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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 233 TETOS REMUNERATÓRIOS FIXADOS COM BASE NA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 41 DE 2003 NÃO SE APLICAM RETROATIVAMENTE Parecer nº 02/04-FACB Ementa: Os tetos remuneratórios fixados com base na Emenda Constitucional nº 41, de 2003, não se aplicam retroativamente, em detrimento de situações jurídicas consolidadas e só podem ser fixados por lei em sentido estrito, sendo inválido, por inconstitucionalidade, o estabelecido em decreto do Poder Executivo. As leis em vigor, definidoras dos ganhos dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, do Governador do Estado e do Prefeito Municipal, incidem para fixação do teto, em percentuais sobre a remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, ressalvados os regimes especiais estabelecidos na Constituição para os Conselheiros do Tribunal de Contas do Município, os Vereadores e as carreiras consideradas, pela Constituição, funções essenciais à justiça. Não se compreendem nos tetos as remunerações percebidas de fontes orçamentárias distintas, nem nele se incluem valores de natureza indenizatória. Senhora Procuradora-Geral: Trata-se de pedido do Exmº. Sr. Presidente do Egrégio Tribunal de Contas do Município, de manifestação desta Procuradoria sobre as seguintes questões: 1 a ) O art. 9 o da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, importa aplicação retroativa do regime ali instituído, isto é, implica redução dos ganhos, cumulativos ou não, fixados anteriormente àquela Emenda,

TETOS REMUNERATÓRIOS FIXADOS COM BASE NA E … · 16 de janeiro de 2004, se aplica à Câmara Municipal e ao Tribunal de ... o teto remuneratório dos agentes públicos do Município

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 233

TETOS REMUNERATÓRIOS FIXADOS COM BASE NA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 41 DE 2003 NÃO SE

APLICAM RETROATIVAMENTE

Parecer nº 02/04-FACB

Ementa: Os tetos remuneratórios fixados com base na Emenda Constitucional nº 41, de 2003, não se aplicam retroativamente, em detrimento de situações jurídicas consolidadas e só podem ser fixados por lei em sentido estrito, sendo inválido, por inconstitucionalidade, o estabelecido em decreto do Poder Executivo. As leis em vigor, definidoras dos ganhos dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, do Governador do Estado e do Prefeito Municipal, incidem para fixação do teto, em percentuais sobre a remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, ressalvados os regimes especiais estabelecidos na Constituição para os Conselheiros do Tribunal de Contas do Município, os Vereadores e as carreiras consideradas, pela Constituição, funções essenciais à justiça. Não se compreendem nos tetos as remunerações percebidas de fontes orçamentárias distintas, nem nele se incluem valores de natureza indenizatória.

Senhora Procuradora-Geral:

Trata-se de pedido do Exmº. Sr. Presidente do Egrégio Tribunal de Contas do Município, de manifestação desta Procuradoria sobre as seguintes questões:

1a) O art. 9

o da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003,

importa aplicação retroativa do regime ali instituído, isto é, implica redução dos ganhos, cumulativos ou não, fixados anteriormente àquela Emenda,

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para os agentes públicos?2

a) O limite remuneratório fixado pelo Decreto Municipal nº 23.919, de

16 de janeiro de 2004, se aplica à Câmara Municipal e ao Tribunal de Contas?3

o) Caso o Decreto mencionado no quesito anterior não seja aplicável, qual

o teto remuneratório dos agentes públicos do Município do Rio de Janeiro, à luz do inciso XI do art. 37 da Constituição da República, com a redação que lhe deu a mencionada Emenda Constitucional nº 41, em confronto com o art. 8

o da mesma Emenda? Favor explicitar, discriminando os limites para

os Poderes Executivo e Legislativo e o Tribunal de Contas (compreendendo agentes políticos e servidores stricto sensu).4

o) O teto definido no quesito anterior abrange valores recebidos de fontes

orçamentárias diversas — inclusive pensões (União, Estado, Município, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista)?5

o) Quais as parcelas remuneratórias a serem consideradas no teto

estabelecido conforme o quesito 4o, supra?.

Apensaram-se ao presente, por veicularem matéria contida nos quesitos da Colenda Corte de Contas, os processos n

os. CMRJ..., submetidos a exame

e pronunciamento desta Procuradoria-Geral pelos Exmos

. Srs. Presidente e 1o

Secretário da Câmara. Neles, o nobre Vereador Edson Santos dá conhecimento à Presidência desta Casa do expediente que dirigiu ao Exmº. Sr. Prefeito da Cidade, imputando ilegalidade ao aludido Decreto Municipal nº 23.919, de 16 de janeiro último, em face do inciso XIX do art. 45 da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro; e a Divisão de Pagamento de Pessoal pede orientação quanto ao disposto na referida Emenda.

Passemos ao exame das indagações suscitadas.

I. A aplicação retroativa da Emenda no 41

O princípio geral da irretroatividade das leis em face de situações jurídicas preexistentes e consolidadas remonta ao direito romano imperial 1, tendo-se consagrado nos movimentos liberais do final do séc. YWJJJ, na

1“Leges et constitutiones futuris certum est dare formam negotiis, non ad facta præterita revo-

cari: nisi nominatim, et de præterito tempore, et adhuc pendentibus negotiis cautum sit.” L. 7, C., De legibus, et constitutionibus principum, et edictis, I, 14.2 Art. 1

o, seção 9, item 3 : “No Bill of Attainder or ex post facto Law shall be passed.”.

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Constituição norte-americana de 1776 2 e nas Declarações de Direitos francesas

de 1789 3 e 1795

4. Nos tempos que se seguiram, até os dias de hoje, “o caráter

prospectivo passou a ser considerado atributo essencial do ato legislativo, para que este não dê causa a injustiças e arbitrariedades.”

5.

Na vigência da Carta de 1967 e da Emenda nº 1, de 1969, firmou-se orientação do Egrégio Supremo Tribunal Federal, no sentido da inoponibilidade de direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada a norma constitucional, ainda que oriunda do Poder Constituinte derivado. A Constituição de 1988, no entanto, alinhou entre suas “cláusulas pétreas”, nos termos do art. 60, § 4

o, nº IV, “os direitos e garantias individuais”, isto é,

proibiu ao constituinte derivado sequer deliberar sobre proposta de emenda tendente a aboli-los.

Merece destaque a observação de que essa interdição não incide apenas nas proposições de reforma constitucional que diretamente ataquem a subsistência daqueles direitos e garantias. No magistério de José Afonso da Silva-

... o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’, ‘ fica abolido o voto direto...’, ‘passa a vigorar a concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação..., ou o habeas corpus, o mandado de segurança...’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringe a liberdade religiosa, ou de comunicação, ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendentes, diz o texto), para a sua abolição. — Assim, p. ex., a autonomia dos Estados federados assenta na capacidade de auto-organização, de autogoverno e de auto-administração. Emenda que retire deles parcela dessas capacidades, por mínima que seja, indica tendência a abolir a forma federativa de Estado. Atribuir a qualquer

3 Art. 16 da Déclaration des droits de l’Homme et du Citoyen, de 26 de agosto de 1789 : “Tou-

te societé dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la separation des pouvoirs déterminée, n’a point de constitution.”.4 Art. 14 da Déclaration des droits et des devoirs de l’Homme et du Citoyen, do 5 fructidor,

an III — 22 de agosto de 1795: “Aucune loi, ni criminelle, ni civile, ne peut avoir d’effet rétroactif.”.5 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio

de Janeiro: Forense, 2003. p. 226.6 SILVA-!José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1990. p 59. DJU, 17 dez. 1993, p. 28066.

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dos poderes atribuições que a Constituição só outorga a outro importará tendência a abolir o princípio da separação de Poderes.

6

Daí se extrai que a supressão, ainda que pontual, de direito ou garantia individual, assim como a redistribuição desta ou daquela competência privativa a Poder que a não detém, segundo a norma constitucional vigente, excede a capacidade reformadora do constituinte derivado. Se, verbi gratia, mediante emenda constitucional, o legislador tenta excluir da garantia do habeas corpus a prisão provisória, ou a prisão por condenação a pena inferior a um ano, a proposta a respeito não poderá, sequer, chegar a deliberação, em face do referido art. 60, § 4

o, nº IV, do Estatuto Fundamental em vigor.

A permissão para que, mediante emenda, se exclua tal ou qual direito adquirido da proteção do art. 5

o., nº XXXVI, constitucional, importa

autorização ao legislador ordinário, no exercício do poder reformador, para extinguir, um a um, todos os direitos adquiridos e todas as garantias de situações jurídicas consolidadas. Assim, a emenda que abole algum direito ou garantia individual, tende a abolir todos, restando impassível de deliberação legislativa.

É relevante observar que o elenco desses direitos e garantias não é taxativo, haja vista o que dispõe o § 2º do art. 5º da própria Constituição:

Art. 5o. [...]

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Por isso mesmo, o Excelso Pretório tem ampliado o alcance da proibição de mudança constitucional, como fez a propósito da Emenda Constitucional nº 3, de 1993, combinando os referidos arts. 5

o, § 2

o, e 60, § 4

o, nº IV, com o

art. 150, nº III, alínea “b”, todos da Lei Maior, para suspender a exigibilidade do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira

7.

A partir desse raciocínio, seguramente se insere entre os direitos e garantias em questão a irredutibilidade de vencimentos, assegurada ao servidor público pelo art. 37, nº XV, da Constituição, com a redação da Emenda nº 19,

7 STF – Pleno – ADI 939 MC/DF – 15/09/93. Relator Min. TZ EOFZ !TBODI FT/

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de 04 de junho de 1998. Sobre o tema, pronunciou-se Celso Antônio Bandeira de Mello!nos termos seguintes:

[S]e a Constituição declara irredutíveis os vencimentos, é de solar evidência que os pretende defendidos contra providências que os reduzam. Em regime onde vigora o princípio da legalidade, seria evidentemente despiciendo tal atributo que a Constituição lhes confere, se não fora para interditar que normas ulteriores, provenientes de Casa ou Casas Legislativas, afetassem a integralidade dos vencimentos a que cada qual faça jus. Segue-se que nenhuma regra de direito, pelas razões supra expendidas, teria o poder de reduzi-los, salvo, evidentemente, uma nova Constituição, (...).

8

Essa orientação, conquanto ainda hesitante, vem tomando corpo em nossa Corte Suprema, haja vista decisões como a seguinte:

Constitucional. Inconstitucionalidade do Provimento n. 05/99 do Corregedor-Geral do Tribunal Superior do Trabalho. O ato administrativo antecipou-se à edição da Emenda nº 24/99. Extinguia os efeitos jurídicos de todos os atos de nomeação, posse ou exercício de juiz classista de 1

a

instância. A retroatividade, nesta hipótese, é incompatível com o sistema jurídico brasileiro que arrola como invioláveis o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada ante a norma posterior. Afronta ao art. 5º, YYYWJ. Liminar deferida.

9.

É bem verdade que, no caso, a Emenda ressalvava as situações preexistentes, mas a alusão expressa a retroatividade revela, no mínimo, trepidação no reconhecimento de efeitos pretéritos à reforma constitucional. O mesmo se nota em julgamento pouco anterior:

“Emenda constitucional estadual e direito intertemporal. Impõem-se, em princípio, à emenda constitucional estadual os princípios de direito intertemporal da Constituição da República, entre os quais as garantias do direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos.”

10.

No âmbito doutrinário, o ilustre Professor Carlos Ayres de Brito, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, traçou interessante paralelo entre as possibilidades de exceção ao direito adquirido por parte da constituição originária e das emendas, nos seguintes termos:

No Nordeste, nos dizemos assim: o vento que venta lá é o mesmo que 8N FMMP , Celso Antônio Bandeira de. Parecer. In: Reforma da Previdência: (Emenda Consti-

tucional nº 41/2003). Texto da Emenda, Pareceres e ADIns. Rio de Janeiro: DPOBNQ, 2004. p. 72.9STF – Pleno – ADI 2201 MC/DF – 08/06/00 – rel. Min. OFMTPO!KPCJN , DJU, 13/10/00, p. 9

10STF – Pleno – ADI 2112 MC/RJ – 11/05/00 – rel. Min. TFQ÷MWFEB!QFSUFODF-!RTJ, v. 178,

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venta cá ou o vento que venta ali é o mesmo que venta aqui. A proibição que se impõe à lei é a mesma proibição que se impõe à emenda. Do particular a emenda também não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. (...). Daí analisando a Constituição eu fui parar no ato das Disposições Constitucionais Transitórias e encontrei exatamente algo que confirma esta teoria. (...) A Constituição disse que quem estivesse ganhando acima de um Ministro de Estado no plano federal, acima de um Secretário de Estado no plano estadual, acima de um Prefeito no plano municipal, quem ultrapasse o teto ficaria limitado ao teto e, disse a Constituição, sem evocação do direito adquirido neste caso, então vejam como a Constituição prejudicou o direito adquirido explicitamente, dizendo neste caso não poderá haver percepção de excesso a qualquer título e não poderá haver evocação do direito adquirido, artigo 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. (...) Então, a Constituição pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, sim, se o disser, porque a Constituição, repito, ela se autoqualifica enquanto norma jurídica, de dentro para fora, é a única norma que pode se autoqualificar, enquanto norma, porque todas as outras só são normas se qualificadas pelo ordenamento. A própria emenda constitucional não se autoqualifica, como norma jurídica, não se autocategoriza, com norma jurídica.

11

Não parece, pois, viável outra resposta à primeira indagação do Exmº. Sr. Presidente do Egrégio Tribunal de Contas, se não a negativa: a Emenda nº 41 não se pode aplicar retroativamente, sendo ilícita a redução de ganhos de agentes públicos, com fundamento nela.

Não prospera a invocação do art. 9o da Emenda em debate, que

reza:

Art. 9o. Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza.

11BRITO, Carlos Ayres de. Os Direitos adquiridos e a reforma constitucional. In: ENCON-

TRO NACIONAL DE PROCURADORES MUNICIPAIS, 24., 1998. Anais... Porto Alegre, 1998. p. 205-206. Trata-se de transcrição, baseada em notas taquigráficas, de texto oral, não revisada pelo autor.

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Acerca do art. 17 do ADCT, aí referido, e que dispunha:

“Art. 17 - Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.”,

disse incisivamente o celebrado publicista Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que

não poderá ser repristinado por uma Emenda, que até por ser emenda, já é uma exceção à Constituição originária (...), com o objetivo de ressuscitar essa estritíssima exceção de 1988 oposta à onímoda proteção constitucional dos atos jurídicos perfeitos, que declaram direitos de servidores, bem como os decorrentes direitos adquiridos, que em razão desses atos se incorporaram aos respectivos patrimônios jurídicos daqueles servidores, como assegurado no art. 5

o, XXXVI. — Em suma: uma

Emenda não pode excepcionar garantias constitucionais individuais que foram originariamente asseguradas contra quaisquer reformas pelo art. 60, [§ 4

o,] nºIV, não havendo como invocar o exaurido art. 17 da

(sic) ADCT, admitindo que se adequasse, então, mesmo sem uma leitura de conformação substantiva, às garantias do sistema, e, por isso mesmo, muito menos, cabe ressuscitá-lo para o fim pretendido.

12

Segue no mesmo diapasão a opinião do consagrado constitucionalista José Afonso da Silva:

As disposições constitucionais transitórias, como se viu, têm por objeto disciplinar situações jurídicas pendentes no momento da transição do regime velho para o novo. O texto diz; “proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos”, ou seja, percebidos naquele momento. Por isso, estão destinadas a exaurir-se como o exaurimento da situação concreta por ela contemplada. Esgotam-se com sua aplicação. O art. 17 em causa foi aplicado, especialmente no que tange ao inciso XIV do art. 37, porque o Poder Público, em todas as esferas de governo, cortou os excessos decorrentes da acumulação de vantagens pecuniárias. Por outro lado, as disposições constitucionais transitórias estão vinculadas ao conteúdo das normas novas a que abrem exceções ou limitações. Se estas forem revogadas ou se for modificado o seu conteúdo, as disposições transitórias inerentes perdem eficácia. Os dispositivos a que se ligavam a disposição

12N PSFJSB!OFUP , op. cit., p. 140.

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transitória em análise foram substancialmente modificados. De fato, a EC-19/1998 alterou completamente o texto do inciso XI. Portanto, no que se refere à proibição de invocar o direito adquirido, perdeu eficácia, em conseqüência da transformação do conteúdo daquele inciso, eficácia que não pode ser restabelecida por emenda constitucional, porque isso valeria como criar, de novo, a restrição, e emenda constitucional não pode afastar a incidência do direito adquirido nem criar-lhe restrições, porque isso esbarra na vedação do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

13

II. A fixação de limite remuneratório pelo Poder Executivo

Abstraídas, embora, as limitações, pelo que acima se expôs e pelo que adiante se acrescentará, à aplicação do art. 8

o da Emenda sob análise — cujo

teor é o seguinte:

Art. 8o. Até que seja fixado o valor do subsídio de que trata o art. 37, XI,

da Constituição Federal, será considerado, para os fins do limite fixado naquele inciso, o valor da maior remuneração atribuída por lei na data de publicação desta Emenda a Ministro do Supremo Tribunal Federal, a título de vencimento, de representação mensal e da parcela recebida em razão de tempo de serviço, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento da maior remuneração mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal a que se refere este artigo, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável esse limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos.

— é intuitivo que nem esse dispositivo, nem qualquer outro decorrente da reforma, fez qualquer mossa no inciso VIII do art. 49 da Constituição emendada, que reserva ao Poder Legislativo a definição dos ganhos dos dirigentes superiores do Executivo:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:[...]VIII - fixar o subsídio do Presidente e do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.

13 SILVA, José Afonso da. Parecer lançado em 28/11/03, em resposta a consulta formulada

pela CONAMP, ainda não publicado.

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Trata-se de disposição atinente ao princípio da independência e harmonia dos Poderes, e que, por isso mesmo, se reproduz imperativamente no art. 99, nº IX, da Constituição Estadual, onde se lê:

Art. 99. Compete privativamente à Assembléia Legislativa:[...]IX - fixar para cada exercício financeiro a remuneração do Governador, do Vice-Governador e dos Secretários de Estado;”,

e integraria, necessariamente, a Lei Orgânica do Município, ainda que não existisse a regra do art. 29, nº V, da Carta da União, a impor a inserção, nessa Lei, do preceito segundo o qual

Art. 29. [...]V - subsídio do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais fixado por lei de iniciativa da Câmara Municipal, observado o que dispõe os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I; (grifo nosso).

O Decreto Municipal nº 23.919, de 16 de janeiro deste ano, não é apenas ilegal, mas, data venia, radicalmente inconstitucional, prejudicando-lhe a validade, ainda mais, a referência que faz a esta Câmara Municipal e ao Egrégio Tribunal de Contas do Município.

Vista essa inconstitucionalidade flagrante, é evidente a inaplicabilidade de tal Decreto, até mesmo, no âmbito do próprio Poder Executivo; menos ainda pode pensar-se em aplicá-lo ao Legislativo e ao Colendo Tribunal de Contas. Isto responde, também, à questão suscitada no apenso processo nº CMRJ... .

III. Os tetos remuneratórios municipais

O dispositivo emendado, de cuja aplicação se indaga, é o seguinte:

Art. 37. [...]XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito

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Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;”.

O art. 8o da Emenda, já acima transcrito, alude à “remuneração atribuída

por lei na data de publicação” do diploma reformador, “aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito”.

O subsídio do Exmº. Sr. Prefeito do Rio de Janeiro, fixado com observância dos já mencionados arts. 49, nº VIII, e 29, nº IV, da Constituição da República; 99, nº IX, da Constituição Estadual; e 45, nº XIX, da Lei Orgânica do Município, na Lei municipal nº 3.080, de 21 de julho de 2000, equivale a 90% (noventa por cento) da remuneração total do Governador do Estado. Esta, por sua vez, está definida, na Lei estadual nº 4.057, de 30 de dezembro de 2002, em 100% (cem por cento) do subsídio (apelidado “subsídio-base”) percebido, em espécie, pelos Desembargadores do Tribunal de Justiça, que vem a ser o estabelecido na Lei estadual nº 3.396, de 05 de maio de 2000, em 95% (noventa e cinco por cento) do subsídio dos Ministros dos Tribunais Superiores, percentual diverso dos 90,25% (noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento) previstos no art. 8

o da Emenda questionada.

A mais recente tabela de remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal foi a deliberada em sessão administrativa realizada por aquela Corte em no dia 5 do corrente mês, ainda não oficialmente divulgada. A maior remuneração ali fixada foi de R$ 19.115,19.

A regra transitória do retrotranscrito art. 8o da Emenda nº 41 aponta

como teto federal “o valor da maior remuneração atribuída por lei”, à data de sua publicação, isto é, em 31 de dezembro de 2003, “a Ministro do Supremo Tribunal Federal, a título de vencimento, de representação mensal e da parcela recebida em razão de tempo de serviço”. Aplicando-se ao referido valor máximo os percentuais acima relacionados, ter-se-á o valor do subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça e do Governador do Estado e, conseqüentemente, o do Exmº. Sr. Prefeito.

Este, pois, o teto remuneratório aplicável ad futurum no Município do Rio de Janeiro, assim para o Poder Executivo como para o Legislativo. Não,

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repita-se, para reduzir remunerações anteriormente fixadas, em consonância com as normas constitucionais e legais precedentes, mas para limitar, futuramente, a expansão das remunerações inferiores a esse patamar.

Todavia, nos termos do art. 73, § 3o, da Constituição Federal,

Art. 73. [...]§ 3º - Os Ministros do Tribunal de Contas da União terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, aplicando-se-lhes, quanto à aposentadoria e pensão, as normas constantes do art. 40.,

devendo tal regime, em paralelismo imposto pelo art. 75, a saber,

"Art. 75 - As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.Parágrafo único - As Constituições estaduais disporão sobre os Tribunais de Contas respectivos, que serão integrados por sete Conselheiros,

aplicar-se às Cortes fiscalizadoras estaduais e locais. Por isso, dispõem os arts.124, § 3

o e 128, § 3

o da Constituição Estadual:

Art. 124. [...]§ 3º - No Município do Rio de Janeiro, o controle externo é exercido pela Câmara Municipal, com o auxílio do Tribunal de Contas do Município, aplicando-se, no que couber, as normas estabelecidas nesta seção, inclusive as relativas ao provimento de cargos de Conselheiro e os termos dos §§ 3º e 4º do artigo 131 desta Constituição.[...]Art. 128. [...]§ 3º - Os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Desembargadores do Tribunal de Justiça e somente poderão aposentar-se com as vantagens do cargo quando o tiverem exercido efetivamente por mais de cinco anos.

Segue-se que os Conselheiros do Egrégio Tribunal de Contas do Município terão seu subsídio fixado nos mesmos níveis dos membros do Tribunal de Contas do Estado, vale dizer, em patamar idêntico aos dos Desembargadores do Tribunal de Justiça.

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Outrossim, a Emenda em comento não parece interferir com a vigência do art. 29, nº VI, “f”, da Constituição Federal, que estabelece:

"VI - o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subseqüente, observado o que dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os seguintes limites máximos: [...]f) em Municípios de mais de quinhentos mil habitantes, o subsídio máximo dos Vereadores corresponderá a setenta e cinco por cento do subsídio dos Deputados Estaduais;

e que se aplica, induvidosamente, ao Município do Rio de Janeiro, cuja população residente era calculada, já no ano de 2000, em 5.851.914 habitantes

14. Considerando-

se que, consoante o art. 27, § 2o, também da Constituição da República,

Art. 27. [...]§ 2º - O subsídio dos Deputados Estaduais será fixado por Lei de iniciativa da Assembléia Legislativa, na razão de, no máximo, setenta e cinco por cento daquele estabelecido, em espécie, para os Deputados Federais, observado o que dispõe os arts. 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.

e o teto federal estabelecido na Emenda em exame — “o valor da maior remuneração atribuída por lei na data de publicação desta Emenda a Ministro do Supremo Tribunal Federal” —, ter-se-á como valor máximo do subsídio dos membros da Assembléia Legislativa o de 75% daquele estabelecido para os parlamentares federais, ficando o dos nobres Edis desta Capital limitado a 75% do valor máximo atribuído aos deputados estaduais.

Deve-se ainda observar a parte final do referido art. 8º da Emenda, que alude a “membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos”. A despeito da tortuosa e extensa redação – retrato do fragmentado processo legislativo que resultou na Emenda em comento – percebe-se que foi instituído o seguinte sistema: estabeleceu-se um teto geral (equivalente à remuneração de Ministro do Supremo Tribunal Federal); em seguida estabeleceu-se um teto próprio para os Municípios; adiante três tetos para o âmbito dos Estados-membros (para os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário); e finalmente estabeleceu-se um teto diferenciado para as carreiras citadas na parte final do novel dispositivo constitucional.14

Cf. GVOEB£ÚP!DJEF!Þ!DFOUSP!EF!JOGPSNB£ÛFT!F!EBEPT!EP !SJP !EF!KBOFJSP / Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro, 2001. Rio de Janeiro: TFQEFU, 2001. Ed. CD-ROM.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 245

Daí decorre que o complexo sistema instituído pela Emenda pode ser assim decomposto: a partir de um teto geral, derivam duas linhas de limites: a primeira, aplicável aos servidores públicos em geral, estabelece dois “subtetos” nos âmbitos estadual e municipal. A segunda linha, também submetida ao teto geral, estabelece um subteto para os integrantes do Poder Judiciário e também para aquelas carreiras que Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em inspirada passagem, chamou de procuraturas constitucionais, ou seja, aquelas carreiras que a Constituição agrupou, sob a denominação de “Funções Essenciais à Justiça”, no Capítulo IV do Título VI (“Da Organização dos Poderes”), não por acaso, logo após o Capítulo III (“Do Poder Judiciário”). Na definição do festejado publicista:

Dessa colocação, resulta que as funções essenciais à justiça se constituem num conjunto de atividades políticas preventivas e postulatórias através das quais interesses juridicamente reconhecidos são identificados, acautelados, promovidos e defendidos por órgãos tecnicamente habilitados, sob garantias constitucionais.[...]A Constituição cria três tipos institucionais de procuraturas, estas encarregadas das funções essenciais à justiça, exercendo, cada uma delas, atribuições consultivas e postulatórias, todas bem definidas a nível constitucional (artigos 127, 129, 131, 132, 133 e 134, CF.), e infraconstitucional (Constituições estaduais e leis orgânicas) voltadas a três conjuntos de interesses caracterizados.

15

Vale dizer: a remuneração dos integrantes das carreiras ali definidas não se insere na primeira linha de limitações (limitações gerais dos servidores públicos), mas na segunda (limitações específicas dos integrantes do Poder Judiciário e das funções essenciais à justiça). A outra conclusão não se pode chegar, quando se verifica que os Procuradores dos Estados e Defensores Públicos são, indubitavelmente, servidores do Poder Executivo estadual, mas, nos termos da Emenda, não se sujeitam ao limite estabelecido para esse “Poder”, mas ao limite estabelecido para o Poder Judiciário. Não é esta a sede adequada para perquirir as razões que teriam levado o constituinte derivado a igualar as carreiras jurídicas, mesmo aquelas integrantes da estrutura do Poder Executivo, aos integrantes do Poder Judiciário, submetendo-os ao teto deste e não daquele.15

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As Funções essenciais à justiça e as procuratu-ras constitucionais. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 116, p. 87-90, out./dez. 1992.

246 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004

Assentada esta premissa, todo o trabalho hermenêutico deve ter em conta que as chamadas procuraturas constitucionais inserem-se no sistema próprio de limitação de remuneração do Poder Judiciário. Como deve, então, se conduzir o intérprete no caso dos Municípios, em que, a despeito da inexistência de Poder Judiciário ou Ministério Público próprios, há carreiras integrantes da advocacia pública, a quem a Emenda atribuiu limitações diferenciadas?

A busca da resposta deve, antes de tudo, atentar para a estrutura da Federação brasileira, em que os Municípios foram erigidos a entes autônomos, dotados do mesmo grau de autonomia dos Estados-membros

16. Assim, a

inexistência de referência expressa aos Procuradores Municipais no art. 132 da Carta Magna não deve ser vista como um silêncio eloqüente, mas como uma referência implícita, tal qual as que o constituinte se utilizou nos arts. 24, 58 e 61, entre vários outros, da Constituição Federal. O acerto de tal conclusão se acentua diante dos termos dos arts. 25 e 29 da Constituição da República, que impõem aos Estados-membros e Municípios o chamado princípio da simetria, segundo o qual devem organizar sua Administração segundo o modelo federal, sob pena de inconstitucionalidade. Não deve restar dúvida, assim, de que os Procuradores dos Municípios devem seguir o mesmo regime constitucional delineado para os Procuradores dos Estados-membros e do Distrito Federal, no art. 132 da Carta da República.

Diante de tais considerações, tem-se que os Procuradores dos Municípios, em geral, estão sujeitos ao mesmo teto estabelecido para os Procuradores dos Estados-membros, Ministério Público e Magistratura estaduais, não podendo perceber mais que os integrantes destas carreiras. No caso específico do Município do Rio de Janeiro, existem três carreiras de Procuradores (no Poder Executivo, na Câmara Municipal e no Tribunal de Contas), a todas se aplicando a conclusão aqui exposta.

IV. Abrangência dos tetos remuneratórios

Em alentado e substancioso parecer, que mereceu visto aprobatório do então Procurador-Geral, o Procurador GSBODJTDP !EBT!OFWFT!CBQUJTUB, desta Casa, reportando-se ao art. 39, § 3

o, da Carta Federal, que, na redação

da Emenda nº 19, de 1998, diz:16

Para uma minuciosa fundamentação da não-submissão dos Municípios ao ordenamento jurídico dos Estados-membros, impossível de ser desenvolvida no âmbito deste trabalho, veja-se FERRARI, Sérgio. Constituição Estadual e federação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 149-160.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 247

Art.39[...]§ 3º - Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir,

assinalava que

[t]al dispositivo põe em relevo a natureza e finalidade da regra instituidora do teto, que se liga à contenção dos gastos estatais e não à limitação dos ganhos individuais oriundos do trabalho. Sistematicamente, não é possível ver-se de outra forma, dado que o valor do trabalho se erige, no art. 1

o,

nº IV, da Lei máxima, em fundamento da República e, no art. 170, se diz fundada a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. — Óbvia conseqüência disso é a injuridicidade de definir-se um teto abrangente, a envolver ganhos oriundos de diferentes esferas administrativas. A observância do teto no cúmulo de ganhos, à luz do inciso XVI do art. 37 da Constituição, diz com os subsídios recebidos de uma única fonte administrativa, a saber, do mesmo Município, do mesmo Estado ou só da União. A Carta Suprema não obsta a que o médico ou professor, que detenha cargos no Estado e no Município, perceba integralmente os estipêndios de ambos os cargos. Impede, sim, que, de um mesmo erário, haja remuneração cuja soma exceda o subsídio de Ministro do Supremo Tribunal. [...] Não se trata de impedir que se ganhe, mas que se onere.

17

Esse entendimento subsiste atualíssimo, a despeito da alteração constitucional superveniente. Não há pensar-se em que a recente Emenda, ou os textos anteriores de limitação de remunerações, visasse a uma espécie de neo-socialismo salarial alicerçado no nivelamento por baixo dos ganhos individuais; se assim fosse, o constituinte, tanto originário como derivado, imporia limites aos ingressos de todos, não somente dos servidores públicos. O absurdo de semelhante propósito seria bastante para inviabilizá-lo na raiz. A compreensão razoável do regramento constitucional implica o confronto com os arts. 169 da Carta, qual seja:

Art. 169 - A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites

17CBQUJTUB, Francisco das Neves. Teto remuneratório: inexistência para os servidores da Câmara

Municipal. Revista de Direito [da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal], Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, p. 168-169, jan./dez 2002. Parecer.

248 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004

estabelecidos em lei complementar.§ 3º - Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:I - redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança;II - exoneração dos servidores não estáveis.§ 4º - Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal,

e do art. 38 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que determina:

Art. 38 - Até a promulgação da lei complementar referida no art. 169, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão despender com pessoal mais do que sessenta e cinco por cento do valor das respectivas receitas correntes.Parágrafo único - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, quando a respectiva despesa de pessoal exceder o limite previsto neste artigo, deverão retornar àquele limite, reduzindo o percentual excedente à razão de um quinto por ano.

como também assinalado no referido parecer. A referência, pois, do texto emendado a remuneração e subsídio “percebidos cumulativamente ou não” concerne a vencimentos oriundos de uma só fonte orçamentária, não àqueles que onerem separadamente receitas públicas de origens diversas.

Não se traga à balha o falacioso argumento de que, por receberem dos cofres estatais, providos por contribuições de toda a população, os servidores públicos devem ter ingressos limitados, para que se possam reduzir os tributos. Na verdade, todo ganho individual decorre de contribuições gerais, já que advém do pagamento, por adquirentes ou usuários, de bens ou serviços, a maioria deles — alimentação, moradia, vestuário — tão indispensáveis quanto os fornecidos ou prestados pelo Estado. Por outro lado, a carga tributária é, pelo menos em tese, ditada pelas necessidades públicas, inclusive de pessoal, para prestação dos serviços estatais, de sorte que não está nos salários dos servidores a causa eficiente do incremento dos tributos. Não pode o intérprete da lei

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atar-se, com vistas à aplicação desta, a dados conjunturais que ditam decisões políticas de momento: há de voltar-se para os efeitos gerais e vindouros das normas editadas, sejam ou não aqueles esperados pelos legisladores.

V. Composição dos tetos

Como lembrado no parecer parcialmente transcrito acima, manteve-se, no § 3

o do art. 39 da Constituição, pelo qual

§ 3º - Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir,

a remissão aos direitos trabalhistas aplicáveis aos servidores públicos, dentre eles,

... a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; o salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda; a remuneração do serviço extraordinário superior ao normal; e o gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal

18.

Não há, portanto, como entenderem-se integrantes do subsídio único, advindo da Emenda nº 19, de 1998, as verbas aí referidas. Demais, a referência do inciso XI do art. 37, na versão da Emenda em tela, a remuneração, subsídio, “proventos, pensões ou outra espécie remuneratória” — isto é, recompensa, galardão, gratificação, salário, honorário, renda

19 — exclui, inevitavelmente,

verbas indenizatórias de qualquer natureza.

Entretanto, devem entender-se forçosamente contidas no teto, inclusive à vista do art. 8

o da Emenda, as verbas “de representação mensal e da parcela

recebida em razão de tempo de serviço”, do mesmo modo que os acréscimos estipendiais pelo exercício de funções que, para serem bem desempenhadas, exigem um regime especial de trabalho, uma particular dedicação ou uma especial habilitação de seus titulares, e bem assim aquelas relacionadas a condições especiais em que se execute o serviço.

18Loc. cit.

19V. Dicionário Aurélio Eletrônico Séc. XXI, versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/MGB

Informática, nov. 1999..

250 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004

Uma palavra, ainda, deve ser dita com relação à situação de servidores efetivos – ativos ou inativos – que ocupam também cargo em comissão. Estes cargos, como se sabe, são de livre nomeação, podendo ser ocupados por servidores de carreira ou por estranhos ao quadro permanente. Em princípio, é lícito à Administração optar por uma ou outra forma de preencher estes cargos, malgrado a Constituição tenha determinado preferência pela primeira (servidores de carreira), como se dessome do inciso V do seu art. 37. Para os efeitos da despesa pública, tal opção seria, em princípio, irrelevante, na medida em que o estipêndio relativo ao cargo em comissão representaria, de uma forma ou de outra, um desembolso público, qualquer que fosse o seu beneficiário.

Todavia, na hipótese de servidores efetivos cuja remuneração já esteja igualada ao teto, como se daria a retribuição pelo exercício do cargo comissionado? Caso se considere a soma das remunerações para efeito de contenção pelo teto, resultaria o valor zero como retribuição para o exercício de cargos em comissão. Daí decorreriam pelo menos duas conseqüências antijurídicas: o exercício de trabalho gratuito e o enriquecimento sem causa da Administração que, ao nomear tais servidores para cargos em comissão, estaria se utilizando de uma via oblíqua para reduzir a despesa com pessoal, pois estaria se abstendo de remunerar o exercício de um cargo, apesar de se beneficiar da força de trabalho correspondente.

Nem se diga, neste passo, que o problema poderia ser contornado caso a Administração se abstivesse de escolher tais servidores para ocupar cargos em comissão. Do ponto de vista do servidor, tal opção representaria um inadmissível atentado ao princípio da isonomia, vedando, de antemão, legítimas expectativas de ascender a um cargo em comissão. Do ponto de vista da Administração, ter-se-ia uma injustificada restrição do universo de possíveis escolhas para os cargos comissionados, privando-a da opção por determinados servidores, possivelmente dos melhores quadros de que dispõe.

A Procuradoria-Geral do Estado, através de alentado Parecer da lavra do ilustre Procurador Gustavo Binenbojm, examinando questão similar – referente a preenchimento de cargos em comissão por servidores aposentados – chega a idêntica conclusão:

Ninguém pode pretender incentivar o preenchimento preferencial dos cargos comissionados com servidores de carreira e, ao mesmo tempo, não

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 251

querer pagar nada por isso. Ora, não se pode presumir que o constituinte tenha pretendido promover o enriquecimento sem causa do Poder Público, em detrimento dos seus servidores. Deste modo, parece-me claro que o inciso V do art. 37, interpretado sistematicamente com o inciso XI, conduz à inteligência de que o teto remuneratório do Poder Executivo deve ser aplicado sobre proventos de aposentadoria e vencimentos de cargo em comissão, separadamente.

20

Outro não parece ter sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal, na já citada Sessão administrativa realizada em 05/02/04. Com efeito, em “Nota à Imprensa” publicada naquela mesma data, esclareceu-se que:

2 – O Supremo Tribunal Federal entendeu que os valores recebidos pelos Ministros do Tribunal Superior Eleitoral a título de gratificação de presença, na forma da Lei 8.350/91, não integram o cálculo do limite fixado pelo citado artigo 8º da Emenda 41/2003. Por outro lado, esses valores não podem se somar à remuneração dos Ministros do Supremo para fins de repercussão prática do teto. É que, se assim não se entendesse, haveria norma constitucional sem eficácia, exatamente aquela que determina que o TSE seja composto por Ministros do STF (CF, artigo 119). Se esses já recebem o teto no Supremo, estariam impedidos de receber a remuneração pelo trabalho no TSE e, conseqüentemente, de compor a corte eleitoral.

21

Esclareça-se, por fim, que tal conclusão não se aplica ao valor correspondente à remuneração de cargos em comissão que tenham sido, total ou parcialmente, incorporados aos estipêndios de servidores efetivos. Ao ser incorporada, tal parcela modifica por completo sua natureza, deixando de ser a contraprestação pelo exercício de uma função pública e passando a ser uma gratificação pela ocupação pretérita de cargo, com fundamento em norma excepcional. Assim, os valores correspondentes à incorporação, total ou parcial, de cargos em comissão, estão sujeitos ao teto.

VI. Conclusões

Em síntese, parece-nos que:

a) dada a imutabilidade das cláusulas constitucionais garantidoras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da irredutibilidade de vencimentos (art. 5

o, nº XXXVI e 37, nº XV, da Constituição Federal), o art. 9

o da Emenda

20Parecer nº 02/2004-GUB, de 9 de fevereiro de 2004, exarado no Proc. E-14/001045/2004,

aprovado pelo Procurador-Geral do Estado, Dr. Francesco Conte. 21

Texto extraído do sítio www. stf.gov.br, na rede mundial de computadores (internet), em consulta realizada em 06/02/04.

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Constitucional nº 41, de 2003, somente se pode validamente interpretar como atinente aos valores em abstrato dos padrões de remuneração dos cargos e funções estatais, não se podendo aplicar retroativamente, para apequenar vencimentos legitimamente fixados anteriormente à edição daquele texto;b) o Decreto Municipal nº 23.919, de 16 de janeiro recente, é, data venia, de flagrante inconstitucionalidade, em face das disposições dos arts. 49, nº VIII e 29, nº IV, da Constituição da República, refletidos nos arts. 99, nº IX, da Constituição Estadual e 45, nº XIX, da Lei Orgânica do Município: não é aplicável, pois, sequer no âmbito do próprio Poder Executivo, menos ainda nos do Poder Legislativo e do Tribunal de Contas do Município;c) o limite geral de remuneração dos servidores municipais, a aplicar-se prospectivamente, nos termos dos dispositivos constitucionais referidos e da Lei municipal nº 3.080, de 21 de julho de 2000, e à luz do regime estabelecido na mesma Emenda nº 41, é de 81,22 % (oitenta e um e vinte e dois centésimos por cento) da maior remuneração atribuída por lei a Ministro do Supremo Tribunal Federal; para os membros do Egrégio Tribunal de Contas do Município, porém, que têm asseguradas “as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Desembargadores do Tribunal de Justiça”, o teto é de 90,25% (noventa e vinte e cinco centésimos por cento) daquela remuneração dos membros da Corte Suprema; e para os Srs. Vereadores, em vista da restrição imposta pelo art. 29, nº VI, “f”, da Carta Maior, o subsídio é restrito a 56,25% (cinqüenta e seis inteiros e vinte e cinco centésimos por cento) da referida remuneração máxima, observando-se, ainda, para as Procuradorias Municipais, o mesmo limite estabelecido para os Procuradores dos Estados;d) visto como “a limitação constitucional não tem por fim impedir ganhos individuais, mas conter gastos públicos”

22, os tetos apontados acima

não abrangem valores oriundos de fontes orçamentárias autônomas e diferentes;e) esses tetos, aplicáveis futuramente, compreendem vencimentos, verbas de representação e a generalidade dos acréscimos estipendiais, mas não abrangem pagamentos de cunho indenizatório, não podendo ser consideradas aditivamente as remunerações pelo exercício simultâneo de cargo efetivo e cargo em comissão.

É o parecer. À superior consideração.

Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 2004.

22CBQUJTUB, op. cit., p. 170.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 253

Flávio Andrade de Carvallho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o bem lançado parecer supra, que lucidamente conclui pela inaplicabilidade retroativa do regime instituído pela Emenda Constitucional nº 41, de 2003, pela invalidade constitucional do Decreto Municipal nº 23.919, de 16 de janeiro último e sua conseqüente ineficácia em relação ao Poder Legislativo e ao Tribunal de Contas do Município, pela fixação dos limites remuneratórios dos servidores municipais à base do subsídio estabelecido em lei para o Exmº. Sr. Prefeito, diferenciando-se dos atribuíveis aos Conselheiros do Tribunal de Contas do Município e aos Vereadores, pela inabrangência de ganhos de fontes diversas pelo teto remuneratório e pela exclusão, deste, das verbas indenizatórias.

Pode acrescentar-se às lúcidas observações expendidas que, logo após definir os limites de remuneração da Edilidade, o legislador constituinte cuida de apontar limites globais da despesa respectiva, do custo integral do Legislativo e do seu dispêndio com pessoal (arts. 29, nº VII, 29-A e § 1

o da

Constituição Federal, na redação da Emenda nº 25, de 14 de fevereiro de 2000). Evidencia-se, também aí, a finalidade única de contenção da despesa pública com pessoal, a nortear toda a construção técnico-jurídica em torno da matéria.

À consideração do Exmº. Sr. Presidente, sugerindo encaminhamento do referido parecer, mediante ofício, à nobre Presidência do Egrégio Tribunal de Contas.

Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 2004.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro