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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Laís Vanessa Carvalho de Figueirêdo Lopes Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, seu Protocolo Facultativo e a Acessibilidade MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009

Texto Da Laiz Lopes- Importante, Muito Citado

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Este artigo aborda questões pertinentes acerca de todo o processo de inclusão da pessoa com deficiência ao longo da história.Ótima fonte de pesquisa para quem quiser adquirir conhecimento, como também reconhecer as particulares de cada portador de deficiência.

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP

    Las Vanessa Carvalho de Figueirdo Lopes

    Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia da ONU, seu Protocolo Facultativo e a Acessibilidade

    MESTRADO EM DIREITO

    SO PAULO 2009

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP

    Las Vanessa Carvalho de Figueirdo Lopes

    Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia da ONU, seu Protocolo Facultativo e a Acessibilidade

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, em cumprimento parcial aos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de MESTRE em Direitos Humanos, na rea de Concentrao de Relaes Sociais, sob orientao da Professora Doutora Flvia Cristina Piovesan.

    MESTRADO EM DIREITO

    SO PAULO 2009

  • Banca Examinadora:

    ____________________________________________

    Prof. Dra. Flvia Cristina Piovesan (Orientadora)

    ____________________________________________

    Prof.() Dr.( ). .

    ____________________________________________

    Prof.() Dr.( ).

  • A busca da felicidade e a efetivao da dignidade humana devem ser constantes. Dedico o presente trabalho a todos que tambm lutam para tornar o mundo mais sustentvel, inclusivo e acessvel...

  • AGRADECIMENTOS

    Os agradecimentos, neste trabalho, confundem-se com minha prpria trajetria de vida. So muitos os mestres e pessoas que nos acompanham e ensinam, cada um a seu modo, contedo e forma, o que hoje se reflete neste trabalho.

    Na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP), entre 1996 a 2000, na Faculdade de Direito, e entre 2005 a 2008, no Programa de Ps-Graduao em Direito, aprendi com muitos professores, colegas de sala de aula e amigos. Nesta lista, sem prejuzo da importncia que todos, individualmente e/ou em conjunto, tiveram, devo citar alguns que muito me influenciaram pelo acmulo percebido, inspirao gerada ou orientao concedida.

    Em relao aos docentes, gostaria de agradecer, primeiramente, a Celso Antnio Bandeira de Melo, Professor Doutor de Direito Administrativo da PUC/SP, pelo qual desenvolvi profunda admirao ao conhecer sua sabedoria, obra, oratria, militncia poltica e acadmica, tendo tido a rara oportunidade de com ele compartilhar discusses sobre os rumos que deveriam ser dados estimada Faculdade de Direito Pontifcia da Universidade Catlica em 1999 e 2000; a Roberto Quiroga Mosquera, Professor Doutor de Direito Tributrio da PUC/SP, quem primeira e formalmente me introduziu no tema das organizaes no-governamentais, convidando-me para realizar pesquisa, sob sua orientao, cujo resultado gerou o CD-ROM Coletnea de Legislao do Terceiro Setor, publicado pelo Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundao Getlio Vargas de So Paulo (CETS/FGV/SP); a Luciano Prates Junqueira, Professor Doutor de Administrao de Empresas da PUC/SP, Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Administrao e do Ncleo de Estudos Avanados do Terceiro Setor (NEATS) da PUC/SP, que me introduziu no NEATS e, por acreditar no meu potencial e conhecer minha dedicao, interesse e qualificao profissional, me confiou a tarefa de magistrio das disciplinas de Direito e Legislao Aplicada ao Terceiro Setor, assim como a de Direitos Humanos, Cidadania e Polticas Pblicas na Universidade Catlica de Santos (UNISANTOS) a partir de 2004, e na Coordenadoria Geral de Especializao, Aperfeioamento e Extenso (COGEAE) da PUC/SP, a partir de 2007, nesta ltima, honradamente em conjunto com Antnio Carlos Malheiros, Professor de Direitos Humanos da PUC/SP, e Paula Raccanello Storto, advogada que atua no atendimento

  • especializado das organizaes do Terceiro Setor, os quais tenho o prazer de interagir e admirar; a Slvio Rocha, Professor Doutor de Direito Administrativo da PUC/SP, que me estimulou a estudar o Terceiro Setor como uma atividade administrativa de fomento do Estado, que muito contribuiu para o fortalecimento de minha prtica profissional assessorando organizaes sem fins lucrativos que atuam em parceria com o Poder Pblico; e a Fbio Ulhoa Coelho, Professor Doutor de Direito Comercial da PUC/SP, a quem escolhi seguir para estudar elementos de empresas aplicados ao Terceiro Setor, e que prontamente me acolheu aps ingresso formal no Programa de Ps Graduao em Direito das Relaes Econmicas e Sociais, estimulando-me acadmica e metodologicamente a buscar qualificar o objeto de minha pesquisa em relao ao tema de minha dissertao, e que autorizou a minha guinada de estudo comparado da governana das organizaes da sociedade civil de interesse pblico (OSCIP) com as sociedades por aes (S.A.) para os direitos humanos das pessoas com deficincia, entregue minha querida orientadora Flvia Cristina Piovesan, Professora Doutora de Direitos Humanos e Constitucional da PUC/SP, que reuniu nessa trajetria quatro grandes ncleos que destaco neste agradecimento: sua notria dedicao e compromisso percebidos em relao aos direitos humanos; incentivo a esta oportunidade de contribuio relevante no tema dos direitos humanos das pessoas com deficincia; fonte de inspirao gerada para todo o trabalho solitrio de escrever; e a importante orientao concedida, que me fez aprofundar mais e mais no desenvolvimento e a finalizao da presente.

    Aos docentes Roberto Dias e Vidal Serrano, ambos Professores Doutores de Direito Constitucional da PUC/SP, pelas contribuies feitas no Exame de Qualificao incorporadas no presente trabalho, no qual demonstraram interesse e propuseram instigantes questes relativas a este estudo.

    Silvia Pimentel, Professora Doutora de Filosofia do Direito e Direitos Humanos da PUC/SP, e ao Alberto do Amaral Jnior, Professor Doutor de Direito Internacional da Universidade de So Paulo, por terem de pronto aceitado participar da Banca Examinadora da minha dissertao.

    Na PUC/SP aprendi tambm com os amigos que fiz em sala de aula, no Centro Acadmico (C.A.) 22 de Agosto, nos auditrios e teatros de palestras e eventos, e nos corredores em geral. O grupo Ethos, que ajudei a fundar em 1997, recebe um destaque por ter sido o espao de militncia estudantil que constru com companheiros da faculdade, tendo

  • permanecido na gesto do referido Centro Acadmico nos anos de 1998 a 2001, depois de minha formatura em 2000, inclusive. Nessa ocasio, de forma mais intensa, convivi com uma pessoa muito querida, Alan Cortez de Lucena (in memoriam), que foi quem construiu a primeira rampa no C.A. 22 de Agosto da PUC/SP e na minha vida, o que me colocou definitivamente no caminho da promoo dos direitos das pessoas com deficincia.

    Alan me convidou para fazer parte da Comisso dos Direitos das Pessoas com Deficincia da Ordem dos Advogados do Brasil Seo So Paulo, em 2001, da qual era presidente, em que at hoje permaneo, com colegas entusiasmados com quem tenho prazer em trocar opinies e experincias. Por mandato outorgado por Cezar Britto, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, fui nomeada Conselheira representante da entidade no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficincia (CONADE) - tendo sido suplente de 2006 a 2008, e assumido como titular de 2009 a 2011 - e tambm como Vice-Presidente da Comisso Especial dos Direitos das Pessoas com Deficincia, no primeiro mandato de sua existncia, de 2008 a 2010.

    Na esteira da minha vida profissional, conheci muitas organizaes e pessoas que me marcaram e aqui reside a lista mais difcil de nomear, uma vez que so incentivadoras de grande parte do contedo deste trabalho. Reconhecendo que posso cometer injustias, gostaria de agradecer, tambm respeitando certa ordem cronolgica, ao Instituto Paradigma e Luiza Russo pela oportunidade de trabalho na rea da promoo e defesa dos direitos das pessoas com deficincia e de iniciar minha participao no processo de construo da Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo, na ONU, em sua sede em Nova York, na 6a. e 7a. Sesses do Comit Ad hoc.

    3IN Incluso, Integridade e Independncia, na pessoa de Brbara Kirchner, por ter me proporcionado o acompanhamento do processo at o final, investindo na minha participao na 8a sesso do Comit Ad hoc e na Cerimnia de Assinaturas do tratado, na sede da ONU em Nova York, alm de permitir que at hoje eu tenha o prazer de continuar contribuindo com a pauta dos direitos humanos das pessoas com deficincia, incluindo o paradesporto.

  • Izabel Maria de Loureiro Maior, Coordenadora Geral da Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa Portadora de Deficincia (CORDE), por me ter estimulado a acompanhar esse processo e ter me ensinado com tcnica e tica muito do que hoje sei sobre legislao, polticas e prticas inclusivas brasileiras.

    A Luis Fernando Astorga Gatjens, por me ter acolhido no movimento da sociedade civil internacional desde a primeira sesso da ONU e que, com muita pacincia, compartilhou o acmulo do processo at ento, o que qualificou a minha participao, e ainda gentilmente o faz, at hoje, em conjunto com Rosngela Berman Bieler, brasileira, dinmica e guerreira, que me proporcionou o enorme prazer de conhecer e admirar profundamente o seu trabalho e sua pessoa. Os dois participam do Instituto Interamericano de Deficincia e Desenvolvimento Inclusivo (IIDDI).

    A Joelson Dias, companheiro de profisso que conheci na ONU, onde pude testemunhar seu vasto conhecimento e apreo pelo tema dos direitos humanos, cujo convvio mais intenso no CONADE me permitiu admirar ainda mais a sua atuao ao acompanhar o exerccio de seu mandato como Conselheiro titular, enquanto eu era sua suplente de 2006 a 2008 pela OAB.

    Aos companheiros do CONADE, atuais e antigos, que pertinentemente atuam no dilogo e articulao poltica pela construo de uma sociedade mais inclusiva, visibilizando deficincias e questes especficas que precisam ser endereadas agenda pblica nacional, na pessoa de Maria Aparecida Gugel, que me acolheu com carinho e respeito na Comisso de Atos Normativos que coordenava. sua Secretaria Executiva e equipe da CORDE que desenvolvem papel complementar, sendo fundamental alicerce para que seja possvel o trabalho dos Conselheiros, nas pessoas de Mrcia Mello e Niuzarete Lima.

    Mais Diferenas Educao e Incluso Social, organizao de que participo desde sua constituio e na qual advogo na rea da promoo e defesa dos direitos das pessoas com deficincia, contribuindo e desenvolvendo muitos dos contedos relacionados a este trabalho, na pessoa de Carla Mauch, militante comprometida com quem tenho o prazer de interagir, trabalhar junto e assessorar.

  • Flvia Maria de Paiva Vital em nome de quem agradeo os amigos da Campanha Assino Incluso, do Movimento de Vida Independente e da militncia da sociedade civil em geral, internacional, regional e brasileira; e aos Deputados Federais Otvio Leite (PSDB-RJ), Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) e Jos Eduardo Cardozo (PT-SP) em nome do Congresso Nacional e dos polticos sensveis causa das pessoas com deficincia nas diferentes esferas de governo, nos trs mbitos da Federao; que tornaram possvel a ratificao da Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo com o quorum qualificado para operacionalizar a regra programtica da Emenda Constitucional 45/04 que define a equivalncia constitucional do tratado.

    A todas as organizaes no-governamentais, aos empreendedores sociais e aos clientes em geral que j confiaram questes ao escritrio de advocacia do qual fao parte, Figueirdo Lopes, Golfieri, Reicher e Storto Advogados, em suas diferentes etapas desde 2001, que em cada consulta me possibilitaram estudo, aperfeioamento profissional e amplitude para alcanar novas oportunidades e acmulo de repertrio. Aos parceiros que complementam nossas competncias e nos permitem participar de equipes ampliadas em que se aprende muito. Agradeo a Carlos Henrique Freitas de Oliveira, por clientes e parceiros que investem no crescimento deste escritrio de advocacia como locus de assessoria jurdica qualificada tecnicamente, com equipe engajada, e que exerce, na prtica profissional, os valores scio-ambientais que o sustentam.

    s minhas scias, Marcia Golfieri, parceira de trabalho, a quem por tudo sou grata, de maneira infinita, com quem constru muito da base sobre a qual hoje escrevo; Paula Raccanello Storto, por quem minha admirao e longa amizade tem crescido dia-a-dia desde que tivemos a oportunidade de trabalhar juntas; e Stella Camlot Reicher, que conquistou espaos importantes nessa trajetria laboral por contedo, compromisso, dedicao e sensibilidade reconhecidos; Mara Lcia Silva, fiel escudeira, pessoa querida, prestativa e da mais alta confiana, a quem agradeo por todo o apoio; Juliana Amaral Toledo, por ter me proporcionado pensar e revisitar modos de olhar sobre temas importantes da gesto e da sustentabilidade; e aos estagirios Mayra Rosende e Daniel Chierighini Barbosa, com especial agradecimento a este ltimo, por seu trabalho e entusiasmo que me brindaram com pesquisas e contribuies assertivas na finalizao desse trabalho. Cada um, a seu modo e com sua contribuio, me possibilitou a ausncia do escritrio necessria para escrever o presente, nas fases de qualificao e de entrega final.

  • A Alfredo Capra, por seu carinho que moveu coraes entre fronteiras e que muito me incentivou a seguir acreditando na minha pessoa como algum capaz de ir muito alm.

    Para minha famlia, meus pais Jorge Ney e Marivalda, que sempre me ensinaram que o maior investimento e legado que se pode ter na vida a educao; e a meus irmos Thais (Tis), Jorge (Gito) e Roberto (Beto), a quem amo de maneira incondicional; nas pessoas de quem incluo a todos os avs, tios, primos e aderentes para no cansar os leitores em exaustiva lista de familiares, espalhados Brasil afora e no exterior. Meu pai, Thais e Gito, em especial, me prestaram ajuda inestimvel na construo deste trabalho, sempre o fazendo de forma precisa e embasada.

    Romeu Sassaki, Ana Paula Crosara Resende, Stella Camlot Reicher e Jorge Ney de Figueirdo Lopes foram os grandes responsveis pela preciosa e criteriosa reviso tcnica do texto desta dissertao, sendo os eventuais equvocos de minha inteira responsabilidade.

    Somados Agustina Palacios, Catalina Devandas, Claudia Werneck, Izabel Maria de Loureiro Maior, Maria Aparecida Gugel, Maria Soledad Cisternas, Marta Gil, Patrcia Brogna, Regina Cohen e Rosngela Berman Bieler, prestaram contribuio relevante na reta final, com artigos e escritos necessrios para a reflexo e reviso que me faltava.

    A Alagoas, em cujo litoral escolhi escrever a maior parte deste trabalho, e onde encontrei concentrao, inspirao, fora e relaxamento necessrios para desenvolv-lo.

    A Lois Neubauer, por materializar, no corpo e na alma, possibilidades e potencialidades da sensvel condio de ser humano - pessoa com e sem deficincia - em nome de quem agradeo a todas as pessoas com deficincia, familiares, profissionais da rea e militantes com quem tive e tenho a oportunidade de conviver e de aprender o real significado de incluso plena. Essa troca me emociona e me faz sentir mais humana.

  • RESUMO

    LOPES, Las Vanessa Carvalho de Figueirdo. Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia da ONU, seu Protocolo Facultativo e a Acessibilidade. 2009. 228 f. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2009.

    Esta dissertao analisa a nova viso mundial sobre as pessoas com deficincia e a acessibilidade, positivada no marco legal da Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo, adotados em 13 de dezembro de 2006, por meio da Resoluo 61/106, durante a 61a sesso da Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas (ONU) - parte do conjunto de tratados internacionais de direitos humanos existentes desde 1948. Desenvolve raciocnio jurdico objetivando responder s seguintes questes:

    1. Histria: Qual o contexto histrico e as principais vises de deficincia que predominaram ao longo da histria da humanidade na construo dos direitos humanos das pessoas com deficincia, do ponto de vista legal, no mbito internacional?

    2. Processos: Como se deu o processo de elaborao, na ONU, da Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo? E o de ratificao com equivalncia constitucional, no Brasil, do primeiro tratado de direitos humanos do

    sculo XXI, aps a Emenda Constitucional n. 45/04? Quais so os mecanismos de monitoramento nacional e internacional dos instrumentos jurdicos em questo?

    3. Direitos: Quem so as pessoas com deficincia beneficirias da Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo? Quais os principais direitos e princpios contidos nos documentos da ONU?

    4. Acessibilidade: O que acessibilidade e qual a sua natureza jurdica? Como garantir a aplicao da acessibilidade em meio aos demais direitos humanos?

    Palavras-chave: pessoas com deficincia; direitos humanos; ONU; tratados internacionais; ratificao; monitoramento; incluso; direitos econmicos, sociais e culturais; direitos civis e polticos; acessibilidade.

  • ABSTRACT

    LOPES, Las Vanessa Carvalho de Figueirdo. Convention on the Rights of Persons with Disabilities, its Optional Protocol and Accessibility. 2009. 228 p. Masters Dissertation Graduate Program in Law, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (Catholic University of So Paulo). So Paulo, 2009.

    This study aims at analyzing the new world-view on persons with disabilities and the right to accessibility, established in the legal mark represented by the Convention on the Rights of Persons with Disabilities and its Optional Protocol, passed on December 13, 2006, by means of the Resolution 61/106, during the 61st session in the United Nations General Assembly (UN) as part of a set of international human rights treaties adopted since 1948. To that effect, it will develop its legal rationale aiming at answering the following questions:

    1. History: What are the historical context and the main views on disability that have prevailed in the course of humankinds history in the construction of the human rights of persons with disabilities from a legal standpoint, in the international sphere?

    2. Procedures: How has the procedure of preparation of the Convention on the Rights of Persons with Disabilities and its Optional Protocol developed in UN? And the one for the ratification with constitutional equivalence in Brazil of the first treaty of human rights in the 21st century after Constitutional Amendment n 45/04? What are the mechanisms of domestic and international monitoring of the implementation of the legal tools in caption?

    3. Rights: Who are the persons with disabilities benefiting from the Convention on the Rights of Persons with Disabilities and its Optional Protocol? What are the main rights and principles contained in the UN documents?

    4. Accessibility: What is accessibility and what is its legal nature? How can one ensure the enforcement of accessibility amidst the other human rights?

    Key words: persons with disabilities; human rights; UN; international treaties; ratification; monitoring; inclusion; economical, social and cultural rights; civil and political rights; accessibility.

  • ABREVIATURAS

    ADA Americans with Disabilities Act AIPD Ano Internacional das Pessoas Deficientes CETS Centro de Estudos do Terceiro Setor CF Constituio Federal CID-10 Cdigo Internacional de Doenas, 10 reviso CIF Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sade COGEAE Coordenadoria Geral de Especializao, Aperfeioamento e Extenso CONADE1 Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficincia CORDE2 Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa Portadora de Deficincia CVI Centro de Vida Independente CVI-AN Centro de Vida Independente Araci Nallin EC Emenda Constitucional FGV Fundao Getlio Vargas GRULAC Grupo de Pases da Amrica Latina e Caribe IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica ICIDH International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps ICF International Classification of Functioning, Disability and Health IDA International Disability Alliance IDC International Disability Caucus IIDDI Instituto Interamericano de Deficincia e Desenvolvimento Inclusivo LIBRAS Lngua de Sinais Brasileira MSC3 Mensagem

    NEATS Ncleo de Estudos Avanados do Terceiro Setor NHRI National Human Rights Institution PR Presidncia da Repblica PUC/SP Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    1 Dentro em breve esse nome dever passar por um processo de transio e ser atualizado provavelmente para Conselho Nacional dos

    Direitos da Pessoa com Deficincia, em funo da nova nomenclatura utilizada pela Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia. Informalmente muitos Conselheiros j assim se referem em relao ao CONADE, inclusive a autora do presente trabalho. 2 Na mesma linha, dentro em breve esse nome dever passar por um processo de transio e ser atualizado provavelmente para

    Coordenadoria Nacional para Incluso da Pessoa com Deficincia, em funo da nova nomenclatura utilizada pela Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia. 3 Sigla utilizada na Cmara dos Deputados para designar as mensagens encaminhadas pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo. In:

    CMARA DOS DEPUTADOS. Manual de Redao. Braslia: Centro de Documentao e Informao Coordenao de Publicaes, 2004.

  • OEA Organizao dos Estados Americanos OIT Organizao Internacional do Trabalho ONG Organizao No-Governamental ONU Organizao das Naes Unidas OMS Organizao Mundial de Sade OPAS Organizao Pan-Americana da Sade OSCIP Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico SEDH Secretaria Especial dos Direitos Humanos SEPED Secretaria Especial da Pessoa com Deficincia e Mobilidade Reduzida SEPPIR Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial SPM Secretaria Especial de Polticas para as Mulheres STF Supremo Tribunal Federal UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNISANTOS Universidade Catlica de Santos UPIAS Union of the Physically Impaired Against Segregation

  • A aquisio do conhecimento uma forma talvez a mais eficaz de emancipao humana, ainda que s logremos conhecer com algum grau de profundidade aquilo com que nos identificamos.

    Antnio Augusto Canado Trindade

    You may say Im a dreamer. But Im not the only one. I hope some day youll join us, and the world will be as one.

    John Lennon

  • SUMRIO

    Captulo I. Introduo______________________________________________________18

    Captulo II. Antecedentes histricos no mbito internacional______________________21

    2.1. Antecedentes histricos dos direitos das pessoas com deficincia at 1945.....................21 2.2. Antecedentes histricos dos direitos das pessoas com deficincia de 1945 a 2001..........33 2.3. Por que uma Conveno especfica? base conceitual.....................................................48

    Captulo III. Processos de construo, de ratificao e de monitoramento___________54

    3.1. As oito sesses de trabalho do Comit Ad hoc ................................................................54 3.2. Assinatura, ratificao no Brasil e entrada em vigor na ONU..........................................67 3.3. A Campanha Assino Incluso e a mobilizao brasileira junto ao Congresso Nacional....................................................................................................................................79 3.4. Mecanismos de monitoramento nacionais e internacionais..............................................85

    Captulo IV. Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia: contedo, alcance e inovaes ________________________________________________________91

    4.1. Quem so as pessoas com deficincia?.............................................................................91 4.2. Universalidade, indivisibilidade e interdependncia.......................................................101 4.3. Direitos civis e polticos.................................................................................................104

    4.4. Direitos econmicos, sociais e culturais.........................................................................111

    4.5. Princpios gerais..............................................................................................................119

    Captulo V. A acessibilidade e o seu impacto na releitura dos direitos humanos _____140

    5.1. Conceito e natureza jurdica da acessibilidade...............................................................140 5.2. Anlise dos dispositivos da Conveno para efetivao da acessibilidade como direito e como garantia........................................................................................................................147

    Captulo VI. Consideraes finais: desafios e perspectivas ______________________ 165

  • Referncias______________________________________________________________ 173

    Anexo I. Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia _______________194

    Anexo II. Protocolo Facultativo _____________________________________________221

    Anexo III. Mensagem n. 711/07 ____________________________________________226

    Anexo IV. Decreto Legislativo n. 186/08 _____________________________________228

  • 18

    Captulo I. Introduo

    Para comprender la naturaleza y el significado de la adopcin de una perspectiva de la discapacidad basada en los derechos humanos es preciso tener una percepcin clara de los valores que sustentan la misin de derechos humanos. Esos valores forman la base sobre la que se apoya un complejo sistema de libertades fundamentales respaldadas y promovidas por la legislacin internacional sobre derechos humanos. La discapacidad desafia a la sociedad a vivir de acuerdo con sus valores y encomienda al derecho internacional la tarea de lograr un cambio positivo.

    Gerard Quinn e Theresia Degener

    Durante milhares de anos, as pessoas com deficincia foram consideradas inferiores, invlidas, incapazes e inaptas. Essa discriminao teve lastro em lei desde os primrdios da humanidade. A mudana do reconhecimento legal referente s pessoas com deficincia comea com a positivao da dignidade humana como valor jurdico, a ser protegido globalmente, proclamado pela Declarao Universal dos Direitos Humanos, aps o fim da Segunda Guerra Mundial e o advento da Organizao das Naes Unidas (ONU). Desde ento, a comunidade internacional tem buscado dar respostas s atrocidades cometidas, reconhecendo e fortalecendo o sistema de proteo aos direitos humanos, incluindo e enfocando grupos especficos historicamente marginalizados. A valorizao das identidades das minorias faz parte da etapa de especificao do processo de consolidao dos direitos humanos enunciado por Norberto Bobbio, onde se encaixa a construo dos direitos das pessoas com deficincia.

    A Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo, o mais recente tratado de direitos humanos do sistema global de proteo da ONU, adotado pela 61a sesso da Assembleia Geral de 2006, o primeiro do sculo XXI, o resultado da mobilizao das organizaes da sociedade civil de e para pessoas com deficincia, ativistas de direitos humanos, agncias internacionais, alm da atuao de pases que encamparam a causa.

    A estimativa mais recente das Naes Unidas que 10% da populao mundial so pessoas com deficincia, o que equivale a mais de 650 milhes de pessoas, uma em cada

  • 19

    dez pessoas. Se considerada a famlia estendida, que presume o impacto de uma pessoa com deficincia sobre trs membros da famlia, este nmero chega a quase dois bilhes de pessoas no mundo vivendo com deficincia1.

    Segundo dados publicados pela ONU2, pessoas com deficincia constituem a maior e mais vulnervel minoria. Os nmeros so alarmantes: 20% das pessoas mais pobres no mundo so pessoas com deficincia; 98% das crianas com deficincia em pases em desenvolvimento no vo escola; 30% das crianas que vivem em situao de rua tm algum tipo de deficincia; a taxa de alfabetizao de adultos com deficincia no mundo menor que 3% e, em alguns pases, menor que 1% para mulheres com deficincia.

    Conforme nmeros do Banco Mundial3, do contingente populacional do planeta,, 80% das pessoas com deficincia se encontram em pases em desenvolvimento. Estima-se que o nmero de pessoas com deficincia aumentar em 120% nos prximos 30 anos nos pases do hemisfrio sul, e 40% no mesmo perodo nos pases do hemisfrio norte. Esse aumento ocorrer nos grupos de idade mais avanada, em especial no conjunto de pessoas com 65 anos ou mais.

    A deficincia, muitas vezes, se apresenta como causa e conseqncia da pobreza.

    Com efeito, entendendo-se a deficincia como causa, sabe-se que a deficincia pode gerar ou potencializar a pobreza, na medida em que pessoas com deficincia esto mais vulnerveis marginalizao e discriminao de diferentes ordens e em que requerem custos adicionais com ajudas tcnicas e tecnologias assistivas.

    Em outras situaes, percebe-se que a deficincia conseqncia, haja vista que pessoas com deficincia que vivem em situao de pobreza esto mais propensas a terem sua condio agravada ou a adquirirem novas deficincias durante a vida, parte das quais pode ser ocasionada pela falta de acesso a servios pblicos bsicos e de informaes sobre preveno.

    1 UNITED NATIONS. From Exclusion to Equality - Realizing the rights of persons with disabilities. Handbook for Parliamentarians on the

    Convention on the Rights of Persons with Disabilities and its Optional Protocol. Genebra: Economic and Social Affairs (UN-DESA), 2007. p. 9. 2 UNITED NATIONS. ob. cit. p. 9.

    3 UNITED NATIONS. ob. cit. p. 9.

  • 20

    Para modificar o cenrio de excluso do segmento das pessoas com deficincia, um novo paradigma de concepo social foi construdo, migrando da exigncia de normalidade buscada pelas cincias biomdicas, como padro, para a celebrao da diversidade humana, a partir da viso de que as pessoas com deficincia so, antes de mais nada, seres humanos, e como tais devem ser respeitados, independentemente de sua limitao funcional.

    Por este modelo social de direitos humanos das pessoas com deficincia, as barreiras arquitetnicas, de comunicao e atitudinais existentes devem ser removidas e novas devem ser evitadas ou impedidas. Tambm por este modelo, a acessibilidade se consolida como princpio e direito humano fundamentais, o que determina a necessidade de construo e implementao de um desenho universal na arquitetura institucional mundial, para permitir a plena e efetiva incluso dos cidados com deficincia, em espaos pblicos e/ou privados. O modelo social frisa o impacto do ambiente na vida da pessoa com deficincia e determina que este seja considerado, sempre.

    Sobre o processo de construo dos direitos das pessoas com deficincia, no mbito internacional, a partir dos antecedentes histricos normativos at mudana de paradigma conceitual adotado por essa Conveno, a ratificao do tratado no Brasil e a introduo dos seus mecanismos de monitoramento, o conceito de pessoas com deficincia que sero beneficirias dos direitos conquistados, a anlise dos princpios estabelecidos, e o estudo do princpio-direito acessibilidade, na perspectiva dos direitos humanos, que versa a presente dissertao de mestrado.

    Espera-se, ao final, ter relatado, desvendado e exposto o contexto, a concepo e o alcance do novo instrumento de direitos humanos voltado s pessoas com deficincia, atentando para a anlise da natureza jurdica e do impacto da acessibilidade, que passa a ser garantida em nvel internacional, tendo no Brasil, alcanado status constitucional.

  • 21

    Captulo II. Antecedentes histricos no mbito internacional

    (...) jamais se propagou to rapidamente quanto hoje em dia no mundo, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial que foi, essa sim, uma catstrofe a ideia, que eu no sei dizer se ambiciosa ou sublime ou apenas consoladora ou ingenuamente confiante, dos direitos do homem, que, por si s, nos convida a apagar a imagem da madeira torta ou do animal errado, e a representar esse ser contraditrio e ambguo que o homem no mais apenas do ponto de vista da sua misria, mas tambm do ponto de vista de sua grandeza em potencial.

    Norberto Bobbio

    2.1. Antecedentes histricos dos direitos das pessoas com deficincia at 1945

    Pessoas com deficincia existem desde os primrdios, por razes congnitas4 ou adquiridas. Foram tidas como expresso de inferioridade em relao aos demais seres humanos, tanto por questes econmicas, se consideradas suas possibilidades autnomas de sobrevivncia5, quanto por questes religiosas, tendo em vista as crenas de que ter uma deficincia era castigo de divindades. No primeiro caso, o resultado na vida social podia ser de desprezo pela inutilidade, extermnio ou intolerncia pura e simples. No segundo, o mesmo fundamento embasava a necessidade de morte, mas poderia tambm significar honraria, ensejar medo ou at mesmo superstio de que no se deveria ir contra algum com caractersticas distintas, pois o mal poderia ser contagioso. Em vida, os papis desempenhados pelas pessoas com deficincia eram de diversas naturezas, conforme a sociedade permitia sua incluso ou determinava sua excluso.

    4 Estima-se que as deficincias que surgem de condies congnitas constituem apenas 2% de todas as deficincias. In SHAKEASPEARE,

    Tom. Cure or conformity? Disability, diversity and the future of biomedicine. 20th World Congress of Rehabilitation International. Noruega: 2004. Disponvel em http://www.rinorway.no/text/view/1802.html. Acesso em 19 de janeiro de 2009. 5 Os seres humanos primitivos sobreviveram agrupando-se na medida das descobertas de suas capacidades. A busca por abrigo nos invernos

    e alimentos frescos pela falta de estrutura para conservao eram questes recorrentes na Pr-Histria. Pessoas com deficincia eram consideradas sem funo social na vida nmade, verdadeiros estorvos que no poderiam ser carregados sob pena de atrapalhar a caa e/ou a fuga, por isso eram abandonadas ou desprezadas. Com o surgimento dos primeiros instrumentos mais elaborados facas, serras, instrumentos pontiagudos advieram tambm as primeiras intervenes cirrgicas, com experimentaes de alvio de dores, cura de males, estancamento de sangue, amputao e imobilizao de membros. A medicina primitiva ajudou a salvar as primeiras pessoas com deficincia em tempos antigos.

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    Esta reflexo perpassa por diferentes fases da histria, sendo possvel verificar que, desde o incio da trajetria da humanidade, as sociedades atriburam significados diversos deficincia, conforme suas concepes, o que orientou as prticas em relao aos sujeitos com deficincia. Muitas dessas justificativas foram positivadas, traduzindo o pensamento dominante que era descrito na lei.

    A viso de castigo ou de imposio da deficincia como sano pode ser encontrada no Cdigo de Hamurabi (por volta de 1.800 a.C.), que determinava a mutilao dos infratores, impondo a deficincia como penalidade aos ilcitos cometidos, de acordo com a sua categoria social ou conforme a daquele contra quem foi cometida a infrao, sendo proporcionalmente aplicada uma pena de natureza semelhante, segundo o princpio de ius talionis6, de olho por olho, dente por dente.

    Como exemplos, podem-se citar os casos em que se a mo do mdico no operou corretamente deveria ser decepada; a lngua do filho que renegou os pais deveria ser cortada; o olho do filho adotivo que reconheceu a casa do pai natural deveria ser extirpado, entre outras disposies, que podem ser confirmadas no trecho transcrito a seguir:

    Eu, Hamurabi, chefe designado pelos deuses, Rei dos Reis, que conquistei as cidades de Eufrates, introduzi a verdade e a equidade por todo o pas e dei prosperidade ao povo. De hoje em diante (....) 192. Se um filho de um gerseqqum ou o filho de uma sekretum disse a seu pai que o criou ou sua me que o criou: Tu no s o meu pai, tu no s a minha me, cortaro a sua lngua. (....) 195. Se um filho bateu em seu pai, cortaro a sua mo. (...) 218. Se um mdico fez em um awilum uma operao difcil com um escapelo de bronze e causou a morte do awilum ou abriu a nakkaptum de um awilum com um escapelo de bronze e destruiu o olho do awilum, eles cortaro a sua mo (...) 282. Se um escravo disse a seu proprietrio: Tu no s o meu senhor, ele comprovar que o seu escravo e cortar-lhe- a orelha. 7

    No Cdigo de Manu8 (1.500 a.C.), as pessoas com deficincia tinham proibio sucessria, sendo determinado em seu artigo 612 que os eunucos, os homens degradados, os cegos, surdos de nascimento, os loucos, idiotas, mudos e estropiados, no sero admitidos a

    6 Na Bblia, em Ex. 21, 23- 25, l-se a clebre formulao deste princpio: Mas se houver dano grave, ento ser vida por vida, olho por

    olho, dente por dente, mo por mo, p por p, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe. 7 Awilum o homem livre, com todos os direitos de um cidado. O termo acdico nakkaptum significa provavelmente o arco acima da

    sobrancelha. In: BOUZON, Emanuel. O Cdigo de Hamurabi. 10 edio. Petrpolis: Ed. Vozes, 2003. p. 188-189. 8 ASSIS, Olney Queiroz e PUSSOLI, Lafaiete. Pessoa Deficiente Direitos e Garantias (constitucionais, civis, trabalhistas, eleitorais,

    tributrios e previdencirios). 1. edio. So Paulo: Edipro, 1992. p. 27 - 29.

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    herdar. A proteo da propriedade privada expressamente exclua as pessoas com deficincia e no as reconhecia como sujeitos de direitos.

    Na legislao dos antigos hebreus, a deficincia era sinal de impureza. No livro Levtico de Moiss - conjunto de normas e orientaes para os sacerdotes havia disposies nesse sentido, conforme aposta a seguir:

    O homem de qualquer das famlias de tua linhagem que tiver deformidade corporal, no oferecer pes ao seu Deus, nem se aproximar de seu ministrio; se for cego, se coxo, se tiver nariz pequeno ou grande, ou torcido; se tiver p quebrado ou a mo; se for corcunda (...).

    Todo homem da estirpe do sacerdote Aro, que tiver qualquer deformidade (corporal), no se aproximar a oferecer hstias ao Senhor, nem pes ao seu Deus; comer todavia dos pes que se oferecem no santurio, contanto, porm, que no entre do vu para dentro, nem chegue ao altar, porque tem defeito e no deve contaminar o meu santurio (Lev. 21:21-23).

    Por outro lado, era tambm solicitada proteo queles que eram considerados surdos e cegos, que no deveriam por isso ser maltratados. Do mesmo livro de Moiss consta o ensinamento seguinte: No amaldioars o surdo, nem pors tropeos diante do cego, mas temers o Senhor teu Deus, porque eu sou o Senhor (Lev. 19:14). Presumia-se que essas eram pessoas inferiores que necessitavam de compaixo e de cuidados, por serem destacadas das demais pela sua anormalidade.

    Predominava ento a viso de que o bom, correto e milagroso que poderia acontecer s pessoas com deficincia era a cura. Sua existncia era parte do destino divino, retratado como castigo, que poderia causar no outro um sentimento de desprezo ou pena, ou um sentimento de louvor e temor. Consta de pesquisa acerca da histria das pessoas com deficincia que, dos mais de 40 milagres de Jesus, pelo menos 21 foram relacionados a pessoas com deficincia que tiveram seus males curados9.

    Na Grcia antiga, o corpo belo era cultuado como presente dos deuses. Baseados nessa dicotomia de que a aparncia boa era a do corpo perfeito e a ruim era a do corpo imperfeito, os antigos criaram leis que legitimaram prticas de excluso e segregao em

    9 SILVA, Otto Marques da. A Epopia Ignorada a pessoa deficiente na histria do mundo de ontem e de hoje. So Paulo: CEDAS

    Centro So Camilo de Desenvolvimento em Administrao da Sade, 1996. p. 88.

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    relao s pessoas com deficincia. Existia lei que determinava que o nascituro s deveria ser considerado uma criana sete dias aps o seu nascimento, tendo assim os pais permisso legal para descartar as crianas nascidas imperfeitas. As pessoas com deficincia eram ento muitas vezes rejeitadas desde o nascimento e, quando sobreviviam, eram recolhidas em casa como se tivessem uma doena contagiosa. No tinham direitos como as demais crianas.

    Filsofos renomados, tais como Plato (428 a 348 a.C.), chegaram a alimentar a concepo do extermnio das crianas defeituosas. Consta de A Repblica de Plato, quando ele trata do mundo ideal para a Grcia, que: (...) no que concerne aos que receberam corpo mal organizado, deixa-os morrer (....) Quanto s crianas doentes e s que sofreram qualquer deformidade, sero levadas, como convm, a paradeiro desconhecido e secreto.

    Aristteles tambm formulou pensamentos nesse sentido, chegando a dizer em Politics que: Quanto a saber quais as crianas que se deve abandonar ou educar, deve haver uma lei que proba alimentar criana disforme.10 Para as lutas e batalhas o homem ideal era o perfeito, o que no justifica tais pensamentos em relao s crianas e pessoas com deficincia em geral.

    Na Lei das XII Tbuas (451 a.C.) de Roma, a regra era que o filho nascido monstruoso seja morto imediatamente. Olho por olho, dente por dente, reforava a crena de que deficincia era algo ruim, que acometia a quem merecia. A pena de mutilao do nariz e das orelhas era comum como castigo estigmatizador ou como vingana contra inimigos capturados pelas legies romanas.

    Caio Jlio Csar (100 a 44 a.C.), em sua obra de De Bello Gallico, conta que aplicava essa pena em seus soldados nos casos de faltas muito graves contra a disciplina militar ou de deseres. Nos tempos dos Csares, muitas pessoas com deficincia tambm eram consideradas bobas e estranhas e serviam a atividades ligadas a circos romanos, tavernas, casas comerciais e bordis, havendo, muitas vezes, nestes ltimos, meninas cegas servindo como prostitutas.

    10 SILVA, Otto Marques da. A Epopia Ignorada a pessoa deficiente na histria do mundo de ontem e de hoje. So Paulo: CEDAS

    Centro So Camilo de Desenvolvimento em Administrao da Sade, 1996. p. 123-124.

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    Com o surgimento do Cristianismo, d-se o incio de uma era em que os homens se tornam mais caritativos e preocupados com os seus semelhantes, incluindo os mais marginalizados. Registre-se, sob essa influncia, a ttulo ilustrativo, o caso do Hospital de Edessa, na antiga Sria, no ano de 370, que acabou por cuidar de muitos doentes e pessoas com deficincia abandonadas pelos seus parentes. As de famlias mais ricas continuavam a ser tratadas em suas casas, mas muitas doaes de pessoas que tiveram graves enfermidades auxiliaram os primeiros hospitais a cuidarem de pessoas mais pobres e necessitadas. Pode-se perceber, ento, o incio de uma nova viso, a caritativa ou assistencial.

    Na Europa feudal, muitas pessoas com deficincia passaram a ser aceitas como parte de grupos ou de famlias para trabalhar nas terras ou nas casas, dentro do sistema de servido vigente. Mas sempre que havia alguma praga elas eram as culpadas pelo mal social. Quando em 1347 a Europa foi acometida pela Peste Negra, propagada pelos ratos com pulgas contaminadas que vieram nos pores de navios mercantes oriundos da Monglia e da China, a epidemia foi atribuda punio divina pelos pecados da humanidade. Milhares de pessoas morreram pela peste, que indistintamente atingiu senhores feudais e camponeses. As pessoas com deficincia sobreviventes foram foradas a vagar em penitncia para expiar as culpas da sociedade. Alguns acreditavam que com isso conseguiriam atenuar a raiva dos deuses e quem sabe at eliminar a deficincia como sua caracterstica - que era mais uma praga poca.

    Predominava, entre as pessoas com deficincia, o horror de serem diferentes, pois poderiam ser acusadas de males com os quais no tinham nenhuma relao, dentre os quais a magia negra e a bruxaria - prticas que os protestantes categorizaram e abominavam. No sculo XV, Lutero, fundador do protestantismo, recomendava que crianas com deficincia fossem jogadas no rio. Era uma viso de extermnio e aniquilamento. No sculo XVI, na Holanda, as pessoas com hansenase11 (antigamente chamadas de leprosas) tiveram todos os seus bens confiscados pelo Estado para sustentar as boas almas que no foram castigadas por essa doena. As pessoas tinham que enfrentar fortes crenas de que fizeram algum mal para merec-la.

    11 O que a hansenase: doena provocada pelo bacilo de Hansen, atacando nervos e pele. Como pega: via respiratria e convvio

    prolongado. Sinais e sintomas: manchas esbranquiadas e avermelhadas na pele e reduo de sensibilidade ao calor, dor e ao toque no local das manchas. In Secretaria da Educao do Estado de So Paulo. Disponvel em http://www.educacao.sp.gov.br/noticias_2009/2009_12_03.asp No Brasil, existe concesso de penso especial s pessoas atingidas pela hansenase, pela Lei n 11.520, de 18 de setembro de 2007, que dispe sobre a concesso de penso especial s pessoas atingidas pela hansenase que foram submetidas a isolamento e internao compulsrios, regulamentada pelo Decreto n 6168, de 24 de julho de 2007 e Formulrio de Requerimento, que regulamenta a Medida Provisria no 373, de 24 de maio de 2007, e dispe sobre a concesso de penso especial s pessoas atingidas pela hansenase que foram submetidas a isolamento e internao compulsrios. Disponvel em http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/hansen/ Acesso em 10 de maro de 2009.

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    Interessante perceber como os avanos em relao aos direitos humanos e, no caso em anlise, aos das pessoas com deficincia, acompanham os momentos da histria, com especial ateno para os cenrios religioso e econmico. Em um primeiro momento, tem-se a

    dominao poltica do clero e da nobreza, por critrios de privilgios por origem de nascimento, que oprimia os burgueses em ascenso. Contra essa dominao, na Amrica do Norte e na Frana, surgiram duas importantes Declaraes de Direitos que marcaram a histria dos direitos humanos, ainda que tenham sido emanadas a partir do esprito de manuteno da propriedade como liberdade, muito mais que qualquer outro valor individual.

    Na Declarao de Independncia dos Estados Unidos da Amrica, conhecida como Declarao de Direitos da Virgnia, em 1776, nasce a positivao da ideia de liberdade, pela natureza humana, reconhecendo-se que h direitos inatos, ou naturais, decorrentes de sua condio, conforme se verifica de trecho a seguir:

    Todos os seres humanos so, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, no podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruio da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurana.

    Sob o manto da liberdade e da igualdade, o homem se emancipou dos grupos sociais aos quais se submetia at ento: famlia, cl, estamento e organizaes religiosas. Mas, sem proteo aos chamados direitos sociais, os trabalhadores livres ficaram cada vez mais pobres, como elo mais fraco da corrente do capitalismo emergente.

    Grande parte do capital humano que participou da Revoluo Francesa de 1789 e da redao da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado era essencialmente burgus, o que justifica o texto ter como base as liberdades individuais e o direito propriedade, contra o absolutismo e o intervencionismo do Estado. Assim, apesar de ser um importante marco na histria dos direitos humanos, a declarao de que os homens nascem e so livres e iguais em direitos no era uma realidade do povo, muito menos das pessoas com deficincia. Tratava-se mais de um manifesto contra a sociedade hierrquica de privilgios, especialmente os dos nobres, do que um documento a favor de uma sociedade democrtica e igualitria.

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    Com o advento da Revoluo Industrial e o avano dos conhecimentos tcnico-cientficos, o mundo passou a pregar a razo acima de tudo, operando nova lgica sobre o corpo humano. Ainda assim, para as pessoas com deficincia, racionalmente no havia oportunidades de trabalho nem de convvio social com as demais. A segregao j institucionalizada passou a ser fundamentada por argumentos cientficos. Existia a ideia de que os trabalhadores deveriam ser fisicamente uniformes para o trabalho. Aqueles que no se apresentassem com a melhor performance logo eram aposentados ou considerados trabalhadores mais fracos e esquecidos em instituies que, ao longo do tempo, foram projetadas para que as pessoas com deficincia vivessem perpetuamente sendo cuidadas de maneira especial.

    Tudo isso tornava as pessoas com deficincia dependentes de profissionais que buscavam sua cura, tratamentos e/ou benefcios, j que na sociedade no tinham chances e eram rotuladas pela aparncia. Por outro lado, servios de reabilitao importantes passaram a ser constitudos nesse panorama.

    Com o passar dos tempos, a tecnologia12 que foi sendo desenvolvida passou a beneficiar pessoas com deficincia e a proporcionar-lhes um pouco mais de autonomia e fora para a aquisio de conhecimentos e, consequentemente, de busca e efetivao de direitos. Ainda de forma muito incipiente, comeam-se a dar alguns passos relevantes nesse sentido.

    Em 1825, o francs Louis Braille, cego desde os trs anos de idade, criou o Sistema Braille13 de leitura e escrita ttil a partir de um cdigo militar chamado sonografia, inventado por Charles Barbier e que tinha como objetivo possibilitar a comunicao noturna entre oficiais nas campanhas de guerra. Ele se baseava em 12 sinais, compreendendo linhas e

    12 Assevera Comparato: (...) h outro fato que no deixa de chamar a ateno quando se analisa a sucesso das diferentes etapas de sua

    afirmao: o sincronismo entre as grandes declaraes de direitos e as grandes descobertas cientficas ou invenes tcnicas. Uma das explicaes possveis para isso parte da verificao de que o movimento constante e inelutvel de unificao da humanidade atravessa toda a Histria e corresponde, at certo ponto, ao prprio sentido da evoluo vital. No plano da vida, como gostava de dizer o Padre Teilhard de Chardin, tudo que se eleva converge. A elevao progressiva das espcies vivas ao nvel do ser humano foi seguida de um processo de convergncia da humanidade sobre si mesma; ou seja, biosfera geral sucede a antroposfera. Na histria moderna, esse movimento unificador tem sido claramente impulsionado, de um lado, pelas invenes tcnico-cientficas e, de outro lado, pela afirmao dos direitos humanos. So os dois grandes fatores de solidariedade humana, um de ordem tcnica, transformador dos meios ou instrumentos de convivncia, mas indiferente aos fins; o outro de natureza tica, procurando submeter a vida social ao valor supremo da justia. A solidariedade tcnica traduz-se pela padronizao de costumes e modos de vida, pela homogeneizao universal das formas de trabalho, de produo e troca de bens, pela globalizao dos meios de transporte e de comunicao. Paralelamente, a solidariedade tica, fundada sobre o respeito aos direitos humanos, estabelece as bases para a construo de uma cidadania mundial, onde j no h relaes de dominao, individual ou coletiva. Ambas essas formas de solidariedade so, na verdade, complementares e indispensveis para que o movimento de unificao da humanidade no sofra interrupo ou desvio. In: COMPARATO, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. 5a. edio. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 38-39. 13

    No Institution Royale des Jeunes Aveugles, de Paris, onde foi criado, desenvolvido, experimentado, e de onde foi difundido, recebeu inicialmente a denominao de Procd de L. Braille.

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    pontos salientes, representando slabas na lngua francesa. Como o invento no atingiu o resultado esperado, Barbier levou-o para ser utilizado por alunos cegos do Instituto Real dos Jovens Cegos, em Paris. Foi ento que o adolescente Louis Braille tomou conhecimento desse invento. Aproveitando a significao ttil dos pontos em relevo do invento de Barbier, Braille concebeu, em 1825, quando tinha 16 anos de idade, um sistema cuja estrutura divergia fundamentalmente da sonografia e lhe deu o nome de Procd de L. Braille. Este nome foi mudando aos poucos at ser chamado Sistema Braille14.

    Essa foi uma grande revoluo tecnolgica para as pessoas com deficincia visual. O sistema foi difundido a partir dos anos 50 do sculo XIX para a Europa, Amrica Latina, Estados Unidos, sia e frica. Hoje em dia, esse sistema utilizado pelo mundo inteiro, tendo sido em 1952 criado pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) o Conselho Mundial de Braille como seu rgo assessor.

    Em 1876, surgiu a primeira prtese auditiva eltrica, a partir da inveno do telefone por Alexander Graham Bell. Ele, que foi tambm professor de pessoas com deficincia auditiva em Boston, tinha me e esposa surdas, e como gnio tecnolgico acabou se dedicando a pesquisas para desenvolver tecnologias que pudessem auxiliar os surdos. O primeiro teste foi em 1896, na Inglaterra15.

    No fim do sculo XIX, um grande nmero de cientistas, escritores e polticos comeou a interpretar as teorias de Darwin sobre evoluo e seleo natural para os fins que almejavam. As teorias eugnicas foram ganhando fora nas civilizaes ocidentais. Ao se referir aos incapazes, defendiam a crena de que (...) todo o esforo da natureza para se livrar desses e criar espao para os melhores (...). Se eles no so suficientemente completos para viver, morrem, e melhor que morram (...). Toda imperfeio deve desaparecer (...).16

    A partir dessas premissas, defendiam os eugenistas que o controle social poderia melhorar as qualidades raciais de determinada sociedade, o que atribua s pessoas com deficincia o estigma da improdutividade e provocava-lhes razes de desgosto.

    14 Quem conta essa histria Romeu Kazumi Sassaki. SASSAKI, Romeu Kazumi. Breve histria do sistema braile. In: ______. Qual a

    grafia correta: Braille, braille ou braile? Depende. So Paulo: apostila, 2005. 15

    SANCHEZ, Carolina Moreira; COSTA, Gabriela Rodrigues Veloso. Ajudas Tcnicas: independncia e autonomia como estratgia de incluso. In GUGEL, Maria Aparecida; MACIEIRA, Waldir; RIBEIRO, Lauro (Org.). Deficincia no Brasil uma abordagem integral dos direitos das pessoas com deficincia. Curitiba: Obra Jurdica, 2007. p. 29 16 SPECENCER, Herbert. Social Statistics apud PEDROSA, Paulo Srgio. Eugenia: o pesadelo gentico do sc. XX. Disponvel em http://www.montfort.org.br/index.php?secao=veritas&subsecao=ciencia&artigo=eugenia1&lang=bra. Acesso em 23 de setembro de 2008.

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    Esses eugenistas17 acreditavam que poderiam melhorar a qualidade da raa humana selecionando os melhores genes. Diziam que as pessoas com deficincia, especialmente as com deficincias congnitas, enfraqueciam a raa e ainda poderiam comprometer a competitividade do povo. Esse argumento permitia o isolamento das pessoas com deficincia em instituies que s admitiam pessoas de um nico sexo e/ou a sua esterilizao. Novamente aqui se identifica a viso de aniquilamento.

    Muitas escolas especiais surgiram nessa poca para ofertar atendimento especializado para as crianas com deficincia, tendo tambm como pano de fundo evitar o convvio das pessoas normais com as pessoas inferiores. Os distrbios mentais eram os mais execrados pelos pases industrializados que estavam construindo seus imprios e entendiam que precisavam se sentir superiores a outras raas (Alemanha, Frana, Gr-Bretanha e EUA).

    No histrico Congresso Internacional de Educao para Surdos em Milo (1880), no qual os professores surdos foram excludos da votao, representantes de 54 pases definiram que a melhor forma de educao de surdos era o oralismo, recomendando expressamente a proibio da lngua de sinais. Durante quase 100 anos, pois, a lngua de sinais foi coibida nas escolas e em espaos pblicos em diversas partes do mundo. H relatos de que amarravam as mos das crianas que a utilizavam, no permitindo a comunicao seno por meio da expresso oral, que muitos no logravam alcanar.

    Diz Oliver Sacks18, referindo-se questo da aprendizagem da lngua de sinais e da proporo de professores surdos que participavam diretamente da educao de crianas surdas:

    17 Esse ideal de extermnio do imperfeito serviu anos mais tarde de sustentao terica para a violncia e os absurdos decorrentes das

    polticas segregacionistas do sculo XX, a exemplo do que ocorreu durante o regime nazista, sob a gide das teorias arianas que Hitler preconizava. 18

    SACKS, Oliver. Vendo Vozes uma viagem ao mundo dos surdos. Traduo: Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 40 44. Prope o autor sobre o tema a seguinte reflexo que vale ser aqui citada: o que dizer do sistema combinado pelo qual os alunos aprendem no s a lngua de sinais, mas tambm a leitura labial e a fala? Talvez esse seja vivel, se a educao levar em considerao quais capacidades so mais bem desenvolvidas nas diferentes fases do crescimento. O aspecto essencial : as pessoas profundamente surdas no mostram em absoluto nenhuma inclinao inata para falar. Falar uma habilidade que tem de ser ensinada a elas, e constitui um trabalho de anos. Por outro lado, elas demonstram uma inclinao imediata e acentuada para a lngua de sinais que, sendo uma lngua visual, para essas pessoas totalmente acessvel. Isso se evidencia mais nas crianas surdas filhas de pais surdos que usam a lngua de sinais, as quais executam seus primeiros sinais aproximadamente aos seis meses de vida e adquirem uma fluncia considervel expressando-se por sinais com a idade de quinze meses. (...) Assim que a comunicao por sinais for aprendida e ela pode ser fluente aos trs anos de idade - , tudo ento pode decorrer: livre incurso de pensamento, livre fluxo de informaes, aprendizado da leitura e escrita e, talvez, da fala. No h indcios de que o uso de uma lngua de sinais iniba a aquisio da fala. E fato, provavelmente acontece o inverso.

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    que os alunos surdos foram proibidos de usar sua prpria lngua natural e, dali por diante, forados a aprender, o melhor que pudessem, a (para eles) artificial lngua falada. (...) Uma das conseqncias disso foi que a partir de ento (...) a proporo de professores surdos, que em 1850 beirava os 50%, diminuiu para 25% na virada do sculo e para 12% em 1960. (....) uma parcela cada vez menor conhecia algo da lngua de sinais.

    A despeito da proibio, a lngua de sinais foi transmitida entre geraes pelas pessoas com deficincia auditiva e s no fim do sculo XX que voltou a ser permitida19.

    Se por um lado os donos do poder foram oprimindo e excluindo geraes e geraes de pessoas com deficincia, alguns bons exemplos foram incentivando as superaes, a despeito das adversidades.

    Helen Keller (1880-1968) ficou surdocega aos 19 meses de idade e seu pai solicitou ajuda ao Instituto de Cegos Perkins, em Boston, para a sua instruo. Sua educadora foi Anne Sullivan (1866-1936) que, com esforos combinados a tcnicas pedaggicas, conseguiu que Helen aprendesse a ler e escrever, e se oralizasse. Graas sua formao, publicou livros histricos e importantes20, escritos em mquina adaptada e se dedicou causa das pessoas surdocegas. Famosa por ter superado suas limitaes mltiplas, das funes de viso e audio concomitantemente, Helen Keller poderia ter sido considerada monstruosa e desenganada. A nada teria acesso, no fossem seus pais e sua professora Anne Sullivan acreditarem que a educao de uma pessoa surdocega era possvel e terem viabilizado sua formao.

    Entre os anos 1920 e 1930, em 37 estados nos EUA, havia uma lei que obrigava a esterilizao de mulheres nascidas com deficincia auditiva, ou de qualquer um que tivesse um teste de QI (Quocientede Inteligncia) considerado muito baixo. As prticas eugenistas continuavam e, por inevitvel horror, nos anos 1980, 17 estados ainda mantinham essa lei em vigor. Essa era uma viso mdica, reparadora, segundo a qual as pessoas com deficincia deviam receber tratamento para serem curadas.

    Na Inglaterra, foi criada em 1913 uma lei sobre deficincia intelectual que classificava as pessoas em idiotas, aquelas que so incapazes de se preservar de perigos

    19 No Brasil, a Lei 10.436/02, regulamentada pelo Decreto 5.626/05, reconhece a Lngua de Sinais Brasileira (Libras) como meio legal de

    comunicao e expresso, com estrutura gramatical prpria. 20

    Entre os livros que Helen Keller publicou destaca-se o primeiro The story of my life. Nova Jersey: Watermill Press, 1903.

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    fsicos comuns; imbecis, aquelas que, no atingindo o estado de idiotia, so ainda consideradas incapazes de controlar seus atos ou de ser ensinadas a fazer algo; e defeituosos morais, aquelas que tm propenso a vcios ou a crimes e que requerem o cuidado, a superviso e o controle, para a proteo dos outros. Sob essa lei, 50.000 crianas com limitaes sensoriais e fsicas, alm de mais de 500.000 adultos, foram encarcerados em instituies na primeira metade do sculo XX, muitos deles s tendo sido liberados nos anos 1980. As crianas com dificuldades significativas de aprendizagem foram julgadas ineducveis e aquelas com dificuldades de aprendizagem mais ou menos significativas foram remetidas s escolas especiais subnormais at 197321.

    A Primeira Guerra Mundial ocorreu de 1914 a 1918. Terminado o conflito, foi criada em 1919 a Liga das Naes, que tinha por intuito ser uma instncia de arbitragem e regulao de enfrentamentos blicos, reunindo os Estados remanescentes da Guerra. O retorno de pessoas mutiladas das batalhas, por terem servido aos seus pases como militares, acrescido do contingente de civis que foram vitimados por terem sido atingidos por armas, bombas, minas e outros artefatos de guerra, gerou uma enorme mobilizao em torno do tema da reabilitao.

    Na Frana, uma lei de 1918 determinava que todo militar ferido na guerra ou com deficincia adquirida pela atividade de soldado, que se tornasse incapacitado para o trabalho civil ou militar, tinha o direito de se inscrever gratuitamente numa escola profissionalizante, tendo em vista a necessidade de sua readaptao ao trabalho e colocao no mercado. A prioridade para obteno de empregos, cuidados mdicos e tecnologias assistivas ficou desde ento garantida naquele pas. Mas ainda se estava diante da viso assistencialista, que conduzia ao entendimento de que as pessoas com deficincia deveriam se integrar sociedade em meio aos normais, e para isso deveriam fazer o maior esforo possvel no sentido de atender ao padro de normalidade vigente poca.

    Quando da Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, o mundo j estava um pouco mais preparado para lidar com as situaes de deficincia dos combatentes que sobreviveram guerra, mas ainda no havia os equipamentos necessrios que comeavam nessa poca a ser desenvolvidos. Enquanto um grande contingente populacional foi luta, mulheres e pessoas com deficincia foram absorvidas em postos de trabalho vagos nas

    21 Histrias disponveis em http://www.bfi.org.uk/education/teaching/disability/thinking/ Acesso em 17 de agosto de 2006.

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    indstrias existentes. Este fato fez com que muitos refletissem sobre a capacidade das pessoas com deficincia em atuar no mundo econmico, seja sob o ngulo de gerao de renda, quanto sob a tica de servir como mo-de-obra especializada.

    Um fator que contribuiu muito tambm para impulsionar o sistema de reabilitao e ajudou a desmistificar as possibilidades de atuao poltica de pessoas com deficincia, especialmente nos EUA, foi a ao de Franklin Delano Roosevelt, presidente eleito por quatro mandatos sequenciais, de 1932 a 1948, e que tinha paraplegia parcial por poliomelite adquirida aos 39 anos de idade.

    O fim das Grandes Guerras mais especificamente o trmino da Segunda Guerra Mundial constitui o ponto de inflexo e mudana na histria do mundo. A partir da entendeu-se que direitos fundamentais no poderiam mais estar merc das foras dominantes. Era preciso salvaguard-los de ingerncias legislativas, consagrando-os como clusulas ptreas22. Foi quando as questes referentes aos direitos do homem passaram da esfera local para a esfera global, envolvendo todos os povos23.

    O reconhecimento dos direitos humanos como um conjunto de direitos fundamentais de todos os homens, e a necessidade de sua proteo, so conseqncias do horror enfrentado nas guerras mundiais, e frutos de uma poca em que a conjuno de fatores histricos, polticos, econmicos e sociais ensejou uma resposta coletiva, formal e internacional necessidade de paz e entendimento entre os povos.

    22 FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho da pessoa com deficincia e a lapidao dos direitos humanos. 1 ed. So Paulo: LTR,

    2006. p. 51. 23

    BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2 ed. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p. 65.

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    2.2. Antecedentes histricos dos direitos das pessoas com deficincia de 1945 a 2001

    No obstante a importncia histrica do processo de afirmao de direitos iniciado na Independncia Americana e na Revoluo Francesa, foi somente com a criao da ONU24 que a fora normativa dos documentos internacionais ganhou relevo no plano global.

    A Carta das Naes Unidas assinada em 24 de outubro de 1945 na Conferncia de So Francisco, na Califrnia, estabelece como propsitos da nova organizao mundial, ser um centro destinado a harmonizar a ao das naes para a consecuo desses objetivos comuns, que se ocupasse de

    manter a paz e a segurana internacionais (...); desenvolver relaes amistosas entre as naes (...); e conseguir uma cooperao internacional para resolver os problemas internacionais de carter econmico, social, cultural ou humanitrio, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e s liberdades fundamentais para todos, sem distino de raa, sexo, lngua ou religio.

    Depois da experincia da Liga das Naes, o grupo de Estados vencedores da Segunda Guerra Mundial dessa vez decidiu fincar alicerces mais slidos no sentido de que o respeito aos direitos humanos imprescindvel manuteno da paz e da convivncia pacfica. Quando da criao da ONU, foi feita a previso de instalao do Conselho Econmico e Social das Naes Unidas, que to logo foi institudo teve como importante iniciativa a constituio da Comisso de Direitos Humanos que mais recentemente foi transformada em Conselho de Direitos Humanos - qual foi delegada a tarefa da redao da minuta da Declarao Universal dos Direitos Humanos.

    Havia tambm a inteno de criar processos distintos que comprometessem o sistema internacional de maneira mais efetiva, com meios para responder s ameaas ou

    24 As ideias germinais da ONU encontram-se na mensagem sobre o Estado da Unio, dirigida pelo presidente Franklin D. Roosevelt ao

    Congresso norte-americano em 6 de janeiro de 1941, bem como na chamada Carta do Atlntico, assinada pelo Presidente Roosevelt e o Primeiro-Ministro britnico Winston Churchill, em 14 de agosto do mesmo ano. Na primeira parte de sua mensagem sobre a unio de 6 de janeiro de 1941, o Presidente norte-americano procurou demonstrar que os Estados Unidos, por razes de decncia e de segurana nacional, no poderiam permanecer indiferentes diante do assalto liberdade dos povos, que vinha sendo perpetrado pelos pases do Eixo (Alemanha, Itlia e Japo). Na segunda parte do seu discurso, o Presidente traou as linhas gerais do que deveria ser a poltica internacional dos Estados Unidos, no esforo de reconstruo do mundo no ps-guerra: No porvir, que procuramos tornar seguro, ansiamos por um mundo fundado em quatro liberdades humanas essenciais. A primeira a liberdade de palavra e expresso em todas as partes do mundo. A segunda liberdade, para todas as pessoas, de adorar Deus do modo que lhes parea mais apropriado em todas as partes do mundo. A terceira a libertao da penria (freedom from want) a qual, traduzida em termos mundiais, significa a existncia de acordos econmicos que assegurem a todas as naes uma paz slida em todas as partes do mundo. A quarta a libertao do medo a qual, traduzida em termos mundiais, significa uma reduo de armamentos em escala mundial, em tal grau e de modo to completo que nao alguma esteja em condies de cometer um ato de agresso fsica contra qualquer de seus vizinhos em todas as partes do mundo. In: COMPARATO, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. 5a. edio. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 215.

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    rupturas da paz25.

    O direito internacional passou a agregar, no seu sistema normativo, tratados de direitos humanos de carter vinculante, elaborados por consenso entre pases, buscando que a ordem jurdica internacional provesse amparo proteo desses direitos. Estes importantes instrumentos internacionais constituem, como diz Flvia Piovesan, uma plataforma emancipatria para a efetivao dos direitos humanos. Regulam no apenas as obrigaes dos Estados perante a comunidade internacional, mas a prpria relao dos Estados com seus cidados, no que diz respeito aos temas que descrevem. 26

    Na Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, foi positivado um ncleo inderrogvel de direitos inerentes a todo e qualquer ser humano, independentemente de sua nacionalidade, sexo, idade, raa, credo ou condio pessoal e social. Com a proclamao universal da dignidade humana como valor, comearam as crticas ao modelo de isolamento das pessoas com deficincia.

    Os estudiosos e defensores dos direitos humanos passaram a se preocupar com a integrao das pessoas com deficincia em suas comunidades e com a necessidade de afirmao dos seus direitos. Alm disso, as pessoas mutiladas pela guerra, como se descreveu anteriormente, voltaram s suas casas como heris e exigiram servios de reabilitao, infraestrutura e acessibilidade das cidades para sua reintegrao.

    Como observa Oscar Vilhena Vieira:

    o holocausto e a eroso da ideia de direitos da pessoa humana, na primeira parte do sculo XX, geraram uma forte reao, tanto no plano poltico como filosfico, em favor de uma nova gramtica dos direitos da pessoa humana. A comunidade internacional estabeleceu a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 como novo parmetro moral para mediar a relao entre os Estados e as pessoas27.

    25 LASMAR, Jorge Mascarenhas; e CASARES, Guilherme Stolle Paixo e. A Organizao das Naes Unidas. Belo Horizonte: Del Rey,

    2006. p. 7. 26

    Diz Andr de Carvalho Ramos que a internacionalizao intensiva da proteo dos direitos humanos, ento, explica-se como sendo um elemento de dilogo entre os povos, dilogo revestido de legitimidade pelo seu contedo tico. Em um mundo de polaridades indefinidas, a proteo internacional dos direitos humanos ingrediente essencial de governabilidade mundial, servindo de parmetro comum para todos os governos da comunidade internacional. In RAMOS, Andr de Carvalho Ramos. Direitos Humanos em juzo: comentrios aos casos contenciosos e consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. So Paulo: Editora Max Limonad, 2001. p. 37. 27

    VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais uma leitura da jurisprudncia do STF. So Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 35.

  • 35

    A partir dos anos 1950, a Assembleia Geral e o Conselho Econmico e Social das Naes Unidas comearam a aprovar resolues sobre preveno e reabilitao. A Organizao Internacional do Trabalho (OIT), em 1955, editou a recomendao n 99 sobre a Reabilitao de Pessoas Deficientes.

    Da mesma poca a importante Conveno n. 111 que trata da Discriminao em Matria de Emprego e Profisso, e traz para a proteo dos direitos das pessoas com deficincia a disposio, ainda que genrica, de que constitui discriminao

    (....) qualquer outra distino, excluso ou preferncia que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matria de emprego ou profisso, que poder ser especificada pelo Membro interessado depois de consultas s organizaes representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam e outros organismos adequados.28

    Os anos a partir de 1960 foram marcados pelos primeiros escritos sobre o modelo social da deficincia, primando pela definio da deficincia como um conceito complexo que reconhece o corpo com leso, mas que tambm denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente. De um campo estritamente biomdico, combinando saberes mdicos e psicolgicos, em especial, focados na reabilitao, a deficincia passou a ser tambm parte do campo das humanidades, sendo estudada pela sociologia, pelo direito e pela poltica.

    Paul Hunt, um socilogo com deficincia fsica, foi um dos precursores do modelo social. Certa vez, ao escrever sobre a segregao e o isolamento das pessoas com deficincia em instituies especializadas, a um jornal ingls, props a criao de um grupo formado por pessoas com deficincia para visibilizar as ideias ignoradas do segmento. Essa foi a origem da constituio da Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS), em 1974. Para a organizao, a leso seria um dado corporal isento de valor, ao passo que a deficincia seria o resultado da interao de um corpo com leso com uma sociedade discriminatria29.

    Nos anos da dcada de 1970, o movimento pelo reconhecimento da pessoa com deficincia como sujeito pelo critrio dos direitos, com uma viso mais social, e no pelo

    28 Esta Conveno foi ratificada pelo Brasil em 1965.

    29 Senhor editor, as pessoas com leses fsicas severas encontram-se isoladas em instituies sem as menores condies, onde suas ideias

    so ignoradas, onde esto sujeitas ao autoritarismo e, comumente, a cruis regimes. Proponho a formao de um grupo de pessoas que leve ao Parlamento as ideias das pessoas que, hoje, vivem nessas instituies e das que potencialmente iro substitu-las. Atenciosamente, Paul Hunt. In: DINIZ, Dbora. O que Deficincia. Coleo Primeiros Passos. So Paulo: Brasiliense, 2007. p. 13-14.

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    critrio da ateno, com a antiga viso mdica, comeou a ganhar corpo. Em 1971, a Assembleia Geral da ONU aprovou o documento intitulado poca de Declarao dos Direitos do Retardado Mental30. Em particular, alm de afirmar que as pessoas com deficincia intelectual devem gozar dos mesmos direitos que os demais seres humanos, essa Declarao adverte que a mera incapacidade do exerccio pleno dos direitos no pode ser considerada fundamento para a supresso completa de seus direitos.

    Em 1975, a Assembleia aprovou outro documento relacionado: a Declarao dos Direitos das Pessoas Deficientes31. Essa Declarao afirma que as pessoas com deficincia tm os mesmos direitos civis e polticos, econmicos, sociais e culturais que os demais seres humanos. Alm do mais, enfatiza que as pessoas com deficincia tm direito a medidas destinadas a permitir-lhes alcanar a maior autonomia possvel.

    Por mais que essas Declaraes no tenham carter vinculante, sua proclamao

    no mbito das Naes Unidas comea a orientar os pases por suas recomendaes e fortalece o movimento das pessoas com deficincia e suas organizaes por reivindicaes de pleno exerccio e gozo de direitos humanos.

    No ano seguinte, em 1976, foi aprovada em Assembleia Geral das Naes Unidas outra resoluo importante que proclamou o ano de 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes32 (AIPD) com o lema Participao Plena e Igualdade. Segundo Otto Marques da Silva, os objetivos dos anos internacionais podem ser resumidos no sentido de:

    que a comunidade internacional tome conhecimento da existncia de um certo problema que afeta segmentos da populao, procurando solues atravs de consultas internacionais, ao conjunta e cooperao. Continua dizendo que, neste caso particular do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, existe, de fato, um problema srio para a comunidade das naes concentrar toda a ateno de que puder dispor, dando-lhe a possvel prioridade durante um ano todo. E o problema que estamos analisando , de fato, o intolervel problema de meio bilho de pessoas(....) que se v margem de tudo e no desfruta de seus direitos. 33

    Para dar significado ao AIPD, a ONU criou um Comit Consultivo formado por 23 pases, que se debruou sobre a tarefa de preparar um esboo de um plano de ao mundial

    30 Resoluo 28/56, 26 Assembleia Geral de 1971.

    31 Resoluo 34/47, 30 Assembleia Geral de 1975.

    32 Resoluo 31/123, 31 Assembleia Geral de 1976.

    33 SILVA, Otto Marques da. A Epopia Ignorada a pessoa deficiente na histria do mundo de ontem e de hoje. So Paulo: CEDAS

    Centro So Camilo de Desenvolvimento em Administrao da Sade, 1996. p. 329.

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    para a atuao das naes. O Relatrio desse Comit foi aprovado e incorporado na 34 sesso da Assembleia Geral, em 1979, contendo, em geral, ideias que analisavam obstculos enfrentados pelas pessoas com deficincia e propunham solues para que fossem removidos e/ou evitados.

    Dizia o Relatrio34 que as pessoas com deficincia devem ter direitos iguais em relao aos demais cidados de um Estado, inclusive em relao aos servios pblicos que forem colocados disposio de todos, complementando ainda que pessoas deficientes devem ser consideradas como cidados comuns com problemas especiais em vez de categoria especial de pessoas com necessidades diferentes daquelas de outros cidados.

    O mesmo documento j sinalizava parte35 do entendimento que hoje se tem acerca da acessibilidade, alertando os pases em relao necessidade de remoo das barreiras fsicas e atitudinais desde a concepo e planejamento do ambiente, conforme se percebe do trecho destacado a seguir:

    (...) foi reconhecido que os obstculos mais significativos participao plena eram as barreiras fsicas, os preconceitos e as atitudes discriminatrias, e que devem ser desenvolvidas atividades para remover essas barreiras. Foi tambm reconhecido que a sociedade, ao desenvolver seus ambientes modernos, tendia a criar barreiras novas e adicionais, a menos que as necessidades de pessoas deficientes fossem levadas em considerao nos estgios de planejamento.36

    Desde ento, j era uma ideia de consenso que as barreiras agravavam a situao das pessoas com deficincia e que os prdios e servios pblicos deveriam ser adaptados, por direitos de cidadania, sendo necessrio tambm que o planejamento dos novos espaos deveria sempre contemplar as pessoas com deficincia.

    Em suma, era objetivo do AIPD o aumento da conscincia pblica, entendimento e aceitao, encorajando pessoas com deficincia e suas organizaes a expressar suas vozes e vises, concretizando a sua participao plena e promovendo aes para melhorar sua situao de vida.

    34 SILVA, Otto Marques da. ob. cit. p. 330.

    35 Diz-se parte do entendimento porque poca no se levou em considerao as barreiras comunicacionais entre os obstculos que impedem

    a plena particpacao de pessoas com deficincia. Este tema ser tratado no Captulo V sobre a acessibilidade. 36

    SILVA, Otto Marques da. ob. cit. p. 330.

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    A partir da dcada de 1980, como preparao para as aes do referido Ano e resultado das mobilizaes decorrentes, vrios acontecimentos na pauta internacional marcaram a nova concepo das pessoas com deficincia, sustentada pela abordagem dos direitos humanos. Muitas organizaes no-governamentais surgiram nessa poca buscando desenvolver atividades em nvel nacional para dar vazo oportunidade semeada pelas Naes Unidas naquele momento. A maior lio do AIPD, conforme registrado na ONU, foi a de que a imagem das pessoas com deficincia depende da extenso das atitudes sociais37.

    Ao final do Ano Internacional, a Assembleia Geral das Naes Unidas declarou o decnio de 1983 a 1992 como a Dcada das Naes Unidas para as Pessoas com Deficincia, que visava execuo das aes do Programa de Ao Mundial relativo s Pessoas com Deficincia38. A ideia era encorajar os Estados a tomarem medidas apropriadas implementao do Programa, que tinha por objetivo promover a participao plena e igualitria das pessoas com deficincia na vida social e no desenvolvimento de todos os pases, independentemente do seu nvel de desenvolvimento. O Programa seguia o mesmo trip definido no Ano Internacional: preveno, reabilitao e equiparao de oportunidades. Os dois primeiros elementos configuravam o modelo mdico existente, enquanto que o terceiro denotava o processo de evoluo do modelo social baseado nos direitos humanos.

    Paralelamente ao decnio proclamado pela ONU, os demais organismos internacionais tambm se mobilizaram em relao ao debate dos direitos das pessoas com deficincia. A OIT, por exemplo, em 1983, editou a Conveno n 159 que trata da Reabilitao Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes39, a qual, na viso de Maria Aparecida Gugel40, compromete os Estados Partes a estabelecer polticas de igualdade de oportunidades para os trabalhadores com deficincia que passam pela reabilitao profissional e, mediante legislao nacional e outros procedimentos, faz-las serem aplicadas.

    37 Disponvel em http://www.un.org/esa/socdev/enable/disiydp.htm Acesso em 31 de agosto de 2006.

    38 Resoluo 37/52, 36 Assembleia Geral de 1981.

    39 Esta Conveno foi ratificada pelo Brasil em 1991, pelo Decreto 129, de 22/5/91.

    40 GUGEL, Maria Aparecida. Pessoas com Deficincia e o Direito ao Trabalho: reserva de cargos em empresas e emprego apoiado.

    Curitiba: Obra Jurdica, 2007. p. 23.

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    A Organizao Mundial de Sade (OMS), em 198041, publicou o documento International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH), que no Brasil foi traduzido como Classificao Internacional de Impedimentos, Deficincias e Incapacidades (CIIDI). Num momento em que o mundo tentava argumentar pelo modelo social da deficincia, o modelo apresentado pela OMS reforava o vis mdico. Foi profundamente criticado, entre outras razes, porque situava as desvantagens das pessoas com deficincia nas leses ou limitaes do indivduo e no na sociedade. Em 1989, a OMS publicou a 10 reviso do Cdigo Internacional de Doenas (CID-10), seu catlogo oficial de doenas, que at ento s previa as manifestaes agudas das patologias, e no abarcava as conseqncias das doenas como perturbaes crnicas, evolutivas e irreversveis.

    No geral, a ICIDH foi muito utilizada nos pases para a caracterizao do beneficirio de polticas pblicas de seguridade social, concesso de benefcios fiscais, entre outros. Inegvel sua utilidade nas reas de reabilitao, mas por ser a OMS um forte ator poltico internacional, no pde deixar de ser criticada pela concepo que fundamentou a classificao que mais tarde foi revista, conforme se ver adiante. Isso porque, no campo das polticas pblicas, a perspectiva da deficincia como tragdia individual ou limitao corporal significa que as aes prioritrias a serem adotadas so medidas de carter sanitrio e de reabilitao, e no de proteo social e reparao da desigualdade ou equiparao de oportunidades. A premissa da deficincia como questo individual - ou deficincia como questo social - tem implicaes diretas na definio de prioridades polticas, tanto na esfera da sade pblica, quanto na de direitos humanos42.

    Entre avanos e retrocessos, em 1987, na metade da Dcada das Naes Unidas para Pessoas com Deficincia, em Estocolmo, ocorreu a Reunio Mundial de Especialistas para examinar o andamento da execuo do Programa Mundial de Ao relativo s Pessoas com Deficincia. Constatou-se a necessidade de elaborar uma doutrina orientadora que indicasse as prioridades de ao no futuro, reconhecendo os direitos das pessoas com deficincia com mais fora. Como resultado dessa reunio, recomendou-se Assembleia Geral que fosse feita uma conferncia especial para redao de uma conveno internacional sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra as pessoas com deficincia, para ser ratificada pelos Estados ao finalizar a dcada.

    41 Esta Classificao foi aprovada em 1976, na IX Assembleia da OMS, sendo sua traduo para o portugus realizada e publicada em 1989

    Classificao Internacional de Deficincias, Incapacidades e Desvantagens. 42

    DINIZ, Dbora. O que Deficincia. Coleo Primeiros Passos. So Paulo: Brasiliense, 2007. p. 45.

  • 40

    A delegao da Itlia preparou um primeiro esboo da Conveno e o apresentou 42 sesso da Assembleia Geral, em 1987. A delegao da Sucia apresentou nova proposta na 44 sesso da Assembleia Geral, em 1989. Mas no havia ainda um consenso sobre a necessidade de elaborao de uma Conveno especfica. Para muitos pases, os documentos de direitos humanos j existentes poderiam garantir s pessoas com deficincia o exerccio de direitos na mesma proporo que a todos os outros seres humanos. Alm disso, os progressos do decnio no podiam ser sentidos ainda, haja vista que apesar de reconhecidas boas iniciativas de alguns pases, no havia suficientes esforos para que os resultados fossem considerados significativos.

    Em maio de 1990, o Conselho Econmico e Social das Naes Unidas autorizou a Comisso de Desenvolvimento Social a estabelecer um grupo especial de trabalho de peritos governamentais, de composio aberta, financiado por contribuies voluntrias, para elaborar regras gerais sobre a igualdade de oportunidades das crianas, jovens e adultos com deficincia, em estreita colaborao com os organismos especializados do sistema das Naes Unidas e outras entidades intergovernamentais e no-governamentais, em especial as formadas por pessoas com deficincia.

    A discusso, no estando to amadurecida para a elaborao da Conveno, deu lugar para que, em 20 de dezembro de 1993, fosse adotado o histrico documento, fruto do trabalho de 1990, intitulado Normas sobre a Equiparao de Oportunidades para Pessoas com Deficincia43. Era uma resposta alternativa e intermediria presso da comunidade internacional para que a ONU firmasse posio acerca das pessoas com deficincia.

    As Normas em referncia constituem um conjunto de recomendaes ou diretrizes das Naes Unidas sobre o tema, no representando um tratado formal com efeito vinculante, tendo, pois, eficcia limitada. No entanto, pelo teor de seu contedo e uso reiterado - como discurso e prtica - e pela inovao da previso de um mecanismo de superviso com um relator especial, as Normas se destacaram das demais resolues da ONU na rea da deficincia e tiveram uma importncia significativa na histria normativa dos direitos e de criao de polticas pblicas endereadas aos seus beneficirios, tanto no mbito internacional, como regional e local.

    43 Resoluo 44/70, 45 Assembleia Geral de 1990.

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    A linguagem dos direitos descritos nas Normas apresentou-se mais concisa e alinhada com o paradigma social fundamentado nos direitos humanos. H orientaes aos Estados indicando suas responsabilidades, solicitando, em linhas gerais, que se eliminem as barreiras que impedem a igualdade de participao das pessoas com deficincia. As Normas tambm mencionam que os Estados devem permitir e facilitar o trabalho de organizaes no-governamentais que atuam com pessoas com deficincia no desenvolvimento de polticas pblicas relacionadas. Especial ateno foi dada aos grupos vulnerveis, tais como mulheres, crianas, jovens, negros, ndios e pobres com deficincia. Entre os seus artigos, destacam-se os referentes s medidas de execuo, que recomendam a utilizao do critrio deficincia em estatsticas e polticas pblicas gerais, alm de determinar que se deve ter como base jurdica uma legislao nacional. Essas recomendaes serviram de parmetro para prticas, polticas e leis mundo afora44.

    Em 1994, Bengt Lindqvist (Sucia) foi designado o primeiro relator especial em deficincia45 (Special Rapporteur on Disability) pela Comisso de Desenvolvimento Social das Naes Unidas, para auxiliar no monitoramento das Normas e estabelecer dilogos entre Estados Partes e ONGs para a sua implementao. O seu mandato de trs anos foi prorrogado duas vezes, a primeira de 1997 a 1999, e a segunda de 2000 a 2002. Sheikha Hessa Khalifa bin Ahmed al-Thani (Catar) foi a sua sucessora, com mandato de 2003 a 2006. Um excelente apoio para o trabalho do relator so os especialistas representantes de organizaes internacionais de pessoas com deficincia, com carter consultivo na ONU.

    Para citar um exemplo do resultado do trabalho realizado, cujos temas apontados foram objeto de discusso na Conveno, destaca-se trecho de um relatrio que analisava aspectos que deveriam ser atualizados nas Normas e apontava algumas lacunas que precisavam ser colmatadas ou pree