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Rev Port Pneumol. 2012;18(4):188---189 www.revportpneumol.org COMENTÁRIO Testes de sensibilidade à pirazinamida em todos os isolados do complexo Mycobacterium tuberculosis --- uma análise crítica Pyrazinamide susceptibility testing in all isolates of the Mycobacterium tuberculosis complex --- a critical analysis J. Cunha Laboratório de Micobacteriologia do Centro de Diagnóstico Pneumológico do Porto, Administrac ¸ão Regional de Saúde do Norte, Porto, Portugal O reconhecimento, pela Organizac ¸ão Mundial da Saúde (OMS), em 1950, do risco que constituía a tuberculose bovina para a saúde pública, levou à implementac ¸ão por parte dos governos de medidas de controlo que compreendiam entre outras, a pasteurizac ¸ão do leite, a inspecc ¸ão sanitária rigo- rosa das carcac ¸as nos matadouros, o abate de bovinos com testes tuberculínicos positivos e a restric ¸ão da circulac ¸ão animal a partir das explorac ¸ões infectadas. Estas medidas levaram ao controlo ou mesmo à erradicac ¸ão da tubercu- lose bovina. A tuberculose devida ao Mycobacterium bovis (M. bovis) é, portanto, uma zoonose ocupacional, sendo con- siderados como grupos de risco as comunidades rurais, os criadores e tratadores de gado, trabalhadores da indústria da carne, veterinários e funcionários dos zoológicos 1,2 . A infecc ¸ão humana por M. bovis é, actualmente, consi- derada rara nos países desenvolvidos, sendo responsável por cerca de 1% de todos os casos de tuberculose humana 3---7 . A identificac ¸ão laboratorial do complexo Mycobacte- rium tuberculosis (MTC) possibilita o diagnóstico clínico de Tuberculose. Pertencem a este complexo, entre outras, as espécies M. tuberculosis e M. bovis. Apesar de geno- tipicamente muito semelhantes, o M. bovis é menos transmissível entre humanos e é intrinsecamente resistente à pirazinamida 4,8,9 . Baseando-se nesta particularidade, a Direcc ¸ão Geral de Saúde (DGS) publicou recentemente a Orientac ¸ão Correio eletrónico: [email protected] n 13/2010, em que recomenda a realizac ¸ão de testes de sensibilidade aos antibióticos (TSA) a todos os antibacila- res de primeira linha (discriminando isoniazida, rifampicina, estreptomicina, etambutol e pirazinamida) em todos os iso- lados do complexo M. tuberculosis e posterior diferenciac ¸ão de subespécie sempre que se encontra um isolado com resistência à pirazinamida 10 . É de salientar que a Circular Normativa n 9/DT da DGS, em vigor desde o ano 2000, sobre a realizac ¸ão de TSA aos antibacilares de primeira linha, não especifica os fármacos 11 . Este antibiótico, no que concerne ao diagnóstico labo- ratorial, não se encontra no lote de antibacilares a serem primeiramente testados, apesar de geralmente ser usado nos esquemas terapêuticos de primeira linha 12 . A execuc ¸ão deste teste requer alterac ¸ões na metodologia laboratorial em relac ¸ão aos restantes, uma vez que este fármaco é activo apenas em ambiente ácido. Este teste é realizado, em diver- sos laboratórios, sempre que ocorre resistência a pelo menos um dos restantes antibacilares de primeira linha. As mais recentes recomendac ¸ões internacionais, tanto da OMS como do Centro Europeu de Prevenc ¸ão e Con- trolo das Doenc ¸as (ECDC), desaconselham a inclusão deste fármaco no lote dos antibacilares a serem testados rotinei- ramente. Ambas as organizac ¸ões apontam para resultados pouco reprodutíveis e, portanto, pouco fiáveis. A OMS des- taca o seu elevado custo 12,13 . Tendo como base o prec ¸o de venda à Administrac ¸ão Regi- onal de Saúde do Norte dos reagentes em kit necessários para a execuc ¸ão de TSA, através de um sistema de culturas 0873-2159/$ see front matter © 2011 Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Publicado por Elsevier España, S.L. Todos os direitos reservados. doi:10.1016/j.rppneu.2011.12.002

Testes de sensibilidade à pirazinamida em todos os isolados do complexo Mycobacterium tuberculosis – uma análise crítica

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OMENTÁRIO

estes de sensibilidade à pirazinamida em todos os isoladoso complexo Mycobacterium tuberculosis --- uma análise crítica

yrazinamide susceptibility testing in all isolates of the Mycobacteriumuberculosis complex --- a critical analysis

. Cunha

aboratório de Micobacteriologia do Centro de Diagnóstico Pneumológico do Porto, Administracão Regional de Saúde do Norte,

orto, Portugal

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reconhecimento, pela Organizacão Mundial da SaúdeOMS), em 1950, do risco que constituía a tuberculose bovinaara a saúde pública, levou à implementacão por parte dosovernos de medidas de controlo que compreendiam entreutras, a pasteurizacão do leite, a inspeccão sanitária rigo-osa das carcacas nos matadouros, o abate de bovinos comestes tuberculínicos positivos e a restricão da circulacãonimal a partir das exploracões infectadas. Estas medidasevaram ao controlo ou mesmo à erradicacão da tubercu-ose bovina. A tuberculose devida ao Mycobacterium bovisM. bovis) é, portanto, uma zoonose ocupacional, sendo con-iderados como grupos de risco as comunidades rurais, osriadores e tratadores de gado, trabalhadores da indústriaa carne, veterinários e funcionários dos zoológicos1,2.

A infeccão humana por M. bovis é, actualmente, consi-erada rara nos países desenvolvidos, sendo responsável porerca de 1% de todos os casos de tuberculose humana3---7.

A identificacão laboratorial do complexo Mycobacte-ium tuberculosis (MTC) possibilita o diagnóstico clínicoe Tuberculose. Pertencem a este complexo, entre outras,s espécies M. tuberculosis e M. bovis. Apesar de geno-ipicamente muito semelhantes, o M. bovis é menosransmissível entre humanos e é intrinsecamente resistente

pirazinamida4,8,9.Baseando-se nesta particularidade, a Direccão Geral

e Saúde (DGS) publicou recentemente a Orientacão

Correio eletrónico: [email protected]

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873-2159/$ – see front matter © 2011 Sociedade Portuguesa de Pneumolooi:10.1016/j.rppneu.2011.12.002

◦ 13/2010, em que recomenda a realizacão de testes deensibilidade aos antibióticos (TSA) a todos os antibacila-es de primeira linha (discriminando isoniazida, rifampicina,streptomicina, etambutol e pirazinamida) em todos os iso-ados do complexo M. tuberculosis e posterior diferenciacãoe subespécie sempre que se encontra um isolado comesistência à pirazinamida10. É de salientar que a Circularormativa n◦ 9/DT da DGS, em vigor desde o ano 2000, sobre

realizacão de TSA aos antibacilares de primeira linha, nãospecifica os fármacos11.

Este antibiótico, no que concerne ao diagnóstico labo-atorial, não se encontra no lote de antibacilares a seremrimeiramente testados, apesar de geralmente ser usadoos esquemas terapêuticos de primeira linha12. A execucãoeste teste requer alteracões na metodologia laboratorialm relacão aos restantes, uma vez que este fármaco é activopenas em ambiente ácido. Este teste é realizado, em diver-os laboratórios, sempre que ocorre resistência a pelo menosm dos restantes antibacilares de primeira linha.

As mais recentes recomendacões internacionais, tantoa OMS como do Centro Europeu de Prevencão e Con-rolo das Doencas (ECDC), desaconselham a inclusão desteármaco no lote dos antibacilares a serem testados rotinei-amente. Ambas as organizacões apontam para resultadosouco reprodutíveis e, portanto, pouco fiáveis. A OMS des-

aca o seu elevado custo12,13.

Tendo como base o preco de venda à Administracão Regi-nal de Saúde do Norte dos reagentes em kit necessáriosara a execucão de TSA, através de um sistema de culturas

gia. Publicado por Elsevier España, S.L. Todos os direitos reservados.

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Testes de sensibilidade à pirazinamida em todos os isolados

em meio líquido (BACTEC MGIT 960, Becton and Dickinson,Maryland, USA), foram calculados os custos unitários destasanálises. O teste de sensibilidade à pirazinamida custa cercade 45D, quase o triplo do valor de cada um dos restantes TSAde primeira linha. Para uma avaliacão do custo total de umteste seria necessário adicionar o acréscimo do tempo dis-pendido, bem como custos com outros reagentes e materialde laboratório diverso, por exemplo: meios de suspensão,álcool etílico, água bidestilada, pontas para micropipetas,seringas, agulhas, etc.

Tendo em conta a realizacão, devido a esta Orientacão daDGS, a nível nacional, de milhares de testes de sensibilidadeà pirazinamida por ano, estará devidamente justificado, ogasto acrescido de centenas de milhares de euros?

Para uma resposta negativa, além das recomendacõesinternacionais, também contribuem estudos que referemque o rastreio do M. bovis, tendo como base a monor-resistência à pirazinamida, apresenta um baixo valorpreditivo positivo, ou que revelam a existência de estir-pes de M. bovis com outros padrões de resistênciaantibacilar14,15.

A Orientacão n◦ 13/2010 da DGS baseia-se, entre outrasjustificacões, no aumento significativo da tuberculosebovina, no entanto, salienta igualmente que a infeccão porM. bovis em seres humanos é, hoje em dia, praticamenterestrita aos grupos de risco. Assim sendo, seria de grandeinteresse a aposta em novas estratégias de prevencão, talcomo uma melhor comunicacão entre os organismos quetrabalham em saúde veterinária e em saúde humana, como intuito da referenciacão de utentes mais susceptíveisde contrair a doenca. O teste de sensibilidade à pirazi-namida executado em isolados provenientes de amostrasdestes utentes seria assim potencializado e melhorada a suarelacão custo/benefício.

Conflito de interesses

O autor declara não haver conflito de interesses.

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