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ESCOLA SECUNDÁRIA PROF. NORONHA FEIO TESTE DE AVALIAÇÃO DE PORTUGUÊS – 10º ANO Lê o seguinte texto com muita atenção. Querida Dona Felisbela 1 5 10 15 20 25 30 35 40 Bateu à porta devagarinho. Tocou uma vez, quase a medo, e esperou muito composta. Como quem sabe que vai ser vista à lupa antes de ser atendida. Espreitei pela lupa minúscula da porta e abri. – Bom dia. Não me conhece mas disseram-me que me podia ajudar. Não sei ler nem escrever e gostava de aprender. Tinha acabado de me levantar da cama, não conhecia aquela senhora baixinha, de cabelos brancos e sorriso infantil, não consegui fixar imediatamente o nome e fiquei ali de porta aberta sem saber bem o que fazer. Convidei-a a entrar e a sentar-se. Não me lembro exactamente em que mês ou ano isto aconteceu, mas sei perfeitamente quando é que ela começou a fazer parte da minha vida. Felisbela Simas apresentou-se de forma muito delicada, sentada na beirinha da cadeira, as pernas recolhidas para trás e ligeiramente inclinadas sobre o lado (como antigamente se ensinava às senhoras), a carteira pousada no colo e as mãos firmes, entrelaçadas na alça. Tinha sessenta e cinco anos, dois filhos homens, dois netos verdadeiros e outro como se fosse e um marido que, embora morto, permanecia vivo no seu coração. Quando falou nele, não pôde conter as lágrimas e foi aquele gesto de avozinha querida que, quando fala do falecido, tira os óculos para limpar o canto dos olhos que me comoveu para sempre. Não me conhecia, nunca nos tínhamos visto e eu era, na altura, pouco mais velha que os seus próprios netos, mas, mesmo assim, a Dona Felisbela não se importou nada que a visse chorar. A única coisa que verdadeiramente a consumia era ter atravessado uma vida inteira sem saber ler nem escrever e achar que lhe podia faltar o tempo para aprender. Disse-lhe que sim, que a ensinava com muito gosto e combinámos um calendário escolar. A primeira aula ficou marcada para a manhã seguinte. (...) No dia seguinte, a campainha tocou à hora combinada e Dona Felisbela entrou com um sorriso rasgado e o ar mais feliz que eu jamais vi alguém ter. Numa pasta, novinha em folha, trazia um caderno, um lápis, afia, borracha e mata-borrão. Lembro-me do mata-borrão. (...) À medida que o tempo passava, fui conhecendo melhor a Dona Felisbela. Entre ditados, cópias e palavras difíceis, pousava o lápis e, num vagar de avó, contava-me histórias da sua vida. Ria, chorava e voltava a sorrir com uma facilidade extraordinária. Limpava as lágrimas, pedia desculpas envergonhada e alisava as folhas do caderno com o mesmo ar infantil com que se apresentou no primeiro dia. (...) Contava-me, então, os expedientes que usava para que ninguém desconfiasse que não tinha ido à escola. – Quando precisava de apanhar um autocarro, fingia que me tinha esquecido dos óculos em casa e pedia às pessoas que estavam na paragem que me dissessem para onde iam os autocarros. No banco e nas repartições públicas, iludiu a questão aprendendo a assinar o seu próprio nome. Trazia na carteira um cartão onde alguém desenhara o seu nome numa letra impecável que ela, secreta e incessantemente, copiava até sentir que os rabiscos se pareciam. Não conseguia fazê-lo de cor, mas no dia em que tinha que levantar o cheque da reforma levantava-se mais cedo e treinava-se às escondidas. Dona Felisbela era uma mulher profundamente generosa e atenta aos outros. (...) As horas que passámos juntas a fazer cópias e ditados foram muito mais do que simples aulas de Português. Foram lições de vida onde, em cada dia, a Dona Felisbela me ensinou a conjugar melhor o verbo amar. Laurinda Alves, in revista Pública, 19 de Setembro de 1999 (texto com supressões)

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ESCOLA SECUNDÁRIA PROF. NORONHA FEIO TESTE DE AVALIAÇÃO DE PORTUGUÊS – 10º ANO

Lê o seguinte texto com muita atenção.

Querida Dona Felisbela

1 5

10

15

20

25

30

35

40

Bateu à porta devagarinho. Tocou uma vez, quase a medo, e esperou muito composta. Como quem sabe que vai ser vista à lupa antes de ser atendida. Espreitei pela lupa minúscula da porta e abri.

– Bom dia. Não me conhece mas disseram-me que me podia ajudar. Não sei ler nem escrever e gostava de aprender.

Tinha acabado de me levantar da cama, não conhecia aquela senhora baixinha, de cabelos brancos e sorriso infantil, não consegui fixar imediatamente o nome e fiquei ali de porta aberta sem saber bem o que fazer. Convidei-a a entrar e a sentar-se. Não me lembro exactamente em que mês ou ano isto aconteceu, mas sei perfeitamente quando é que ela começou a fazer parte da minha vida.

Felisbela Simas apresentou-se de forma muito delicada, sentada na beirinha da cadeira, as pernas recolhidas para trás e ligeiramente inclinadas sobre o lado (como antigamente se ensinava às senhoras), a carteira pousada no colo e as mãos firmes, entrelaçadas na alça.

Tinha sessenta e cinco anos, dois filhos homens, dois netos verdadeiros e outro como se fosse e um marido que, embora morto, permanecia vivo no seu coração. Quando falou nele, não pôde conter as lágrimas e foi aquele gesto de avozinha querida que, quando fala do falecido, tira os óculos para limpar o canto dos olhos que me comoveu para sempre.

Não me conhecia, nunca nos tínhamos visto e eu era, na altura, pouco mais velha que os seus próprios netos, mas, mesmo assim, a Dona Felisbela não se importou nada que a visse chorar.

A única coisa que verdadeiramente a consumia era ter atravessado uma vida inteira sem saber ler nem escrever e achar que lhe podia faltar o tempo para aprender.

Disse-lhe que sim, que a ensinava com muito gosto e combinámos um calendário escolar. A primeira aula ficou marcada para a manhã seguinte. (...)

No dia seguinte, a campainha tocou à hora combinada e Dona Felisbela entrou com um sorriso rasgado e o ar mais feliz que eu jamais vi alguém ter. Numa pasta, novinha em folha, trazia um caderno, um lápis, afia, borracha e mata-borrão. Lembro-me do mata-borrão. (...)

À medida que o tempo passava, fui conhecendo melhor a Dona Felisbela. Entre ditados, cópias e palavras difíceis, pousava o lápis e, num vagar de avó, contava-me histórias da sua vida. Ria, chorava e voltava a sorrir com uma facilidade extraordinária. Limpava as lágrimas, pedia desculpas envergonhada e alisava as folhas do caderno com o mesmo ar infantil com que se apresentou no primeiro dia. (...)

Contava-me, então, os expedientes que usava para que ninguém desconfiasse que não tinha ido à escola.

– Quando precisava de apanhar um autocarro, fingia que me tinha esquecido dos óculos em casa e pedia às pessoas que estavam na paragem que me dissessem para onde iam os autocarros.

No banco e nas repartições públicas, iludiu a questão aprendendo a assinar o seu próprio nome. Trazia na carteira um cartão onde alguém desenhara o seu nome numa letra impecável que ela, secreta e incessantemente, copiava até sentir que os rabiscos se pareciam. Não conseguia fazê-lo de cor, mas no dia em que tinha que levantar o cheque da reforma levantava-se mais cedo e treinava-se às escondidas.

Dona Felisbela era uma mulher profundamente generosa e atenta aos outros. (...) As horas que passámos juntas a fazer cópias e ditados foram muito mais do que simples aulas de Português. Foram lições de vida onde, em cada dia, a Dona Felisbela me ensinou a conjugar melhor o verbo amar.

Laurinda Alves, in revista Pública, 19 de Setembro de 1999 (texto com supressões)

Page 2: teste_cronica Dona Felisberta.pdf

Depois de teres lido o texto com atenção, responde com clareza e correcção ao questionário.

Grupo I

1. Antes do episódio relatado, Dona Felisbela e a autora desta crónica não se conheciam.

1.1. Explicita como é que este facto se reflecte na forma como Dona

Felisbela bate à porta e na forma como é recebida pela cronista. 2. “Como quem sabe que vai ser vista à lupa antes de ser atendida” [linhas 1-2]

2.1. Explica por palavras tuas o sentido da expressão sublinhada.

3. “Felisbela Simas apresentou-se de forma muito delicada, sentada na

beirinha da cadeira, as pernas recolhidas para trás e ligeiramente inclinadas sobre o lado (como antigamente se ensinava às senhoras), a carteira pousada no colo e as mãos firmes, entrelaçadas na alça.” [linhas 09-11]

3.1. Interpreta o significado da postura de Dona Felisbela.

4. A autora comoveu-se com o facto de Dona Felisbela ter chorado, quando

falou do falecido marido.

4.1. Explica por que motivo a autora se comoveu. 5. Embora fosse já avó, Felisbela Simas tinha, frequentemente, atitudes de

criança.

5.1. Transcreve do texto dois fragmentos que o provem. 6. Esta avó servia-se de vários expedientes para iludir o seu analfabetismo.

6.1. Indica-os, resumidamente.

Page 3: teste_cronica Dona Felisberta.pdf

Grupo II

1. “Limpava as lágrimas, pedia desculpas envergonhada e alisava as folhas do caderno...” [linhas 27-29]

1.1. Indica em que tempo, modo e pessoa se encontram as três formas verbais presentes neste excerto.

1.2. Reescreve a frase, transformando-a em três ordens dadas a Dona Felisbela.

1.3.. Classifica quanto ao processo de formação a palavra “envergonhada”.

2. “Quando precisava de apanhar um autocarro, fingia que me tinha esquecido dos óculos em casa...” [linhas 32-33]

2.1. Escreve uma frase em que a palavra sublinhada apresente outro significado e pertença a uma classe gramatical diferente.

2.1.1. Diz como se designa este processo de enriquecimento do léxico em que uma palavra muda de classe sem sofrer alteração da forma.

3. Dona Felisbela sentia-se feliz. Ela estava a aprender a ler.

3.1. Transforma as frases simples anteriores numa frase complexa que exprima uma ideia de causa.

Grupo III

1. Imagina que, enquanto delegado(a) de turma, desejas organizar uma visita de estudo às instalações do jornal Público, no âmbito do estudo do texto jornalístico, que está a ser desenvolvido na disciplina de Português.

1.1. De acordo com as regras que aprendeste, redige um requerimento ao Presidente do Conselho Executivo, solicitando a autorização para essa visita.

Cotações Grupo I

1.1.

2.1.

3.1

4.1.

5.1.

6.1 Grupo II

1.1.

1.2.

1.3.

2.1.

2.1.1

3.1. Grupo III

1. Total

20 15 10 20 10 15 10 7,5 7,5 7,5 7,5 10 60 200