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3º Curso Virtual de Teologia do Corpo 2010 ____________________________________________________ 1 1 Cristo se Refere ao Coração Humano Introdução 1. No tema anterior voltamos ao ―princípio‖, e vimos como no coração do homem e da mulher no plano original de Deus não havia maldade nem pecado, e como sua relação ―em uma só carne‖ era reflexo do seu chamado à comunhão, já que eram imagem e semelhança de Deus. Porém, quando Adão e Eva desobedeceram a Deus, o pecado entrou no mundo. Esse é o período em que vivemos, o período ―histórico‖, teologicamente falando. Mas esse período não é marcado só pelo pecado. É marcado também pelo mistério da Redenção que Cristo veio nos trazer. Portanto, o ciclo do ―Homem Histórico‖ trata de dois aspectos: o homem corrompido pelo pecado original, e ao mesmo tempo o homem redimido por Cristo. 2. O ciclo de audiências chamado ―Cristo se Refere ao Coração Humano‖ é o mais longo, consistindo em 40 audiências gerais feitas pelo Papa João Paulo II entre 16 de abril de 1980 e 6 de maio de 1981. 3. Lembremo-nos que o Papa, em cada um dos ciclos, tem presente as palavras do Concílio Vaticano II: ―Jesus Cristo revela plenamente o homem a si mesmo‖(Gaudium et spes, 22:1). Portanto, tudo começa pelo Novo Testamento, pelas palavras de Cristo. As palavras de Cristo 4. A seguir traduzimos um trecho de rodapé do tradutor, Michael Waldstein, justificando o uso do termo ―desejar de forma redutiva‖: 5. De acordo com João Paulo II, o desejo sexual e o prazer sexual são, em si mesmos, bons. A palavra ―desejo‖ pode ser utilizada em sentido positivo. No namoro e no casamento, não é apenas moralmente legítima, como boa e santa, em conformidade com o significado esponsal do corpo. O ―desejo‖ também pode ser utilizado em um sentido negativo para designar um tipo redutivo de desejo no qual a outra pessoa se torna um mero instrumento para o prazer, contrário ao significado esponsal do corpo. O ―desejo‖, em um sentido negativo, surge quando um homem ou uma mulher não consegue ver a atratividade completa ou plena da outra pessoa, e reduz esta atratividade somente à atratividade do prazer sexual. O fato de isolar e ver somente o desejo sexual é que dá origem ao vício da luxúria. No desejo luxurioso ou concupiscente, vê-se a outra pessoa de modo redutivo, como simples instrumento ou meio para o prazer sexual. Para evitar a impressão que Jesus (de acordo com a compreensão de João Paulo II) estaria condenando o desejo sexual em si, adicionaremos algumas vezes, como lembrete, certos adjetivos entre colchetes logo após a palavra ―desejo‖: [luxurioso], [concupiscente], ou [redutivo].)." 1 À Luz do Sermão da Montanha 6. Este enunciado constitui uma das passagens do Sermão da Montanha, em que Jesus Cristo faz uma revisão fundamental do modo de compreender e cumprir a lei moral da Antiga Aliança. Assim, portanto, Cristo apela para o homem interior, e o faz mais que uma vez e em diversas circunstâncias. (TdC 24) 1 Pág. 225 na tradução de Michael Waldstein, de título Man and Woman He Created Them, Pauline Books, Boston, 2006. “Ouvistes que foi dito: „Não cometerás adultério‟. Ora, eu vos digo: todo aquele que olhar para uma mulher com o desejo [luxurioso] de possuí-la, já cometeu adultério com ela em seu coração.” (Mt 5, 27-28)

Texto Complementar - Tema 3 - Cristo se refere ao coração humano

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Texto Complementar - Tema 3 - Cristo se refere ao coração humano. Tema 3 de 8 do Curso Virtual de Teologia do Corpo do site www. teologiadocorpo. com. br

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3º Curso Virtual de Teologia do Corpo – 2010 ____________________________________________________ 1

1

Cristo se Refere ao Coração Humano

Introdução

1. No tema anterior voltamos ao ―princípio‖, e

vimos como no coração do homem e da mulher no

plano original de Deus não havia maldade nem

pecado, e como sua relação ―em uma só carne‖

era reflexo do seu chamado à comunhão, já que

eram imagem e semelhança de Deus. Porém,

quando Adão e Eva desobedeceram a Deus, o

pecado entrou no mundo. Esse é o período em que

vivemos, o período ―histórico‖, teologicamente

falando. Mas esse período não é marcado só pelo

pecado. É marcado também pelo mistério da

Redenção que Cristo veio nos trazer. Portanto, o

ciclo do ―Homem Histórico‖ trata de dois

aspectos: o homem corrompido pelo pecado

original, e ao mesmo tempo o homem redimido

por Cristo.

2. O ciclo de audiências chamado ―Cristo se

Refere ao Coração Humano‖ é o mais longo,

consistindo em 40 audiências gerais feitas pelo

Papa João Paulo II entre 16 de abril de 1980 e 6

de maio de 1981.

3. Lembremo-nos que o Papa, em cada um dos

ciclos, tem presente as palavras do Concílio

Vaticano II: ―Jesus Cristo revela plenamente o

homem a si mesmo‖(Gaudium et spes, 22:1).

Portanto, tudo começa pelo Novo Testamento,

pelas palavras de Cristo.

As palavras de Cristo

4. A seguir traduzimos um trecho de rodapé do

tradutor, Michael Waldstein, justificando o uso do

termo ―desejar de forma redutiva‖:

5. ―De acordo com João Paulo II, o desejo sexual

e o prazer sexual são, em si mesmos, bons. A

palavra ―desejo‖ pode ser utilizada em sentido

positivo. No namoro e no casamento, não é

apenas moralmente legítima, como boa e santa,

em conformidade com o significado esponsal do

corpo. O ―desejo‖ também pode ser utilizado em

um sentido negativo para designar um tipo

redutivo de desejo no qual a outra pessoa se torna

um mero instrumento para o prazer, contrário ao

significado esponsal do corpo. O ―desejo‖, em

um sentido negativo, surge quando um homem ou

uma mulher não consegue ver a atratividade

completa ou plena da outra pessoa, e reduz esta

atratividade somente à atratividade do prazer

sexual. O fato de isolar e ver somente o desejo

sexual é que dá origem ao vício da luxúria. No

desejo luxurioso ou concupiscente, vê-se a outra

pessoa de modo redutivo, como simples

instrumento ou meio para o prazer sexual. Para

evitar a impressão que Jesus (de acordo com a

compreensão de João Paulo II) estaria

condenando o desejo sexual em si, adicionaremos

algumas vezes, como lembrete, certos adjetivos

entre colchetes logo após a palavra ―desejo‖:

[luxurioso], [concupiscente], ou [redutivo].)."1

À Luz do Sermão da Montanha

6. Este enunciado constitui uma das passagens do

Sermão da Montanha, em que Jesus Cristo faz

uma revisão fundamental do modo de

compreender e cumprir a lei moral da Antiga

Aliança. Assim, portanto, Cristo apela para o

homem interior, e o faz mais que uma vez e em

diversas circunstâncias. (TdC 24)

1 Pág. 225 na tradução de Michael Waldstein, de título ―Man

and Woman He Created Them‖, Pauline Books, Boston,

2006.

“Ouvistes que foi dito: „Não cometerás adultério‟. Ora, eu vos digo: todo aquele que

olhar para uma mulher com o desejo [luxurioso] de possuí-la, já cometeu

adultério com ela em seu coração.” (Mt 5, 27-28)

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7. O homem, a quem Jesus se refere aqui, é

precisamente o homem "histórico", aquele cujo

"princípio" e "pré-história teológica" traçamos na

precedente série de análises. Mais diretamente, ele

é aquele que escuta, com os próprios ouvidos, o

Sermão da Montanha. (...) Este homem é, em

certo sentido, "cada" homem, "cada um" de nós.

(TdC 25)

8. O "coração" é esta dimensão da humanidade,

com que está ligado diretamente o sentido do

significado do corpo humano, e a ordem deste

sentido. Trata-se aqui, tanto daquele significado

que, nas precedentes análises, chamamos

"esponsal", quanto daquele que denominamos

―procriador‖ ou ―gerador‖. (TdC 25)

A Vergonha “Entra em Cena” -

O Significado da Vergonha

9. Falando sobre o pecado original, diz o Papa:

―Pondo em dúvida, no seu coração, o significado

mais profundo da doação, ou seja, o amor como

motivo específico da criação e da Aliança

original, o homem volta as costas para Deus-

Amor, ao "Pai". Em certo sentido, lança-O para

fora do próprio coração‖. (TdC 26)

10. ―Então os olhos de ambos se abriram, e, como

reparassem que estavam nus, teceram para si

tangas com folhas de figueira.‖ (Gen 3, 7) Em

tudo isto, a "nudez" não tem apenas significado

literal, não se refere só ao corpo, não é origem de

uma vergonha referida só ao corpo. Na realidade,

o que se manifesta através da "nudez" é o homem

destituído da participação no Dom, o homem

alienado do Amor que tinha sido a fonte do dom

original, fonte da plenitude do bem destinado à

criatura. (TdC 27)

11. A vergonha, cuja causa se encontra na

própria humanidade, é ao mesmo tempo imanente

e relativa: manifesta-se na dimensão da

interioridade humana e ao mesmo tempo se refere

ao "outro". (TdC 28)

12. A vergonha, que sem dúvida se manifesta na

ordem "sexual", revela uma dificuldade específica

em perceber a essencialidade humana do próprio

corpo. ―Fiquei com medo, porque estava nu‖. Por

meio destas palavras revela-se certa fratura

constitutiva no interior da pessoa humana, uma

ruptura da unidade espiritual e somática original

do homem. Este se dá conta pela primeira vez que

seu corpo cessou de beber da força do espírito,

que o elevava ao nível da imagem de Deus. A sua

vergonha original traz em si os sinais de uma

específica humilhação comunicada pelo corpo.

Esconde-se nela o germe daquela contradição, que

acompanhará o homem "histórico" em todo o seu

caminho terrestre, como escreve São Paulo: "Sinto

prazer na lei de Deus, de acordo com o homem

interior. Mas vejo outra lei em meus membros, a

lutar contra a lei da minha razão‖ (Rom 7, 22-23)

– (TdC 28)

13. A vergonha (pudor) imanente, e ao mesmo

tempo sexual, é sempre, ao menos indiretamente,

relativo. É a vergonha da própria sexualidade ―em

relação‖ a outro ser humano. (TdC 28)

14. O homem tem vergonha do corpo por causa

da concupiscência. Mais exatamente, ele tem

vergonha não tanto do corpo, e sim mais

precisamente da concupiscência: tem vergonha

do corpo guiado pela concupiscência. (TdC 28)

15. A vergonha tem significado duplo: ela

indica a ameaça ao valor [original do corpo e

do homem], e ao mesmo tempo ela preserva

interiormente esse valor. (TdC 28) Se, por um

lado, a vergonha revela o momento da

concupiscência, ao mesmo tempo pode em

primeira mão fornecer armas ou meios contra as

conseqüências da concupiscência. (TdC 31)

16. Esta vergonha confirma que foi destruída a

capacidade original de se comunicarem

reciprocamente a si mesmos, de que fala Gênesis

2, 25. (...) É como se a sexualidade se tornasse

"obstáculo" na relação pessoal do homem com a

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mulher. (...) A necessidade de se esconder ante o

―outro‖ mostra a fundamental falta de confiança,

que já em si aponta para o colapso da relação

original ―de comunhão‖. (TdC 29)

17. À luz da narrativa bíblica, a vergonha sexual

tem o seu profundo significado, que está

conectado precisamente com a incapacidade de

satisfazer a aspiração de realizar, na "união

conjugal do corpo", a comunhão recíproca de

pessoas. A mulher, cujos "desejos a arrastarão

para seu marido" (Gen 3, 16), e o homem, cuja

resposta a tal instinto, como lemos, é de "dominá-

la" (Gen 3, 16), formam indubitavelmente o

mesmo par humano, o mesmo matrimônio de

Gênesis 2, 24, e até mesmo a mesma comunidade

de pessoas: todavia, são agora alguma coisa de

diverso. Já não são apenas chamados à união e

unidade, mas também ameaçados pela

insaciabilidade daquela união e unidade. (TdC

30)

O Homem da Concupiscência

18. Esta verdade, sobre o homem "histórico", de

universal importância, para a qual nos orientam as

palavras de Cristo tiradas de Mt 5, 27-28, parece

estar expressa na doutrina bíblica sobre a tríplice

concupiscência. Referimo-nos aqui ao conceito

enunciado da primeira Epístola de São João 2, 16-

17: ―Porque tudo o que há no mundo — a

concupiscência humana, a cobiça dos olhos e a

ostentação da riqueza — não vem do Pai, mas do

mundo.‖ (TdC 26)

19. A tríplice concupiscência, incluída a do corpo,

traz consigo uma limitação do próprio significado

esponsal do corpo, de que o homem e a mulher

eram participantes no estado da inocência

original. (TdC 31)

20. O homem da concupiscência não domina o

próprio corpo do mesmo modo, com igual

simplicidade e "naturalidade" como o fazia o

homem da inocência original. (TdC 28)

21. Entretanto, o significado esponsal do corpo

não se tornou totalmente estranho àquele coração:

não ficou nisso totalmente sufocado por parte da

concupiscência, mas só habitualmente ameaçado.

O "coração" tornou-se um campo de batalha

entre o amor e a concupiscência. (TdC 32)

22. Quanto mais a concupiscência domina o

coração, tanto menos este experimenta o

significado esponsal do corpo, e tanto menos se

torna sensível ao dom da pessoa. (TdC 32)

23. O "desejo" [luxurioso] de que Cristo fala

em Mateus 5, 27-28 aparece no coração

humano de muitas formas: nem sempre é

evidente e manifesto, às vezes é obscuro, de

maneira que se passa como "amor", embora

mude o seu autêntico aspecto e obscureça a

limpidez do dom. Isto quer dizer que devemos

desconfiar do coração humano? Não! Quer

somente dizer que devemos permanecer no

controle dele. (TdC 32)

24. O "corpo" não cessa de estimular os desejos

por união pessoal, precisamente por causa da

masculinidade e feminilidade ("Teus desejos te

arrastarão para teu marido"), por outro lado e ao

mesmo tempo a concupiscência dirige a seu modo

estes desejos; isto é confirmado pela expressão

"Ele te dominará" (Gen 3, 16). Agora, a

concupiscência da carne orienta esses desejos para

a satisfação do corpo, muitas vezes às custas de

uma autêntica e plena comunhão das pessoas. A

partir do momento em que o homem "domina" a

mulher, a comunhão de pessoas —feita de plena

unidade espiritual dos dois sujeitos que se dão

reciprocamente— é substituída por uma relação

mútua diferente, isto é, uma relação de posse do

outro como um objeto do próprio desejo. (TdC

31) A relação de dom transforma-se em relação

de apropriação. (TdC 32)

Mandamento e Ethos

25. A sucessiva etapa da nossa análise deverá ser

de caráter ético. O Sermão da Montanha, e em

particular a passagem que escolhemos como

centro das nossas análises, faz parte da

proclamação do novo ethos: o ethos do

Evangelho. (TdC 34)

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26. As palavras do Sermão da Montanha

consentem-nos estabelecer um contato com a

experiência interior deste homem [―histórico‖].

Com a categoria do "coração", cada um se

identifica de modo singular, mais ainda que pelo

nome. A imagem do homem da concupiscência

diz respeito acima de tudo ao seu [ser] interior.

27. Detenhamo-nos um pouco na expressão que,

segundo Mateus 5, 27-28, efetua de certo modo a

transferência ou a deslocação do significado do

adultério do "corpo" para o "coração". São

palavras que se referem ao desejo. Cristo fala da

concupiscência: "todo aquele que olhar para uma

mulher com o desejo de possuí-la". Essa é a

expressão que precisa ser analisada em detalhe

para se compreender o enunciado como um todo.

(...) O homem de que fala Cristo no Sermão da

Montanha —o homem que olha "para desejar"— é

indubitavelmente o homem da concupiscência.

(TdC 38)

28. O olhar exprime o que está no coração. O

olhar exprime, diria eu, o homem completo. Em

certo sentido, o homem através do olhar revela-se

exteriormente e aos outros; sobretudo revela o que

percebe no "interior".

29. O "Desejar" [luxurioso], ou o "olhar com

desejo [redutivo]", indicam uma experiência do

valor do corpo em que o seu significado esponsal

cessa de ser esponsal, precisamente por causa da

concupiscência. (...) Portanto, quando o homem

―deseja‖ e "olha com desejo" (como lemos em Mt

5, 27-28), ele experimenta mais ou menos

explicitamente a ruptura com o significado do

corpo, que (segundo já observamos nas nossas

reflexões) está na base da comunhão das pessoas.

(TdC 39)

30. O "desejo" nascido precisamente da

concupiscência da carne passa sobre as ruínas do

significado esponsal do corpo para satisfazer só o

impulso sexual do corpo. Tal redução intencional

e axiológica pode verificar-se, segundo as

palavras de Cristo, já no âmbito do "olhar" ou,

antes, no âmbito de um ato puramente interior

expresso pelo olhar. (TdC 40)

31. A mulher começa a existir intencionalmente

como objeto para a potencial satisfação da

necessidade sexual inerente à masculinidade.

Embora o ato seja completamente interior,

encerrado no "coração" e expresso só pelo "olhar",

nele dá-se já uma mudança (subjetivamente

unilateral) da intencionalidade mesma da

existência. (TdC 41)

32. Como acontece muitas vezes no Evangelho,

também aqui encontramos certo paradoxo. Como,

de fato, pode haver "adultério" sem se "cometer

adultério", isto é, sem o ato exterior, que permite

reconhecer o ato proibido pela Lei? (...)Ao

entender o "adultério no coração", Cristo

considera não apenas o real estado jurídico do

homem e da mulher em questão. Cristo faz com

que a avaliação moral do "desejo" dependa acima

de tudo da dignidade pessoal do homem e da

mulher; e isso é importante seja quando se trata de

pessoas não casadas, seja —e talvez mais ainda—

quando são cônjuges, mulher e marido. (TdC 42)

33. É significativo que Cristo, quando fala do

objeto de tal ato [de olhar com concupiscência],

não sublinha que seria no caso "a mulher do

próximo", ou a mulher que não é a própria esposa,

mas diz genericamente: uma mulher. (...) O

adultério "no coração" não é cometido só porque o

homem "olha" desse modo [luxurioso] para a

mulher que não é sua esposa, mas precisamente

porque olha desse modo para uma mulher.

Também se olhasse deste modo para a mulher que

é sua esposa cometeria o mesmo adultério "no

coração". (TdC 43)

34. A concupiscência que nasce como ato interior

muda a própria intencionalidade do existir da

mulher "para" o homem, reduzindo a riqueza do

perene chamado à comunhão de pessoas

unicamente à satisfação do "impulso" sexual do

corpo. Tal redução faz com que a pessoa (neste

caso, a mulher) se torne para a outra pessoa (o

homem) acima de tudo um objeto para a possível

satisfação de seu próprio "impulso" sexual. O

homem que "olha" de tal modo, como escreve Mt

5, 27-28, "se utiliza" da mulher, da sua

feminilidade, para satisfazer o próprio "instinto".

Mesmo que não o faça em um ato exterior, já

tomou essa atitude no seu íntimo. Um homem

pode cometer tal adultério ―no coração‖ mesmo

com a própria esposa, se a trata apenas como

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3º Curso Virtual de Teologia do Corpo – 2010 ____________________________________________________ 5

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objeto para a satisfação de impulsos. (...) Não é

possível chegarmos a essa segunda interpretação

das palavras de Mt 5, 27-28, se nos limitamos à

interpretação puramente psicológica da

concupiscência, sem ter em conta aquilo que

forma o seu específico caráter teológico. (TdC

43)

O Coração – Acusado ou Chamado?

35. Se nas palavras analisadas do Sermão da

Montanha o coração humano é "acusado" de

concupiscência (ou se é posto em guarda contra

aquela concupiscência), simultaneamente

mediante as mesmas palavras é ele chamado a

descobrir o sentido pleno daquilo que no ato de

concupiscência constitui para ele um "valor não

suficientemente apreciado". (TdC 45)

36. Uma segunda questão surge de mãos dadas

com essa, uma questão mais ―prática‖: Como

alguém que aceita as palavras de Cristo no

Sermão da Montanha ―pode‖ e ―deve‖ agir? (TdC

44)

37. O homem "histórico" valoriza sempre, a seu

modo, o próprio "coração", assim como julga

também o próprio "corpo": e assim passa do pólo

do pessimismo ao pólo do otimismo, da

severidade puritana ao permissivismo

contemporâneo. (TdC 44)

Maniqueísmo

38. O maniqueísmo via a fonte do mal na matéria,

no corpo, e proclamava portanto a condenação de

tudo o que no homem é corpóreo. E como no

homem a corporeidade se manifesta acima de tudo

através do sexo, a condenação era estendida ao

matrimônio e à convivência conjugal, e a todas as

outras esferas do ser e do atuar, em que se

exprime a corporeidade. (TdC 44)

39. As pessoas, portanto, procuravam descobrir –

e às vezes viam – tal condenação [do corpo] no

Evangelho, encontrando-a onde foi pelo contrário

expressa exclusivamente uma exigência particular

dirigida ao espírito humano. (TdC 44)

40. A interpretação apropriada das palavras de

Cristo, segundo Mateus 5, 27-28, como também a

"prática" na qual se realiza sucessivamente o

autêntico ethos do Sermão da Montanha, devem

ser completamente livres de elementos

maniqueístas no pensamento e na atitude. (TdC

45)

“Mestres da Suspeita”

41. Na hermenêutica de Nietzsche, o juízo e a

acusação do coração humano correspondem, em

certo modo, ao que na linguagem bíblica é

chamado "soberba da vida"; na hermenêutica de

Marx, ao que foi chamado "concupiscência dos

olhos"; e na hermenêutica de Freud, pelo

contrário, ao que é chamado "concupiscência da

carne". (TdC 46)

42. O significado do corpo é, em certo sentido, a

antítese da libido freudiana. (TdC 46)

43. As palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-

28 não nos permitem parar na acusação contra o

coração humano e colocá-lo em estado de suspeita

contínua, mas devem ser entendidas e

interpretadas sobretudo como apelo dirigido ao

coração. Isto deriva da própria natureza do ethos

da redenção. A redenção é uma verdade, uma

realidade, em cujo nome o homem deve sentir-

se chamado, e "chamado com eficácia". (TdC

46)

44. As palavras de Cristo testemunham que a

força original (portanto, também a graça) do

mistério da criação se torna para cada um deles

força (isto é, graça) do mistério da redenção. Isso

concerne a própria "natureza", o próprio substrato

da humanidade da pessoa, os mais profundos

impulsos do "coração". (TdC 46)

O Ethos da Redenção do Corpo

45. É indubitavelmente um ethos "novo". É

"novo", em confronto com o ethos dos homens do

Antigo Testamento. É "novo" também com

respeito ao estado do homem "histórico",

posterior ao pecado original, isto é, a respeito do

"homem da concupiscência". (TdC 49)

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46. No Sermão da Montanha, Cristo não convida

o homem a voltar ao estado da inocência original,

porque a humanidade deixou-a irrevogavelmente

atrás de si, mas chama-o a reencontrar as formas

vivas do "homem novo". (TdC 49)

Pureza como “Vida segundo o Espírito”

47. A análise da pureza é complemento

indispensável das palavras de Cristo no Sermão da

Montanha (―Aquele que olhar para uma mulher

cobiçando-a desordenadamente já cometeu

adultério em seu coração...‖). (TdC 50)

48. O sentido mais amplo e geral de pureza

também está presente nas cartas de São Paulo. Ele

observa uma oposição e tensão entre a ―carne‖ e o

―Espírito‖. (TdC 50) ―Pois o que a carne deseja é

contra o Espírito, e o que o Espírito deseja é

contra a carne: são o oposto um do outro, e por

isso nem sempre fazeis o que gostaríeis de fazer‖

(Gálatas 5, 16-17).

49. A carne, então, para S. Paulo, não deve ser

identificada com o sexo ou o corpo físico. Na

verdade, está mais perto do sentido Hebreu de

personalidade física – o ―si mesmo‖, incluindo os

elementos físicos como veículos da vida exterior.

O termo ―carne‖, para São Paulo, indica não

apenas o homem ―exterior‖, mas também o

homem ―interiormente‖ sujeito às coisas ―do

mundo‖. O homem que vive ―segundo a carne‖ é

o homem voltado apenas para o que vem ―do

mundo‖: é o homem ―sensorial‖, o homem da

tríplice concupiscência. (...) Para Paulo a vida

―segundo a carne‖ se opõe à vida ―segundo o

Espírito‖ não apenas no interior do coração do

homem, mas se expande no campo das obras (ver

Gal 5, 19-23). (TdC 51)

50. O homem encontra sua justificação não apenas

observando preceitos individuais da lei do Antigo

Testamento, mas sua justificação vem ―do

Espírito‖ (de Deus), e não ―da carne‖. Nesse

sentido Paulo exorta os leitores de sua carta a se

considerarem ―livres da lei‖, e ainda mais, que

sejam livres com a liberdade pela qual Cristo ―nos

fez livres‖. (TdC 52)

51. Em primeiro lugar, a pureza é uma

―habilidade‖, ou, na linguagem tradicional da

antropologia e da ética, é uma atitude. E nesse

sentido é uma virtude. O que temos aqui é uma

habilidade prática que permite ao homem agir de

um modo definido, e ao mesmo tempo a não agir

de modo contrário. A pureza obviamente deve ter

suas raízes na vontade, nos próprios fundamentos

do agir consciente do homem. (TdC 54)

52. O Espírito Santo, segundo as palavras do

Apóstolo, entra no corpo humano como no

próprio "templo", nele habita e opera unido aos

seus dons espirituais. Entre estes dons, conhecidos

na história da espiritualidade como os sete dons

do Espírito Santo , o mais congenial à virtude da

pureza parece ser o dom da "piedade" (eusebeía,

donum pietatis). (TdC 57)

53. A pureza, como virtude, ou seja, capacidade

de "manter o próprio corpo com santidade e

respeito", aliada com o dom da piedade, como

fruto da permanência do Espírito Santo no

"templo" do corpo, realiza nele tal plenitude de

dignidade nas relações interpessoais, que Deus

mesmo é nisso glorificado. A pureza é glória do

corpo humano diante de Deus. É a glória de Deus

no corpo humano. (TdC 57)

Conclusão

54. Seguindo a referência que fez Cristo ao

"princípio", dedicamos uma série de reflexões aos

relativos textos do Livro do Gênesis, que tratam

precisamente daquele "princípio". Ao mesmo

tempo, é preciso todavia considerar, entender e

interpretar a mesma verdade fundamental sobre o

homem, o seu ser de varão e de mulher, no prisma

de outra situação: isto é, daquela que se formou

mediante a ruptura da primeira aliança com o

Criador, ou seja, mediante o pecado original.

Convém ver tal verdade sobre o homem —varão e

mulher— no contexto da sua pecaminosidade

hereditária. E é precisamente aqui que nos

encontramos com o enunciado de Cristo no

Sermão da Montanha. (TdC 58)

55. Qual é esta verdade? Indubitavelmente, é uma

verdade de caráter ético e, portanto, afinal, de uma

verdade de caráter normativo. "Não cometerás

adultério". A interpretação deste mandamento,

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dado por Cristo, indica o mal que é necessário

evitar e vencer — precisamente o mal da

concupiscência da carne — e ao mesmo tempo

indica o bem a que a vitória sobre os desejos abre

caminho. Este bem é a "pureza de coração", de

que fala Cristo no mesmo contexto do Sermão da

Montanha. (TdC 58)

56. Mas as palavras de Cristo são realistas. Não

tentam fazer o coração humano voltar ao estado

de inocência original, que o homem deixou para

atrás de si no momento em que cometeu o pecado

original; pelo contrário, indicam-lhe o caminho

para uma pureza de coração, que lhe é possível e

acessível também no estado da pecaminosidade

hereditária. (TdC 58)

57. Deste modo, a pureza, no sentido de

temperança, desenvolve-se no coração do homem

que a cultiva e tende a descobrir e a afirmar o

sentido esponsal do corpo na sua verdade integral.

Esta mesma verdade deve ser conhecida

interiormente; deve, de certo modo, ser "sentida

com o coração", para que as relações recíprocas

do homem e da mulher — e mesmo o simples

olhar — readquiram aquele conteúdo

autenticamente esponsal dos seus significados.

(TdC 58)

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Perguntas para estudo 1. O Papa escolheu começar esta seção com o trecho:

―Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu

porém digo-vos que todo aquele que olhar para uma

mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no

seu coração‖ (Mt. 5, 27-28). Porque o Papa disse que

não deveríamos temer a severidade das palavras de

Cristo sobre a luxúria?

2. Você poderia dizer algumas consequências da

entrada da concupiscência na relação homem –

mulher?

3. Como o homem vê seu corpo depois do pecado

original?

4. Porque a maioria das pessoas pensa a moralidade

cristã como uma lista opressiva de normas? O que

significa estar ―livre da lei‖?

5. Você já escutou alguma vez que Cristo nos dá um

―poder real‖ para experimentar a sexualidade como o

desejo de amar como Deus ama? Você acredita nisso?

6. O que significa a luta entre carne e espírito? E o

que significa ―ethos‖ da redenção?

7. Por que o maniqueísmo e a interpretação da

suspeita são visões equivocadas?

(Sugere-se enviar as respostas para [email protected]) ____________________________________________

© Texto elaborado pela equipe Teologia do Corpo - Brasil

exclusivamente para fins didáticos, contendo trechos das

catequeses do Papa. As citações das catequeses TdC seguem

a numeração de Michael Waldstein (ver quadro de referência

em separado) As citações bíblicas são da tradução da CNBB.