Upload
jorgedlopes
View
214
Download
2
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Prte Alienista M Assis
Citation preview
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia
cinco, seis vezes seguidas:
� Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma esp�cie era um escriv�o, que se vendia por
mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era
distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabe�as a um,
seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e n�o acabava mais. N�o
falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito
que, chamando-se Jo�o de Deus, dizia agora ser o deus Jo�o, e
prometia o reino dos c�us a quem o adorasse, e as penas do inferno
aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que n�o dizia nada,
porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma s�
palavra, todas as estrelas se despegariam do c�u e abrasariam a
terra; tal era o poder que recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar,
menos por caridade do que por interesse cient�fico.
Que, na verdade, a paci�ncia do alienista era ainda mais
extraordin�ria do que todas as manias hospedadas na Casa Verde;
nada menos que assombrosa. Sim�o Bacamarte come�ou por
organizar um pessoal de administra��o; e, aceitando essa id�ia ao
botic�rio Crispim Soares, aceitou-lhe tamb�m dois sobrinhos, a
quem incumbiu da execu��o de um regimento que lhes deu,
aprovado pela C�mara, da distribui��o da comida e da roupa, e
assim tamb�m na escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para
somente cuidar do seu of�cio.
� A Casa Verde, disse ele ao vig�rio, � agora uma esp�cie de
mundo, em que h� o governo temporal e o governo espiritual. E o
Padre Lopes ria deste pio trocado, � e acrescentava, � com o �nico
fim de dizer tamb�m uma chala�a: � Deixe estar, deixe estar, que hei
de mand�-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administra��o, o alienista procedeu a uma
vasta classifica��o dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em
duas classes principais: os furiosos e os mansos; da� passou �s
subclasses, monomanias, del�rios, alucina��es diversas. Isto feito,
come�ou um estudo aturado e cont�nuo; analisava os h�bitos de
cada louco, as horas de acesso, as avers�es, as simpatias, as
palavras, os gestos, as tend�ncias; inquiria da vida dos enfermos,
profiss�o, costumes, circunst�ncias da revela��o m�rbida,
acidentes da inf�ncia e da mocidade, doen�as de outra esp�cie,
antecedentes na fam�lia, uma devassa, enfim, como a n�o faria o
mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observa��o nova,
uma descoberta interessante, um fen�meno extraordin�rio. Ao
mesmo tempo estudava o melhor reg�men, as subst�ncias
medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, n�o s�
os que vinham nos seus amados �rabes, como os que ele mesmo
descobria, � for�a de sagacidade e paci�ncia. Ora, todo esse
trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal
comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora
interrogava um texto antigo, ora ruminava uma quest�o, e ia muitas
vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma s� palavra a D.
Evarista.
CAP�TULO III
DEUS SABE O QUE FAZ!
A ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgra�ada
das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra,
comia pouco e suspirava a cada canto. N�o ousava fazer-lhe
nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e
senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao
jantar, como lhe perguntasse o marido o que � que tinha, respondeu
tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto
de dizer que se considerava t�o vi�va como dantes. E acrescentou:
� Quem diria nunca que meia d�zia de lun�ticos...
N�o acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao
teto, � os olhos, que eram a sua fei��o mais insinuante, � negros,
grandes, lavados de uma luz �mida, como os da aurora. Quanto ao
gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Sim�o Bacamarte
a pediu em casamento. N�o dizem as cr�nicas se D. Evarista
brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a
ci�ncia, ou, pelo menos, decepar-lhe as m�os; mas a conjetura �
veross�mil. Em todo caso, o alienista n�o lhe atribuiu outra
inten��o. E n�o se irritou o grande homem, n�o ficou sequer
consternado. O metal de seus olhos n�o deixou de ser o mesmo
metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a
superf�cie da fronte quieta como a �gua de Botafogo. Talvez um
sorriso lhe descerrou os l�bios, por entre os quais filtrou esta
palavra macia como o �leo do C�ntico:
� Consinto que v�s dar um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o ch�o debaixo dos p�s. Nunca dos
nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto n�o fosse sequer uma
p�lida sombra do que hoje �, todavia era alguma coisa mais do que
Itagua�. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do
hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez
naquela povoa��o interior, agora � que ela perdera as �ltimas
esperan�as de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente
agora � que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e
mo�a. D. Evarista n�o p�de dissimular o gosto de semelhante
proposta. Sim�o Bacamarte pegou-lhe na m�o e sorriu, � um
sorriso tanto ou quanto filos�fico, al�m de conjugal, em que parecia
traduzir-se este pensamento: � �N�o h� rem�dio certo para as dores
da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a n�o amo;
dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se�. E porque era homem
estudioso tomou nota da observa��o.