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Tese sobre Metaforização Textual.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA DOUTORADO EM LINGSTICA
METAFORIZAO TEXTUALa construo discursiva do sentido metafrico no texto
Ricardo Lopes Leite
Fortaleza 2007
Ricardo Lopes Leite
METAFORIZAO TEXTUAL: a construo discursiva do sentido metafrico no texto
Tese de Doutorado submetida Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Lingstica da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Lingstica, sob a orientao da Prof.a Dr.a Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo e co-orientao da Prof.a Dr.a Mnica Magalhes Cavalcante
Fortaleza 2007
Esta Tese foi submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica como parte dos
requisitos necessrios para obteno do grau de Doutor em Lingstica, outorgado pela
Universidade Federal do Cear, e encontra-se disposio dos interessados na
Biblioteca de Humanidades da referida Universidade. A citao de qualquer trecho
desta tese permitida, desde que seja feita de acordo com as normas cientficas.
___________________________________
Ricardo Lopes Leite
Banca Examinadora
___________________________________Prof.a Dr.a Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo (Orientadora) Universidade Federal do Cear
Prof.a Dr.a Mnica Magalhes Cavalcante (Co-Orientadora)Universidade Federal do Cear
Prof. Dr. Heronides Maurlio de Melo MouraUniversidade Federal de Santa Catarina
Prof. Dr. Joo Batista Costa Gonalves Universidade Estadual do Cear
Prof.a Dr.a Maria Elias Soares Universidade Federal do Cear
Prof.a Dr.a Mrcia Teixeira NogueiraUniversidade Federal do Cear
__________________________________Profa. Dr. Paula Lenz Costa Lima (suplente) Universidade Estadual do Cear/CE
Tese aprovada em: / 09/2007
Alice, minha filha, que nasce
junto com este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Lvia, minha esposa, pela dedicao e pacincia em compartilhar as angstias,
conquistas e dificuldades da vida e do trabalho.
Aos meus pais, Francisco e Vilma, pela educao slida e por terem cultivado desde
cedo o fascnio que tenho pela leitura.
Prof.a Dr.a Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo, minha orientadora, pela ateno,
incentivo e sugestes feitas a este trabalho de tese.
Prof.a Dr.a Mnica Magalhes Cavalcante, minha co-orientadora, por ter acreditado
na minha capacidade e pela sua competncia em apontar as lacunas e virtudes do meu
trabalho.
Ao meu grande amigo, prof. Jos Amrico B. Saraiva, a quem eu devo a iniciao na
Semitica e a interlocuo sobre boa parte das reflexes centrais deste trabalho.
Prof.a Dr.a Maria Elias Soares, espectadora do meu aprendizado acadmico, por ter
posto prova as verses preliminares da tese.
minha colega prof.a Silvana Maria Calixto de Lima, pelas discusses proveitosas
sobre metfora e recategorizao, que engatilharam a idia de estudar a metaforizao
textual.
Ao Prof. Dr. Paulo Mosnio, lingista brilhante, de quem obtive valiosos ensinamentos.
Profa. Dra. Emlia Maria Peixoto Farias, pelas valiosas sugestes dadas nas duas
qualificaes da tese.
Aos membros da Banca Examinadora, pela presteza em atenderem minha solicitao
e por contriburem positivamente para a verso final do trabalho.
coordenao, professores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em
Lingstica, pela ateno e eficincia despendidas a mim durante o curso do doutorado.
Aos colegas da minha turma de doutorado (2003.1), pelo companheirismo e amizade.
CAPES, pela concesso de uma bolsa de estudos no perodo inicial do doutorado.
No h um nico homem que no seja um descobridor. Comea descobrindo o amargo, o salgado, o cncavo, o liso, o spero, as sete cores do arco e as vinte e tantas letras do alfabeto; passa pelos rostos, pelos mapas, pelos animais e pelos astros; conclui pela dvida ou pela f e pela certeza quase absoluta de sua ignorncia.
Jorge Luis Borges
RESUMO
O presente trabalho de tese examinou a metaforizao textual: fenmeno textual/discursivo no qual a metfora concebida como processo de constituio de sentidos, em vez de um simples jogo de semelhana entre figuras, restrito ao mbito da palavra ou da sentena. Inicialmente, discutiu-se o conceito de metfora nas principais teorias tradicionais, cujos mecanismos de interpretao fundamentam-se na substituio ou transferncia de traos semnticos, na tenso estabelecida entre uma palavra (foco) e sua projeo sobre uma estrutura sentencial (quadro) ou ainda em uma pragmtica presa a um contexto lgico-sentencial. Tal discusso revelou as limitaes das teorias da metfora-palavra e metfora-sentena em circunscrever o fenmeno metafrico a uma semntica de cunho lexicalista, e a necessidade de deslocamento da metfora para outro nvel de interpretao, o nvel textual/discursivo. Em seguida, analisou-se o modo como aspectos cognitivos, lingstico-textuais e scio-culturais interagem, simultaneamente, na construo do sentido metafrico a partir da diluio da dicotomia sentido literal/metafrico e da elaborao de um conceito de cognio aplicado metaforizao. Por fim, examinaram-se as limitaes do conceito de recategorizao metafrica estudado por Lima (2003), a fim de se propor a metaforizao textual e sua descrio por meio de mecanismos de interpretao capazes de revelar a pluralidade de sentidos metafricos em um nvel textual/discursivo, alm dos limites da palavra e da sentena. Realizou-se uma conjuno terica das seguintes disciplinas: Semitica Textual, Lingstica Textual (estudos sobre Referenciao) e Cincias Cognitivas, o que permitiu conceber a metfora como um fenmeno cognitivo dinmico, flexvel, capaz de emergir e de se organizar na interao scio-comunicativa. Esse enlace terico interdisciplinar auxiliou a descrever a metaforizao por meio de dispositivos ou mecanismos de interpretao, adaptados da semitica textual de Eco (2000; 2004) e da semitica literria de Bertrand (2003), quais sejam: a cooperao textual, o conceito de leitor-observador, a abduo, a seleo de propriedades conceituais e, por fim, o conceito de isotopia discursiva. A anlise foi realizada aplicando-se os dispositivos interpretativos citados a um exemplrio que compreendeu sobretudo notas jornalsticas e alguns textos humorsticos (piadas) de fontes variadas, coletados sem critrios definidos, e sem obedecer a uma ordem sistemtica, procedimento que isentou o estudo de apresentar, em seu corpo, um desenho metodolgico especfico para justificar as anlises. Tais anlises demonstraram que, ao ultrapassar os limites da palavra e da sentena, manifestando-se em um nvel textual/discursivo, a metfora transforma-se em processo, em metaforizao. Isto implica dizer que o fenmeno enquadra-se na dinmica do texto, em um contexto discursivo, no qual possvel multiplicarem-se os sentidos metafricos a cada movimento interpretativo ocorrido durante a leitura.
PALAVRAS-CHAVE: Metfora; Metaforizao; Cognio; Recategorizao metafrica; Semitica Textual.
(418 palavras)
ABSTRACT
The present study introduces textual metaphorization: a textual/discursive phenomenon where metaphor is recognized as a practice of constitution of sense, rather than as an ordinary game of similarity figures, restricted to the word or sentence level. First, the study argues on the very concept of metaphor within the main traditional theories, whose interpretation mechanisms are established on the replacement or transfer of semantic features, on the tension set up between a word (focus) and its projection over a sentence structure (frame), or yet, on a pragmatic set to a logic sentential context. Such discussion showed the constraints of metaphor-word and metaphor-sentence theories as it circumscribes the metaphoric phenomenon to a lexicalist Semantics, as well as the need for transferring metaphor to another interpretation stage, the textual/discursive level. Secondly, the research investigates the way how cognitive, textual-linguistic, and socio-cultural features are engaged simultaneously in the foundation of metaphoric sense, from the dilution of literal/metaphoric dichotomy, and the drawing of a cognition concept applied to metaphorization. Finally, it examines the constraints of the concept of metaphorical (re)categorization presented by Lima (2003), in order to propose textual metaphorization and its description trough interpretative mechanisms capable of revealing the plurality of metaphorical senses in a textual/discursive level, further than the word and sentence boundaries. The study presents a theoretical conjunction of the following subject areas: Textual Semiotics, Text Linguistics (studies on Referenciation) and Cognitive Sciences, which made possible the consideration of metaphor as a dynamic, flexible phenomenon, able to emerge and organize itself within socio-communicative interaction. Such an interdisciplinary theoretical blending aided to describe metaphorization through interpretation mechanisms or devices, adapted from Ecos (2000; 2004) text semiotics and from Bertrands (2003) literary semiotics, which are: textual cooperation, the concept of reader/observer, abduction, conceptual properties selection and, lastly, the discursive isotopy concept. The analysis was carried out by applying the previous interpretative devices to a set of samples that comprehended mostly news notes and some humorous texts (jokes) collected from varied sources, with no definite criterion, and without obedience to a systematic order this could justify the lack of a specific methodological design to validate the analyses. Such analyses showed that by overcoming the word and sentence limits, and by emerging in a textual/discursive level, metaphor becomes a process, the metaphorization. It means that the phenomenon is set in the textual dynamics, within a discursive context where metaphorical meanings can be multiplied whenever an interpretative movement acts during reading.
KEY-WORDS: Metaphor; Metaphorization; Cognition; Metaphoric recategorization; Textual Semiotics.
(412 words)
SUMRIO
INTRODUO ......................10
1 A METFORA NO NVEL DA PALAVRA ......................16
1.1 ARISTTELES E A METFORA ......................161.2 A TROPOLOGIA ..................... 231.3 A METFORA COMO COMPARAO E DESVIO ......................251.4 A METFORA E A ANLISE SMICA ......................291.5 A METFORA E A METONMIA: A SELEO E A COMBINAO NOS DOIS EIXOS DA LINGUAGEM
......................35
1.6 A SEMNTICA DA METFORA DE ULLMANN ......................371.7 O LUGAR DA PALAVRA NO PROCESSO METAFRICO ......................41
2 A METFORA NO NVEL DA SENTENA ......................43
2.1 A METFORA ENTRE A PALAVRA E A SENTENA: OS PLANOS SEMITICO E SEMNTICO DE BENVENISTE
......................43
2.2 A ESTRUTURA SENTENCIAL DA METFORA: A PROPOSTA DE A. I. RICHARDS
......................46
2.3 A METFORA COMO PROJEO SEMNTICA SOBRE A SENTENA
......................49
2.4 A PRAGMTICA DA METFORA ......................582.4.1 A metfora e as mximas conversacionais de Grice ......................582.4.2 A concepo searleana de metfora ......................622.4.3 A metfora definida pela Relevncia ......................642. 5 OS LIMITES DO SENTIDO NA SENTENA METAFRICA ......................69
3 PRELIMINARES A UMA TEORIA TEXTUAL-DISCURSIVA DA METFORA ......................71
3.1 A OPOSIO SENTIDO LITERAL/METAFRICO E OS MODELOS CONTEMPORNEOS DE COMPREENSO DE METFORAS
......................73
3.1.1 O modelo pragmtico tradicional (Standard Pragmatic Model) ......................733.1.2 O modelo de acesso direto (Direct Access View) ......................753.1.3 A hiptese da salincia gradual (Graded Salience Hypothesis) ......................763.2 ALM DO SENTIDO LITERAL E METAFRICO: A CONSTRUO DO SENTIDO NO TEXTO/DISCURSO ......................78
3.3 POR UM MODELO DE COGNIO APLICADO METAFORIZAO
......................82
3.3.1 Os modelos tericos de cognio ......................833.3.1.1 O cognitivismo clssico: o simbolismo ......................843.3.1.2 O conexionismo ......................893.3.1.3 O atuacionismo ......................943.3.1.4 O realismo corporificado de Lakoff & Johnson ....................1033.3.1.5 O scio-cognitivismo ....................1103.4 COGNIO E INTERPRETAO DE METFORAS ....................1163.5 TEXTO E CONTEXTO: OS STIOS DA COGNIO ....................120
4 A METFORA NO NVEL TEXTUAL-DISCURSIVO: O FENMENO DA METAFORIZAO
....................126
4.1 OS DISPOSITIVOS INTERPRETATIVOS DA METAFORIZAO
....................131
4.1.1 Cooperao textual: a impresso de realidade instaurada no texto
....................132
4.1.2 O leitor e a figura do observador ....................1384.1.3 O raciocnio abdutivo ....................1474.1.3.1 Abduo e metaforizao ....................1564.1.4 A seleo de propriedades conceituais na metaforizao ....................1634.1.5 A isotopia ....................1714.1.5.1 Definies de isotopia: da perspectiva estrutural para a discursiva
....................173
4.1.5.2 Figurativizao e tematizao: o funcionamento discursivo da isotopia
....................176
4.1.5.3 Isotopia e metaforizao ....................180
4.2 A METAFORIZAO TEXTUAL E SUA APLICAO ....................185
CONSIDERAES FINAIS ....................198
REFERNCIAS ....................205
10
INTRODUO
A metfora estudada h pelo menos dois mil anos. A quantidade e a
regularidade de publicaes sobre o assunto so indicadores da complexidade desse
tema, cujos contornos no foram ainda de todo estabelecidos e cuja mescla de
posicionamentos tericos impede a formulao de uma definio unvoca. Como no
bastasse, a utilizao do termo passou, atualmente, a designar uma variedade de
fenmenos, muitas vezes no correlatos, que descrevem e caracterizam a metfora de
forma particular.
Vemos, assim, desde Aristteles at as teorias cognitivas atuais, o embate
entre estudiosos para tentar definir a metfora. As posies defendidas, de modo geral,
rivalizam entre si e, ao descentralizarem-se uma das outras, racionam o fenmeno,
explicando-o apenas sob uma determinada perspectiva. Com isso, perdem o fio
condutor para explicar a genialidade da sobreposio de significados prpria da
metfora, j que impossvel v-la surgir em sua totalidade no ato da interpretao
atravs dos culos de um determinado recorte terico, apenas. Compreendemos que
uma explicao exaustiva do fenmeno contemplaria, ao menos parcialmente, a
integrao das abordagens tericas.
Em nosso trabalho, propomos essa integrao, ao discutirmos as principais
teorias da metfora, caracterizando-as em trs nveis distintos, mas que guardam entre si
certa dependncia: o nvel da palavra, o nvel da sentena e o nvel do texto/discurso.
Alocada no primeiro nvel, a metfora manifesta-se restrita palavra ou item lexical,
ora como substituio e deslocamento de seu sentido literal, ora como comparao
implcita entre termos. Quando considerada no nvel da frase ou sentena, passa a ser
um enunciado impertinente e no mais uma denominao desviante. No nvel do
texto/discurso, por sua vez, consiste em uma maneira de redescrever a realidade, erigida
custa de uma pluralidade de manifestaes textuais e discursivas que indeterminam,
parcialmente, sua forma e seu sentido.
A metfora, ao manifestar-se no texto/discurso, lugar legtimo da
significao, surge no fluxo da semiose e passa a ser um mecanismo de ressignificao
11
da realidade. Assim, no basta ser uma substituio de nomes ou um ornamento do
discurso, passvel de classificao, como apregoam as teorias do primeiro nvel;
tampouco basta ser um efeito de sentido circunscrito predicao sentencial, como
defendem aquelas do segundo nvel.
Em alguns casos, preciso ampliar o sentido metafrico alm da palavra e
da sentena, de maneira que este surja a cada movimento interpretativo, como
decorrncia do trabalho inferencial do leitor sobre a dinmica textual, o que revela as
prticas socioculturais imbricadas na linguagem no momento da interpretao. A este
fenmeno resultante da interao entre leitor, texto e cultura, capaz de engendrar
sentidos metafricos durante o ato interpretativo, damos o nome de metaforizao
textual.
O termo metaforizao no possui uma definio exata nos estudos da
metfora. Comumente, o vemos empregado para designar o processo geral pelo qual
uma expresso lingstica passa a ter um uso metafrico. Em nosso trabalho, a
metaforizao diz respeito a um processo que no se limita a uma expresso lingstica
ou a uma sentena, mas sim, constitui um fenmeno de construo de sentidos
metafricos em um nvel textual-discursivo.
Nosso intuito , portanto, relativizar o conceito de metfora medida que a
deslocamos de um nvel para outro. Isto no significa dizer que o fenmeno no se
manifeste nos dois nveis precedentes, da palavra e da sentena, porm, na esfera
textual-discursiva, colocamos margem as definies clssicas que concebem a
metfora somente como formas lingsticas j materializadas na superfcie de um texto,
anteriores interpretao.
Assumir a metaforizao textual demanda, por conseguinte,
compreendermos a metfora como um fenmeno discursivo cuja aparente inevidncia
na superfcie textual (em forma de palavra ou sentena) configura outros nveis de
interpretao, suscitados pelo esforo inferencial do leitor sobre a tessitura textual.
A idia de estudar a metaforizao partiu do trabalho de Lima (2003) sobre a
recategorizao metafrica e seu papel na construo do sentido humorstico das piadas.
Em linhas gerais, trata-se de um fenmeno ao mesmo tempo referencial e cognitivo, em
12
que uma expresso anafrica retoma seu antecedente por meio de uma metfora, muitas
vezes sem a presena do antecedente no texto.
Conforme veremos, a recategorizao metafrica explora, de fato, a
dimenso scio-cognitiva da metfora quando presente em um texto. Todavia, a
proposta apresentada por Lima no fornece uma descrio pormenorizada dos
mecanismos de interpretao de determinadas recategorizaes metafricas que no se
encontram plenamente textualizadas, como ocorre em tipos especficos de textos
analisados em nosso trabalho. Da a possibilidade de propormos o conceito de
metaforizao textual, como forma de ampliarmos o alcance da proposta apresentada
pela autora.
O nosso objeto de estudo, entretanto, ainda pouco estudado. Dessa forma, a
fim de explicarmos e arquitetarmos categorias de anlise apropriadas ao fenmeno da
metaforizao, lanamos mo de uma conjuno terica das seguintes disciplinas:
Semitica Textual, Lingstica Textual (estudos sobre Referenciao) e Cincias
Cognitivas. Tal deciso, a nosso ver, preenche a lacuna deixada pelos estudos correntes,
que no formulam explicaes satisfatrias a respeito da interpretao da metfora
quando esta transcende os limites das formas lexicais, sintticas ou semnticas e passa a
ser considerada ao nvel discursivo.
Outra particularidade do trabalho diz respeito recorrncia aos estudos
clssicos sobre a metfora. Dois so os motivos dessa retomada. O primeiro concerne ao
fato de que os trabalhos recentes sobre o assunto fundamentam-se, preferencialmente,
em teorias contemporneas, mais precisamente aliadas s Cincias Cognitivas, para
explicar a metfora, de modo que as teorias clssicas se encontram freqentemente
preteridas quelas. Ao que parece, o cognitivismo contemporneo subestima as
possibilidades descritivas e operacionais dos estudos clssicos de explicar a metfora
sob uma perspectiva lingstica, valorizando, em vez disso, os aspectos relacionados ao
processamento cognitivo e compreenso das metforas. O segundo que a opo por
esse resgate terico, no nosso caso, justifica-se ainda mais, pois visamos redimensionar
um conceito milenar cujas leituras clssicas so fundamentais para que se verifique a
conduo paulatina da metfora rumo metaforizao.
13
O trabalho de tese investiga, assim, os mecanismos de interpretao em que
a metfora passa a ser concebida no apenas como um jogo de figuras, todavia como
processo de transformao de sentidos, manifestado em um nvel discursivo. Dessa
forma, interessa-nos, especificamente: a) rediscutir as principais concepes de
metfora, inclusive o conceito de recategorizao metafrica, a fim de ampliar a noo
de interpretao metafrica a partir do fenmeno de metaforizao textual; b) descrever
a metaforizao textual, analisando o modo como aspectos cognitivos, lingstico-
textuais e scio-culturais interagem, simultaneamente, na construo do sentido
metafrico; e c) apontar quais mecanismos de interpretao respondem pela
metaforizao textual, revelando a pluralidade de sentidos metafricos em um nvel
discursivo, alm dos limites da palavra e da sentena.
bom elucidar que optamos por no constituir um corpus para analisar o
fenmeno. A anlise ser realizada por meio de um exemplrio, que compreende
sobretudo notas jornalsticas retiradas da Revista poca e do Jornal Dirio do
Nordeste e alguns textos humorsticos (piadas) de fontes variadas, coletados sem
critrios definidos, j que nosso propsito apresentar e descrever a metaforizao
textual, e no, investigar o fenmeno j posto, submetido a determinadas variveis
como gnero, suporte, tipo de texto, extenso, meio de veiculao etc. Do mesmo modo,
a apresentao dos exemplos no obedecer a uma ordem sistemtica, pois depender
do tipo de descrio e anlise que etiver sendo desenvolvida. Com esse procedimento,
isentamo-nos de apresentar no corpo da tese um desenho metodolgico especfico para
justificar nossa anlise. Uma descrio sumria da tese pode assim ser feita:
O captulo I traa um panorama das teorias clssicas sobre a metfora
circunscritas palavra, cujo mecanismo metafrico fundamenta-se nas noes de
desvio, substituio e comparao de termos. So expostas as propostas dos autores
mais representativos dessa viso clssica, a saber: a metfora sob a tica de Aristteles,
a tropologia de Fontanier, a impertinncia semntica de Cohen, a anlise smica do
Grupo , a proposta de metfora e a metonmia de Jakobson, e a semntica da metfora de Ullmann. Ao final, apontamos as limitaes das teorias da metfora-palavra, mas,
por outro lado, destacamos as razes pelas quais essas teorias no devem ser de todo
abandonadas, e sim ampliadas, quando submetidas ao nvel textual ou discursivo.
14
O captulo II desloca a metfora para o nvel do enunciado. O fim
apresentar as contribuies da terminologia de A. I. Richards e da teoria interacional de
Max Black, bem como expor a viso pragmtica da metfora sob a tica de Paul
Grice, John Searle e Sperber e Wilson , com vista a mostrarmos o quanto ganha uma
teoria da metfora se ultrapassar os limites da palavra e realizar-se em todo o enunciado.
Por outro lado, finalizamos o captulo destacando o quanto a projeo de uma palavra
metafrica sobre a sentena bem como uma pragmtica presa ao contexto lgico-
sentencial restringem o poder de redescrio da realidade prprio da metfora, por
desconsiderar fatores discursivos como determinantes na construo do sentido
metafrico.
O captulo III conduz a uma aparente quebra do raciocnio lgico-
argumentativo do trabalho, pois adiaremos, por ora, o deslocamento da metfora para o
nvel textual-discursivo. Sob o ttulo de Preliminares a uma teoria textual-discursiva da
metfora, o captulo cumpre a funo de explicitar trs aspectos importantes para a
construo de um modelo discursivo de interpretao de metforas: o primeiro refere-se
clssica dicotomia sentido literal/metafrico e suas implicaes nos modelos
contemporneos de compreenso metafrica; o segundo diz respeito formulao de
um conceito de cognio que possa ser aplicado metaforizao; e o terceiro, por fim,
explicita as noes de texto e contexto, luz do Scio-cognitivismo e da Semitica
textual. O propsito final do captulo entendermos como processos cognitivos atuam
em conjunto com o texto e o conhecimento culturalmente partilhado para construir o
sentido metafrico, bem como vincularmos a interpretao reciprocidade entre leitor,
texto e cultura.
A localizao da metfora no nvel discursivo feita no captulo IV. Na
verdade, esse nvel consiste na prpria descrio da metaforizao textual. Iniciamos
com uma breve exposio do estudo de Lima (2003) sobre recategorizao metafrica,
na qual o reconhecemos como ponto de partida para a explicao do nosso objeto de
estudo, ao mesmo tempo em que pontuamos a necessidade de sua ampliao, de modo a
contemplar satisfatoriamente as manifestaes discursivas da metfora. O captulo
prossegue com a descrio da metaforizao por meio do que chamaremos de
dispositivos ou mecanismos textuais/discursivos de interpretao. So eles: a
cooperao textual, apresentada sob o vis da Semitica; o conceito de leitor-
15
observador, adaptado das propostas de Eco e Bertrand, respectivamente; a abduo,
vista como uma estratgia de interpretao (conceito inicialmente formulado na
semitica de C. S. Pierce, mas ampliado posteriormente por Eco e Parret); a seleo de
propriedades conceituais e, por fim, o conceito de isotopia discursiva, elemento
determinante na manifestao da metaforizao. O captulo se encerra com a aplicao
das categorias interpretativas da metaforizao a alguns exemplos, com o propsito de
confirmar a natureza discursiva da metaforizao e demonstrar a atuao simultnea de
seus mecanismos constituintes no momento da interpretao.
Por fim, na concluso, analisamos as virtudes e os limites da metaforizao,
e reafirmamos a nossa defesa por um redimensionamento do conceito e metfora, bem
como de seus nveis de interpretao.
16
CAPTULO 1
A METFORA NO NVEL DA PALAVRA
O rio que fazia uma volta atrs de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrs de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trs de sua casa se chama enseada. No era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrs de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros
Enquadram-se, neste captulo, propostas tericas apontadas na literatura
como viso nominalista ou tradicional da metfora, oriundas da Retrica clssica, mais
precisamente da figura de Aristteles. Tais propostas caracterizam-se por conceber a
metfora como uma figura1 manifestada exclusivamente no mbito da palavra ou do
nome, gerada por meio de operaes de substituio e comparao. Inscrita, assim, no
nvel de uma semntica lexical, vemo-la destituda de sua funo pragmtica e de sua
manifestao textual e discursiva.
1.1 ARISTTELES E A METFORA
Foi a partir da proposta de Aristteles que se fundaram as bases de uma
viso tradicional de metfora. O filsofo discute a metfora em duas de suas obras,
Potica e Retrica, na primeira, contudo, que conceitua mais precisamente o
fenmeno:
1 Uma definio de figura ser apresentada mais adiante, no mbito da retrica de Fontanier. Contudo, h vrias definies propostas por outros autores na literatura. Para fins do nosso trabalho, figura significa, em termos semiticos, uma expresso que remete a algo concreto do mundo natural. Cabe aqui citarmos tambm a definio apresentada por Klinkenberg (2003, p.206): A figura retrica um dispositivo que consiste em produzir sentidos implcitos, isto , faz que o enunciado onde ela se manifesta seja polifnico.
17
A metfora definida como o recurso a um nome de outro tipo, ou ento como a transferncia para um objeto do nome prprio de um outro, operao que pode se dar por deslocamentos de gnero para espcie, de espcie para gnero, de uma espcie para espcie ou por analogia (ARISTOTLES, 2003).
A definio aristotlica, simples somente em aparncia, permite-nos
especificar quatro tipos de metforas, examinadas abaixo.
O primeiro tipo, do gnero para a espcie, seria uma espcie de sinonmia
generalizada, cuja interpretao depende de uma relao de incluso de classes. O
exemplo fornecido por Aristteles Minha nau aqui se deteve, pois lanar ferro uma
maneira de deter-se. Ou seja, deter-se compreende o gnero de que lanar ferro (ou
estar ancorado) seria uma espcie. Dadas as dificuldades de traduo e interpretao
dessa metfora aristotlica, Eco (1991, p.150) apresenta outro exemplo mais adequado
para o leitor hodierno: o uso de /animais/ por , sendo homens uma espcie
do gnero animais.
Embora se admita a engenhosidade do princpio da sinonmia presente nesse
tipo de metfora, estamos diante de uma definio pobre, ainda embrionria, cujo ato
metafrico realiza-se apenas pela nomeao entre duas coisas a partir de seu gnero
comum, como, por exemplo, homem e boi, ambos nominveis como animais.
Ademais, Eco (op. cit.) refora que um gnero no basta para definir uma
espcie; dado o gnero, dele no deriva necessariamente uma das espcies
subordinadas. De fato, o semioticista italiano interroga se no deveria ser mais fcil
entender que homem (espcie) significa animal (gnero) do que entender que animal
significa homem e no, por exemplo, crocodilo.
O segundo tipo de metfora, de espcie para gnero, compreende tambm
uma relao de incluso de classes. O exemplo aristotlico Ulisses levou a feito
milhares e milhares de belas aes, em que milhares e milhares substitui muitas,
um gnero de que milhares e milhares espcie.
18
No exemplo acima, h uma limitao da metfora em estabelecer a
equivalncia entre a estrutura da linguagem e a estrutura do mundo, visto que,
consoante Eco (1991), tal substituio somente vlida em determinados quadros de
referncia; em outros, como, por exemplo, numa escala de quantidade referente s
grandezas astronmicas mil e mil, pode significar pequena quantidade. Da mesma
forma, entendemos que considerar homem como espcie e animal como gnero, de
acordo com o exemplo do primeiro tipo, admitir uma metfora retoricamente
insossa capaz de significar animal atravs do termo homem.
Seguindo a taxionomia dos tropos formulada pelo Grupo (1974; 1977)2,podemos considerar sindoques as metforas dos dois primeiros tipos; aquela do
primeiro tipo seria generalizadora ou hipernima, e a do segundo, particularizadora ou
hipnima.
A metfora do segundo tipo, ao que parece, exige menor tenso
interpretativa que o primeiro, pois, em uma relao hiponmica, sobe-se, em termos
semnticos, de um termo subordinado para um superordenado, que s pode ser um. Um
exemplo seria a sentena para te abrigar, podes procurar meu teto, com o termo teto
usado por casa. No caso da generalizadora, ao descer do termo superordenado, h vrios
termos subordinados possveis. o que ocorre na frase o animal est no pasto, em que
animal pode se referir a um cavalo, uma vaca ou, ainda, a outros da mesma espcie ou
no, como, por exemplo, chamar metaforicamente um ser humano de animal.
Disto resulta a eliminao da interferncia da informao contextual na
configurao da metfora, pois no exemplo o animal est no pasto, se o contexto de
insero da frase fosse uma situao na qual se falasse de um homem rude, gluto, de
pssimos hbitos alimentares, teramos a possibilidade de metaforizarmos tanto animal
quanto pasto, o que permitiria uma dupla interpretao: o homem est comendo, ou o
homem est almoando.
Enfim, s metforas do primeiro e do segundo tipo obsta apenas o fato de
reduzirem sobremaneira o jogo de produo de sentidos prprio da metfora, pois a
unidade de significao limita-se transposio de nomes que surgem em uma ordem
2 Grupo de tericos, tambm chamado Grupo de Lige. Seus componentes: J. Dubois, F. Edeline, J.M. Klinkenberg, P. Minguet, F. Pire e H. Trinon.
19
YZX
relacional lgica, previamente estabelecida, de subordinao entre gnero e espcie ou
espcie e gnero.
A metfora de terceiro tipo consiste em um exemplo de passagem de espcie
para espcie. O exemplo fornecido por Eco so as palavras suprimir e cindir, casos
de uma espcie mais geral, cortar, que estabelece algo de smil entre os dois termos.
Esse tipo aproxima-se mais da idia tradicional que temos do que seja uma
metfora, e muitas teorias contemporneas tomaram-na como referncia, como o caso
da anlise semntica baseada na transferncia de traos, formulada por L. J. Cohen
(1994). O raciocnio realmente muito simples. Vejamos o diagrama utilizado por
vrios autores, apresentado por Eco:
FIGURA 1 Metfora com passagem de espcie para espcie
Fonte: ECO (1991, p.152).
Como vemos, trs termos esto envolvidos no processo, embora haja
somente dois explcitos. H um termo x, denominado metaforizante, um termo y,
denominado metaforizado, e um termo Z, intermedirio, o gnero de referncia
responsvel pela desambiguao. Seguindo esse raciocnio, podemos explicar
expresses como dente de montanha, pois cume e dente so partes do gnero forma
pontiaguda.
A abordagem semntica de L. J. Cohen (1994) muito se assemelha ao
terceiro tipo de metfora aristotlica, haja vista funcionar por meio da comparao de
20
traos semnticos associados aos termos da metfora. Em sua proposta, o autor afirma
que o significado metafrico seria obtido pelo cancelamento de aspectos essenciais do
objeto, quando refletidos nos traos semnticos do significado da palavra. Observemos
o exemplo fornecido pelo autor: As nuvens so feitas de ouro puro3. No exemplo, a
palavra ouro interpretada metaforicamente porque o trao semntico metlico,
propriedade fsica do objeto, neutralizado. Assim, na interpretao haveria um
cancelamento ou perda dos traos semnticos inconsistentes entre os dois termos da
metfora e os traos remanescentes serviriam de base para que ocorresse a similaridade.
Um dos problemas da teoria de transferncia ou cancelamento de traos a
impossibilidade de se saber ao certo quem ganha ou quem perde alguma coisa nesse
processo. Para definir quais propriedades semnticas permanecem ou quais so
eliminadas, teramos que abandonar um modelo semntico de organizao do lxico em
que unidades esto estruturadas de modo hierrquico, mantendo ralaes de
dependncia semntica entre si, e conceber essa operao como orientada para o
universo do discurso.
Por isso, Eco (1991, p.152) prefere falar em vaivm de propriedades, em
vez de transferncia, pois, se tomarmos como exemplo a expresso ela era um
junco, possvel dizer que tanto junco adquire uma propriedade ou trao humano,
quanto moa adquire uma propriedade ou trao vegetal. Em todo caso, os termos em
jogo perdem algumas propriedades semnticas.
A metfora de quarto tipo tambm chamada de analogia, por colocar em
jogo um esquema proporcional envolvendo quatro termos. Enquanto na metfora de trs
termos o raciocnio lgico era A/B = C/B por exemplo, em Joo um palito, Joo est
para corpo delgado, assim como est o palito , na metfora de quatro termos, a relao
passa a ser A/B = C/D. Ou seja, um termo A est para um termo B assim como um
termo C est para um termo D.
A metfora elaborada a partir de uma analogia transforma a frmula A/B =
C/D para chegar expresso C de B que designa A. Porm, as metforas mais
originais so as que se apresentam logo de incio como fuso A e C, silenciando os
termos B e D. Apliquemos a regra ao exemplo de Eco (1991, p. 154): a velhice est
3 The clouds are made of pure gold (Traduo nossa).
21
para a vida assim como o ocaso est para o dia. Dessa maneira, possvel falar em
velhice (A) como o ocaso (C) da vida (B) ou ocaso como velhice do dia (D).
A metfora por analogia permite tambm explicar casos de catacrese, no
sentido estrito, em que um termo metaforizante est para um metaforizado, o qual
inexiste lexicalmente (A/B = C/x). Na catacrese p de mesa, por exemplo, perna (A)
est para o corpo (B) assim como um objeto inominado (x) est para mesa (C). A
similaridade s possvel porque h um quadro de referncia que evidencia o trao ou
propriedade funcional sustentao, comum aos dois termos.
A catacrese, de acordo com Eco (1991), segue o princpio da economia que
governa o esforo de dar nomes apropriados a coisas, idias ou experincias novas.
Ocorre quando novos sentidos so lanados para velhas palavras, devido ausncia de
uma palavra literal correspondente, como as expresses, p da mesa, asa da xcara. Ao
exercer tal funo, a metfora assume o papel da linguagem literal a verdadeira responsvel pela nomeao das coisas, sob essa perspectiva.
A nosso ver, os trs primeiros tipos de metfora so limitados, por
mostrarem somente como a produo e a interpretao metafrica funcionam por meio
da chamada rvore de Porfrio um mecanismo sinedquico lgico de relaes de
hiperonmia e hiponmia. Ademais, no h inovao semntica no uso dessas metforas,
uma vez que no fornecem qualquer informao nova sobre a realidade, pois resultam
de uma simples operao de substituio de termos cujo sucesso consiste na
possibilidade de parfrase da metfora ou, em outras palavras, da reposio do sentido
literal4 da palavra substituta.
Eco (op. cit.) admite a limitao da proposta aristotlica para dar conta do
potencial de significao da metfora na representao da realidade, entretanto,
relativiza sua crtica. Por um lado, o estudioso italiano argumenta que devemos fazer
justia a Aristteles por intuir lucidamente a funo cognoscitiva da metfora por
analogia, visto que esse tipo de metfora difere dos trs primeiros tipos por no ser
apenas enfeite h um aumento do conhecimento das relaes entre as coisas, e, por
isso, aprendemos algo com o esquema proporcional de analogia. A relao analgica
imbricada nessa metfora, diz ele, possibilitou metaforologia compreender a
4 Sobre a distino sentido literal e sentido metafrico, ver captulo III.
22
necessidade de flexibilizar as relaes de semelhana que se estabelecem entre
propriedades semnticas dicionarizadas (lexicais) e propriedades enciclopdicas
(culturais). Por outro lado, Eco adverte que, embora Aristteles defenda que o dom de
saber elaborar boas metforas depende da capacidade de ponderar sobre semelhanas,
ao se estabelecer a relao proporcional de analogia, tanto semelhanas quanto
dessemelhanas podem interferir no processo. Ou seja, em ela um junco, preciso
levar em conta tambm que moa est para a rigidez de um corpo humano, assim como
o junco est para a rigidez de um carvalho, para podermos entender em relao a que
moa e junco so flexveis. Sendo assim, a analogia pode estabelecer-se tambm
mediante considerao de propriedades semnticas opostas.
Na Retrica de Aristteles, dito que as melhores metforas so aquelas que
representam as coisas em ao, e o conhecimento metafrico reflete o conhecimento dos
dinamismos do real. Embora essas asseres paream pobres, Eco defende que nos
bastaria reformul-las, de modo a ampliarmos seu alcance. Ou seja, substituirmos
semelhanas entre as coisas por rede sutil de propores entre unidades culturais,
ou ainda, as melhores metforas so aquelas que representam as coisas em ao por
as melhores metforas so aquelas que mostram a cultura em ao, os prprios
dinamismos da semiose (ECO, 1991, p. 163).
Conquanto reconheamos os mritos apontados por Eco, no que diz respeito
metfora por analogia, evidente o carter restritivo que a concepo aristotlica
confere metfora, uma vez que a delimita ao nvel lexical. Isso porque, nos quatro
tipos, a metfora acontece no nome e a transposio de sentido ocorre por meio do uso
de uma palavra metafrica que toma o lugar de uma palavra no-metafrica possvel de
ser empregada.
Nesse sentido, falar em metfora seria falar no deslocamento ou extenso do
sentido das palavras, um recurso desviante da linguagem literal. Isso implica dizer que,
em vez de atribuir a uma coisa sua denominao usual, ela passa a ser designada por
meio de uma palavra que no a pertence; uma denominao emprestada ou estranha,
na terminologia de Aristteles.
Em termos filosficos, esse modo de entender a metfora reflete uma viso
objetivista da linguagem, herdada do positivismo lgico, na qual as palavras estariam
23
numa relao de correspondncia direta com o mundo, e seus significados seriam
definidos em termos de propriedades inerentes aos objetos. Esta vertente filosfica
assumia que o propsito da linguagem era descrever a realidade literalmente, de modo
que pudesse, por princpio, ser testada e verificada. Uma expresso era considerada
verdadeira se possusse um correspondente material no mundo fsico. Ao relacionar a
significao lingstica ao princpio de verificao emprica, atribuam-se linguagem
os papis de nomear objetos ou eventos do mundo e de expressar relaes lgicas entre
eles. Nesse contexto, a lngua, identificada como uma meta-lngua, no sentido de ser
usada para explicar/refletir o mundo, era concebida como um tipo de clculo lgico. Da
as metforas serem, do ponto de vista descritivo, desvio da linguagem literal elas no possuem valor de verdade, pois no podem ser verificadas empiricamente.
Constatamos, assim, que a principal herana aristotlica foi ter revelado a
funo retrica e ornamental da metfora. Segundo Ricoeur (2000), Aristteles
apresenta a metfora como uma figura da lexis em geral isto , da dico, elocuo e estilo que, quando usada, cumpre o papel de preencher uma lacuna lexical deixada pela tentativa de reelaborar o discurso retrico de persuadir ou agradar, ou dar nome
adequado s coisas novas ou novas idias, ou, ainda, como forma de nomear novas
experincias.
Por conta disso, traou-se, por sculos, a sorte da metfora: ser uma palavra
imprpria, um desvio lexical desse pareamento entre linguagem e mundo, uma maneira
inslita de designar as coisas. Vejamos abaixo, com maiores detalhes, alguns
desdobramentos das idias aristotlicas.
1.2 A TROPOLOGIA
A tropologia surgiu como tentativa de reduzir a Retrica, antes uma arte da
argumentao, a apenas uma de suas partes constitutivas: a elocutio. O modelo da
Retrica antiga constitua-se de cinco partes, todas organizadas a fim de estruturarem o
discurso: a) a inveno (inventio) ou escolha do assunto ou tema a ser abordado; b) a
disposio (dispositio), etapa em que se ordenavam as partes do que dizer; c) a elocuo
(elocutio), a qual representava o tratamento dado expresso lingstica expressiva; d) a
24
memorizao (mnem) ou reteno do discurso a enunciar; e e) a ao (actio) ou modo
como o orador apresenta o discurso ao pblico.
Ao dar relevo expressividade das formas lingsticas, via elocutio, a
Retrica posterior a Aristteles passou da arte de persuadir ou argumentar arte de
enfeitar o discurso, reduzindo o estudo da metfora a uma teoria dos tropos e figuras, de
carter estritamente ornamental e taxionmico (cf. LOPES, 1986). Mas o que seria um
tropo e uma figura para a Retrica?
Fontanier (1968), um dos expoentes da tradio retrica, com sua obra Les
Figures du discours, define tropo como certos sentidos mais ou menos diferentes do
sentido primitivo que oferecem na expresso do pensamento as palavras aplicadas s
novas idias.5 A partir dessa definio, classifica a metfora como tropo de uma
palavra por semelhana, ou seja, a metfora seria um deslocamento e uma ampliao do
sentido de uma palavra cuja propriedade figurativa apresentar um pensamento sob
forma sensvel e mais evidente.
O termo figura outro tomado da tropologia. Angenot a conceitua como
todo fragmento de enunciado6 cuja configurao aparente no est conforme a sua
funo real e que resulta desde logo numa transgresso codificada do prprio cdigo
(fnico, grfico, semntico, sinttico, textual, lgico) (ANGENOT, 1984, p.97).
As duas definies entretecem-se e, por conta disso, comumente
encontramos em muitos trabalhos um termo sendo tomado pelo outro. De qualquer
modo, Fontanier assume que tropos ou figuras so capazes de gerar uma nova
significao para determinada palavra, ao estabelecerem uma relao entre duas idias:
a significao primitiva da palavra emprestada, ou seja, a primeira idia vinculada a esta
palavra de um lado, e de outro o sentido tropolgico substitudo, a nova idia que se
acrescenta a esta palavra.
Ricoeur (2000) lembra que, embora seja em uma palavra apenas que o tropo
consiste, entre duas idias que ele acontece, por transporte de uma outra. Por isso, o
tropo ou a figura de expresso chamada metfora pode, na viso de Fontanier, acontecer
5 FONTANIER apud RICOEUR, 2000, p.83. 6 Em respeito s particularidades de cada autor citado, que no se ocuparam das definies de determinados termos, avisamos que o termo enunciado ser utilizado neste captulo em uma acepo lata, como sinnimo de sentena, orao ou frase, a depender de cada autor.
25
em vrias formas de relao de idias: relao de correlao ou correspondncia,
relao de conexo e relao de semelhana. Essa teoria das relaes leva conhecida
definio de metfora como a capacidade de apresentar uma idia sob o signo de outra
idia mais evidente ou conhecida.
Assim apresentada, como uma relao entre duas idias, a concepo de
metfora defendida por Fontanier aparenta ultrapassar o mbito da palavra. Entretanto,
ao reduzi-la a um tropo de uma nica palavra, o autor acaba por retomar a primazia da
palavra e sufocar o potencial de sentido metafrico contido na definio por ele
proposta.
Em suma, so trs os pressupostos fundamentais caracterizadores do
tratamento retrico atribudo metfora pela tropologia, segundo Ricoeur (2000): a) a
metfora enquanto tropo consiste em uma nica palavra; b) o uso figurado de uma
palavra no comporta nenhuma informao nova, pois que ocorre somente palavra
primitiva uma substituio de idias semelhantes, cuja possibilidade de parfrase da
metfora seria evidncia desse efeito meramente substitutivo; e c) como o tropo nada
ensina, exerce apenas a funo de ornar, enfeitar o discurso.
Diante do exposto acima, constatamos que a concepo de metfora
apresentada pela tropologia, assim como aquela aristotlica, redutora, pois se limita a
propor a classificao dessa figura em relao aos outros tropos ou figuras e demonstrar
sua funo ornamental no discurso. Com isso, deixa de lado a preocupao com os
mecanismos de interpretao e inovao semntica promovidos pela metfora.
1.3 A METFORA COMO COMPARAO E DESVIO
Outro modo de conceber a metfora defini-la como uma comparao
implcita entre dois termos A e B, tomados, de incio, como impropriamente
semelhantes entre si, com supresso da partcula comparativa (como, tal, qual, entre
outras). A propsito, esta concepo ainda se mantm em muitos dos compndios
escolares sobre ensino de lngua materna.
26
De acordo com Lopes (1986), na Retrica antiga, pensava-se que a
comparao fosse uma figura mais clara, aproximvel de um sentido literal ou grau
zero da linguagem, ao passo que a metfora, pela ausncia do termo operador da
comparao, seria mais obscura e estaria mais apta a exprimir o sentido potico do
discurso, dado o seu estranhamento.
Aristteles, na Retrica, faz uma aproximao entre comparao e metfora,
e a faz em favor da metfora. O poder desta sobre aquela reside nas formas de
predicao ser e ser como. A metfora, por abreviar a atribuio (Aquiles um leo, em
vez de Aquiles como um leo), revela a surpresa que a comparao dissipa. Sendo
assim, o que a comparao explicita como que se atirou como um leo, a metfora
transpe para este leo atirou-se (cf. RICOEUR, 2000, p. 82).
Segundo Cohen (1974), em termos lgico-gramaticais, ocorre o seguinte: ao
se eliminar a partcula comparativa (de A como B para A B), viola-se o princpio
lgico da no-contradio que rege a norma lingstica e cujo corolrio proibir a
articulao, em uma mesma construo lingstica, de uma proposio P com sua
contraditria (no-P).
Ora, sabendo que a estrutura lingstica cannica mais utilizada para
expressar uma relao metafrica a atributiva (S P = forma Sujeito + Cpula (ser) +
Atributo), uma metfora como Joo uma raposa quebra o estatuto lgico do
enunciado por eliminar a possibilidade de comparao, pois afirma uma identidade
invlida, em termos lgicos, de que Joo , de fato, uma raposa. Como conseqncia, ao
vetar tal enunciado da norma lingstica, o princpio da no-contradio faz surgir um
desvio da norma, um tropo, uma figura retrica.
Isso equivale a dizer, consoante Lopes (1986), que uma metfora
percebida como um estranhamento, um elemento violador do princpio da no-
contradio que, quando aplicado ao plano do contedo, quebra a coerncia do eixo
sintagmtico da linguagem, ou, se preferirmos, da cadeia linear da fala.
O desvio se interpretaria, em conseqncia, como o resultado da violao de uma norma contextualmente definida, violao essa que originaria a manifestao de uma figura (metassemema ou tropo) que se denuncia no efeito de leitura que o leitor sente como um tpico estranhamento (LOPES, 1986, p.8).
27
Cohen (1974) denomina impertinncia semntica essa violao do cdigo
lingstico provocada pela metfora. A impertinncia, portanto, faz surgir um desvio do
significado tanto no nvel paradigmtico da palavra quanto no nvel sintagmtico da
sentena.
Em outros termos, Cohen (op. cit) defende haver dois momentos na
interpretao de metforas:
a) Percepo, por parte do intrprete, da violao (impertinncia) do
princpio da no-contradio (pertinncia) no eixo sintagmtico da
linguagem;
b) Interpretao corretora, efetuada sobre o eixo paradigmtico, a fim
de encontrar, mnemonicamente, uma expresso cujo sentido
prprio equivalha ao figurado naquele contexto. Este fenmeno
o autor denomina reduo do desvio.
O autor explica que s h desvio a identificao da impertinncia
semntica quando as palavras so tomadas em sentido literal ou quando se realiza uma
leitura literal da sentena. Na metfora citada acima, Joo uma raposa, por exemplo, a
leitura literal faz surgir uma impertinncia semntica devido incoerncia lgica entre
sujeito e predicao. Este , de fato, o desvio do cdigo. A metfora, por outro lado,
responde pela reduo do desvio causado pela leitura literal da sentena.
Em outras palavras, a metfora restabelece a pertinncia semntica do
cdigo lingstico, por meio da leitura da sentena Joo uma raposa no sentido
figurado. Dessa forma, o reconhecimento de uma metfora relaciona-se diretamente ao
grau de desvio que a imagem introduz no uso corrente das palavras, no eixo
sintagmtico.
Uma crtica proposta de Cohen merece ser destacada. Se a metfora
consiste na reduo do desvio semntico, isto , funciona como normalizao da
substituio de um termo ausente, percebido como prprio, por outro, considerado
imprprio, atravs do eixo paradigmtico, temos, alm da comparao, outro fenmeno
presente: a substituio de itens lexicais. Instaura-se novamente, desse modo, a viso
28
substitutiva, na qual a metfora passa a ser uma palavra ou expresso que substitui um
termo literal.
Sendo assim, o quadro terico formulado por Cohen, embora parea
promover o avano da metfora rumo ao nvel da sentena, mantm-se nos limites da
palavra. De fato, como ressalta Ricoeur (2000), o propsito de Cohen demonstrar o
modo como o plano paradigmtico e o sintagmtico complementam-se, de forma que,
se de um lado vemos a atuao da metfora no eixo sintagmtico, do outro, vemos a
impossibilidade de se rejeitar a noo de desvio paradigmtico.
Todavia, notamos o retorno ao primado da palavra, na medida em que Cohen
superestima a primazia do cdigo paradigmtico sobre o nvel sintagmtico da sentena
na reduo do desvio. Em outros termos, ainda no nvel da palavra e no na sentena
que a impertinncia identificada e uma nova pertinncia assegurada pela produo
de um desvio lexical. Se, de fato, as palavras abandonam seu sentido para dar suporte
predicao semntica, o desvio sintagmtico reduzido pelo desvio paradigmtico, e,
dessa maneira, a metfora continua a constituir somente uma violao do cdigo da
lngua e no um fenmeno de ordem sintagmtica, da frase.
Conforme veremos, Black (1962; 1993) prope que o sentido metafrico
deve pertencer a todo enunciado, embora haja uma focalizao sobre uma palavra
denominada metafrica. Visto sob essa tica, a noo de desvio proposta por Cohen
desvincular-se-ia de uma teoria da palavra e reconheceria seu valor em uma teoria
predicativa.
Ricoeur refora a unio necessria entre metfora como palavra e metfora
como sentena no seguinte comentrio:
No h conflito propriamente dito entre a teoria da substituio (ou do desvio) e a teoria da interao; esta descreve a dinmica do enunciado metafrico, e somente ela merece ser denominada uma teoria semntica da metfora. A teoria da substituio descreve o impacto dessa dinmica sobre o cdigo lexical em que l um desvio: ao fazer isso, oferece um equivalente semitico do processo semntico (RICOEUR, 2000, p. 242).
Cohen, entretanto, quando tratou da metfora, parece ter negligenciado o
duplo carter fundador das palavras, isto , na condio de signo, a metfora constitui
29
um valor, uma diferena no cdigo lexical, mas na condio de parte do discurso,
parte de um sentido pertencente a todo enunciado.
A despeito do que foi dito at aqui, h poucos avanos na perspectiva da
metfora como comparao e desvio em relao ao posicionamento da tropologia. Se,
por um lado, Cohen aplica a noo de desvio sobre a cadeia linear da fala e, com isso,
ultrapassa o tratamento taxionmico prprio da retrica, por outro, continua a atribuir
metfora bases puramente semntico-lexicais, como as concepes anteriormente
elencadas.
Depreendemos do exposto at aqui o fato de que uma anlise puramente
estrutural, fundada em itens lexicais ou nas relaes lgicas estabelecidas entre esses
itens em uma sentena, como faz Cohen e antecessores, insuficiente para explicar
outros modos de manifestao da metfora como, por exemplo, no texto e no
discurso , pois desconsidera, dentre outros aspectos, as interferncias contextuais e/ou
culturais na anlise do fenmeno.
1.4 A METFORA E A ANLISE SMICA
O Grupo , nas obras Retrica Geral (1974) e Retrica da Poesia (1977),apresenta outro modo de estudar a metfora: descrever seu mecanismo por meio da
decomposio semntica dos termos envolvidos, deslocando a anlise do nvel da
palavra para o nvel do sema.
Para alcanar esse objetivo a anlise estrutural das figuras de linguagem no
plano semntico da lngua , o grupo toma como ponto de partida a terminologia
proposta por B. Pottier (1964) e A. J. Greimas (1973), fincada em uma semntica
estrutural de linha francesa. Entretanto, vale ressaltar que a utilizao dessa
terminologia pelo Grupo distancia-se da aplicao feita por Pottier (1964), no estudo semntico dos campos lexicais. Este autor limitou-se a elaborar uma terminologia capaz
de dar conta da decomposio semntica de itens lexicais; o trabalho do Grupo , ao contrrio, consiste numa tentativa de realizar uma anlise do significado lingstico
30
alm dos limites de uma semntica de campos lexicais, valendo-se desses conceitos
operacionais. Apresentamos abaixo, as definies de alguns termos centrais da anlise
smica da metfora reformulados pelo Grupo e seguidores.D-se o nome de lexema palavra com estatuto de verbete do dicionrio,
passvel de realizao no discurso. O lexema se sujeita decomposio em traos
mnimos de significao denominados semas. Na compreenso de Bertrand (2003), um
sema uma unidade diferencial, um dos termos de uma estrutura relacional construda
por oposies elementares do tipo vida/morte, cultura/natureza, escuro/claro,
frio/morno/quente, dentre outras, que esto na base de uma configurao elementar de
significao. So de dois tipos: sema nuclear e sema contextual. O primeiro consiste em
um invariante semntico comum a dois lexemas, configurado a partir da apreenso do
objeto ou da percepo; j o segundo um sema varivel que, a depender de cada
contexto particular, do uso, incorpora-se significao. Se tomarmos como exemplos
os lexemas homem e mulher, veremos um ncleo smico composto pelos traos
/animado/ e /humano/, comuns aos dois termos. A esse ncleo, pode-se acrescentar o
trao /sexualidade/, somente em mulher, visto que o termo homem, por ser o termo
genrico, no marcado pelo uso, neutro, no comporta esse trao em seu ncleo, ele
apenas contextual, dentre outros possveis.
medida que um sema contextual passa a ser comum ou recorrente a vrias
unidades, o denominamos de classema (por exemplo, o trao caninidade, em o co
late). Um semema, por outro lado, consiste em um efeito de sentido produzido por um
lexema, quando de sua manifestao em discurso, por meio do conjunto de semas que
ele atualiza, ncleo smico e semas contextuais (BERTRAND, 2003, p.430). Um
semema, portanto, refere-se s acepes (significaes) realizveis ou realizadas de uma
palavra em contexto.
Grosso modo, a idia central da proposta do grupo , em relao metfora, explicar a manipulao dos semas como o mecanismo produtor de figuras de
linguagem, que passam a ser denominadas metboles. Dos tipos de metboles, as
figuras que comportam informao semntica so chamadas de metassememas. As
metforas alocam-se nesse domnio como figuras do plano semntico que modificam o
conjunto de semas do grau zero ou do sentido literal da palavra, para falarmos em
termos tradicionais. H, ainda, na classificao geral das figuras, os metaplasmos, ou
31
figuras que atuam na morfologia, as metataxes ou figuras da sintaxe e os metalogismos
ou figuras que modificam o valor lgico da frase.
Para evitar a polmica a respeito do que seria o grau zero ou o sentido literal
de uma palavra ou expresso lingstica, o Grupo prefere v-lo como uma construo da metalinguagem isto , como o ltimo estgio de decomposio infralingstica do
significado. Conforme assinala Ricoeur (2000), assim como a decomposio do
significante faz aparecer os traos distintivos que no possuem existncia concreta e
independente na linguagem a decomposio do significado faz surgirem os semas,
cuja existncia no pertence ao plano de manifestao do discurso.
Esse deslocamento do item lexical para o sema permite ao Grupo efetivar uma anlise das figuras de carter meramente estrutural, livre do que seria literal ou
metafrico, pois a anlise no se limita mais ao plano lexical manifesto, como faziam as
teorias anteriores, mas sobre essas unidades mnimas de significao. Com isso,
possvel abandonar a anlise do lexema (palavra), propriamente dito, e representar
hierarquicamente uma coleo de semas que, ao serem manipulados e formalizados,
configuram, no nvel propriamente lingstico, o cdigo virtual ou semntico que a
lngua oferece.
Contudo, se assim o for, a anlise smica torna-se, como outras propostas
semnticas, dependente das leis que regem um universo semntico j codificado, cujo
significado figurado encontra-se no no nvel dos efeitos de sentido, mas somente no
arranjo e reorganizao da estrutura smica. Alm disso, conforme argumentaremos no
captulo III, a discusso sobre o que seria sentido literal ou metafrico no se esgota na
excluso de um ou de outro do processo metafrico, como faz o Grupo em sua anlise.
Certamente, a estratgia da analise smica de transformar o grau zero ou
sentido literal em uma construo metalingstica bastante produtiva, em termos de
anlise estrutural da metfora, visto que se alicera sobre um forte argumento, que
podemos formular em uma pergunta: como possvel falar de sentido literal ou
metafrico de um item lexical ou expresso lingstica se no estamos no nvel de
anlise da palavra, mas sim de unidades do contedo, de um nvel infralingstico?
32
Entendemos, entretanto, que h riscos em assumir essa estratgia. Basta
atentarmos para outra suposta vantagem operacional da anlise smica, apontada pelo
Grupo : a possibilidade de se distinguir no discurso figurado duas partes, uma base ou invariante (que no modificada), e outra que sofre desvios retricos, mas que
mesmo assim preserva semas da base, e, por isso, manifesta a um s tempo tanto o grau
zero quanto o grau figurado. Como conseqncia, pressupe-se sempre a existncia de
invariantes na base do lexema, o que torna obrigatria a presena de parte dos semas
constitutivos do lexema empregado na configurao smica da metfora.
Ora, admitir a preservao de uma parte de semas na metfora prever
antecipadamente parte do sentido metafrico que ser manifestado no nvel lingstico,
e isso consiste em sufocar a possibilidade de metforas criativas, ousadas, que surgem
de relaes contextuais nas quais, mesmo que se admita a existncia de semas
invariantes na constituio da metfora, estes podem ser determinados no somente pelo
cdigo virtual da lngua.
Passemos a uma breve descrio do modo como realizada a anlise smica
da metfora na perspectiva do Grupo . Em linhas gerais, feita por meio da decomposio e reorganizao de semas, mais especificamente, por dois tipos de
operao: a supresso ou o acrscimo de semas.
As operaes smicas de adjuno ou supresso conduzem, ento, a dois
tipos de decomposio semntica: o primeiro tipo chamado decomposio de
propriedades empricas ou sobre o mdulo II, por haver um vnculo lgico de
dependncia semntica entre uma classe ou termo geral e suas subclasses. Se tomarmos
como exemplo a representao mental da classe de objetos rvore, veremos uma relao
entre uma rvore e suas partes, ou a equivalncia entre uma proposio como x uma
rvore e outras como x tem folhas, x tem razes e x tem tronco, cujos
significados incluem a proposio x uma rvore. O segundo tipo denominado
decomposio de propriedades conceituais ou sobre o mdulo . Ou seja, se x uma rvore, ento ou um lamo, ou um carvalho. Neste caso, o conceito rvore
considerado como uma classe de subclasse de certo modo intercambiveis, existentes
virtualmente no dicionrio: tal classe compreende as subclasses lamo, carvalho,
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etc., sendo que dado individuo da classe pertence a uma ou outra dessas subclasses,
mutuamente exclusivas (GRUPO , 1977, p. 46-47).A aplicao desses dois tipos de decomposio metfora tem como
resultado evidente sua reduo a um processo sinedquico. A adjuno de semas origina
uma sindoque particularizadora do tipo II, em que se parte de um lexema geral para o
particular (dizer lmina por faca), e a sindoque particularizadora do tipo (dizer peixeira por faca). A supresso, por outro lado, gera a sindoque generalizadora do tipo
, que parte do particular para o geral (dizer os mortais por homens ou batimento por corao) e a sindoque generalizadora do tipo II (dizer aceitarei torta, como
sobremesa, tomada como por um pedao de torta).
A reduo da metfora sindoque permite ao Grupo assegurar o carter homogneo do sistema semntico, visto que os fatores contextuais permanecem
extrnsecos e a hierarquia entre os elementos constituintes mantida. Permite, ainda, a
aplicabilidade de conceitos operatrios como desvio, supresso e adjuno a fim de
conservar uma base de semas essenciais cuja supresso tornaria o discurso
incompreensvel (cf. RICOEUR, 2000, p. 252-256, para uma discusso aprofundada).
A principal crtica a ser feita ao Grupo diz respeito ao fato de que o mecanismo bsico de supresso e adjuno de semas restringe seu campo de atuao a
um universo semntico composto de unidades j previsveis pelo cdigo e cujos fatores
contextuais permanecem fora da anlise, como nas teorias expostas anteriormente. A
metfora, assim, resume-se ao produto de duas sindoques, que, a nosso ver, no
seno um tipo de relao metonmica cuja ao limita-se identificao de relaes de
dependncia semntica entre os termos envolvidos em um sistema j codificado. Os
semas so apenas recuperados e reorganizados, no h inovao semntica.
Uma incongruncia do modelo smico, apontada por Ricoeur (2000), reside
no fato de se buscar a metfora entre os metassememas, o que equivale a dizer, ainda
nos limites da palavra, como na retrica clssica. Como os metassememas operam em
um nvel semntico e as metataxes em um nvel sinttico, somente as metataxes
gerariam efeitos de sentido sobre o eixo sintagmtico. Se isto realmente acontece,
estamos impossibilitados de vermos o funcionamento da metfora ligado ao carter
predicativo dos enunciados.
34
Outra crtica lanada por Ricoeur diz respeito distino entre metfora e
polissemia:
A anlise smica produz diretamente uma teoria da polissemia, e somente indiretamente uma teoria da metfora, na medida em que a polissemia confirma a estrutura aberta das palavras e sua aptido para adquirir novas significaes sem perder as antigas. Essa estrutura aberta somente a condio da metfora, no ainda a razo de sua produo, pois necessrio um acontecimento do discurso para que apaream, com o predicado impertinente, valores fora do cdigo que a polissemia anterior no poderia conter por si s (RICOEUR, 2000, p. 262).
As crticas apontadas por Ricoeur so pertinentes, todavia, limitam-se ao
fenmeno metafrico quando da passagem do item lexical para a sentena. Iremos mais
alm. preciso destacar o fato de que no h metfora no dicionrio, uma vez que o
trao inovador encontra-se fora do cdigo lexical e tambm da estrutura sentencial.
Portanto, a chamada metfora criativa ou ousada, que encontraremos na metaforizao
textual, desafia a analise smica, pois preciso evocar um sistema de referncias ad hoc
que comea a existir somente a partir da dinmica do contexto em que a metfora est
inserida. Impor metfora a existncia de um sema comum j presente, mesmo que em
um nvel virtual, destitu-la de seu carter inovador, criativo.
Compreendemos agora por que o Grupo necessita subordinar a metfora sindoque; esta, de fato, a figura adequada a um universo de significao j
codificado, pois constitui um mecanismo de ao meramente subtrativo. Ao mesmo
tempo, por meio dessa subordinao, o grupo exime-se da responsabilidade de assumir
uma definio de sentido literal ou metafrico.
A anlise smica do Grupo no traz nenhuma mudana essencial na teoria da metfora. Sua originalidade consiste apenas em propor um nvel infralingstico de
anlise em que h um alto grau de tecnicidade na descrio do funcionamento das
figuras, atravs das operaes de supresso e adjuno de semas em campos semnticos
j lexicalizados.
H, com efeito, na terminologia e na descrio das figuras realizadas pelo
Grupo , um formalismo radical presente que impede a verificao das mais diversas manifestaes discursivas da metfora. No entanto, embora aceitemos as restries
feitas anlise smica discutidas aqui, autores como Bertrand (2003) e Eco (1991;
35
2004) relativizam esse formalismo terminolgico, ao adaptarem alguns termos centrais
da anlise smica7 como semas, sememas, narcotizao/pertinizao de semas,
isotopia e inferncia abdutiva em sua semitica literria e nos seus estudos a respeito
da metfora, respectivamente.
Em nosso trabalho, lanaremos mo desse mesmo expediente. Ou seja,
utilizaremos tais termos como conceitos operacionais na nossa anlise da metaforizao
textual. Obviamente, com as devidas adaptaes, de modo que a utilizao desses
termos no signifique uma filiao ao estruturalismo do Grupo . Consideramos que nenhum trabalho em Lingstica seria levado a cabo se tivssemos que definir a que
teoria estamos filiados cada vez que utilizssemos termos de significao ampla como
semntica ou trao semntico, enunciado, frase, discurso, domnio conceitual,
esquema, dentre outros.
1.5 A METFORA E A METONMIA: A SELEO E A COMBINAO NOS
DOIS EIXOS DA LINGUAGEM
Digna de nota a concepo de metfora e metonmia de Roman Jakobson
(1995), tambm alicerada no estruturalismo saussuriano. Ao reelaborar os conceitos de
sintagma e paradigma, que Saussure j havia parcialmente identificado, Jakobson
entendeu de maneira engenhosa que todos os atos lingsticos se baseiam na capacidade
de seleo e combinao.
Na seleo (eixo paradigmtico), uma palavra se relaciona
mnemonicamente a outras pertencentes a um mesmo sistema lingstico em funo da
similitude. Na combinao (eixo sintagmtico), por outro lado, uma palavra se relaciona
com a seguinte em funo da contigidade.
Por meio desse raciocnio, Jakobson concebe a metfora e a metonmia
como processos gerais de manifestao do fenmeno lingstico, situando-as nos eixos
de seleo e combinao, respectivamente. Essa bipartio implica uma reduo do
7 Na verdade, os termos utilizados resultam de uma mescla da terminologia de outros autores da semitica como A. J. Greimas e C. S Pierce.
36
quadro retrico de classificao das figuras proposto tanto pela tropologia quanto pela
anlise smica, sobretudo na distino entre sindoque e metonmia, na qual a primeira
se incorpora segunda.
A metonmia passa a ser uma figura fundada na relao de contigidade
entre um termo literal e ou figurativo. Por exemplo, Ele ganha o po com o suor de seu
rosto substitui Ele ganha o po com um trabalho que provoca o suor de seu rosto.
Ocorre, como podemos ver, uma relao sintagmtica de subtrao de termos efetivada
na cadeia linear da mensagem, in prsentia.
A metfora, ao contrrio, consiste em uma figura na qual h uma
substituio de termos em um nvel paradigmtico, com elementos do cdigo in
absentia. Selecionam-se termos alternativos cuja substituio permite estabelecer uma
similitude semntica encontrada na virtualidade do cdigo. Na metfora Joo um anjo,
por exemplo, possvel selecionar, do inventrio semntico do cdigo, um termo como
bom ou puro, que traduziria a semelhana entre Joo e anjo.
Apesar da simplicidade do mecanismo bipolar metafrico/metonmico
proposto por Jakobson e da sua generalizao e aplicao a uma gama de fenmenos da
linguagem, Ricoeur (2000) aponta as seguintes limitaes: a) a proposta elimina o
carter predicativo da metfora, pois o processo metafrico continua a ser, como na
retrica, a substituio paradigmtica de um termo por outro termo e b) a seleo de
termos opera apenas entre entidades associadas no cdigo. Contudo, do lado das
ligaes sintagmticas inslitas, das combinaes novas e puramente contextuais que
necessrio procurar o segredo da metfora, arremata o autor (RICOEUR, 2000, p. 276-
278).
Por conta disso, retomamos a crtica dirigida ao Grupo , se no seria a metonmia, mais que a metfora, o verdadeiro processo de substituio de nomes, uma
vez que a metfora pe em jogo a dinmica do enunciado inteiro, ao ser detectada como
um estranhamento semntico na sentena; enquanto a palavra que forma uma
metonmia, de um modo geral, no quebra a coerncia semntica do enunciado, pois que
a identidade semntica baseia-se em uma relao de incluso de classes.
De fato, o desafio das propostas nominalistas da metfora at aqui
analisadas ultrapassar os limites de um universo lingstico j atualizado no momento
37
da interpretao, j que em uma metfora criativa, engendrada pelo texto, a seleo
livre, resulta de uma combinao indita definida pelo contexto, distinta das
combinaes pr-configuradas do cdigo.
1.6 A SEMNTICA DA METFORA DE ULLMANN
Ullmann (1964) outro autor clssico aliado a uma perspectiva semntico-
nominalista, assim como aqueles discutidos anteriormente. Na seo sobre metfora, de
sua obra Semntica, declara que a estrutura bsica da metfora muito simples. H
sempre dois termos presentes. A coisa de que falamos e aquilo com que a estamos a
comparar (ULLMAN, 1964, p.442). Influenciado pela terminologia clssica de A. I.
Richards (1936)8, o semanticista afirma que a semelhana resultante da comparao
entre teor (coisa sobre a qual falamos) e veculo (aquilo com que a estamos
comparando) pode ser de duas espcies: objetiva quando se chama, por exemplo, crista
ao topo de uma montanha, por se parecer com a crista de um animal ou emotiva quando
falamos amargo contratempo, por semelhana ao sabor amargo.
O autor menciona ainda que um fator importante para a eficcia de uma
metfora a distncia semntica entre os termos. Quanto maior for a distncia
semntica entre teor e veculo, maior ser a expressividade da metfora. Desse modo, ao
comparar uma flor a uma mulher, a disparidade semntica aumenta a tenso metafrica,
ao passo que a comparao de uma flor com uma rosa resulta em perda de
expressividade.
Outro ponto importante nos trabalhos de Ullmann a relao entre metfora
e polissemia. Para estabelecer tal relao, o autor parte de uma semntica lexicalista, a
qual elege a palavra, dentre as estruturas da lngua (fonema, morfema, palavra e frase),
como aquela portadora de sentido, a definidora do nvel lexical.
Na opinio de Ricoeur (2000), Ullmann defende o ponto de vista de que
as palavras possuem significado prprio, um hard core independente do contexto em
8 Veja detalhes sobre as idias de I. A. Richards no captulo II.
38
que se encontram. Ao tomar como base a dicotomia saussuriana significante-
significado, o semanticista define o significado de uma palavra como uma relao
recproca e reversvel entre o nome e o sentido.
Como a relao nome-sentido no uma relao termo a termo, tem-se um
problema: se considerarmos fenmenos lexicais como a sinonmia, a homonmia e a
polissemia, veremos que para um sentido pode haver mais de um nome, ou para um
nome pode haver mais de um sentido. Para definir, ento, qual tipo de fenmeno
semntico se manifesta, Ullmann incorpora a essa relao um campo semntico
associativo que faz atuar relaes de semelhana e contigidade entre nomes e sentidos,
e, assim, pode definir as mudanas de sentido decorrentes dessas associaes.
Ricoeur cita o arremate de Ullmann a favor de um sistema puramente
lexical, responsvel pela mudana de sentido: quer se trate de preencher uma lacuna
autntica, de evitar uma palavra-tabu, de dar livre curso s emoes ou a uma
necessidade de expressividade, os campos associativos que forneceram a matria
primeira da inovao (RICOEUR, 2000, p. 184).
Se observarmos atentamente o posicionamento dos outros autores
apresentados anteriormente, veremos que essa idia no exclusiva de Ullmann, como
afirma Ricoeur. Todos, ao que parece, tentam manter a informao contextual fora de
suas anlises sobre metfora, pois, de modo contrrio, perderiam o domnio sobre o
significado lexical.
Em relao polissemia, fica fcil defini-la sob esse aspecto, uma vez que
uma palavra pode receber diferentes acepes conforme o contexto, sem perder sua
identidade ( diferena da homonmia). o caso do termo cabea em que, a despeito
dos vrios contextos de uso, possvel, devido ao campo associativo, reunir traos
semnticos comuns a todas as acepes (como, por exemplo, o trao extremidade) e
recuperar o sentido virginal da palavra.
Uma dificuldade surge, todavia, em relao metfora. Defini-la como uma
mudana de sentido das palavras, legitimada por uma semntica descritiva fundada
por relaes semnticas dentro de um campo associativo, como quer Ullmann, acaba
por confin-la novamente ao espao da pura denominao.
39
Da dependncia de Ullmann (1964) a um sistema semntico rgido e
estruturado em campos de associao de itens lexicais, resultam quatro tipos de
metfora: a) antropomrficas, em que h transferncia de partes do corpo humano para
nomes inanimados. So exemplos pulmo da cidade e fronte da colina9; b) metforas
animais, nas quais imagens do reino animal aplicam-se a plantas, objetos ou homens,
por exemplo, barba-de-cabra (planta), co (arma de fogo) e porco (homem); c)
metforas que traduzem experincias abstratas em termos concretos10, como, por
exemplo, a expresso em ingls to hold the spotlight (estar no foco das atenes,
relacionada ao termo luz), ou, ainda, o relojoeiro e calvo coveiro relacionadas ao
tempo; por fim, d) metforas sinestsicas, tipo comum de metforas, muito utilizadas
como recurso no estilo literrio, baseiam-se na transposio de termos relacionados aos
cinco sentidos. Cores berrantes, cheiro doce e dor aguda so alguns exemplos.
Ricoeur destaca que a metfora, vista sob uma semntica da palavra, nada
mais faz do que enumerar suas espcies:
O fio condutor ainda a associao; os inumerveis emprstimos que a metfora pe em jogo deixam-se, com efeito, referir a grandes classes que se regram sobre as associaes mais tpicas, isto , as mais usuais, no somente de um sentido a um sentido, mas de um domnio de sentido, por exemplo, o corpo humano, a outro domnio de sentido, por exemplo, as coisas fsicas (RICOEUR, 2000, p. 187).
As asseres de Ullmann a respeito da metfora resvalam nos limites de uma
teoria do signo, nos moldes saussurianos, cujo funcionamento expurga a relao com a
realidade extralingstica. No podemos descartar o mecanismo contextual quando a
relao denotativa nome-coisa posta prova no discurso.
9 Giambattista Vico, filsofo italiano do sculo XVIII, j identificava o corpo humano como fonte de metforas em sua obra Scienza nuova. Vico foi talvez o primeiro filsofo a atribuir um carter metafrico linguagem em geral, e inclusive s prprias coisas expressas na linguagem, as quais seriam criadas a partir de relaes estabelecidas pelo homem. Na Cincia Nova [1725], ele afirma que o mundo de uma dada nao instaurado atravs de uma atividade criativa na qual os homens transferem caractersticas suas para as coisas. 10 Aqui, a transferncia metafrica restrita aos nomes, visualizao de imagens, diferentemente da perspectiva experiencialista de Lakoff & Johnson (1980), na qual a metfora construda no por nomes, mas por mapeamentos entre domnios conceituais concretos e abstratos.
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Uma inovao semntica uma maneira de responder de modo criativo a uma questo posta pelas coisas; em certa situao do discurso, em dado meio social e em um momento preciso, alguma coisa demanda ser dita que exige um trabalho de fala, um trabalho de fala sobre a lngua, que afronta as palavras e as coisas [...] Toda mudana implica o debate inteiro do homem falante e do mundo (RICOEUR, 2000, p. 194-195).
Convm apontarmos outras lacunas na proposta de Ullmann. De incio, o
tratamento dado ao fenmeno sob o vis de uma semntica lexical, taxionmica, restrita
palavra; em seguida, a afirmao de que a similitude sempre o resultado da
comparao entre dois termos. Como veremos no nosso estudo, nem sempre a relao
metafrica se estabelece na presena explcita de dois itens lexicais (teor e veculo
metafrico) na superfcie do texto e muitas vezes, como o caso da metaforizao
textual, um termo pode metaforizar no somente outro termo, mas enunciados,
pargrafos ou um texto inteiro. Alis, a relao metafrica pode, ainda, se configurar na
mente do leitor, cognitivamente, sem estar necessariamente explicitada na superfcie do
texto.
No que diz respeito ao critrio da distncia entre os termos interferir na
fora da metfora (quanto maior a disparidade semntica entre os termos maior a
expressividade da metfora), preferimos eliminar a existncia de uma regra estvel.
Somos da opinio de que a expressividade ou criatividade de uma metfora vincula-se
sua manifestao em um determinado contexto. Em outras palavras, medida que um
determinado contexto configurado, faz-se necessrio construir uma enciclopdia ad
hoc, na qual os termos em jogo so enriquecidos semanticamente durante a
interpretao.
Da Eco defender a assertiva de que no existe algoritmo para a metfora
[...] o xito da metfora funo do formato sociocultural da enciclopdia dos sujeitos
interpretantes (ECO, 1991, p. 191).
esse rico tecido cultural, j organizado em redes de interpretantes, que decide as semelhanas e dessemelhanas das propriedades fundadoras de uma metfora, ao mesmo tempo em que aproveita a produo e interpretao metafrica para reestruturar novas redes de semelhanas e dessemelhanas (Eco, 1991, p.108).
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Este ponto, alis, constitui o mecanismo basilar da metaforizao textual e
radica a nossa tese. Na metaforizao, no h como se estabelecer a priori quais traos
conceituais definem a relao metafrica, pois a semelhana em jogo construda
pontualmente, na leitura do texto, e institui um ganho semntico sempre novo,
resultante uma nova descoberta dentro do universo das representaes.
1.7 O LUGAR DA PALAVRA NO PROCESSO METAFRICO
No cmputo geral, este captulo resume-se a duas asseres centrais: a) as
teorias mantm, no tratamento da metfora, a palavra como unidade de anlise, bem
como se valem da relao semntico-lexical para limitar seu significado, e, por isso, so
essencialmente nominalistas e b) as teorias manifestam um formalismo estrutural, que
oprime a considerao pelos aspectos scio-culturais no tratamento da metfora. Com
isso, ficam amputadas para fornecer uma explicao satisfatria dos mecanismos de
interpretao metafrica, uma vez que somente a anlise de palavras ou sentenas
metafricas no pode ser aplicada ao texto, onde tem lugar uma pluralidade de sentidos
e manifestaes discursivas, das quais a metfora parte integrante.
Vale salientar o fato de que, com o surgimento de novas teorias da metfora,
principalmente aquelas cognitivistas, muito se tem criticado a viso nominalista
tradicional, pelo fato desta circunscrever o jogo metafrico a uma semntica lexical.
Nas concepes elencadas neste captulo, h, de fato, uma demasiada valorizao da
palavra. As fronteiras do nome so os limites da significao metafrica. Como
conseqncia, as relaes de sentido que envolvem toda a cadeia sintagmtica do
enunciado ou sentena so preteridas quelas limitadas a uma substituio
paradigmtica. Em outras palavras, a interao sintagmtica entre os termos do
enunciado, capaz de revelar a metfora, somente aparente.
Ricoeur (2000), na sua releitura crtica da obra de Aristteles, enfatiza que
esto no prprio discurso do filsofo os fundamentos para se estabelecer uma teoria da
tenso que supera a teoria da substituio. A tenso encontra-se no relacionamento
predicativo que a metfora mantm, ao fazer a ultrapassagem da lexis para chegar
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frase, ao enunciado, ao discurso. Porm, faltou a Aristteles aprofundar essa questo, e,
aos seus seguidores, explicitar o modo como ocorre esse processo.
Contudo, em vez de serem abandonadas, as teorias da metfora-palavra
devem ser ampliadas, na medida em que, constituindo ou no um desvio da
denominao ou uma transferncia de traos semnticos entre dois termos em
comparao, da palavra que partiro as teorias da metfora/sentena. Ou seja, a
palavra permanecer como transportadora do sentido metafrico, tambm, em uma
teoria da predicao.
Alis, medida que a metfora desloca-se da frase para o texto/discurso, a
palavra continuar sendo, em ltima instncia, o suporte do efeito de sentido metafrico
cujo papel encarnar, tambm no nvel discursivo, uma identidade semntica. a partir
do encadeamento de figuras do plano da expresso que se construir a metfora no
texto. No entanto, a dinmica discursiva do texto esvanece de tal modo os limites da
palavra que o sentido metafrico j no pode ser encontrado em um s lugar, seno no
contnuo da significao textual.
Por isso, se quisermos alcanar o espao do texto/discurso lugar de
manifestao da metaforizao , devemos, a seguir, deslocar a metfora de seu estatuto
lexical, de palavra, para o mbito da sentena, e confirmar, por ora, o enunciado como o
meio ou contexto em que tem lugar a transposio de sentido.
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CAPTULO 2
A METFORA NO NVEL DA SENTENA
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta: trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
Veremos, a partir de agora, como ocorre o deslocamento da metfora do
nvel da palavra para o nvel da sentena, baseados inicialmente na distino fecunda de
Benveniste entre Semitica e Semntica. Em seguida, apresentaremos com brevidade a
terminologia clssica aplicada metfora de A. I. Richards, e analisaremos a teoria da
interao de Max Black, que advoga a favor no de um sentido metafrico resultante da
transferncia de sentido entre as palavras, mas da tenso entre os termos da estrutura
sentencial, responsvel pela criao de um sentido metafrico original. A discusso
segue com a pragmtica da metfora, de cunho lgico-sentencial, proposta de incio por
Grice e Searle, e com a teoria da relevncia de Sperber e Wilson, uma ampliao do
modelo pragmtico tradicional. Ao final, abriremos uma seo para comentar as
limitaes de uma metfora-sentena e a necessidade de um novo deslocamento para o
mbito do texto, ou do prprio discurso.
2.1 A METFORA ENTRE A PALAVRA E A SENTENA: OS PLANOS
SEMITICO E SEMNTICO DE BENVENISTE
Benveniste no foi um estudioso da metfora. Sua incluso neste trabalho
deve-se reflexo feita por Ricoeur (2000) sobre suas idias, mais precisamente
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dicotomia plano semitico / plano semntico da lngua, estendida, aqui, ao estudo da
metfora.
Benveniste (1988) parte da idia de que a lngua, como sist