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1 PRIMEIRO ATO CENA I Argan e Enfermeiras ENFERMEIRA – Veja, seu ARGAN: Este mês, Sr. Flores, seu tão estimado farmacêutico, lhe cobrou quase 20 dólares por uma aspirina e uma pesagem. É um roubo! ENFERMEIRA – É ultrajante... ARGAN – Ora, mas não posso culpar Sr. Flroes pelos remédios, pesagens, lavagens e verificações de pressão caríssimos que me recomenda Dr. Purgan, meu médico de confiança. Também não posso contrariar meu médico. É pro meu bem, já que estou muito doente. Veja: estou, hoje em dia, com problemas nos meus intestinos, tenho um caso mal-resolvido com a minha bílis ruim, além de estar com suspeitas de que eu posso pegar a gripe suína! Imagina, eu mais doente que já estou! ENFERMEIRA – Que está muito doente, não podemos negar. ENFERMEIRA – Isso não. Claro que não. Mas até que e o Sr. Flores poderia dar um desconto prum estimado cliente. ENFERMEIRA – Isso com certeza. Veja, seu Argan: mês passado ele lhe cobrou 31 por uma lavagem e uma dose de um simples calmante. Este mês, lhe cobrou 40 pela mesma lavagem e pela mesma dose do tal calmante.

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PRIMEIRO ATO

CENA I

Argan e Enfermeiras

ENFERMEIRA – Veja, seu ARGAN: Este mês, Sr. Flores, seu tão estimado farmacêutico, lhe cobrou

quase 20 dólares por uma aspirina e uma pesagem. É um roubo!

ENFERMEIRA – É ultrajante...

ARGAN – Ora, mas não posso culpar Sr. Flroes pelos remédios, pesagens, lavagens e verificações

de pressão caríssimos que me recomenda Dr. Purgan, meu médico de confiança. Também não

posso contrariar meu médico. É pro meu bem, já que estou muito doente. Veja: estou, hoje em dia,

com problemas nos meus intestinos, tenho um caso mal-resolvido com a minha bílis ruim, além de

estar com suspeitas de que eu posso pegar a gripe suína! Imagina, eu mais doente que já estou!

ENFERMEIRA – Que está muito doente, não podemos negar.

ENFERMEIRA – Isso não. Claro que não. Mas até que e o Sr. Flores poderia dar um desconto prum

estimado cliente.

ENFERMEIRA – Isso com certeza. Veja, seu Argan: mês passado ele lhe cobrou 31 por uma

lavagem e uma dose de um simples calmante. Este mês, lhe cobrou 40 pela mesma lavagem e pela

mesma dose do tal calmante.

ARGAN – Mas veja, estamos passando por uma época de doenças e mais doenças. E não quero ter

a tal da gripe suína, que essa só de comentar me dá arrepios!

ENFERMEIRA – Sim, mas mês passado não passávamos por essa crise, e mesmo assim, Sr. Flores

cobrou 50 por um pequeno clister para umedecer, amolecer e refrescar seus intestinos.

ENFERMEIRA – E cobrou, no mesmo mês, 70 por um simples xarope hepático. Mas nem hepatite o

senhor tem!

ARGAN – Como assim? Está querendo você contrariar o Dr. Purgan?

ENFERMEIRA – Não, senhor... Só quis dizer que... O senhor... Apesar de doente... Anda gastando

muito em remédios...

ARGAN – Ora, mas como não gastar?! Faço tudo pela saúde perfeita. E esta vem me dando golpes

ultimamente, me deixando assim, tão debilitado e doente. Mas saibam vocês que isso há de acabar.

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ENFERMEIRA – Como assim, seu Argan?

ARGAN – Ora, não é de sua conta, intrometida. Vamos, continuemos com os cálculos.

ENFERMEIRA – Muito bem, o senhor então gastou 40, 50, 60, 70, 80, 90... US$1.204,77 apenas no

mês passado.

ENFERMEIRA – E até o dia 25 deste mês que estamos o senhor gastou US$1.300,68 até agora.

Não é de se esperar que esteja tão bem este mês.

ARGAN – Nisso, vocês tem razão. Este mês tomei 23 lavagens. Mês passado tomei apenas 20. E já

sinto que minha bílis ruim já saiu quase toda por completo. A propósito, onde está minha bílis?

Cadê?

ENFERMEIRA – Por aqui no seu quarto não a vejo, seu Argan...

ENFERMEIRA – Eu também não a vejo...

ARGAN – Ora, vamos! Onde mais ela pode estar? Vamos, não querem que um doente como eu

procure, não?

ENFERMEIRA – Claro que não... Vamos. Vamos procurá-la pela casa. Vá por ali. Eu procuro na

cozinha. Eu tenho certeza que na cozinha ela está. É o lugar ideal para se guardar a bílis.

ARGAN – Vocês vão me deixar sozinho, é? Me deixaram... Hunfs... NIETA!!! Venha cá, cachorra,

não me deixe sozinho! Nieta! Venha cá, cretina que estou sozinho!!! VENHA CÁ NIETA, NÃO

QUERO TER GRIPE SUÍNA, VENHA, SUA SUÍNA!

CENA II

(NIETA e ARGAN)

NIETA (Entrando no quarto) – Já vai.

ARGAN – Sua cachorra. Sua malandra!

NIETA (Fingindo ter batido a cabeça) – Puxa vida, que impaciência. O senhor apressa tanto a gente

que eu acabei batendo com a cabeça, com toda a força, na porta.

ARGAN – Traidora.

NIETA (Fica se lamentando para interrompê-lo e impedi-lo de gritar) – Ai... Ai...

ARGAN – Faz...

NIETA – Ai...

ARGAN – Faz uma hora...

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NIETA – Ai.

ARGAN -... que você me deixou ...

NIETA – Ai!

ARGAN – Cale a boca, fingida, que eu estou te repreendendo.

NIETA – Ainda mais essa, depois de tudo o que me aconteceu.

ARGAN – Você me obrigou a gritar, cretina.

NIETA – E eu, por sua causa, quase quebro a cabeça. Estamos quites, então.

ARGAN – Sua bandida.

NIETA – Se continuar me xingando, eu vou chorar!

ARGAN – Me largar sozinho...

NIETA (para interrompê-lo) – Ai.

ARGAN – Cachorra. Você quer...

NIETA – Ai.

ARGAN – Será que eu não posso nem ter o prazer de brigar?

NIETA – Brigue o quando quiser, eu não ligo.

ARGAN – Você me impede, sua imbecil, me interrompendo a toda hora.

NIETA – Se o senhor tem prazer em brigar, eu tenho prazer em chorar. Cada um faz o que gosta.

Não há nada de mais. Ai.

ARGAN – Está bem. Desisto. Tire isto daqui, tire. (Ele se levanta da cadeira) Veja se minha

lavagem, de hoje, fez efeito.

NIETA – Sua lavagem?

ARGAN – É. Saiu a minha bílis?

NIETA – Ah, não, não tenho nada a ver com essa coisa. O Sr. Flores que meta o nariz aí. Ele ganha

pra isso.

ARGAN – Que mantenham a água fervendo para a próxima.

NIETA – Esse Sr. Flores e esse Sr. Purgan se divertem bem com o seu corpo. Têm no senhor uma

vaca leiteira e eu adoraria perguntar a eles o motivo de tantos remédios.

ARGAN – Fique quieta, ignorante. Não é você que vai controlar minhas receitas médicas. Chame

Angélica, quero falar com ela.

NIETA – Parece que adivinhou seu pensamento, pois já está aqui.

CENA III

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(ANGÉLICA, NIETA e ARGAN)

ARGAN – Chegou no momento certo, Angélica. Eu queria falar com você.

ANGÉLICA – Pode falar que eu estou ouvindo.

ARGAN (Correndo para o urinol) – Espere. Me dê minha bengala. Volto num minuto.

NIETA (Ralhando) – Depressa. Depressa. O Sr. Flores nos dá um trabalho...

CENA IV

(Angélica e Nieta)

ANGÉLICA (Olhando com ar lânguido, confidencia) – Nieta.

NIETA – Quê?

ANGÉLICA - Olhe para mim.

NIETA – Estou olhando.

ANGÉLICA – Nietinha.

NIETA – Nietinha, por quê?

ANGÉLICA – Não adivinha o que eu quero falar?

NIETA – Não tenho a menor dúvida: do namorado novo, pois há seis dias não falamos de outro

assunto. Você só fica feliz falando nele.

ANGÉLICA – Se sabe, por que não começa logo a falar nisso?

NIETA – Porque não me dá chance.

ANGÉLICA – É verdade. Preciso estar sempre abrindo o meu coração com você. Mas me diga, você

é contra o que eu sinto por ele?

NIETA – Imagine!

ANGÉLICA – Faço mal em me abandonar às minhas tão gostosas lembranças?

NIETA – De jeito nenhum.

ANGÉLICA – Você gostaria que eu fosse insensível à paixão que ele sente por mim?

NIETA – Deus me livre!

ANGÉLICA – Você não acha, como eu, que há qualquer coisa abençoada, qualquer coisa de

destino, na aventura do nosso encontro?

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NIETA – Acho.

ANGÉLICA – Você não acha que sua ação de me defender, sem me conhecer, é coisa de homem

sério?

NIETA – É.

ANGÉLICA – Que ninguém podia ser mais generoso?

NIETA – Ninguém.

ANGÉLICA - E que ele faz tudo desinteressadamente?

NIETA – Concordo.

ANGÉLICA – Você não acha que ele é muito bonito?

NIETA – É.

ANGÉLICA – Que tem um jeitinho todo especial?

NIETA – Com certeza.

ANGÉLICA – Que seus pensamentos e ações têm muito de nobres?

NIETA – Isso é certo.

ANGÉLICA – Que não se pode ouvir nada de mais apaixonante do que o que ele me diz?

NIETA – Correto.

ANGÉLICA - Que não existe nada mais horrível do que as dificuldades que a gente tem para se

encontrar?

NIETA – Tem toda razão.

ANGÉLICA – Mas, Nietinha, você acha mesmo que ele me ama tanto quanto diz?

NIETA – Sei lá. Essas coisas são meio suspeitas. Os fingimentos do amor passam sempre por

incrivelmente verdadeiros e eu já vi grandes atores mostrarem isso.

ANGÉLICA – Não fale assim. Será possível que ele esteja mentindo ?

NIETA – Em todo caso, logo você vai ficar sabendo se a resolução de casar com você, conforme ele

escreveu na carta ontem, é pra valer ou não.

ANGÉLICA – Se ele me enganou, nunca mais vou acreditar em nenhum homem.

NIETA – Lá vem seu pai.

CENA V

Argan, Angélica e Nieta

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ARGAN (Sentando na cadeira) – Ouça a novidade que eu tenho para contar, minha filha, Me

pediram você em casamento. Mas o que é, por que você está rindo? A palavra casamento é

engraçada mesmo. Não há nada mais divertido para as jovens. É, é a vida. Nem preciso, pelo que

posso ver, perguntar se quer ou não casar.

ANGÉLICA – Eu faço aquilo que meu pai mandar.

ARGAN – Estou satisfeito de ter uma filha tão obediente. A coisa está, então, acertada: considere-se

comprometida.

ANGÉLICA – Como o senhor quiser. Aceito sem discussão.

ARGAN – Sua madrasta sonhava que você e Luisinha fossem religiosas! Sempre sonhou.

NIETA (Baixo) – A malandra tem suas razões.

ARGAN – Ela não queria nem mesmo consentir nesse casamento.Mas dei minha palavra, está

dada.

ANGÉLICA – Ah...papai, o senhor é tão bom.

NIETA – Meus cumprimentos, senhor, foi a coisa mais sensata que fez na vida.

ARGAN – Não conheço ainda o noivo, mas me disseram que eu ficaria contente e você também.

ANGÉLICA- Garanto que sim, papai.

ARGAN – Como você o conhece?

ANGÉLICA – O seu consentimento me autoriza a ser franca e não hesito em contar que, por acaso,

eu o conheci, faz seis dias, e que o pedido de casamento é resultado da atração que sentimos um

pelo outro, à primeira vista.

ARGAN – Ninguém me disse nada, mas estou contente de que tudo tenha se arranjado. Dizem que

é um jovem bem apessoado.

ANGÉLICA – É, papai.

ARGAN – Elegante.

ANGÉLICA – Sem dúvida.

ARGAN - Simpático.

ANGÉLICA- Se é.

ARGAN- Uma boa figura.

ANGÉLICA – Muito boa.

ARGAN- Inteligente e bem nascido.

ANGÉLICA – De fato.

ARGAN – Honesto.

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ANGÉLICA – O mais honesto do mundo.

ARGAN – Fala latim e grego.

ANGÉLICA – Isso eu não sei.

ARGAN – Vai receber o diploma de médico em três dias.

ANGÉLICA – Ele, papai?

ARGAN - Não contou, não?

ANGÉLICA- Não. Quem disse isso para o senhor?

ARGAN – Dr. Purgan.

ANGÉLICA – E ele o conhece?

ARGAN- Que pergunta. Pois é seu sobrinho.

ANGÉLICA – Cleanto? O sobrinho do Dr. Purgan?

ARGAN- Que Cleanto? Estamos falando do jovem que pediu você em casamento.

ANGÉLICA – Mas claro.

ARGAN- Então... é o sobrinho do Dr. Purgan, filho de seu cunhado, o médico, o Sra. Disafôrus. Ele

se chama Tomás Disafôrus, e não CLEANTO. Combinamos o casamento hoje de manhã, o Dr.

Purgan, O Sr. Flores e eu, e amanhã, meu futuro genro vem com o pai, aqui. O que há, ficou muda?

ANGÉLICA – Desculpe, meu pai, falávamos de pessoas diferentes.

NIETA- Pelo amor de Deus, Sr. Argan, com todo o dinheiro que tem, querer casar sua filha com um

médico?

ARGAN – Não se meta, sua atrevida. Sua besta ambulante.

NIETA- Calma, calminha. Não precisa xingar. A gente pode pensar juntos, sem gritar, de cabeça fria.

Qual é seu interesse nesse casamento, pode me dizer?

ARGAN – O meu interesse!Sendo eu tão doente quanto sou, quero ter um genro e parentes

médicos, para ser socorrido nas minhas crises, e ter sempre à mão consultas e receitas.

NIETA – É tão fácil falar tranquilamente, está vendo? Mas, patrão, ponha a mão na consciência: o

senhor é mesmo doente?

ARGAN- Como, eu? Sua cretina. Então não sabe que eu sou doente?

NIETA- Está bem, patrão, o senhor é doente e nós não vamos discutir por causa disso. O senhor é

muito doente, mais até do que imagina, pronto. Mas sua filha quer um marido e como ela não está

doente, não precisa de um médico.

ARGAN - O médico é para mim e uma boa filha deve ficar contente de casar com alguém que é útil

para a saúde de seu pai.

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NIETA – Sinceramente, patrão, quer um conselho de amiga?

ARGAN- Qual?

NIETA – Não acredite nesse casamento.

ARGAN- Por quê?

NIETA – Sua filha não vai aceitar.

ARGAN - Não vai aceitar?

NIETA – Não.

ARGAN – Minha filha?

NIETA – Sua filha. Ela vai dizer que não tem nada a ver com o Sra. Disafôrus, nem com o filho

Tomás, nem com nenhum Disafôrus do mundo.

ARGAN – Acontece que eu estou interessado, ele é melhor partido do que pensa. O Sra. Disafôrus

só tem esse filho como herdeiro e o Dr. Purgan não tem mulher nem filhos, e está disposto a dar

todos os seus bens de presente de casamento. E o Dr. Purgan é homem de excelente renda mensal.

NIETA – Deve ter matado muita gente para conseguir ser rico.

ARGAN – Fora a renda do próprio Sra. Disafôrus.

NIETA – Tudo isso, patrão, é bom e bonito, mas repito, aqui para nós, escolha outro marido para sua

filha. Ela não foi feita para ser senhora Disafôrus.

ARGAN – Eu quero que ela seja.

NIETA – Não diga isso.

ARGAN – Como?

NIETA – Não diga. Vão dizer que o senhor não sabe o que diz.

ARGAN – Digam o que quiserem, ela vai cumprir a palavra que eu dei.

NIETA – Juro que ela não vai.

ARGAN – Eu obrigo...

NIETA – Não adianta.

ARGAN – Eu a ponho num convento...

NIETA – O senhor?

ARGAN – Eu.

NIETA – Não vai nunca pôr sua filha num convento.

ARGAN – Não?

NIETA – Não.

ARGAN – Tem graça. Não ponho minha filha num convento, se eu quiser?

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NIETA – Não, repito.

ARGAN – Quem vai impedir?

NIETA – O senhor mesmo.

ARGAN – Eu?

NIETA – É. Não é tão ruim assim.

ARGAN – Vou ser.

NIETA – Não brinque.

ARGAN – Não estou brincando.

NIETA – O amor de pai vai impedir.

ARGAN – De maneira nenhuma.

NIETA – Uma ou duas lagriminhas, um abraço apertado, um “meu paizinho querido” bem carinhoso

é o suficiente para comovê-lo.

ARGAN – Nada me comove.

NIETA – Sei, sei.

ARGAN – Não vou mudar de idéia, já disse.

NIETA – Bobagem.

ARGAN – Não diga que é bobagem.

NIETA – Meu Deus, eu o conheço, senhor, sei que é bom.

ARGAN (gritando) – Eu não sou bom e posso ser péssimo quando quero.

NIETA – Calma, patrão, não se esqueça de que está doente.

ARGAN – Ela tem que se preparar para o marido que eu escolhi.

NIETA – E eu, eu a proíbo de fazer isso.

ARGAN – Onde é que nós estamos! Uma sem-vergonha de uma empregada ter o atrevimento de

falar assim diante do patrão.

NIETA – Quando o patrão não sabe o que faz, uma empregada sensata tem o direito de adverti-lo.

ARGAN (Aproximando-se de Nieta) – Sua insolente. Eu acabo com sua raça.

NIETA (se safando dele) – É meu dever ser contra coisas que possam desonrar o patrão.

ARGAN (Colérico, corre atrás dela em volta da cadeira, bengala na mão) – Venha cá, venha, que eu

te ensino a falar.

NIETA (correndo e se esquivando) – Eu só quero que o patrão não faça loucuras.

ARGAN – Cachorra.

NIETA – Não vou permitir esse casamento.

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ARGAN – Cretina.

NIETA – Eu não quero que ela case com esse Tomás Disafôrus. E ela vai obedecer mais a mim do

que ao senhor.

ARGAN – ANGÉLICA, pare essa safada para mim.

ANGÉLICA – Ah, papai, você pode até ficar pior.

ARGAN – Se você não a parar, eu a amaldiçôo.

NIETA – E eu a deserdo, se ela desobedecer.

ARGAN (se jogando na cadeira exausto) – Ai, não aguento mais. Vou acabar morrendo.

CENA VI

Belinha, Bianca, Angélica, Nieta E Argan.

ARGAN – Ah! Querida, aproxime-se.

BELINHA – Que você tem, maridinho?

ARGAN – Venha me socorrer.

BELINHA – Ah, meu filhinho, que é que há?

ARGAN – Belinha.

BELINHA – Meu querido.

ARGAN – Elas me deixaram furioso.

BELINHA – Ah, meu Arganzinho, o que aconteceu?

ARGAN – A sem-vergonha da Nieta está mais insolente do que nunca.

BELINHA – Não dê importância.

ARGAN – Ela me enlouquece, querida.

BELINHA – Quieto, filhinho.

ARGAN – Ela se opôs, durante uma hora, a tudo o que eu quero fazer.

BELINHA – Quietinho.

ARGAN – E teve o descaramento de dizer que não estou doente.

BELINHA – Que insolência.

ARGAN – Você sabe, meu amor, o quanto eu estou...

BELINHA – Claro, amorzinho.

ARGAN – Querida, essa sem-vergonha acaba me matando.

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BELINHA – Ah, bem, isso...

ARGAN – Ela é a causa da minha bílis ruim.

BELINHA – Não fique tão nervoso.

ARGAN – Há muito tempo eu peço para você me livrar dela.

BELINHA – Meu filho, não há empregados que não tenham seus defeitos. (Nieta e Angélica se

retiram para um canto. Nota-se que a madrasta e a enteada não se falaram.). A gente é obrigada, às

vezes, a relevar certos problemas. Nieta é honesta, limpa, esforçada e, sobretudo, fiel. Você sabe

que, hoje em dia, todo cuidado é pouco. Venha cá, Nieta.

NIETA – Senhora.

BELINHA – Por que você está irritando meu marido?

NIETA (em tom meloso) – Eu, patroa? Infelizmente, não sei o que dizer, não penso senão em fazer

todas as vontades do patrão.

ARGAN – Fingida.

NIETA – Ele disse que queria dar sua filha em casamento ao filho do Sra. Disafôrus; respondi que o

considerava um partidão, mas que achava preferível que ela fosse para um convento.

BELINHA – Que mal há nisso? Ela tem toda razão.

ARGAN – Meu amor, não acredite nela. É uma louca, me fez mais de mil desaforos.

BELINHA – Está bem. Anda, vamos. Sossegue. Escute, Nieta, se você continuar a aborrecer meu

marido, eu te mando embora. Vá, pegue o cobertor e os travesseiros para que eu o acomode na

cadeira. Querido, afunde o gorro até as orelhas, não há nada melhor para se resfriar do que frio nas

orelhas.

ARGAN – Ah... querida, obrigado por tomar conta de mim.

BELINHA (Acomodando os travesseiros em torno do marido) – Afaste-se um pouco para que eu

ponha, assim, este de um lado, o outro deste... e nas costas... e este sob a cabeça, assim...

NIETA (Pondo um travesseiro sobre a cabeça de Argan e fugindo) – E este é contra o sereno.

ARGAN (Levantando-se com raiva e jogando os travesseiros em Nieta, que sai) – Imbecil, quer me

sufocar, não quer?

BELINHA – Que é agora? Pelo amor de Deus!

ARGAN (Sem fôlego, joga-se na cadeira) – Ai, ai. Eu não aguento mais.

BELINHA – Por que você se incomoda tanto? Ela só queria ajudar.

ARGAN – Você não conhece, querida, a maldade daquela bandida. Ela me deixou fora de mim, vou

precisar de oito remédios e doze lavagens para consertar tudo.

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BELINHA – Ora, querido, relaxa.

ARGAN – Meu consolo é você, amorzinho.

BELINHA – Coitadinho dele.

ARGAN – Para mostrar meu reconhecimento pelo amor que tem por mim, eu quero, meu coração,

como já disse, fazer meu testamento.

BELINHA – Não vamos falar disso, querido, por favor. A idéia me faz sofrer e estremeço com a

palavra testamento.

ARGAN – Eu pedi para você falar com a Tabeliã.

BELINHA – Está aí fora. Eu o trouxe comigo.

ARGAN – Então faça entrar, meu amorzinho. Faça.

BELINHA – Certo, querido. Mas quando se ama o marido, não se consegue nem pensar nessas

situações, não é mesmo?

CENA VII

Tabeliã, Belinha e Argan

ARGAN – Aproxime-se, senhor Boafé, e sente-se, por favor. Minha mulher me disse que é homem

sério, além de ser amigo dela, por isso pedi que o chamasse para o testamento que eu quero fazer.

BELINHA – Eu sou incapaz de tocar nesses assuntos.

TABELIÃ – Ela me explicou suas intenções, mas devo dizer que não há nada que possa deixar para

sua mulher em testamento.

ARGAN – Como?

TABELIÃ – Vai contra o costume. Se estivéssemos num país de Direito escrito, isso poderia ser

resolvido, mas em Paris e em vários outros lugares sua disposição seria nula. Todo o bem que um

homem e uma mulher, unidos pelo casamento, se podem dar deve ser através de uma doação

mútua, entre vivos, desde que não haja filhos, seja dos dois conjugues ou de apenas um deles.

ARGAN – Eis um costume impertinente esse de um marido não poder deixar nada para uma mulher

que tanto ama e que cuida tão bem dele. Eu gostaria de consultar meu advogado para saber que

providência tomar.

TABELIÃ – Não é aos advogados que se deve consultar, pois são, em geral, muito severos sobre o

assunto e imaginam ser crime qualquer tentativa de burlar a lei. São criadores de dificuldades e

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ignoram os meandros da consciência. Há outras pessoas, mais flexíveis, que conhecem certos

expedientes, que encontram meios indiretos para contornar os problemas. Senão, o que seria de

nós? É preciso facilitar as coisas, do contrário não teríamos profissão, nem poderíamos cobrar coisa

nenhuma.

ARGAN – Minha mulher falou muito bem de sua habilidade e retidão. Como posso, então, dar meus

bens para ela em vez de deixar para minhas filhas?

TABELIÃ – Quer saber o que fazer? O senhor pode, calmamente, escolher um amigo íntimo de sua

mulher e dar a ele o que desejar e esse amigo, depois, passa tudo para ela. O senhor pode, ainda,

contrair um grande número de dívidas não suspeitas, em favor de diversos credores nas mãos de

quem deixariam uma declaração de que fizeram isso para lhe serem agradáveis. E pode, também,

enquanto estiver vivo, dar-lhe dinheiro ou promissórias pagáveis ao portador.

BELINHA – Não se atormente com isso, meu Deus. Se você morrer, não quero mais ficar neste

mundo.

ARGAN – Querida.

BELINHA – Se eu tiver a infelicidade de perder você...

ARGAN – Minha mulherzinha.

BELINHA – Viver será inútil.

ARGAN – Meu amor.

BELINHA – Morro junto para que saiba o carinho que tenho por você.

ARGAN – Você me parte o coração, amor. Não chore, por favor.

TABELIÃ – As lágrimas estão fora de hora, as coisas ainda não estão neste ponto.

BELINHA – Ah... não sabe o que é ter um marido a quem se ama tanto.

ARGAN – Só lamento, se eu morrer, é de não ter tido um filho seu, querida. DR. PURGAN me

prometeu que ele me faria lhe ter um.

TABELIÃ – Isso ainda pode acontecer.

ARGAN – Quero fazer o testamento, meu amor, do jeito que a Tabeliã diz; mas, por precaução, vou

lhe dar vinte barras de ouro que eu escondi no forro do meu quarto, e duas promissórias ao portador,

uma do Sr. Damon e outra do Sr. Geronte.

BELINHA – Não, não. Não me interessa nada. Ai de mim. Quanto você disse que tinha no quarto?

ARGAN – Vinte barras, amor.

BELINHA – Não me fale mais nisso, eu te peço. E de quanto são as promissórias?

ARGAN – Uma de quatro e outra de seis, querida.

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BELINHA – Todo o dinheiro do mundo, querido, é nada perto de ter você. Tem mais barras

escondidas?

TABELIÃ – Quer que façamos o testamento?

ARGAN – Sim, senhor. Vamos ao meu escritório. Me leve, meu amor.

BELINHA – Vamos, queridinho.

CENA VIII

Angélica e Nieta

NIETA – Eles estão lá, com uma Tabeliã, e eu ouvi falar em testamento. Sua madrasta não dorme

no ponto e, sem dúvida, faz alguma conspiração contra você.

ANGÉLICA – Contanto que não disponha dos meus sentimentos, ele pode dispor dos meus bens

como quiser. Você está vendo a pressão violenta que ele sofre. Não me abandone agora, Nietinha,

por favor.

NIETA – Eu? Abandonar você? Prefiro morrer. Sua madrasta resolveu me fazer confidências e me

colocar ao lado dela, mas eu não aceito e tomo sempre seu partido, Angélica. Deixe tudo comigo,

que eu faço tudo que estiver ao meu alcance. Mas para que dê certo, tenho que mudar de tática,

esconder que estou do seu lado e fingir que concordo com seu pai e sua madrasta.

ANGÉLICA – Certo. Você me faz o favor de avisar Cleanto desse casamento que resolveram?

NIETA – Não posso encarregar ninguém disso a não ser o Polichinelo e isso me custará algumas

palavras de carinho, mas eu não ligo de gastá-las com você. Hoje, passou da hora, mas amanhã ele

vai procurar Cleanto e...

BELINHA – Nieta!

NIETA – Estão me chamando. Boa noite. Confie em mim.

Entrada da Amiga

(A campainha é tocada freneticamente, como para chamar atenção. Angélica corre para atendê-la)

ANGÉLICA: Oi amiga! Que bom que você está aqui!

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AMIGA: Que demora pra abrir essa porta! Eu jurava que estava sendo observada! Eu estava vindo

pra cá quando eu ouvi uns galhos de árvore se quebrando atrás de mim, eu fiquei apavorada!

ANGÉLICA: Aposto que não era nada... Eu preciso muito de você agora amiga!

AMIGA: Conte-me tudo! Você sabe que os melhores conselhos sempre são meus, não é?

ANGÉLICA: Sei (hesita um pouco)... Claro, amiga...

AMIGA: Mas antes de tudo vamos fechar... Trancar essa porta, ta?

ANGÉLICA: Ai amiga, você não sabe pelo o que eu estou passando! Lembra do Cleanto? Aquele

garoto tão educado, generoso, interessante, bonito, simpático, nobre, apaixonante...

AMIGA: Sei, sei... Foco amiga, continua...

ANGÉLICA: Então, eu amo muito ele, mas meu pai está armando pra eu casar...

AMIGA: Como é que é?! Quem ele pensa que é pra mandar na sua vida?

ANGÉLICA: Esse é o problema! Ele quer me arranjar com o filho do Dr Disafôuros, o Tomas! Mas eu

amo o Cleanto! O que eu faço?

AMIGA: Você já considerou a hipótese de fugir de casa?

ANGÉLICA: Eu não posso... Como eu faria isso? Meu pai me acharia de qualquer forma. Além do

mais, como eu iria me sustentar sem dinheiro algum? Não tenho patrimônio, ou mesmo conta

bancária!

AMIGA: Oras, roube seu pai!

ANGÉLICA: Como vou roubar? São barras de ouro! Bar-ras!!

AMIGA: Derreta tudo e faça uma maçaneta. Depois você vende e tem seu dinheiro de volta!

ANGÉLICA: Sem chance! Meu pai me pegaria...

AMIGA: Hunf... É sempre o seu pai!

ANGÉLICA: Alguma idéia?

AMIGA: E se nós... Congelássemos ele? Você se casa com Cleanto, e descongelamos ele depois!

Não vai ter nada que ele possa fazer daí em diante!

ANGÉLICA: Você está louca?Sua idéia é meio radical!

AMIGA: Você não me escuta! Você vai se dar muito mal se não me ouvir, muuuuito mal!

ANGÉLICA: Mesmo se fizéssemos isso, ele me mataria quando estivesse descongelado!

AMIGA: Te mataria nada... A menos que (para e pensa um pouco)... Matássemos ele antes!

ANGÉLICA: Você está ouvindo o que está falando?!

AMIGA: Seria uma coisa rápida... (pensa olhando pra o nada )

ANGÉLICA: Ficou louca?!

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AMIGA: Ninguém sentiria falta...

ANGÉLICA: O que diríamos a todos?!

AMIGA: Era só falar que o remédio finalmente parou de fazer efeito...

ANGÉLICA: Eu não acredito nisso!

AMIGA: A pergunta é: como faremos isso parecer um acidente?

ANGÉLICA: Olha sobre o que estamos discutindo!

AMIGA: Vamos, pense um pouco na idéia!

ANGÉLICA: Não dizendo que concordo... Mas como faríamos?

AMIGA: Sabia que você ia acabar cedendo. Preste atenção (puxa um quadro de giz detrás da cama

de Angélica): Vamos supor que esse seja seu pai (desenha uma bola no quadro). Não podemos tirar

ninguém da casa, ficaria muito suspeito.

ANGÉLICA: Você já fez isso antes?!

AMIGA: Bem, não vamos mudar de assunto. Não podemos usar facas, nem armas, nem cordas,

nem ferraduras, nem canos, nem castiçais e nem vamos pensar em catapultas! Afinal, queremos que

pareça um acidente!

ANGÉLICA: Seu pensamento está começando a me assustar um pouco, mas continua.

AMIGA: Estas somos nos (desenha dois triângulos no quadro). E estes são os remédios de seu pai.

Não podemos esconder os remédios, porque acabariam culpando a Nieta, e não queremos que isso

aconteça. Não podemos trocar os remédios por veneno de qualquer tipo, porque o médico o

reconheceria quando viesse examinar seu pai, e a culpa ia cair sobre as enfermeiras ou sobre o

doutor que os recomendou, e não temos nada contra eles ainda...

ANGÉLICA: Então temos que fazer isso vir de fora?

AMIGA: Ah, agora você está acompanhando a minha idéia! Faremos o seguinte: Nós (começa a

desenhar no quadro) enviaremos a seu pai uma caixa de bombons super açucarados pra ele, e

dizemos que veio de uma prima de fora que estava prestes a morrer! Isso com certeza atacará a

diabetes dele!

ANGÉLICA: Realmente, essa é a única doença que eu não tenho duvidas que ele realmente tem!

AMIGA: Se der certo, ele gritará pela Nieta, mas ela não responderá, porque... Bem... Isso eu não

sei como fazer.

ANGÉLICA: Faremos ser em uma sexta! Ela sai toda sexta para pegar a nova medicação de meu

pai, das 15:00 as 16:30.

AMIGA: Olha! Pra quem não queria matar o pai hein... Quem te viu, quem te vê!

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ANGÉLICA: Só estou te acompanhando! Não disse que concordei!

AMIGA: Vamos fazer o seguinte? Você pensa em tudo que eu te disse, que eu tenho que ir antes

que escureça. Imagina se eu encontro com aquela pessoa que estava me observando. Depois me

diz o que decidiu, ta?

ANGÉLICA: Ta bem.

AMIGA: Boa Noite.

ANGÉLICA: Boa Noite. (a amiga sai)

Argan: Angélica!!

ANGÉLICA: Estou indo!

(quando a o quarto está vazio, sai de baixo da cama de Angélica Bianca, e olha pra platéia)

BIANCA: MAMÃE!!!

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SEGUNDO ATO

CENA I

Nieta e Cleanto.

NIETA – O que deseja, patrão?

CLEANTO – O que desejo?

NIETA – Ah! É você. Que surpresa. Que está fazendo aqui dentro?

CLEANTO – Vim falar com Angélica, consultar seu coração, saber o que decidiu sobre esse

casamento maluco, de que me avisaram.

NIETA – Entendo, mas não se pode falar assim, sem mais nem menos, com ela. É preciso que seja

em segredo, Angélica é muito vigiada, não a deixam sair nem falar com ninguém.

CLEANTO – Por isso não vim aqui como Cleanto, ou namorado, mas como amigo e substituto de

professor de música.

NIETA – Olha o pai dela. Esconda-se um pouco e me deixe avisá-lo que está aqui.

CENA II

Argan, Nieta e Cleanto.

ARGAN – O Dr. Purgan mandou que eu andasse no quarto de manhã, doze idas e doze vindas, mas

esqueci de perguntar se é na largura ou no comprimento.

NIETA – Patrão, está aí um...

ARGAN – Fale baixo, sua bruxa. Quase me estoura os miolos! Não sabe que não se fala tão alto

com doentes?

NIETA – Eu queria dizer que...

ARGAN – Fale baixo.

NIETA – Patrão... (ela finge que fala)

ARGAN – Hem?

NIETA – Eu disse que... (Finge de novo)

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ARGAN – Que é que está dizendo?

NIETA – Eu disse que está aqui um homem que quer falar com o senhor.

ARGAN – Mande entrar.

(Nieta faz sinal para Cleanto entrar)

CLEANTO – Senhor.

NIETA (Ralhando) – Não fale alto para não estourar os miolos do patrão.

CLEANTO – Estou satisfeito de encontrá-lo melhor e de pé.

NIETA (Fingindo estar zangada) – Como, melhor! Absolutamente. O patrão está sempre mal.

CLEANTO – Ouvi dizer que o senhor estava melhor, e o encontro com muito bom aspecto.

NIETA – O que quer dizer com muito bom aspecto? O patrão está mal, e esses que disseram que

ele estava melhor são uns impertinentes. Ele nunca esteve tão indisposto.

ARGAN – Ela tem razão.

NIETA – Ele anda, come e bebe como os outros, mas isso não impede que ele esteja doente.

ARGAN – Pura verdade.

CLEANTO – Venho da parte de professor de canto de sua filha, senhor. Ele teve de ir para o interior

por alguns dias, e como sou amigo íntimo, me enviou no lugar dele para continuar as lições, com

medo de que, interrompendo as aulas, ela esqueça tudo que já sabe.

ARGAN – Muito bem, chame Angélica.

NIETA – Eu acho, patrão, que seria bom levar o professor ao quarto dela.

ARGAN – Não, ela que venha.

NIETA Ele não vai conseguir dar em público uma aula que é particular.

ARGAN – Consegue, sim.

NIETA – Patrão, essas aulas são de enlouquecer, e não convém ao senhor, no seu estado, se agitar

e estourar os miolos.

ARGAN – Não discuta. Gosto de música e vou ficar muito à vontade... Aí está ela. Você, Nieta, veja

se minha mulher já está pronta.

CENA III

Argan, Angélica e Cleanto

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ARGAN – Venha, minha filha, seu professor de música foi para o interior e enviou alguém para te

dar aula.

ANGÉLICA - Ai, meu Deus.

ARGAN - Que foi?Que surpresa é essa?

ANGÉLICA- É que...

ARGAN - O quê?

ANGÉLICA - Uma coincidência surpreendente acontece aqui.

ARGAN - Qual?

ANGÉLICA- Sonhei, a noite passada, que eu estava com o pior problema do mundo, e que pedi

socorro a uma pessoa parecida com esse senhor, e ele me salvou.Minha surpresa foi exatamente

essa, a de ver, sem esperar, a pessoa com quem eu sonhei a noite toda.

CLEANTO - Estou contente de ocupar seus pensamentos, seja dormindo ou acordada, e não há

nada que eu não faria para livrá-la de algum problema.

CENA IV

Nieta, Cleanto, Angélica e Argan

NIETA (Caçoando) – Palavra, patrão, acredito no senhor, agora, e desdigo tudo o que eu disse

ontem.O Sra. Disafôrus e seu filho chegaram para fazer uma visita.O senhor vai ter um genro

daqueles, o mais bonito, o mais espirituoso.Ele me disse apenas duas palavras, mas fiquei satisfeita

e sua filha vai cair de amores por ele.

ARGAN (A Cleanto, que faz menção de sair) – Fique, meu caro.Quero casar minha filha e acaba de

chegar o noivo, que ela ainda não conhece.

CLEANTO – É muita honra senhor, ser testemunha de um encontro tão importante.

ARGAN – Ele é filho de um médico competente e o casamento se realiza dentro de quatro dias.

CLEANTO – Tão rápido assim?

ARGAN – Avise seu professor de música, para que ele venha ao casamento.

CLEANTO – Sem falta.

ARGAN – Está convidado também.

CLEANTO – Fico muito honrado.

NIETA – Preparem-se. Aí estão eles.

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CENA V

Sra. Disafôrus, Tomás Disafôrus, Argan, Angélica, Cleanto e Nieta.

ARGAN (Pondo a mão no gorro, sem o tirar ) – O Dr. Purgan me proibiu de descobrir a

cabeça.Como o senhor é do ofício, conhece as conseqüências.

Sra. Disafôrus – Trazemos socorro aos doentes, com as nossas visitas, não incômodos.

ARGAN – Doutor, eu o recebo...

(Os dois passam a falar ao mesmo tempo, interrompendo-se e confundindo-se)

Sra. Disafôrus – Estamos aqui, senhor...

ARGAN – Com muita alegria...

Sra. Disafôrus – Meu filho Tomás e eu...

ARGAN- A honra que me fazem...

Sra. Disafôrus – Para demonstrar, senhor...

ARGAN – Eu gostaria muito...

Sra. Disafôrus – A satisfação que sentimos...

ARGAN - De poder ir à sua casa…

Sra. Disafôrus - O favor que nos faz...

ARGAN – Para retribuir…

Sra. Disafôrus – De querer nos receber

ARGAN – Mas o senhor sabe, doutor...

Sra. Disafôrus – Da nossa honra...

ARGAN – O que é um pobre doente...

Sra. Disafôrus – Dessa aliança...

ARGAN – Que não pode fazer outra coisa...

Sra. Disafôrus – E garantir…

ARGAN – Que dizer aqui…

Sra. Disafôrus – Que o que depender do nosso ofício...

ARGAN – Que não faltará ocasião…

Sra. Disafôrus – Ou mesmo de outro...

ARGAN – De conhecer, senhor...

Sra. Disafôrus – Estamos sempre prontos...

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ARGAN – Eu fico ao seu inteiro dispor.

Sra. Disafôrus – A mostrar nossos cuidados. (Ele se volta para seu filho e diz) Venha,

Tomás.Aproxime-se.Apresente seus cumprimentos.

Tomás (Um panaca que acabou de se formar, desajeitado) – Não é pelo pai que convém começar?

Sra. Disafôrus- É.

Tomás – Senhor, venho cumprimentar, reconhecer, amar e reverenciar aquele que será para mim

um segundo pai, mas um segundo pai a quem ouso dizer que sou mais devedor que ao primeiro,

pois ele me fez e o senhor me escolheu. Ele me recebeu porque era inevitável, o senhor me aceitou

por prazer. Tanto quanto as faculdades do espírito estão acima das faculdades do corpo, tanto mais

eu lhe devo, e considero preciosa esta futura filiação, por isso venho hoje, antecipadamente, render

minhas mais humildes e respeitosas homenagens.

NIETA – Um viva à escola de onde saiu tão brilhante figura.

Tomás – Fui bem, mamãe?

Sra. Disafôrus – Foi.

ARGAN (Para Angélica) – Vamos, cumprimente o doutor.

Tomás – Devo beijá-la?

Sra. Disafôrus – Sim… sim…

Tomás (Beijando a face de Angélica) Madame, é com injustiça que o céu lhe concede o nome de

madrasta, pois se vê sob seu rosto...

ARGAN – Essa não é minha mulher. É minha filha.

Sra. Disafôrus – Cumprimente a jovem, antes.

Tomás – Assim como a estátua de Memnon, no Egito, emitia um som harmonioso ao ser iluminada

pelo sol, também eu se sinto envolvido docemente com a aparição do sol da sua beleza. E, assim

como os botânicos observaram que o girassol se volta sempre para essa estrela do dia, assim meu

coração doravante voltar-se-á para os astros resplandecentes que são seus adoráveis olhos. Aceite,

portanto, que, a partir de hoje, eu ofereça a essa maravilhosa jovem o meu coração, que não aspira,

nem ambiciona outra glória além de ser, para toda vida, o mais humilde, obediente e fiel servidor e

marido.

NIETA (Ralhando) – Eis o que dá estudar. Aprende-se a falar coisas tão bonitas.

ARGAN (a Cleanto) – E você, o que acha disso?

CLEANTO – Estou fascinado. Se ele for tão bom médico como é bom orador, vai dar muita

satisfação ser um dos seus doentes.

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NIETA – Com certeza. Fantástico...se ele fizer curas como faz discursos...

ARGAN – Vamos, depressa, minha cadeira, e poltronas para todo mundo. Sente-se aqui, minha

filha.Veja, doutor, todos admiram seu filho, pode se orgulhar disso.

Sra. Disafôrus: Não é porque sou mãe dele, mas posso dizer que tenho razões para estar contente

e que todos os que o conhecem sabem que é um jovem sem maldade. Nunca teve imaginação muito

fértil, nem o brilho de alguns, e é por isso mesmo que eu confio no seu bom senso, qualidade

indispensável ao exercício de nossa profissão. Ele nunca foi um menino esperto ou levado. Foi

sempre calmo, calado, e nunca se interessou pelos chamados brinquedos infantis. Sofremos

enormemente para que aprendesse a ler, pois aos nove anos ainda não reconhecia as letras. “Bem”,

eu dizia para mim mesmo, “as árvores tardias são as que produzem os melhores frutos. É mais difícil

escrever no mármore do que na areia, mas é no mármore que as coisas permanecem, e a lentidão

em compreender, essa ausência de imaginação, é sinal de futuro juízo”. Quando eu o enviei para o

colégio, ele sofreu bastante, mas lutou contra as dificuldades e os professores louvavam sempre sua

tenacidade e trabalho. Enfim, água mole em pedra dura, ele tirou, com louvor, seu diploma, e eu

posso dizer, sem vaidade, que, em quanto se preparava para a formatura, nenhum candidato fez

mais barulho do que ele em todos os seminários da escola. Ele se tornou temível, pela forma em que

defendia propostas contrárias às expostas. Ele é seguro nas discussões, teimoso como uma mula,

não muda nunca de opinião e defendo um ponto de vista até os últimos limites da lógica. Mas, acima

de tudo, o que me agrada nele, porque segue o meu exemplo, é que se agarra cegamente às

posições dos mais velhos, sem procurar entender, nem escutar as razões e as experiências de

prováveis descobertas do nosso século, coisas como a circulação do sangue e bobagens

congêneres.

Tomás (Tirando do bolso uma tese enrolada, que mostra a Angélica): Defendi uma tese contra os

partidários da circulação sanguínea que, se o senhor permitir, ouso oferecer à jovem, como

homenagem do meu espírito.

ANGÉLICA: Ah, doutor, é inútil, não entendo nada disso.

NIETA: Dá aqui, ela tem desenhos, pode enfeitar nosso quarto.

Tomás: Com a permissão de seu pai, eu gostaria de convidá-la para divertir-se, um desses dias, com

a dissecação de uma mulher, sobre o que eu devo fazer um ensaio.

NIETA: Que gracinha. Alguns levam as noivas ao teatro, outros... uma dissecação é uma coisa muito

emocionante!

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Dr. Disafôros: De resto, quanto aos requisitos para o casamento, e a propagação da espécie,

garanto que, segundo as normas médicas, é tudo o que se pode desejar, pois possui um grau

louvável a virtude prolífica e um temperamento feito para gerar e procriar filhos.

ARGAN: O senhor pretende, doutor, levá-lo à corte e conseguir para ele um cargo de médico?

Sra. Disafôrus: Falando francamente, nunca me pareceu plausível exercer a medicina para as altas

esferas e sempre pensei que seria melhor atender o povo, que é cômodo. Não se tem que dar

satisfação a ninguém e, desde que se cumpram as regras do ofício, não se tem medo do que se

pode acontecer. O que é lastimável na elite é que quando as pessoas ficam doentes exigem cura.

NIETA: Não faltava mais nada, nobres exigindo que os doutores curem suas doenças. Ninguém está

aqui para isso, é ou não é? Aos médicos compete receber honorários e receitar remédios. Aos

doentes, a cura.

Sra. Disafôrus: Exatamente. Nossa obrigação é cuidar das pessoas dentro das normas

profissionais.

ARGAN (a Cleanto): Professor, faça minha filha cantar para as visitas.

CLEANTO: Eu só esperava ordens. Para divertir as visitas, pensei em cantar com ela uma pequena

Cena de uma ópera que acabou de sair. (A ANGÉLICA, entregando um papel) Aqui está sua parte.

Angelica - Minha?

CLEANTO (Baixo, para ela) - não recuse. Vou explicar tudo. (Alto) Eu não tenho boa voz para o

canto, mas confio na vontade geral, pois vou cantar apenas para me fazer ouvir.

ARGAN - são bonitos os versos?

CLEANTO-Trata-se de uma pequena ópera improvisada e o que vão ouvir é uma prosa cadenciada,

de versos livres, próprios da paixão e da necessidade que duas pessoas tem para falar de si

mesmas com espontaneidade.

ARGAN- muito bem. Estamos prontos.

CLEANTO (Apaixonado, vai explicar à amada seu amor e em seguida os dois cantam) - O tema é o

seguinte:um pastor estava atento a um espetáculo que acabava de começar, quando ouviu um

barulho ao seu lado. Ele se volta e vê um sujeito bruto que maltratava, com palavras agressivas,

uma pastora. Imediatamente ele tomou o partido do sexo feminino, a quem todos os homens devem

homenagens e depois de ter dado ao sujeito o castigo merecido pela insolência, aproxima-se da

pastora e nota que, dos olhos mais bonitos que jamais vira antes, caíam as mais lindas lágrimas do

mundo. Quem,ele pensou, seria capaz de ofender uma pessoa tão maravilhosa? Que ser

humano,por mais grosseiro,não ficaria tocado por aquelas lágrimas? Ele decide parar aquelas

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lágrimas tão lindas e a doce pastora trata de agradecer, o que fez de um jeito tão delicado e

encantador que o pastor não resistiu, e cada palavra, cada olhar penetravam como chama no seu

coração. Ah, que favores ele não faria, e a perigos não se exporia, para conquistar a comovente

doçura de alguém como ela? Não prestou a menor atenção ao espetáculo que lastimou fosse tão

curto, pois terminando teria que se separar de sua adorável pastora.E desse primeiro encontro ele se

apaixonou violentamente, sentido as dores da ausência e o tormento de não ver a amada. Faz tudo

o que pode para rever, mas é impossível entrar na prisão onde encerram sua pastora. A violência de

sua paixão faz com que ele resolva pedir em casamento a maravilhosa criatura, sem a qual ele não

pode viver, e ela consente, escrevendo um bilhete.Ao mesmo tempo, alguém o avisa que o pai da

moça tinha resolvido casa-la com outro, e que tudo estava pronto para a cerimônia. Imaginem o

golpe cruel no coração do triste pastor. Não consegue suportar a horrenda idéia de ver aquela que

ama nos braços de outro e, desesperado de amor, encontra um jeito de entrar na casa da pastora

para saber o que ela sentia e como devia proceder. Tudo estava pronto e ele assiste chegar o

terrível rival que, por capricho do pai, ia separá-lo do seu amor. Vê o ridículo rival triunfante ao lado

da pastora querida, e aquela visão enche-o de tanta raiva que ele mal consegue se conter. O

respeito e a presença do pai o impedem de agir a ele se limita a se comunicar com a amada através

de dolorosos olhares. Finalmente, vencendo todos os medos, ele acaba falando assim:

(Cleanto canta)- Bela Filis, tanto sofrer é um desatino.

Quebre esse cruel silêncio, deixe o coração dizer

O meu verdadeiro destino:

Devo viver? Devo morrer?

ANGÉLICA (responde cantando)-Tão triste estou, Tircis, não respiro.

Às vésperas deste casamento infeliz,

Olho para o céu, para ti, e suspiro:

É só o que meu coração diz.

ARGAN- E eu que não sabia que minha filha fosse capaz de cantar de improviso, sem a menor

hesitação.

CLEANTO-Entao, minha bela Filis,

Será que o apaixonado Tircis

Merece o alento

De um lugar no seu pensamento?

ANGÉLICA – É grande a minha dor, não vou negar: Só a ti, Tircis, eu posso amar.

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CLEANTO – Não se engana o meu ouvido? Eu sou realmente querido? Repita, Filis, senão duvido.

ANGÉLICA – Sim, Tircis, eu te amo.

CLEANTO- De novo, Filis, eu te peço.

ANGÉLICA – Eu te amo.

CLEANTO – Diga cem vezes.Não pare nunca.

ANGÉLICA – Eu te amo, eu te amo, Tircis, eu te amo.

CLEANTO – Nem deuses, nem reis, com o mundo aos pés, podem se comparar a minha felicidade.

Mas... Filis, um pensamento vem atrapalhar tanta alegria: Um rival. Um rival.

ANGÉLICA – Ah... Eu o odeio mais que a morte. E a sua presença, tanto quanto a você, é para mim

um cruel suplício.

CLEANTO – Mas um pai quer submete-la aos seus desejos.

ANGÉLICA- Antes, antes morrer que aceitar. Antes, antes morrer, antes morrer.

ARGAN – E o que diz o pai de tudo isso?

CLEANTO – Ele não diz nada.

ARGAN – Pois é um pai estúpido, um pai capaz de suportar todas as besteiras sem dizer nada.

CLEANTO – Ah... meu amor

ARGAN- Não, não já chega. Essa peça é um péssimo exemplo. O pastor Tircis é um insolente e a

pastora Filis é uma atrevida ao falar assim diante de seu pai. Mostre-me esse papel. Ha, ha, há...

Onde estão escritas as palavras? Vejo apenas notas musicais.

CLEANTO- É que o senhor talvez não saiba que há pouco tempo inventou-se um jeito de escrever

palavras junto com as notas.

ARGAN- Está certo. Até logo, então.Podíamos muito bem ter passado sem essa ópera impertinente.

CLEANTO – Pensei que ia se divertir.

ARGAN – Besteiras não divertem ninguém. Aí vem minha mulher.

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TERCEIRO ATO

CENA I

Beralda e Nieta

NIETA- Não abandone o assunto da sua sobrinha, por favor.

BERALDA – Vou fazer tudo o que puder.

NIETA – Precisamos impedir esse casamento absurdo que ele inventou, e eu pensei que seria,

talvez, uma boa idéia mandar vir um médico, disposto a entrar no nosso jogo, para desmoralizar o

Dr. Purgan. E como não conhecemos ninguém, resolvi dar um jeito eu mesma.

BERALDA – Como?

NIETA – Um faz de conta divertido. Confie em mim e vá agindo pelo seu lado. Aí vem ele.

CENA II

Argan e Beralda

BERALDA – Precisamos conversar meu irmão, mas, antes de mais nada, deve me prometer que

não vai ficar nervoso.

ARGAN – Prometo.

BERALDA- Nem fica nervoso com as coisas que eu disser.

ARGAN – Certo.

BERALDA – E raciocinar junto comigo sobre os negócios que devemos discutir, calmamente.

ARGAN – Está bem. Para que tanto preâmbulo, meu deus!

BERALDA – Não consigo entender por que um homem rico como você, que tem uma única filha,

pois Luisinha ainda não interessa, resolve colocá-la num convento. De onde tirou isso?

ARGAN – Não acha que sou o dono da casa e posso fazer o que eu quiser?

BERALDA – Sua mulher vive aconselhando você a se livrar de sua filha, e não duvido nem um

pouco, não mesmo, que, por espírito de caridade, ela ficasse contentíssima se ela fosse religiosa.

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ARGAN – Esse assunto de novo! Sempre a pobre da minha mulher, no meio de tudo, sendo

acusada de todos os males.

BERALDA – Não, não. Ela está fora disso. É uma das mais bem intencionadas mulheres do mundo.

Em relação a ela, nenhuma dúvida a respeito. Falemos de Angélica. Qual é a sua intenção em

querer casá-la com o filho de um médico?

ARGAN – A intenção de me dar o genro de que eu preciso.

BERALDA – Mas o marido é para ela ou para você?

ARGAN – Para nós dois. Quero alguém na família que seja útil para mim.

BERALDA – Pensando desse jeito, quando Luís for grande você vai querer que se case com um

farmacêutica.

ARGAN – E por que não?

BERALDA – É possível que você queira se enganado a vida toda pelos seus farmacêuticos e

médicos e que deseje ser doente, a despeito da sua natureza?

ARGAN – o que está insinuando, Beralda?

BERALDA – Que não existe homem menos doente do que você, e que eu gostaria de ter uma

constituição física igual a sua. O sinal de que você está bem e que goza de excelente saúde é que,

apesar de tudo o que faz e dos remédios que toma, não conseguiu estragar o perfeito equilíbrio do

seu corpo.

ARGAN – Você sabe que o Dr. Purgan disse que eu morreria se ele parasse três dias de tomar

conta de mim?

BERALDA - Se você não prestar atenção, vai acabar morrendo de tanta tomação de conta.

ARGAN – Mas pense um pouco, Beralda, você acredita ou não acredita na medicina?

BERALDA – Não, meu irmão, e não vejo por que devemos acreditar nela para ter saúde.

ARGAN – Você desconfia de uma coisa em que todo mundo acredita e que é respeitada há

séculos?

BERALDA – Não só desconfio como, aqui entre nós, acho uma das maiores loucuras dos homens.

Não há nada mais engraçado, nem mais ridículo, do que um homem pretendendo curar outro.

ARGAN – E por que um homem não pode curar outro?

BERALDA – Simplesmente, meu irmão, porque até hoje são desconhecidos os mecanismos da

máquina humana, e a natureza nos colocou diante dos olhos vendas muito espessas para conhecê-

los.

ARGAN – Então você acha que os médicos não sabem nada?

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BERALDA – Exatamente. A maioria conhece bastante literatura, sabe falar um belo de um latim,

sabe o nome grego das doenças, as definições, as divisões, mas curá-las, isso eles não conseguem.

ARGAN – Em matéria de medicina, eles abem mais que todos.

BERALDA – Saber, eles sabem, curar é que são elas.

ARGAN – Mas, enfim, meu irmão, existem pessoas tão inteligentes e tão espertas quanto você que

na hora da doença procuram os médicos.

BERALDA – O que revela a franqueza humana e não a verdade da medicina.

ARGAN – No entanto, é preciso que os médicos, eles próprios, acreditem na arte da medicina, pois

devem se servir dela para eles mesmos.

BERALDA – D. Purgan, por exemplo, não há duvida, é um homem que acredita nas regras da

medicina, receita purgantes e sangrias, sem medir as conseqüências. Mas não queira mal a ele por

tudo o que possa fazer: é com a maior boa-fé do mundo que ele mata você, a mulher e os filhos

dele, e a ele mesmo, se for o caso.

ARGAN – Desde criança você não simpatiza com ele, meu irmão. Mas, enfim, vamos aos fatos: que

fazer quando se está doente?

BERALDA – nada.

ARGAN – Nada?

BERALDA – Nada. Basta ficar de repouso. A natureza, ela mesma, se a deixarmos, põe tudo,

vagarosamente, em ordem. Nossa aflição, nossa impaciência é que nos estragam, e quase todo

mundo morre dos remédios e não das doenças.

ARGAN – Quer dizer que você é dono de toda a ciência do mundo e que sabe mais do que os

grandes médicos do nosso século?

BERALDA – Esses grandes médicos são uma pessoa na teoria e outra na prática; falando são

hábeis, agindo, são os mais ignorantes dos homens.

ARGAN – Ah... Sei. Pelo que estou vendo, você é um grande doutor, e eu adoraria que estivesse

aqui algum médico para rebater seus argumentos e fazer você meter a viola no saco.

(esta parte em verde dependerá do tempo do espetáculo)

BERALDA – Ora, meu irmão, eu não pretendo combater a medicina e cada um, por sua conta e

risco, que acredite no que quiser. Falo com liberdade, aqui entre nós, e se quiser se divertir um

pouco vá ver uma comédia de Moliére sobre o assunto.

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ARGAN – é um impertinente, esse Moliére, com as comédias engraçadas em que zomba de

pessoas honestas comoso médicos.

BERALDA – Não é dos médicos que ele zomba, mas daquilo que a medicina tem de ridículo.

ARGAN – É problema dele se envolver com a medicina. Um tolo, um atrevido, caçoando das

consultas e das receitas, atacando profissionais e pondo no palco gente respeitável como os

médicos.

BERALDA – Do que você gostaria que ele tratasse, senão das diversas profissões dos homens? O

teatro sempre tratou de reis e príncipes, que são de tão boa família quanto os médicos.

ARGAN – Se eu fosse médico e ele ficasse doente, eu me vingaria de sua insolência deixando-o

morrer sem socorro. Podia por a boca no mundo que eu não receitaria uma sangria, nem lavagem,

coisa nenhuma, e ainda diria: “Pode gritar à vontade, isso é para aprender a não zombar da

faculdade”.

BERALDA – Você está furioso com ele?

ARGAN – Estou. É um sujeito abusado e se os médicos são inteligentes farão o que eu disse.

BERALDA – Ele será mais inteligente que os médicos, pois não pedirá nenhum socorro.

ARGAN – Pior para ele, se não puder recorrer aos médicos.

BERALDA – Vamos mudar de assunto, meu irmão. Eu queria pedir para você não tomar resoluções

tão drásticas, como enfiar a sua filha num convento. Você escolheu cegamente um genro e é

preciso, sobre isso, sentir um pouco as inclinações de ANGÉLICA, pois delas dependem um

casamento que deve durar a vida inteira.

CENA III

Enfermeiras (uma seringa na mão), Argan e Beralda.

ARGAN – Ah, com licença, Beralda.

BERALDA – Como, o que vai fazer?

ARGAN – Tomar uma lavagenzinha. É rápido.

BERALDA – Você está brincando. Será que não pode passar um momento sem lavagens ou

remédios? Deixe isso pra depois e fique em repouso.

ARGAN – Então, Sr. Flores, até a noite ou amanhã de manhã.

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ENFERMEIRA (a Beralda) – Por que o senhor é contra as receitas médicas e quer impedir meu caro

cliente de tomar meu clister? Que audácia!

BERALDA – Vamos, Sr. Flores, está se vendo que não está acostumado a falar francamente.

ENFERMEIRA – Não se deve brincar com remédios nem me fazer perder tempo. Venho aqui por

prescrição médica e vou dizer ao Dr. Purgan que me impediram de executar suas ordens e cumprir

minhas funções. Vai ver só. (Sai)

ARGAN – Ah, meu irmão, você ainda vai me causar uma desgraça.

BERALDA – A desgraça de não tomar a lavagem que o Dr. Purgan receitou. Será possível que você

não possa se curar dessa doença de medicina, e deixar de passar a vida a engolir remédios?

ARGAN – Você fala como um homem saudável, Beralda. Se estivesse no meu lugar, mudaria de

refrão. É cômodo falar contra a medicina, quando se tem boa saúde.

BERALDA – Mas o que você tem?

ARGAN – Você quer me deixar louco, é? Eu queria que você sofresse o que sofro para ver se ia

criticar tanto. Aí está o Dr. Purgan.

CENA IV

Dr. Purgan, Argan e Nieta.

DR. PURGAN – Acabaram de me contar, na porta, que fazem pouco das minhas receitas aqui, e que

recusam o remédio que prescrevi.

ARGAN – Não foi bem assim, Dr. Purgan.

DR. PURGAN – É uma audácia enorme, um a estranha rebelião de um doente contra seu médico.

NIETA – Isso é surpreendente.

DR. PURGAN – Um clister que tive o prazer de preparar eu mesmo...

ARGAN – Não fui eu...

DR. PURGAN – Inventado e composto dentro das normas da arte.

NIETA – Ele está certo.

DR. PURGAN – E que devia fazer um efeito maravilhoso nos intestinos.

ARGAN – Meu irmão...

DR. PURGAN – Enviá-lo de volta com desprezo.

ARGAN – Foi ele...

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DR. PURGAN – Um gesto absurdo.

NIETA – Ah, isso é.

DR. PURGAN – Um atentado contra a medicina.

ARGAN – Foi por causa...

DR. PURGAN – Um crime de lesa-faculdade.

NIETA – Tem toda a razão.

DR. PURGAN – Declaro que rompo relações com essa espécie de paciente.

ARGAN – Foi meu irmão...

DR. PURGAN – E que, para terminar toda e qualquer ligação, eis o dote que eu daria ao meu

sobrinho pelo casamento. (Rasga-o, violento)

ARGAN – Foi meu irmão o culpado.

DR. PURGAN – Desprezar meu clister.

ARGAN – Faça-o voltar, que eu tomo.

DR. PURGAN – Faltava tão pouco para eu curá-lo.

NIETA – Ele não merece isso.

DR. PURGAN – Eu ia limpar seu corpo e fazê-lo evacuar completamente sua bílis amarga.

ARGAN – Ah, meu irmão.

DR. PURGAN – Faltava umas doze doses, se tanto.

NIETA – Ele é indigno de seus cuidados.

DR. PURGAN – Mas, já que não quer se curar pelas minhas mãos...

ARGAN – A culpa não é minha.

DR. PURGAN – Já que resolveu desobedecer às ordens de seu médico...

NIETA – Pode vingar-se.

DR. PURGAN – Já que se revoltou contra meus remédios...

ARGAN – Não, de jeito nenhum.

DR. PURGAN – Devo dizer que eu abandono à sua má constituição, aos problemas de seus

intestinos, à corrupção de seu sangue e às agruras de sua bílis.

NIETA – Bem feito.

ARGAN – Ah, meu Deus!

DR. PURGAN – Antes de quatro dias seu estado será incurável!

ARGAN – Por favor.

DR. PURGAN – Vai cair na bradipepsia.

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ARGAN - DR. PURGAN.

DR. PURGAN – Da bradipepsia, na dispepsia.

ARGAN - DR. PURGAN.

DR. PURGAN – Da dispepsia, na apepsia.

ARGAN - DR. PURGAN

DR. PURGAN – Da apepsia na diarreia.

ARGAN - DR. PURGAN.

DR. PURGAN – Da diarréia, na disenteria.

ARGAN - DR. PURGAN.

DR. PURGAN – Da desinteria, na hidropisia.

ARGAN - DR. PURGAN.

DR. PURGAN – E da hidropisia, na privação da vida, que é aonde vai levar essa sua loucura.

(Nieta sai com Dr. Purgan)

CENA V

Argan e Beralda

ARGAN - Ah! Meu Deus, estou morto. Você me levou à desgraça, mano.

BERALDA - O que é que há?

ARGAN - Não aguento mais. Sinto que a medicina se vinga.

BERALDA - Minha vez de dizer que você está louco, e eu não gostaria, por várias razões, que

alguém visse você assim. Controle-se, caia em si e não dê tanta trela à imaginação.

ARGAN - Você viu as horríveis doenças com que ele me ameaçou.

BERALDA - Não seja ingênuo.

ARGAN - Vou ser um doente incurável antes de quatro dias.

BERALDA - Quem é ele para falar dessas coisas, um oráculo? Até parece que o Dr. Purgan tem o

dom de dar e tirar a vida de alguém. A vida é sua e a irritação do Dr. Purgan é menos capaz de

matar do que os remédios que ele receita. É a hora, se você quiser, de dispensar os médicos, ou, se

for incapaz de passar sem eles, de arranjar outro, que o faça correr menos riscos.

ARGAN - Ah, meu irmão, ele conhece minha constituição, e a maneira de dominá-la.

BERALDA - Devo admitir que você é um homem cheio de problemas e muito esquisito.

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CENA VI

Nieta, Argan e Beralda

NIETA - Patrão, está aí um médico.

ARGAN - Que médico?

NIETA - Um médico da medicina.

ARGAN - Estou perguntando quem é ele.

NIETA - Não conheço. Mas ele se parece tanto comigo que, se eu não tivesse certeza de que minha

mãe era uma mulher honesta, eu diria que ela me deu um irmão, depois da morte de meu pai.

ARGAN - Que entre.

BERALDA - Você é bem servido. Sai um médico, entra outro.

ARGAN - Só espero que você não atrapalhe.

BERALDA - Outra vez? Você é reincidente.

ARGAN - Tenho tantas doenças que eu não conheço.

CENA VII

Nieta, Argan e Beralda

NIETA (Vestida de médico) - Senhor, aceite minha visita e os pequenos serviços que eu possa fazer

para sangrias e purgantes de que precisar.

ARGAN - Agradeço muito, doutor. Puxa, parece a própria Nieta.

NIETA - Peço que me desculpe um momento, esqueci de dar uma ordem ao meu ajudante, volto

num minuto.

ARGAN - Você não diria, Beralda, que é a Nieta? A própria?

BERALDA - Realmente, a semelhança é enorme, mas não é a primeira vez que se sabe desse

gênero de coisas, as histórias estão cheias de acasos da natureza.

ARGAN - Para mim... Estou tão chocado.

CENA VIII

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Nieta, Argan e Beralda

NIETA (Trocou de roupa tão rápido que é difícil de acreditar que foi ela que apareceu de médico) -

Precisa de alguma coisa, patrão?

ARGAN - Como?

NIETA - Não me chamou?

ARGAN - Eu? Não.

NIETA - Então meus ouvidos me enganaram.

ARGAN - Fique um pouco aqui para ver como o médico parece com você.

NIETA (Saindo) - Imagine. Tenho muito o que fazer lá dentro e já o vi bastante.

ARGAN - Se eu não tivesse visto os dois, pensaria que são um só.

BERALDA - Andei lendo coisas surpreendentes de casos de semelhança e há pouco tempo soube

de um, onde todo mundo se enganou.

ARGAN - Eu podia me enganar e jurar que ela e ele são a mesma pessoa.

CENA IX

Nieta, Argan e Beralda

NIETA (Novamente vestida de médico) - Desculpe, senhor.

ARGAN - É incrível.

NIETA - Não me leve a mal, por favor. A curiosidade que tive de ver um doente tão ilustre e de tão

famosa reputação explica a liberdade que tomei...

ARGAN - Ora, doutor.

NIETA - Vejo, senhor, que me olha fixamente. Que idade me dá?

ARGAN - Uns vinte e seis ou vinte e sete anos.

NIETA - Ha, ha, ha. Tenho noventa.

ARGAN - Noventa anos?

NIETA - Sim, senhor, o que está vendo é o segredo de minha arte, que me conserva assim jovem e

vigoroso.

ARGAN - Inacreditável. Um jovem velho de noventa anos.

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NIETA - Sou um médico ambulante, que vai de cidade em cidade, procurar doenças à altura de

minha capacidade, para encontrar doentes dignos dos meus cuidados, capazes de testar alguns dos

grandes segredos que eu descobri na medicina. As pequenas doenças comuns, essas porcarias de

reumatismo, inchaço, febre, probleminhas no baço, fígado, e de dor de cabeça, eu desprezo. Quero

moléstias importantes, grandes febres constantes, com delírios, pestes, hidropsias bem formadas,

pleurisias com inflamações no peito. É isso que me agrada, é nisso que eu tenho sucesso. E eu

gostaria, senhor, que tivesse todas as doenças que acabei de dizer, que fosse abandonado por

todos os médicos, que estivesse desesperado, agonizando, para mostrar a excelência dos meus

remédios,e o meu desejo de prestar serviços.

ARGAN – Agradeço muito sua atenção.

NIETA – Me dê seu pulso. Vamos ver se ele bate como deve. Vou cuidar de tudo. Ui,este pulso é

atrevido.Vejo que não me conhece ainda.Quem é o seu médico?

ARGAN– Dr.Purgan

NIETA– Nunca vi o nome dele nas minhas listas dos grandes médicos. Que doença ele

diagnosticou?

ARGAN– Ele diz que sofro do fígado; outros disseram que é do baço.

NIETA– São todos uns ignorantes. É do pulmão que está doente.

ARGAN– Pulmão?

NIETA– Extamente.O que o senhor sente?

ARGAN– Tenho dor de cabeça de vez em quando.

NIETA– Certo.Pulmão.

ARGAN– Parece,às vezes,que tenho um véu diante dos olhos.

NIETA– Pulmão.

ARGAN–E palpitação.

NIETA– Pulmão.

ARGAN– Moleza nos braços e nas pernas.

NIETA– Pulmão.

ARGAN– Dores na barriga,como se tivesse cólicas.

NIETA– Pulmão.E seu apetite,é bom?

ARGAN–É.

NIETA–O pulmão.Gosta de beber um pouco de vinho?

ARGAN– Gosto.

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NIETA–O pulmão. Tem sono depois das refeições e tira uma soneca?

ARGAN– Sim,senhor.

NIETA–O pulmão. O pulmão,repito.Que alimentação seu médico recomendou?

ARGAN– Sopas.

NIETA– Ignorante.

ARGAN– Aves.

NIETA– Ignorante.

ARGAN– Vitela.

NIETA– Ignorante.

ARGAN– Caldos.

NIETA– Ignorante.

ARGAN– Ovos frescos.

NIETA– Ignorante.

ARGAN– À noite, ameixa preta para soltar os intestinos.

NIETA– Ignorante.

ARGAN– E acima de tudo, beber meu vinho com bastante água.

NIETA– Ignorantus, ignoranta, ignorantum. É preciso beber vinho puro e,para fortalecer o

sangue,que é muito fino,como grossos bifes de carne,queijos,arroz,castanhas e muita massa para

colar e grudar tudo.Seu médico é uma besta.Vou mandar um aqui da minha confiança,e enquanto eu

estiver na cidade,venho vê-lo algumas vezes…

ARGAN– Muitíssimo obrigado.

NIETA– Mas o que fez com esse braço?

ARGAN– Quê?

NIETA– Se eu fosso o senhor, mandaria cortá-lo.

ARGAN– E por quê?

NIETA– Não imagina que ele tira para si toda a alimentação e que impede o outro de aproveitá-la

também?

ARGAN– Eu preciso do meu braço.

NIETA–O olho direito,eu o arrancaria se estivesse no seu lugar.

ARGAN– Arrancar um olho?

NIETA– Incomoda o outro.Siga meu conselho,mande arrancá-lo o quanto antes,vai enxergar melhor

do olho esquerdo.

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ARGAN– Não é urgente, não é?

NIETA– Adeus, meu caro. Sinto muito deixá-lo tão cedo,mas devo ir para uma importante consulta

de um homem que morreu ontem.

ARGAN– Um homem que morreu ontem?

NIETA– É. Saber o que deveria ter sido feito para que ele não morresse. Até logo.( Sai ).

ARGAN– O senhor sabe que os doentes não acompanham ninguém.

BERALDA– Eis um médico que me pareceu capaz.

ARGAN– É.Mas um pouco apressado para o meu gosto.

BERALDA– Todos os médicos são assim.

ARGAN– Cortar um braço,arrancar um olho,para que o outro funcione melhor.Prefiro que funcione

mal.Que bela coisa me deixar caolho e maneta.

CENA X

Nieta, Argan e Beralda

NIETA (Falando da porta,como se se dirigisse a alguém) - vamos, vamos. Não tenho a menor

vontade de rir.

ARGAN– O que há?

NIETA– Seu médico queria pegar no meu pulso.

ARGAN– Vejam só. Noventa anos.

BERALDA– É verdade. Mas meu irmão,já que o Dr.Purgan rompeu com você,não quer que eu fale

um pouco de um partido para minha sobrinha?

ARGAN– Não, Beralda. Quero que ela entre para um convento, já que se opôs às minha vontades.

Estou farto de saber que ela tem um namorado e descobri um encontro secreto que ninguém sabe

que eu sei.

BERALDA – Então, mano,quando há pelo menos uma pequena inclinação,não há nada de

criminoso, nem ofensivo,pois a intenção é um honesto casamento.

ARGAN– Seja o que for, a decisão está tomada: ela vai ser religiosa.

BERALDA– Você está querendo agradar alguém.

ARGAN– Isso de novo. Você sempre volta à minha mulher/

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BERALDA– Vamos falar claramente, meu irmão. Não suporto mas a obsessão que você tem por ela

e pela medicina,nem a maneira como cai nas armadilhas que sua mulher trama.

NIETA– Ah,senhor,não fale mal da patroa. É uma mulher sofre quem não se pode dizer nada,uma

mulher sem artifícios e que ama o patrão.Ah…como ela o ama…não se pode dizer nada contra ela.

ARGAN– Pergunte como ela é carinhosa comigo.

NIETA–É verdade.

ARGAN– Fica tão aflita com as minhas doenças.

NIETA– Ah,isso é.

ARGAN- Os cuidados,os sacrifícios que faz por mim…

NIETA–Nem diga. (Para Beralda) Gostaria que eu convencesse e fizesse ver,daqui a pouco,como a

patroa ama o patrão?

(Para ARGAN) Patrãozinho, permita que eu mostre que ele está errado.

ARGAN–Como?

NIETA–A patroa vai voltar logo.Deite nessa cadeira e finja que está morto.Vai ver o sofrimento dela

quando eu der a notícia.

ARGAN-Conte comigo.

NIETA (Para Beralda)–Esconda-se naquele canto ali.

ARGAN–Será que não há nenhum perigo de a gente se fingir de morto?

NIETA–Não,não.Que perigo haveria? Vamos nos divertir com a cara de bobo que seu irmão vai ficar.

Aí vem a patroa. Não se mexa.

CENA XI

Belinha, Nieta, Argan e Beralda

NIETA- Meu Deus, que desgraça, que acidente horrível!

BELINHA- Que foi, Nieta?

NIETA-Ah, patroa.

BELINHA- Que aconteceu?

NIETA- Seu marido está morto.

BELINHA- Meu marido, morto?

Niet- Infelizmente. O pobre defunto está mortinho.

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BELINHA- Tem certeza? Nieta- Absoluta. Ninguém sabe ainda, eu estava aqui sozinha. Ele acaba

de morrer nos meus braços. Veja como ele está duro na cadeira.

BELINHA- O céu seja louvado. Me livrou de um fardo bem pesado. Você é uma boba de se afligir

com essa morte.

NIETA- Eu pensei que era para chorar, patroa.

BELINHA- Ora, não vale a pena. O que se perde com ele, para que servia ele nesta vida? Um

homem que foi incômodo para todo mundo, sujo, nojento, sempre com lavagens e remédios, se

assoando, tossindo, escarrando, sem graça, chato, mal-humorado, cansando as pessoas, brigando

dia e noite com os empregados.

NIETA- Eis uma bela oração fúnebre.

BELINHA- Nieta, você precisa me ajudar e pode ter certeza de que, me ajudando, vai ser

recompensada.

BERALDA (Saindo do esconderijo)- Viu, meu irmão? Eu avisei. Palavra de honra que eu nunca ia

acreditar nisso. Mas ouço sua filha, que vem vindo. Repita a coisa e vamos ver de que maneira ela

recebe sua morte. Não custa experimentar. E, já que está no palco, conhecerá os sentimentos da

família.

BERALDA ( Gritando) – Minha mãe do céu, que desgraça. Que dia maldito.

ANGÉLICA- Que você tem, NIETA, por que está chorando?

BERALDA- Infelizmente, tenho más notícias.

ANGÉLICA- Quais?

BERALDA- Seu pai está morto.

ANGÉLICA- Meu pai? Morto?

BERALDA- É ele está ali. Acabou e morrer.

ANGÉLICA- Que falta de sorte. Que golpe cruel. Perdi meu pai, a única pessoa que tinha nesse

mundo, e o pior é que morreu zangado comigo. O que vai ser de mim, meu Deus? Como posso me

consolar de uma perda tão grande?

BELINHA - Já que, felizmente, ninguém sabe da coisa, vamos levá-lo para a cama e esconder essa

morte até que eu termine o que eu tenho para fazer. Há papéis e dinheiro que eu devo pegar, pois

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não é justo que tenha passado ao lado dele os melhores anos de minha vida, sem ganhar nada.

Venha, NIETA, vamos pegar logo as chaves com dele.

ARGAN (Levantando-se bruscamente)- Calma. Calminha.

BELINHA (Surpresa)- Ui.

Aragn- Então, minha mulherzinha, é assim que me ama?

NIETA- Ih, o defunto não está morto.

ARGAN (A BELINHA, que sai)- Estou satisfeito com a amizade e o belo discurso que fez sobre mim.

Eis uma lição que não vou esquecer no futuro, e que vai me impedir de fazer muitas coisas.

ARGAN (Levantando-se) – Minha filhinha.

ANGÉLICA (Surpresa) - Que é isso!

ARGAN- Você é meu sangue verdadeiro, minha filhinha, fico contente que seja tão boa.

ANGÉLICA- Que surpresa, papai. E já que, graças a Deus, você está aqui, me ajoelho para suplicar

uma coisa. Se não concorda com os sentimentos do meu coração, e quiser recusar CLEANTO como

meu marido, pelo menos peço que não me force a casar com outro. É só isso que eu peço.

CLEANTO (Pondo-se de joelhos)-Por favor, senhor, sensibilize-se com os pedidos ela e meus. Não

se ponha contra os anseios de dois corações apaixonados.

BERALDA- meu irmão, você ainda está contra?

NIETA- Patrão, quem pode ser insensível diante de tanto amor?

ARGAN- Se ele se formar em medicina eu concordo com o casamento. É, se você se tornar médico,

eu dou minha filha.

CLEANTO- Com prazer. Se basta isso para ser seu genro, vou ser médico ou farmacêutico, o que

quiser. Nenhum problema. Eu faria qualquer coisa para ter ANGÉLICA.

BERALDA- Meu irmão, tive uma idéia. Estude medicina você mesmo. Vai ser muito mais cômodo

você mesmo fazer tudo o que precisa.

NIETA- É verdade. O melhor caminho para sarar logo, pois não há doença que brinque com médico.

ARGAN- Você está caçoando de mim, mano. Eu lá estou na idade de estudar?

BERALDA- Estudar! Você sabe bastante. Há muito médico que não sabe tanto quanto você.

ARGAN- Mas é necessário falar latim e conhecer as doenças e os remédios.

BERALDA- Recebendo a toga e o diploma de médico, você aprende tudo e será mais capaz do que

pensa.

ARGAN- O quê! A gente conhece as doenças só porque tem diploma?

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BERALDA- Exatamente. Com ele, qualquer bobagem vai saber.

NIETA- Deixe crescer a barba, patrão. Com barba já é mais que meio médico.

CLEANTO- Em todo caso, estou pronto.

BERALDA- Você quer que se faça a formatura daqui a pouco?

ARGAN- Como, agora?

BERALDA- Claro. Aqui na sua casa. Umas amigas minhas conhecem uma Faculdade que pode vir

fazer a cerimônia nesta sala. Não vai custar nada.

ARGAN- Mas e eu, o que devo dizer? O que me respondo se fizerem perguntas?

BERALDA- Você vai receber instruções, em duas palavras e, por escrito, o que deve dizer. Vá

vestir uma roupa decente, vá.

NIETA- Que idéia é esta?

BERALDA- Divertir a gente um pouco, esta noite. Uns atores fizeram uma brincadeira sobre a

formatura de um médico. Muita dança e música. Vamos nos divertir juntos. O mano fará o papel

principal.

ANGÉLICA- Mas, titio, você não está zombando do papai, não?

BERALDA- Ora, Angélica estou apenas ajudando as fantasias dele. Que tudo fique entre nós, que

podemos, inclusive, representar alguns personagens e participar como atores. O carnaval autoriza

isso. Vamos preparar as coisas, rápido.

CLEANTO- ( Para Angélica)- E você, concorda?

ANGÉLICA- Claro. Se o titio nos dirigir.

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QUARTO ATO

(Uma CENA burlesca, de coração de grau de um médico. Assembléia composta de porta-seringas,

farmacêuticos, doutores. Argan, vestido com a toga)

Medicinae professores,

Aqui estamos reunidos

Para receber um novo confrade

Que, pela prática e longevidade,

Não precisou cursar Faculdade. Carissimi colegas presentes,

por príncipes e reis admirados,

devemos examinar o bacharelando e saber se pode

participar

do nosso magnífico corpo docente.

È para isso que convocatti estis:

Dono at interrogandum et a fundo examinandum

In suas capacitalibus.

PRIMEIRO DOUTOR- Se mihi licentiam dat

Et tanti docti doctores

El assistenti ilustres,

Muito sábio bacharel,

Que estimo e venero,

Opinium faz dormire

Domando qual La causis et rationis?

ARGAN- Mihi docto doctore,

Domandatur causa et rationem

Opium facit dormire? Respondo que est do opium da sua própia natura

A virtude de fare dormire.

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CORO- Muito bem, muito bem, muito bem, Respondeu o douto paciente.

Dignus, dignus est intrare no nosso corpo docente.

SEGUNDO DOUTOR- Com a permissão de todos os presentes, giostaria de perguntar as douto

bacharel, quae sunt remédio, quae in doença dita hidropisia, convenit facere.

ARGAN- Clysterium donare, depois sangrare e logo purgare.

CORO- Muito bem, muito bem, muito bem, Respondeu o douto paciente.

Dignus, dignus est intrare no nosso corpo docente.

TERCEIRO DOUTOR- Doctissimi Facultatem et toda compania escutantem pergunto ao distinto

bacharel: in grande febrem, com dolorem cabecis, et pumonicis, ataque asmatiquis, et dificultatis

respirares; que cosa facere?

ARGAN- Clysterium donare, depois sangrare e logo purgare.

CORO- Muito bem, muito bem, muito bem, Respondeu o douto paciente.

Dignus, dignus est intrare no nosso corpo docente.

QUARTO DOUTOR- E se a doença teimosa não quiser sangrare e logo purgare. Quid illi facere?

ARGAN- Clysterium donare, depois sangrare e logo purgare.

REITOR- Jura guardare statuta per Facultatem prescrita com sensu e julgamento?

ARGAN- Juro.

REITOR- Jura consultationibus i mais velhi?

ARGAN- Juro.

REITOR- Jura de non jamais se servir de nenhum remédio não indicado pela Faculdade?

ARGAN- Juro.

REITOR- Jura deixar que os doentes morram de suas doenças?

ARGAN- Juro.

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REITOR- Eu, com este diploma venerabili e docto, dou e concedo virtutem et poder medicandi

purgandi sangrandi cortandi et matandi impune per totam terram.

CORO- Et vivat, vivat, cem vezes vivat, novus doctor que tão bem parlat mil, mil anos vivat per

sempre matat.