticidade e validade que o Direito desempenha nas sociedades contemporâneas

que não posso isolar este ato em seus momentos político e jurídico, senão

exclusivamente como critério teórico e analítico, mesmo assim muito

precariamente, porque um não se constitui sem o outro.

Creio residir neste conjunto de elementos, além, evidentemente, das

divergências naturais resultantes da adoção de outros recortes ou referenciais

teóricos, a raiz das divergências expressas por Mario Losano (2006) ao criticar

minhas posições quanto à identificação das práticas do MST, em especial as

ocupações de terras e de prédios públicos, genericamente como desobediência

civil (Garcia, 1999: 33-44; 2000: 148-175). A relevância do tema para minha

abordagem neste momento não me permitiria retomá-lo sem enfrentar as críticas

que me foram então feitas pelo renomado professor italiano, de modo a explicitar

melhor minhas opiniões a respeito e o alcance e a atualidade de sua utilização

aqui.

Naquela ocasião, sustentei tal identificação baseando-me nos mesmos três

critérios classicamente adotados pela quase totalidade dos autores139, inclusive

Losano, para caracterizar os atos de protesto como atos de desobediência, isto é,

ilegalidade, publicidade e não-violência, e conceituei o ato de desobediência civil

como sendo

139 A exceção mais notável é Hannah Arendt, que exclui a não-violência deste rol, como eu mesmo já salientara (Garcia, 1999: 36, nota 18; 2000: 157, nota 6), porque para ela não é a violência, e sim o sentido e os objetivos da ação e o espírito das normas legais à cuja contestação se dirigem, que diferenciam desobediência civil de insurreição. A respeito, ver Arendt, 1973: 49-90. Losano indica a mesma exceção e acresce a de Norberto Bobbio (2006: 139, nota 126, e 142-143).

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o ato a princípio ilegal, público e não-violento praticado por uma pessoa ou grupo de pessoas, com o objetivo de provocar a alteração de lei, política governamental ou prática social e/ou de obter o apoio ativo da opinião pública para a sua causa. (Garcia, 1999: 37) Digo ato “a princípio ilegal” porque, como vários outros autores, entendo

que a ilegalidade aqui é relativa – o ato de desobediência bem pode apenas

denunciar a injustiça de uma norma legal ou expressar a discordância do grupo de

manifestantes em relação a ela, mas ele muitas vezes se reveste também da defesa

de inconstitucionalidade da norma, ou denuncia a violação a direitos fundamentais

que decorrem de sua aplicação140.

Ao enfrentar o tema da não-violência das ações do MST (como vimos, no

centro das representações sociais criadas a seu respeito), procedi a uma

relativização que reconheço passível de polêmica, mas que a meu juízo não me

afasta do campo de problematizações acerca da conceituação de desobediência

civil. Esta é a passagem que a indica, e que foi também transcrita por Losano em

seu livro (2006: 141-142)141:

140 É o caso de Ronald Dworkin (1995), para quem dilemas morais relativos a normas jurídicas ou práticas políticas dos governantes podem ser apresentados como questões de constitucionalidade das normas legais ou de legalidade das práticas pertinentes à sua aplicação pelos órgãos governamentais. Aliás, o próprio Dworkin é autor de um artigo, publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, em que igualmente considera os integrantes do MST como desobedientes, e seus atos, como inscritos na “honrosa tradição da desobediência civil”, em especial considerando os profundos enraizamentos de poder do latifúndio no Brasil e a violência desferida contra os ocupantes de áreas cuja desapropriação se pretende, em geral latifúndios improdutivos. Estes fatos evidenciariam a não inclusão dos sem-terra na agenda política geral, não sendo o MST tratado como um participante com igualdade de condições, justificando sua postura de, através de sua intervenção social, provocar a inclusão do tema na pauta de deliberação das autoridades públicas. A respeito, ver Dworkin, 1997. 141 A passagem acima transcrita é adaptação de outra originalmente publicada nos seguintes termos: “Sem afastar este critério como relevante para a caracterização da desobediência civil, seria oportuno salientar que José Antônio Estévez Araújo (1994), ao problematizar a questão da eficácia da não-violência, pondera que a ação violenta é contraproducente nos sistemas representativos ocidentais, mas que no caso de sistemas políticos autoritários, nos quais uma pequena minoria submete pela força a maioria da população, há que se questionar sobre a eficácia da não-violência e se sua defesa não redundaria em involuntária colaboração com a injustiça. Evidentemente, não se pretende aqui dizer que o Brasil viva hoje uma tal situação; mas é imperioso extrair das considerações feitas acima sobre o poder do latifúndio e sobre a violência nos conflitos agrários suas conseqüências plenas, indagando até que ponto o sistema de mediações democráticas chegou a um campo no qual se produzem cadáveres em série. Nestes termos, creio que a exigência de não-violência para a caracterização dos sem-terra como desobedientes não deve ser entendida necessariamente como sinônimo de vocação para o martírio, e sim como uma dupla exigência de outra ordem: que eles não tomem a iniciativa do confronto violento; e de que, quando agredidos, limitem sua eventual reação de forma proporcional e moderada, o que exigirá sempre uma atividade de ponderação por parte do intérprete não diferente daquela sempre necessária para caracterizar ou não o exercício da legítima defesa. Daí ser possível dizer que as ocupações e manifestações do MST são tendencialmente não-violentas, ou que a violência é utilizada no mais das vezes de forma reativa e com meios

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creio que a exigência de não-violência para a caracterização dos Sem-Terra como desobedientes não deve ser entendida necessariamente como sinônimo de vocação para o martírio, e sim como uma dupla exigência de outra ordem: que eles não tomem a iniciativa do confronto violento; e de que, quando agredidos, limitem sua eventual reação de forma proporcional e moderada, o que exigirá sempre uma atividade de ponderação por parte do intérprete142 não diferente daquela sempre necessária para caracterizar ou não o exercício da legítima defesa. Daí ser possível dizer que as ocupações e manifestações do MST são tendencialmente não-violentas, ou que a violência é utilizada no mais das vezes de forma reativa e com meios extremamente moderados, se comparados aos empregados pelos agressores. Com base, pois, nos critérios anteriormente elencados, é possível caracterizar-se a atuação ordinária do MST como prática de atos de desobediência civil. (Garcia, 2000: 171)

Losano (2006: 140-142) refuta a qualificação que fiz das práticas do MST

como atos de desobediência com base nos seguintes argumentos:

a) “se se admite em abstrato que a ocupação não é um delito, já não é

necessário recorrer ao princípio da justificação moral implícita na não violência,

porque simplesmente não nos encontramos na presença de desobediência civil” e,

portanto, se polícia, juízes e milícias privadas agem contra uma ação que não é

extremamente moderados, se comparados aos empregados pelos agressores, podendo situar-se dentro dos limites jurídicos da legítima defesa. Com base, pois, nos critérios anteriormente elencados, é possível caracterizar-se a atuação ordinária do MST como prática de atos de desobediência civil, com o que seria legitimada sua presença no cenário nacional em conformidade com o Estado Democrático de Direito e as modernas concepções da democracia.” (Garcia, 1999: 83-84). Nos termos em que redigido este argumento, ele pode levar a crer que Estévez Araújo compartilha comigo a conclusão por mim extraída a partir de uma referência pontual que fez, o que não é verdade. A extrapolação de seu raciocínio sobre a validade em termos do uso moderado da violência em estados autoritários para uma sociedade democrática com espaços sociais de grande violência, como a brasileira, e sua utilização como critério para identificação de atos de desobediência são de responsabilidade exclusivamente minha e não se encontram nem explícita nem implicitamente em sua obra então consultada. Desculpando-me pelos vários anos de atraso, cumpro aqui a promessa que lhe fizera de reparar publicamente esta referência, quando se apresentasse a ocasião. 142 Curioso notar que Losano, ao citar o trecho acima, inseriu neste ponto a observação “[es decir, del juez]” (“quer dizer, do juiz”). Entretanto, jamais me ocorreu utilizar ali o termo “juiz” em vez de “intérprete”: de meu ponto de vista, já seria profundamente limitador entender intérprete apenas como o juiz e excluir deste conceito, bem mais amplo, todos os demais intérpretes profissionais das normas legais e do Direito, como advogados, promotores, defensores, professores de Direito, dentre outros; entretanto, já à época operava com a noção häberliana de intérpretes em sentido amplo da Constituição, de modo que naquele texto de 2000, e no de 1999 que lhe serve de origem, “intérprete” não queria significar apenas “juiz”, e abrangia todas as potências interpretativas da Constituição (e digo agora, das leis), inclusive e especialmente, os movimentos sociais, como sustentado então e agora.

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delito, a resistência a esta intervenção não é violência, e sim tutela legítima de um

direito próprio143;

b) a desproporção entre o uso da violência pelos ocupantes e pela polícia ou

milícias privadas e os meios de que dispõem pode justificar uma resistência “não-

não-violenta” em certos casos concretos, mas não é um argumento teórico

utilizável em um discurso geral, o que teria me levado a passar da práxis dos

movimentos tal como é para a práxis dos movimentos como seria esperável que

fosse144;

c) o trecho acima transcrito de um artigo meu levou-o a entrever ali uma

contradição, já que, ainda que eu admita a não-violência como um critério para

identificação de atos de desobediência, eu a admito com uma série de limitações

que não modificam sua essência – de que, em abstrato, a violência ou existe ou

não existe, de tal sorte que “a debilidade da argumentação jurídica não cancela o

caráter violento das ocupações de terras e as coloca por isso fora do ‘cenário

nacional democrático’”145.

Ainda que lisonjeado pelo fato do conhecido autor italiano dedicar espaço à

análise de minhas opiniões, não posso concordar com as suas conclusões naquela

crítica, que, de fato, a meu ver enrijecem as fronteiras entre político e jurídico e

mantém indefinido o processo pelo qual concretamente aspectos de renovação dos

sistemas jurídico-normativos têm se dado em várias partes do mundo, inclusive no

Brasil.

143 “El primer problema de teoría política es que, si se admite que en abstracto la ocupación no es delito, no es ya necesario recurrir al principio de la justificación moral implícita en la no violencia, porque simplemente no nos encontramos en presencia de desobediencia civil (que también José Carlos Garcia define en base a los tres elementos ilustrados arriba)” (Losano, 2006: 141), logo após transcrever passagem de meu artigo “O MST entre desobediencia e democracia” (Garcia, 2000). 144 “Además, la ‘desproporción’ entre los ocupantes y la policía y las milícias privadas en el uso de la violencia (con un mayor número de muertos y heridos entre los ocupantes) y en el armamento (armas impropias al emplear herramientas de trabajo contra armas de fuego) puede justificar una resistencia ‘no-no-violenta’ en ciertos casos concretos, pero no es un argumento teórico utilizable en un discurso general. La conclusión poco convincente de este análisis jurídico lleva a José Carlos Garcia a pasarse de la praxis de los movimientos tal como es a la praxis de los movimientos como sería esperable que fuese” (op. loc. cit.). 145 “Aquí me parece entrever una contradicción. José Carlos Garcia, por un lado, admite la violencia del movimiento, ya sea con una serie de limitaciones que no cambiam la esencia: en abstracto, como se propone razonar el autor, la violencia o existe o no existe; porque también la ‘poca’ violencia es violencia. Pero, por otra parte, también él considera que la no violencia es un elemento esencial para la desobediencia civil y por tanto su argumentación no consigue reconducir al MST al ámbito de la no violencia (…). La debilidad de la argumentación jurídica no cancela el carácter violento de las ocupaciones de tierras y las coloca por ello fuera del ‘escenario nacional’ democrático” (op. loc. cit.).

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Seu primeiro argumento, que versa a desnecessidade da utilização da

justificação moral inerente à desobediência civil para caracterizar atos que não

seriam delitos, como é o caso das ocupações de terra, me parece desconsiderar

tanto o caráter controvertido da legalidade em atos de desobediência quanto a sua

utilização como teste de constitucionalidade. Há certamente casos em que os atos

de desobediência civil assumem um caráter de apelo moral contra a aplicação da

norma ou da medida de governo – não me ocorre aqui exemplo historicamente

mais evidente do que aquele que originou o uso da expressão, a negativa de Henry

Thoreau de pagar impostos ao governo dos Estados Unidos a fim de impedir o

financiamento da guerra contra o México, no século XIX146; ou igualmente os

casos de resistência ao alistamento militar obrigatório naquele mesmo país,

durante a Guerra do Vietnã, nos anos 1960. Estes são casos manifestos de um

apelo moral pelo descumprimento de uma norma jurídica válida e, portanto,

tratam-se inequivocamente de atos ilegais de desobediência civil.

Mas muitos dos usos contemporâneos da desobediência pelo mundo

denunciam não apenas o caráter injusto ou imoral ou indesejado da lei, mas sua

inconstitucionalidade; ou referem-se a medidas governamentais que, a juízo dos

manifestantes, sejam total ou parcialmente ilegais. Assim, como registrei no artigo

consultado e citado por Losano,

mesmo quando a prática da desobediência parece ser ilegal, ela pode representar um teste de constitucionalidade da norma legal, ou um questionamento sobre a legalidade da forma concreta de sua aplicação em casos determinados. Foi precisamente o que aconteceu com as tentativas de proibição de manifestações da população negra em Birmingham, nos EUA, durante a campanha pelos direitos civis: a legislação não proibia a manifestação de quem quer que fosse, condicionando-a apenas à obtenção de prévia licença por parte das autoridades; mas os critérios utilizados pelas autoridades locais efetivamente discriminavam manifestantes negros, porque, sem razões fundadas, negavam a eles a concessão da licença, sem que se evidenciassem motivos de interesse público (Garcia, 1999: 43). Protestos não ocorrem como um exercício abstrato na cabeça do intérprete

da norma, eles ocorrem no mundo da vida e deles participam dezenas, centenas,

146 “O norte-americano Henry Thoreau, que viveu entre 1817 e 1862, protestava simultaneamente contra a política escravista do estado de Massachussets e contra a guerra dos EUA com o México (1846-1848), na qual aqueles anexaram os atuais territórios da Califórnia, do Texas e do Novo México. Em 1846, Thoreau deixou de pagar impostos como forma de protesto, vindo a ser preso por este motivo. Foi ele quem cunhou a expressão desobediência civil em seu célebre artigo com o mesmo nome; seu título original, entretanto (Resistance to civil government, ou Resistência ao governo civil) remete ainda mais intensamente ao pensamento de Locke” (Garcia, 1999: 34).

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eventualmente milhares ou mesmo milhões de pessoas. Como os episódios de

junho de 2013, durante a Copa das Confederações no Brasil, demonstram – mas

poderíamos citar inúmeros outros casos pelo mundo, como o movimento

altermundista, os occupy, os indignados na Espanha, dentre tantos outros –, em

muitos casos não está dado desde o início o sentido específico (“sentido” aqui

como “significação”) da manifestação. Sequer é diferente quanto ao MST, onde

há liderança clara, pauta e organização definidas – eventos como a ocupação da

fazenda da Cutrale em 2009147 bem o demonstram, mas tudo o que se disse

anteriormente sobre a unidimensionalidade da cobertura da grande mídia sobre as

manifestações do MST o reiteram. A identificação da ilegalidade do ato como

uma ilegalidade relativa ou a priori indica que, desde um ponto de vista a partir

do sistema legal (já operando, portanto, com as linguagens e técnicas próprias

deste sistema) se trata de uma ilegalidade controvertida, polemizada, não passível

de uma definição em abstrato com pretensão de consensualidade, mas de uma

controvérsia que exige argumentação racionalmente fundada, para além da

linguagem simbólica do próprio ato, como sustentei no capítulo anterior,

buscando demonstrar que do ponto de vista técnico-jurídico é incorreta a

tipificação daquele tipo de ação em geral do MST como crime de esbulho

possessório por ausência de elementos do tipo148. Todavia, há advogados,

promotores, juízes, professores de Direito, para ficarmos apenas nos intérpretes

profissionais do direito positivo, que não entendem desta forma. Assim, há uma

disputa de interpretações e sentidos sobre o que sejam os atos de protesto, e mais

ainda sobre eventuais atos de violência que ocasionalmente possam ter lugar em

alguns daqueles atos concretos, não importa por quem praticados.

Quando eles têm lugar, quando há confronto físico entre ocupantes e

polícia, ou entre ocupantes e milícias privadas de fazendeiros, a fim de saber se o

ato ainda se integra à conceituação desobediência não posso senão analisar aquele

evento concreto com relação aos conceitos abstratos que utilizo para mensurá-

los. Eu não poderia justificar uma “resistência não-não-violenta” sem o recurso a

um argumento teórico utilizável em um discurso geral, pois neste caso eu não teria

147 Ver http://www1.folha.uol.com.br/poder/1184580-grupo-de-mulheres-do-mst-ocupa-fazenda-da-cutrale-em-sp.shtml. 148 O que não exclui, ao menos em tese, a ocorrência de outros delitos. Para ficarmos no exemplo da ocupação da fazenda que pertenceria à Cutrale em Borebi, SP, em 2009, pode ter-se caracterizado hipoteticamente o crime de dano, previsto no art. 163 do Código Penal.

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qualquer paradigma racionalmente válido para justificar ou não justificar qualquer

ação, mas o fato é que, assim como para alguns autores o caráter da ilegalidade do

ato de desobediência é relativo, o caráter de não-violência, ainda que muito mais

difundido, também encontra matizações, inclusive com sua exclusão como caráter

diferenciador (caso de Bobbio, segundo Losano; caso de Arendt, segundo nós

dois). A afirmação de que “em abstrato, a violência existe ou não existe” (Losano,

2006: 142), usada para refutar as condicionantes que erigi no texto que critica, não

me parece, pois, ser tão evidente e demandaria, a meu ver, um esforço

argumentativo maior por parte do autor: tomar a iniciativa de atos violentos, usar

moderadamente da violência de forma defensiva ou negar-se categoricamente ao

uso da violência em qualquer circunstância são predisposições dos manifestantes

inteiramente diversas entre si no plano conceitual e empiricamente observáveis

(diferenciáveis) em inúmeros atos de protesto (ainda que, em casos concretos,

muitas destas intencionalidades possam se confundir na agitação própria à

manifestação, mas esta é uma questão de prova, não conceitual); no contexto de

um debate que até mesmo exclui a não-violência como critério definidor da

desobediência, exigir para sua caracterização que os manifestantes não tomem a

iniciativa de uso da violência e, quando atacados, limitem sua reação aos

parâmetros de moderação e proporcionalidade próprios da legítima defesa está a

meu ver longe de ser uma exigência contraditória, porque não se trata aqui de

pouca ou muita violência, mas de uma forma específica de uso da violência

exercida num contexto geral em que o sistema legal a tutela e autoriza,

correspondendo a um juízo moral de que a violência exercida sob certas condições

pode ser aceitável. Trata-se de uma diferenciação de qualidade, e não de

quantidade, e que ainda que envolva uma conceituação jurídica, engloba

igualmente uma dimensão moral extrajurídica.

Quando muito concederia argumentativamente que reivindicar o uso

legítimo da violência defensiva como limite para a caracterização da exigência de

não-violência em atos de desobediência poderia aparentemente encerrar uma

contradição lógico-formal na nomenclatura utilizada, ainda que não no seu

conteúdo; contudo, sustento sua utilização, seja pela sua consagração no âmbito

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deste debate149, seja porque aqui haveria um uso juridicamente legítimo da

violência e, como contraditoriamente afirma Losano, neste caso se trataria apenas

de “tutela legítima de um direito próprio”. Com isso, não transito da “práxis dos

movimentos tal como é para a práxis dos movimentos como seria esperável que

fosse”, eu apenas identifico critérios abstratos de análise baseados em determinada

casuística (exposta acima em todos os casos julgados pelo STF e pelo STJ entre

2000 e 2010 sobre militantes do MST) e os confronto com o que o movimento faz

ou deixa de fazer, a fim de, como observador, concluir se este ou aquele ato

enquadram-se ou não naquela categorização. Analisando os dados aqui recolhidos,

reitero que em geral os atos de ocupação por militantes do MST se apresentam

como atos de desobediência, ainda que alguns atos concretos por eles praticados

possam refugir a esta conceituação.

Aquilo que considero serem contradições na posição de Mario Losano fica

mais claro quando ele desenvolve suas observações sobre a outra célebre exceção

à exigência de não-violência na caracterização da desobediência civil, segundo ele

próprio – Norberto Bobbio:

Distinguindo entre oposição legal, contestação e resistência, Bobbio situa ‘a ocupação de terras por parte de camponeses famintos’ entre as formas de ‘resistência sem contestação’; para ele, a resistência ‘não é incompatível com a violência’. De outra parte, a ocupação de terras é uma das ‘técnicas de pressão não violenta contra determinados interesses econômicos’. De fato, esta pressão pode consistir em uma abstenção, como a greve, ou em uma ação, como ‘a ocupação da terra ou de uma casa’. Do texto de Bobbio se pode extrair o convencimento de que a ocupação de terras é uma forma de não violência, ainda que não exclua momentos de violência; esta conclusão contraditória é análoga à que encontramos na argumentação jurídica examinada pouco acima. A ocupação de terras seria não-violenta porque não teoriza práticas insurreicionais, como o leninismo, antes busca por em dificuldade o adversário (o Estado, no caso das ocupações) sem destruí-lo; não quer agredir, quer tornar-se inofensivo; é uma não-violência positiva, no sentido de que também os adversários tiram proveito da consecução dos fins dos desobedientes. Esta leitura de Bobbio me parece que corresponde à ação do MST e dos demais movimentos, que começam com a desobediência civil (o latifúndio foi declarado improdutivo, mas não foi desapropriado para a reforma agrária:

149 Sirvo-me aqui do conhecido princípio da navalha de Ockham: não tenho porquê gerar uma nova exigência, nominando-a de forma distinta, se minhas relativizações não excluem o que me parece ser o limite do conceito de não-violência para a identificação de atos de desobediência civil, isto é, seu uso estritamente defensivo, moderado e proporcional, de modo que se os manifestantes tomam a iniciativa do confronto, ou se usam imoderada ou desproporcionalmente de seus meios em caso de sofrerem agressão, eu não estarei diante de um ato de desobediência civil, mas de uma outra forma qualquer de protesto, rebelião ou insurreição não justificável por este meio, podendo ou não o ser por outros, jurídica ou extrajuridicamente.

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então se ocupa, violando as normas de tutela da propriedade privada, a fim de que as normas sobre a reforma agrária sejam aplicadas); prosseguem com a resistência não violenta (os ocupantes cultivam a terra ocupada, derrubam os cercados que impedem [-lhes] acessar a água, utilizam as árvores de reservas naturais, se conectam ilegalmente à rede elétrica: é uma necessidade, porque de alguma maneira devem sobreviver); podem conhecer momentos de violência por autodefesa (como o enfrentamento com as milícias armadas do proprietário ou com a polícia). Mas esta violência é momentânea e autodefensiva, à diferença da violência revolucionária que é contínua e ofensiva. A proposição de Bobbio apresenta a vantagem de trasladar a valoração do direito para a política, ou seja, das formas para o conteúdo. Disso resulta uma explicação mais próxima da realidade do que o são as argumentações jurídicas. (Losano, 2006: 143-144; grifei)150 Em que pesem algumas divergências tópicas quanto a elementos factuais

contidos nas observações de Losano151, veremos com nitidez que as proposições

de Bobbio152 (que não utilizei na ocasião) são muito similares (“análogas”, é a

150 “Distinguiendo entre oposición legal, contestación y resistencia, Bobbio sitúa ‘la ocupación de tierras por parte de campesinos hambrientos’ entre las formas de ‘resistencia sin contestación’; para él, la resistencia ‘no es incompatible con la violencia’. Por otra parte, la ocupación de tierras es una de las ‘técnicas de presión no violenta contra determinados intereses económicos’. En efecto, esta presión puede consistir en una abstención, como la huelga, o bien una acción, ‘como la ocupación de la tierra o de una casa’. Del texto de Bobbio se puede sacar el convencimiento de que la ocupación de tierras es una forma de no violencia, no obstante no excluye momentos de violencia; esta conclusión contradictoria es análoga a la que ya hemos encontrado en la argumentación jurídica examinada poco más arriba. La ocupación de tierras sería no violenta porque no teoriza prácticas insurreccionales, como el leninismo, sino que busca poner en dificultad al adversario (el Estado, en el caso de las ocupaciones) sin destruirlo; no quiere ofender, quiere volver inofensivo; es una no violencia positiva, en el sentido de que también los adversarios sacan provecho de la consecución de los fines de los desobedientes. Esta lectura de Bobbio me parece que corresponde a la acción del MST y de los demás movimientos, que empiezan con la desobediencia civil (el latifundio ha sido declarado improductivo, pero no ha sido todavía expropriado para la reforma agraria: entonces se ocupa, violando las normas de tutela de la propriedad privada, a fin de que las normas sobre la reforma agraria sean aplicadas); prosiguen con la resistencia no violenta (los ocupantes cultivan la tierra ocupada, infringen los vallados que impiden acceder al agua, utilizan los árboles de reservas naturales, se conectan ilegalmente a la red eléctrica: es una necesidad, porque de alguna manera hay que sobrevivir); pueden conocer momentos de violencia por autodefensa (como el enfrentamiento con las milicias armadas del proprietario o con la policía). Pero esta violencia es momentanea e autodefensiva, a diferencia de la violencia revolucionaria que es continua y ofensiva. El planteamiento de Bobbio presenta la ventaja de trasladar la valoración del del derecho a la política, es decir, de las formas al contenido. De ello resulta una explicación cercana a la realidad más de lo que lo son las argumentaciones jurídicas” (op. loc. cit.). 151 Por exemplo, em boa parte dos acampamentos e ocupações não estamos diante de “camponeses famintos”, e muitas vezes as ocupações se dão antes das vistorias que declaram o imóvel improdutivo, sendo mesmo o fundamento para a ação do Incra e a existência daquilo que Sigaud (2005) chamou de dependência recíproca entre aquele órgão governamental e o MST (vide p. 138-140). 152 Parece ser a seguinte a passagem de Bobbio referida por Losano (já que ele indica naturalmente a edição italiana, enquanto me sirvo da brasileira): “Enquanto contrária à aceitação, a contestação se refere, mais do que a um comportamento de ruptura, a uma atitude de crítica, que põe em questão a ordem constituída sem necessidade de pô-la em crise. Lavau observa, corretamente, que a contestação ‘supera o âmbito do subsistema político para atingir não só sua ordem normativa, mas também os modelos culturais gerais (o sistema cultural) que asseguram a legitimidade

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palavra utilizada por Losano) às que sustentei na passagem por ele criticada.

Chegamos, então, ao que me parece o verdadeiro cerne da divergência entre nós,

que é a renúncia de Losano em explicar as ocupações a partir de um “discurso

jurídico”, que seria calcado nas formas, para adotar apenas um discurso “político”,

pretensamente referido ao conteúdo153.

Protestos, manifestações e atos de desobediência não são, evidentemente,

“atos jurídicos” – eles têm lugar no mundo da vida, o espaço não-sistêmico onde

as interações entre as pessoas são mediadas pela linguagem cotidiana. Não se trata

aqui, e não se tratava no meu artigo em questão, de capturar os protestos em

discursos jurídicos, de aprisioná-los em uma única das várias possíveis dimensões

que eles e suas conseqüências podem vir a assumir socialmente, e sim de

estruturar um discurso jurídico que seja capaz de manter o sistema legal aberto a

pressões de fora que o modifiquem, que atualizem seus conteúdos normativos.

Isto não transforma ou reduz atos de desobediência em/a meros inputs sistêmicos,

apenas abre a possibilidade de reler os protestos como geradores de tais inputs.

Quando sustentei esta abertura na ocasião, e o reitero em outros termos agora,

jamais me ocorreu que o discurso de legitimação das ocupações como atos de

desobediência fosse um discurso jurídico no sentido utilizado por Losano – tanto

profunda do subsistema político’. E, com efeito, se a resistência culmina essencialmente num ato prático, numa ação ainda que apenas demonstrativa (como a do negro que se senta à mesa de um restaurante reservado aos brancos), a contestação, por seu turno, expressa-se através de um discurso crítico, num protesto verbal, na enunciação de um slogan. (Não por acaso o lugar próprio em que se manifesta a atitude contestadora é a assembléia, ou seja, um lugar onde não se age, mas se fala). Decerto, na prática, a distinção não é assim tão nítida: numa situação concreta, é difícil estabelecer onde termina a contestação e onde começa a resistência. O importante é que se podem verificar os dois casos-limite, o de uma resistência sem contestação (a ocupação de terras por camponeses famintos) e o de uma contestação que não se faz acompanhar por ato subversivo que possa ser chamado de resistência (a ocupação de salas de aula na Universidade, que é certamente um ato de resistência, nem sempre caracterizou necessariamente a contestação do movimento estudantil). Enquanto a resistência, ainda que não necessariamente violenta, pode chegar até o uso da violência, a violência do contestador, ao contrário, é sempre apenas ideológica” (Bobbio, 1992: 144-145). 153 Renúncia que manifesta em várias outras passagens: “Solo constato que es una empresa desesperada intentar justificar en abstracto aquel comportamiento desde un punto de vista jurídico” (op. cit.: 142); “Mi convencimiento es que el intento de justificar las ocupaciones de tierras desde un punto de vista jurídico es infructuoso en el plano cientifico. Los juristas, en cambio, deben analizarlas en el plano jurídico porque éste es el único admisible en el debate judicial; y puesto que los juristas deben estar o de una parte o de la otra, terminan trazando una imagen o irenista o guevarista de un movimiento que no es ni una cosa ni la otra, sino más bien la mezcla de una y otra. Para complicar el juicio, la composición de la mezcla varía de ocupación en ocupación. En conclusión, me parece más fructífero dejar a los abogados y los jueces el debate jurídico e intentar, en cambio, una justificación política de las ocupaciones de tierras, de la cual recavar indicaciones suficientemente practicables sobre lo que es políticamente aceptable y jurídicamente tolerable por parte de los movimientos sociales y lo que, en cambio, no lo es” (op. cit.: 144).

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que me referi às condições usualmente utilizadas pela literatura política para

identificá-los nos atos do MST. Ocorre apenas que o foco de minhas preocupações

não são os atos em si, mas como eles interagem com o sistema legal desde fora,

a partir do mundo da vida e das desestabilizações que provocam na esfera pública.

Não tenho os sistemas legais como sistemas fechados a estas influências, já que

opero com uma sociedade estruturada em dois níveis, sistêmico e não-sistêmico, e

o que me importa aqui são as condições de geração de impacto no âmbito

sistêmico a partir do não-sistêmico, cerne da concepção habermasiana de

democracia deliberativa com a qual tenho trabalhado.

O desafio de uma tal abordagem é o de manter abertas as fronteiras entre

jurídico e não jurídico, entre sistêmico e não sistêmico, ao mesmo tempo negando

a colonização do mundo da vida pela lógica do subsistema legal e permitindo

alguma migração da racionalidade e dos desejos expressos pelos atos de protesto

para o interior do sistema, mesmo sabendo que, nesta passagem, os filtros

sistêmicos atuarão sobre estas demandas, racionalidades e linguagens (Habermas,

1997c). Mas abrir o sistema jurídico à influência das ruas, das ocupações e dos

protestos não é a sua colonização por aquele sistema. Esta colonização se dá

apenas quando formas de regulação sistêmica penetram nestas manifestações e

procuram organizá-las de modo a submetê-las a imperativos sistêmicos

(Frankenberg, 1992), não quando, contrariando tendências de fechamento e

autorreprodução sistêmicas, são os sistemas que absorvem e processam demandas,

reivindicações e interpretações que brotam da sociedade civil. Isso decorre, no

âmbito de uma análise vinculada à teoria da ação comunicativa – portanto crítica à

teoria dos sistemas – ao caráter ambíguo jogado pelo Direito em sociedades

complexas: ele não apenas deve produzir expectativas estáveis ou reduzir

frustrações na sociedade, mas também facilitar o entendimento entre interesses

distintos no âmbito do mundo da vida e coordenar as consequências de ações no

nível sistêmico:

Como um contraconceito para mundo da vida – a esfera de interação mediada pela linguagem cotidiana – a categoria sistemas aqui denota a organização não normatizada de ações propositivo-racionais. No contexto deste modelo de sociedade em dois níveis e nas condições de integração sistêmica e social que lhe é paralela, o direito joga um papel-chave ambíguo. O direito como ‘mediação’, enquanto paradigma do formal, guia ‘a’ sociedade a serviço da solução objetiva de problemas, ditados por imperativos sistêmicos. O direito ‘institucional’, por outro lado, opera a serviço do mundo da vida. Ele coordena a ação ao formatar

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procedimentos legais que institucionalizam demandas fundamentais e formas de aproveitá-las argumentativamente154 (Frankenberg, 1992: 21).

Portanto, ainda que sem dúvida atos de desobediência, ou qualquer outra

forma de protesto ou manifestação como se queira compreender as ocupações de

terras praticadas pelo MST, não possam ser reduzidos a um discurso jurídico, a

dicotomização entre direito e política, mesmo com a intenção de preservar a

energia que emana de tais atos sobre o conjunto da sociedade e sobre o Estado,

não é capaz de vislumbrar os mecanismos que informam a renovação e

relegitimação permanentes do sistema legal em sociedades democráticas por ações

radicais de protesto, como aquelas ocupações ou as manifestações das ruas

brasileiras em junho de 2013. Porque, ao se excluir inteiramente o jurídico desta

elaboração, paradoxalmente reforça-se o esquema binário legal/ilegal,

positivo/negativo, em que a teoria dos sistemas encerra o sistema jurídico, porque

a desobediência civil

não pode ser reduzida ao modelo positivo/negativo. Nem se trata simplesmente de uma ‘comunicação sobre a lei’ ou de um caso da ‘prática gerando paradoxos jurídicos’. Porque diferentemente de Antígona, o desobediente tipicamente não está preocupado em provar que a norma transgredida seja inválida. (…) A discussão não é estritamente sobre direito positivo mas sobre as bases de legitimidade das decisões do governo, das medidas administrativas, ou das decisões da maioria. Mais concretamente, é sobre as bases normativas para instalar armas nucleares ou, no passado, para a escravidão. As normas transgredidas são tipicamente o ‘meio’ para o transporte simbólico do protesto. E enquanto a desobediência civil, como pública, não-violenta, normativamente justificada, e limitada, e portanto como um protesto discursivo, continuar ‘suspenso entre legitimidade e legalidade’, ela sinalizará ‘o fato de que a democracia constitucional... com seus princípios constitucionais de legitimação, vai além de qualquer forma de seu enquadramento no direito positivo. O que está em jogo aqui não é um fundacionalismo normativo que apunhala o direito positivo pelas costas. Em vez disso, o fardo da simbolização que o desobediente põe sobre si mesmo indica o fato de que a decisão sobre o que é legal e sobre o que não o é não é nem determinado binariamente nem definitivamente decidido institucionalmente, mas que é em princípio fundamentalmente aberto. Assim, desobediência civil implica e visa à abertura

154 “As a counterconcept to the lifeworld – the sphere of interaction mediated by everyday language – the systems category here denotes the norm-free organization of purposive-rational action. In the context of this two-tiered model of society and the condition of systemic and social integration that are parallel to it, the law plays an ambiguous key role. ‘Medial’ law, while the paragon of formal, guides ‘the’ society in the service of objective problem solving, dictated by systemic imperatives. ‘Institutional’ law, on the other hand, operates in the service of the lifeworld. It coordinates action by shaping legalistic procedures that institutionalize fundamental demands and ways of cashing them in argumentatively.” (op. loc. cit.)

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precisamente da dimensão que, segundo Luhmann, deveria permanecer fechada: a da codificação.155 (Frankenberg, 1992: 29) É por isto que não posso concordar com qualquer dicotomização entre

jurídico e político na qualificação dos atos de ocupação, ainda que comungando

em grande medida das mesmas conclusões básicas de Losano156, e é também por

isso que este resgate se faz importante neste momento, porque ele expressa a

busca aqui encetada pela compreensão dos processos de abertura das fronteiras

entre mundo da vida e sistema jurídico, entre protesto como denúncia e como

interpretação constitucional, onde se reconhece na desobediência civil o papel

central de remeter ao núcleo dos subsistemas jurídico e político reivindicações que

são simultaneamente de atendimento a demandas e de atendimento a direitos,

denúncias de violação da lei e atribuição de sentido a ela, e onde a separação

possível, meramente analítica, entre os momentos jurídico e político do ato de

protesto não inibe sua natureza multifacetada de reivindicação e de interpretação

jurídica não profissional a um só tempo157: a desobediência contrasta

permanentemente o alheamento do sistema legal do conjunto de mecanismos de

participação política e interpretação jurídica informal que transitam ou deveriam

transitar pela esfera pública não impedida, de tal sorte que a interpretação não

profissional se articula geneticamente com a participação política e se converte em

um direito à participação e à interpretação:

155 “It cannot be minimized according to the positive/negative model. Nor is it simply ‘communication about the law’ and as such a case of ‘practice generating paradox in the law’. For unlike Antigone, the disobedient typically are not concerned with proving the transgressed norm to be unlawful. (…) The discussion is not strictly about positive law but about the bases for the legitimacy of government decisions, administrative measures, or majority decisions. More concretely, it is about the normative basis for stationing nuclear weapons or, in the past, for slavery. The transgressed norms are typically the ‘medium’ for the symbolic transport of the protest. And as long as civil disobedience, as a public, nonviolent, normatively justified, and reined-in, and hence as a discursive protest, remains ‘suspended between legitimacy and legality,’ it signals ‘the fact that constitutional democracy… with its legitimating constitutional principles goes beyond any form of their embodiement in positive law. What is at play here is not a normative foundationalism that stabs positive law in the back. Rather, the burden of symbolization that the disobedient take upon themselves points to the fact that the decision over what is legal and what is not is neither determined binarily nor definitively decided institutionally but that it is in principle fundamentally open. Thus, civil disobedience implies and aims at an openness in the very dimension that, according to Luhmann, must be closed: that of codification.” (op. loc. cit.) 156 Como ele chega a dizer: “A mi juicio, la violencia física admisible – o, mejor dicho, inevitable – en los movimientos de los Sin Tierra debe presentar tres características: debe ser momentánea; debe ser autodefensiva; no debe producir efectos irreversibles.” (Losano, 2006: 145, grifos no original) 157 Como se dizia nas redes sociais e ao longo dos protestos de junho de 2013 aqui no Brasil, “não é por R$ 0,20, é pelos meus direitos”.

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É, portanto, pela via da participação político-jurídica, aqui traduzida como o alargamento do círculo de intérpretes da constituição, que se processa a interligação entre os direitos fundamentais e a democracia participativa. Em outras palavras, a abertura constitucional permite que cidadãos, partidos políticos, associações, etc. integrem o círculo de intérpretes da constituição, democratizando o processo interpretativo - na medida em que ele se torna aberto e público - e, ao mesmo tempo, concretizando a constituição. (...) Concretizar o sistema de direitos constitucionais, portanto, pressupõe uma atividade interpretativa tanto mais intensa, efetiva e democrática quanto maior for o nível de abertura constitucional existente. Neste sentido, é exatamente porque não se prescreve o regime da aplicabilidade imediata da maioria das normas relativas aos direitos fundamentais que se espera a decisão política da comunidade histórica no sentido de efetivamente participar do grupo de intérpretes da constituição. (Cittadino, 1999: 19)

Evidentemente, isso não iguala nem abstrata nem concretamente a atuação

de intérpretes profissionais e não profissionais, que jogarão ainda papéis diversos

e atuarão de modo inteiramente distinto, mas rompe com o monopólio da

interpretação profissional, em regra vinculada aos órgãos do Estado, para dizer o

que é a Constituição e o que é o Direito. O rompimento deste monopólio leva-nos

às elaborações de Peter Häberle, mencionadas no Capítulo 1, para quem os

intérpretes não profissionais do Direito, que ele chama de intérpretes em sentido

amplo, através de suas ações e intervenções sociais ajudam a definir os contornos

do que é ou não compatível com a Constituição, e os possíveis sentidos que ela

encerra. Cuida-se de uma ampliação subjetiva do processo interpretativo que,

todavia, não esvazia os órgãos com competência institucional para a interpretação:

cidadãos, grupos, a opinião pública, constituiriam em sua visão forças produtivas

de interpretação, atuando ao menos como pré-intérpretes ou disponibilizadores

de materiais hermenêuticos para os intérpretes profissionais. Restaria sempre

incólume, entretanto, a “responsabilidade da jurisdição constitucional, que

fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação constitucional”158

(Häberle, 1997: 14), mas esta interpretação passa a ser concebida não mais apenas

como uma função fechada nos âmbitos sistêmicos do Estado, já que a

Constituição e seu conteúdo passam a ser vistas como um processo público, com

conteúdo indeterminado e passível de constantes reinterpretações. A interpretação

em sentido estrito, por outro lado, seria uma atividade racional e consciente

158 Afirmação problemática e discutível, já que a meu ver não se trata de quem tem a “última palavra”, mas quem funcionalmente vincula com sua interpretação, num processo que não pode ser senão historicamente precário se os temas podem constantemente ser reabertos na esfera pública.

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dirigida à compreensão e à aplicação de uma norma, correspondendo, assim, à

atividade dos órgãos estatais legalmente reconhecidos para a interpretação em

termos funcionais.

Esta noção de constituição como processo social aberto é sem dúvida

compatível com uma noção de democracia deliberativa baseada na ética do

discurso, pois a democratização da interpretação constitucional que ela envolve

põe em relevo o papel dos membros da sociedade na definição do sentido das

normas que os regulam, exigência de base kantiana a que se refere Günther

(2006). Todavia, em um contexto geral de maior conflitividade social, onde a

mobilização e o protesto têm o potencial de reconstruir simbólica e

cotidianamente a amplitude da esfera pública, os intérpretes em sentido amplo

podem ser chamados a desempenhar um papel mais decisivo do que Häberle a

princípio indica.

Esta ressignificação da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição nos

termos de uma democracia deliberativa pode ser obtida, a meu ver, por uma dupla

releitura de sua proposição: por um lado, desfazendo-se conceitualmente a

subordinação da interpretação em sentido amplo àquela em sentido estrito como

um aspecto interno à interpretação, o que nos remete à relação entre intérpretes

profissionais e não profissionais e os respectivos processos interpretativos; por

outro lado, reconhecendo-se o caráter ao menos potencialmente jurídico da

interpretação em sentido amplo.

Para suscitar esta dupla releitura, gostaria de fazer um exercício que implica

recorrer a um apelo às experiências comuns do cotidiano em nossas interações

sociais, notadamente com cidadãos brasileiros de baixo nível de instrução formal

e renda. Não o faço com base em qualquer pesquisa empírica, mas pressupondo a

verificabilidade por qualquer um, em seus contatos intersubjetivos cotidianos,

sobre a construção, por aquelas pessoas, de duas frases que qualquer um de nós

certamente já ouviu, possivelmente mais de uma vez, ao serem discutidas tanto

questões momentosas veiculadas pela imprensa quanto questões pessoais: “Isso

não devia ser assim” e “eu sou pelo correto!”, esta última, normalmente

exclamativa159.

159 Obviamente há inúmeras variações historicamente possíveis para tais construções, especialmente em função de contextos discursivos e falares regionais, mas substancialmente expressarão, em condições distintas, seu mesmo conteúdo semântico.

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A primeira delas, “isso não devia (ou deveria) ser assim”, quando reportada

à conseqüência de um processo institucionalizado de aplicação da “lei”160, em

geral é seguida de expressões como “isto não está certo”, “isto não é correto”,

“isto não é justo”, “isto não é direito”, ou outras variações de sentido semântico

aproximado, e claramente expressa um juízo de valor sobre a decisão, reportando-

se a um conceito abstrato de justiça cuja identificação concreta, aqui, não vem ao

caso. A ideia de que a “lei” foi aplicada de forma como não deveria pode remeter,

segundo o contexto discursivo, tanto a uma situação de atipicidade (ausência de

identidade ou similitude essencial entre o tipo normativo abstratamente previsto e

o fato concreto considerado), ou a uma particularidade de fato que determinasse a

exclusão da incidência da norma aplicada (por exemplo, uma excludente de

ilicitude), ou ainda quanto a um questionamento sobre a própria validade ou

aplicabilidade da norma, tanto em abstrato (a norma não é justa, não é válida, ela

não é direito), quanto em concreto (a norma existe e é válida, o fato concreto que

nela está abstratamente previsto ocorreu, mas a sua aplicação gera um efeito

insustentável frente ao critério de justiça adotado pelo falante). Em outras

palavras, dentre as várias contextualizações possíveis para esta fala, pode-se

inserir a de uma crítica à “constitucionalidade” da “lei”, enquanto vinculação

desta ao sentido geral de justiça que a “Constituição” deve encerrar numa

sociedade democrática.

160 Utilizarei no desenvolvimento deste raciocínio a expressão “lei”, entre aspas, como equivalente à norma social de cuja interpretação e aplicação se cuida, e “Constituição”, igualmente entre aspas, como aproximativa para o critério abstrato de justiça empregado pelo intérprete e definidora argumentativa, para ele, do quadro geral de validade da “lei”. Não desconsidero que seja problemático abstrair tanto a expressão Constituição a ponto de quase identificá-la com um critério abstrato de justiça. Todavia, cuida-se aqui de um mero exercício argumentativo que não tem a pretensão de esgotar o tema, muito menos de comprová-lo empiricamente, mas tão-somente de evidenciar o caráter jurídico deste tipo de interpretação. Além disso, é de se notar alguns aspectos que são essenciais para não rejeitar sumariamente esta identificação argumentativa, em especial no caso brasileiro, e dentre os quais eu ressaltaria: a) a extensão e complexidade de nossa Constituição; b) o fato de se tratar de interpretação não profissional; c) o fato de que mesmo intérpretes profissionais podem ter um conhecimento bastante setorizado e parcial do texto constitucional, em virtude do mencionado no item “a”; d) o fato de que mesmo uma interpretação profissional não arbitrária e racionalmente fundada não pode se limitar a uma interpretação gramatical, impondo-se uma construção normativa em cada caso que implicará forçosamente a redução, em algum grau, das disposições constitucionais abrangidas a um conjunto de postulados e pressupostos, os quais forçosamente envolverão um conceito abstrato de justiça; d) o fato de que a Constituição, como documento jurídico-político que expressa os fundamentos e compromissos de uma certa sociedade num dado momento histórico, consolida em si um conjunto de valores e princípios que delimitam os contornos de validade do conjunto do subsistema jurídico como justo para aquela dada comunidade histórica.

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“Eu sou pelo correto!”, ou ainda inúmeras variações como “comigo é tudo

certinho”, “eu gosto das coisas corretas”, “para mim as coisas têm de ser como

devem ser”, levam-nos a uma abordagem menos crítica em relação ao conteúdo

normativo: em geral trata-se de uma alusão ao fato de que o falante sabe ou deseja

saber sobre a existência da norma e seu alcance e pressupõe sua subordinação ao

seu conteúdo (e, portanto, implicitamente sua validade); normalmente, indica que

pode haver dúvida do falante, ou de alguém a respeito de quem ele constrói seu

discurso (um amigo, parente, conhecido), acerca daquilo que a norma

efetivamente institui (comanda, faculta, proíbe), e que pretende avaliar este

conteúdo de modo a dar-lhe plena efetividade, cumprindo o seu comando da

forma mais integral possível (ou demonstrando que já o fez). Trata-se, portanto,

de uma via discursiva em que a adequação geral do conteúdo da “lei” à

“Constituição”, ou ao que é “devido” ou “válido” para uma “lei” de acordo com o

critério abstrato de justiça utilizado pelo falante, é tendencialmente pressuposta,

ao menos argumentativamente – há uma visível pressuposição discursiva de que a

“lei” será, ou já foi, adequadamente cumprida.

Se se quiser, à primeira fala corresponde tendencialmente uma crítica geral

sobre a justiça da norma e sua aplicação, o que costumamos denominar no jargão

jurídico, com sua fixação genética pelas expressões latinas, como interpretação ou

comentário de lege ferenda, e à segunda, uma interpretação que busca a

elucidação mais completa possível do sentido da “lei” como está posta, o que

latinoriamente chamamos de interpretação de lege lata. Em qualquer das duas, há

um processo de visualização da adequação da “lei” à “Constituição”, através da

sua identificação com o critério abstrato de justiça empregado, o que pressupõe

tanto uma interpretação sobre a “lei” quanto sobre a “Constituição” e seus

conteúdos normativos.

De qualquer forma, uma tal interpretação não se limita ao mero

fornecimento de materiais hermenêuticos para os intérpretes profissionais, ou a

uma “preinterpretação” destinada a estes, até porque muitas vezes encerram-se em

ações no mundo da vida que jamais serão problematizadas perante o sistema legal

formal e que esgotarão intersubjetivamente e sem qualquer intervenção estatal os

eventuais conflitos de normas observados nas respectivas relações jurídicas,

emprestando contornos costumeiros às formas de vivenciar e de ressignificar

normas obrigatórias: cuida-se de uma interpretação propriamente jurídica, em toda

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sua acepção, porque busca a identificação da norma cogente aplicável, a definição

de seus contornos e abrangência e sua eventual compatibilidade com um critério

abstrato de justiça. O que a diferenciará de uma interpretação profissional, além

da obviedade quanto a esta qualidade ser ostentada ou não pelo intérprete, será

uma série de outros elementos que não se referem à sua natureza jurídica ou não

jurídica, mas antes à metodologia, à intencionalidade, à generalidade, ao nível de

informação específica, seja sobre os fatos, seja sobre o direito, à inserção da

interpretação pretendida numa certa tradição interpretativa, à filiação do intérprete

a determinada corrente, e assim por diante. Mesmo as interpretações levadas a

efeito por intérpretes profissionais, por outro lado, variarão profundamente com

relação a estes ou a outros elementos (como é o caso de sujeitos de um processo

judicial concreto em curso, por exemplo).

Aqui ganha relevo o outro aspecto problemático da elaboração de Häberle: a

subordinação da interpretação não profissional à profissional se dá no interior da

própria ideia de interpretação e aparentemente em decorrência desta pretendida

dessemelhança quanto à natureza de ambas. Esta prevalência da interpretação

jurídica ou profissional é pressuposta discursivamente em Häberle, como se esta

derivação direta da natureza diversificada das interpretações envolvidas fosse

suficiente para fundamentar a precedência de uma sobre outra, mas isto me parece

longe de ser evidente em si mesmo – para tanto, seria necessário demonstrar que

uma interpretação profissional do direito é sempre e necessariamente superior a

uma não profissional em quaisquer circunstâncias, e porquê.

Se a indicação anterior quanto ao caráter jurídico da interpretação não

profissional tiver algum grau de pertinência, não será evidentemente neste aspecto

que residirão nem mesmo sua diferença essencial, nem a justificativa de

subordinação de uma a outra. Como vimos antes, aspectos como intencionalidade,

generalidade, metodologia e níveis de informação do intérprete, dentre outros,

parecem mais promissores como delimitadores entre as formas de interpretação do

que propriamente sua natureza jurídica ou não jurídica.

Diversamente, entendo que a justificativa para a precedência relativa de uma

sobre outra (da profissional sobre a não profissional) reside em um duplo aspecto

fundamental para as sociedades contemporâneas: o papel central desempenhado

pelo Estado nas sociedades modernas, com as derivações e necessidades

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pragmáticas daí decorrentes, e a articulação em termos sistêmicos da esfera

jurídica da sociedade161.

No primeiro caso, interpretações profissionais, e fundamentalmente estatais

– no bojo do exercício da função estatal jurisdicional – de normas jurídicas

prevalecem sobre interpretações não profissionais simplesmente porque o Estado

concentra o monopólio do exercício da coerção e da violência em sociedades

modernas, não porque produzam em si mesmas interpretações melhores. A

complexificação e diferenciação de órgãos, agentes e serviços de Estado nas

sociedades complexas implicam a definição pragmática de que estes órgãos e

agentes concentram interpretações e comandos legais que são dotados da mesma

imperatividade que as leis que deles promanam, num circuito relativamente

autorreferenciado, ainda que não fechado, de legitimação (no sentido de que os

agentes são legítimos porque a lei assim os designa, e os comandos legais são

legítimos porque promanam de agentes legitimados por normas, e assim por

diante). A abertura deste sistema autorreferenciado reside precisamente na

fundamentação democrática do direito estatal, que repousa sobre o duplo papel de

cidadão e sujeito de direito desempenhado por seus destinatários, isto é, no papel

estruturante que sujeitos deliberativos, no sentido proposto por Günther (2006),

desempenham na legitimação democrática do direito.

Ainda que se admita uma suposição de que em geral a interpretação

profissional da lei, e notadamente a interpretação oriunda das funções específicas

do Estado (judicial, legislativa, executiva), tenda a ser racionalmente mais

complexa e superior à não profissional, não há qualquer necessidade de que esta

superioridade argumentativa ocorra na prática. Decisões judiciais não são válidas

sem fundamentação, e os mecanismos de seleção organizados pelo Estado

procuram recrutar seus juízes e demais intérpretes profissionais dentre os

melhores disponíveis, mas aquelas decisões são obrigatórias porque provêm de

órgãos estatais constitucionalmente designados para emitir decisões vinculativas

sobre normas e condutas, e não porque seus fundamentos sejam ontologicamente

melhores do que aqueles que porventura tenham sido contrariados pela decisão162,

161 A questão vai aqui posta em termos gerais e conceituais, não problematizando as grandes transformações pelas quais passam os contornos e papéis do Estado nacional nos tempos atuais. 162 Ainda que a fundamentação jogue aqui um papel central, dada a formação discursiva das normas jurídicas em tais sociedades, bem como sua controlabilidade democrática, tanto em sua geração, quanto em sua aplicação – ao menos pelas vias recursais. O que digo apenas é que a

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ou que possam surgir na crítica social à decisão em si mesma ou a seus efeitos.

Esta vinculatividade decorre por um lado da própria força do Estado como este

ente centralizador do poder político, e por outro das divisões pragmáticas de

funções do Estado, de modo a limitar e autovincular reciprocamente os atores por

elas responsáveis163.

O segundo aspecto, intimamente ligado ao primeiro, reside na organização

sistêmica da esfera jurídica da sociedade. Muito simplificadamente, podemos

dizer que a estratificação de variadas funções a partir do mundo da vida gera

esferas relativamente autônomas organizadas como sistemas, que passam a

competir entre si pela prevalência de suas lógicas internas sobre o mundo da vida.

O subsistema jurídico situa-se no centro do processo de legitimação do Estado em

sociedades racionalizadas como as modernas. Neste contexto, discursos

profissionais sobre normas jurídicas são discursos organizados sistemicamente,

construídos de forma técnica e articulados com os jargões e categorias próprios

que lhes permitem serem desde o início tratados como inputs no sistema jurídico,

tendentes a gerar outputs em forma de decisões sobre controvérsias. Os sistemas

não são capazes de compreender discursos não gerados na forma dos inputs que

lhes são reconhecíveis, de modo que mesmo argumentações racionais não

profissionais sobre normas tendem a ser desconsideradas como a-técnicas,

impróprias, inadequadas, incapazes de produzirem os outputs esperados pelo

sistema, que é protegido por uma série de normas de adequação que são prévias à

interpretação dirigida à aplicação da norma na resolução de conflitos concretos

(daí pressupostos processuais e condições da ação, por exemplo). Tais discursos,

para que possam ser sistemicamente considerados (e não apenas como discursos

“paralelos” próprios a outros sistemas, ou como discursos extra-sistêmicos),

devem ser “traduzidos” à linguagem sistêmica do direito, ou seja, reduzidos a esta

linguagem.

Esta estruturação, diretamente ligada ao processo de racionalização ou

“desencantamento” do mundo moderno, articula-se com o predomínio de uma

vinculação deriva da origem judicial como especialização sistêmica no âmbito do Estado, e não da qualidade da fundamentação em si mesma, tanto que, irrecorrida a decisão, ela será obrigatória e vinculativa para os concernidos, sólida ou frágil sua fundamentação. 163 Estou abstraindo no momento a questão da crença na legalidade e da disposição subjetiva de seguir a lei, e focando apenas naquilo que o sistema jurídico apresenta como expectativa geral de obediência a ela.

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racionalidade específica que apresenta pretensões de validade universal acima das

demais racionalidades, ou seja, a construção da linguagem científica, e que se

expressa através do predomínio mais ou menos pressuposto de todo discurso

técnico sobre os demais discursos racionais, onde o caráter técnico do discurso o

legitima aprioristicamente e o dispensa da demonstração argumentativa de sua

superioridade sobre os argumentos racionalmente articulados a partir de outra

lógica: é implícito para uma certa concepção da modernidade que o discurso

racional é superior ao não racional, e que o discurso racional é o discurso técnico

ou científico, de modo que todo discurso não técnico deva conceitualmente

apresentar um défice de racionalidade em relação a um discurso técnico sobre o

mesmo objeto, o que assegura a este uma superioridade pressuposta e portanto não

necessariamente demonstrada em relação àquele164.

Assim, o predomínio da interpretação profissional sobre a não profissional,

a meu ver, nada tem a ver com a qualidade ou natureza da interpretação, nem com

o caráter jurídico ou não jurídico desta, nem com qualquer outra pressuposição

generalizante interna à interpretação; ela repousa simplesmente no papel do

Estado moderno e na estruturação sistêmica do direito.

164 Ou, como já disse Marcuse (apud Habermas, 1973: 09), “a dominação perpetua-se e amplia-se não apenas graças à tecnologia, mas como tecnologia; e esta proporciona a grande legitimação ao poder político expansivo, que absorve em si todas as esferas da civilização. Neste universo, a tecnologia fornece também à falta de liberdade do homem sua grande racionalização e demonstra que ele é ‘tecnicamente’ impassível de ser autônomo, de determinar ele mesmo sua própria vida” (traduzi livremente), a respeito do quê diz Habermas que a noção de racionalidade weberiana mostra então sua dupla face: “ela já não se contenta em ser uma medida técnica do estado de desenvolvimento das forças produtivas, permitindo desmascarar a repressão objetivamente desnecessária que é inerente a certas relações de produção historicamente ultrapassadas, ela é também a medida apologética que permite justificar estas mesmas relações de produção como enquadramento institucional adequado à sua função. À medida que aumenta a sua eficiência apologética, a ‘racionalidade’ neutraliza-se como escala de crítica e é rebaixada ao nível de simples corretivo no interior do sistema: tudo o que se pode então dizer é que a sociedade está ‘mal programada’. Neste nível do seu desenvolvimento científico e técnico, as forças produtivas parecem então estabelecer uma nova articulação com as relações de produção: a partir de então, elas já não operam no sentido de um esclarecimento político, servindo de fundamento a uma crítica das legitimações em vigor, mas tornam-se elas mesmas princípios de legitimação. É isto o que Marcuse considera novo na história universal” (Habermas, 1973, 08, traduzi livremente). Esta pressuposição, evidentemente, não se sustenta sob um ponto de vista baseado na teoria do discurso, onde a necessidade de demonstração das melhores razões é potencialmente permanente, e em que seu afastamento tende a implicar a reprodução acrítica de hierarquizações sociais não sustentadas sobre nenhum critério legítimo. Ela demonstra, de fato, a força dos processos de colonização do mundo da vida pelos sistemas, ao mesmo tempo em que me parece ser suficiente para esclarecer uma das bases da prevalência de uma forma de interpretação profissional sobre outra não profissional, ainda que em termos provisórios, mas que a mim parecem mais satisfatórios do que aquilo de que Häberle não trata. A propósito deste aspecto, ver Habermas, 1973, 1996a, especialmente pp. 243-271, e 1996b, sobretudo pp. 303-373.

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Mesmo com estas ressalvas, o eixo da preocupação de Häberle em sua

elaboração sobre intérpretes não profissionais remete ao núcleo dos problemas

decorrentes da vinculação do destinatário da norma a ela, questão central em uma

sociedade democrática. Kant (1985) buscou estabelecer um critério racional para

estabelecer esta vinculação, partindo fundamentalmente do desenvolvimento da

ideia de autonomia como uso público da razão. Em sua Metafísica dos costumes,

este desenvolvimento da autonomia se mostra como fundamento dos sistemas

jurídicos modernos:

Uma pessoa é o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação. A personalidade moral é, assim, apenas a liberdade de um ser racional submetido às leis morais. A personalidade psicológica é tão somente a faculdade do ser que tem consciência de si mesmo nos diferentes estados da identidade de sua existência. De onde se conclui que uma pessoa pode ser submetida tão somente às leis que ela mesma se dá (seja a ela sozinha, seja a ela ao mesmo tempo que a outros. (Kant, 2005: 37)165 Isto implica, portanto, que as pessoas atuam, sob o aspecto da legislação, a

partir do desempenho de um duplo papel, de legislador e de destinatário, de

instituidor da norma e de indivíduo a ela submetido, de cidadão e de sujeito de

direito.166

Kant refere o fundamento de regras morais ao imperativo categórico, que

pode ser enunciado da seguinte forma: “age segundo uma máxima que possa ao

mesmo tempo ter valor de lei geral” (2005: 39). A recuperação habermasiana de

Kant e a possibilidade ou não de se operar com um princípio geral como o

imperativo categórico que fundamente uma moral com pretensão de

universalidade envolve um longo percurso que não será retomado agora167. O que

basicamente nos importará aqui é que Habermas propõe uma releitura discursiva,

dialógica, do imperativo categórico, que define como princípio de universalização

(1989: 78-98). Ele mantém, entretanto (e precisamente por conta de sua noção

intersubjetiva de fundamentação do direito), o esquema desta dualidade de papéis

165 Os trechos referidos da primeira parte da Metafísica dos costumes, conhecida como Doutrina do direito, foram retirados de edição brasileira que contém apenas esta, e não a totalidade daquela, sendo por isso identificada na bibliografia por este último título. 166 Da mesma forma, em sua crítica a Beccaria sobre aplicação da lei penal: “Quando, pois, aplico uma lei penal contra mim, como culpado, é em mim (homo noumenon) uma pura razão, juridicamente legislativa, a que me submete à lei penal como pessoa capaz de delinquir, e por conseguinte, como outra pessoa (homo phaenomenon) com todos os homens reunidos civilmente” (Kant, 2005: 181). 167 A respeito, ver Habermas (1989), especialmente pp. 61-141 (Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso).

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do indivíduo que pertence a uma ordem ou sistema jurídico determinado, como

cidadão e como sujeito de direito (Habermas 1997ab, Cittadino, 2009): a

vinculatividade dos sistemas jurídicos modernos não decorre da simples

positividade de suas normas, mas do fato de que seus destinatários poderiam ao

menos em tese, se o quisessem, participar do processo público de debates e

controvérsias que redunda na aprovação de suas normas – daí a anteriormente

mencionada abertura do sistema jurídico.

Partindo destes pressupostos, um possível caminho para a ampliação dos

conceitos de intérpretes de Häberle, depois de devidamente “juridicizados” acima,

estaria na ideia de sujeito deliberativo sugerida por Klaus Günther (2006), com

base nos conceitos de Kant e Habermas acima sumariamente mencionados.

Segundo este autor, em breve síntese, há uma tensão entre o papel de cidadão e de

sujeito de direito168 de um ponto de vista vinculado à democracia deliberativa: a

legitimação do Direito sob este paradigma, como já vimos, exige a possibilidade

(e pressupõe a capacidade) de participação livre, igual e racional de todos os

cidadãos na elaboração do Direito através de procedimentos democráticos;

entretanto, estes mesmos cidadãos, na condição de sujeitos de direito, serão os

destinatários da norma jurídica que eles potencialmente ajudaram a criar na

condição de cidadãos169. Vale dizer, eles deverão obedecer à norma que ajudaram

ou poderiam ter ajudado a criar, e é nas condições desta participação ao menos

potencial na elaboração da norma em termos racionais que repousa a legitimidade

da expectativa de obediência à lei – e não meramente em sua positividade. Por

168 O artigo referido (Günther, 2006) usa a expressão pessoa de direito como tradução para Rechtsperson. A tradutora, Flávia Portella Püschel, assim justifica sua opção: “Embora, em linguagem jurídica, o simples termo ‘pessoa’ (sem qualquer qualificação) já indique o sujeito de direito, a opção de tradução feita tem a vantagem de deixar claro tratar-se do sentido jurídico do termo, em um texto no qual ‘pessoa’ é palavra usada em outros sentidos (o de pessoa deliberativa, principalmente)” (ibidem, N.T.2, p. 237). Apesar destas observações, optei pelo uso da expressão sujeito de direito no presente texto por entender não haver perda relevante de significado e por seu uso ser consagrado em textos jurídicos de língua portuguesa. 169 Reportando-se às críticas de Kant a Beccaria, já mencionadas na nota 166 acima, Günther procura dar uma resposta a seu ver mais satisfatória que a de Kant na Metafísica dos Costumes. Transcrevo a nota de Günther: “É nesse sentido que compreendo a crítica de Kant a Beccaria (Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, loc. cit., p. 457, A 202, 203), ao afirmar que o autor do ilícito penal (Straftäter) ‘enquanto tal’ não pode ser simultaneamente co-legislador da lei penal. Isso deve, em minha opinião, ser entendido no sentido de que o autor, cujo ato é julgado em função de uma norma, não pode, nessa situação, simultaneamente exercendo o papel de co-legislador, decidir se a norma vale ou se deveria ser modificada. Caso contrário, ele seria juiz e legislador em causa própria e poderia, nessa situação, exigir uma exceção em seu favor. Kant encobre esse argumento de razão prática, variante do ponto de vista da imparcialidade, com a fórmula patética segundo a qual o legislador é ‘sagrado’ [e seria – continuando o argumento – profanado pela atuação conjunta com o criminoso (Verbrecher)]” (op. cit., p. 238, nota 12).

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outro lado, essa participação no processo democrático é um direito, e não um

dever, e seu não exercício por parte do cidadão, assim como sua não adesão

íntima aos termos da norma, não o eximem da vinculação a ela. O conceito que

estabelece a conexão entre cidadão e sujeito de direito é o de sujeito

deliberativo170, cujas características mais evidentes seriam a de ser fonte

autogeradora de ações e proferimentos e de ter a capacidade e a disposição para a

autocorreção, tanto de suas ações quanto de seus proferimentos. Para Günther

(2006: 228)171,

Uma pessoa deliberativa [sujeito deliberativo] dispõe, então, da capacidade de posicionar-se criticamente em relação a ações e proferimentos próprios e alheios; ela pode fundar sua posição em razões, as quais pode examinar no papel de participante de um discurso (pelo menos virtual); ela pode agir de acordo com as razões que aceitou e, desse modo, tornar-se autor imputável de seus proferimentos e ações. Procedimentos democráticos caracterizam-se pelo fato de vincularem o procedimento de criação de normas obrigatórias para todos à faculdade de cada indivíduo de se posicionar criticamente em relação a proferimentos (por exemplo, propostas de normas) de terceiros. Essa capacidade torna-se elemento constitutivo e operacional desses procedimentos. Procedimentos democráticos pressupõem uma pessoa deliberativa [sujeito deliberativo] e se reproduzem no uso geral das capacidades atribuídas a uma pessoa deliberativa [idem]. Além disso, procedimentos democráticos são organizados de forma que razões e contra-razões para o posicionamento crítico com relação a propostas de normas podem, em certa medida, ser examinadas argumentativamente, de modo a ser possível formar uma competição pública pelas melhores razões. Na medida em que pessoas deliberativas podem tomar parte nessa competição, elas se tornam autoras das normas criadas por meio desses procedimentos.

170 O termo original em alemão é “deliberativer Person”, traduzido por pessoa deliberativa naquele artigo. Optei pela adoção, aqui, de sujeito deliberativo tanto por razões de simetria com a expressão sujeito de direito quanto pelo fato de que a expressão sujeito parece remeter muito mais diretamente à perspectiva dos participantes em contextos discursivos do que pessoa, e é precisamente esta perspectiva dos participantes que é aqui sublinhada. 171 Segundo Günther, o sujeito deliberativo se conecta ao mínimo denominador comum entre os vários conceitos de pessoa vinculados a diversas práticas sociais normativas e valorativas específicas, tal como foram analisadas por Rainer Forst, todos derivados na noção kantiana de que a pessoa é definida pela imputabilidade (2006: 225), como, aliás, vimos em transcrição de Kant no presente texto.

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Günther172 está preocupado em situar democraticamente os conceitos de

culpa e imputabilidade no âmbito penal. Meu objetivo aqui é inteiramente

diferente, buscando no conceito de sujeito deliberativo uma rearticulação nas

relações entre intérpretes profissionais e não profissionais do Direito que amplie

os espaços nas fronteiras entre sistema legal e mundo da vida. O que espero que

reste ao menos evidente a esta altura, num contexto em que tribunais como o

Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal preenchem ou

delimitam o sentido de normas jurídicas às quais devem se submeter os sujeitos de

direito, e que a impositividade destas normas depende de mecanismos

democráticos de participação dos cidadãos, que os procedimentos de interpretação

não se possam sustentar democraticamente sem que haja uma abertura direta à

participação da cidadania.

Se deve haver participação ao menos potencial (no sentido de se tratar de

um direito, e não de um dever) dos cidadãos na elaboração da lei, o processo de

sua interpretação com vistas à delimitação de um ou alguns de seus possíveis

sentidos e a exclusão hipotética de outros não se pode estruturar senão com a

participação potencial destes mesmos cidadãos. Esta exigência normativa implica

tanto, por um lado, o direito de participação dos chamados intérpretes em sentido

amplo no processo de interpretação levado a efeito pelos tribunais, quanto a

abertura do sistema legal às pressões advindas de formas simbólicas de protestos,

entendidos como protestos discursivos, articuladores de outros sentidos possíveis

a normas de conteúdo jurídico e especialmente de índole constitucional (ainda que

veiculados no mundo da vida). O primeiro consiste na incorporação ou ampliação

de mecanismos sistêmicos de participação173, enquanto o segundo envolve a

172 Günther participou de um grupo de trabalho coordenado por Habermas na Universidade de Frankfurt conectado ao esforço de elaboração do livro Faticidade e Validade, juntamente com Ingeborg Maus, Rainer Forst, Günter Frankenberg, Bernhard Peters e Lutz Wingert; mas Günther foi merecedor de reconhecimento muito especial da parte de Habermas (ver Habermas, 1996a: 14-15). Este um dos motivos, senão o principal, para que muitas das elaborações de Günther estejam tão diretamente entrelaçadas às de Habermas a respeito das questões que ora tratamos, inclusive sobre autorreflexão e autocorreção (ver, por exemplo, Habermas, 1997b: 18-25, ou 2002: 269-284). A princípio, pode-se dizer que a preocupação de Habermas era esboçar uma teoria do direito que desse conta das suas elaborações sobre as condições normativas de uma democracia deliberativa em sociedades complexas, enquanto Günther está ocupado com o inverso, em dar operatividade prática a essa teoria (e suas enormes implicações quanto à legitimação) no âmbito do Direito, e muito especialmente no Direito Penal. 173 Vários destes mecanismos já têm, inclusive, previsão legal formal no país. A propositura de ações de controle concentrado de constitucionalidade por confederação sindical ou associação de classe de âmbito nacional (inciso IX do art. 103 da Constituição), bem como a participação dos

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preservação do espaço de interferência democrática sobre o sistema legal e

político a partir de fora, pela ativação da esfera pública.

É aqui que se reencontram os fundamentos desta tese. A visualização

dúplice das ocupações de terras como meio eficaz de acesso à terra e como

articulação simbólica de um protesto discursivo que denuncia, exige e interpreta a

um só tempo molda-se ao resgate processual de uma dignidade que é a um tempo

econômica e social, pessoal e política, em um processo histórico de (re)

construção pessoal e coletiva de geração de sujeitos deliberativos. Aqui essa

formulação cotidiana de um discurso de protesto no calor do conflito,

reivindicação e reinterpretação jurídica não profissional se fundem à exigência

normativa de legitimação dos sistemas jurídicos democráticos pela participação

em potência dos destinatários da norma também como seus elaboradores, e é

também aqui que a cidadania participativa radicalizada concretiza sua disposição

de denunciar a contradição performativa das instituições sistemicamente

estruturadas e esgarçar seus limites de coerência. É aqui que a luta social media os

mecanismos aparentemente eternos de exclusão social e desmascara sua

contingência, sua não perenidade, sua inatureza, sua não necessidade. É aqui o

não lugar utópico em que tudo isso se passa: nas fronteiras da Constituição.

amici curiae (art. 7.º, § 2.º, da Lei 9.868/99) ou a realização de audiências públicas (art. 9.º, § 1.º, da Lei 9.868/99) nos processos de controle de constitucionalidade perante o STF são expressões disso, ainda que muito permeadas por críticas bastante pertinentes quanto a seu alcance prático e capacidade real de interferência na conformação da decisão daquele Tribunal. Como salientado adiante, entretanto, o campo em que faço as presentes observações não se limita à previsão formal de uma alternativa desta natureza na lei, mas ao reconhecimento de sua essencialidade para uma interpretação e aplicação democráticas da constituição e das leis, permitindo que a opinião pública constituída a partir de uma esfera pública informada e ativa possa se expressar.

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Conclusões: Uma Democracia nas Fronteiras

“Cadeiras elétricas da baiana Sentença que o turista cheire

E os sem amor os sem teto Os sem paixão sem alqueire

No peito dos sem peito uma seta E a cigana analfabeta

Lendo a mão de Paulo Freire.” (“Béradêro”, Chico César)

No início desta tese delimitei os objetivos perseguidos e explicitei a

metodologia a ser utilizada para atingi-los. Cabe-me agora proceder ao inventário

deste caminho. Para dar conta dele, parti da identificação das características e

reivindicações fundamentais do MST no período estudado, o que fiz resgatando as

resoluções de seus encontros nacionais e organizando seu desenvolvimento

histórico como movimento social em fases vinculadas às suas principais bandeiras

de luta. A partir deste resgate, pode-se perceber que, em que pesem modificações

em sua organização, em seus vínculos com outros movimentos da cidade e do

campo e em suas pautas de reivindicação, a forma adotada pela grande mídia para

visualizá-lo não se modificou significativamente no tempo, mantendo-se uma

tendência a apresentá-lo de forma reducionista e caricata, focando quase

exclusivamente acusações de uso da violência em suas manifestações. Exatamente

por isso, evidenciou-se que, para além de suas abrangentes pautas, o que ainda se

situa no centro das imagens produzidas sobre o Movimento são suas principais

formas de atuação e mobilização, em especial as ocupações de terra, de prédios

públicos e de rodovias, curiosamente sem que a adoção destas formas

controvertidas de atuação se traduzam em uma exigência de justificação pública

por parte de seus militantes e de suas lideranças. Estas características são as que

ainda permanecem quase que exclusivamente como os pontos de destaque na

visualização social do MST, indicando por um lado a limitação desta imagem,

produzida basicamente por uma única ordem de argumentos, e por outro o quanto

ela se refere ao ponto central de tensão entre o Movimento e a ordem

constitucional vigente.

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O resgate da base de dados correspondente às decisões do STF e do STJ

entre 01/01/2000 e 31/12/2010 envolvendo o MST ou seus militantes evidenciou

ainda mais como a construção social desta imagem unilateral de violência

repercute na judicialização das ações do Movimento, ao menos durante esse

período e nos tribunais estudados. Em primeiro lugar, a identificação da natureza

da competência, do tipo de ação e do objeto demandado em cada ação tornou

claro que em ambos os tribunais as controvérsias sobre o Movimento e seus

militantes referiam-se a ocupações de terras, correspondendo a 94% das ações

apreciadas pelo Supremo e a 64% dos casos julgados no STJ no período

considerado. A circunscrição dessa casuística permitiu-me selecionar um conjunto

de onze decisões-tipo, sete no STF, uma das quais relativa a medida cautelar em

ação direta de inconstitucionalidade, e quatro no STJ, que foram apresentadas em

seus contornos gerais – com base na íntegra dos acórdãos e no exame dos votos de

cada ministro, quando disponíveis, ou ao menos do ministro-relator, quando

apenas este voto restava evidenciado. A partir da análise destas decisões foi

possível tornar expressa a visão que aqueles órgãos de cúpula do Poder Judiciário

têm sobre o MST, que parecia resumida em eloquentes passagens do voto do

ministro-relator na MC em ADIn, quando considerou as ocupações de terras atos

violentos e ilegais de natureza predatória, que ameaçavam a ordem constitucional

democrática e o império da Lei. Procurei mostrar que estas asserções não abarcam

a totalidade do complexo feixe de violências que caracteriza a questão agrária no

campo brasileiro, a partir de dados levantados pela Comissão Pastoral da Terra –

CPT e pelo Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária da

Universidade Estadual Paulista – NERA/UNESP, e que, além disso, elas

estabelecem presunções jurídicas sobre as ações do MST que não correspondem

adequadamente nem ao nosso sistema legal e suas premissas democráticas, nem

aos fatos tais como observados pelos próprios tribunais, inclusive o próprio STF,

chegando-se ao extremo de ver um dispositivo legal inibidor de ocupações de

terra ser liminarmente declarado constitucional e, no entanto, o mesmo tribunal

que o declarou manter jurisprudência inteiramente incompatível com esta

declaração; mais ainda: as duas principais cortes do país cristalizarem

jurisprudências diametralmente opostas sobre a mesma regra de direito e fatos de

mesma natureza.

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Pudemos perceber, a partir da constatação destas profundas contradições,

que elas de fato expressam contradições performativas que estão no centro dos

processos de consolidação institucional em nosso país e em sua forma de lidar

com o protesto e o conflito social, forma esta que não permite o adequado

aperfeiçoamento da base racional de justificação e legitimação da vigência da lei

em sociedades democráticas – a possibilidade efetiva de que os cidadãos a quem a

norma se destina possam participar da sua elaboração e interpretação, numa

ampliação mais radicalizada da ideia de comunidade aberta dos intérpretes da

Constituição que retomei de Häberle, mas reconfigurada a partir de Kant, de

Habermas, de Günther e de Frankenberg. Esta ampliação se mostrou necessária

porque, em contextos de grande conflitividade social, decorrente de agudas

desigualdades sociais, como no caso brasileiro, combinados com o congelamento

ou estreitamento dos fluxos comunicacionais na esfera pública, a apresentação de

reivindicações sociais como discursos formais racionalmente fundados mostra-se

uma empreitada pouco viável e sem grande probabilidade de sucesso.

Movimentos sociais como o MST precisam, então, desenvolver longas campanhas

baseados em atos espetaculosos, de forma a confrontar as barreiras que

artificialmente obstruem a esfera pública, a fim de viabilizar o trânsito daquelas

pretensões de interpretação de normas e de atendimento a reivindicações

concretas, num duplo jogo que é simultaneamente o manuseio de um repertório

eficaz de meios de mobilização e a construção simbólica de identidades e projetos

sociais.

A partir desta reconstrução pudemos passar a perceber as formas específicas

de protesto e mobilização do MST, especialmente as ocupações de terra, como

formas de estruturação de um discurso simbólico que envolve a dramatização e a

encenação de tensões que se expressam no mundo da vida e são dirigidas para o

núcleo dos sistemas jurídico e político, implicando a um só tempo a denúncia da

não aplicação da Lei e a exigência de sua aplicação àqueles casos concretos a

partir de uma outra interpretação possível. No desenvolvimento desta forma

histórica de intervenção, percebemos ainda que o MST acabou desenvolvendo

uma estranha simbiose com o Incra, de tal sorte que concretamente este órgão

responsável pela reforma agrária no país somente atua se, quando e onde o

Movimento antes identifica e organiza terras a serem desapropriadas e pessoas a

serem beneficiadas em futuros possíveis assentamentos, no bojo de uma

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dependência estrutural recíproca que acaba por se expressar na correspondência

global de um assentamento por ocupação, em recortes temporais mais amplos.

Por outro lado, em que pese o discurso judicial que predominantemente

tende a descrever o Movimento como criminoso e ilegal, atentatório ao império da

Lei, a realidade de que ele articula pedaços de cidadania por onde passa,

simbolicamente redefinindo seus participantes de pobres desorganizados que

mendigam favores em militantes organizados que exigem direitos, e mais, de que

funciona como condição essencial para a implantação efetiva do programa de

reforma agrária que sem as ocupações e o Movimento simplesmente não existiria,

não passa inteiramente despercebida pelos tribunais, seja na expressão de votos

minoritários, seja na aparente contradição formal pela qual o subsistema judicial

tenta dar conta de uma realidade que lhe escapa permanentemente, e com a qual

não consegue interagir senão episodicamente, topicamente, aos soluços, nas

entrelinhas do discurso revelado – daí, a meu ver, a intensa contradição das

decisões do STF em controle abstrato de constitucionalidade (ADIn) e em

controle concreto de legalidade dos atos administrativos (mandados de

segurança).

Esta ambiguidade aparente, que se amplifica com a divergência entre STF e

STJ, nos indica o quanto um movimento social como o MST, mesmo mantido

permanentemente e desde seu nascimento sob intenso ataque discursivo da grande

mídia, sem espaços significativos por onde suas reivindicações possam ser

apresentadas ao grande público a partir de discursos formais e racionais, ainda

assim pode interferir de modo relevante na geração e interpretação de direitos

através de discursos simbólicos e radicalizados de protesto, e como, de seu ponto

de vista, não poderia jamais abrir mão de sua adoção, seja pelo critério da eficácia,

já que eles efetivamente implicam o acesso à terra e nenhum outro discurso seu

parece poder ser ouvido, seja pelo critério da identidade, pois que abandonar suas

formas históricas de ação lhe amputaria a individuação e a dignidade construídas

ao longo dos anos e com tanta dificuldade para si e para seus membros.

Isto equivale dizer que o pressuposto original desta tese, a de que

movimentos sociais cumprem papel ativo na atualização de conteúdos normativos

constitucionais, se mostra a meu ver inteiramente demonstrada, ainda que por

caminhos inesperados: no princípio desta caminhada, imaginava, talvez um pouco

ingenuamente, que seria possível antever ao menos alguns espaços, ainda que

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minoritários, onde a construção de discursos formais por parte do Movimento

fosse mais largamente levada em consideração em um contexto que é, por

definição, inteiramente discursivo e fundado no contraditório, como o são os

processos judiciais. Confesso que não foi sem alguma surpresa que percebi em

apenas um único caso a menção expressa ao posicionamento do MST sobre

matéria de fato como algo digno de ser tomado em conta, em meio a vários outros

argumentos, na decisão final – refiro-me ao MS 25.124/DF, julgado pelo STF em

09/04/2008, no qual o Ministro Ayres Britto, relator, alude a ofício encaminhado

pela Direção Nacional do MST à Procuradoria Federal do Incra negando que fosse

organizada por ele, MST, ocupação que estaria ocorrendo em determinada

fazenda, e informando que havia apurado que a ocupação parecia ser uma farsa

montada pelo proprietário da área. Entretanto, perceber que mesmo no contexto de

severas restrições comunicacionais o Movimento é capaz de fazer-se ouvir através

de seus protestos e fazer efetiva diferença na definição de medidas concretas de

implantação da reforma agrária174 nos traz, a bem da verdade, conclusões mais

interessantes do ponto de vista teórico do que se suas posições circulassem

livremente na esfera pública.

O que os dados recolhidos e sua confrontação com estudos de outros autores

parecem nos indicar é que os mecanismos de interferência dos movimentos sociais

na atualização e relegitimição permanente dos sistemas jurídicos tendem a ser

mais flexíveis e abrangentes do que se poderia supor inicialmente ao mirarem-se

as sociedades democráticas mais consolidadas e desenvolvidas, e que estes

movimentos servem-se seguidamente de sua criatividade e persistência para

organizar demandas de longo curso e alcance, cavando espaços em brechas da

esfera sistêmica do Estado e diante das suas contradições internas e fragilidades

estruturais, e que nestes espaços – estreitos, ambíguos, desconfortáveis,

certamente muito pouco receptivos – eles se reafirmam cotidianamente como

agentes de transformação e de afirmação de direitos. E ainda que sua atuação se

dê fora do âmbito sistêmico, a partir e dentro do mundo da vida, sua ação preserva

174 Ainda que tenha sido expressamente excluída esta forma de interferência do escopo da presente pesquisa, quando restringimos seu objeto somente ao âmbito do Poder Judiciário, mais especificamente aos tribunais aqui investigados (vide pp. 19 e seguintes), não há como, nestas conclusões e após o que se disse acima, tanto com base em dados organizados diretamente por mim, quanto a partir dos estudos e pesquisas realizados por autores como Sigaud ou Fernandes aqui mencionados, simplesmente desconsiderar o fato da atuação reciprocamente dependente entre Incra e MST.

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aberta a passagem entre este e aquele sem o qual a conformação de vontades no

âmbito do Estado não pode recuperar sua legitimidade, nem a energia

transformadora que brota da sociedade civil mobilizada.

Pretensões de institucionalização e juridificação destas energias somente

poderiam condená-las à domesticação, à previsibilidade de instâncias burocráticas

e controladas. Sua liberdade de ação e criação está umbilicalmente ligada à sua

relevância como instrumentos de tensão permanente sobre o estado democrático

de direito e sobre sua tendência inercial à estagnação e à rotinização de

procedimentos. Não se trata, portanto, de articular um discurso jurídico que

reduza o protesto e o normalize, e sim de compreender que tipo de ordem jurídica

democrática pode olhar sem medo nos olhos do protesto e da reivindicação e,

mais do que isso, pressentir que é neles, mais do que na ordem, que repousa a vida

legítima do império da Lei.

Aqui não há amigos ou inimigos da Constituição a não ser nos casos

absolutamente extremos de sua negação total, e a política deixa de ser fundada

nesta noção totalitária que despolitiza qualquer forma de ação que não

pressuponha a eliminação do oponente. Com que nível de coerência se poderia

reclamar a não criminalização da dissidência e a não estruturação de um direito

penal do inimigo sob uma clave que remete à noção schmittiana de política?

Günter Frankenberg chama a esta internalização do conflito como conatural

de uma sociedade democrática, e na qual o reconhecimento das oposições ocorre de

forma recíproca e horizontal, compreendendo-se o outro como o “semelhante diferente”, de

concepção agonal de democracia:

Ao contrário da unidade exclusiva, assegurada por meio de declarações de rivalidade, a concepção agonal está fincada na inclusão, cultura de conflito como situação cerceada de contradisputa crônica que sempre, novamente, fomenta interesses antagônicos e cosmovisões contraditórias, compreende a ideia do outro. A partir da concorrência, do debate, da participação política e da deliberação pública - resumindo, por meio de lutas políticas com resultado incerto - todos os membros da sociedade civil devem ser inseridos no conflito constante ou, se assim se quer, integrados em uma prática democrática de conflito. Onde teóricos da relação amigo-inimigo querem defender a homogeneidade social ilusória e a unidade política, teóricos do conflito orientam as discussões sociais inevitáveis no sentido da difícil e arriscada ‘inclusão do outro’ (Habermas). Nesse sentido, Hannah Arendt confia na ‘capacidade imanente da ação de promover relações’. (Frankenberg, 2007: 23-4)

Não vislumbro outra forma de assegurar o império da lei e a preservação da

ordem jurídica numa sociedade democrática sem preservar no mesmo movimento

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e simultaneamente sua autorreflexividade discursiva, a condição de que o sistema

legal possa permanentemente ser reatualizado pela atuação e interação consciente

dos sujeitos concretos históricos, individuais e coletivos, de modo a atender

àquela constatação kantiana de que só posso me submeter validamente a uma lei

que poderia ter aprovado.

Assim, para um ponto de vista articulado com a democracia deliberativa, a

forma de reconciliar cidadão e sujeito de direito, a superação do súdito pelo

cidadão, é reconhecer o pleno direito de participação da cidadania na elaboração e

interpretação e efetivação da norma à qual deverá sujeitar-se de forma livre, igual

e racional, através de procedimentos democráticos. Mas quando o espaço público

se fecha a esta livre participação racional, quando o poder econômico e midiático

de setores social e politicamente privilegiados obstaculiza esta participação,

emperrando não só a presença destes pontos de vista na grande imprensa, ou na

formulação da norma, mas na própria efetivação de norma já existente, como é o

caso do capítulo constitucional sobre reforma agrária, atos espetaculosos podem

ser essenciais para que as estruturas políticas do Estado vibrem e se abram a este

debate, que não é de modo algum um debate abstrato sobre conceitos, e sim um

debate político sobre o destino de pessoas, a forma de estruturação de suas

identidades e de suas vidas, as condições para a alocação dos recursos de toda a

sociedade para fins a eles conexos – e, portanto, um debate que também assume

dialeticamente um aspecto juridicizado. Daí o reconhecimento do papel a ser

desempenhado por atos de desobediência civil por parte de setores estrutural ou

momentaneamente alijados do processo político, porque através dela chama-se a

atenção para interesses negligenciados ou para vários aspectos ligados às

consequências das decisões políticas. E mesmo que sem dúvida os órgãos

constituídos desempenhem um papel fundamental no cotidiano da vida

democrática em sociedades complexas que já não podem reunir-se a todo

momento na praça para decidir cada um dos múltiplos aspectos de seus destinos,

eles somente poderão desempenhar adequadamente estas funções à medida que

preservarem e ampliarem os espaços de participação popular direta. E por mais

que mecanismos institucionalizados ou juridicizados de participação, como

eleições, plebiscitos ou referendos, ganhem extraordinário relevo na construção de

sociedades mais democráticas e mais transparentes, na condição de “exercício

institucionalmente determinado do direito de resistência dos cidadãos, não podem

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pôr fim à formação política da vontade ou à geração de normas e sua submissão a

testes de validade”175 (Frankenberg, 1992: 32). Isto porque a democracia, como

projeto aberto de autorregulação, funda-se na reabertura permanente da esfera

pública às inúmeras e aprioristicamente indefiníveis demandas de múltiplos

setores sociais que somente podem encontrar uma solução razoável que preserve o

máximo de interesses a partir de uma abordagem conjunta. Deste modo, para além

de visões reducionistas calcadas em variações do positivismo jurídico, a sociedade

aberta dos intérpretes da Constituição pode ganhar um espaço ainda mais

decisivo como elemento integrador de uma ordem jurídica aberta à pluralidade e

ao conflito a partir da noção de “desobediência civil, que não reivindica quaisquer

direitos especiais ou privilégios sobre ou além os demais membros da

sociedade”176 (Frankenberg, 1992: 33), mas tão-só a redefinição dos mecanismos

democráticos de composição da vontade.

No caso de sociedades periféricas como a brasileira, a contradição aguda

entre a lei escrita e a ordem posta, ou entre os planos jurídico-normativo e

histórico, ou mais simplesmente entre intenção e gesto, como disse o poeta, já

foram suficientes, no passado, para meramente ocultar a brutalidade da

dominação. Mas aquele era ainda um mundo que se apresentava como

predominantemente rural, predominantemente fechado em sua estrutura local real

de poder, onde, ante a fragilidade organizativa da sociedade civil, a demanda pela

coerência entre intenção e gesto via de regra fazia prosseguir o poema: “se a

sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega executa, pois que senão,

o coração perdoa”177.

Não sei dizer se o coração perdoa, nem é este o espaço para dizê-lo. Talvez

se cuide apenas de um eco no texto do poeta da passagem seminal de seu pai,

muitas vezes mal compreendida178. Mas o que aqui nos diz respeito é que hoje

175 “Referenda and elections, the exercise of institutionally fixed citizens’ rights to resistance, cannot put an end to political will-formation or to the generation of norms and their submission to validity tests” (op. loc. cit.). 176 “... civil disobedience, which does not claim to have any special rights or privileges over and above those of other members of society” (op. loc. cit.). 177 “Fado tropical”, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Vide bibliografia. 178 Refiro-me evidentemente ao conceito de homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda, a “contribuição brasileira para a civilização” (Holanda, 1996: 146), assim explicado por ele mesmo: “A expressão é do escritor Ribeiro Coutto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey. Não pareceria necessário reiterar o que já está implícito no texto, isto é, que a palavra ‘cordial’ há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico, se não tivesse sido contrariamente interpretada em obra recente de autoria do sr.

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nosso país já vive a realidade de instituições que formalmente funcionam

apresentando-se como racionalmente fundadas em pressupostos democráticos, e a

universalização da educação e da alfabetização, ainda que em termos

extremamente precários, a ampliação do acesso à internet, e mesmo efeitos

colaterais e indesejados das ações dos grandes estados e grandes corporações que

protagonizam a globalização econômica – como a efetiva possibilidade de

interação entre manifestantes de vários lugares do mundo, às vezes em tempo real,

e o tangenciamento ao menos parcial que esta conexão representa ou pode

representar ao domínio que as grandes corporações midiáticas têm sobre a

construção da verdade sobre fatos controvertidos – tudo isso implica um

crescimento na conformação de uma ampla opinião pública vinculada à ideia de

democracia que se sente minimamente potente para cobrar, para exigir algum

mínimo de coerência performativa, de aproximação entre intenção e gesto, e onde

a brutalidade da sentença ainda existe, e conta seguramente com a mão cega que

a executa, e as chacinas de sem-terras, os genocídios indígenas, a pesada

repressão em manifestações por vezes inteiramente pacíficas e sem o menor

esboço de reação dos manifestantes, o caráter violento das incursões policiais em

favelas, são demonstrações dramáticas desta contradição performativa. Ainda

assim, já não é possível às estruturas do Estado e do Mercado simplesmente

seguir, sem um discurso de legitimação e sem que ele encontre um eco mínimo

que seja na opinião pública179.

Cassiano Ricardo onde se fala no homem cordial dos aperitivos e das ‘cordiais saudações’, ‘que são fechos de cartas tanto amáveis como agressivas’, e se antepõe à cordialidade assim entendida o ‘capital sentimento’ dos brasileiros, que será a bondade e até mesmo certa ‘técnica da bondade’, ‘uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora’. Feito este esclarecimento e para melhor frisar a diferença, em verdade fundamental, entre as ideias sustentadas na referida obra e as sugestões que propõe o presente trabalho, cabe dizer que, pela expressão ‘cordialidade’, se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em ‘bondade’ ou em ‘homem bom’. Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos ‘grupos primários’, cuja unidade, segundo observa o próprio elaborador do conceito, ‘não é somente de harmonia e amor’. A amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimentos privados e íntimos, passa a ser, quando muito, benevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade”, conforme a conhecida distinção de Carl Schmitt (Holanda, 1996: 204-205, nota 6). 179 Como o demonstra chamada na capa do jornal O Globo de 17 jul 2013: “PM do Rio faz autocrítica: Comandante da PM do Rio reconhece excessos e diz que reduzirá uso de gás

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A situação contemporânea em nosso país é, portanto, uma situação de

transição entre paradigmas, entre uma prática hipócrita e cínica dos setores

dominantes acostumados a verem seu discurso manter uma relação em geral

extremamente precária, se tanto, com sua prática, para um momento em que há

crescente, ainda que difusa, pressão no sentido de exigência de adequação entre

discurso e prática, entre justificação, procedimento e efeitos concretos. Não digo

que esta pressão crescente se expresse numa inteiramente nova conformação

política, muito menos que ela tenha necessariamente um sentido sempre

progressista. Digo apenas que ela existe e tensiona as práticas de todos os atores

políticos no sentido de uma aproximação entre discurso e prática.

Atos de desobediência civil são formas radicais de protesto que se

acomodam bem a denunciar estas contradições e a chamar a atenção para as

demandas dos manifestantes, tanto em conteúdo quanto em forma. Entretanto, é

curioso, como já apontado (e nisso sem dúvida reside outra contradição

performativa que nos remete ao papel estrutural e estruturante da grande mídia na

sociedade brasileira e na gestação desta esfera pública bloqueada e precária), que

a radicalidade do protesto gere críticas sociais a ele nas quais está embutida uma

demanda de coerência performativa entre justiça da reivindicação e justiça da

forma de ação, mas que esta demanda não se expresse numa complexificação do

debate, com ampla participação dos manifestantes. Por isso esta tese não é sobre

simpatias ou antipatias quanto a certos movimentos sociais ou a esta ou aquela

reivindicação ou forma de protesto, mas sobre o que um Estado que se pretende

formalmente democrático tem a dizer sobre eles, e principalmente a fazer com

eles.

O percurso traçado nesta tese foi longo, porque visava um lugar

teoricamente longínquo indicado em seu título, as fronteiras da Constituição. E,

no entanto, estas fronteiras estão logo ali, ao alcance e à espera da cidadania, junto

lacrimogêneo”. Apesar da preocupação em manter o tom democrático, há passagens na entrevista concedida pelo então Comandante da Policial Militar do Rio de Janeiro, Coronel PM Erir Costa Fiilho, ainda muito preocupantes e que expressam a antiga cultura repressiva da corporação – ao referir-se às manifestações de junho de 2013 e em resposta a uma pergunta sobre qual seria a grande dificuldade hoje da PM diante de tantos protestos, disse: “Não há um líder com quem se possa dialogar. Se é uma manifestação sindical ou partidária, há um líder. Agora, o inimigo é virtual. Não há lideranças. Vamos conversar e dialogar com quem?” (O Globo, 17 jul 2013, p. 6, grifei). Dificilmente qualquer polícia do mundo conseguiria modular adequadamente sua forma de atuação, mesmo em dispersão de manifestantes que se excedem em protestos de rua, partindo do pressuposto de que manifestantes são inimigos.

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às esquinas das grandes cidades e às porteiras de latifúndios improdutivos, ou em

qualquer lugar onde o ser se encontra com o devir. O Capítulo 3 desta tese não se

chama Piquetes e mangrulhos à toa: como se vê das notas 122 e 123, estas

expressões carregam vários significados possíveis, às vezes parcialmente

contraditórios. Piquete pode ser um pequeno potreiro, ou uma tropa de cavaleiros,

uma guarda avançada, ou o mais urbanamente conhecido piquete de greve, assim

como grupo de empregados a quem cabe serviço por turno, enquanto que

mangrulho é um posto militar rudimentar de observação, mas também uma luz

que pode ajudar a orientar a navegação. Foram escolhidas para nomear aquele

capítulo porque se referem às formas de controle, vigilância e orientação sobre

fronteiras, limites ou caminhos, ao mesmo tempo em que demonstram as

inúmeras ambiguidades propositalmente contidas na metáfora de fronteira aqui

utilizada – fronteiras separam mas também unem, elas demarcam limites mas

permitem passagens; podem ser vigiadas por tropas ou grevistas mobilizados, ou

ainda por postos precários e rudimentares de observação, ou ter seus caminhos

iluminados por faroletes em estruturas flutuantes. O que neste trabalho se

procurou sublinhar é que as fronteiras da Constituição, aquele lugar onde se

encontram e se separam protesto, reivindicação e democracia, e onde eles se

individualizam e se confundem com ordem, submissão e autoritarismo, são

fronteiras fluidas, móveis, historicamente precárias e passíveis de constantes

redefinições e reatualizações nas quais, não raro, cada uma destas figuras apenas

se realiza no seu oposto, e que ajuntar o adjetivo democrático a um Estado ou a

uma sociedade não é um mecanismo meramente formal, mas um processo

histórico-social que cobra com radicalidade seu preço. Contrariando mais uma vez

expectativas conservadoras, o estado democrático de direito não é um projeto

acabado de tranquilização do mundo, mas antes a organização aberta, precária e

permanente de identidades, pretensões, desejos, demandas por reconhecimento, e

dos conflitos daí resultantes. Estruturar uma sociedade onde todos possam definir

cotidianamente seus espaços de liberdade e ação pressupõe estar aberto a ver com

naturalidade o conflito e o confronto e a multiplicidade insondável de discursos

que irão brotar deste solo fértil. Ao fim e ao cabo, talvez não seja tanto a teoria

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quem nos permita melhor ver as entranhas deste processo, mas a poesia, porque

afinal, “a liberdade só é visível para quem a lavra”180.

180 “Y Mariana”, de Silvio Rodríguez. Vide bibliografia.

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In: Chico 50 Anos: O político. Polygram, s.d. 1CD (45min48s). Faixa 10

(4min10s);

MAUTNER, Jorge. Cidadão-Cidadã. Nelson Jacobina e Jorge Mautner

(Compositores). Participação especial de Caetano Veloso. In: Bomba de estrelas.

Warner Music Brasil, 1995. 1 CD (ca. 45min). Faixa 4 (4min43s);

RODRÍGUEZ, Silvio. Y Mariana. In: Silvio. Fonomusic, 1992. 1 CD (ca. 50min).

Faixa 4 (2min53s);

d) EPÍGRAFES

CÉSAR, Chico. Béradêro. In: Aos vivos. Velas, 1995. 1 CD (49min25s). Faixa 1

(2min59s);

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane

Zagury. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1995. (Coleção Mestres da Literatura

Contemporânea);

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KEITA, Salif. Yamore. Participação especial de Cesária Évora. In: Moffou.

Universal Jazz France, 2002. 1 CD (ca. 59 min). Faixa 1 (7min22s);

SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. Ed. especial. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira / Saraiva, 2012. (Coleção Saraiva de Bolso. Texto integral).

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ANEXOS

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ANEXO 1

MODELO DE FICHA DE ANÁLISE JUDICIAL

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FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL

ÓRGÃO

JULGADOR

MATÉRIA

COMPETÊNCIA

TIPO DE AÇÃO

NÚMERO

PROCESSO

AUTOR OU

RECORRENTE

RÉU OU

RECORRIDO

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

RELATORA

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

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PARTE ANALÍTICA

DECISAO

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO:

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ANEXO 2

FICHAMENTO DAS DECISÕES-TIPO

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FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STF

ÓRGÃO

JULGADOR

PLENÁRIO

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

TIPO DE AÇÃO MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE (MC NA ADIn)

NÚMERO

PROCESSO

2213 DF

AUTOR OU

RECORRENTE

PARTIDO DOS TRABALHADORES – PT

CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS

TRABALHADORES NA AGRICULTURA – CONTAG

RÉU OU

RECORRIDO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

26/05/2000

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

04/04/2002 (liminar na MC na ADIn); iniciado em

10/05/2001; ADIn ainda não julgada ao menos até o dia

23/04/2013, quando o último andamento era de

conclusão ao Relator desde 19/11/2009.

RELATOR CELSO DE MELLO

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM

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PARTE ANALÍTICA

DECISAO E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE - A QUESTÃO DO

ABUSO PRESIDENCIAL NA EDIÇÃO DE MEDIDAS

PROVISÓRIAS - POSSIBILIDADE DE CONTROLE

JURISDICIONAL DOS PRESSUPOSTOS

CONSTITUCIONAIS DA URGÊNCIA E DA

RELEVÂNCIA (CF, ART. 62, CAPUT) - REFORMA

AGRÁRIA - NECESSIDADE DE SUA

IMPLEMENTAÇÃO - INVASÃO DE IMÓVEIS

RURAIS PRIVADOS E DE PRÉDIOS PÚBLICOS -

INADMISSIBILIDADE - ILICITUDE DO

ESBULHO POSSESSÓRIO - LEGITIMIDADE DA

REAÇÃO ESTATAL AOS ATOS DE VIOLAÇÃO

POSSESSÓRIA - RECONHECIMENTO, EM JUÍZO

DE DELIBAÇÃO, DA VALIDADE

CONSTITUCIONAL DA MP Nº 2.027-38/2000,

REEDITADA, PELA ÚLTIMA VEZ, COMO MP Nº

2.183-56/2001 - INOCORRÊNCIA DE NOVA

HIPÓTESE DE INEXPROPRIABILIDADE DE

IMÓVEIS RURAIS - MEDIDA PROVISÓRIA QUE

SE DESTINA, TÃO-SOMENTE, A INIBIR

PRÁTICAS DE TRANSGRESSÃO À

AUTORIDADE DAS LEIS E À INTEGRIDADE DA

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - ARGÜIÇÃO

DE INCONSTITUCIONALIDADE

INSUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADA

QUANTO A UMA DAS NORMAS EM EXAME -

INVIABILIDADE DA IMPUGNAÇÃO GENÉRICA -

CONSEQÜENTE INCOGNOSCIBILIDADE PARCIAL

DA AÇÃO DIRETA - PEDIDO DE MEDIDA

CAUTELAR CONHECIDO EM PARTE E, NESSA

PARTE, INDEFERIDO. POSSIBILIDADE DE

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CONTROLE JURISDICIONAL DOS PRESSUPOSTOS

CONSTITUCIONAIS (URGÊNCIA E RELEVÂNCIA)

QUE CONDICIONAM A EDIÇÃO DE MEDIDAS

PROVISÓRIAS. - A edição de medidas provisórias, pelo

Presidente da República, para legitimar-se juridicamente,

depende, dentre outros requisitos, da estrita observância

dos pressupostos constitucionais da urgência e da

relevância (CF, art. 62, "caput"). - Os pressupostos da

urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos

relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-

se, inicialmente, à avaliação discricionária do Presidente

da República, estão sujeitos, ainda que

excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário,

porque compõem a própria estrutura constitucional que

disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como

requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes

do exercício, pelo Chefe do Poder Executivo, da

competência normativa primária que lhe foi outorgada,

extraordinariamente, pela Constituição da República.

Doutrina. Precedentes. - A possibilidade de controle

jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apóia-se na

necessidade de impedir que o Presidente da República,

ao editar medidas provisórias, incida em excesso de

poder ou em situação de manifesto abuso institucional,

pois o sistema de limitação de poderes não permite que

práticas governamentais abusivas venham a prevalecer

sobre os postulados constitucionais que informam a

concepção democrática de Poder e de Estado,

especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o

exercício anômalo e arbitrário das funções estatais.

UTILIZAÇÃO ABUSIVA DE MEDIDAS

PROVISÓRIAS - INADMISSIBILIDADE - PRINCÍPIO

DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - COMPETÊNCIA

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210

EXTRAORDINÁRIA DO PRESIDENTE DA

REPÚBLICA. - A crescente apropriação institucional do

poder de legislar, por parte dos sucessivos Presidentes da

República, tem despertado graves preocupações de

ordem jurídica, em razão do fato de a utilização

excessiva das medidas provisórias causar profundas

distorções que se projetam no plano das relações

políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. -

Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas

provisórias, sob pena de o Executivo - quando ausentes

razões constitucionais de urgência, necessidade e

relevância material -, investir-se, ilegitimamente, na mais

relevante função institucional que pertence ao Congresso

Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da

comunidade estatal, em instância hegemônica de poder,

afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime

das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema

de "checks and balances", a relação de equilíbrio que

necessariamente deve existir entre os Poderes da

República. - Cabe, ao Poder Judiciário, no desempenho

das funções que lhe são inerentes, impedir que o

exercício compulsivo da competência extraordinária de

editar medida provisória culmine por introduzir, no

processo institucional brasileiro, em matéria legislativa,

verdadeiro cesarismo governamental, provocando, assim,

graves distorções no modelo político e gerando sérias

disfunções comprometedoras da integridade do princípio

constitucional da separação de poderes. - Configuração,

na espécie, dos pressupostos constitucionais

legitimadores das medidas provisórias ora impugnadas.

Conseqüente reconhecimento da constitucionalidade

formal dos atos presidenciais em questão.

RELEVÂNCIA DA QUESTÃO FUNDIÁRIA - O

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211

CARÁTER RELATIVO DO DIREITO DE

PROPRIEDADE - A FUNÇÃO SOCIAL DA

PROPRIEDADE - IMPORTÂNCIA DO PROCESSO

DE REFORMA AGRÁRIA - NECESSIDADE DE

NEUTRALIZAR O ESBULHO POSSESSÓRIO

PRATICADO CONTRA BENS PÚBLICOS E

CONTRA A PROPRIEDADE PRIVADA - A

PRIMAZIA DAS LEIS E DA CONSTITUIÇÃO DA

REPÚBLICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE

DIREITO. - O direito de propriedade não se reveste de

caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca

social, a significar que, descumprida a função social que

lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a

intervenção estatal na esfera dominial privada,

observados, contudo, para esse efeito, os limites, as

formas e os procedimentos fixados na própria

Constituição da República. - O acesso à terra, a solução

dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e

adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos

recursos naturais disponíveis e a preservação do meio

ambiente constituem elementos de realização da função

social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto -

enquanto sanção constitucional imponível ao

descumprimento da função social da propriedade - reflete

importante instrumento destinado a dar conseqüência aos

compromissos assumidos pelo Estado na ordem

econômica e social. - Incumbe, ao proprietário da terra, o

dever jurídico- -social de cultivá-la e de explorá-la

adequadamente, sob pena de incidir nas disposições

constitucionais e legais que sancionam os senhores de

imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois

só se tem por atendida a função social que condiciona o

exercício do direito de propriedade, quando o titular do

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domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-

estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis

satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a

conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as

disposições legais que regulam as justas relações de

trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que

cultivam a propriedade. O ESBULHO POSSESSÓRIO

- MESMO TRATANDO-SE DE PROPRIEDADES

ALEGADAMENTE IMPRODUTIVAS -

CONSTITUI ATO REVESTIDO DE ILICITUDE

JURÍDICA. - Revela-se contrária ao Direito, porque

constitui atividade à margem da lei, sem qualquer

vinculação ao sistema jurídico, a conduta daqueles

que - particulares, movimentos ou organizações

sociais - visam, pelo emprego arbitrário da força e

pela ocupação ilícita de prédios públicos e de imóveis

rurais, a constranger, de modo autoritário, o Poder

Público a promover ações expropriatórias, para efeito

de execução do programa de reforma agrária. - O

processo de reforma agrária, em uma sociedade

estruturada em bases democráticas, não pode ser

implementado pelo uso arbitrário da força e pela

prática de atos ilícitos de violação possessória, ainda

que se cuide de imóveis alegadamente improdutivos,

notadamente porque a Constituição da República - ao

amparar o proprietário com a cláusula de garantia do

direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII) - proclama

que "ninguém será privado (...) de seus bens, sem o

devido processo legal" (art. 5º, LIV). - O respeito à lei

e à autoridade da Constituição da República

representa condição indispensável e necessária ao

exercício da liberdade e à prática responsável da

cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da

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213

ordem jurídica, quer por atuação de movimentos

sociais (qualquer que seja o perfil ideológico que

ostentem), quer por iniciativa do Estado, ainda que se

trate da efetivação da reforma agrária, pois, mesmo

esta, depende, para viabilizar-se constitucionalmente,

da necessária observância dos princípios e diretrizes

que estruturam o ordenamento positivo nacional. - O

esbulho possessório, além de qualificar-se como ilícito

civil, também pode configurar situação revestida de

tipicidade penal, caracterizando-se, desse modo, como

ato criminoso (CP, art. 161, § 1º, II; Lei nº 4.947/66,

art. 20). - Os atos configuradores de violação

possessória, além de instaurarem situações

impregnadas de inegável ilicitude civil e penal,

traduzem hipóteses caracterizadoras de força maior,

aptas, quando concretamente ocorrentes, a infirmar a

própria eficácia da declaração expropriatória.

Precedentes. O RESPEITO À LEI E A

POSSIBILIDADE DE ACESSO À JURISDIÇÃO DO

ESTADO (ATÉ MESMO PARA CONTESTAR A

VALIDADE JURÍDICA DA PRÓPRIA LEI)

CONSTITUEM VALORES ESSENCIAIS E

NECESSÁRIOS À PRESERVAÇÃO DA ORDEM

DEMOCRÁTICA. - A necessidade de respeito ao

império da lei e a possibilidade de invocação da tutela

jurisdicional do Estado - que constituem valores

essenciais em uma sociedade democrática,

estruturada sob a égide do princípio da liberdade -

devem representar o sopro inspirador da harmonia

social, além de significar um veto permanente a

qualquer tipo de comportamento cuja motivação

derive do intuito deliberado de praticar gestos

inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de

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invasão da propriedade alheia e de desrespeito à

autoridade das leis da República.

RECONHECIMENTO, EM JUÍZO DE

DELIBAÇÃO, DA LEGITIMIDADE

CONSTITUCIONAL DA MP Nº 2.027-38/2000,

REEDITADA, PELA ÚLTIMA VEZ, COMO MP Nº

2.183-56/2001. - Não é lícito ao Estado aceitar,

passivamente, a imposição, por qualquer entidade ou

movimento social organizado, de uma agenda

político-social, quando caracterizada por práticas

ilegítimas de invasão de propriedades rurais, em

desafio inaceitável à integridade e à autoridade da

ordem jurídica. - O Supremo Tribunal Federal não

pode validar comportamentos ilícitos. Não deve

chancelar, jurisdicionalmente, agressões

inconstitucionais ao direito de propriedade e à posse

de terceiros. Não pode considerar, nem deve

reconhecer, por isso mesmo, invasões ilegais da

propriedade alheia ou atos de esbulho possessório

como instrumentos de legitimação da expropriação

estatal de bens particulares, cuja submissão, a

qualquer programa de reforma agrária, supõe, para

regularmente efetivar-se, o estrito cumprimento das

formas e dos requisitos previstos nas leis e na

Constituição da República. - As prescrições

constantes da MP 2.027-38/2000, reeditada, pela

última vez, como MP nº 2.183-56/2001, precisamente

porque têm por finalidade neutralizar abusos e atos

de violação possessória, praticados contra

proprietários de imóveis rurais, não se mostram

eivadas de inconstitucionalidade (ao menos em juízo

de estrita delibação), pois visam, em última análise, a

resguardar a integridade de valores protegidos pela

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215

própria Constituição da República. O sistema

constitucional não tolera a prática de atos, que,

concretizadores de invasões fundiárias, culminam por

gerar - considerada a própria ilicitude dessa conduta

- grave situação de insegurança jurídica, de

intranqüilidade social e de instabilidade da ordem

pública. AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE E DEVER

PROCESSUAL DE FUNDAMENTAR A

IMPUGNAÇÃO. - O Supremo Tribunal Federal, no

desempenho de sua atividade jurisdicional, não está

condicionado às razões de ordem jurídica invocadas

como suporte da pretensão de inconstitucionalidade

deduzida pelo autor da ação direta. Tal circunstância, no

entanto, não suprime, à parte, o dever processual de

motivar o pedido e de identificar, na Constituição, em

obséquio ao princípio da especificação das normas, os

dispositivos alegadamente violados pelo ato normativo

que pretende impugnar. Impõe-se, ao autor, no processo

de controle concentrado de constitucionalidade, sob pena

de não conhecimento (total ou parcial) da ação direta,

indicar as normas de referência - que, inscritas na

Constituição da República, revestem-se, por isso mesmo,

de parametricidade -, em ordem a viabilizar a aferição da

conformidade vertical dos atos normativos

infraconstitucionais. Precedentes (RTJ 179/35-37, v.g.).

(GRIFEI AS PARTES ESSENCIAIS PARA O

ESTUDO)

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

PT e CONTAG moveram Ação Direta de

Inconstitucionalidade com Medida Cautelar em que

requereram a liminar que foi aqui julgada contra vários

dispositivos da Medida Provisória 2.027-38/2000, várias

vezes reeditada, pela última vez como 2.183-56/2001, e

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216

que modificava a Lei 8.629/93 e a Lei 4.504/66 em

vários aspectos. Aqui eram impugnadas as modificações

na cabeça do art. 95-A da Lei 4.504/66 (MC na ADIn

indeferida por unanimidade), bem como seu parágrafo

único (indeferida por maioria, vencido o Presidente, Min.

Marco Aurélio), e ainda o § 6.° do art. 2.° da Lei

8.629/93 (indeferida por maioria, vencidos os Min.

Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, e em menor

extensão Ilmar Galvão), bem como os §§ 8.° e 9.° do

mesmo artigo da mesma Lei (indeferida por maioria,

vencidos os Min. Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence,

este em menor extensão).

Num plano geral, questionou-se na ação o atendimento

aos requisitos constitucionais de relevância e urgência

para edição de medidas provisórias, conforme art. 62 da

Constituição, bem como a instituição de obstáculos à

reforma agrária que não se legitimariam frente aos arts.

184 e 185 da Carta.

Na questão que aqui mais nos ocupa, a modificação do §

6.° do art. 2.° da Lei 8.629/93, a alegação se centra,

segundo o relatório, na tese de que ao editar esta norma,

o Presidente da República não teria tido a percepção de

que as ocupações de terras, quando promovidas com o

objetivo de agilizar o processo de reforma agrária e de

viabilizar a expropriação do imóvel rural, não se

qualificariam como esbulho possessório, mas traduziriam

instrumento legítimo e eficaz de luta política para

compelir o Governo a proceder na forma indicada no art.

184 da Constituição.

O Presidente da República manifestou-se defendendo o

ato normativo, naquilo que aqui mais nos interessa (art.

2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93) aos argumentos de que a

jurisprudência do STF já vinha reconhecendo distintas

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hipóteses em que se veda a desapropriação de imóveis

rurais ausentes do art. 185 da Constituição, que somente

a constatação específica e tópica de que determinado

imóvel não realiza a sua função social permitiria sua

desapropriação, e que o imóvel invadido não se encontra

em condições de submeter-se a vistoria para configurar o

não-atingimento dos índices mínimos de produtividade, e

que a medida provisória em questão objetiva neutralizar

situações de abuso causadas por determinadas

organizações e movimentos sociais, buscando inibir atos

de esbulho possessório contra a propriedade privada e

contra bens públicos, não ofendendo o princípio que veda

o retrocesso social porque “a violência direta, imediata e

contrária às instituições dificilmente pode ser percebida

como um avanço social”.

O MP opinou pelo indeferimento do pedido.

Como evidenciado pelos trechos grifados da ementa

acima transcrita, e ainda mais pela leitura da íntegra do

voto do relator, os fundamentos principais da decisão no

particular residem na caracterização dos atos de

ocupação por movimentos sociais como esbulho

possessório (mesmo não desenvolvendo o conceito deste,

nem enfrentando a exigência de que a violência se

destina a apossar-se do bem), o caráter ilegal, tanto cível

quanto criminal deste tipo de ato, a defesa do império da

lei e da preservação da ordem jurídica e o fato de não ser

lícito ao Estado aceitar, passivamente, a imposição, por

qualquer entidade ou movimento social organizado, de

uma agenda político-social, quando caracterizada por

práticas ilegítimas de invasão de propriedades rurais, em

desafio inaceitável à integridade e à autoridade da ordem

jurídica.

Dente os votos vencidos, sem dúvida o do Min.

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Sepúlveda Pertence é o mais abrangente e profundo.

Quanto à questão aqui em exame, o disposto no art. 2.°, §

6.°, da Lei 8.629/93, considera-a uma sanção genérica

pela ocupação que não sanciona os ocupantes/invasores,

mas a toda uma classe social, os pretendentes à terra,

premiando o proprietário eventualmente improdutivo.

Além disso, considerava essencial a concessão da

suspensão liminar do dispositivo, porque “no Brasil e no

mundo, reforma agrária é uma política movida por um

processo social dinâmico, que se desenvolve

necessariamente em um ambiente de tensão entre o

arraigado e explicável sentimento de apego à

propriedade do senhor rural e a reivindicação dos

excluídos de acesso á terra improdutiva. De outro lado,

as ocupações sempre foram um dos sintomas, um dos

sinais agudos da existência de uma situação de conflito

que induz à reforma agrária”. Outro voto dissidente

quanto ao particular, o Min. Marco Aurélio menciona

que “a cláusula encerra uma indesejável coerção política:

de um lado, o Estado não implementa o que quis o

legislador constituinte de 1988, não providencia, com a

largueza suficiente, a reforma agrária; de outro, para

evitar certo exercício - que considero como um direito

natural – de ocupar terras improdutivas, os latifúndios -,

impõe uma coerção política”.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- a propriedade é protegida pela Constituição

- o esbulho possessório é um ato ilegal, tanto cível

quanto criminal

- defesa do império da lei e da preservação da ordem

jurídica

- o Estado não pode aceitar passivamente a imposição de

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uma agenda político-social por qualquer entidade ou

movimento social organizado quando caracterizado por

atos ilegais de invasão de propriedades rurais

- o STF não pode chancelar juridicamente atos ilegais

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( x ) REJEITA TOTALMENTE

( ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO:

FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STF

ÓRGÃO PLENO

DBD
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220

JULGADOR

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

TIPO DE AÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA

NÚMERO

PROCESSO

23054 / PB

AUTOR OU

RECORRENTE

AGICAM – AGROINDÚSTRIA DO CAMARATUBA

S/A

RÉU OU

RECORRIDO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

18/02/1998

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

15/06/2000

RELATOR SEPÚLVEDA PERTENCE

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM

PARTE ANALÍTICA

DECISAO Por maioria, denegou a segurança, vencido o Min. Marco

Aurélio

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

Mandado de segurança impetrado pelos proprietários de

área invadida por militantes do MST cerca de uma

semana antes de início da vistoria pelo INCRA.

Alegavam que o Dec. 2.250/97 proibia a vistoria de áreas

ocupadas, e que a sua realização, ante a vedação contida

no decreto, tornaria nulo o decreto presidencial

desapropriatório. O relator salientou que o decreto não

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221

poderia ser aplicado por ausência de portaria da

presidência do INCRA que o regulamentasse, como

exigido pelo seu teor; que a área ocupada pelos sem-

terras era ínfima, cerca de 30 ha em um total de mais de

928 ha; que a ocupação se deu oito dias antes do início

da vistoria, não afetando a produtividade do imóvel; que

o laudo de vistoria tomou em conta a produtividade no

ano anterior àquele em que se fez a vistoria, sendo,

portanto, irrelevante a ocupação. Tudo isso o levou a

caracterizar o “quadro de bucólica virgindade – mal

bolida pelos arrendatários – e de chapada

improdutividade do latifúndio”. Há trecho interessante do

voto do Min. Ilmar Galvão, para quem “a invasão do

imóvel, na verdade, não deve impedir a desapropriação.

O imóvel não fica imune à desapropriação porque foi

invadido. Essa não é uma das razões constitucionais

para a não-desapropriação do imóvel. Pelo contrário, a

invasão deve até ser um motivo para que o imóvel seja

desapropriado, a fim de que aquelas famílias que ali

estão sejam aquinhoadas, ou recebam o seu lote de terra,

e acabem tendo uma ocupação útil”. Com isso acaba por

fazer coro com passagem do voto do relator, para quem a

reforma agrária, “por um dado inconteste da experiência

histórica, raramente se efetiva em latifúndios que, além

de improdutivos e virtualmente abandonados, sequer

despertam a atenção dos ‘sem-terra’”.

Em seu voto dissidente, o Min. Marco Aurélio considera

que o decreto expropriatório é nulo por questão formal,

já que, invadido o imóvel, não poderia ser vistoriado, e

tal vício seria o mesmo que não realizar a vistoria,

quando a Lei a impõe; e disse ainda: “observo com

absoluto rigor as normas que visam a inibir o exercício

de um direito pelas próprias mãos, já que esse exercício,

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inclusive, é tipo penal – artigo 345 do Código Penal”.

A decisão foi tomada por maioria de 07 a 01.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- a norma limitadora do Dec. 2.250/97 não pode ser

aplicada por ausência de portaria do INCRA que a

regulamente;

- a invasão ou ocupação de área diminuta da propriedade,

e por período exíguo, não é suficiente para afetar a

produtividade do imóvel;

- o laudo de vistoria levou em conta a produtividade no

ano anterior, e não no momento da ocupação, oito dias

antes do início da vistoria, ficando mais do que

caracterizada a quase total improdutividade da área,

independentemente de qualquer ocupação.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( x ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO:

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STF

ÓRGÃO

JULGADOR

PLENO

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

TIPO DE AÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA

NÚMERO 23.818/MS

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PROCESSO

AUTOR OU

RECORRENTE

CLÁUDIO MARCO DIBO

RÉU OU

RECORRIDO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

21/11/2000

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

29/11/2001

RELATOR MAURÍCIO CORRÊA

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM

PARTE ANALÍTICA

DECISAO Por unanimidade, denegou a segurança.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

MS impetrado pelos proprietários contra o Presidente da

República, buscando anular o decreto desapropriatório,

ao fundamento de que a área não poderia ser objeto de

expropriação se havida invasão pelo MST, como

determinado pelo art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, com a

redação da MP 2027-43/2000.

O relator entendeu ser inconteste nos autos que a vistoria

se realizou quase sete meses antes da ocupação que,

portanto, foi irrelevante para a mensuração de

produtividade do imóvel. Além disso, a vistoria ocorreu

antes da vigência da MP que alterou a redação da Lei,

instituindo a vedação, e a norma prevista no Dec.

2.250/97 era menos restritiva.

Denegação unânime da segurança, no momento do

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julgamento, por 7 x 0.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- irretroatividade da Lei que estabelecia a vedação;

- ocupação ocorreu quase sete meses após a vistoria, não

afetando a produtividade do imóvel.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( x ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO:

FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STF

ÓRGÃO

JULGADOR

PLENO

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

TIPO DE AÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA

NÚMERO

PROCESSO

24136/DF

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225

AUTOR OU

RECORRENTE

AGRISA – AGRO-INDUSTRIAL SERRANA LTDA.

RÉU OU

RECORRIDO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

21/11/2001

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

11/09/2002

RELATOR MAURÍCIO CORRÊA

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM

PARTE ANALÍTICA

DECISAO O Tribunal cassou a liminar e denegou a segurança, por

unanimidade – neste julgamento, oito ministros.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

MS impetrado contra o decreto expropriatório de área

que teria sido ocupada por militantes do MST, já na

vigência da norma restritiva prevista no art. 2.°, § 6.°, da

Lei 8.629/93, em redação tal como determinada pela MP

2109/01. A liminar chegou a ser concedida pelo relator

com base em documentos juntados à inicial, em especial

relativos à ação de reintegração de posse. Após as

informações, entretanto, e principalmente após

manifestação da AGU, verificou-se haver dúvida quanto

à efetiva ocorrência da ocupação. Intimada a impetrante a

se manifestar sobre tais alegações da AGU, quedou

silente.

Em face destas circunstâncias, o relator votou pela

denegação da segurança com dois fundamentos (quanto

DBD
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ao mérito, há uma preliminar de representação que é

irrelevante para a pesquisa): se há dúvida quanto à

ocorrência ou não da ocupação, trata-se de fato

controvertido cuja demonstração demandaria dilação

probatória incompatível com o rito do mandado de

segurança, com o que não se pode falar em direito

líquido e certo; além disso, restou evidenciado nos autos

que seguramente não havia nem tinha havido ocupação

no momento de realização da vistoria pelo INCRA, e

que, mesmo pela narrativa da impetrante, a invasão, se

havida, teria ocorrido após a realização da vistoria, e,

segundo o relator, “a vedação [prevista no art. 2.°, § 6.°,

da Lei 8.629/93] supõe, pelo menos, que haja

probabilidade de que a invasão tenha desfigurado a

classificação da área, modificando-a de produtiva para

improdutiva, ou tenha causado danos que a possam ter

desvalorizado. Caso contrário, a norma proibitiva se

desvestiria de sua finalidade”.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- controvérsia nos autos quanto à ocorrência ou não da

invasão da área, matéria de fato essencial, inviabiliza a

constatação de direito líquido e certo e induz à denegação

da ordem;

- a vedação do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93 supõe

algum nexo de causalidade entre a invasão da área e sua

improdutividade, de tal sorte que, se aquela é posterior à

vistoria do INCRA, a regra limitadora não incide.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( x ) OUTRO

DBD
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227

DESCRIÇÃO OUTRO: o fato ocupação/invasão foi

controvertido, afastando a possibilidade de MS; por outro

lado, o STF expressamente configurou a necessidade de

nexo causal entre ocupação e improdutividade, sob pena

de inaplicação do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93.

FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STF

ÓRGÃO

JULGADOR

PLENO

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

TIPO DE AÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA

NÚMERO

PROCESSO

24133/DF

AUTOR OU

RECORRENTE

ESPÓLIO DE ROSALINO ASTROGILDO PINHEIRO

RÉU OU

RECORRIDO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

16/11/2001

DBD
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CORTE

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

20/08/2003

RELATOR CARLOS VELLOSO

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

CARLOS BRITTO

PARTE ANALÍTICA

DECISAO O Tribunal, por maioria de 07 a 04, denegou a segurança,

vencidos o relator, Min. Carlos Velloso, e ainda Ellen

Gracie, Nelson Jobim e Celso de Mello.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

MS impetrado pelos proprietários contra ato do

Presidente da República, alegando ocorrência de praga

“vassoura de bruxa”, que teria sido debelada com apoio

da CEPLAC – Comissão Executiva do Plano da Lavoura

Cacaueira, mediante projetos elaborados em 1996, 1998

e 1999; ocorrência de invasão pelo MST, tendo havido

propositura de ação de reintegração de posse em

14/12/1999, concedida a liminar, mas não cumprida;

ocorrência de abuso de poder por parte do

Superintendente Regional do INCRA, pela sua omissão

quanto à impugnação do impetrante ao laudo da vistoria

realizada em propriedade invadida e afetada por praga;

existência de liminar deferida pela 7.ª Vara Federal da

Seção da Bahia (sic) determinando à Superintendência do

INCRA que se abstivesse de prosseguir no procedimento

desapropriatório; superveniência do decreto

desapropriatório; jurisprudência do STF favorável a sua

tese; impossibilidade de vistoria de imóvel invadido, nos

termos do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93; impossibilidade

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de aferição da produtividade em área invadida e afetada

por praga; dentre outros argumentos.

A liminar foi deferida pelo então relator, Ministro Néri

da Silveira.

Informações prestadas pelo Presidente da República,

reportando-se a pronunciamentos da AGU e do MDA,

sustentando: que a propriedade estava desocupada

quando da realização da vistoria; inocorrência de

violação ao art. 6.°, § 7.°, da Lei 8.629/93, além do que,

não sendo demonstrada de forma incontroversa a alegada

produtividade pretérita, anterior à praga, por meio de

prova pré-constituída, e havendo mesmo “evidências

extremes” de improdutividade, não há direito líquido e

certo; inexistência de projetos técnicos de recuperação

das lavouras de cacau, tendo a vistoria constatado que as

referidas lavouras estavam abandonadas; ausência de

impugnação ao laudo no prazo legal; à época da vistoria

não havia dispositivo legal que impedisse a sua

realização em caso de esbulho ou invasão motivada por

conflito agrária, com o que não há direito líquido e certo.

MP pelo indeferimento.

Os votos espelham um intenso debate entre os ministros

na sessão, prevalecendo ao final posicionamento

dissidente que foi aberto pelo Min. Carlos Britto, mas

aprofundado pelo Min. Sepúlveda Pertence, no sentido

de não estar provada a produtividade anterior e de que a

área ocupada era mínima (menos de meio hectare em

fazenda de área total de mais de 800 ha), não se podendo

a partir disto presumir que a improdutividade

caracterizada no laudo de vistoria do INCRA decorra da

invasão, ou mesmo da praga. Em se tratando de MS, a

prova inequívoca é ônus do impetrante. Por estas razões,

denegaram a segurança.

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IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- prova pré-constituída e inequívoca do direto líquido e

certo é ônus do impetrante em MS;

- a MP que proibia a vistoria em casos de ocupação é

posterior à vistoria;

- a ocupação de área diminuta da fazenda não pode fazer

presumir, por si só, que ela seja causa da

improdutividade.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( x ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO:

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FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STF

ÓRGÃO

JULGADOR

PLENO

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

TIPO DE AÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA

NÚMERO

PROCESSO

24764/DF

AUTOR OU

RECORRENTE

CBE – COMPANHIA BRASILEIRA DE

EQUIPAMENTOS

RÉU OU

RECORRIDO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

06/01/2004

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

06/10/2005

RELATOR SEPÚLVEDA PERTENCE

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

GILMAR MENDES

PARTE ANALÍTICA

DECISAO Segurança parcialmente concedida por maioria, de 06 a

04, vencidos os Mins. Relator, Sepúlveda Pertence, Eros

Grau, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso.

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SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

MS impetrado pela empresa proprietária de área que teria

sido ocupada pelo MST contra decreto desapropriatório

do Presidente, sob três fundamentos, a saber, (a) o

imóvel tinha sido objeto de invasão por parte de

membros do MST, e tal invasão não permitia a

manutenção da produtividade do imóvel, assim como

impedia a realização de vistorias e desapropriações, na

forma do art. 2.°. § 6.°, da Lei 8.629/93, com a redação

da MP 2.183-53/01; (b) não se dera ciência à impetrante

das decisões proferidas nas impugnações administrativas

aos laudos de vistoria, caracterizando cerceamento de

defesa e conseqüente nulidade do processo

administrativo e do decreto presidencial; e (c) as vistorias

se fizeram separadamente sobre as glebas que compõem

o imóvel, e não sobre o imóvel como um todo, alterando-

se a conclusão sobre sua produtividade.

Naquilo que aqui nos importa, a decisão do Tribunal

considerou cada gleba isoladamente e concedeu a

segurança apenas quanto à gleba invadida. Ao fazê-lo,

entretanto, modificou a jurisprudência até então

dominante na Corte no aspecto de que a invasão de área

diminuta da propriedade não poderia justificar a sua

improdutividade. Por iniciativa do Min. Gilmar Mendes,

que abriu a dissidência e relatou o acórdão, a ocupação

por militantes mesmo de uma área pequena pode

comprometer a produtividade de todo o imóvel, desde

que representativa ou relevante para a sua administração

- foram citados pelo voto dissidente exemplos de

ocupação de áreas de porteira, água, passagens,

caminhos.

Há embargos de declaração pendentes de julgamento,

conclusos com o relator desde 23/08/2010, tendo havido

substituição de relatora para a atual, Min. Rosa Weber,

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em 19/12/2011, segundo consulta realizada em

01/05/2013.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- sobre o aspecto essencial, se a área ocupada for

diminuta, mas essencial à administração da fazenda e

comprometer a produtividade, incide a regra limitadora

do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( x ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO: houve uma modificação pontual

na jurisprudência do STF sobre os efeitos das ocupações

por militantes em áreas destinadas à reforma agrária. Até

este julgado, pressupunha-se que se a ocupação era de

área diminuta, não significativa frente à totalidade do

imóvel, ela não poderia comprometer a sua

produtividade, e junto com outros elementos afastava a

incidência da regra limitadora da Lei 8.629/93; a partir

dele, o STF passou a considerar não ser tão relevante o

tamanho da área ocupada, e sim a definição de sua

importância para a administração do conjunto do imóvel

e em que medida isso efetivamente compromete a

produtividade.

FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STF

DBD
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ÓRGÃO

JULGADOR

PLENO

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

TIPO DE AÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA

NÚMERO

PROCESSO

25124/DF

AUTOR OU

RECORRENTE

ADEMILSON CHAGAS

RÉU OU

RECORRIDO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

16/11/2004

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

09/04/2008

RELATOR CARLOS BRITTO

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM (VOTO AJUSTADO)

PARTE ANALÍTICA

DECISAO Por maioria, vencido o Min. Menezes Direito, o Tribunal

concedeu parcialmente a ordem.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

Proprietário impetra MS contra decreto desapropriatório

alegando I) ausência de notificação prévia da vistoria

preliminar de que trata o § 2.° do art. 2.° da Lei 8.629/93;

II) violação do § 6.° do mesmo art. 2.°, porque o imóvel

estaria invadido pelo MST; III) violação do contraditório

e da ampla defesa como decorrência da ausência de

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235

notificação da reabertura de prazo para se manifestar

sobre o laudo da vistoria; IV) impossibilidade de

desapropriação do imóvel dada a situação de calamidade

pública da região; V) falta de notificação à Federação da

Agricultura exigida no art. 2.° do Dec. 2.250/97; VI)

violação do § 4.° do art. 2.° da Lei 8.629/93 porque o

INCRA, passados seis meses da vistoria do imóvel,

desconsiderou a alteração que se deu nas condições de

uso da propriedade; e VII) não abatimento da área de

reserva legal para efeito de cálculo do grau de utilização

da terra.

O relator afastou cinco dos fundamentos, concedendo a

principio a ordem apenas com base em dois: vício na

notificação prévia à vistoria e vício na notificação da

reabertura de prazo para manifestação sobre o laudo da

vistoria.

O min. Menezes Direito dissentiu, denegando

inteiramente a ordem, por entender que não havia vicio

no primeiro caso e, no segundo, a ausência de

manifestação sobre o laudo decorria de negligência da

parte, não de violação ao devido processo legal, já que a

parte se fazia representar no processo administrativo por

advogado.

O voto do Min. Lewandowski, que pedira vista após a

divergência, no sentido de reafirmar jurisprudência da

Corte de que não há vício na ausência de notificação para

vistoria se o perito é acompanhado por preposto do

proprietário e não há posterior impugnação ou recurso

quanto ao laudo, concedia entretanto a ordem quanto ao

segundo vício apontado pelo relator, ou seja, a ausência

de notificação para falar sobre o laudo – houvera

tentativa da parte, mas inviabilizada por greve dos

servidores do INCRA.

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O relator retificou seu voto, acompanhando o do min.

Lewandowski quanto à primeira questão, com o que

acabou-se por conceder a ordem para invalidar o decreto

presidencial e o processo administrativo de

desapropriação apenas a partir da decisão concessiva de

novo prazo para manifestação sobre o laudo, impondo-se

nova notificação pessoal, preservando-se a higidez de

todos os demais atos do processo administrativo, vencido

apenas o min. Menezes Direito, que não concedia a

ordem.

O curioso é a existência, quanto à alegação de invasão,

de ofício do MST negando que os ocupantes fossem do

movimento e informando que se trataria de pessoas a

mando do proprietário. O STF levou em conta esta

informação para o fim de considerar controvertida a

invasão e, assim, afastar a possibilidade de se conceder a

ordem em MS com este fundamento. Diz o relator, em

seu voto: “... a Direção Nacional do MST encaminhou

ofício à Procuradoria Federal do INCRA em Sergipe,

afirmando que, segundo declaração dos próprios

ocupantes – que, a seu turno, não integravam o MST -, a

invasão teria ocorrido a mando do fazendeiro (fls. 309)”.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- matérias controvertidas indemonstradas afastam a

possibilidade de concessão da segurança;

- um conjunto de elementos, inclusive o ofício do MST à

Procuradoria Federal do INCRA em SE, torna

controvertida a ocupação da área pelo movimento, o que

afasta a incidência do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93;

- a ordem foi concedida por violação do devido processo

legal quanto a intimação no processo administrativo, mas

não como decorrência de ato imputado ao movimento.

DEMANDAS Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

DBD
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CONEXAS DO MST especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( x ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO: a novidade aqui é tomar em

consideração plenamente, para fins de aferição de

elemento essencial para a concessão ou não de

segurança, informação formalmente prestada pelo MST

no sentido de não ser organizada por ele a ocupação na

área, e de que ela se fizera a mando do próprio

fazendeiro.

DBD
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238

FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STJ

ÓRGÃO

JULGADOR

1.ª TURMA

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA RECURSAL

TIPO DE AÇÃO AGRAVO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR

NÚMERO

PROCESSO

MC 11386/PR

AUTOR OU

RECORRENTE

ANTÔNIO CLÁUDIO VIOL

LIANE GERALDE VIOL

RÉU OU

RECORRIDO

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E

REFORMA AGRÁRIA - INCRA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

11/04/2006 (MC)

AG. REG. EM 24/04/2006

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

04/05/2006 (AG. REG. NA MC)

RELATORA MIN. DENISE ARRUDA

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

A MESMA

PARTE ANALÍTICA

DECISAO EMENTA

MEDIDA CAUTELAR. CONCESSÃO DE EFEITO

SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL.

DBD
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239

AUSÊNCIA DO FUMUS BONI IURIS E DO

PERICULUM IN MORA. LIMINAR DENEGADA.

NEGATIVA DE SEGUIMENTO DA CAUTELAR,

COM FUNDAMENTO NO ART. 34, XVIII, DO RISTJ.

1. Pretensão objetivando a atribuição de efeito

suspensivo a recurso especial interposto em face de

acórdão que, dando provimento à remessa oficial e ao

apelo voluntário, julgou improcedentes ações

declaratória e cautelar (apreciadas simultaneamente),

que buscavam a declaração de que o imóvel de

propriedade dos ora agravantes é produtivo, insuscetível,

portanto, de desapropriação.

2. A medida cautelar exige, para a sua concessão,

necessariamente, a presença cumulativa dos requisitos

da plausibilidade do direito invocado e do risco de

dano irreparável (fumus boni iuris e periculum in mora).

3. O imóvel em questão encontra-se ocupado em toda a

sua extensão, desde janeiro de 1999, por um grupo do

MST formado por mais de trezentas pessoas.

4. Se a concessão de liminar em ação de reintegração de

posse não devolveu o domínio pleno do imóvel aos

agravantes, por não se ter dado cumprimento ao

mandado de reintegração até a presente data, é certo

que a eventual suspensão do procedimento

administrativo de desapropriação também não produzirá

qualquer resultado de ordem prática para os ora

agravantes.

5. Inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação

que justifique a suspensão do procedimento

administrativo de desapropriação, tendo em vista que

a perda da posse, decorrente da ação de membros do

MST, já perdura por tempo superior a sete anos.

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240

6. A continuidade do procedimento administrativo,

culminando até mesmo na expedição do decreto

expropriatório, não traz qualquer prejuízo mais

extenso do que os já definitivamente suportados pelos

agravantes.

7. A controvérsia estabelecida nos presentes autos

diz respeito à diferença entre os índices apurados

para o Grau de Eficiência na Exploração - GEE,

decorrente da utilização de diversas metodologias no

cálculo das Unidades Animais - UAs. A adoção de um

critério diverso do oficial (IN 8/1993), cuja utilização

é defendida pelo INCRA, somente seria possível

mediante a constatação de que outro método seria o

mais adequado para evidenciar a realidade, providência

inviável em sede de recurso especial, por demandar o

reexame do contexto fático-probatório dos autos.

Ausência do fumus boni iuris, consubstanciado na

probabilidade de êxito do recurso especial.

8. Agravo regimental desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os

Ministros da PRIMEIRA TURMA do Superior

Tribunal de Justiça: A Turma, por unanimidade,

negou provimento ao agravo regimental, nos termos

do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros

José Delgado, Luiz Fux e Teori Albino Zavascki

votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente,

justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

Propriedade ocupada pelo MST desde 1999. Curso de

procedimento desapropriatório. Proprietários, aqui

agravantes, propuseram ação de reintegração de posse,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0921360/CA
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241

onde obtiveram liminar, decisão que não foi cumprida.

Ingressaram em 2006 com a medida cautelar alegando

produtividade do imóvel, o que o tornaria impassível de

desapropriação para fins de reforma agrária. Agravaram

regimentalmente da decisão que indeferiu a liminar e

negou seguimento à cautelar. O tribunal fundou-se na

ausência de requisitos da cautelar em sua decisão – daí a

referência aos mais de sete anos de ocupação pelo MST -

, indicando que mesmo a eventual suspensão do processo

desapropriatório não alteraria a situação de fato existente

de perda da posse.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

Ocupação antiga (mais de sete anos), afastando o perigo

na demora como requisito para concessão da cautelar.

Limites à apreciação da produtividade pelo STJ (Súmula

7), enfraquecendo a fumaça do bom direito. Há uma

alegação de nulidade de laudo pericial que é importante

para a decisão, mas irrelevante para o objeto da pesquisa.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( x ) OUTRO

DESCRIÇÃO OUTRO:

Esta decisão parecia a princípio contrariar o

entendimento dominante no STJ (que em 2008 viria a ser

consolidado na Súmula 354) de divergir do STF quanto

aos efeitos da ocupação da área a ser desapropriada para

fins de reforma agrária ao reconhecer a situação de fato

consistente na ocupação de mais de sete anos pelo MST.

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242

Entretanto, a decisão não modifica este entendimento,

porque se refere exclusivamente às condições para

concessão de medida cautelar, reconhecendo que não

pode haver requisito essencial da medida, ou seja, o

perigo na demora ou risco de perecimento de direito, se o

esbulho durava já à época da propositura da medida mais

de sete anos, e se mesmo a obtenção, pelos proprietários,

de liminar de reintegração de posse não foi suficiente

para superar aquela situação. Trata-se, portanto, de

decisão que se orienta mais para a mensuração dos

efeitos práticos da decisão processual do que qualquer

dissidência quanto à orientação dominante da corte.

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243

FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STJ

ÓRGÃO

JULGADOR

1.ª TURMA

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA RECURSAL

TIPO DE AÇÃO RECURSO ESPECIAL

NÚMERO

PROCESSO

RESP 819426/GO

AUTOR OU

RECORRENTE

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E

REFORMA AGRÁRIA - INCRA

RÉU OU

RECORRIDO

FIORENTINO CAPPELLESSO E OUTRO

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

23/02/2006

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

15/05/2007

RELATORA MINISTRA DENISE ARRUDA

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM

PARTE ANALÍTICA

DECISAO EMENTA

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO.

DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA

AGRÁRIA. ART. 2º, § 6º, DA LEI 8.629/93. IMÓVEL

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244

RURAL OBJETO DE ESBULHO POSSESSÓRIO OU

INVASÃO MOTIVADA POR CONFLITO AGRÁRIO

OU FUNDIÁRIO DE CARÁTER COLETIVO.

IMPOSSIBILIDADE DE DESAPROPRIAÇÃO NOS

DOIS ANOS SEGUINTES À SUA DESOCUPAÇÃO.

1. A MP 2.027-38, de 4 de maio de 2000, publicada no

DOU de 5 de maio de 2000, introduziu o § 6º no art. 2º

da Lei 8.629/93, dispondo que "o imóvel rural objeto de

esbulho possessório ou invasão motivada por conflito

agrário ou fundiário de caráter coletivo não seria

vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do

imóvel". Daí seria possível concluir que, se a vistoria

administrativa já estivesse concluída anteriormente ao

esbulho, ficaria afastada a aplicação da aludida regra.

2. Ocorre, contudo, que a MP 2.109-52, de 24 de maio de

2001, publicada no DOU de 25 de maio de 2001,

atualmente reeditada como MP 2.183-56/2001,

modificou a redação do aludido preceito legal, passando

a dispor que "o imóvel rural de domínio público ou

particular objeto de esbulho possessório ou invasão

motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter

coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado

nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro

desse prazo, em caso de reincidência" .

3. Não se desconhece a existência de julgados da Corte

Suprema no sentido de que as invasões hábeis a ensejar a

aplicação do § 6º do art. 2º da Lei 8.629/93 são aquelas

ocorridas durante a vistoria administrativa ou antes dela,

a ponto de alterar os graus de utilização da terra e de

eficiência em sua exploração, comprometendo os índices

fixados em lei (MS 25.186/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min.

Carlos Britto, DJ de 2.3.2007; MS 25.022/DF, Tribunal

Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 16.12.2005; MS

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25.360/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, DJ de

25.11.2005).

4. Entretanto, diante da clareza da aludida norma,

proibindo a vistoria, a avaliação ou a desapropriação nos

dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro

desse prazo em caso de

reincidência, não se pode interpretá-la de outra forma

senão aquela que constitui a verdadeira vontade da lei,

destinada a coibir as reiteradas invasões da propriedade

alheia.

5. A reforma agrária, conforme ressaltado pelo eminente

Ministro Celso de Mello no julgamento da MC na ADIn

2.213-0/DF, "supõe, para regularmente efetivar-se, o

estrito cumprimento das formas e dos requisitos

previstos nas leis e na Constituição da República".

6. Ademais, a comprovação da produtividade do imóvel

expropriado, conquanto não se possa efetivar dentro do

feito expropriatório, pode ser buscada pelas vias

ordinárias. Conclui-se, daí, que eventuais invasões

motivadas por conflito agrário ou fundiário de caráter

coletivo podem, sim, alterar o resultado das demandas

dessa natureza, mesmo após concluída a vistoria

administrativa, em prejuízo do direito que tem a parte

expropriada de comprovar que a sua propriedade é

produtiva, insuscetível, portanto, de desapropriação para

fins de reforma agrária, nos termos do art. 185, II, da

Constituição Federal.

7. Recurso especial desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os

Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de

Justiça: A Turma, por unanimidade, negou provimento

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246

ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra

Relatora. Os Srs. Ministros José Delgado, Francisco

Falcão, Luiz Fux e Teori Albino Zavascki votaram com a

Sra. Ministra Relatora.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

REsp do INCRA contra acórdão do TRF da 1.ª Região

que foi assim ementado:

"ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR

INTERESSE SOCIAL. REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL

INVADIDO. IMPOSSIBILIDADE DE

DESAPROPRIAÇÃO. CARÊNCIA DE AÇÃO.

1. O imóvel rural de domínio público ou particular

objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por

conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não

será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois

anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse

prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a

responsabilidade civil e administrativa de quem

concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que

propicie o descumprimento dessas vedações. § 6º do art.

2º da Lei 8.629/93, com a redação da Medida Provisória

2.183-56/01.

2. Comprovada a invasão da propriedade do

expropriado impossível se torna a desapropriação do

imóvel ante a vedação legal.

3. Apelação e remessa oficial não providas."

O recorrente aponta violação do art. 2º, §§ 1º e 6º, da Lei

8.629/93, e afirma que: (a) o imóvel rural foi invadido

por pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra - MST – no dia 20 de maio de 2003,

quando o referido imóvel já estava legalmente

classificado como propriedade improdutiva, não-

cumpridora da sua função social, época, inclusive, em

que o decreto expropriatório já estava editado; (b) "o

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esbulho possessório não influenciou e nem implicou

alterações da situação agronômica do imóvel para sua

classificação como propriedade improdutiva" (fls. 436-

437); (c) a vedação do § 6º do art. 2º da Lei 8.629/93

alcança apenas as hipóteses em que a vistoria

administrativa ainda não tenha sido realizada ou quando

feitos os trabalhos durante ou após a ocupação.

O Ministério Público Federal opinou pelo não-

conhecimento do recurso e, se conhecido, pelo seu

desprovimento.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

É um dos cinco precedentes citados na Súmula 354 do STJ (“A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária”). A redação do art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93, tal como

determinada pela MP 2.027-38, de 4 de maio de 2000,

ainda poderia ensejar dúvidas quanto à possibilidade de

desapropriação em casos de ocupações posteriores à

vistoria, já que fixava que "o imóvel rural objeto de

esbulho possessório ou invasão motivada por conflito

agrário ou fundiário de caráter coletivo não seria

vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do

imóvel". Mas depois da edição da MP 2.109-52, de 24 de

maio de 2001, reeditada como MP 2.183-56/2001, a

redação da aludida regra mudou, abrangendo ainda a

avaliação e a desapropriação nos dois anos seguintes ao

esbulho ou à invasão, “ou no dobro desse prazo, em caso

de reincidência" .

Polemiza diretamente com as decisões do STF, que

afirma explicitamente não desconhecer, mas, “diante da

clareza da aludida norma, proibindo a vistoria, a

avaliação ou a desapropriação nos dois anos seguintes à

sua desocupação, ou no dobro desse prazo em caso de

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reincidência, não se pode interpretá-la de outra forma

senão aquela que constitui a verdadeira vontade da lei,

destinada a coibir as reiteradas invasões da propriedade

alheia”. Cita passagem de voto do Min. Celso de Mello,

do STF, ao relatar a MC na ADIn 2.213-0/DF, para quem

a reforma agrária "supõe, para regularmente efetivar-se,

o estrito cumprimento das formas e dos requisitos

previstos nas leis e na Constituição da República".

A ocupação pode inviabilizar posterior discussão sobre a

produtividade ou improdutividade do imóvel por parte do

proprietário – em ação ordinária, por exemplo.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( x ) REJEITA TOTALMENTE

( ) OUTRO

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FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STJ

ÓRGÃO

JULGADOR

2.ª TURMA

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA RECURSAL

TIPO DE AÇÃO RECURSO ESPECIAL

NÚMERO

PROCESSO

RESP 934546/RJ

AUTOR OU

RECORRENTE

RENATO SALGADO DE CARVALHO E OUTROS

RÉU OU

RECORRIDO

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E

REFORMA AGRÁRIA - INCRA

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

30/03/2007

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

19/08/2008

RELATOR MINISTRO CASTRO MEIRA

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM

PARTE ANALÍTICA

DECISAO EMENTA

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ART.

535 DO CPC. VIOLAÇÃO INEXISTENTE.

DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL PARA

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FINS DE REFORMA AGRÁRIA. ESBULHO

PRATICADO POR INTEGRANTES DO MST APÓS A

VISTORIA REALIZADA PELO INCRA.

1. Não se verifica ofensa ao art. 535 do CPC quando a

decisão recorrida se apresenta devidamente

fundamentada, sem que haja omissões ou contradições a

serem sanadas.

2. O esbulho possessório que impede a desapropriação,

art. 2º, § 6º, da Lei n.º 8.629/93, na redação dada pela

Medida Provisória n.º 2.183/01, deve ser significativo e

anterior à vistoria do imóvel, a ponto de alterar os graus

de utilização da terra e de eficiência em sua exploração,

comprometendo os índices fixados em lei.

3. Se o INCRA já havia vistoriado o imóvel rural, em

data anterior à ocupação por parte dos integrantes do

MST, conforme conclusão descrita no laudo Agronômico

de Fiscalização, o qual afirmava que se tratava de

“grande propriedade improdutiva”, é possível a

desapropriação pretendida.

4. Recurso especial não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes

as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda

Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade,

negar provimento ao recurso nos termos do voto do Sr.

Ministro Relator. Os Srs. Ministros Herman Benjamin,

Mauro Campbell Marques e Eliana Calmon votaram com

o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr.

Ministro Humberto Martins.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

REsp de decisão do TRF da 2.ª Região que acompanhava

a jurisprudência do STF e estava assim ementado:

“DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL, PARA

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251

FINS DE REFORMA AGRÁRIA – ESBULHO

PRATICADO POR INTEGRANTES DO MST APÓS A

VISTORIA DA FAZENDA – INAPLICABILIDADE

DO ART. 2º, § 6º, DA LEI Nº 8.629/93.

Consoante jurisprudência do Supremo, a vedação

prevista no art. 2º, § 6º, da Lei nº 8.269/93 “alcança

apenas as hipóteses em que a vistoria ainda não tenha

sido realizada ou quando feitos os trabalhos durante ou

após a ocupação” [24.136-5/DF, STF, rel. Min. Maurício

Correa, DJ. 08.11.2002]. Caso em que o imóvel foi

vistoriado pelo Incra em dezembro de 2004, e sua

invasão ocorreu nos meses de outubro e dezembro de

2005, o que afirma a aplicação do citado entendimento

pretoriano, impossibilitando liminar que paralisa o

procedimento expropriatório. Agravo interno

desprovido.”

O recorrente alegou, dentre outras coisas, que teria

havido apenas uma vistoria prévia, faltando a definitiva,

com a avaliação do imóvel e das construções.

O MPF foi pelo improvimento do recurso, tanto que sua

fundamentação foi transcrita como razão de decidir do

Relator.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

É particularmente curiosa, esta decisão, porque proferida por unanimidade quase dois meses depois da vigência da Súmula 354 do STJ (“A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária”): a Súmula é de 25/06/2008, enquanto que o julgamento deste REsp se deu em 19/08/2008. Apesar de referir-se diretamente à MP 2.183-56/2001, ou

seja, sendo a decisão já bem posterior à modificação da

redação da regra que proíbe vistorias, avaliação e

desapropriação da área invadida nos dois anos seguintes

ao esbulho ou à invasão, “ou no dobro desse prazo, em

caso de reincidência", a decisão unânime neste REsp

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segue a mesma orientação do STF, no sentido de que

somente a ocupação anterior à vistoria e de área

significativa, capaz alterar a produtividade do imóvel,

impede a desapropriação.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( ) REJEITA TOTALMENTE

( x ) OUTRO

DESCRIÇÃO DE OUTRO:

Admite as ocupações, desde que posteriores à vistoria

que tenha declarado o imóvel improdutivo e passível de

reforma agrária, nos termos da orientação do STF.

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FICHA DE ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS

PARTE DESCRITIVA

TRIBUNAL STJ

ÓRGÃO

JULGADOR

2.ª TURMA

MATÉRIA CÍVEL

COMPETÊNCIA RECURSAL

TIPO DE AÇÃO RECURSO ESPECIAL

NÚMERO

PROCESSO

AGRAVO REG NO RESP 1055228/PA

AUTOR OU

RECORRENTE

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E

REFORMA AGRÁRIA - INCRA

RÉU OU

RECORRIDO

EVANDRO LIEGE CHUQUIA MUTRAN

DATA DE

AJUIZAMENTO NA

CORTE

13/05/2008

DATA DE

JULGAMENTO NA

CORTE

04/03/2010

RELATOR MINISTRO CASTRO MEIRA

RELATOR PARA O

ACÓRDÃO

IDEM

PARTE ANALÍTICA

DECISAO EMENTA:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL.

VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535 DO CPC. NÃO

OCORRÊNCIA. ARTIGOS 165 E 458, II, DO CPC.

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SÚMULA 284/STF. COMPETÊNCIA.

COMPROVAÇÃO DE OCORRÊNCIA DE ESBULHO

POSSESSÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA

7/STJ. SUSPENSÃO DO PROCEDIMENTO

EXPROPRIATÓRIO. SÚMULA 354/STJ.

1. No tocante aos arts. 165, 485, 535, II, do CPC, cumpre

ressaltar que a recorrente não apontou de modo preciso

como teria ocorrido a violação. Afirma apenas que o

Tribunal de origem não poderia ter rejeitado os embargos

de declaração, porquanto foram interpostos com o intuito

de sanar vícios e prequestionar matérias relevantes para o

deslinde da controvérsia, e que não houve

fundamentação adequada.

Alegações genéricas inviabilizam o conhecimento do

recurso especial, nos termos da Súmula 284/STF.

2. A constatação de eventual omissão, com a

possibilidade de determinar-se o retorno dos autos à

origem, só seria possível se houvesse fundamentação

suficiente quanto à ofensa ao art. 535 do CPC, hipótese

inexistente no caso dos autos.

3. A Corte de origem não emitiu juízo de valor acerca

dos dispositivos legais tidos por contrariados – arts. 2º,

§§ 2º e 4º da Lei 8.629/93; 2º, § 1º da LC 76/93; 35-I da

LC 35/79; 125, II, III, 421, 422, 424, 437, 438, do CPC.

–, o que configura falta de prequestionamento e impede o

acesso da matéria à instância especial, conforme

preconiza a Súmula 211/STJ: "Inadmissível recurso

especial quanto à questão que, a despeito da oposição de

embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal

"a quo".

4. No que se refere ao artigo 2º, § 6º, da Lei 8.629/93,

importa ressaltar que o Tribunal a quo considerou

devidamente comprovado o esbulho possessório nos

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seguintes termos: diante dos documentos apresentados,

não se pode desprezar que há uma situação de invasão,

ao se constatar que os proprietários não podem dispor

plenamente da posse do seu imóvel. O quadro descrito

nas ocorrências policiais já se impõe, a meu ver, como

embaraço ao processo expropriatório, pois é sabido que o

imóvel invadido resta descaracterizado nas suas

características e na sua produtividade, podendo disso

resultar um diagnóstico equivocado, não somente na

respectiva avaliação, como de resto na classificação

como propriedade produtiva ou improdutiva. (Cf. CF -

art. 185, II.) (fl.. 162).

5. Dispõe a norma legal que o imóvel rural que tenha

sofrido esbulho de "caráter coletivo não será vistoriado,

avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua

desocupação", ou nos quatro anos, em caso de

reincidência. A jurisprudência desta Corte firmou-se no

sentido de que "não se pode interpretá-la [a norma do

artigo 2º, § 6º, da Lei 8.629/93] de outra forma senão

aquela que constitui a verdadeira vontade da lei,

destinada a coibir as reiteradas invasões da propriedade

alheia" (REsp 1057870/MA, Rel. Min. Denise Arruda,

DJe 10/09/2008), aplicando-se a Súmula 354/STJ: "A

invasão do imóvel é causa de suspensão do processo

expropriatório para fins de reforma agrária".

6. O Supremo Tribunal Federal, que reafirmou seu

posicionamento, entende que não se aplica o preceito nos

casos em que a invasão seja posterior à vistoria, sem

influenciar nos resultados sobre a produtividade (MS

25283, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe

05/03/2009).

7. Ainda que se pudesse adentrar o acervo fático-

probatório dos autos para concluir-se de forma diversa do

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acórdão recorrido – de que o esbulho não é insignificante

– a situação excepcional analisada na Suprema Corte não

se enquadra no caso em tela, pois a invasão, no presente

feito, é anterior à pretensa vistoria.

8. Aplica-se o entendimento cristalizado na Súmula

354/STJ ("A invasão do imóvel é causa de suspensão do

processo expropriatório para fins de reforma agrária").

9. Agravo regimental não provido.”

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes

as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda

Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade,

negar provimento ao agravo regimental nos termos do

voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros

Humberto Martins, Herman Benjamin, Mauro Campbell

Marques e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro

Relator.

SÍNTESE

ANALÍTICA DO

CASO

Trata-se de agravo regimental oposto em REsp de

acórdão originalmente proferido pelo TRF da 1.ª Região,

que manteve sentença aplicando estritamente o art. 2.°, §

6.°, da Lei 8.629/93, vedando a vistoria, a avaliação ou a

desapropriação em áreas esbulhadas ou invadidas,

independentemente do tamanho de tal área.

O REsp não havia sido conhecido, com base na Súmula

211 do STJ (“Inadmissível recurso especial quanto à

questão que, a despeito da oposição de embargos

declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”),

porque o TRF1 não teria conhecido dos declaratórios

sobre a pretensa omissão quanto a dispositivos legais

considerados essenciais para o deslinde da questão, pelo

agravante.

O agravo regimental foi interposto ao argumento de que

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houve o prequestionamento da matéria, pois a questão da

invasão foi tratada pelo Tribunal de origem, com o que

haveria omissão, visto que o acórdão simplesmente

rejeitou os embargos de declaração interpostos. O

agravante sustentava que o esbulho somente suspende o

procedimento administrativo de desapropriação quando a

ação descaracterizar o imóvel a ponto de alterar a sua

classificação ou desvalorizá-lo, conforme julgados do

STF.

Entretanto, o regimental foi rejeitado tanto por razões

formais quanto de conteúdo. No que respeita ao cerne da

polêmica, a divergência entre as orientações do STJ e do

STF, reafirma a interpretação consolidada na Súmula 354

do STJ, cita ementa de decisão então recente do STF

(MS 25283, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno,

DJe 05/03/2009), em que a Corte reafirmou sua posição

em sentido distinto da do STJ, mas ressalta que, ainda

que o entendimento do STF fosse seguido, seria

inaplicável ao caso, dado que a invasão antecedeu à

vistoria.

IDEIAS-FORÇA DA

DECISÃO

- não há como interpretar o art. 2.°, § 6.°, da Lei 8.629/93

senão no sentido de que ela visa inibir as invasões, pouco

importando se elas ocorreram antes ou depois da vistoria

– confronta explicitamente a decisão do STF, que é

mencionada;

- ainda que se aplicasse o entendimento do STF, o

resultado no caso concreto não seria diferente, porque a

invasão antecedeu a vistoria.

DEMANDAS

CONEXAS DO MST

Todas as ligadas à legitimidade de sua forma de atuação,

especialmente quanto às ocupações.

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FORMA DE

RESPOSTA DA

DEMANDA

( ) ACOLHE TOTALMENTE

( x ) REJEITA TOTALMENTE

( ) OUTRO

DESCRIÇÃO DE OUTRO:

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ANEXO 3

CÓDIGOS-FONTE DOS PROGRAMAS PARA ACESSO

AOS DADOS DE JURISPRUDÊNCIA

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CÓDIGO-FONTE STF

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CÓDIGO-FONTE STJ

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