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1 O IDEAL DE LIBERDADE AS CIDADES-REPÚBLICAS E O IMPÉRIO Já em meados do século XII, o historiador germânico Oto de Freising reconhecia o surgimento de uma forma nova e notável de organização social e política no Norte da Itália. Observava, entre outros aspectos, que a sociedade italiana claramente perdera seu caráter feudal. Dizia Oto que “praticamente todo o país está dividido entre as cidades” e que “mal se pode encontrar um nobre ou rico-homem em todo o território adjacente a uma cidade que não reconheça a autoridade desta” (p. 127). Outra novidade que ele assinalava - e que o impressionou como sendo até mais subversiva - estava no fato de que as cidades haviam desenvolvido uma forma de vida política inteiramente em conflito com a convicção, que então prevalecia, de que a monarquia hereditária seria a única forma correta de governo. Tinham-se tomado, as cidades italianas, “tão desejosas de liberdade” que se converteram em repúblicas independentes; cada uma delas era governada “pela vontade de cônsules mais que de príncipes”, a quem “trocavam [do cargo] quase que anualmente”, a fim de garantir que fosse controlado seu “apetite de poder” e preservada a liberdade popular (p. 127). A primeira cidade italiana a adotar uma forma consular de governo como a descrita foi, tanto quanto se sabe, Pisa, no ano de 1085 (Waley, 1969, p. 57). Dali esse sistema rapidamente se difundiu pela Lombardia assim como pela Toscana, aparecendo regimes análogos em Milão já em 1097, em Arezzo no ano seguinte, e em Luca, Bolonha e Siena por volta de 1125 (Waley, 1969, p. 60). Na segunda metade do século ocorreu uma importante modificação: o poder dos cônsules foi suplantado por uma forma mais estável de governo eletivo à volta de um funcionário conhecido como podestà, assim chamado porque era investido com o poder supremo - ou potestas - sobre a cidade. Normalmente o podestà era cidadão de outra cidade, procedimento seguido a fim de garantir que nenhum vínculo ou lealdade local o perturbasse na admi 25

Texto 01 - SKINNER, QUENTIN. Capítulo O Ideal de Liberdade. in. as Fundações Do Pensamento Político Moderno-Companhia Das Letras (1996)

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1O IDEAL DE LIBERDADEAS CIDADES-REPBLICAS E O IMPRIOJemmeadosdosculoXII,ohistoriadorgermnicoOtodeFreising reconheciaosurgimentodeumaformanovaenotveldeorganizaosociale polticanoNortedaItlia.Observava,entreoutrosaspectos,queasociedade italiana claramente perdera seu carter feudal. Dizia Oto que praticamente todo o pasestdivididoentreascidadesequemalsepodeencontrarumnobreou rico-homememtodooterritrioadjacenteaumacidadequenoreconheaa autoridadedesta(p.127).Outranovidadequeeleassinalava- equeo impressionoucomosendoatmaissubversiva- estavano fatodequeas cidades haviam desenvolvidoumaforma devidapolticainteiramente em conflito com a convico,queentoprevalecia,dequeamonarquiahereditriaseriaanica forma corretade governo. Tinham-se tomado,as cidades italianas, to desejosas deliberdadequeseconverteramemrepblicasindependentes;cadaumadelas eragovernadapelavontadedecnsulesmaisquedeprncipes,aquem trocavam[docargo]quasequeanualmente,afimdegarantirquefosse controlado seu apetite de poder e preservada a liberdade popular (p. 127).Aprimeira cidadeitalianaaadotarumaformaconsular degovernocomoa descrita foi, tanto quanto se sabe, Pisa, no ano de 1085 (Waley, 1969, p. 57). Dali essesistemarapidamentesedifundiupelaLombardiaassimcomopelaToscana, aparecendo regimes anlogos em Milo j em 1097, em Arezzo no ano seguinte, e emLuca,BolonhaeSienaporvoltade1125(Waley,1969,p.60).Nasegunda metadedosculoocorreu umaimportantemodificao:opoderdos cnsulesfoi suplantadoporumaformamaisestveldegovernoeletivovoltadeum funcionrio conhecido como podest, assim chamadoporqueerainvestidocomopodersupremo- oupotestas- sobreacidade. Normalmente o podest era cidado de outra cidade, procedimento seguido a fim de garantir que nenhum vnculo ou lealdade local o perturbasse na admi25nistrao,quedeveriaserimparcial,dajustia.Eraeleitopelovotopopular,e geralmente governava consultando dois conselhos principais, sendo que um deles poderiachegarateratseiscentosmembros,enquantooconselhomenorou secretousualmenteestarialimitadoaunsquarentacidadosdemaiordestaque (Waley, 1969, p. 62).Opodestdetinhalargopoder,jquelhecabiaopapeldeprincipal funcionrioda cidade tanto no plano judicante quanto no administrativo,e servia como seumais importante porta-voz nasmisses diplomticas que sempre havia. Contudo,aprincipalcaractersticaamarc-Ioeraquesuacondiosemprefoia deumfuncionrioassalariado,nuncaadeumgovernanteindependente.Seu tempo de mandato costumava limitar-se a seis meses, e por todo esse prazo ele se conservavaresponsvelperanteocorpodecidadosqueoelegera.Notinhao direito iniciativa de decises polticas, e ao terminar seu mandato era obrigado a submeter-seaumexameformaldesuascontasesentenas,antesdeobter permisso para deixar a cidade que o empregara (Waley, 1969, pp. 68-9).EmfinsdosculoXII,essaformarepublicanadeautogovernojfora adotadaporquasetodasasprincipaiscidadesdoNortedaItlia(Hyde,1973,p. 101). Contudo, se isso Ihes proporcionava uma certa independncia defacto,continuavam,porm,dedireito,aserconsideradasvassalasdoSanto Imprioromano.As pretenses legaisdosimperadoresgermnicossobrea Itlia vinhamjdesdeostemposdeCarlosMagno,cujoimprioseestenderada Alemanha at o Norte da Itlia em princpios do sculo IX. No correr do sculo X, tais pretenses foram novamente asseveradas, e com vigor, especialmente quando Oto I decretou a anexao do Regnum ltalicum a suas possesses germnicas.l Ao ascenderFredericoBarbarossaaotronoimperial,emmeadosdosculoXII,os imperadores j tinham assim duas razes especiais para insistir em que a condio legaldoRegnumdoNortedaItliaerademeraprovnciadoImprio.Uma delaseraque- comodizOtodeFreising- ascidadeshaviamcomeadoa escarnecerdaautoridadedoimperadorearecebercomhostilidadeaquelea quemdeviamaceitarcomoseugentilprncipe.Outrarazo,queOto ingenuamenteacrescenta,eraque,seoimperadorconseguissesubjugartodoo NortedaItlia,eleassimsetomariaosenhordeumverdadeirojardimde delcias,jqueporessapocaascidadesdaplancielombardahaviam suplantadotodososoutrosEstadosdomundoemriquezasepoder(pp.126, 128).Aesperanadeobtertesourotograndeejdisponvel,somada respeitvel pretensodeimporajurisdioimperialsobrearegio,resultouem queumasriedeimperadoresgermnicos,apartirdaprimeiraexpediode FredericoBarbarossaItlia(em1154),lutouporquasedoissculosafimde impor sua regra ao Regnum ltalicum,enquantoasprincipaiscidadesdoRegnumsebatiam,comigualdeterminao, para afirmar sua independncia.AsprimeirasduasexpediesdeFredericoBarbarossapraticamentelhe deramocontroledetodaaLombardia.Elecomeouatacandoosaliadosde Milo,detodasascidadesamaioremaisciosadesuaindependncia,eemsua segundaexpediodeitoucercoprpriaMilo,queconquistouearrasoupor completoem1162(Munz,1969,pp.74-5).Poressapocajsevaleradesuas primeiras vitrias convocando uma Dieta Geral em Roncaglia, no ano de 1158, na qualproclamouemtermosinequvocosasuasoberaniasobretodooRegnum ltalicum (Balzani, 1926, p. 427). Contudo, foi exatamente esse sucesso que levou ascidades,normalmentedivididasentresi,aseunircontraele.Milotomoua iniciativa em 1167, constituindo a Liga Lombarda para resistir a suas pretenses, e logoconseguiuaadesode29outrascidades(Waley, 1969,p.126).Barbarossa regressou em 1174, querendo tomar a impor sua autoridade, mas dois anos depois, em Legnano, as foras conjugadas da Liga infligiram aos exrcitos imperiais uma derrotaque,emborafrutodasorte,serevelouabsolutamentedecisiva(Munz, 1969pp.310-1).Depoisdisso,srestavaaoimperadoraalternativadefirmarumacordocomaLiga,eassimelerenunciouem1183,napazdeConstana,a qualquer direito de interferir no governo interno das cidades da Lombardia (Munz, 1969, pp. 361-2).OprximoimperadoratentarrealizaraidiadoSantoImprioromano medianteocontroledoRegnumltalicumfoiFredericoII,quecomunicouseu grande desgnio Dieta Geral de Piacenza, em 1235, instando em tom ameaador os italianos a retomarem unidade do Imprio (Schipa, 1929, p. 152). Tambm dessavezoimperadorcomeoutendoxitoaoimporsuavontadescidades-Estado.TomouVicenzaem1236,oqueporsuavezacarretouarendiode Ferrarano anoseguinte, eem fins de 1237 obteve umavitriaesmagadorasobre os exrcitos da Liga Lombrda, que entrementes se reativaranocampodebatalhadeCortenuova(VanCleve,1972,pp.398-407). Tambmdessavez,porm,aextensodasvitriasdeFredericoserviupara congregarseusinimigossobaliderana dosmilaneses,implacveisemsua hostilidade(VanCleve,1972,pp.169,230,392).EstesretomaramFerraraem 1239, ocuparam o porto imperial de Ravena no mesmo ano e levaram a guerraportodaaToscana,etambmpelaLombardia,duranteadcadaqueseseguiu (Schipa, 1929, pp. 155-6). Emborasofressemuma srie de reveses, acabaram por trazerossonhosdosimperialistasaumignominiosofim:em1248,oimperador perdeutodooseutesouroaoser-lhetomadaacidadedeVittoria;em1249,seu filhofoifeitoprisioneiroquandoasforasdaLigareocuparamModena;eao terminaroanoseguinte oprprioFredericomorria (VanCleve,1972, pp.510-2; Schipa, 1929, pp. 162-4).2627OscomeosdosculoXIVassistiramamaisduastentativasdos imperadoresgermnicosdefazervalersuapretensoaseremosgovernantes legaisdoRegnumItalicum.AprimeirafoilevadaacabopeloherideDante, Henrique de Luxemburgo, que chegou Itlia em 1310 (Armstrong, 1932, p. 32). Assim comoseuspredecessores, tevesucessodeincio,esmagandorebeliesem CremonaeLodi,bemcomocercandoBrescia,em1311,antesdeseguirpara Roma a fim de ser coroado pelo papa, no ano seguinte (Bowsky, 1960, pp. 111-2, 114-8,159).Masumavezmaisotriunfoimperiallevou seusinimigosase unirem, dessafeita sob a liderana de Florena, amaior defensoradasliberdades republicanasdesdequeosmilaneseshaviamsucumbidoanteodespotismodos Visconti, na gerao anterior. Os florentinos tiveram sucessoem suscitarrevoltas emPdua,GnovaeLodi,bemcomoemrepelirdesuaprpriacidadeasforas doimperador,nofinalde1312(Armstrong,1932,p.38).Odesfechofoi novamente desastroso para a causa imperial: depois de aguardar por quase um ano reforosquelhepermitissemumnovoassaltoaFlorena,oimperadormorreu bemnoinciodacampanha,eseusexrcitosimediatamentesedispersaram (Bowsky,1960,pp.173-4,204-5).PoressapocajseevidenciavaqueaItlia jamaisse submeteria tutelaimperial,demodo queaderradeiratentativadeum imperador - Lus da Baviera,em 1327 - deinsistir em seus direitos resultounum fracassoabjeto.PercebendoqueosmagrosfundosdeLusnuncapoderiam financiarseusgrandiososdesgnios,ascidadessimplesmenteaguardaramos acontecimentos,evitandoqualquerenfrentamentodemaiorescalaatqueos exrcitos imperiais,no recebendo sua paga, se dissolveram, como era de esperar (Offler, 1956, pp. 38-9).Durante essa longa luta, as cidadesda Lombardiae da Toscana no tiveram xitoapenasaovenceroimperadornocampodebatalha:tambmconseguiram constituirumvastoarsenaldearmasideolgicas,comasquaisprocuraram legitimar essa continuada resistncia quele que era, nominalmente, seu suserano. A essncia de sua objeo s exigncias do imperador consistiana tese dequeelastinhamodireitoapreservarsualiberdadecontraqualquer interferncia externa. verdade que, recentemente, levantaram-se dvidas sobreem quemedida se podeconsideraressa ideologia como constitudade formadeliberadaeconsciente.Holmes,porexemplo,sustentouqueascidades jamais conseguiram dar a seu conceito de liberdade mais que um sentido vago e ambguo (Holmes, 1973, p. 129). Mas pode-se afirmar que Holmes subestima aprecoceextensodaconscinciacvicadessascidades.Depreende-se,de numerosas proclamaes oficiais, que seus propagandistas geralmente tinham em menteduasidiasbastanteclarasedistintasquandodefendiamsualiberdade contraoImprio:umaeraaidiadodireitoanosofreremqualquercontrole externo de sua prpria vida poltica - ou seja, a28,...~ ,afirmao de sua soberania; outra era a idia do direito, conseqente do primeiro, asegovernaremconformeentendessemmelhor- ouseja,adefesadesuas constituies republicanas.Amaneiracomootermoliberdadeentoveioaconotartantoa independnciapolticaquantooautogovernorepublicanofoidelineadaemdois importantesestudosdopensamentopolticoflorentinonosculoXIV. BuenodeMesquitaprovou,estudandoascartasdiplomticasflorentinasao tempodainvasodeHenriqueVII(em1310),que,quandoosflorentinos tomaramainiciativadeseoporaoimperadorproclamandoaliberdadeda Toscana,suapreocupaofundamentalconsistiaemdeitarforaojugoda servido tutela germnica e reafirmar seu direito de se autogovernarem (Bueno de Mesquita,1965, p. 305).Analogamente,Rubinsteinmostrou queos conceitos delibertaselibertvieramaserutilizadosquasecomotermostcnicosda polticaediplomaciaflorentinasnocursodosculoXIV,eeramquase invariavelmente usados a fim de expressar essas mesmas idias de independncia eautogoverno(Rubinstein,1952,p.29).Masessadistinodaliberdadeno deveserconsideradaumamerainvenodoTrezentos.Jencontramosos mesmos ideais invocados no ano de 1177, no decorrer das primeiras negociaes quejamaisocorreramentreascidadesitalianas,oimperadoreopapa.Elasse seguiram decisiva derrota de Barbarossa pelas foras da Liga Lombarda, no ano anterior. Segundo o que Romoaldo relata em seus Anais, o discurso proferido nos debates pelos embaixadores de Ferrara inclua uma fervorosa apstrofe honra e liberdadedaItlia,acompanhadadaconvicodequeoscidadosdoRegnum prefeririammorrergloriosamenteemliberdadeaterumavidamiservele servil.Osembaixadoresdeixaramclaroque,aoapelaraoidealdaliberdade, tinhamduasidiasprincipaisemmira.Porliberdadeelesentendiam,antesde mais nada, sua, independncia do imperador, pois insistiam em que desejaremos aceitara~azdoimperadorapenasnamedidaemquenossaliberdadese conservar\inviolada.E por liberdade tambm entendiam seu direitoa conservar asformasvigentesdegoverno,poisaduziamque,emborano[tivessem] vontadedenegaraoimperadorquaisquerjurisdiesantigas,sentiam-se obrigados a insistir em que no podemos em nenhuma circunstncia renunciar liberdadequeherdamosdenossosancestrais,esaperderemossejunto perdermos a prpria vida (pp. 444-5).Mas sem dvidahaviaumafraqueza nessas afirmaes da libertascontrao Imprio:ascidadesnotinhammeiosdeinvesti-Iasdequalquerforalegal.A causadessadificuldaderesidianofatodeque,desdequeoestudododireito romano renascera nas universidades de Ravena e Bolonha, em fins do sculo XI, ocdigocivilromanopassouaservircomoabaseemqueseenquadravama teoria e a prtica da lei por todo o Santo Imprio romano. E,29desde que os juristas comearam a estudar e a glosar os textos antigos, o princpio cardealparaainterpretaodalei- eacaractersticaquedefiniuaescolaquese chamoudosGlosadores- foiodeseguircomabsolutafidelidadeaspalavrasdo Cdigo de Justiniano, aplicando seus resultados to literalmente quanto possvel s circunstnciasdominantes(Vinogradoff,1929,pp.54-8).Ora,nopodiahavera menor dvida quanto ao fato de que os antigos textos jurdicos enunciavam, e com abundncia de palavras,queo princeps- identificadoportodos os juristascom o Santo Imperadorromano deviaserconsiderado o dominus mundi,osenhor nico domundo.Issosignificavaque,enquantoosmtodosliteraisdosglosadores continuassemaserusadosnainterpretaododireitoromano,ascidadesno teriam a menor possibilidade de alegar qualquer independncia de iure do Imprio - aopassoqueosimperadorestinhamdisposioomaisslidoamparolegal possvel nas suas campanhas para subjugar as cidades (Vinogradoff, 1929, pp. 60-2).Esseproblemaficouagudamenteclarobemnoinciodoconflitoentreas cidadeseoImprio,quandotodososquatroprincipaisdoutoresemdireitoda Universidadede Bolonhanoapenas aceitaram figurarna comisso que elaborou osDecretosdeRoncagliaassinadosporFredericoBarbarossaem1158,como tambmdefenderamnostermosmaisenfticososdireitoslegaisdoimperador soberania sobre as cidades italianas.2 Eles o definiram comogovernantesupremo,emtodosostempos,sobretodososseussditosdetoda aparte, e insistiram em que, mesmo no interior das cidades italianas,eleconservavao poder deconstituir todososmagistradosparaaadministrao dajustiaederemov-loscasonegligenciassemosseusdeveres(pp.245, 246).Oefeitodessasalegaesera,obviamente,odenegarscidadestodae qualquerautoridade, atmesmoparanomearou controlarseu podest,demodo que suas pretenses liberdade perdiam qualquer aparncia de legalidade.Assim se evidenciava que, se as cidades haviam de conseguir dar uma base legal adequada a suas pretenses contra o Imprio, antes demais nada precisaria ocorrer uma mudana fundamental na atitude de seus prpriosjuristas em face da autoridade dos antigos livros de direito. Mas uma tal mudana deperspectivaeraimpossvelparaosglosadores,cujopostuladocontinuava sendoqueoimperadordeviaseridentificadoaoprincepsdoCdigode Justiniano,emunidoportantodomesmoelencodedireitoslegais.Emcomeos dosculoXIV,porm, anteameaasqueserenovavamporpartedosimperiais, finalmenteseproduziuaalteraodeperspectiva quesefazianecessria.A grande figura nessa reorientao, o fundador da escola que sechamariadosPs-Glosadores,foiBartolusouBartolodeSaxoferrato(131457), talvez o mais original entre os juristas da Idade Mdia.BartoloeranascidonoRegnumltalicum;estudouemBolonhaedepois lecionoudireitoromanoemvriasuniversidadesdaToscanaedaLombardia (Woolf, 1913,pp.1-2).Elepartiu daintenoexplcitadereinterpretarocdigo civilromanocomoobjetivodeproporcionarscomunaslombardasetoscanas umadefesalegal,enoapenasretrica,desualiberdadecontraoImprio.O resultadodeseustrabalhosnofoiapenasodedarincioaumarevoluono estudododireitoromano(queseriaconsolidada,maistarde,porseugrande discpulo Baldo, ou Baldus), mas tambm o de avanar decididamente no rumo da idia,quecaracterizaramodernidade,devriosEstadossoberanos,separados entre si e independentes do Imprio.A contribuio primeira de Bartolo foi, assim, metodolgica. Rompeu com o pressupostobsicodosglosadoressegundooqual,quandoaleisemostra descompassadacomosfatoslegais,soestesquedevemserajustadospara acolher uma interpretao literal da lei. Em vez disso, adotou como preceito nico que,quandoaleieosfatoscolidem,aleiquedeveseconformaraosfatos (Woolf, 1913,p. 5).Como eleprpriodisseem seu comentrioaoCdigo, no deversoarsurpreendentequeeudeixedeseguiraspalavrasdaGlosaquando elasmeparecemsercontrriasverdade,oucontrriasquerrazoquerlei (voI. 8, p. 195).Oefeitodessamudanafoitornarpossvelumacompletadenegaodas pretenseslegaisdoimperadorquantoscidadesitalianas.certoqueBartolo iniciaseucomentrioaoCdigoconcedendoque,dedireito,oimperadoro nico dominus mundi (voI. 7, p. 7). Ele at mesmo se dispe a concordar com os glosadoresque,dopontodevistatcnico,oImprioconstituianicaunidade jurisdicionalnaEuropa,demodoqueosregnaoureinosindependentesno passamdeprovnciasimperiais,enquantoascidadesEstado,oucivitates,soo equivalentedascidadesimperiaisromanas(voI.7,p.7).Masimediatamente acrescentaque,aindaqueoimper;1dorpossapretenderdedireitoseronico governante do mundo, h porni muitos povosque de facto no obedecem a ele. Est claro que Bartolo pensa particularImentenocasoitaliano,poisobservaqueasleisimperiais,porexemplo,no obrigam os florentinos, ou outros que se recusam de facto a obedecer aos decretos doimperador(voI.7, p.7). Mais adiante,eleassinalaamesma questoquando discute,emseucomentriosobreoDigesto,oqueaautoridadededelegar. Admite que, de direito, somente o imperador porta o merum lmperium, o supremo poderdelegislar.Masprontamenteaduzqueemnossosdias,portodaaItlia, todososgovernantesdascidadesassumemdefatooexercciodessesmesmos poderes legislativos (voI. 5, p. 69).O prprio Bartolo reconhece que uma tal conduta por parte dos florentinos - tecnicamente - irregular e contrria lei (voI. 9, p. 64). Mas parece ser enganoso concluir disso - como faz Keen - que Bartolo ainda esteja3031essencialmenteempenhadoemdefenderaautoridadedoimperadorsobreo universo,ereluteematribuirscidadesqualquerpoderindependente(Keen, 1965,p.115).Umatalleiturasubestimaaimportnciadoaxiomabsicode Bartolo,segundooqualaleideverender-seaosfatos.Ora,desdequeBartolo combinaessa tesecomaobservaodequeas cidadesitalianas possuem povos livresqueestocapacitadosdefatoafazerleiseestatutosdequalquermodo que escolham, ele nohesita em abriruma perspectiva inteiramente nova diante da anlise convencional do merum Imperium: e insiste em que a lei e, portanto, o prprioimperadordevemseprepararparaaceitarasituaodefacto(voI.9,p. 64).O primeiro ponto no qual vemos Bartolo dar, decididamente, esse passo est ligado questo de se cabe dizer que as cidades italianas tm o direito de fazer e executarsuasprpriasleis,discutidabasicamenteemseucomentriosobreo Digesto,naparteem queanalisaacondiodosjuzespblicos(voI.6,p.411). Umdosproblemasqueentolevantaseumacidade[singularmente considerada] pode conceder graa no caso de conduta infame por parte de seus servidoreslegais.Bartolocomearespondendonoestiloconvencionaldos glosadores: parece que no pode, porque uma cidade isolada no pode baixar leis emtaisassuntos(voI.6,p.423).Logoacrescenta,porm,queascidadesque noreconhecem[umpoder]superiorimpem,defato,penalidades,econcedem graaemtaiscasos(voI.6,p.422).Depois,sustentaqueanicamaneirade resolver esse dilema ser recorrendo ao princpio bsico segundo o qual a lei deve acomodar-se aos fatos. Isso lhe permite concluir, ento, que no caso das cidades daItliaatual,eespecialmentedaquelascidadestoscanasquenoreconhecem ningum como superior a elas, julgo que constituem por si mesmas um povo livre, eportantopossuemomerumImperiumemsimesmas,tendotantopodersobre sua prpria populaa quanto o imperador geralmente possui (voI. 6, p. 423).A mesma questo Bartolo tratar com nfase ainda maior em seu comentrio sobreoCdigo,naseoemquediscuteseumlongoperododetemposerve para confirmar um contrato (voI. 7, p. 159). Depois de propor uma anlise geral a esserespeito,elepassa aconsiderar,comodecostume,aquestonotocantes cidades italianas, ampliando porm a pergunta para a seguinte: pode se considerar quetenhaalgumabaselegalomerumImperiumqueessascidadestm reivindicado de fato? Comea pela resposta de praxe, reconhecendo que, se for o casodeessascidadesteremomerumImperium,seressencialqueconsigam provarquedetmdoimperadortalconcesso(voI.7,p.160).Suaprpria resposta,porm,dependemaisumavezdaaplicaodeseuprincpio-chave, segundooqualaleideveadequar-seaosfatos.Issoolevaaconsiderar fundamentalqueessascidades,defacto,detenhamomerumImperiumdesde muito tempo. E a constatao o faz concluir que,32P' .mesmoquenoconsigamprovarquetmumaconcessodoimperador,sugiro que,namedidaemquepossamprovarquetmexercidodefactoomerum Imperium, ento ser vlida sua pretenso a exerc-lo (voI. 7, p. 160).Obviamentepodemosler,nessadefesadascidadesitalianasedeseu Imperium,umaimplcitapretensorevolucionria:oanseiodeserem reconhecidas como corpos plenamente soberanos e independentes. Essa concluso acabasendoexplicitadaporBartolonaformadeumepigramaque,podemos dizer,encarnaaessnciadeseuataqueaosglosadoresedemaisdefensoresdo Imprio. Declara ele que, como as cidades so governadas por povos livres que possuemseuprprioImperium,pode-seentodizerqueelasefetivamente constituem sibi princeps, ou seja, que cada uma delas princeps de si mesma. Isto posto,poucofaltavapara:seestenderessadoutrinadascidadesitalianasparaos reinos da Europa mais ao norte, e assim chegar tese de que Rex in regno suo est Imperator- dequecadarei,em seureino,equivaleemautoridadeaoimperador. Essa sugesto j tinha sido adiantada por Huguccio e outros canonistas, desejosos queestavamdeexaltarosdireitosdosreinossecularesanteoimperador,no quadrodesuacampanhacontraoImprioeemfavordaIgreja.Mascoubea Bartolo e a Baldo - junto com os juristas franceses a servio de Filipe, o Belo - dar opassorevolucionriodeintroduziramesmadoutrinanocorpododireitocivil, assimencetandoapassagem,decisiva,paraaarticulaodomodernoconceito legal de Estado (Riesenberg, 1956, pp. 82-3).Alcanandoessa concluso, Bartolo sentiu-se entocapacitado a prestarum grande servio ideolgico causa das cidades italianas: foi assim que ele assentou numa base legal adequada as duas pretenses liberdade que tentavam fazer valer durantealongalutaquetravaram contraoIl11prio.Primeiro,desenvolvendoo conceito de sibi princeps [prncipe de si mesmo], ele pde defender a idia de que ascidadestmliberdadenosentidodeseremlivresdequalquerinterferncia externa na gesto de seus negcios polticosinternos. OndeBartolo endossa com maiornfaseessateseemseulcomentriosobreoDigesto,naparteemque analisaumadascaractersticasyssenciaisdasoberania,odireitodedelegar jurisdioajuzessubordinados(voI.1,p.428).Aodiscutiressetpicoem relaoscidades,elecomeareconhecendoqueumataldelegaono possvelemcidadesquereconhecemumsuperior,dadoqueestasesto obrigadasareferir-seaoimperador.Maslogoacrescentaqueasituao completamentedistintanocasodecidadesqueserecusamareconhecero senhorio do imperador, j que estas podem fazer suas prprias leis e organizar seugovernodequalquermodoqueescolhamfaz-lo.Arazodissoquenum talcasoaprpria cidadesibiprinceps,imperadordesimesma(voI.1,p. 430).33Finalmente,Bartoloempregaomesmoconceitoparadefenderemtermos legaisaoutrapretensodascidadesliberdade:atesedequeelasdevemser livres para escolher seu prprio formato poltico e, em especial, para conservar o estilonelasestabelecido degovernorepublicano.Bartolomontaasuamais desenvolvidadefesadesseprincpionocomentriosobreoDigesto,mais especificamentenaparteemquediscuteodireitodeapelo(voI.6,p.576). Comeaexpondoahierarquiaconvencionaldeapelos,dosjuzesinferioresaos superiores, que h de culminar na suprema figura do princeps ou imperador. Mas depois reconhece que bem pode haver uma cidade livre cujos procedimentos no se possam enquadrar nessas regras assim padronizadas. Seria esse o caso de uma cidade- comoFlorena- quereivindica completaliberdadeno sentidodeque no apenas no reconhece superior, mas tambm de que elege seu prprio governante, e no possui outro governo. Aquesto,numtalcaso,:Quementojulgarasapelaes?.Arespostaque Bartolopropeinequvoca:Numcasodesses,oprpriopovodeve desempenharopapeldejuizdasapelaes,ouentoumaclasseespecialde cidadosdesignadaporseugoverno.Arazoqueeled,maisumavez,que numcasodessesoprpriopovoconstituionicosuperiorquesepossa encontrar,eassimseconstitui sibi princeps,imperadordesimesmo(voI.6,p. 580).AS CIDADES-REPBLICAS E O PAPADODurantetodaalutaquetravaramcontraoImprio,ascidadesitalianas tiveram como seu aliado principal o papado. Essa aliana foi selada, pela primeira vez,pelopapaAlexandreIII,depoisqueBarbarossaserecusouasancionarsua elevaoaotronopontifcio,em1159(Balzani,1926,pp.430-2).Quandoas cidadesdaLombardiaformaramsuaLiga,em1167,Alexandreforneceu-Ihes fundoseencorajou-asaconstruirumacidadefortificada- aquemuito adequadamentederamonomedeAlessandria- afimdedeteroavanodo imperador (Knapke, 1939, p. 76). E quando a Liga se uniu contra Barbarossa, em 1174,foiAlexandrequemliderouoataque,eposteriormenteiniciouas negociaesquehaviamderesultar,em1183,napazdeConstana(Knapke, 1939,pp.77-8).Amesmaalianafoireativadamaistarde,anteasinvases conduzidasporFrederico IInadcadade1230.GregrioIXfirmouumtratado contraoimperador,em1238,comGnovaeVeneza,enoanoseguinte excomungouFredericoesolenementerestabeleceuoscompromissoscomaLiga Lombarda(VanCleve,1972, p.419;Waley, 1961,pp.145, 1489).Seu sucessor, InocncioIV,prosseguiunessamesmapolticaapssuaeleioem1243. Empregou tropas pontifcias para atacar as guarnies imperiais34,.,.,- .naLombardia,eretomouasnegociaescomascidadestoscanasafimde reforarsua cruzada antiimperialista (Schipa,1929, p. 157). (Foi nesse momento que o termo guelfo comeou a ser utilizado, na Toscana, para designar aqueles queeramaliadosdopapa.)Uma trguacomoimperador psfimaessafasedo conflito,em1244.Mas,quandoFredericodeuindciosdepretendermodificar seustermos,Inocnciooexcomungou,convocandoademaisumconclioqueo proclamou deposto, e ao mesmo tempo conduziu as cidades lombardas srie de vitriasmilitaresqueacaboucomasinvasesimperiais,em1250 (VanCleve, 1972, pp. 484-6; Partner, 1972, p. 256).Contudo,essaalianacomportavaumperigo- comoascidadeslogo perceberamasuas prpriascustas: odequeospapascomeassem aaspirareles mesmos agovernar o Regnum Italicum.Essa ambio primeirose evidenciouno correrdosanos1260,anteastentativasdofilhoilegtimodeFredericoII, Manfredo, de servir-se de sua base como rei de Npoles a fim de dar continuidade polticaitalianadeseupai.UrbanoIVreagiuexcomungandoManfredo,em 1263,econvidandoCarlosdeAnjouaenfrent-locomocampeodaIgreja (Runciman, 1958, pp.65, 70, 81).Carlos chegou aRoma com seus exrcitosem finsde1265,enocomeodoanoseguinteganhouumabatalhadecisivaem Benevento,emqueManfredoencontrouamorteeforamdesbaratadasassuas tropas(Runciman,1958,pp.88-95).QuandoConradino,oltimofilhoque restavadeFrederi.Q,tentourevidaroataqueinvadindoaItliaapartirda Alemanha,em1267,CarlosdeAnjouinfligiuaosexrcitosimperiais,em Tagliacozzo,umaderrotatalvezfortuita,pormdefinitiva- umdesfechoque deixouaSromananopapeldepoderpredominantenumavastareadoNorte, bem como do Centro e do Sul, da Itlia (Runciman, 1958, pp. 105, 108-12).Poressapoca,ospapastambmtinhamcomeadoadarmaisdiretamente vazo a suasambiestemporais, procurandomanipular as polticas internasdas cidadesdoNortedaItlia.Osprimeirospassosnessesentidoderam-sena Lombardia,ondeEzzelinodaRomano,oprincipalaliadodosimperialistas,pela dcadade1240,tinha alcanadoocontrolesobreum territriodeamplido sem precedentes,queincluaVerona,Pdua,Ferraraeamaiorpartedoscampos adjacentes (Hyde, 1966a, p. 199). Alexandre IV convocou uma cruzada contra ele em1255eindicouFilipe,arcebispodeRavena,paracomand-Ia.Filipe conseguiulibertarPduaem1256,eapsmaistrsanosdecombatesveioa vencerecapturarEzzelinoemAdda,noanode1259,umavitriaquemuito fortaleceuocontroledopapadosobreascidadesdaLombardiaoriental(Allen, 1910, pp. 76-87).Aseguir,ospapasvoltaramaatenoparaaToscanaeoCentrodaItlia. Clemente IVconcentrou-se emOrvieto,percebendoaimportnciaestratgica de sua posio, a meio caminho entre Florena e Roma. At chegou a trans35feriraCriaparaessacidade,em1266,noquefoiseguidoporGregrioxem 1272,eporMartinhoIVeNicolauIVemvriasocasiesnoltimoquarteldo sculo(Waley,1952,p.48).Aomesmotempo,ospapastambmcomeavama ampliarsuainflunciasobreasprincipaiscidadesdaToscana.MartinhoIV firmou uma aliana com a Liga Guelfa em 1281, concedendo a Florena, Siena e VolterraodireitodecoletarimpostospapaiscomoummeiodetrazIas definitivamenteparasuacausa(Previt-Orton,1929,p.202).Nadcadaquese seguiu, Bonifcio VIII comeou a intrometer-se nas faces internas de Florena, esperando adquirir controle sobre essa cidade a fim de aumentar seus rendimentos egarantirafronteirasetentrionaldosterritriosqueentopossua(Boase,1933, p.84).Quandoosflorentinoslheenviaramumaembaixadaem1300(daqual afirma-sequeDanteteriaparticipado),paraprotestarcontraessasmaquinaes, Bonifcio reagiu excomungando a signo ria inteira, incumbindo Carlos de Anjou de tomar a cidade e promovendo, assim, o golpe de Estado de 1301, que derrubou ogoverno,quelheerahostil,dosBrancos(Armstrong,1932, pp.12-4;Boase, 1933,pp.249-50).Finalmente,ospapasconseguiram,poressamesmapoca, imporsuaautoridadesobreaRomanha,tradicionalmenteomaiorsustentculo imperialista. Quando Gregrio x apoiou - com sucesso - a candidatura de Rodolfo de Habsburgo ao trono imperial, em 1273, uma das condies que dele exigiu foi que todaaregioemtornodeBolonha,maisaRomanha,fossemcedidaspelo Imprioepostassobocontrolediretodopapa.Asnegociaessecompletaram em1278,quandoambasasprovnciasforamformalmenteanexadasporNicolau III(Lamer,1965,pp.40-2).Comoresultado,opapado,emfinsdosculoXIII, conseguira assumir controle direto e temporal sobre uma vasta parte do centro da Itlia,assim comoconsidervelinflunciasobreamaioriadasprincipais cidades do Regnum Italicum.Essapolticafoiacompanhadadaelaboraodeumaideologiadestinadaa legitimarasmaisagressivaspretensesdopapadoagovernarintemporalibus (nosassuntostemporais).Oquadrointelectualnecessrioparaesse desdobramento comeou a ser montado por Graciano na dcada de 1140, quando, reunindo numnicosistemaosdecretospapaisatentoacumulados,fundou de fatoocdigodedireitocannico(Ullmann,1972,pp.17980).Seguiu-seento umasriedepapasjuristasquecontinuaramasofisticareaampliarabaselegal para a pretenso do papado a exercersua assim chamadaplenitudo potestatis, ou plenitudedepodertanto temporal quantoespiritual. Oprimeirodeles,Alexandre III,antigoalunodeGracianoemBolonha,foiquemefetivamentefrustrouas tentativasdeBarbarossa dereduziraIgrejaaummeropatriarcadodoImprio (Pacaut,1956,pp.59-60,179-81).OseguintefoiInocncioIII,discpulodo canonista Huguccio, que veio a ser considerado como o maior expoente da teoria canonista da supremacia ponti36,..fcia sobre os negcios temporais (Watt, 1965, p. 72; Ullmann, 1972, p. 209). As mesmas doutrinas foram aprimoradas e desenvolvidas em meados do sculo XIII por InocncioIV, especialmente emseu decreto Ad Apostolice Sedes, a primeira exposio sistemtica que um canonista fez da tese segundoa qual em sua essncia a sociedade crist um s corpo unificado, tendo nopapa sua cabea suprema (Watt, 1965, p. 72). E, por fim, na passagem dosculo, Bonifcio VIII reiterou as mesmas doutrinas naquele estilo bombsticoque o distinguiu, e em particular na sua clebre bula de 1302, Unam Sanctam(Boase,1933,p.317).Estacomeacomatesetradicionaldequenasociedade cristhdoisgldios,oespiritualeotemporal;masimediatamentepassaa insistir em que preciso que um gldio esteja sob o outro, e por conseguinte que opodertemporalestejasubordinadoaoespiritual.Eterminanumtomainda maisarrogante,esclarecendoquealtimainstnciatantodogldiotemporal quantodoespiritualdevecaberao vigriodeCristo,umavezqueopoder espiritualdetmaautoridadedeinstituiropoderterrenoedejulg-locasoeste deixe de agir como adequado (p. 459).Em face dessa agresso pontifcia que se manifestava tanto numa poltica de expanso quanto numa propaganda ativa, vrias cidades italianascomearamareagir.EssemovimentoseiniciounaLombardia,centroeorigem dasliberdadescomunais.AcidadedePduaentrouem1266numaimportante disputa com as igrejas locais, a propsito da recusa destas a pagar impostos, e em 1282praticamenteprivouocleropaduanodaproteodalei(Hyde,1966a,p. 239).Amesmaespciededissensologose difundiupor todaa Toscanae Itlia central.UmlevantesedeuemOrvieto,em1281,contraapresenadaCria, seguido de outra insurreio muito mais sria, em1284(Waley,1952,pp.52-8).EmFlorenasurgiramdennciascontraos tribunais eclesisticos e as imunidades clericais, em 1285, enquanto os privilgios doclerolocalforamdiretamentecontestadosemPisa,noanode1296(Boase, 1933,pp.85,87).PortodoesseperodoafacodosBrancosbateu-seem Florenaparaeliminarainterfernciadopapanosassuntosdacidade,eapso golpede1301elafirmouumaalianacomPistoia,naesperanadederrubara signo ria - favorvel ao papa - dos Negros (Herlihy,1967,p.226).Porfim,odomniodiretodopapadosobreaRomanhaesteve constantemente ameaado nas ltimas dcadas do sculo. Ocorreram levantes em Faenza assim que o podest nomeado pelo pontfice chegou, em 1278,mais perturbaes em Forli e em Bolonha no ano de 1284, e ainda uma nova srie derevoltasafetandotodaaprovncia,portodaadcadade1290(Larner,1965, pp. 44-7).Aomesmotempoqueresistiamaospapas,algumascidadeslombardase toscanascomearamaelaborarumaideologiapolticaquefossecapazde legitimar sua contestao aos poderes e imunidades que a Igreja ento plei37teava.IssosedeubasicamenteemFlorena,queseproclamouguardidas liberdadestoscanas,eemPdua,quedesdearestauraodeseugoverno comunal, em 1256, aparecia como a maior defensora dos valores republicanos na Lombardia.Uma maneira bvia de se opor s pretenses da Igreja ao dOllnio temporal consistiaemapelarao imperadorparaquereequilibrasseabalana,demasiado favorvelaopapa.Erabastanteplausvel,simplesmentereconhecendoaantiga alegaodosimperiaissegundoaqualoRegnumltalicumfaziapartedoSanto Imprioromano,alegarqueopapadonopodia serolegtimogovernanteda LombardiaedaToscana,jqueissoimplicariausurparosdireitosqueporlei incumbiamaoimperador.Essaestratgiapareciaparticularmentetentadoraem incios do sculo XIV, quando a descida de Henrique de Luxemburgo Itlia, em 1310, pareceu por um momento devolver realidade o ideal do Imprio medieval.Umpensadorpolticoquedesenvolveuessalinhadeargumentaofoio historiadorflorentinoDinoCompagni(c.1255-1324),emsuaCrnicadesses anos.Afirmavaqueumgovernodirigidopeloimperadorseriajustssimo, insistiaemqueoobjetivodeHenriquedeLuxemburgo,aovirparaaItlia,era simplesmenteodefazerapaz,eaindaameaavaosNegrosflorentinos, favorveis ao papa, dizendo que se no mudassem de lealdade o imperador, com todo o seu poder, os faria ser aprisionados e pilhados por terra e mar (pp. 223, 259).Masdelongeomaisimportanteautorflorentinodessapocaaoferecer plenoapoioaoimperador,porneleenxergarumfatordeequilbrioperanteo papa,foiDante,emseutratadosobre aMonarquia.quase certoqueessaobra tenhasidoredigidaentre1309e1313,nomomentoemqueasesperanasdos imperialistasalcanavamoznite.3OanseiofundamentaldeDanteporuma restauraodaquietudeetranqilidadedapaz,jque,pensaele,apaz universalomaisexcelentemeiodeassegurarnossafelicidade(pp.8,9). Quando prossegue, considerando por que no h paz ou tranqilidade na Itlia de seus dias, ele se concentra em duas causas principais. A primeira, qual dedica o livrodeseutratado,consisteemqueestsendonegadaalegitimidadedo Imprio. A outra, que tema do livro III, Dante diz ser a falsa crena segundo a qualaautoridadedoImpriodependedaautoridadedaIgreja.Aesserespeito, eleconsideraqueospapassoaquelesquecomandamosqueresistem verdade,dadoqueserecusamaadmitirqueopapadonopossuiumgenuno poder temporal, e assim no conseguem reconhecer que a autoridade do Imprio no depende, de forma alguma, da Igreja (pp. 64, 67, 91).AmaneiracomoDanteveioatratardessesproblemasnaDivinacomdia levou-o muito alm do reino da poltica, fazendo-o enfatizar um ideal da38,...regenerao religiosa e a necessidade de mudar o corao como os nicosmeios de salvar o mundo: Antes de conceber seu grande poema, o que se deupor volta de 1313, a resposta que sugeria estava, porm, restrita ao plano poltico. O tratado da Monarquia pede que se deposite plena e total confiana nafigura do imperador, como nica fora unificadora capaz de vencer as facesque dividem a Itlia e de trazer a paz. Assim, o livro de abertura muito apropriadamentedefendeessasoluo,combasenatesedequeaaceitaodeum governante nico e universal absolutamente necessria se se pretende quesejam superadas as desordens do Regnum ltalicum. Dante comea argumentando formalmente,numestiloalgoaverrostico,comumapeloaovalorespecialda unidade e superioridade do todo sobre as partes (pp. 9-14). Mas logoaduz dois argumentos puramente polticos em favor da mesma concluso. Oprimeiro que a suserania do imperador exaltaria o governo da justia, j queum conflito pode surgir entre dois prncipes, que venha portanto requerer aarbitragem por um terceiro que detenha jurisdio superior e que, de direito,reinesobreambos(p.14).Seuoutroargumento- aindamaisadequado ideologiaqueentoprevalecianas cidades-Estado- queatuteladoimperador tambm exaltaria a liberdade ao mximo, essa liberdade que a maispreciosa ddiva de Deus natureza humana, dado que apenas sob aMonarquia a humanidade depende de si mesma e no um homem de outro(p. 19).Como Gilson j enfatizou, essa defesa do Imprio est baseada num conjunto depremissasnotavelmenteradicais,umavezquepressupeumaseparao completaentreasesferasdafilosofiaedate010gia,eportantodanaturezaeda graa. Dante repudia explicitamente a tese ortodoxa de que haveria um nico fim supremoparaahumanidade,odaeternabeatitude,edequeporconseguinte deveriahaverumanicasuseraniasobreasociedadecrist,adaIgreja.Emvez disso, insiste na necessidade de haver duo ultima, duas metas finais para o homem. Umaasalvaonavidaporvir,quesealcanarpelafiliaoIgreja.Masa outra a felicidade nesta vida presente, o que se atingir sob a direo do Imprio - que portanto tratado como um poder simultaneamenteigual antea Igrejae dela independente (Gilson, 1948, pp. 191-4).Costuma-se dizerque,muitoemboraessadefesadoImpriopossatersido inovadoranoplanodateoria,nocampodaprticaseriadesesperadoramente anacrnica,poucomaissignificandoqueavisodeumidealistainteiramente foradecontatocomarealidadepoltica(Ullmann,1949,p.33).Semdvida verdadequenemHenriquedeLuxemburgonemqualquerdeseussucessores jamaistevexitonorestabelecimentodocontroleimperialsobreoRegnum ltalicum.Maspode-seargumentarqueaacusaodeanacronismovem,pelomenos em parte, de se ignorar o contexto no qual Dante39escrevia, e em particulara natureza dodilema quesua Monarquia evidentemente procuravaresolver(Davis,1957,pp.169-70).DanteestavaexiladodeFlorena desdeogolpedeEstadode1301,desferidopelosaristocratasNegroscoma conivnciadopapaBonifcioVIII.Assim,umadesuasesperanasmaiscaras consistiaemencontrarumldereficiente,sobcujoestandartefossepossvel congregar os exilados e expulsar da cidade o governo prpapal. Eraevidente que umtalcampeoprecisariadispordeconsidervelautoridadeparaquepudesse atrairrapidamenteumbomnmerodedescontentes,bemcomodeumafora militarnotvelesignificativa,afimdeoferecerumarazovelperspectivade sucesso.Dadosessesproblemas,nodesurpreender- eapenas retrospectivamenteumatalatitudepoderiaparecerirracional- que,nomomento mesmo em que Henrique VIImarchava sobre a Itlia, Dante escolhesse depositar todasassuasesperanasnoimperador,comoummeiodesalvaroRegnum ltalicum da j longa, e detestada, dominao do papa.No h dvida, porm, de que do ponto de vista das repblicas lombardas e toscanas,ciosasqueeramdesuasliberdades,apropostadeDantedificilmente haverparecidoserumasoluomuitotentadoraparasuasdificuldades.Sea sugestodeDantelhesforneciaummeiodedenegarodireitodopapaaintervir em seusnegcios,eras custas demaisumavez impor-lhes a marcadevassalos doSantoImprioromano.Ficavabvio,ento,queaquilodequeelasmais necessitavameraumaformadeargumentaopolticacapazdedefendersua liberdadecontraaIgreja,masquenoacarretasseoriscodeced-Iaaoutra potncia.AssimcomoBartoloprocuraradefendersuaindependnciadiantedo Imprio,agoraprecisavam deuma formaanlogadeargumentoque proclamasse sua independncia perante o papa.Arespostaa essaquestofoiformuladapelaprimeiravezemPdua,a repblicalder da Lombardia, pouco depoisque o fracasso da expedioimperial de1310-3descartouaespciedesoluoemqueDantehaviaapostado.O essencialdessasoluodeve-seaMarsliodePdua(c.1275-1342),noclebre tratadoOdefensordapaz,poreleconcludoem1324(p.432).Arespostaque Marslioprope,equeocupaosegundo(ebemmaislongo)dosdoisDiscursos emquesedivideoDefensordapaz,semamenordvidaexigiuumgrande esforo de imaginao. Mas tambm foi um resultado direto do contexto que antes esboamos, na medida em que proporcionou - como era sua inteno - exatamente asustentaoideolgicadequeascidadesrepblicasdoRegnumltalicummais necessitavamnaquelemomento,paradefender,contraopapado,suasliberdades tradicionais.A resposta de Marslio consiste, em suma, na tese singela - pormousada - de que os dirigentes eclesisticos se equivocaram completamente quanto natureza da Igreja, ao supor que fosse ela uma instituio capaz de40;-exercerqualquertipodepoderlegal,polticooualgumaoutraespciede jurisdiocoercitiva(pp.168,181).Elededicaosprimeirosonzecaptulosdo segundo Discurso a atacar o sacerdcio inteiro - todos os padres e bispos e os que osapiam - por difundiresseequvoco,a fim deimpor seuinjustodespotismo sobre os fiis cristos (p. 98). Seu primeiro passo consiste em rejeitar a pretenso eclesial a terimunidade taxao ordinria,privilgio este que, conforme vimos, jhaviacausadomuitadissensonascidades-Estado,equeBonifcioVIII defenderacomveemnciaemsuabulaClericisLaicos,de1296.Poressabulao papapretendia que todas as pessoas eclesisticas fossemisentas de taxas como metades, dzimos e centsimos, e ainda ameaava de excomunho qualquer governantesecularquetentasseinfringirosdireitosassimalegados(p.457).A respostadeMarslioquedessaformaseinvertem,porcompleto,os ensinamentosde Cristo.Quando se mostroua Jesus amoedadestinada a pagar o tributo,eleenunciou,pelapalavra e pelo exemplo,suacrena deque devemos daraCsaroquedeCsar(p.119).Assim,deixouclaroquedesejavaque estivssemossujeitos,notocantepropriedade,aogovernantesecular,eque rejeitavaqualqueridiadequeviesseaserdescabidoqueseussucessoresno ofcio sacerdotal pagassem tributo (pp. 119, 120).Marslioprossegue,afirmandoqueamesmaobjeovalecontraas exigncias do clero para se isentar da autoridade dos tribunais civis, e ter o direito a intervir nos julgamentos coercitivos dOI poder secular (pp. 125,168).Tambmisso,dizele,contrrioaoensinamentodeCristoedeseus apstolos.Marsliorefere-seemespecialaocaptuloXIIIdaEpstoladeso Paulo aos romanos, texto que mais tarde dese~penharia papel capital nos debates daReformaapropsitodoquedeveriaserarelaomaisadequadaentreas autoridades dosculo ea Igreja. A doutrina de so Paulo, insisteMarslio, que cadaqualdeveestarsujeitoaospoderes maiselevados,dadoqueospoderes que existem soordenadosporDeus,equemquerqueresistaaopoderresiste aoqueDeusordena.Aconseqnciadessadoutrina- dizele- quenenhum membro da Igreja pode pretender um tratamento especial nos tribunais, posto que todososhomens,semnenhumaexceo,estosujeitos,noqueserefereao julgamento coercitivo, aos juzes ou governantes seculares (p. 130; cf. p. 140).Essesargumentosculminam,parasermosbemanacrnicos,numaviso notavelmenteluteranadospoderesejurisdiesqueMarslioconsidera legtimo pleitear para o clero e a Igreja. Ele insiste em que Cristo deliberadamente excluiuseusapstolosediscpulos,bemcomoseussucessores,osbisposou sacerdotes,doexercciodequalquerautoridadecoercitivaoupoderdeste mundo(p.114).Conclui,assim,queaIgrejafundadaporCristonopode,em absoluto, ser considerada um corpo dotado de jurisdio. Pode41to-somenteconstituirumacongregao,umacongregatiofidelium,uma associao voluntria reunindo o corpo inteiro dos fiis que acreditam e invocam o nome de Cristo (p. 103). Isso significa, por sua vez, que a nica autoridade que Deus possa haver autorizado qualquer padre a exercer com relao a seu ofcio consiste em ensinar e praticar - ou seja, uma autoridade que obviamente no lhe conferepodercoercitivosobreningum(p.155).Aconseqnciafinaldo ataquedeMarsliosimunidadesejurisdieseclesisticas,assim,umateoria absolutamentecongregacionalistadaIgreja- umadoutrinatotalmenteoriginal nessa fase do pensamento medieval (Reeves, 1965, p. 101).Depoisdessadennciatoampladoestamentoclerical,Marsliopassaao temaprincipaldeseusegundoDiscurso- oataqueplenitudopotestatis reivindicadapelospapas(p.313).ComooprprioMarslioreconhece,fcil anteciparaconclusoaqueeleterdechegar,jhavendodeclaradoantesque constituiumequvocoatribuirIgrejaqualquerpoderjurisdicional(pp.113,268).Trataentodededuzirasimplicaesdessaconvico,procurando determinar, em especial, que quando o bispo romano ou qualquer outro se atribui aplenitudedepodersobrequalquergovemante,comunidadeoupessoa individual,umatalpretensoimprpriaeerrada,eseafastadasdivinas Escrituras e das demonstraes humanas, ou melhor, at as contradiz (p. 273).Marsliocomeaisolandocincoaspectosprincipaisdaplenitudopotestatis papal: a pretenso a dar a definio dos significados das Escrituras; a convocar ConcliosGeraisdaIgreja;aexcomungaroulanarointerditosobrequalquer govemante,prncipeoupas;adesignarosocupantesdetodososofciosda Igrejanomundo;e,finalmente,a decidirsobreas caractersticas quedefinema fcatlica(pp.272-3).Passaentoaatacaressespontosnodaisdaideologia papal, por duas vias distintas.Primeiro,ope-seaoconceitodeumamonarquiapontifcia,defendendoa doutrina do conciliarismo - ou seja, a doutrina de que o poder executivo supremo nointeriordaIgrejanoresidenopapa,masnumConclioGeralformadode todososcristos,inclusivedosno-sacerdotes(pp.280,285).Issoolevaa negar trs aspectos entre os que compunham a tese do papado sobre sua plenitude depoder.Sustentaassimqueadeterminaodasquestesduvidosasnas Escrituras,aautoridadedeexcomungarqualquergovernanteeasregulaes sobre o ritual cristo e outros tpicos de f so questes sobre as quais apenas o ConclioGeral,enenhum bispooupadreougrupoparticulardestes,temo direitodelegislar(pp.282,292-3).Isso,afirmaele,manifestotantopela evidnciadasEscriturasquantopelastradiesdaIgrejaprimitiva,oquerevela quesomenteosbisposromanosdeumaeratardiapassaramaassumiruma autoridade maior, e assim mandaram42,..eordenaramquefossemobservadosdecretosouordenaesdirigidosIgreja universal (p. 271).A outra via pela qual Marslio contesta a supremacia papal elevando a uma dimensosem paralelo osdireitos das autoridadessecularessobreaIgreja.Elej determinaraanteriormentequenenhummembrodaIgrejatemdireito,porseu ofcio,aqualquerjurisdiocoercitiva(pp.100,113).Dissosesegueque qualquerpodercoercitivoque possasernecessriopararegularavidacrist deverserexercido,dedireito,exclusivamentepelofiellegisladorhumano-termo que Marslio emprega para designar o poder secular mais elevado no interior de cada reino ou cidade-Estado (p. 287). Tendo chegado a essa deduo - o clmax de seu segundoDiscurso-, Marslio estemcondies dedesmantelar o que resta das pretenses do papado plenitude de poder. Primeiro, ele declara, sob a forma de corolrio, que o direito de fazer e aprovar nomeaes, e de preencher todos os cargos na Igreja incluindo o ofcio do prprio pontfice romano -, no pode ser alocado ao bispo de Roma, sozinho ou com seu colgio de cardeais, mas apenas plenaautoridadedolegisladorfiel,que,sele,detmopoderdefazer nomeaesparaosacerdcioeoutrasordenssacras(pp.287-90).Acrescenta, ento,quetambmodireitodeconvocarumConclioGeraledeinstal10, conferir-lhe seu carter solene e faz-lo consumar sua obra deve pertencer no a um sacerdotequalquer ou aqualquercolgiode sacerdotes,mas- inteiramente-aofiellegisladorhumano(p.287).apenasaautoridadedestequeest investida do poder de convocar ou ordenar um tal conclio,dedesignareindicarparaelepessoasadequadas,deordenarquesejam observadosseusdecretosedecises,edepunirquemostransgrida(p.292). Dado que Marslio j havia concludo, ademais, que todos os outrosaspectosdaplenitudo potestatis papal competem propriamenteaoConclioGeral da Igreja, essa elevao do legislador a uma posio de controle sobre o Conclio temoefeitofinaldelibertarasautoridadessecularesdequaisquervestgiosde influncia eclesistica.Comessatransfernciadaplenitudopotestatisdopapadoparaofiel legisladorhumano,Marsliosedesincumbedaprincipaltarefaideolgicaque assumiunosegundoDiscursodoDefensordapaz.Pretendehaverdemonstrado que a figura do legislador, em cada reino ou cidade-Estado independente, a nica detentoradodireitodeumacompletajurisdiocoercitivasobretodapessoa individualemortal,dequalquercondioqueseja(pp.427-8).Pretende,por isso,tambmhavermostradoqueastentativasdosbisposdeRomaeseus cmplices no sentido de assegurar a dominao sobre o Norte da Itlia podem ser repelidascomonadamaisqueumasriedeusurpaeseconfiscosde jurisdiesque,propriamente,scompetem s autoridadesseculares(pp.95,98, 101). A contribuio essencial que ele43assim pode fornecer ideologia das cidades-Estado est em defender suaindependncia total, de iure, da Igreja, e portanto em condenar os esforos dopapado para dominar e controlar seus negcios como constituindo uminjusto despotismo, um desmando vicioso que trouxe angstia aoRegnumltalicumeoprivoueaindaprivadetranqilidadeepaz(pp.95,98, 344). A moral correspondente do livro - bem como a chave para entender oseu ttulo - que quem pretenda ser o defensor da paz no Norte da Itliadeve, acima de tudo, ser um inimigo jurado dos poderes jurisdicionais a quea Igreja alega ter direito.44,..2RETRICA E LIBERDADEA ASCENSO DOS DSPOTASA difuso do que Sismondi chamou essa brilhante chama de liberdade, por todas as cidades-repblicas italianas, infelizmente no passou de um espetculo de curtadurao(Sismondi,1826,vaI.3,p.245).EmfinsdosculoXIIIamaior parte dessas cidades fora a tal ponto cindida por suas faces internas que elas se viram foradas a abandonar as constituies republicanas e a aceitar o poder forte deumnicosignore,passandoassimdeumaformadegovernolivreparaoutra desptica, a fim de atingir maior paz cvica.Acausafundamentaldessaerosodasliberdadesrepublicanasdeve-se procurarnasdivisesdeclassequecomearamaseaprofundarapartirdos princpiosdosculoXIII(Jones,1965,p.79).Oavanodocomrciodeu proeminnciaanovasclassesdegente,gentenuova,comosedizia,quelogo enriqueceramcomerciandonascidadesenacontada,oucampo,dosarredores (Jones, 1965, p. 95). Contudo, a despeito de sua crescente riqueza, esses popolani no tinham voz nos conselhos governantes de suas cidades,que continuavam sob o firme controle das fa0l11ias dos magnatas mais antigos (Waley, 1969, pp. 187-97).medidaqueessasdivisesseagravavam,vieramageraruminquietante aumentodaviolnciacvica,comospopolanisebatendoporreconhecimento, enquanto os magnatas lutavam para conservar seus privilgios oligrquicos.Aprimeirainvestidanessabatalhageralmenteproveiodospopolani, privadosqueeramdosdireitoscvicos.Significativamente,tomouaformada instalao,porelesprprios,deumconselho,oupopolo,presididopelolder eleitodiretamente,ocapitanodeipopolo.Issosignificavaumdesafiodireto forma tradicionalde governopelopodest,funcionrioquetendiaaserindicado pelasfa0l11iasdosprceres.ConselhosdopovoforamestabelecidosemLucae Florena,em1250,emSiena,em1262,elogodepoisnamaiorpartedas principais cidades lombardas e toscanas (Pullan, 1973, pp. 116-8;45Waley, 1969, pp. 185-92). Uma vez aberta essa cunha no monoplio que osnobresexerciamsobreogoverno,opassoseguinte- eatmaisagressivoqueos popolanigeralmentederamconsistiuemforarumasriedemedidasvisandoa restringir ou mesmo proibir o acesso dos nobres a posies de poder poltico. Isso aconteceu, por exemplo, em Florena em 1282. A facodos Brancos, que se apoiava nos popolani, conseguiu excluir a faco dosNegros,queeraadosmagnatas,eem1293chegouapromulgaruma constituio que sistematicamente exclua do Priorato, ou corpo governante, anobreza mais antiga (Becker, 1960, p. 426). O mesmo padro logo foi repetido em outros lugares. Um exemplo prximo foi o de Siena, onde em 1287 opopolo tomou todo o poder do podest, exilou boa parte da nobreza e instalou uma Junta de Nove Governantes, oligarquia de mercadores que governou a cidade ininterruptamente at 1355 (Bowsky, 1962, pp. 368, 370, 374).Quanto mais os popolani lutavam por seus direitos, porm, mais a velhanobrezaeseusaliadosresistiam.Issoprovocouinicialmenteumaviolncia endmica,tologocomearamospopolaniaprotestarcontrasuaexclusodo governo. Um dos casos mais notrios foi o de Verona, onde os Montecchimodelo emqueShakespearesebaseouparaseusMontaguedeRomeueJulieta- se baterampormaisdevinteanosemfavordospopolani,anteumaferozoposioda nobreza mais antiga, finalmente conseguindo, em 1226, controlar a cidade (Allen, 1910,pp.45-52).Masaviolnciainternamaissriasomentenasceuquandoos popolaniconseguiramestabelecerseuprpriogoverno.Aadministraodos Brancos em Florena, para dar um exemplo,logo enfrentou a oposio da faco negra, dos nobres liderados por CorsGDonati, que a derrubou em 1301. Da mesma forma, o governo dos popolaniemSienasofreuumperigosoataqueem1318eoutroem1325,ambos maquinados pelos Tolomei, uma famlia nobre da antiga classe dirigente que foraderrubada pelo golpe de 1287 (Bowsky, 1967, pp. 14, 16).Diante desse panorama de lutas civis que se acirravam,nosurpreende que emfinsdosculoXIIIamaiorpartedascidadesdoRegnumltalicumtenha alcanado a concluso - mais ou menos voluntria - de que sua melhor esperana de sobrevivncia residia em aceitar a chefia forte e unificada de umnico signore, em vez de uma liberdade assim catica (Hyde, 1973, p. 141;Waley, 1969, p. 237). Foi Ferrara a primeira cidade a experimentar, com sucesso, ogovernohereditriodeumanicafanulia:em1264osEtensiconseguiram efetuar uma transio pacfica da dominao informal da cidade emmosdeAzzod'EsteparaasenhoriaformaldeseufilhoObizzo,proclamado entosenhorpermanentedeFerrara,aoquesealegavacomoconsentimento detodos.]Seguiu-se,entreascidadesimportantes,Verona.Aquioprocesso comeou com a eleio de Mastino della Scala como capitano de!popolo, em 1262. Ele se valeu dessa posio para exercer uma ascendncia46basicamentepessoalsobreacidade,eassimconseguiufundarumadinastia. Quando foi morto, em 1277, seu irmo Alberto imediatamente se viu reconhecido comosenhordeVeronaecapito-geralvitalcio.E,quandoAlbertoporsuavez morreu,em1301,seufilhoBartolomeo- oprimeiropatronodeDante,apsseu exliodeFlorena- pdeassumiropodercomopodesthereditriodacidade (Allen, 1910, pp. 94-6, 124, 141-3).A partir dessas experincias, rapidamente se difundiu peloRegnum ltalicum aprticadeconfiarogovernoasignori.Nadcadade1270,osBuonaccolsi alcanaram o controlede Mntua explorando habilmente aposiode capito do povo,eaoterminarodecnioseguintehaviatambmsenhoresregendoTreviso (GerardodaCannino),Pisa(condeUgolino),Parma(GhibertidaCorreggio)e Piacenza,ondeosenhoriocoubeaAlbertoScotti(Brinton,1927,pp.41-3; Previt-Orton, 1929, p. 203; Armstrong, 1932, pp. 33,45). Finalmente, no mesmo perodo a dominao direta dos papas sobre a Romanha veio a ser enfrentada, em largaescala,devidoascensodedspotaslocais.GuidodaPolentatornou-se podestdeRavena em1286enessacondiogovernouacidadeporquaseuma dcada(Larner,1965,pp.51-2).DamesmaformaafamliaMalatestaobteveo domnio sobre Rimininos anos 1280, vencendo o ltimo deseus rivais porvolta de1295etornandoheredi~trioseudireitodegovernar(Jones,1974,pp.31-3,47).Assim,Dantetinharazoemdizer,noPurgatrio- aindaquesepossa acusarseufraseadodeseralgotendencioso-,queporessapocatodasas cidades da Itlia estavam repletas de tiranos (p. 63).Comoadventodossignori,comeouasedesenvolverumnovoestilode teoriapoltica- um estilodepanegrico,no qualeleseramlouvadoscomoquem trouxera unidade e paz a suas cidades (Bueno de Mesquita, 1965, pp. 321-8). Um dosprimeirosexpoentesdessegneroliterriofoiFerretodeFerreti(c.1296-1337), que pertencia ao crculo de literati pr-humanistas de Pdua e comps, em versoslatinos,umlongohistricodaAscensodosDellaScalalogodepoisque essa famlia alcanou o controle da cidade, em 1328 (voI. I, p. xiii; Hyde, 1966a, p. 282). J que o propsito de seu elogio consista em legitimar a dominao dos Della Scala,Ferreti passou emsilncio a liberdade dos paduanos que,havia bem pouco tempo, fora to celebrada por Marslio. Em vez disso, dedicou boa parte de seu livroIIareclamar daturbulncia edafalta deleiem que acidadevivia antesdoadventodosDellaScala,aomesmotempoqueinsistiaemqueo principalanseiodoscidadossempreforaapaz(voI.I,pp.28ss).Ora,comoo governo estabelecido por Cangrande era inegavelmente mais estvel que o regime republicanoqueelederrubara,essainsistncianapaz,enonaliberdade,como valorpolticofundamental redundava emretrat-Iocomooverdadeiro libertador de Pdua, que salvara a cidade de um legado de caos e mau governo. Ferreti, por isso,47sentiu-se autorizado a concluir seu poema expressando a inabalvel convico de que os descendentes de Cangrande poderiam continuar a portar seucetro por muitos anos ainda, assim protegendo o povo em paz e tranqilidade(voI. I, p. 100).Essa passagem do governo in libert ao governo a signo ria foi consumada suave porm rapidamente na maioria das cidades que compunham oRegnum ltalicum - sem dvida por estarem exauridas pelas guerras queresultavam de um quadro marcado por incessantes rixas e brigas de faces.Mashouvevriasexceesimportantesaessa regra.Algumaspoucascidades resistiram ascenso dos dspotas, com vigor e eventualmente at com xito;nesse processo, desenvolveram uma aguda conscincia do valor que mereciaser dado independncia poltica e ao governo republicano.Foi Milo a primeira cidade a montar uma defesa resoluta de sua constituio republicana. Quando os popolani desterraram seus opositores e nomearam Martin della Torre como signore do povo - em 1259 -, deram incioa quase vinte anos de conflitos entre os exilados e os que apoiavam a signo ria.Foi somente quando os exilados aceitaram seu prprio chefe, Orto Visconti,comosenhorperptuodeMilo- apssuavitriadefinitivasobreasforasdo governo Della Torre, em 1277 - que finalmente se viu dissolvida arepblica milanesa (Sismondi, 1826, voI. 3, pp. 260,435-7). Luta semelhante,e ainda mais demorada, OCorreu pouco tempo depois em Pdua. Nesse caso, operigo vinha da cidade vizinha, Verona, onde os Della Scala haviam consolidado seu poder e comeavam a expandi-lo. Alberto della Scala ento iniciouuma guerra contra Pdua, em 1277, mas uma paz de compromisso ps-lhetermo trs anos depois (Hyde, 1966a, pp. 227-8). Cangrande della Scala voltou a atacar Pdua em 1312, mas ainda dessa vez deparou com uma decididaresistncia chefiada por republicanos incondicionais do quilate de AlbertoMussato, que se recusavam sequer a considerar a possibilidade de entregar acidade s mos de um tirano (Hyde, 1966a, pp. 256-7,266). Foi somente apsquinze anos de combates, no correr dos quais Mussato e os demais membrosdo partido da guerra foram proscritos por seus concidados mais tbios, queCangrande afinal conseguiu conquistar o governo de Pdua, o que se deu em1328 (Hyde, 1966a, pp. 267, 275, 278).Mas, naturalmente, foi Florena a cidade que mais se empenhou emdeter o avano dos dspotas nessa poca. Como j vimos, os florentinos conseguiramfazerfrente,durantetodoosculoXIII,acadaumdosdesafios externos que puseram em xeque a sua independncia. Quando Manfredo osatacou, na dcada de 1260, aliaram-se a Carlos de Anjou e assim, em poucotempo, repeliram o assalto imperial (Schevill, 1936, pp. 139-44). Quando,maisparaofimdosculo,Arezzosejuntouaosimperialistasparafazer-lhesguerra, a reao florentina se saldou com uma importante vitria em Cam48paldino, no ano de 1289 - batalha na qual bem possvel que o jovem Dante tenha lutado (Larner, 1971, p. 208). E em 1310, quando o imperador desceu Itlia, eles noapenasfrustraramsuastentativasdefazercercoprpriaFlorena,como tambmlideraramocontra-ataqueque,embreveespaodetempo,levousua expedio a um fim vergonhoso.Esses esforos pararesistir aotriunfo dossignoriforam acompanhados, em cadacaso,pelodesenvolvimentodeumaideologiapolticaquetinhaemmira defendererealarasvirtudesdistintivasdavidacvicarepublicana.Podese sustentar que a emergncia dessa ideologia no final do Duzentos e nos incios do Trezentosfoibempoucoreconhecidapeloshistoriadoresdopensamento renascentista.2 Hans Baron, em especial, tentou argumentar que jamais se fez uma defesa daliberdaderepublicana atoshumanistascvicosflorentinosdoincio doQuatrocentos(Baron,1966,pp.49,58).Amesmatesefoireiterada, recentemente, por vrios outros historiadores de incios da Renascena. Hyde, por exemplo,afirmouque,anteanecessidadededefendersualiberdadecontraos dspotas,nofinaldosculoXIII,ascidades-repblicasnodispunhamde ideologiaaquepudessemrecorrer,jqueaspressuposiessociaisepolticas entopredominanteseramaristocrticasecavalheirescasmaisquecvicas,e quenohaviaumconjuntoalternativodeideaisaqueosleigospudessemse voltar, exceto os de uma vida religiosa as ctica (Hyde, 1973, p. 171). Na mesma linha,Holmesentendeuquesemostraramtograndesosobstculosparaa constituiodeumaideologialeigaindependente,emfinsdosculoXIIIe primrdiosdoXIV,queumtalpadrodevaloresnopdeserarticuladocom sucessoatsedararevoluohumanista,naFlorenadeinciosdo Quatrocentos (Holmes, 1973, pp. 111, 124, 131).Emboraessastesessejamcorrentementeaceitas,elasnosinduzemauma visoequivocadadecomosedesenvolveuopensamentopolticorenascentista. Havia,naverdade,aofindarosculoXIII,duastradiesdistintasdeanlise polticadequepodiamsevalerosprotagonistasdogovernorepublicano.Uma provinha doestudo da retrica, que desde a fundao das universidades italianas, no sculo XI, constitura um tpico fundamental do ensino, ao lado do direito e da medicina.Aoutranasceradoestudodafilosofiaescolstica,quevierada FranaItlianofinaldosculoXIII.Ambasastradiescapacitavamos protagonistasdaliberdaderepublicanaaconceitualizaredefenderovalor distintivodesuaexperinciapolticae,especialmente,aargumentarquea molstiafacciosaerapassveldecura,eportantoaconservaodaliberdade podia ser compatvel com a manuteno da paz. Se quisermos entender a evoluo desses temas centrais da teoria poltica renascentista, parece ento essencial recuar paraantesdasobrasdoshumanistasdoQuatrocentoselocalizarsuasorigens nessas duas correntes do pensamento pr-renascentista.49Io DESENVOLVIMENTO DA ARS DICTAMINISParacompreendermosporqueprocessooestudodaretricanas universidades italianas terminou dando origem a umaformade ideologia poltica que se revelou influente, precisamos comear considerando os propsitos prticos subjacentes aoprprio ensino daretrica.Oobjetivo bsicodainstruo retrica consistiaemconferirumacapacitaobastantevalorizadanomercado:quema estudava aprendiaaescrevercartasoficiaiseoutrosdocumentosanlogoscomo mximo de clareza e de fora persuasiva. Essa concepo segundo a qual escrever cartasseriaumatcnicaespecial,passveldeseresumiremregrasedese aprender de cor,comeou a ser elaboradaem Bolonha,nosprimrdiosdosculo XII,comoumaconseqnciasegundadoobjetivofundamentaldaquela universidade,queeraodeformaradvogadosejuzes.3Omaisdestacado professorderetricaemBolonhanesseperodofoiAdalbertodeSamaria,que parecetersidooprimeiroasedefinircomoumdictator,ouseja,uminstrutor daArsDictaminis(Murphy,1974,p.213).Suaprincipalobrafoiumcompndio intituladoOspreceitosdaepistolografia,queelecertamentetercompletado entre 1111 e 1118 (Haskins, 1929, p. 173). Na gerao que se seguiu a sua morte, asregrasqueeleformularaseconsolidaramnumsistemargido,cujoprincpio bsicoeraquetodasascartasformaisdeviamserconstrudas,oudivididas,em cincopartesdistintas.Oprimeiromanualainsistirnessepadrofoiumtratado annimo de nome Os princpios da epistolografia, que parece ter sido redigido em Bolonha porvolta de1135.4 A partir de ento o sistema classificatrio das cinco partes foi repetido quase sem variaes por todos os principais retricos at o fim da Idade Mdia (Haskins, 1929, pp. 182-7).Almdeformularregrasgerais,osdictatoresdesdeocomeotrataramde indicarcomosuasrecomendaesdeveriamseraplicadasnaprtica.Issoeles fizeramincluindoemseuscompndiosoquechamavamdictamina,oucolees demodelosdecartas,afimdeilustraracorretautilizaodeseuspreceitos. Tambm esse mtodo foi cunhado por Adalberto de Samaria, que acrescentou, no finaldeumdeseustratadostericos,umapndicede45formulaeoucartas-modelo, para exemplificar suas regras.5 O mesmo padro foi prontamente seguido pordictatorescomoHugodeBolonhaeHenricusFrankigena,ativos,ambos,na dcada de1120 (Haskins, 1929,pp.178, 180).Depois deles apareceu um grande nmerodeoutrosdictaminanodecorrerdosculoXII,culminandoemduas contribuies muito conhecidas a esse gnero literrio, da lavra de Boncompagno daSigna (c. 1165-1240),talvez omais original - e seguramenteomaisvaidoso-dos mestres bolonheses que lecionavam em comeos do sculo XIII. Seu primeiro tratado, concludo em 1215, teve por ttulo A antiga retrica, e inclua uma seo final com mode50,.los de cartas para uso dos nobres, das cidades e dos povos (Paetow, 1910,pp. 76-7). Seu outro Dictamen, que ele editou em 1235, recebeu o imponentettulo A mais nova de todas as retricas, e oferecia ao estudante um elencoquase assustador de modelos, todos dispostos em sees seguindo as regrasque governam a correta subdiviso das cartas formais.. Consultando, porexemplo, o livro v, veremos uma pormenorizada exposio de todas as formas de exrdio possveis (p. 262). Estas incluem doze diferentes pargrafosde abertura para usarmos numa carta ao papa, cinco se escrevermos a um cardeal, duas para um bispo e quatro se nos dirigirmos ao imperador - alm deexrdios-padro para cartas a senadores de uma cidade, a .um podest, a cnsules, professores, mestres-escola etc., numa exaustiva relao de todas aspessoasaquemofuncionriodeumacidadeouumcidadoparticularpudesse algum dia ter a ocasio de escrever em estilo formal (pp. 262-73).Foi por meio desses modelos, ouformulae, que os dictatores - que deincio s pareciam estar inculcando em seus alunos regras retricas estritamente formais - comearam a se preocupar de maneira consciente com osnegcioslegais,sociaisepolticosdascidades-Estadoitalianas.Essa mudana seguiu duas vias principais. Em meados do sculo XII, tomou-se rotina ascartas includas em tratados sobre a Ars Dictaminis tratarem de assuntos quetivessem um imediato interesse prtico para os alunos que estudavam a arte. At ento, como a inteno principal desses modelos fosse apenas a de ilustrar o emprego das regras retricas, os dictatores tendiam a utilizar exemploscujotemaeraremotooumesmofantasioso.6Agora,porm,comeavama envidar um esforosistemticoa fim de que o contedode seus modelostivesse valor e relevncia maiores para a vida pessoal ou a carreira futura de seus alunos. UmdosprimeirosexemplosdessanovatendnciaencontramosnoDictamende ummestreflorentinocujonomenochegouatns,equedatadadcadade 1150. Inclui vrios modelos de carta que um estudantepoderia escrever a sua farmlia, narrando-lhe seus sucessos acadmicos epedindo-lhe mais dinheiro (Wieruszowski, 1971a, pp. 336-9). Tambm trazduas cartas de sentido especificamente poltico, a primeira indicando omelhor meio de persuadir uma comunidade a recrutar um contingente decavaleiros e arqueiros, a segunda explicando como se dirigir aos magistradosde uma outra cidade para lhes pedir que castiguem um de seus cidados queroubou algo da comunidade que solicita a punio (Wieruszowski, 1971a, pp.340-1,343). Essa tendncia dos dictatores a utilizar suasformulae como umveculo para opinar sobre os problemas da vida urbana se desenvolveu, emuito,nodecorrerdosculoseguinte.QuandochegamosaotratadodeMinoda Colle sobre As artes da epistolografia, na dcada de 1290, ou ao que Giovanni de Bonandrea ensinava em Bolonha, depois de 1302, vemo-los dedicando toda a sua ateno nos dictamina s necessidades e problemas51especficosdosestudantes,professores,mercadores,juzes,padres,funcionrios administrativosetodasasoutrasprincipaisclassesdecidadospresentesnuma cidade-Estado (Wieruszowski, 1971b, pp. 360, 365-6; Banker, 1974, pp. 155-7).OoutroimportanteavanodaArsDietaminisocorreunoinciodosculo XIII. Por essa poca, tornou-se praxe combinar o ensino da arte de escrever cartas com a assimchamadaArs Arengendi, a arte de fazer discursos pblicosformais, ouarengas.Issosignificouqueosdietatorescomearamaanexarrelaesde modelosdediscursoaseustratadostericos,almdasjcorriqueiraslistasde cartas.Oprimeirograndetericoafazerumaexposiodasduasartesem conjuntofoiGuidoFaba(c.1190-1240),alunoerivaldeBoncompagnoem Bolonha,ecujacoleodeDiscursoseepstolas,editadapelaprimeiravezna dcada de 1230, inclua considervel nmero de exemplos tanto de oraes quanto de cartas (Kantorowicz, 1941, pp. 256, 275). Apartirdeento,rapidamentesetornouaceiteacombinaodessasduasartes-mudanaqueserefletiuemcompndiostoconhecidoscomoaRetricade BrunettoLatinieaBreveintroduodeGiovannideBonandrea,duasobrasde grandedifusopelofinaldo sculo(Banker,1974,p.157).Esseavanonouso dosexemplosretricosteveumbviosignificadoprtico,especialmentenuma sociedadeque lidava com todosos seus negcios legais, polticos e diplomticos por meio de discursos e debates formalizados. Capacitou, portanto, os dietatores a darcontribuiodiscreta,pormsistemtica,aodebatedamaiorpartedas questesimportantesdeseutempo.OresultadodacombinaoentreaArs ArengendieaArsDietaminisfoiqueoensinodaretricaeaimagemdosretricoscomearamambosaassumirumcarteraindamaispblicoepoltico (Kantorowicz, 1943).Uma vez que o estudoda retrica veio a incluir tal contedo polticoassim factual,nofoidifcilpassar-sedeumaexposiodaArsDietaminisaum comentrio direto sobre os assuntos cvicos. E foi isso o que fizeramnumerosos dietatores e seus discpulos, na primeira metade do sculo XIII,quandoestenderamsuapreocupaocommodelosdecartasedediscursosa vriosoutroscontextos,estesdepropaganda explcita.Dissoresultouque surgissem dois novos gneros distintos de pensamento social e poltico.O primeiro desses gneros literrios foi um novo estilo de crnica da cidade (cf.Hyde,1966b).Nohdvidadequeascidadesjhaviamproduzidobom nmerodecronistasnocorrerdosculoXII,masessessempreforamclrigos, cujosinteressesgeralmenteselimitavamailustrarcomoaDivinaProvidncia agianosnegciospolticose,especialmente,militares(Fisher,1966,pp.144, 156-61).Essatradiojumtantobatidacomeouasofrerumatransformao radical nas dcadas iniciais do sculo XIII, quando vrios advogados, dietatores e outros expoentes leigos das artes retricas vie52ramasepreocupar,pelaprimeiravez,comashistriasdesuascidades.O resultadofoiosurgimentodeumaformainteiramentenovadehistoriografia cvica,maisretricademaneira,emaisdeliberadamentepropagandista,doque qualquer coisa que antes tivesse sido escrita (Wieruszowski, 1971 d, p. 613).Umdosexemplosqueinauguramessanovaproduoanarrativaque BoncompagnodaSignanoslegoudoCercodeAneona.Essaobra,que provavelmentefoi escrita entre1201e 1202, descreve um incidente da campanha deBarbarossa,em1173(Hyde,1966a,p.287).EmboraBoncompagnose apresente,emseuprefcio,sobaformaortodoxadeumcronistadecidade,est bvioqueseusmotivosemtodosenquantohistoriadorsointeiramente derivadosdesuaformaocomoprofessordeArsDietaminis.Issoseevidencia, emprimeirolugar,pelamaneiraqueeleescolheparaorganizarseurelatodo assdioaAncona.Apresentasuahistrianonaformatradicionaldeuma narrativa,masantescomoumexerccioretrico,comquasemetadedotextose compondodeumasriedediscursos-modelopostosnavozdosprincipais protagonistas. A mesma formao e as preocupaes de dietator ficam ainda mais explcitasnaescolhaqueBoncompagnofazdotema.Seuinteresseprincipal claramenteconsisteemexplorarasconvenesfamiliaresdacrnicaurbana,de modo a adquirir um meio mais direto que o Dietamen de exprimir suas convices polticas.Aconseqnciadissoqueasoraesformaisemtornodasquaisele organizaseutextosotodasruidosamentepropagandistas,selecionadaspara exibirseuautorcomoumpossvelprovedordeteisconselhospolticos,bem comoparainculcaraideologiacaractersticadascidades-repblicas.Assim,uma dasoraes se dedicaaencorajaroconjunto doscidadosatomararmasemsua defesa,enquantoumasegundaenfatizaanecessidadedequeascidadesse socorramumassoutras,eoutraaindacelebraoidealdeliberdaderepublicana (pp. 24, 40, 43).Podemosatconsiderarodiscursodeexaltaoliberdadecomo constituindoofulcrodaobra.Elepronunciadoporum cidadodemaisidade, quefalaaopovodeAncona,reunidoemassemblia,nomomentoemqueos emissrios do imperador lhe propem levantar o cerco contra o pagamento de um elevado resgate. O povo vacila: a comida est perto de acabar e no h certeza de vitria (p. 23). Ento, o ancio fala. Recorda a todos que so descendentesdanobrezadavelhaRoma,equeatestemomentosempre estiverampreparadosparalutarpelaconservaodaliberdade(p.24). Exortaos a manter-se firmes e a lutar como homens, j que nas maiores batalhas queseconquistaomaisgloriosotriunfo(p.26).Eterminadenunciandoa pusilanimidade e o efeminamento, advertindo seus concidados de que ganharo oprbrioeternosepermitirem,desualivrevontade,quelhessejamtomadas sua liberdade e sua cidade (pp. 26-7).53Esse novo tipo de crnica logo foi imitado e desenvolvido por vrios outros retores,destacando-seRolandinodePdua(c.1200-1276),queforaalunode BoncompagnoemBolonha(Hyde,1966a,pp.198,287).Rolandinoescreveu,no comeo da dcada de 1260, uma ambiciosa Crnica de Pdua, tomando por tema a ascenso e queda de Ezzelino da Romano como suserano de sua cidade. A obradeconstruointeiramenteretrica,enfatizadaemcadapontosignificativopor cartas e discursos, da maneiraque caracteriza a Ars Dictaminis. Quando Ezzelino nasce, o bispoGerardus marca o momentoproferindo um discurso modelar sobre oidealdegovernogratoaDeus(pp.41-2).QuandoEzzelinopelaprimeiravez explicita suas ambies, por meio de uma carta-modelo (p. 49). Quando expulsa, em1230,opodestdeVerona,estefazumdiscurso-modeloaopovodePdua, denunciandoodomniodostiranos(pp.55-6).EquandooarcebispodeRavena chega,em1256,paradirigiracruzadapapalcontraEzzelino,faztambmum discurso-modelo, exortando os paduanos a lutar pela reconquista desua liberdade (p. 106).Comoessesexemplosindicam,Rolandinotambmestempenhadocom mais veemncia que o prprio Boncompagno - em explorar o conhecidoformatodacrnicaurbanaparatransmitirumamensagempolticadireta. Sua Crnica est inteiramente voltada para a celebrao da liberdade republicana - a necessidade de trat-Ia como o valor-chave poltico, a necessidadedebater-seporelasemprequeestiverameaada.Essepropsitoideolgico fundamentalmanifestodesdeoinciodotexto,quandooautorfazGerardus, falando por ocasio do nascimento de Ezzelino, exaltar a liberdade e sustentar que aostiranosnosedeveprestarnenhumareverncia(p.42).Idnticotema reiteradonaoraoproferidapelopodestdepostodeVerona,aquemouvimos proclamar que a deposio do regime republicano ao qual servia contra a razo e contra a vontade de Deus (p. 56). E a mesma tese repetida ainda uma vez, no clmaxdanarrativa,quandoRolandinofazoarcebispodeRavenadizer,emseu discursoaospaduanos,queestesdevemlutarparadefenderaliberdadedesua ptria com tal vigor e coragem que a fama de sua vitria se difunda por todo o mundo (p. 107).O outro gnero de escrita poltica a nascer diretamente da ArsDictaminisconsistiuemlivrosdeconselhodirigidosapodesteaoutros magistradosurbanos.Oexemplomaisantigoquetemosumtratadoannimo emlatim,intituladoOolhopastoral,que- segundoMuratori- foiescritoem 1222 (p. 93). Mas aquele que conheceu a maior difuso, e aomesmotempoconstituiuamaisextensacontribuioaessegneroliterrioem sua fase de formao, foi Do governo das cidades, de Joo de Viterbo, porele completado na dcada de 1240, depois de servir como juiz ao podest deFlorena (Hertter, 1910, pp. 43-72).54~OsurgimentodessestratadosassinalaumadramticaampliaodaArs Dictaminis. Seus autores no se satisfazem mais em manifestar, de forma oblqua e indireta, suas convices sobre como devem ser dirigidos os negcios pblicos. Abandonamtodaequalqueralegaodequetenhamcomointeresseessencial instruirseusalunosnasartesretricas,epreferemseapresentar,diretamente, comoosconselheirospolticosnaturaisparaosgovernanteseascidades.Enem mesmo se contentam em escrever apenas para estudantes que possam, mais tarde, virasermagistrados.Emvezdisso,dirigemseustratadosdiretamenteaos prpriosmagistrados.Essanovaabordagemlogofoiimitadaemlargaescala,e maistardeveioaexercerumaforteinflunciasobreodesenvolvimentodo pensamentopolticorenascentista.Opadrodetpicoscobertonessesprimeiros livrosdeconselhosaindapodeserdiscernido,emalgumamedida,atnasmais sofisticadasentreascontribuiesposterioresaomesmognero,comoocaso doPrncipe, deMaquiavel.Umexemploespecficodessa continuidade podemos obter quando se discute, no final do Olho pastoral, se um podest sempre deveria agir estritamente dentro da justia, ou se s vezes deveria temperar suas sentenas, porumladocomaclemncia,poroutrocomaseveridade(pp.124-5).Joode Viterbo considera o mesmo dilema, dedicando trs dos seus captulos mais longos questodeseumpodestdeveriaquerersertemidomaisdoqueamado,ou amadobemmaisquetemido(p.262).Observaqueaquelesquequeremser temidosargumentamque,comseveridadeecrueldade,conseguemmanter umacidademaisfacilmenteempazetranqilidade,aopassoqueaquelesque querem muito mais ser amados replicam que no passa de uma vileza da alma insistir em que a clemnciasempre devaser descartada (pp. 262-3).A concluso de Joo de Viterbo, por ele enunciada de modo bem mais enftico do que o faz o autor desconhecido do Olho pastoral, que aqueles que querem ser temidos por seuexcessodecrueldadeestocompletamenteerrados,poisacrueldadeum vcio, e por conseguinte um pecado, o qual no pode ter cabimento algum no bom governo.7Masaprincipalviapelaqualessesprimeiroslivrosdeconselhos contriburamafixarumpadro paraaliteraturaposteriordosespelhosdos prncipesestevenanfasequecolocaramnaquestodequaisvirtudesdeveria possuirumbomgovernante.OolhopastoralterminacomafiguradaJustia montando uma invectiva contra os vcios habituais dos podest, e exortando-os aseguiraviacorretasemnuncasedesviar(pp.125-6).Omesmotema reaparece,bemmaisdesenvolvido,em JoodeViterbo,que lhededicaduasdas principaisdivisesdeDogovernodascidades.Aprimeiraarrolaum impressionantecatlogodevciosqueopodestaconselhadoaevitar, comeando pela embriaguez, o orgulho e a ira, e terminando com a venalidade e o receber presentes (pp. 235-45). A outra diviso - aberta com a55observaodequenosuficienteabster-sedomalquandonosepraticao bem - passaaenumerar asvirtudes queomagistradodeveria,acima de tudo,cultivar.Antesdemaisnada,eledevetemeraDeusehonraraIgreja,e alm disso governar todas as suas aes em conformidade com as quatro virtudes cardeais,listadas- numamaneiraquedepoissetomarcaractersticados moralistasdaRenascena- comosendoaprudncia,amagnanimidade,a temperana e a justia (pp. 245-53).Seesseslivrosdeconselhosrepresentamumdesdobramentonovoe influente,nodeixamporm,emlargamedida,dederivar- edependerdas convenes vigentes na Ars Dictaminis. Isso se pode ver claramente no amplo uso quefazemdecartasediscursosmodelares,enquantomeioparaexporsuas principaisidiaspolticas.QuandoJoodeViterboiniciaasuadiscusso, considerandooproblemadaescolhadeumnovopodest,aformapelaqual apresenta o seu conselho adomodelo de carta aser remetida pela cidadea um candidatoadequado (p. 222). Quando,prosseguindo,aconselha possveis podest quanto melhor maneira de responder a tais convites,fornecemais dois modelos decarta,umpararecusarocargoeoutroparaaceit10(p.222).Finalmente, quandovemaaconselharospodestgovernantessobreaconduomais apropriada a seus cargos, da mesma forma que o autor do Olho pastoral ele arrola uma seqncia de oraes-modelo adequadas para todo tipo de ocasio formal. H discursos para o podest dirigir a seu conselho, discursos para que os conselheiros lherespondam,discursosparaopodestcessantesaudaroseusucessoreainda discursos paraeste lhe agradecer.8Embora o foco seja mais abertamente poltico do que jamais sucedera nas tradies anteriores da escrita retrica, esses escritores ainda consideram a estrutura do governo cvico inteiramente da perspectiva de um professor de artes retricas.A EMERGNCIA DO HUMANISMOSenocabemdvidasquantoexistnciadeumimportanteelementode continuidade levando dos primeiros livros de conselhos, dirigidos aos podest, ao estilopolticoretricoqueposteriormentesedesenvolveentreoshumanistasda Renascena, seria porm enganoso supor que tal continuidade assuma a forma de umalinha dederivaodireta.Se assim pensssemos, estaramosnegligenciando ainflunciadeuma formadeteoriaretricanova,econscientementehumanista, que foi importada da Frana Itlia na segunda metade do sculo XIII, e que teve oefeitodecausarrupturaetransformaonasconvenesvigentesnaArs Dictaminis (Kristeller, 1965, p. 4).56rAsmudanasqueafetaramoestudodaretricanaItlia,nessapoca, baseavam-se na idia de que o assunto deveria ser ensinado no apenas inculcando-se regras (artes), mas tambm estudando e imitando autores clssicosadequados(auctores).AtentoocurrculodaArsDictaminisgeralmente foraconcebido, na feliz frmula de Paetow, como nada mais elevado do que um curso comercial (Paetow, 1910, p. 67). Pusera-se enorme nfase no aprendizado das regras de composio; pouco espao se dera para a proposta maishumanista - que por essa poca estava em voga nas escolas das catedraisfrancesas - de que tambm fossem estudados os poetas e oradores antigos nacondio de modelos do melhor estilo literrio (Haskins, 1929, p. 170; Banker,1974, p. 154). Tal abordagem estritamente prtica recebeu especial destaqueem Bolonha, nas aulas de Boncompagno da Signa. Esse professor atacouexplicitamente o mtodo francs que consistia em ensinar a retrica medianteo recurso a auctores, dizendo-o supersticioso e falso (Wieruszowski, 1971c,p. 594). No comeo de um de seus manuais, A palma, orgulhosamente segabava: No me lembro de jamais haver lido Ccero, como fonte de tcnicaretrica (p. 106).9 E deixou muitssimo claro, em seus escritos, que consideravaaretricaemtermosinteiramenteprticos.Umdeseuscompndios,A mirra, est voltado apenas ao ensino de como redigir testamentos; outro, O cedro, tempornicametadescreverosprocedimentoscorretospara escreverleise ordenaes locais (Paetow, 1910, p. 76).Embora a perspectiva de Boncompagno se tenha tomado ortodoxa, nuncaseextinguiuporcompletoatradioalternativa,emaishumanstica,da instruo retrica. Ela sobreviveu na prpria Itlia em algumas das escolas de gramtica, e floresceu na Frana por todo o sculo XIII (Wieruszowski, 1971c, p.423,e1971d,pp.601-4).Adespeitodapredominnciadaescolstica,umdos principais centros em que esse tipo de estudo se praticava continuou a ser aUniversidadedeParis(Rand,1929,pp.256,266).Aqui,oprincipaldictatorera JoodeGarland,queensinouaArsDictaminiscontinuamentede1232atsua morte, vinte anos depois. Seu mtodo de instruo estava firmemente baseado nos textos clssicos relevantes, tomando poemas inteiros e oraes como exemplos de bom estilo retrico (Paetow, 1910, pp. 17,85). Mas o centro de ponta no ensino de retrica maneira humanista foi Orlans. Nessacidade, o maior expoente da Ars Dictaminis foi Bernardo de Meung, quecomeou sua carreira por volta do ano 1200. Tambm ele insistia numa associao cerrada entre a retrica e a literatura latina, e estabeleceu uma tradiodeensinofundadanonaexplicaoderegrasretricas,masantesnadiscusso do tratado Da inveno, de Ccero, e do livro pseudociceroniano Sobrea teoria da fala em pblico (Haskins, 1929, p. 191; Banker, 1974, p. 154).Durante a segunda metade do sculo XIII, bom nmero de dictatores italianos de destaque foram educados na Frana, onde se embeberam dessa57viso to diferente da retrica, retomando para difundir nas universidades italianas osnovosmtodosdeensino.UmdosprimeirosaseguiressatrilhafoiJacques Dinant.ComeouestudandoretricaeliteraturalatinanaFrana,eveioa Bolonha, para ensinar a Ars Dictaminis, pelo final do sculo XIII (Wilmart, 1933, pp.120-1).OtratadosobreaArsArengendiqueeleveioaproduzirporessa poca,emconexocomsuaatividadedeensino,estavaquaseinteiramente modeladonapseudociceronianaTeoriadafalaempblico(Wilmart,1933,pp. 113-4;Banker,1974,p.154).Masomaisimportantepioneirodessaperspectiva foiBrunettoLatini(c.1220-94).FoivivernaFranaem1260,depoisquea vitriadossienensesemMontapertifezcomquefosseexpulsodesuaFlorena natal (Carmody, 1948, p. xv). No exlio, leu pela primeira vez os escritos retricos deCcero,bemcomoestudouseustratadosdeteoriasobreasartesretricas (Wieruszowski, 1971d,p.618).RetomandoaFlorenaem 1266, sua experincia noestrangeiroolevouaintroduzirumsaborbemmaisliterrioeclssiconos prpriosescritossobreaArs Dictaminis.Noproduziuapenasaprimeira verso italianadetrsdosprincipaisdiscursospblicosdeCcero;tambmtraduziu,e enriqueceudeumcomentrio,seutratadoDainveno,quealmdisso apresentou como sendo a melhor obra jamais escrita de retrica (Davis, 1967, pp. 423, 432; East,1968, p. 242).EssemtododeestudaraArsDictaminispormeiodosauctoresclssicos logose consolidoucomouma nova ortodoxia.Issoafetou aprpriaBolonha,at ento o centro do trabalho mais prtico, filisteu mesmo, sobre as artes retricas. J na dcada de 1270, Fra Guidotto de Bolonha traduziu a Teoria da fala em pblico paraoitalianoeutilizou-acomomanualdeinstruonaArsDictaminis (Wieruszowski,1971b,pp.370-1).Nocorrerdamesmadcada,BonodaLuca elegeucomoprincpiocentraldeseusensinamentosemBolonhaquetodoo estudodaretricadeveriaserextradodafonteciceroniana(Wieruszowski, 1971b,p. 364).Onovomovimentoatingiuozniteem comeos dosculoXIV, quando apareceu o tratado clssico que veio a melhor exprimir a nova perspectiva humanista,aBreveintroduoartedaepistolografia,deGiovannide Bonandrea (1296-1321) (Murphy,1971a,p.63).EssaobraeraquasetodaderivadadotratadoDainveno,de Ccero, e da Teoria dafala em pblico, e segundo Banker prontamente garantiu a seuautoraposiodeproeminncianainstruoretricanoapenasem Bolonha, mas em todas as universidades italianas (Banker, 1974, p. 159).Tologooensinodaretricaveioasebasearnoestudodeexemplose autoridadesclssicos,maisumaimportantenovidadeintelectualafetouas universidadesitalianas.Numerososestudantes,quetinham comeadoaaprender aArsDictaminiscomonadamaisqueumapartedesuaformaomaisampla para a carreira de advogado, comearam a se sentir mais e mais inte58rLressadosnospoetas,oradoresehistoriadoresclssicos,quelheserampropostos como modelos de bom estiloretrico. Ou seja, passaram a tratar esses escritores noapenascomomestresemalgunsartifciosestilsticos,mascomofiguras literrias srias, dignas de ser estudadas e imitadas por si mesmas.lo Os esforos assimenvidadosporessesadvogadosdocomeodosculoXIV,estudandoos clssicos por seu valor literrio e no mais por sua mera utilidade, fazem que seja correto consider-los os primeiros verdadeiros humanistas - os primeiros autores entre os quais a luz comeou a brilhar, como mais tarde diria Salutati, em meio s trevas ento generalizadas (Wieruszowski, 1971c, p. 460).ComoafirmaSalutatiemseupanegricosobreessesexpoentesiniciaisdo renascimentodasletras,osdoiscentrosondeosraiosdohumanismoprimeiro luziramforamascidadesdeArezzoePdua.Hpoucadocumentaodireta sobre as primeiras atividades humanistas em Arezzo, j que se perderamquasetodasasobrasdeGeri,omaiorpoetaeeruditodaquelapoca (Wieruszowski,1971c,p.460).Masnopodehaverdvidasobreosmritos intrnsecosouagrandeimportnciahistricaqueoassimchamadocrculodos pr-humanistas de Pdua alcanou nos primrdios do sculo XIV (Weiss,1947,p.6).AprimeirafiguradedestaquenessegrupofoiojuizLovatoLovati (1241-1309),dequemoprprioPetrarcadisse,emseulivroDascoisas memorveis,queeracertamenteomaiorpoetaquenosso pasjviuataquela data(p.84).Suaprincipalcontribuioconsistiuemrecuperarastragdiasde Snecaeemdedicarum estudoespecficoaseusefeitosmtricos(Weiss,1951, pp. 11-23). Entre os membros mais jovens de seu crculo estiveram vrios poetas e eruditosdenota,inclusiveRolandodaPiazzola,queescreveuprolificamenteem versos latinos,eFerretodeFerreti, aquem jmencionamosantescomoautorde uma das primeiras exaltaes dos signo ri e de sua causa (Weiss, 1947, pp. 7, 11-2).MasomaisimportantedetodososdiscpulosdeLovatifoiseguramenteo advogado Alberto Mussato (12611329), que alcanou posio proeminente na poltica de Pdua, como j pudemos ver,durante alonga lutatravadacontraCangrande deVerona.Mussatofoi autor deduashistriasdeseuprpriotempo,ambasinspiradasnasobrasdeLvioe Salstio sobre a Repblica romana. Delas, a segunda e mais ambiciosa, a Histria dosfeitosdositalianosapsamortedoimperadorHenriqueVII,eleainda escreviaquandomorreu,em1329,noexlio(Hyde,1966a,pp.297-8).Amais notvel, porm, foi Ecerinis,uma pea em versos latinos que Weiss considera o primeiro drama leigo a ser escrito desde a era clssica (Weiss, 1947, p. 10). Essa pea,compostaem1313-4,tomavapormodeloastragdiasdeSneca(Hyde, 1966a, pp. 298-9). fcil perceber que se trata da obra de um poeta humanista e retor, e ela de tal qualidade que permitiu que59Mussatofosseexaltadoatmesmocomoopaidatragdiarenascentista (Ullman, 1941, p. 221).Assimcomomarcouosprimrdiosdorenascimentoliterrio,esse movimentoexerceuconsidervelinflunciasobreodesenvolvimentodo pensamentopolticodaRenascena.Podemosdiscernirtalinflunciaporduas vias. A primeira est no fato de que as obras desses literati pr-humanistas muitas vezeseramdeteorforteediretamentepoltico.Encontramossinaisbemclaros dessamotivaonospoetasdeArezzodoDuzentos.Deles,omelhorexemplo aparece na obra de Guido de Arezzo, que na dcada de 1260 escreveu uma crtica veementeaos florentinosporabandonaremseus ideaiscvicos,e em especialpor encorajaremodestrutivojogodasfaces,alegandoqueessasfalhaspodiam explicar a desastrosa derrota do exrcito de Florena na batalha de Montaperti, em 1260 (Rubinstein,1942, p.218).Masatentativamaisempenhadadepranova culturaliterriaaserviodascidadesrepblicassedeveuaospr-humanistasde Pdua, e em particular a Alberto Mussato, que claramente no se considerava um mero erudito e poeta, mas tambm um poltico e propagandista. Todo o propsito deseu Ecerinis,conforme explicanaIntroduoaessa obra, est eminvectivar com lamentaes a tirania e em celebrar o valor da luta pela liberdade e pelo auto governo (p. 5). O tema da pea a ascenso e quedade Ezzelino como tirano de Pdua- esoabundantesasalusesameaa,maisimediata,deCangrande liberdadedaquelacidade-repblica.Odrama,depoisdeexporcomoEzzelino descendiadodemnio,passaadescrevernospormenoresmaisassustadoressua selvagemtirania,quefoimarcadaporprises,cruzes,tormentos,mortese exlio(p.37).Atinge-seoclmaxquandoPdualibertadadotirano;depois disso,ocorocelebraamortedaselvagemloucuradatiraniaeareconquista da paz(pp.50,59).Ovalordaobraenquantopeadepropagandapoltica foi prontamentereconhecidopelatoameaadacidadedePdua.Acomuna solenementeoutorgouaMussatoumacoroadelourosiniciandoatradiode coroar os grandes poetas, que conheceria to ampla difuso durante a Renascena - e foi promulgado um decreto cvico, que mandava ler-se a pea uma vez por ano perante a populaa reunida (Weiss, 1947, p. 1; Rubinstein, 1965b, p. 63).Aoutraviapelaqualosurgimentodessanovaculturaliterriacontribuiu paramoldarodesenvolvimentodateoriapolticafoimenosdireta,masestava fadadaa terimportncia bemmaior:as novas influncias clssicasserviram para enriquecereconsolidarambososgnerosdeescritapolticaquejhaviam nascidodoestudodaretricanasprimeirasdcadasdosculoXIII,assim concorrendo para que adquirissem uma apresentao mais sofisticada, bem como um tom propagandstico mais explcito.rParasechegaraesseresultadocontribuiu,pelomenosemparte,um aumento da autoconfiana dos homens de letras. Isso podemos observar, emprimeiro lugar, num bom nmero de crnicas urbanas que datam da segundametadedosculoXIII.Umimportanteexemploestnapartehistricada principal obra de Brunetto Lat