Tese Ricardo Leite

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Tese sobre Metaforização Textual.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA DOUTORADO EM LINGSTICA

    METAFORIZAO TEXTUALa construo discursiva do sentido metafrico no texto

    Ricardo Lopes Leite

    Fortaleza 2007

  • Ricardo Lopes Leite

    METAFORIZAO TEXTUAL: a construo discursiva do sentido metafrico no texto

    Tese de Doutorado submetida Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Lingstica da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Lingstica, sob a orientao da Prof.a Dr.a Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo e co-orientao da Prof.a Dr.a Mnica Magalhes Cavalcante

    Fortaleza 2007

  • Esta Tese foi submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica como parte dos

    requisitos necessrios para obteno do grau de Doutor em Lingstica, outorgado pela

    Universidade Federal do Cear, e encontra-se disposio dos interessados na

    Biblioteca de Humanidades da referida Universidade. A citao de qualquer trecho

    desta tese permitida, desde que seja feita de acordo com as normas cientficas.

    ___________________________________

    Ricardo Lopes Leite

    Banca Examinadora

    ___________________________________Prof.a Dr.a Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo (Orientadora) Universidade Federal do Cear

    Prof.a Dr.a Mnica Magalhes Cavalcante (Co-Orientadora)Universidade Federal do Cear

    Prof. Dr. Heronides Maurlio de Melo MouraUniversidade Federal de Santa Catarina

    Prof. Dr. Joo Batista Costa Gonalves Universidade Estadual do Cear

    Prof.a Dr.a Maria Elias Soares Universidade Federal do Cear

    Prof.a Dr.a Mrcia Teixeira NogueiraUniversidade Federal do Cear

    __________________________________Profa. Dr. Paula Lenz Costa Lima (suplente) Universidade Estadual do Cear/CE

    Tese aprovada em: / 09/2007

  • Alice, minha filha, que nasce

    junto com este trabalho.

  • AGRADECIMENTOS

    Lvia, minha esposa, pela dedicao e pacincia em compartilhar as angstias,

    conquistas e dificuldades da vida e do trabalho.

    Aos meus pais, Francisco e Vilma, pela educao slida e por terem cultivado desde

    cedo o fascnio que tenho pela leitura.

    Prof.a Dr.a Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo, minha orientadora, pela ateno,

    incentivo e sugestes feitas a este trabalho de tese.

    Prof.a Dr.a Mnica Magalhes Cavalcante, minha co-orientadora, por ter acreditado

    na minha capacidade e pela sua competncia em apontar as lacunas e virtudes do meu

    trabalho.

    Ao meu grande amigo, prof. Jos Amrico B. Saraiva, a quem eu devo a iniciao na

    Semitica e a interlocuo sobre boa parte das reflexes centrais deste trabalho.

    Prof.a Dr.a Maria Elias Soares, espectadora do meu aprendizado acadmico, por ter

    posto prova as verses preliminares da tese.

    minha colega prof.a Silvana Maria Calixto de Lima, pelas discusses proveitosas

    sobre metfora e recategorizao, que engatilharam a idia de estudar a metaforizao

    textual.

    Ao Prof. Dr. Paulo Mosnio, lingista brilhante, de quem obtive valiosos ensinamentos.

    Profa. Dra. Emlia Maria Peixoto Farias, pelas valiosas sugestes dadas nas duas

    qualificaes da tese.

    Aos membros da Banca Examinadora, pela presteza em atenderem minha solicitao

    e por contriburem positivamente para a verso final do trabalho.

    coordenao, professores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em

    Lingstica, pela ateno e eficincia despendidas a mim durante o curso do doutorado.

    Aos colegas da minha turma de doutorado (2003.1), pelo companheirismo e amizade.

    CAPES, pela concesso de uma bolsa de estudos no perodo inicial do doutorado.

  • No h um nico homem que no seja um descobridor. Comea descobrindo o amargo, o salgado, o cncavo, o liso, o spero, as sete cores do arco e as vinte e tantas letras do alfabeto; passa pelos rostos, pelos mapas, pelos animais e pelos astros; conclui pela dvida ou pela f e pela certeza quase absoluta de sua ignorncia.

    Jorge Luis Borges

  • RESUMO

    O presente trabalho de tese examinou a metaforizao textual: fenmeno textual/discursivo no qual a metfora concebida como processo de constituio de sentidos, em vez de um simples jogo de semelhana entre figuras, restrito ao mbito da palavra ou da sentena. Inicialmente, discutiu-se o conceito de metfora nas principais teorias tradicionais, cujos mecanismos de interpretao fundamentam-se na substituio ou transferncia de traos semnticos, na tenso estabelecida entre uma palavra (foco) e sua projeo sobre uma estrutura sentencial (quadro) ou ainda em uma pragmtica presa a um contexto lgico-sentencial. Tal discusso revelou as limitaes das teorias da metfora-palavra e metfora-sentena em circunscrever o fenmeno metafrico a uma semntica de cunho lexicalista, e a necessidade de deslocamento da metfora para outro nvel de interpretao, o nvel textual/discursivo. Em seguida, analisou-se o modo como aspectos cognitivos, lingstico-textuais e scio-culturais interagem, simultaneamente, na construo do sentido metafrico a partir da diluio da dicotomia sentido literal/metafrico e da elaborao de um conceito de cognio aplicado metaforizao. Por fim, examinaram-se as limitaes do conceito de recategorizao metafrica estudado por Lima (2003), a fim de se propor a metaforizao textual e sua descrio por meio de mecanismos de interpretao capazes de revelar a pluralidade de sentidos metafricos em um nvel textual/discursivo, alm dos limites da palavra e da sentena. Realizou-se uma conjuno terica das seguintes disciplinas: Semitica Textual, Lingstica Textual (estudos sobre Referenciao) e Cincias Cognitivas, o que permitiu conceber a metfora como um fenmeno cognitivo dinmico, flexvel, capaz de emergir e de se organizar na interao scio-comunicativa. Esse enlace terico interdisciplinar auxiliou a descrever a metaforizao por meio de dispositivos ou mecanismos de interpretao, adaptados da semitica textual de Eco (2000; 2004) e da semitica literria de Bertrand (2003), quais sejam: a cooperao textual, o conceito de leitor-observador, a abduo, a seleo de propriedades conceituais e, por fim, o conceito de isotopia discursiva. A anlise foi realizada aplicando-se os dispositivos interpretativos citados a um exemplrio que compreendeu sobretudo notas jornalsticas e alguns textos humorsticos (piadas) de fontes variadas, coletados sem critrios definidos, e sem obedecer a uma ordem sistemtica, procedimento que isentou o estudo de apresentar, em seu corpo, um desenho metodolgico especfico para justificar as anlises. Tais anlises demonstraram que, ao ultrapassar os limites da palavra e da sentena, manifestando-se em um nvel textual/discursivo, a metfora transforma-se em processo, em metaforizao. Isto implica dizer que o fenmeno enquadra-se na dinmica do texto, em um contexto discursivo, no qual possvel multiplicarem-se os sentidos metafricos a cada movimento interpretativo ocorrido durante a leitura.

    PALAVRAS-CHAVE: Metfora; Metaforizao; Cognio; Recategorizao metafrica; Semitica Textual.

    (418 palavras)

  • ABSTRACT

    The present study introduces textual metaphorization: a textual/discursive phenomenon where metaphor is recognized as a practice of constitution of sense, rather than as an ordinary game of similarity figures, restricted to the word or sentence level. First, the study argues on the very concept of metaphor within the main traditional theories, whose interpretation mechanisms are established on the replacement or transfer of semantic features, on the tension set up between a word (focus) and its projection over a sentence structure (frame), or yet, on a pragmatic set to a logic sentential context. Such discussion showed the constraints of metaphor-word and metaphor-sentence theories as it circumscribes the metaphoric phenomenon to a lexicalist Semantics, as well as the need for transferring metaphor to another interpretation stage, the textual/discursive level. Secondly, the research investigates the way how cognitive, textual-linguistic, and socio-cultural features are engaged simultaneously in the foundation of metaphoric sense, from the dilution of literal/metaphoric dichotomy, and the drawing of a cognition concept applied to metaphorization. Finally, it examines the constraints of the concept of metaphorical (re)categorization presented by Lima (2003), in order to propose textual metaphorization and its description trough interpretative mechanisms capable of revealing the plurality of metaphorical senses in a textual/discursive level, further than the word and sentence boundaries. The study presents a theoretical conjunction of the following subject areas: Textual Semiotics, Text Linguistics (studies on Referenciation) and Cognitive Sciences, which made possible the consideration of metaphor as a dynamic, flexible phenomenon, able to emerge and organize itself within socio-communicative interaction. Such an interdisciplinary theoretical blending aided to describe metaphorization through interpretation mechanisms or devices, adapted from Ecos (2000; 2004) text semiotics and from Bertrands (2003) literary semiotics, which are: textual cooperation, the concept of reader/observer, abduction, conceptual properties selection and, lastly, the discursive isotopy concept. The analysis was carried out by applying the previous interpretative devices to a set of samples that comprehended mostly news notes and some humorous texts (jokes) collected from varied sources, with no definite criterion, and without obedience to a systematic order this could justify the lack of a specific methodological design to validate the analyses. Such analyses showed that by overcoming the word and sentence limits, and by emerging in a textual/discursive level, metaphor becomes a process, the metaphorization. It means that the phenomenon is set in the textual dynamics, within a discursive context where metaphorical meanings can be multiplied whenever an interpretative movement acts during reading.

    KEY-WORDS: Metaphor; Metaphorization; Cognition; Metaphoric recategorization; Textual Semiotics.

    (412 words)

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................10

    1 A METFORA NO NVEL DA PALAVRA ......................16

    1.1 ARISTTELES E A METFORA ......................161.2 A TROPOLOGIA ..................... 231.3 A METFORA COMO COMPARAO E DESVIO ......................251.4 A METFORA E A ANLISE SMICA ......................291.5 A METFORA E A METONMIA: A SELEO E A COMBINAO NOS DOIS EIXOS DA LINGUAGEM

    ......................35

    1.6 A SEMNTICA DA METFORA DE ULLMANN ......................371.7 O LUGAR DA PALAVRA NO PROCESSO METAFRICO ......................41

    2 A METFORA NO NVEL DA SENTENA ......................43

    2.1 A METFORA ENTRE A PALAVRA E A SENTENA: OS PLANOS SEMITICO E SEMNTICO DE BENVENISTE

    ......................43

    2.2 A ESTRUTURA SENTENCIAL DA METFORA: A PROPOSTA DE A. I. RICHARDS

    ......................46

    2.3 A METFORA COMO PROJEO SEMNTICA SOBRE A SENTENA

    ......................49

    2.4 A PRAGMTICA DA METFORA ......................582.4.1 A metfora e as mximas conversacionais de Grice ......................582.4.2 A concepo searleana de metfora ......................622.4.3 A metfora definida pela Relevncia ......................642. 5 OS LIMITES DO SENTIDO NA SENTENA METAFRICA ......................69

    3 PRELIMINARES A UMA TEORIA TEXTUAL-DISCURSIVA DA METFORA ......................71

    3.1 A OPOSIO SENTIDO LITERAL/METAFRICO E OS MODELOS CONTEMPORNEOS DE COMPREENSO DE METFORAS

    ......................73

    3.1.1 O modelo pragmtico tradicional (Standard Pragmatic Model) ......................733.1.2 O modelo de acesso direto (Direct Access View) ......................753.1.3 A hiptese da salincia gradual (Graded Salience Hypothesis) ......................763.2 ALM DO SENTIDO LITERAL E METAFRICO: A CONSTRUO DO SENTIDO NO TEXTO/DISCURSO ......................78

  • 3.3 POR UM MODELO DE COGNIO APLICADO METAFORIZAO

    ......................82

    3.3.1 Os modelos tericos de cognio ......................833.3.1.1 O cognitivismo clssico: o simbolismo ......................843.3.1.2 O conexionismo ......................893.3.1.3 O atuacionismo ......................943.3.1.4 O realismo corporificado de Lakoff & Johnson ....................1033.3.1.5 O scio-cognitivismo ....................1103.4 COGNIO E INTERPRETAO DE METFORAS ....................1163.5 TEXTO E CONTEXTO: OS STIOS DA COGNIO ....................120

    4 A METFORA NO NVEL TEXTUAL-DISCURSIVO: O FENMENO DA METAFORIZAO

    ....................126

    4.1 OS DISPOSITIVOS INTERPRETATIVOS DA METAFORIZAO

    ....................131

    4.1.1 Cooperao textual: a impresso de realidade instaurada no texto

    ....................132

    4.1.2 O leitor e a figura do observador ....................1384.1.3 O raciocnio abdutivo ....................1474.1.3.1 Abduo e metaforizao ....................1564.1.4 A seleo de propriedades conceituais na metaforizao ....................1634.1.5 A isotopia ....................1714.1.5.1 Definies de isotopia: da perspectiva estrutural para a discursiva

    ....................173

    4.1.5.2 Figurativizao e tematizao: o funcionamento discursivo da isotopia

    ....................176

    4.1.5.3 Isotopia e metaforizao ....................180

    4.2 A METAFORIZAO TEXTUAL E SUA APLICAO ....................185

    CONSIDERAES FINAIS ....................198

    REFERNCIAS ....................205

  • 10

    INTRODUO

    A metfora estudada h pelo menos dois mil anos. A quantidade e a

    regularidade de publicaes sobre o assunto so indicadores da complexidade desse

    tema, cujos contornos no foram ainda de todo estabelecidos e cuja mescla de

    posicionamentos tericos impede a formulao de uma definio unvoca. Como no

    bastasse, a utilizao do termo passou, atualmente, a designar uma variedade de

    fenmenos, muitas vezes no correlatos, que descrevem e caracterizam a metfora de

    forma particular.

    Vemos, assim, desde Aristteles at as teorias cognitivas atuais, o embate

    entre estudiosos para tentar definir a metfora. As posies defendidas, de modo geral,

    rivalizam entre si e, ao descentralizarem-se uma das outras, racionam o fenmeno,

    explicando-o apenas sob uma determinada perspectiva. Com isso, perdem o fio

    condutor para explicar a genialidade da sobreposio de significados prpria da

    metfora, j que impossvel v-la surgir em sua totalidade no ato da interpretao

    atravs dos culos de um determinado recorte terico, apenas. Compreendemos que

    uma explicao exaustiva do fenmeno contemplaria, ao menos parcialmente, a

    integrao das abordagens tericas.

    Em nosso trabalho, propomos essa integrao, ao discutirmos as principais

    teorias da metfora, caracterizando-as em trs nveis distintos, mas que guardam entre si

    certa dependncia: o nvel da palavra, o nvel da sentena e o nvel do texto/discurso.

    Alocada no primeiro nvel, a metfora manifesta-se restrita palavra ou item lexical,

    ora como substituio e deslocamento de seu sentido literal, ora como comparao

    implcita entre termos. Quando considerada no nvel da frase ou sentena, passa a ser

    um enunciado impertinente e no mais uma denominao desviante. No nvel do

    texto/discurso, por sua vez, consiste em uma maneira de redescrever a realidade, erigida

    custa de uma pluralidade de manifestaes textuais e discursivas que indeterminam,

    parcialmente, sua forma e seu sentido.

    A metfora, ao manifestar-se no texto/discurso, lugar legtimo da

    significao, surge no fluxo da semiose e passa a ser um mecanismo de ressignificao

  • 11

    da realidade. Assim, no basta ser uma substituio de nomes ou um ornamento do

    discurso, passvel de classificao, como apregoam as teorias do primeiro nvel;

    tampouco basta ser um efeito de sentido circunscrito predicao sentencial, como

    defendem aquelas do segundo nvel.

    Em alguns casos, preciso ampliar o sentido metafrico alm da palavra e

    da sentena, de maneira que este surja a cada movimento interpretativo, como

    decorrncia do trabalho inferencial do leitor sobre a dinmica textual, o que revela as

    prticas socioculturais imbricadas na linguagem no momento da interpretao. A este

    fenmeno resultante da interao entre leitor, texto e cultura, capaz de engendrar

    sentidos metafricos durante o ato interpretativo, damos o nome de metaforizao

    textual.

    O termo metaforizao no possui uma definio exata nos estudos da

    metfora. Comumente, o vemos empregado para designar o processo geral pelo qual

    uma expresso lingstica passa a ter um uso metafrico. Em nosso trabalho, a

    metaforizao diz respeito a um processo que no se limita a uma expresso lingstica

    ou a uma sentena, mas sim, constitui um fenmeno de construo de sentidos

    metafricos em um nvel textual-discursivo.

    Nosso intuito , portanto, relativizar o conceito de metfora medida que a

    deslocamos de um nvel para outro. Isto no significa dizer que o fenmeno no se

    manifeste nos dois nveis precedentes, da palavra e da sentena, porm, na esfera

    textual-discursiva, colocamos margem as definies clssicas que concebem a

    metfora somente como formas lingsticas j materializadas na superfcie de um texto,

    anteriores interpretao.

    Assumir a metaforizao textual demanda, por conseguinte,

    compreendermos a metfora como um fenmeno discursivo cuja aparente inevidncia

    na superfcie textual (em forma de palavra ou sentena) configura outros nveis de

    interpretao, suscitados pelo esforo inferencial do leitor sobre a tessitura textual.

    A idia de estudar a metaforizao partiu do trabalho de Lima (2003) sobre a

    recategorizao metafrica e seu papel na construo do sentido humorstico das piadas.

    Em linhas gerais, trata-se de um fenmeno ao mesmo tempo referencial e cognitivo, em

  • 12

    que uma expresso anafrica retoma seu antecedente por meio de uma metfora, muitas

    vezes sem a presena do antecedente no texto.

    Conforme veremos, a recategorizao metafrica explora, de fato, a

    dimenso scio-cognitiva da metfora quando presente em um texto. Todavia, a

    proposta apresentada por Lima no fornece uma descrio pormenorizada dos

    mecanismos de interpretao de determinadas recategorizaes metafricas que no se

    encontram plenamente textualizadas, como ocorre em tipos especficos de textos

    analisados em nosso trabalho. Da a possibilidade de propormos o conceito de

    metaforizao textual, como forma de ampliarmos o alcance da proposta apresentada

    pela autora.

    O nosso objeto de estudo, entretanto, ainda pouco estudado. Dessa forma, a

    fim de explicarmos e arquitetarmos categorias de anlise apropriadas ao fenmeno da

    metaforizao, lanamos mo de uma conjuno terica das seguintes disciplinas:

    Semitica Textual, Lingstica Textual (estudos sobre Referenciao) e Cincias

    Cognitivas. Tal deciso, a nosso ver, preenche a lacuna deixada pelos estudos correntes,

    que no formulam explicaes satisfatrias a respeito da interpretao da metfora

    quando esta transcende os limites das formas lexicais, sintticas ou semnticas e passa a

    ser considerada ao nvel discursivo.

    Outra particularidade do trabalho diz respeito recorrncia aos estudos

    clssicos sobre a metfora. Dois so os motivos dessa retomada. O primeiro concerne ao

    fato de que os trabalhos recentes sobre o assunto fundamentam-se, preferencialmente,

    em teorias contemporneas, mais precisamente aliadas s Cincias Cognitivas, para

    explicar a metfora, de modo que as teorias clssicas se encontram freqentemente

    preteridas quelas. Ao que parece, o cognitivismo contemporneo subestima as

    possibilidades descritivas e operacionais dos estudos clssicos de explicar a metfora

    sob uma perspectiva lingstica, valorizando, em vez disso, os aspectos relacionados ao

    processamento cognitivo e compreenso das metforas. O segundo que a opo por

    esse resgate terico, no nosso caso, justifica-se ainda mais, pois visamos redimensionar

    um conceito milenar cujas leituras clssicas so fundamentais para que se verifique a

    conduo paulatina da metfora rumo metaforizao.

  • 13

    O trabalho de tese investiga, assim, os mecanismos de interpretao em que

    a metfora passa a ser concebida no apenas como um jogo de figuras, todavia como

    processo de transformao de sentidos, manifestado em um nvel discursivo. Dessa

    forma, interessa-nos, especificamente: a) rediscutir as principais concepes de

    metfora, inclusive o conceito de recategorizao metafrica, a fim de ampliar a noo

    de interpretao metafrica a partir do fenmeno de metaforizao textual; b) descrever

    a metaforizao textual, analisando o modo como aspectos cognitivos, lingstico-

    textuais e scio-culturais interagem, simultaneamente, na construo do sentido

    metafrico; e c) apontar quais mecanismos de interpretao respondem pela

    metaforizao textual, revelando a pluralidade de sentidos metafricos em um nvel

    discursivo, alm dos limites da palavra e da sentena.

    bom elucidar que optamos por no constituir um corpus para analisar o

    fenmeno. A anlise ser realizada por meio de um exemplrio, que compreende

    sobretudo notas jornalsticas retiradas da Revista poca e do Jornal Dirio do

    Nordeste e alguns textos humorsticos (piadas) de fontes variadas, coletados sem

    critrios definidos, j que nosso propsito apresentar e descrever a metaforizao

    textual, e no, investigar o fenmeno j posto, submetido a determinadas variveis

    como gnero, suporte, tipo de texto, extenso, meio de veiculao etc. Do mesmo modo,

    a apresentao dos exemplos no obedecer a uma ordem sistemtica, pois depender

    do tipo de descrio e anlise que etiver sendo desenvolvida. Com esse procedimento,

    isentamo-nos de apresentar no corpo da tese um desenho metodolgico especfico para

    justificar nossa anlise. Uma descrio sumria da tese pode assim ser feita:

    O captulo I traa um panorama das teorias clssicas sobre a metfora

    circunscritas palavra, cujo mecanismo metafrico fundamenta-se nas noes de

    desvio, substituio e comparao de termos. So expostas as propostas dos autores

    mais representativos dessa viso clssica, a saber: a metfora sob a tica de Aristteles,

    a tropologia de Fontanier, a impertinncia semntica de Cohen, a anlise smica do

    Grupo , a proposta de metfora e a metonmia de Jakobson, e a semntica da metfora de Ullmann. Ao final, apontamos as limitaes das teorias da metfora-palavra, mas,

    por outro lado, destacamos as razes pelas quais essas teorias no devem ser de todo

    abandonadas, e sim ampliadas, quando submetidas ao nvel textual ou discursivo.

  • 14

    O captulo II desloca a metfora para o nvel do enunciado. O fim

    apresentar as contribuies da terminologia de A. I. Richards e da teoria interacional de

    Max Black, bem como expor a viso pragmtica da metfora sob a tica de Paul

    Grice, John Searle e Sperber e Wilson , com vista a mostrarmos o quanto ganha uma

    teoria da metfora se ultrapassar os limites da palavra e realizar-se em todo o enunciado.

    Por outro lado, finalizamos o captulo destacando o quanto a projeo de uma palavra

    metafrica sobre a sentena bem como uma pragmtica presa ao contexto lgico-

    sentencial restringem o poder de redescrio da realidade prprio da metfora, por

    desconsiderar fatores discursivos como determinantes na construo do sentido

    metafrico.

    O captulo III conduz a uma aparente quebra do raciocnio lgico-

    argumentativo do trabalho, pois adiaremos, por ora, o deslocamento da metfora para o

    nvel textual-discursivo. Sob o ttulo de Preliminares a uma teoria textual-discursiva da

    metfora, o captulo cumpre a funo de explicitar trs aspectos importantes para a

    construo de um modelo discursivo de interpretao de metforas: o primeiro refere-se

    clssica dicotomia sentido literal/metafrico e suas implicaes nos modelos

    contemporneos de compreenso metafrica; o segundo diz respeito formulao de

    um conceito de cognio que possa ser aplicado metaforizao; e o terceiro, por fim,

    explicita as noes de texto e contexto, luz do Scio-cognitivismo e da Semitica

    textual. O propsito final do captulo entendermos como processos cognitivos atuam

    em conjunto com o texto e o conhecimento culturalmente partilhado para construir o

    sentido metafrico, bem como vincularmos a interpretao reciprocidade entre leitor,

    texto e cultura.

    A localizao da metfora no nvel discursivo feita no captulo IV. Na

    verdade, esse nvel consiste na prpria descrio da metaforizao textual. Iniciamos

    com uma breve exposio do estudo de Lima (2003) sobre recategorizao metafrica,

    na qual o reconhecemos como ponto de partida para a explicao do nosso objeto de

    estudo, ao mesmo tempo em que pontuamos a necessidade de sua ampliao, de modo a

    contemplar satisfatoriamente as manifestaes discursivas da metfora. O captulo

    prossegue com a descrio da metaforizao por meio do que chamaremos de

    dispositivos ou mecanismos textuais/discursivos de interpretao. So eles: a

    cooperao textual, apresentada sob o vis da Semitica; o conceito de leitor-

  • 15

    observador, adaptado das propostas de Eco e Bertrand, respectivamente; a abduo,

    vista como uma estratgia de interpretao (conceito inicialmente formulado na

    semitica de C. S. Pierce, mas ampliado posteriormente por Eco e Parret); a seleo de

    propriedades conceituais e, por fim, o conceito de isotopia discursiva, elemento

    determinante na manifestao da metaforizao. O captulo se encerra com a aplicao

    das categorias interpretativas da metaforizao a alguns exemplos, com o propsito de

    confirmar a natureza discursiva da metaforizao e demonstrar a atuao simultnea de

    seus mecanismos constituintes no momento da interpretao.

    Por fim, na concluso, analisamos as virtudes e os limites da metaforizao,

    e reafirmamos a nossa defesa por um redimensionamento do conceito e metfora, bem

    como de seus nveis de interpretao.

  • 16

    CAPTULO 1

    A METFORA NO NVEL DA PALAVRA

    O rio que fazia uma volta atrs de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrs de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trs de sua casa se chama enseada. No era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrs de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.

    Manoel de Barros

    Enquadram-se, neste captulo, propostas tericas apontadas na literatura

    como viso nominalista ou tradicional da metfora, oriundas da Retrica clssica, mais

    precisamente da figura de Aristteles. Tais propostas caracterizam-se por conceber a

    metfora como uma figura1 manifestada exclusivamente no mbito da palavra ou do

    nome, gerada por meio de operaes de substituio e comparao. Inscrita, assim, no

    nvel de uma semntica lexical, vemo-la destituda de sua funo pragmtica e de sua

    manifestao textual e discursiva.

    1.1 ARISTTELES E A METFORA

    Foi a partir da proposta de Aristteles que se fundaram as bases de uma

    viso tradicional de metfora. O filsofo discute a metfora em duas de suas obras,

    Potica e Retrica, na primeira, contudo, que conceitua mais precisamente o

    fenmeno:

    1 Uma definio de figura ser apresentada mais adiante, no mbito da retrica de Fontanier. Contudo, h vrias definies propostas por outros autores na literatura. Para fins do nosso trabalho, figura significa, em termos semiticos, uma expresso que remete a algo concreto do mundo natural. Cabe aqui citarmos tambm a definio apresentada por Klinkenberg (2003, p.206): A figura retrica um dispositivo que consiste em produzir sentidos implcitos, isto , faz que o enunciado onde ela se manifesta seja polifnico.

  • 17

    A metfora definida como o recurso a um nome de outro tipo, ou ento como a transferncia para um objeto do nome prprio de um outro, operao que pode se dar por deslocamentos de gnero para espcie, de espcie para gnero, de uma espcie para espcie ou por analogia (ARISTOTLES, 2003).

    A definio aristotlica, simples somente em aparncia, permite-nos

    especificar quatro tipos de metforas, examinadas abaixo.

    O primeiro tipo, do gnero para a espcie, seria uma espcie de sinonmia

    generalizada, cuja interpretao depende de uma relao de incluso de classes. O

    exemplo fornecido por Aristteles Minha nau aqui se deteve, pois lanar ferro uma

    maneira de deter-se. Ou seja, deter-se compreende o gnero de que lanar ferro (ou

    estar ancorado) seria uma espcie. Dadas as dificuldades de traduo e interpretao

    dessa metfora aristotlica, Eco (1991, p.150) apresenta outro exemplo mais adequado

    para o leitor hodierno: o uso de /animais/ por , sendo homens uma espcie

    do gnero animais.

    Embora se admita a engenhosidade do princpio da sinonmia presente nesse

    tipo de metfora, estamos diante de uma definio pobre, ainda embrionria, cujo ato

    metafrico realiza-se apenas pela nomeao entre duas coisas a partir de seu gnero

    comum, como, por exemplo, homem e boi, ambos nominveis como animais.

    Ademais, Eco (op. cit.) refora que um gnero no basta para definir uma

    espcie; dado o gnero, dele no deriva necessariamente uma das espcies

    subordinadas. De fato, o semioticista italiano interroga se no deveria ser mais fcil

    entender que homem (espcie) significa animal (gnero) do que entender que animal

    significa homem e no, por exemplo, crocodilo.

    O segundo tipo de metfora, de espcie para gnero, compreende tambm

    uma relao de incluso de classes. O exemplo aristotlico Ulisses levou a feito

    milhares e milhares de belas aes, em que milhares e milhares substitui muitas,

    um gnero de que milhares e milhares espcie.

  • 18

    No exemplo acima, h uma limitao da metfora em estabelecer a

    equivalncia entre a estrutura da linguagem e a estrutura do mundo, visto que,

    consoante Eco (1991), tal substituio somente vlida em determinados quadros de

    referncia; em outros, como, por exemplo, numa escala de quantidade referente s

    grandezas astronmicas mil e mil, pode significar pequena quantidade. Da mesma

    forma, entendemos que considerar homem como espcie e animal como gnero, de

    acordo com o exemplo do primeiro tipo, admitir uma metfora retoricamente

    insossa capaz de significar animal atravs do termo homem.

    Seguindo a taxionomia dos tropos formulada pelo Grupo (1974; 1977)2,podemos considerar sindoques as metforas dos dois primeiros tipos; aquela do

    primeiro tipo seria generalizadora ou hipernima, e a do segundo, particularizadora ou

    hipnima.

    A metfora do segundo tipo, ao que parece, exige menor tenso

    interpretativa que o primeiro, pois, em uma relao hiponmica, sobe-se, em termos

    semnticos, de um termo subordinado para um superordenado, que s pode ser um. Um

    exemplo seria a sentena para te abrigar, podes procurar meu teto, com o termo teto

    usado por casa. No caso da generalizadora, ao descer do termo superordenado, h vrios

    termos subordinados possveis. o que ocorre na frase o animal est no pasto, em que

    animal pode se referir a um cavalo, uma vaca ou, ainda, a outros da mesma espcie ou

    no, como, por exemplo, chamar metaforicamente um ser humano de animal.

    Disto resulta a eliminao da interferncia da informao contextual na

    configurao da metfora, pois no exemplo o animal est no pasto, se o contexto de

    insero da frase fosse uma situao na qual se falasse de um homem rude, gluto, de

    pssimos hbitos alimentares, teramos a possibilidade de metaforizarmos tanto animal

    quanto pasto, o que permitiria uma dupla interpretao: o homem est comendo, ou o

    homem est almoando.

    Enfim, s metforas do primeiro e do segundo tipo obsta apenas o fato de

    reduzirem sobremaneira o jogo de produo de sentidos prprio da metfora, pois a

    unidade de significao limita-se transposio de nomes que surgem em uma ordem

    2 Grupo de tericos, tambm chamado Grupo de Lige. Seus componentes: J. Dubois, F. Edeline, J.M. Klinkenberg, P. Minguet, F. Pire e H. Trinon.

  • 19

    YZX

    relacional lgica, previamente estabelecida, de subordinao entre gnero e espcie ou

    espcie e gnero.

    A metfora de terceiro tipo consiste em um exemplo de passagem de espcie

    para espcie. O exemplo fornecido por Eco so as palavras suprimir e cindir, casos

    de uma espcie mais geral, cortar, que estabelece algo de smil entre os dois termos.

    Esse tipo aproxima-se mais da idia tradicional que temos do que seja uma

    metfora, e muitas teorias contemporneas tomaram-na como referncia, como o caso

    da anlise semntica baseada na transferncia de traos, formulada por L. J. Cohen

    (1994). O raciocnio realmente muito simples. Vejamos o diagrama utilizado por

    vrios autores, apresentado por Eco:

    FIGURA 1 Metfora com passagem de espcie para espcie

    Fonte: ECO (1991, p.152).

    Como vemos, trs termos esto envolvidos no processo, embora haja

    somente dois explcitos. H um termo x, denominado metaforizante, um termo y,

    denominado metaforizado, e um termo Z, intermedirio, o gnero de referncia

    responsvel pela desambiguao. Seguindo esse raciocnio, podemos explicar

    expresses como dente de montanha, pois cume e dente so partes do gnero forma

    pontiaguda.

    A abordagem semntica de L. J. Cohen (1994) muito se assemelha ao

    terceiro tipo de metfora aristotlica, haja vista funcionar por meio da comparao de

  • 20

    traos semnticos associados aos termos da metfora. Em sua proposta, o autor afirma

    que o significado metafrico seria obtido pelo cancelamento de aspectos essenciais do

    objeto, quando refletidos nos traos semnticos do significado da palavra. Observemos

    o exemplo fornecido pelo autor: As nuvens so feitas de ouro puro3. No exemplo, a

    palavra ouro interpretada metaforicamente porque o trao semntico metlico,

    propriedade fsica do objeto, neutralizado. Assim, na interpretao haveria um

    cancelamento ou perda dos traos semnticos inconsistentes entre os dois termos da

    metfora e os traos remanescentes serviriam de base para que ocorresse a similaridade.

    Um dos problemas da teoria de transferncia ou cancelamento de traos a

    impossibilidade de se saber ao certo quem ganha ou quem perde alguma coisa nesse

    processo. Para definir quais propriedades semnticas permanecem ou quais so

    eliminadas, teramos que abandonar um modelo semntico de organizao do lxico em

    que unidades esto estruturadas de modo hierrquico, mantendo ralaes de

    dependncia semntica entre si, e conceber essa operao como orientada para o

    universo do discurso.

    Por isso, Eco (1991, p.152) prefere falar em vaivm de propriedades, em

    vez de transferncia, pois, se tomarmos como exemplo a expresso ela era um

    junco, possvel dizer que tanto junco adquire uma propriedade ou trao humano,

    quanto moa adquire uma propriedade ou trao vegetal. Em todo caso, os termos em

    jogo perdem algumas propriedades semnticas.

    A metfora de quarto tipo tambm chamada de analogia, por colocar em

    jogo um esquema proporcional envolvendo quatro termos. Enquanto na metfora de trs

    termos o raciocnio lgico era A/B = C/B por exemplo, em Joo um palito, Joo est

    para corpo delgado, assim como est o palito , na metfora de quatro termos, a relao

    passa a ser A/B = C/D. Ou seja, um termo A est para um termo B assim como um

    termo C est para um termo D.

    A metfora elaborada a partir de uma analogia transforma a frmula A/B =

    C/D para chegar expresso C de B que designa A. Porm, as metforas mais

    originais so as que se apresentam logo de incio como fuso A e C, silenciando os

    termos B e D. Apliquemos a regra ao exemplo de Eco (1991, p. 154): a velhice est

    3 The clouds are made of pure gold (Traduo nossa).

  • 21

    para a vida assim como o ocaso est para o dia. Dessa maneira, possvel falar em

    velhice (A) como o ocaso (C) da vida (B) ou ocaso como velhice do dia (D).

    A metfora por analogia permite tambm explicar casos de catacrese, no

    sentido estrito, em que um termo metaforizante est para um metaforizado, o qual

    inexiste lexicalmente (A/B = C/x). Na catacrese p de mesa, por exemplo, perna (A)

    est para o corpo (B) assim como um objeto inominado (x) est para mesa (C). A

    similaridade s possvel porque h um quadro de referncia que evidencia o trao ou

    propriedade funcional sustentao, comum aos dois termos.

    A catacrese, de acordo com Eco (1991), segue o princpio da economia que

    governa o esforo de dar nomes apropriados a coisas, idias ou experincias novas.

    Ocorre quando novos sentidos so lanados para velhas palavras, devido ausncia de

    uma palavra literal correspondente, como as expresses, p da mesa, asa da xcara. Ao

    exercer tal funo, a metfora assume o papel da linguagem literal a verdadeira responsvel pela nomeao das coisas, sob essa perspectiva.

    A nosso ver, os trs primeiros tipos de metfora so limitados, por

    mostrarem somente como a produo e a interpretao metafrica funcionam por meio

    da chamada rvore de Porfrio um mecanismo sinedquico lgico de relaes de

    hiperonmia e hiponmia. Ademais, no h inovao semntica no uso dessas metforas,

    uma vez que no fornecem qualquer informao nova sobre a realidade, pois resultam

    de uma simples operao de substituio de termos cujo sucesso consiste na

    possibilidade de parfrase da metfora ou, em outras palavras, da reposio do sentido

    literal4 da palavra substituta.

    Eco (op. cit.) admite a limitao da proposta aristotlica para dar conta do

    potencial de significao da metfora na representao da realidade, entretanto,

    relativiza sua crtica. Por um lado, o estudioso italiano argumenta que devemos fazer

    justia a Aristteles por intuir lucidamente a funo cognoscitiva da metfora por

    analogia, visto que esse tipo de metfora difere dos trs primeiros tipos por no ser

    apenas enfeite h um aumento do conhecimento das relaes entre as coisas, e, por

    isso, aprendemos algo com o esquema proporcional de analogia. A relao analgica

    imbricada nessa metfora, diz ele, possibilitou metaforologia compreender a

    4 Sobre a distino sentido literal e sentido metafrico, ver captulo III.

  • 22

    necessidade de flexibilizar as relaes de semelhana que se estabelecem entre

    propriedades semnticas dicionarizadas (lexicais) e propriedades enciclopdicas

    (culturais). Por outro lado, Eco adverte que, embora Aristteles defenda que o dom de

    saber elaborar boas metforas depende da capacidade de ponderar sobre semelhanas,

    ao se estabelecer a relao proporcional de analogia, tanto semelhanas quanto

    dessemelhanas podem interferir no processo. Ou seja, em ela um junco, preciso

    levar em conta tambm que moa est para a rigidez de um corpo humano, assim como

    o junco est para a rigidez de um carvalho, para podermos entender em relao a que

    moa e junco so flexveis. Sendo assim, a analogia pode estabelecer-se tambm

    mediante considerao de propriedades semnticas opostas.

    Na Retrica de Aristteles, dito que as melhores metforas so aquelas que

    representam as coisas em ao, e o conhecimento metafrico reflete o conhecimento dos

    dinamismos do real. Embora essas asseres paream pobres, Eco defende que nos

    bastaria reformul-las, de modo a ampliarmos seu alcance. Ou seja, substituirmos

    semelhanas entre as coisas por rede sutil de propores entre unidades culturais,

    ou ainda, as melhores metforas so aquelas que representam as coisas em ao por

    as melhores metforas so aquelas que mostram a cultura em ao, os prprios

    dinamismos da semiose (ECO, 1991, p. 163).

    Conquanto reconheamos os mritos apontados por Eco, no que diz respeito

    metfora por analogia, evidente o carter restritivo que a concepo aristotlica

    confere metfora, uma vez que a delimita ao nvel lexical. Isso porque, nos quatro

    tipos, a metfora acontece no nome e a transposio de sentido ocorre por meio do uso

    de uma palavra metafrica que toma o lugar de uma palavra no-metafrica possvel de

    ser empregada.

    Nesse sentido, falar em metfora seria falar no deslocamento ou extenso do

    sentido das palavras, um recurso desviante da linguagem literal. Isso implica dizer que,

    em vez de atribuir a uma coisa sua denominao usual, ela passa a ser designada por

    meio de uma palavra que no a pertence; uma denominao emprestada ou estranha,

    na terminologia de Aristteles.

    Em termos filosficos, esse modo de entender a metfora reflete uma viso

    objetivista da linguagem, herdada do positivismo lgico, na qual as palavras estariam

  • 23

    numa relao de correspondncia direta com o mundo, e seus significados seriam

    definidos em termos de propriedades inerentes aos objetos. Esta vertente filosfica

    assumia que o propsito da linguagem era descrever a realidade literalmente, de modo

    que pudesse, por princpio, ser testada e verificada. Uma expresso era considerada

    verdadeira se possusse um correspondente material no mundo fsico. Ao relacionar a

    significao lingstica ao princpio de verificao emprica, atribuam-se linguagem

    os papis de nomear objetos ou eventos do mundo e de expressar relaes lgicas entre

    eles. Nesse contexto, a lngua, identificada como uma meta-lngua, no sentido de ser

    usada para explicar/refletir o mundo, era concebida como um tipo de clculo lgico. Da

    as metforas serem, do ponto de vista descritivo, desvio da linguagem literal elas no possuem valor de verdade, pois no podem ser verificadas empiricamente.

    Constatamos, assim, que a principal herana aristotlica foi ter revelado a

    funo retrica e ornamental da metfora. Segundo Ricoeur (2000), Aristteles

    apresenta a metfora como uma figura da lexis em geral isto , da dico, elocuo e estilo que, quando usada, cumpre o papel de preencher uma lacuna lexical deixada pela tentativa de reelaborar o discurso retrico de persuadir ou agradar, ou dar nome

    adequado s coisas novas ou novas idias, ou, ainda, como forma de nomear novas

    experincias.

    Por conta disso, traou-se, por sculos, a sorte da metfora: ser uma palavra

    imprpria, um desvio lexical desse pareamento entre linguagem e mundo, uma maneira

    inslita de designar as coisas. Vejamos abaixo, com maiores detalhes, alguns

    desdobramentos das idias aristotlicas.

    1.2 A TROPOLOGIA

    A tropologia surgiu como tentativa de reduzir a Retrica, antes uma arte da

    argumentao, a apenas uma de suas partes constitutivas: a elocutio. O modelo da

    Retrica antiga constitua-se de cinco partes, todas organizadas a fim de estruturarem o

    discurso: a) a inveno (inventio) ou escolha do assunto ou tema a ser abordado; b) a

    disposio (dispositio), etapa em que se ordenavam as partes do que dizer; c) a elocuo

    (elocutio), a qual representava o tratamento dado expresso lingstica expressiva; d) a

  • 24

    memorizao (mnem) ou reteno do discurso a enunciar; e e) a ao (actio) ou modo

    como o orador apresenta o discurso ao pblico.

    Ao dar relevo expressividade das formas lingsticas, via elocutio, a

    Retrica posterior a Aristteles passou da arte de persuadir ou argumentar arte de

    enfeitar o discurso, reduzindo o estudo da metfora a uma teoria dos tropos e figuras, de

    carter estritamente ornamental e taxionmico (cf. LOPES, 1986). Mas o que seria um

    tropo e uma figura para a Retrica?

    Fontanier (1968), um dos expoentes da tradio retrica, com sua obra Les

    Figures du discours, define tropo como certos sentidos mais ou menos diferentes do

    sentido primitivo que oferecem na expresso do pensamento as palavras aplicadas s

    novas idias.5 A partir dessa definio, classifica a metfora como tropo de uma

    palavra por semelhana, ou seja, a metfora seria um deslocamento e uma ampliao do

    sentido de uma palavra cuja propriedade figurativa apresentar um pensamento sob

    forma sensvel e mais evidente.

    O termo figura outro tomado da tropologia. Angenot a conceitua como

    todo fragmento de enunciado6 cuja configurao aparente no est conforme a sua

    funo real e que resulta desde logo numa transgresso codificada do prprio cdigo

    (fnico, grfico, semntico, sinttico, textual, lgico) (ANGENOT, 1984, p.97).

    As duas definies entretecem-se e, por conta disso, comumente

    encontramos em muitos trabalhos um termo sendo tomado pelo outro. De qualquer

    modo, Fontanier assume que tropos ou figuras so capazes de gerar uma nova

    significao para determinada palavra, ao estabelecerem uma relao entre duas idias:

    a significao primitiva da palavra emprestada, ou seja, a primeira idia vinculada a esta

    palavra de um lado, e de outro o sentido tropolgico substitudo, a nova idia que se

    acrescenta a esta palavra.

    Ricoeur (2000) lembra que, embora seja em uma palavra apenas que o tropo

    consiste, entre duas idias que ele acontece, por transporte de uma outra. Por isso, o

    tropo ou a figura de expresso chamada metfora pode, na viso de Fontanier, acontecer

    5 FONTANIER apud RICOEUR, 2000, p.83. 6 Em respeito s particularidades de cada autor citado, que no se ocuparam das definies de determinados termos, avisamos que o termo enunciado ser utilizado neste captulo em uma acepo lata, como sinnimo de sentena, orao ou frase, a depender de cada autor.

  • 25

    em vrias formas de relao de idias: relao de correlao ou correspondncia,

    relao de conexo e relao de semelhana. Essa teoria das relaes leva conhecida

    definio de metfora como a capacidade de apresentar uma idia sob o signo de outra

    idia mais evidente ou conhecida.

    Assim apresentada, como uma relao entre duas idias, a concepo de

    metfora defendida por Fontanier aparenta ultrapassar o mbito da palavra. Entretanto,

    ao reduzi-la a um tropo de uma nica palavra, o autor acaba por retomar a primazia da

    palavra e sufocar o potencial de sentido metafrico contido na definio por ele

    proposta.

    Em suma, so trs os pressupostos fundamentais caracterizadores do

    tratamento retrico atribudo metfora pela tropologia, segundo Ricoeur (2000): a) a

    metfora enquanto tropo consiste em uma nica palavra; b) o uso figurado de uma

    palavra no comporta nenhuma informao nova, pois que ocorre somente palavra

    primitiva uma substituio de idias semelhantes, cuja possibilidade de parfrase da

    metfora seria evidncia desse efeito meramente substitutivo; e c) como o tropo nada

    ensina, exerce apenas a funo de ornar, enfeitar o discurso.

    Diante do exposto acima, constatamos que a concepo de metfora

    apresentada pela tropologia, assim como aquela aristotlica, redutora, pois se limita a

    propor a classificao dessa figura em relao aos outros tropos ou figuras e demonstrar

    sua funo ornamental no discurso. Com isso, deixa de lado a preocupao com os

    mecanismos de interpretao e inovao semntica promovidos pela metfora.

    1.3 A METFORA COMO COMPARAO E DESVIO

    Outro modo de conceber a metfora defini-la como uma comparao

    implcita entre dois termos A e B, tomados, de incio, como impropriamente

    semelhantes entre si, com supresso da partcula comparativa (como, tal, qual, entre

    outras). A propsito, esta concepo ainda se mantm em muitos dos compndios

    escolares sobre ensino de lngua materna.

  • 26

    De acordo com Lopes (1986), na Retrica antiga, pensava-se que a

    comparao fosse uma figura mais clara, aproximvel de um sentido literal ou grau

    zero da linguagem, ao passo que a metfora, pela ausncia do termo operador da

    comparao, seria mais obscura e estaria mais apta a exprimir o sentido potico do

    discurso, dado o seu estranhamento.

    Aristteles, na Retrica, faz uma aproximao entre comparao e metfora,

    e a faz em favor da metfora. O poder desta sobre aquela reside nas formas de

    predicao ser e ser como. A metfora, por abreviar a atribuio (Aquiles um leo, em

    vez de Aquiles como um leo), revela a surpresa que a comparao dissipa. Sendo

    assim, o que a comparao explicita como que se atirou como um leo, a metfora

    transpe para este leo atirou-se (cf. RICOEUR, 2000, p. 82).

    Segundo Cohen (1974), em termos lgico-gramaticais, ocorre o seguinte: ao

    se eliminar a partcula comparativa (de A como B para A B), viola-se o princpio

    lgico da no-contradio que rege a norma lingstica e cujo corolrio proibir a

    articulao, em uma mesma construo lingstica, de uma proposio P com sua

    contraditria (no-P).

    Ora, sabendo que a estrutura lingstica cannica mais utilizada para

    expressar uma relao metafrica a atributiva (S P = forma Sujeito + Cpula (ser) +

    Atributo), uma metfora como Joo uma raposa quebra o estatuto lgico do

    enunciado por eliminar a possibilidade de comparao, pois afirma uma identidade

    invlida, em termos lgicos, de que Joo , de fato, uma raposa. Como conseqncia, ao

    vetar tal enunciado da norma lingstica, o princpio da no-contradio faz surgir um

    desvio da norma, um tropo, uma figura retrica.

    Isso equivale a dizer, consoante Lopes (1986), que uma metfora

    percebida como um estranhamento, um elemento violador do princpio da no-

    contradio que, quando aplicado ao plano do contedo, quebra a coerncia do eixo

    sintagmtico da linguagem, ou, se preferirmos, da cadeia linear da fala.

    O desvio se interpretaria, em conseqncia, como o resultado da violao de uma norma contextualmente definida, violao essa que originaria a manifestao de uma figura (metassemema ou tropo) que se denuncia no efeito de leitura que o leitor sente como um tpico estranhamento (LOPES, 1986, p.8).

  • 27

    Cohen (1974) denomina impertinncia semntica essa violao do cdigo

    lingstico provocada pela metfora. A impertinncia, portanto, faz surgir um desvio do

    significado tanto no nvel paradigmtico da palavra quanto no nvel sintagmtico da

    sentena.

    Em outros termos, Cohen (op. cit) defende haver dois momentos na

    interpretao de metforas:

    a) Percepo, por parte do intrprete, da violao (impertinncia) do

    princpio da no-contradio (pertinncia) no eixo sintagmtico da

    linguagem;

    b) Interpretao corretora, efetuada sobre o eixo paradigmtico, a fim

    de encontrar, mnemonicamente, uma expresso cujo sentido

    prprio equivalha ao figurado naquele contexto. Este fenmeno

    o autor denomina reduo do desvio.

    O autor explica que s h desvio a identificao da impertinncia

    semntica quando as palavras so tomadas em sentido literal ou quando se realiza uma

    leitura literal da sentena. Na metfora citada acima, Joo uma raposa, por exemplo, a

    leitura literal faz surgir uma impertinncia semntica devido incoerncia lgica entre

    sujeito e predicao. Este , de fato, o desvio do cdigo. A metfora, por outro lado,

    responde pela reduo do desvio causado pela leitura literal da sentena.

    Em outras palavras, a metfora restabelece a pertinncia semntica do

    cdigo lingstico, por meio da leitura da sentena Joo uma raposa no sentido

    figurado. Dessa forma, o reconhecimento de uma metfora relaciona-se diretamente ao

    grau de desvio que a imagem introduz no uso corrente das palavras, no eixo

    sintagmtico.

    Uma crtica proposta de Cohen merece ser destacada. Se a metfora

    consiste na reduo do desvio semntico, isto , funciona como normalizao da

    substituio de um termo ausente, percebido como prprio, por outro, considerado

    imprprio, atravs do eixo paradigmtico, temos, alm da comparao, outro fenmeno

    presente: a substituio de itens lexicais. Instaura-se novamente, desse modo, a viso

  • 28

    substitutiva, na qual a metfora passa a ser uma palavra ou expresso que substitui um

    termo literal.

    Sendo assim, o quadro terico formulado por Cohen, embora parea

    promover o avano da metfora rumo ao nvel da sentena, mantm-se nos limites da

    palavra. De fato, como ressalta Ricoeur (2000), o propsito de Cohen demonstrar o

    modo como o plano paradigmtico e o sintagmtico complementam-se, de forma que,

    se de um lado vemos a atuao da metfora no eixo sintagmtico, do outro, vemos a

    impossibilidade de se rejeitar a noo de desvio paradigmtico.

    Todavia, notamos o retorno ao primado da palavra, na medida em que Cohen

    superestima a primazia do cdigo paradigmtico sobre o nvel sintagmtico da sentena

    na reduo do desvio. Em outros termos, ainda no nvel da palavra e no na sentena

    que a impertinncia identificada e uma nova pertinncia assegurada pela produo

    de um desvio lexical. Se, de fato, as palavras abandonam seu sentido para dar suporte

    predicao semntica, o desvio sintagmtico reduzido pelo desvio paradigmtico, e,

    dessa maneira, a metfora continua a constituir somente uma violao do cdigo da

    lngua e no um fenmeno de ordem sintagmtica, da frase.

    Conforme veremos, Black (1962; 1993) prope que o sentido metafrico

    deve pertencer a todo enunciado, embora haja uma focalizao sobre uma palavra

    denominada metafrica. Visto sob essa tica, a noo de desvio proposta por Cohen

    desvincular-se-ia de uma teoria da palavra e reconheceria seu valor em uma teoria

    predicativa.

    Ricoeur refora a unio necessria entre metfora como palavra e metfora

    como sentena no seguinte comentrio:

    No h conflito propriamente dito entre a teoria da substituio (ou do desvio) e a teoria da interao; esta descreve a dinmica do enunciado metafrico, e somente ela merece ser denominada uma teoria semntica da metfora. A teoria da substituio descreve o impacto dessa dinmica sobre o cdigo lexical em que l um desvio: ao fazer isso, oferece um equivalente semitico do processo semntico (RICOEUR, 2000, p. 242).

    Cohen, entretanto, quando tratou da metfora, parece ter negligenciado o

    duplo carter fundador das palavras, isto , na condio de signo, a metfora constitui

  • 29

    um valor, uma diferena no cdigo lexical, mas na condio de parte do discurso,

    parte de um sentido pertencente a todo enunciado.

    A despeito do que foi dito at aqui, h poucos avanos na perspectiva da

    metfora como comparao e desvio em relao ao posicionamento da tropologia. Se,

    por um lado, Cohen aplica a noo de desvio sobre a cadeia linear da fala e, com isso,

    ultrapassa o tratamento taxionmico prprio da retrica, por outro, continua a atribuir

    metfora bases puramente semntico-lexicais, como as concepes anteriormente

    elencadas.

    Depreendemos do exposto at aqui o fato de que uma anlise puramente

    estrutural, fundada em itens lexicais ou nas relaes lgicas estabelecidas entre esses

    itens em uma sentena, como faz Cohen e antecessores, insuficiente para explicar

    outros modos de manifestao da metfora como, por exemplo, no texto e no

    discurso , pois desconsidera, dentre outros aspectos, as interferncias contextuais e/ou

    culturais na anlise do fenmeno.

    1.4 A METFORA E A ANLISE SMICA

    O Grupo , nas obras Retrica Geral (1974) e Retrica da Poesia (1977),apresenta outro modo de estudar a metfora: descrever seu mecanismo por meio da

    decomposio semntica dos termos envolvidos, deslocando a anlise do nvel da

    palavra para o nvel do sema.

    Para alcanar esse objetivo a anlise estrutural das figuras de linguagem no

    plano semntico da lngua , o grupo toma como ponto de partida a terminologia

    proposta por B. Pottier (1964) e A. J. Greimas (1973), fincada em uma semntica

    estrutural de linha francesa. Entretanto, vale ressaltar que a utilizao dessa

    terminologia pelo Grupo distancia-se da aplicao feita por Pottier (1964), no estudo semntico dos campos lexicais. Este autor limitou-se a elaborar uma terminologia capaz

    de dar conta da decomposio semntica de itens lexicais; o trabalho do Grupo , ao contrrio, consiste numa tentativa de realizar uma anlise do significado lingstico

  • 30

    alm dos limites de uma semntica de campos lexicais, valendo-se desses conceitos

    operacionais. Apresentamos abaixo, as definies de alguns termos centrais da anlise

    smica da metfora reformulados pelo Grupo e seguidores.D-se o nome de lexema palavra com estatuto de verbete do dicionrio,

    passvel de realizao no discurso. O lexema se sujeita decomposio em traos

    mnimos de significao denominados semas. Na compreenso de Bertrand (2003), um

    sema uma unidade diferencial, um dos termos de uma estrutura relacional construda

    por oposies elementares do tipo vida/morte, cultura/natureza, escuro/claro,

    frio/morno/quente, dentre outras, que esto na base de uma configurao elementar de

    significao. So de dois tipos: sema nuclear e sema contextual. O primeiro consiste em

    um invariante semntico comum a dois lexemas, configurado a partir da apreenso do

    objeto ou da percepo; j o segundo um sema varivel que, a depender de cada

    contexto particular, do uso, incorpora-se significao. Se tomarmos como exemplos

    os lexemas homem e mulher, veremos um ncleo smico composto pelos traos

    /animado/ e /humano/, comuns aos dois termos. A esse ncleo, pode-se acrescentar o

    trao /sexualidade/, somente em mulher, visto que o termo homem, por ser o termo

    genrico, no marcado pelo uso, neutro, no comporta esse trao em seu ncleo, ele

    apenas contextual, dentre outros possveis.

    medida que um sema contextual passa a ser comum ou recorrente a vrias

    unidades, o denominamos de classema (por exemplo, o trao caninidade, em o co

    late). Um semema, por outro lado, consiste em um efeito de sentido produzido por um

    lexema, quando de sua manifestao em discurso, por meio do conjunto de semas que

    ele atualiza, ncleo smico e semas contextuais (BERTRAND, 2003, p.430). Um

    semema, portanto, refere-se s acepes (significaes) realizveis ou realizadas de uma

    palavra em contexto.

    Grosso modo, a idia central da proposta do grupo , em relao metfora, explicar a manipulao dos semas como o mecanismo produtor de figuras de

    linguagem, que passam a ser denominadas metboles. Dos tipos de metboles, as

    figuras que comportam informao semntica so chamadas de metassememas. As

    metforas alocam-se nesse domnio como figuras do plano semntico que modificam o

    conjunto de semas do grau zero ou do sentido literal da palavra, para falarmos em

    termos tradicionais. H, ainda, na classificao geral das figuras, os metaplasmos, ou

  • 31

    figuras que atuam na morfologia, as metataxes ou figuras da sintaxe e os metalogismos

    ou figuras que modificam o valor lgico da frase.

    Para evitar a polmica a respeito do que seria o grau zero ou o sentido literal

    de uma palavra ou expresso lingstica, o Grupo prefere v-lo como uma construo da metalinguagem isto , como o ltimo estgio de decomposio infralingstica do

    significado. Conforme assinala Ricoeur (2000), assim como a decomposio do

    significante faz aparecer os traos distintivos que no possuem existncia concreta e

    independente na linguagem a decomposio do significado faz surgirem os semas,

    cuja existncia no pertence ao plano de manifestao do discurso.

    Esse deslocamento do item lexical para o sema permite ao Grupo efetivar uma anlise das figuras de carter meramente estrutural, livre do que seria literal ou

    metafrico, pois a anlise no se limita mais ao plano lexical manifesto, como faziam as

    teorias anteriores, mas sobre essas unidades mnimas de significao. Com isso,

    possvel abandonar a anlise do lexema (palavra), propriamente dito, e representar

    hierarquicamente uma coleo de semas que, ao serem manipulados e formalizados,

    configuram, no nvel propriamente lingstico, o cdigo virtual ou semntico que a

    lngua oferece.

    Contudo, se assim o for, a anlise smica torna-se, como outras propostas

    semnticas, dependente das leis que regem um universo semntico j codificado, cujo

    significado figurado encontra-se no no nvel dos efeitos de sentido, mas somente no

    arranjo e reorganizao da estrutura smica. Alm disso, conforme argumentaremos no

    captulo III, a discusso sobre o que seria sentido literal ou metafrico no se esgota na

    excluso de um ou de outro do processo metafrico, como faz o Grupo em sua anlise.

    Certamente, a estratgia da analise smica de transformar o grau zero ou

    sentido literal em uma construo metalingstica bastante produtiva, em termos de

    anlise estrutural da metfora, visto que se alicera sobre um forte argumento, que

    podemos formular em uma pergunta: como possvel falar de sentido literal ou

    metafrico de um item lexical ou expresso lingstica se no estamos no nvel de

    anlise da palavra, mas sim de unidades do contedo, de um nvel infralingstico?

  • 32

    Entendemos, entretanto, que h riscos em assumir essa estratgia. Basta

    atentarmos para outra suposta vantagem operacional da anlise smica, apontada pelo

    Grupo : a possibilidade de se distinguir no discurso figurado duas partes, uma base ou invariante (que no modificada), e outra que sofre desvios retricos, mas que

    mesmo assim preserva semas da base, e, por isso, manifesta a um s tempo tanto o grau

    zero quanto o grau figurado. Como conseqncia, pressupe-se sempre a existncia de

    invariantes na base do lexema, o que torna obrigatria a presena de parte dos semas

    constitutivos do lexema empregado na configurao smica da metfora.

    Ora, admitir a preservao de uma parte de semas na metfora prever

    antecipadamente parte do sentido metafrico que ser manifestado no nvel lingstico,

    e isso consiste em sufocar a possibilidade de metforas criativas, ousadas, que surgem

    de relaes contextuais nas quais, mesmo que se admita a existncia de semas

    invariantes na constituio da metfora, estes podem ser determinados no somente pelo

    cdigo virtual da lngua.

    Passemos a uma breve descrio do modo como realizada a anlise smica

    da metfora na perspectiva do Grupo . Em linhas gerais, feita por meio da decomposio e reorganizao de semas, mais especificamente, por dois tipos de

    operao: a supresso ou o acrscimo de semas.

    As operaes smicas de adjuno ou supresso conduzem, ento, a dois

    tipos de decomposio semntica: o primeiro tipo chamado decomposio de

    propriedades empricas ou sobre o mdulo II, por haver um vnculo lgico de

    dependncia semntica entre uma classe ou termo geral e suas subclasses. Se tomarmos

    como exemplo a representao mental da classe de objetos rvore, veremos uma relao

    entre uma rvore e suas partes, ou a equivalncia entre uma proposio como x uma

    rvore e outras como x tem folhas, x tem razes e x tem tronco, cujos

    significados incluem a proposio x uma rvore. O segundo tipo denominado

    decomposio de propriedades conceituais ou sobre o mdulo . Ou seja, se x uma rvore, ento ou um lamo, ou um carvalho. Neste caso, o conceito rvore

    considerado como uma classe de subclasse de certo modo intercambiveis, existentes

    virtualmente no dicionrio: tal classe compreende as subclasses lamo, carvalho,

  • 33

    etc., sendo que dado individuo da classe pertence a uma ou outra dessas subclasses,

    mutuamente exclusivas (GRUPO , 1977, p. 46-47).A aplicao desses dois tipos de decomposio metfora tem como

    resultado evidente sua reduo a um processo sinedquico. A adjuno de semas origina

    uma sindoque particularizadora do tipo II, em que se parte de um lexema geral para o

    particular (dizer lmina por faca), e a sindoque particularizadora do tipo (dizer peixeira por faca). A supresso, por outro lado, gera a sindoque generalizadora do tipo

    , que parte do particular para o geral (dizer os mortais por homens ou batimento por corao) e a sindoque generalizadora do tipo II (dizer aceitarei torta, como

    sobremesa, tomada como por um pedao de torta).

    A reduo da metfora sindoque permite ao Grupo assegurar o carter homogneo do sistema semntico, visto que os fatores contextuais permanecem

    extrnsecos e a hierarquia entre os elementos constituintes mantida. Permite, ainda, a

    aplicabilidade de conceitos operatrios como desvio, supresso e adjuno a fim de

    conservar uma base de semas essenciais cuja supresso tornaria o discurso

    incompreensvel (cf. RICOEUR, 2000, p. 252-256, para uma discusso aprofundada).

    A principal crtica a ser feita ao Grupo diz respeito ao fato de que o mecanismo bsico de supresso e adjuno de semas restringe seu campo de atuao a

    um universo semntico composto de unidades j previsveis pelo cdigo e cujos fatores

    contextuais permanecem fora da anlise, como nas teorias expostas anteriormente. A

    metfora, assim, resume-se ao produto de duas sindoques, que, a nosso ver, no

    seno um tipo de relao metonmica cuja ao limita-se identificao de relaes de

    dependncia semntica entre os termos envolvidos em um sistema j codificado. Os

    semas so apenas recuperados e reorganizados, no h inovao semntica.

    Uma incongruncia do modelo smico, apontada por Ricoeur (2000), reside

    no fato de se buscar a metfora entre os metassememas, o que equivale a dizer, ainda

    nos limites da palavra, como na retrica clssica. Como os metassememas operam em

    um nvel semntico e as metataxes em um nvel sinttico, somente as metataxes

    gerariam efeitos de sentido sobre o eixo sintagmtico. Se isto realmente acontece,

    estamos impossibilitados de vermos o funcionamento da metfora ligado ao carter

    predicativo dos enunciados.

  • 34

    Outra crtica lanada por Ricoeur diz respeito distino entre metfora e

    polissemia:

    A anlise smica produz diretamente uma teoria da polissemia, e somente indiretamente uma teoria da metfora, na medida em que a polissemia confirma a estrutura aberta das palavras e sua aptido para adquirir novas significaes sem perder as antigas. Essa estrutura aberta somente a condio da metfora, no ainda a razo de sua produo, pois necessrio um acontecimento do discurso para que apaream, com o predicado impertinente, valores fora do cdigo que a polissemia anterior no poderia conter por si s (RICOEUR, 2000, p. 262).

    As crticas apontadas por Ricoeur so pertinentes, todavia, limitam-se ao

    fenmeno metafrico quando da passagem do item lexical para a sentena. Iremos mais

    alm. preciso destacar o fato de que no h metfora no dicionrio, uma vez que o

    trao inovador encontra-se fora do cdigo lexical e tambm da estrutura sentencial.

    Portanto, a chamada metfora criativa ou ousada, que encontraremos na metaforizao

    textual, desafia a analise smica, pois preciso evocar um sistema de referncias ad hoc

    que comea a existir somente a partir da dinmica do contexto em que a metfora est

    inserida. Impor metfora a existncia de um sema comum j presente, mesmo que em

    um nvel virtual, destitu-la de seu carter inovador, criativo.

    Compreendemos agora por que o Grupo necessita subordinar a metfora sindoque; esta, de fato, a figura adequada a um universo de significao j

    codificado, pois constitui um mecanismo de ao meramente subtrativo. Ao mesmo

    tempo, por meio dessa subordinao, o grupo exime-se da responsabilidade de assumir

    uma definio de sentido literal ou metafrico.

    A anlise smica do Grupo no traz nenhuma mudana essencial na teoria da metfora. Sua originalidade consiste apenas em propor um nvel infralingstico de

    anlise em que h um alto grau de tecnicidade na descrio do funcionamento das

    figuras, atravs das operaes de supresso e adjuno de semas em campos semnticos

    j lexicalizados.

    H, com efeito, na terminologia e na descrio das figuras realizadas pelo

    Grupo , um formalismo radical presente que impede a verificao das mais diversas manifestaes discursivas da metfora. No entanto, embora aceitemos as restries

    feitas anlise smica discutidas aqui, autores como Bertrand (2003) e Eco (1991;

  • 35

    2004) relativizam esse formalismo terminolgico, ao adaptarem alguns termos centrais

    da anlise smica7 como semas, sememas, narcotizao/pertinizao de semas,

    isotopia e inferncia abdutiva em sua semitica literria e nos seus estudos a respeito

    da metfora, respectivamente.

    Em nosso trabalho, lanaremos mo desse mesmo expediente. Ou seja,

    utilizaremos tais termos como conceitos operacionais na nossa anlise da metaforizao

    textual. Obviamente, com as devidas adaptaes, de modo que a utilizao desses

    termos no signifique uma filiao ao estruturalismo do Grupo . Consideramos que nenhum trabalho em Lingstica seria levado a cabo se tivssemos que definir a que

    teoria estamos filiados cada vez que utilizssemos termos de significao ampla como

    semntica ou trao semntico, enunciado, frase, discurso, domnio conceitual,

    esquema, dentre outros.

    1.5 A METFORA E A METONMIA: A SELEO E A COMBINAO NOS

    DOIS EIXOS DA LINGUAGEM

    Digna de nota a concepo de metfora e metonmia de Roman Jakobson

    (1995), tambm alicerada no estruturalismo saussuriano. Ao reelaborar os conceitos de

    sintagma e paradigma, que Saussure j havia parcialmente identificado, Jakobson

    entendeu de maneira engenhosa que todos os atos lingsticos se baseiam na capacidade

    de seleo e combinao.

    Na seleo (eixo paradigmtico), uma palavra se relaciona

    mnemonicamente a outras pertencentes a um mesmo sistema lingstico em funo da

    similitude. Na combinao (eixo sintagmtico), por outro lado, uma palavra se relaciona

    com a seguinte em funo da contigidade.

    Por meio desse raciocnio, Jakobson concebe a metfora e a metonmia

    como processos gerais de manifestao do fenmeno lingstico, situando-as nos eixos

    de seleo e combinao, respectivamente. Essa bipartio implica uma reduo do

    7 Na verdade, os termos utilizados resultam de uma mescla da terminologia de outros autores da semitica como A. J. Greimas e C. S Pierce.

  • 36

    quadro retrico de classificao das figuras proposto tanto pela tropologia quanto pela

    anlise smica, sobretudo na distino entre sindoque e metonmia, na qual a primeira

    se incorpora segunda.

    A metonmia passa a ser uma figura fundada na relao de contigidade

    entre um termo literal e ou figurativo. Por exemplo, Ele ganha o po com o suor de seu

    rosto substitui Ele ganha o po com um trabalho que provoca o suor de seu rosto.

    Ocorre, como podemos ver, uma relao sintagmtica de subtrao de termos efetivada

    na cadeia linear da mensagem, in prsentia.

    A metfora, ao contrrio, consiste em uma figura na qual h uma

    substituio de termos em um nvel paradigmtico, com elementos do cdigo in

    absentia. Selecionam-se termos alternativos cuja substituio permite estabelecer uma

    similitude semntica encontrada na virtualidade do cdigo. Na metfora Joo um anjo,

    por exemplo, possvel selecionar, do inventrio semntico do cdigo, um termo como

    bom ou puro, que traduziria a semelhana entre Joo e anjo.

    Apesar da simplicidade do mecanismo bipolar metafrico/metonmico

    proposto por Jakobson e da sua generalizao e aplicao a uma gama de fenmenos da

    linguagem, Ricoeur (2000) aponta as seguintes limitaes: a) a proposta elimina o

    carter predicativo da metfora, pois o processo metafrico continua a ser, como na

    retrica, a substituio paradigmtica de um termo por outro termo e b) a seleo de

    termos opera apenas entre entidades associadas no cdigo. Contudo, do lado das

    ligaes sintagmticas inslitas, das combinaes novas e puramente contextuais que

    necessrio procurar o segredo da metfora, arremata o autor (RICOEUR, 2000, p. 276-

    278).

    Por conta disso, retomamos a crtica dirigida ao Grupo , se no seria a metonmia, mais que a metfora, o verdadeiro processo de substituio de nomes, uma

    vez que a metfora pe em jogo a dinmica do enunciado inteiro, ao ser detectada como

    um estranhamento semntico na sentena; enquanto a palavra que forma uma

    metonmia, de um modo geral, no quebra a coerncia semntica do enunciado, pois que

    a identidade semntica baseia-se em uma relao de incluso de classes.

    De fato, o desafio das propostas nominalistas da metfora at aqui

    analisadas ultrapassar os limites de um universo lingstico j atualizado no momento

  • 37

    da interpretao, j que em uma metfora criativa, engendrada pelo texto, a seleo

    livre, resulta de uma combinao indita definida pelo contexto, distinta das

    combinaes pr-configuradas do cdigo.

    1.6 A SEMNTICA DA METFORA DE ULLMANN

    Ullmann (1964) outro autor clssico aliado a uma perspectiva semntico-

    nominalista, assim como aqueles discutidos anteriormente. Na seo sobre metfora, de

    sua obra Semntica, declara que a estrutura bsica da metfora muito simples. H

    sempre dois termos presentes. A coisa de que falamos e aquilo com que a estamos a

    comparar (ULLMAN, 1964, p.442). Influenciado pela terminologia clssica de A. I.

    Richards (1936)8, o semanticista afirma que a semelhana resultante da comparao

    entre teor (coisa sobre a qual falamos) e veculo (aquilo com que a estamos

    comparando) pode ser de duas espcies: objetiva quando se chama, por exemplo, crista

    ao topo de uma montanha, por se parecer com a crista de um animal ou emotiva quando

    falamos amargo contratempo, por semelhana ao sabor amargo.

    O autor menciona ainda que um fator importante para a eficcia de uma

    metfora a distncia semntica entre os termos. Quanto maior for a distncia

    semntica entre teor e veculo, maior ser a expressividade da metfora. Desse modo, ao

    comparar uma flor a uma mulher, a disparidade semntica aumenta a tenso metafrica,

    ao passo que a comparao de uma flor com uma rosa resulta em perda de

    expressividade.

    Outro ponto importante nos trabalhos de Ullmann a relao entre metfora

    e polissemia. Para estabelecer tal relao, o autor parte de uma semntica lexicalista, a

    qual elege a palavra, dentre as estruturas da lngua (fonema, morfema, palavra e frase),

    como aquela portadora de sentido, a definidora do nvel lexical.

    Na opinio de Ricoeur (2000), Ullmann defende o ponto de vista de que

    as palavras possuem significado prprio, um hard core independente do contexto em

    8 Veja detalhes sobre as idias de I. A. Richards no captulo II.

  • 38

    que se encontram. Ao tomar como base a dicotomia saussuriana significante-

    significado, o semanticista define o significado de uma palavra como uma relao

    recproca e reversvel entre o nome e o sentido.

    Como a relao nome-sentido no uma relao termo a termo, tem-se um

    problema: se considerarmos fenmenos lexicais como a sinonmia, a homonmia e a

    polissemia, veremos que para um sentido pode haver mais de um nome, ou para um

    nome pode haver mais de um sentido. Para definir, ento, qual tipo de fenmeno

    semntico se manifesta, Ullmann incorpora a essa relao um campo semntico

    associativo que faz atuar relaes de semelhana e contigidade entre nomes e sentidos,

    e, assim, pode definir as mudanas de sentido decorrentes dessas associaes.

    Ricoeur cita o arremate de Ullmann a favor de um sistema puramente

    lexical, responsvel pela mudana de sentido: quer se trate de preencher uma lacuna

    autntica, de evitar uma palavra-tabu, de dar livre curso s emoes ou a uma

    necessidade de expressividade, os campos associativos que forneceram a matria

    primeira da inovao (RICOEUR, 2000, p. 184).

    Se observarmos atentamente o posicionamento dos outros autores

    apresentados anteriormente, veremos que essa idia no exclusiva de Ullmann, como

    afirma Ricoeur. Todos, ao que parece, tentam manter a informao contextual fora de

    suas anlises sobre metfora, pois, de modo contrrio, perderiam o domnio sobre o

    significado lexical.

    Em relao polissemia, fica fcil defini-la sob esse aspecto, uma vez que

    uma palavra pode receber diferentes acepes conforme o contexto, sem perder sua

    identidade ( diferena da homonmia). o caso do termo cabea em que, a despeito

    dos vrios contextos de uso, possvel, devido ao campo associativo, reunir traos

    semnticos comuns a todas as acepes (como, por exemplo, o trao extremidade) e

    recuperar o sentido virginal da palavra.

    Uma dificuldade surge, todavia, em relao metfora. Defini-la como uma

    mudana de sentido das palavras, legitimada por uma semntica descritiva fundada

    por relaes semnticas dentro de um campo associativo, como quer Ullmann, acaba

    por confin-la novamente ao espao da pura denominao.

  • 39

    Da dependncia de Ullmann (1964) a um sistema semntico rgido e

    estruturado em campos de associao de itens lexicais, resultam quatro tipos de

    metfora: a) antropomrficas, em que h transferncia de partes do corpo humano para

    nomes inanimados. So exemplos pulmo da cidade e fronte da colina9; b) metforas

    animais, nas quais imagens do reino animal aplicam-se a plantas, objetos ou homens,

    por exemplo, barba-de-cabra (planta), co (arma de fogo) e porco (homem); c)

    metforas que traduzem experincias abstratas em termos concretos10, como, por

    exemplo, a expresso em ingls to hold the spotlight (estar no foco das atenes,

    relacionada ao termo luz), ou, ainda, o relojoeiro e calvo coveiro relacionadas ao

    tempo; por fim, d) metforas sinestsicas, tipo comum de metforas, muito utilizadas

    como recurso no estilo literrio, baseiam-se na transposio de termos relacionados aos

    cinco sentidos. Cores berrantes, cheiro doce e dor aguda so alguns exemplos.

    Ricoeur destaca que a metfora, vista sob uma semntica da palavra, nada

    mais faz do que enumerar suas espcies:

    O fio condutor ainda a associao; os inumerveis emprstimos que a metfora pe em jogo deixam-se, com efeito, referir a grandes classes que se regram sobre as associaes mais tpicas, isto , as mais usuais, no somente de um sentido a um sentido, mas de um domnio de sentido, por exemplo, o corpo humano, a outro domnio de sentido, por exemplo, as coisas fsicas (RICOEUR, 2000, p. 187).

    As asseres de Ullmann a respeito da metfora resvalam nos limites de uma

    teoria do signo, nos moldes saussurianos, cujo funcionamento expurga a relao com a

    realidade extralingstica. No podemos descartar o mecanismo contextual quando a

    relao denotativa nome-coisa posta prova no discurso.

    9 Giambattista Vico, filsofo italiano do sculo XVIII, j identificava o corpo humano como fonte de metforas em sua obra Scienza nuova. Vico foi talvez o primeiro filsofo a atribuir um carter metafrico linguagem em geral, e inclusive s prprias coisas expressas na linguagem, as quais seriam criadas a partir de relaes estabelecidas pelo homem. Na Cincia Nova [1725], ele afirma que o mundo de uma dada nao instaurado atravs de uma atividade criativa na qual os homens transferem caractersticas suas para as coisas. 10 Aqui, a transferncia metafrica restrita aos nomes, visualizao de imagens, diferentemente da perspectiva experiencialista de Lakoff & Johnson (1980), na qual a metfora construda no por nomes, mas por mapeamentos entre domnios conceituais concretos e abstratos.

  • 40

    Uma inovao semntica uma maneira de responder de modo criativo a uma questo posta pelas coisas; em certa situao do discurso, em dado meio social e em um momento preciso, alguma coisa demanda ser dita que exige um trabalho de fala, um trabalho de fala sobre a lngua, que afronta as palavras e as coisas [...] Toda mudana implica o debate inteiro do homem falante e do mundo (RICOEUR, 2000, p. 194-195).

    Convm apontarmos outras lacunas na proposta de Ullmann. De incio, o

    tratamento dado ao fenmeno sob o vis de uma semntica lexical, taxionmica, restrita

    palavra; em seguida, a afirmao de que a similitude sempre o resultado da

    comparao entre dois termos. Como veremos no nosso estudo, nem sempre a relao

    metafrica se estabelece na presena explcita de dois itens lexicais (teor e veculo

    metafrico) na superfcie do texto e muitas vezes, como o caso da metaforizao

    textual, um termo pode metaforizar no somente outro termo, mas enunciados,

    pargrafos ou um texto inteiro. Alis, a relao metafrica pode, ainda, se configurar na

    mente do leitor, cognitivamente, sem estar necessariamente explicitada na superfcie do

    texto.

    No que diz respeito ao critrio da distncia entre os termos interferir na

    fora da metfora (quanto maior a disparidade semntica entre os termos maior a

    expressividade da metfora), preferimos eliminar a existncia de uma regra estvel.

    Somos da opinio de que a expressividade ou criatividade de uma metfora vincula-se

    sua manifestao em um determinado contexto. Em outras palavras, medida que um

    determinado contexto configurado, faz-se necessrio construir uma enciclopdia ad

    hoc, na qual os termos em jogo so enriquecidos semanticamente durante a

    interpretao.

    Da Eco defender a assertiva de que no existe algoritmo para a metfora

    [...] o xito da metfora funo do formato sociocultural da enciclopdia dos sujeitos

    interpretantes (ECO, 1991, p. 191).

    esse rico tecido cultural, j organizado em redes de interpretantes, que decide as semelhanas e dessemelhanas das propriedades fundadoras de uma metfora, ao mesmo tempo em que aproveita a produo e interpretao metafrica para reestruturar novas redes de semelhanas e dessemelhanas (Eco, 1991, p.108).

  • 41

    Este ponto, alis, constitui o mecanismo basilar da metaforizao textual e

    radica a nossa tese. Na metaforizao, no h como se estabelecer a priori quais traos

    conceituais definem a relao metafrica, pois a semelhana em jogo construda

    pontualmente, na leitura do texto, e institui um ganho semntico sempre novo,

    resultante uma nova descoberta dentro do universo das representaes.

    1.7 O LUGAR DA PALAVRA NO PROCESSO METAFRICO

    No cmputo geral, este captulo resume-se a duas asseres centrais: a) as

    teorias mantm, no tratamento da metfora, a palavra como unidade de anlise, bem

    como se valem da relao semntico-lexical para limitar seu significado, e, por isso, so

    essencialmente nominalistas e b) as teorias manifestam um formalismo estrutural, que

    oprime a considerao pelos aspectos scio-culturais no tratamento da metfora. Com

    isso, ficam amputadas para fornecer uma explicao satisfatria dos mecanismos de

    interpretao metafrica, uma vez que somente a anlise de palavras ou sentenas

    metafricas no pode ser aplicada ao texto, onde tem lugar uma pluralidade de sentidos

    e manifestaes discursivas, das quais a metfora parte integrante.

    Vale salientar o fato de que, com o surgimento de novas teorias da metfora,

    principalmente aquelas cognitivistas, muito se tem criticado a viso nominalista

    tradicional, pelo fato desta circunscrever o jogo metafrico a uma semntica lexical.

    Nas concepes elencadas neste captulo, h, de fato, uma demasiada valorizao da

    palavra. As fronteiras do nome so os limites da significao metafrica. Como

    conseqncia, as relaes de sentido que envolvem toda a cadeia sintagmtica do

    enunciado ou sentena so preteridas quelas limitadas a uma substituio

    paradigmtica. Em outras palavras, a interao sintagmtica entre os termos do

    enunciado, capaz de revelar a metfora, somente aparente.

    Ricoeur (2000), na sua releitura crtica da obra de Aristteles, enfatiza que

    esto no prprio discurso do filsofo os fundamentos para se estabelecer uma teoria da

    tenso que supera a teoria da substituio. A tenso encontra-se no relacionamento

    predicativo que a metfora mantm, ao fazer a ultrapassagem da lexis para chegar

  • 42

    frase, ao enunciado, ao discurso. Porm, faltou a Aristteles aprofundar essa questo, e,

    aos seus seguidores, explicitar o modo como ocorre esse processo.

    Contudo, em vez de serem abandonadas, as teorias da metfora-palavra

    devem ser ampliadas, na medida em que, constituindo ou no um desvio da

    denominao ou uma transferncia de traos semnticos entre dois termos em

    comparao, da palavra que partiro as teorias da metfora/sentena. Ou seja, a

    palavra permanecer como transportadora do sentido metafrico, tambm, em uma

    teoria da predicao.

    Alis, medida que a metfora desloca-se da frase para o texto/discurso, a

    palavra continuar sendo, em ltima instncia, o suporte do efeito de sentido metafrico

    cujo papel encarnar, tambm no nvel discursivo, uma identidade semntica. a partir

    do encadeamento de figuras do plano da expresso que se construir a metfora no

    texto. No entanto, a dinmica discursiva do texto esvanece de tal modo os limites da

    palavra que o sentido metafrico j no pode ser encontrado em um s lugar, seno no

    contnuo da significao textual.

    Por isso, se quisermos alcanar o espao do texto/discurso lugar de

    manifestao da metaforizao , devemos, a seguir, deslocar a metfora de seu estatuto

    lexical, de palavra, para o mbito da sentena, e confirmar, por ora, o enunciado como o

    meio ou contexto em que tem lugar a transposio de sentido.

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    CAPTULO 2

    A METFORA NO NVEL DA SENTENA

    Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta: trouxeste a chave?

    Carlos Drummond de Andrade

    Veremos, a partir de agora, como ocorre o deslocamento da metfora do

    nvel da palavra para o nvel da sentena, baseados inicialmente na distino fecunda de

    Benveniste entre Semitica e Semntica. Em seguida, apresentaremos com brevidade a

    terminologia clssica aplicada metfora de A. I. Richards, e analisaremos a teoria da

    interao de Max Black, que advoga a favor no de um sentido metafrico resultante da

    transferncia de sentido entre as palavras, mas da tenso entre os termos da estrutura

    sentencial, responsvel pela criao de um sentido metafrico original. A discusso

    segue com a pragmtica da metfora, de cunho lgico-sentencial, proposta de incio por

    Grice e Searle, e com a teoria da relevncia de Sperber e Wilson, uma ampliao do

    modelo pragmtico tradicional. Ao final, abriremos uma seo para comentar as

    limitaes de uma metfora-sentena e a necessidade de um novo deslocamento para o

    mbito do texto, ou do prprio discurso.

    2.1 A METFORA ENTRE A PALAVRA E A SENTENA: OS PLANOS

    SEMITICO E SEMNTICO DE BENVENISTE

    Benveniste no foi um estudioso da metfora. Sua incluso neste trabalho

    deve-se reflexo feita por Ricoeur (2000) sobre suas idias, mais precisamente

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    dicotomia plano semitico / plano semntico da lngua, estendida, aqui, ao estudo da

    metfora.

    Benveniste (1988) parte da idia de que a lngua, como sist