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ISSN 1415-4765 TEXTO PARA DISCUSSÃO N o 933 “SAÚDE: CAPACIDADE DE LUTA” - A EXPERIÊNCIA DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE Frederico Augusto Barbosa da Silva Luiz Eduardo de Lacerda Abreu Brasília, dezembro de 2002

TEXTO PARA DISCUSSÃO No 933 - en.ipea.gov.br · ISSN 1415 -4765 Governo Federal Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Ministro – Guilherme Gomes Dias Secretário-Executivo

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ISSN 1415-4765

TEXTO PARA DISCUSSÃO No 933

“SAÚDE: CAPACIDADE DE LUTA” −

A EXPERIÊNCIA DO CONSELHO

NACIONAL DE SAÚDE

Frederico Augusto Barbosa da Silva Luiz Eduardo de Lacerda Abreu

Brasília, dezembro de 2002

ISSN 1415-4765

TEXTO PARA DISCUSSÃO No 933

“SAÚDE: CAPACIDADE DE LUTA” −

A EXPERIÊNCIA DO CONSELHO

NACIONAL DE SAÚDE *

Frederico Augusto Barbosa da Silva ** Luiz Eduardo de Lacerda Abreu ***

Brasília, dezembro de 2002

* Este trabalho é parte da pesquisa “O Sistema de Saúde Brasileiro: Organização, Estratégias e Tendências” financiada com recursos do Programa Rede-Ipea. ** Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. *** Consultor da Diretoria de Estudos Sociais do Ipea.

ISSN 1415-4765

Governo Federal

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

Ministro – Guilherme Gomes Dias Secretário-Executivo – Simão Cirineu Dias Fundação pública vinculada ao Ministério

do Planejamento, Orçamento e Gestão, o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a

formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro –, e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e

estudos realizados por seus técnicos.

Presidente Roberto Borges Martins

Chefe de Gabinete Luis Fernando de Lara Resende

Diretor de Estudos Macroeconômicos Eustáquio José Reis

Diretor de Estudos Regionais e Urbanos Gustavo Maia Gomes

Diretor de Administração e Finanças Hubimaier Cantuária Santiago

Diretor de Estudos Setoriais Luís Fernando Tironi

Diretor de Cooperação e Desenvolvimento Murilo Lôbo

Diretor de Estudos Sociais Ricardo Paes de Barros

TEXTO PARA DISCUSSÃO

Publicação cujo objetivo é divulgar resultados de estudos direta ou indiretamente desenvolvidos pelo Ipea, bem como trabalhos que, por sua relevância, levam informações para profissionais especializados e estabelecem um espaço para sugestões.

As opiniões emitidas nesta publicação são de

exclusiva e de inteira responsabilidade dos autores, não

exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou o

do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele

contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para

fins comerciais são proibidas.

Esta publicação contou com o apoio financeiro do

Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, via

Programa Rede de Pesquisa e Desenvolvimento de

Políticas Públicas – Rede -Ipea, o qual é operacionaliza-

do pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvol-

vimento – Pnud, por meio do Projeto BRA/97/013.

SUMÁRIO

SINOPSE

ABSTRACT

1 INTRODUÇÃO 7

2 O OBJETO DESTA PESQUISA: O CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS) 7

3 AS COMPETÊNCIAS INSTITUCIONAIS 10

4 COMPARAÇÃO DOS RESULTADOS ANALÍTICOS COM OS DADOS EMPÍRICOS 16

5 A NORMA E A AÇÃO, O TÉCNICO E O POLÍTICO 18

6 O CONSELHO 22

7 O PLENÁRIO 22

8 AS DECLARAÇÕES 26

9 AS COMISSÕES 31

10 OS CONSELHEIROS 34

11 A FRAGMENTAÇÃO E A COLONIZAÇÃO 37

ANEXO I 40

ANEXO II 43

12 CONCLUSÕES 52

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 54

SINOPSE

A Constituição Brasileira de 1988 criou conselhos em quase todas as áreas da administração federal. A idéia do legislador era promover a participação popular na elaboração de políticas públicas. Após 24 anos de regime militar autoritário e de res-trições da liberdade, a idéia de participação ressurgiu na agenda política. Durante os últimos 14 anos, os conselhos vêm mudando a idéia de que é simples a promoção de uma cultura democrática dentro da realidade política da luta diária por recursos go-vernamentais. Esse trabalho trata do papel desempenhado pelo Conselho Nacional de Saúde Pública, considerado o mais influente e o mais bem-sucedido conselho jamais criado. Do ponto de vista antropológico e microssociológico, pode-se fazer a seguinte pergunta: como foi possível ao conselho influenciar a elaboração de políticas públicas apesar da resistência burocrática e política ?

ABSTRACT

The Brazilian Constitution of 1988 has created federal councils in order to promote popular participation in public policies. After 24 years of authoritarian military government and imposed freedom restrictions, the ideal of popular participation resurge in the political agenda. For the past 14 years however, the Councils have been changing the naïve ideal that democratic administration might promote a democratic culture into the political reality of daily struggle for governmental resources. This paper addresses the role played by the National Public Health Council wich can be considered as the most influential and successf ul Council ever created. From an anthropological and micro-sociological approach, the following question could be asked: how has the Council been able to influence public policy in spite of bureaucratic and political resistance?

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1 INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 consagrou em diversos capítulos da “ordem social” o prin-cípio da participação da sociedade civil na gestão de políticas públicas – especial-mente nas chamadas políticas sociais. O art. 193 trata dos princípios gerais da segu-ridade social, define de forma mais explícita a participação, com menção direta aos “trabalhadores, empresários e aposentados”. No art.198 trata das ações e serviços públicos de saúde; a diretriz geral é “participação da comunidade”. O 204, das a-ções governamentais na área da assistência social, estabelece a “participação da po-pulação por meio de organizações representativas na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. A regulamentação deste princípio, por nor-mas infraconstitucionais, privilegiou a criação de várias estruturas, ao estilo de con-selhos de Estado. Cada uma das áreas, em razão das dinâmicas próprias, estruturou seus conselhos de forma particular.

Decorridos mais de dez anos da promulgação da Constituição, pouco se sabe e-fetivamente, baseado em observações sistemáticas, da eficácia e efetividade da partici-pação; e, menos ainda, sobre o papel dos conselhos no planejamento e gestão das políticas sociais. Este documento examina o Conselho Nacional de Saúde e faz parte de um esforço coletivo de suprir esta lacuna. Cumpre uma primeira etapa cujos obje-tivos são predominantemente descritivos. Acredita-se que sugestões de caráter propo-sitivos dependem de uma segunda etapa, estruturada na comparação dos resultados de outras pesquisas.

2 O OBJETO DESTA PESQUISA: O CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS)

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) foi constituído na década de 1930, e a sua história mostra que o papel que ele desempenhou não dependeu somente da sua composição e atribuições formais, senão foi o resultado do ambiente sócio-político no qual estava inserido (ver Anexo II). As transformações ocorridas nesse longo período, muitas vezes, não foram fruto apenas do planejamento governamental, mas o resulta-do da luta e do conflito internos à própria burocracia do Estado, luta e conflito de resultados imprevisíveis do ponto de vista dos seus atores. A partir dos anos 1990, na esteira das mudanças introduzidas pela Constituição de 1988, mas implementadas sobretudo a partir da Lei no 8.142, de 28/12/1990 − lei que reparou vetos do Execu-tivo à Lei no 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde), considerada a “principal lei da parti-cipação social na saúde”−, o CNS tornou-se um ponto estratégico da formulação das políticas e da tomada de decisões. As estruturas de participação e representação tradu-zidas no Conselho introduziram alterações no padrão de deliberação e resolução de conflitos. Valores como democracia e participação agora são parâmetros de medida e parte das lutas setoriais.

Hoje, o Conselho Nacional de Saúde é considerado um “caso paradigmático” de conselho bem-sucedido. Teve um papel decisivo, por exemplo, na vinculação dos

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recursos para o SUS e na negociação da Programação Pactuada e Integrada e das Normas Operacionais.

No caso da Emenda Constitucional que vinculou recursos federais, estaduais e municipais para o SUS, sua aprovação foi considerada uma “vitória” do então minis-tro da Saúde, José Serra. Mesmo porque, segundo o senso comum político da época, ele não contou com a ajuda do Palácio do Planalto nem dos líderes dos outros parti-dos da base aliada; pelo menos é o que afirmam jornais e políticos. Se uma parte desta “vitória” pode ser creditada à habilidade pessoal do ministro, uma boa parcela do mérito, às vezes não reconhecida, deve ser creditada à atuação do Conselho. Os con-selheiros mobilizaram recursos políticos dos mais variados, desde a amizade pessoal, baseada em longas relações políticas, de trabalho e convivência, até vinculações com outros atores institucionais, como a igreja.

Já os Planos de Pactuação Integrada e as Normas Operacionais têm papel fun-damental no sistema de saúde. São instrumentos de operacionalização da Lei no 8.080/90 e Lei no 8.142/90, que dispõem sobre a participação social na gestão do SUS como também transferências de recursos financeiros entre os níveis de governo. As Normas Operacionais vieram da Previdência Social, mais exatamente do extinto Inamps. Eram normas anuais marcadas pela centralização característica da Previdên-cia Social. Tais normas, depois das reformulações do sistema de saúde do início dos anos 1990, são em número de cinco: NOB-SUS 01/91, NOB-SUS 01/92, NOB-SUS 01/93, e NOB-SUS 01/96. Em 2001 foi aprovada a NOB-SUS 01/2001 e está em discussão a NOB- Recursos Humanos.

A NOB-SUS 01/91 é constituída por um conjunto de portarias da Secretaria Nacional de Assistência à Saúde (SNAS/MS) e pela Resolução no 258 (aprovada pelo presidente do INAMPS). As portarias criaram o SIH/SUS, e o SIA/SUS, como ma-neira de normatizar pagamentos a prestadores. Definiram tetos de AIH e UCA a se-rem distribuídos aos estados. Os critérios, muitos deles de fato não operacionalizados, incluíram aspectos populacionais ajustados por capacidade, desempenho da rede e série histórica de custeio. Os pagamentos por serviços ou procedimentos deveriam ser apenas um dos critérios das transferências.

A NOB-SUS 01/93 regulamentou as Leis no 8.080/90 e 8.142/90 e se baseou no documento Descentralização das Ações e Serviços de Saúde: a Ousadia de Cum-prir e Fazer Cumprir a Lei. Esse documento foi aprovado pelo CNS em abril de 1993. A NOB criou as condições de gestão incipiente, semiplena e plena. Instituiu formas de repasses regulares e automáticas do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para os fundos de Saúde estaduais, municipais e do Distrito Federal. A maior parte dos municípios permaneceu como prestador de serviços. Essa norma não tinha defini-ções sobre vigilância sanitária, epidemiológica e de endemias. Também não estimu-lava mudanças no modelo de atenção.

A NOB-SUS 01/961 foi citada nas entrevistas como “a mais debatida e democrá-tica”. A Portaria MS no 1.742, de agosto de 1996, estabeleceu essa norma. Ela criou a Gestão Plena de Atenção Básica e Gestão Plena do Sistema Municipal. Estabeleceu vários tetos financeiros e várias modalidades de transferências de recursos. Pressupôs

1. Os comentários aqui são baseados nas entrevistas e no livro de Monteiro de Andrade (2001).

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processo ascendente de pactuação: os valores referentes a tetos, pisos, frações, índices (e sua revisão) são definidos com base no PPI, negociados nas CIB e CIT, formaliza-dos por atos dos gestores estadual e federal. São aprovadas previamente nos Conselhos.

Monteiro de Andrade (2001) sintetizou o papel e importância das Normas Ope-racionais Básicas no contexto do financiamento no quadro seguinte.

Quadro 1 Quadro Análise Comparativa entre as NOBs 01/91, 01/93 e 01/96 no Contexto do Financiamento para o Setor Saúde

Itens NOB 91 NOB 93 NOB 96

Internações hospitalares 10% da população dos

estados

10% da população dos

estados

9% da população dos estados

Atendimento ambulatorial UCA UCA PAB + Alta e média complexidade pela

capacidade instalada

Transferências fundo a fundo Não Sim – municípios na

gestão semiplena

Sim – PAB e gestão plena do sistema

Vigilância epidemiológica Não Não Sim

Vigilância sanitária Não Não Sim

Vigilância de endemias Não Não Sim

Município como prestador Sim Sim Sim

Município como gestor Não Semiplena Procedimentos básicos ou gestão plena

do sistema

Instrumento convenial Sim Não Não

Incentivo à inversão do modelo assistencial

Não Não Sim (Programa Agentes Comunitários e Programa Saúde da Família)

Em suma, as Normas Operacionais criaram diversos mecanismos para a descen-tralização, redefiniram as responsabilidades dos municípios na provisão da atenção básica e assistencial, definiram critérios de regionalização da gestão e transferência de recursos para estados e municípios.2

Se é tomado como ponto de partida o fato que, de alguma forma, o CNS teve um papel no desenho de importantes políticas públicas como nos exemplos citados, então um exame mais detalhado do Conselho pode nos ajudar a responder três perguntas mais gerais: qual pode ser o papel de um órgão colegiado no desenho das políticas pú-blicas? Como se deu essa influência? Quais são os seus mecanismos?

A primeira hipótese, a mais imediata, é que sua importância deriva das atri-buições formais, das suas competências institucionais. Este é o ponto de partida da nossa invés-tigação. Os dados empíricos, no entanto, vão forçar a reformulá-la, como veremos adiante.

2. Ver a respeito em: Boletim de Políticas Sociais (2001 e 2002).

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3 AS COMPETÊNCIAS INSTITUCIONAIS

CLASSIFICAÇÃO FORMAL DAS COMPETÊNCIAS INSTITUCIONAIS

O Conselho Nacional de Saúde atualmente é regido pela Resolução no 291, de 06/05/1999, que estabeleceu o Regimento Interno do Conselho. O regimento, por sua vez, define as funções dos membros do Conselho; repete as competências que foram estabelecidas por lei; e regulamenta o processo de deliberação das reuniões ple-nárias, das comissões e grupos de trabalho. A seguir, as competências estabelecidas no seu artigo 3o (os negritos são nossos):

Legislação 1 − Competências do Conselho, art. 3o da Resolução no 291, de 06/05/1999

Atuar na formulação e no controle da execução da Política Nacional de Saúde, inclusive nos seus aspectos econômicos e financeiros, e nas estratégias para sua aplica-ção aos setores público e privado;

Deliberar sobre os modelos de atenção à saúde da população e de gestão do Sis-tema Único de Saúde;

Estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração de planos de saúde do Sistema Único de Saúde, no âmbito nacional, em função dos princípios que o regem e de acordo com as características epidemiológicas e das organizações dos serviços em cada jurisdição administrativa (Lei no 8.080/90);

Participar da regulação e do controle social do setor privado da área de saúde (Lei no 8.080/90);

Propor prioridades, métodos e estratégias para a formação e educação continua-da dos recursos humanos do Sistema Único de Saúde (Lei no 8.080/90);

Aprovar a proposta setorial da saúde, no Orçamento Geral da União e participar da consolidação do Orçamento da Seguridade Social, após análise anual dos planos de metas, compatibilizando-o com os planos de metas previamente aprovados;

Criar, coordenar e supervisionar Comissões Intersetoriais e outras que julgar necessárias, inclusive Grupos de Trabalho, integradas pelos ministérios e órgãos com-petentes e por entidades representativas da sociedade civil (Lei no 8.080/90) ;

Deliberar sobre propostas de normas básicas nacionais para operacionalização do Sistema Único de Saúde;

Estabelecer diretrizes gerais e aprovar parâmetros nacionais quanto à política de recursos humanos para a saúde;

Definir diretrizes e fiscalizar a movimentação e aplicação dos recursos financei-ros do Sistema Único de Saúde, no âmbito Federal (Leis no 8.080/90 e 8.142/90);

Aprovar a organização e as normas de funcionamento das Conferências Nacio-nais de Saúde reunidas, ordinariamente, a cada 4 (quatro) anos, e convocá-las, extra-ordinariamente, na forma prevista pela Lei no 8.142/90;

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Aprovar os critérios para o repasse de recursos às unidades federadas e a outras instituições e respectivo cronograma e acompanhar sua execução;

Aprovar os critérios e valores para remuneração de serviços e os parâmetros de cobertura assistencial conforme art. 26, da Lei no 8.080/90;

Incrementar e aperfeiçoar o relacionamento sistemático com os poderes consti-tuídos, Ministério Público, Congresso Nacional e mídia, bem como com setores rele-vantes não representados no Conselho;

Articular-se com outros conselhos setoriais com o propósito de cooperação mú-tua e de estabelecimento de estratégias comuns para o fortalecimento do sistema de participação e controle social;

Acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnoló-gica na área de saúde, visando à observação de padrões éticos compatíveis com o de-senvolvimento sociocultural do país;

Deliberar sobre a necessidade social de novos cursos de nível superior na área da saúde e cooperar na melhoria da qualidade da formação dos trabalhadores da saúde;

Opinar e decidir sobre impasses ocorridos nos Conselhos Estaduais e Muni-cipais de Saúde, neste último caso, após ouvida a instância estadual na co ndição de instância recursal;

Desenvolver normas sobre ética em pesquisas envolvendo seres humanos e ou-tras questões no campo da Bioética e acompanhar sua implementação;

Definir diretrizes gerais para a participação dos diversos provedores no Sis-tema Único de Saúde;

Regulamentar as especializações na forma de treinamento em serviço sob super-visão (Lei no 8.080/90);

Solicitar ao Ministro da Saúde a substituição do Coordenador Geral da Secreta-ria Executiva, diante de situações que a justifiquem, por deliberação da maioria abso-luta do Plenário do CNS;

Articular e apoiar, sistematicamente, os Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde visando à formulação e realização de diretrizes básicas comuns e a conseqüente potencialização do exercício das suas atribuições legais;

Divulgar suas ações através dos diversos mecanismos de comunicação social;

Manifestar-se sobre todos os assuntos de sua competência.

Nas 25 alíneas anteriores, observa-se a repetição de um pequeno grupo de verbos (todos em negrito), que separamos em 6 grupos. Cada conjunto foi organizado a par-tir da proximidade semântica. A idéia é que cada grupo de palavras tem mais seme-lhanças entre si do que com as palavras dos outros grupos.

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Quadro 2 Classificação em Grupos dos Verbos Utilizados no art. 3o da Resolução no 291, de 06/05/1999

Grupo 1 Estabelecer, definir, regulamentar, decidir. O Conselho exerce um poder normativo sobre algo. Sua ação não depen-de de outros atores ou instituições.

Grupo 2 Aprovar. O Conselho aceita ou não alguma coisa que não foi proposta ou criada por ele. Mas sua aprovação tem um efeito normativo.

Grupo 3 Criar, coordenar, supervisionar, desenvolver, convocar. São ações que dependem exclusivamente da iniciativa e da competência do Conselho e envolvem algo cuja implementação depende diretamente dele.

Grupo 4 Atuar, participar, articular, acompanhar, incrementar, aperfeiçoar, apoiar, compatibilizar, fiscalizar, cooperar. Existe algo que já acontece, independentemente do Conselho, mas que, de alguma forma, lhe diz respeito e no qual é possível interferir.

Grupo 5 Propor, opinar, solicitar. O Conselho pede ou propõe algo cuja decisão e realização depende da ação de um outro.

Grupo 6 Deliberar, manifestar, divulgar. Todos os verbos supõem que o Conselho constrói opiniões que podem ser entendidas como institucionais.

Estes seis grupos poderiam, por sua vez, ser agrupados em três classes, quais sejam:

Quadro 3 Classes dos Grupos de Verbos do art. 3o da Resolução no 291, de 06/05/1999

Normativos Estabelecer, definir, regulamentar… (grupo 1) e aprovar (grupo 2) têm relação com a norma escrita, com a lei, no seguinte sentido: cabe ao Conselho produzir ou aprovar regras formais que serão aplicadas ao sistema de saúde.

Executivos Criar, coordenar, supervisionar, desenvolver… (grupo 3) e atuar, participar, articular, acompanhar… (grupo 4) estão vinculados à execução de algo, no qual o Conselho exerce − ou poderia exercer − um papel.

Exortativos Propor, opinar, solicitar (grupo 5) e deliberar, manifestar, divulgar (grupo 6) contêm a idéia de que há algo que o Conselho não regulamenta, não executa e não participa. No entanto, ele pode, de alguma forma, estabelecer uma posição, criar opinião, sugerir a realização de algo.

Os verbos implicam tipos de ação diferentes, e estes tipos, por sua vez, têm con-teúdos distintos. É possível classificá-los em conteúdos mais fortes e mais fracos. Estas duas idéias são auto-referenciadas, quer dizer, algo só pode ser fraco em face de algo que é forte e vice-versa.

Porém, não é possível aplicar essas idéias de forma consistente sem sabermos mais do funcionamento da administração pública. Na realidade, precisa-se das se-guintes informações contextuais: (i) o Conselho não possui uma burocracia capaz de implementar políticas públicas; sua burocracia presta-se à administração interna e para auxiliar as comissões e o plenário do Conselho; (ii) na administração pública, todo ato do agente público deve estar baseado nas normas legais. Não cabe aqui exa-minar pormenorizadamente o edifício valorativo, conceitual, teórico e pragmático que está vinculado e justifica o princípio. Basta apenas mencionar que, tendo em vista que o Conselho tem, como atribuição, estabelecer regras ou princípios formais para a gestão do sistema de saúde, ele tem uma grande possibilidade de influenciar o próprio sistema. O agente público se vê obrigado a justificar suas ações pelas regras formais, algumas delas elaboradas pelo Conselho; e (iii) O Ministério da Saúde não é um todo homogêneo que age mecanicamente, como um organismo, à ordem ou à regra vinda

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de cima. É, ao contrário, um co njunto de posições institucionais, cujos ocupantes competem entre si por recursos, atribuições e visibilidade. Estes ocupantes, por sua vez, estabelecem alianças e se organizam em grupos informais para competir com outros grupos.

Ter-se-ia, então, o seguinte:

Os normativos são mais fortes que os executivos e mais fortes que os exortativos;

Os executivos são mais fortes que os exortativos;

O seis grupos poderiam, também, ser divididos em duas categorias: os grupos de verbos que não dependem de outros atores institucionais e aqueles que dependem. Assim, os grupos 1 e 3 não dependem de outros atores; enquanto os grupos 2, 4, 5 e 6 dependem. Se aceitarmos que as atribuições que não dependem dos outros são mais fortes, teríamos, também, o seguinte:

Entre os normativos, o grupo 1 é mais forte que o 2.

Entre os executivos, o grupo 3 é mais forte que o 4.

Entre os exortativos, o grupo 5 é mais forte que o 6 (decorrência: propor ou pe-dir implica, diretamente, a realização ou não de uma ação por outros; deliberar, ma-nifestar e divulgar, não).

As relações citadas não são contudo suficientes. Referem-se tão-somente aos ver-bos. É preciso fazer classificação semelhante para o conteúdo semântico das compe-tências, aquilo ao qual se referem.

Apesar do grande número de competências, podem-se agrupá-las segundo o mesmo critério utilizado anteriormente, qual seja: as competências do mesmo grupo têm mais semelhanças entre si que com as competências dos outros grupos. Teríamos, então, os oito grupos a seguir.

Quadro 4 Classificação em Grupos das Competências do Conselho Nacional de Saúde, segundo o art. 3o da Resolução no 291, de 06/05/1999

Grupo A Recursos. Nesta categoria, classificam-se todas as competências que diretamente versem sobre os recursos públicos, dos critérios

de repasses até os valores pagos pelos procedimentos.

Grupo B Sistema. As competências que não versem sobre os recursos e que digam respeito diretamente à forma de funcionamento ou gestão do Sistema de Saúde.

Grupo C Recursos Humanos. As competências que se referem aos recursos humanos.

Grupo D Ética. Competências relacionadas com a observação ou desenvolvimento de princípios e regulamentos éticos.

Grupo E Articulação. As competências que versem sobre articulação do CNS com outras instituições e/ou agentes, sejam da adminis-

tração pública ou entidades da sociedade civil ou mesmo particulares.

Grupo F Conferência Nacional. A competência que estabelece o papel do CNS nas Conferências Nacionais de Saúde. Nas Conferên-cias estão presentes um grande número de instituições estatais e representantes da sociedade civil.

Grupo G Comunicação. As competências que se refiram exclusivamente à opinião do Conselho.

Grupo H Organização Interna. Embora, intuitivamente, se possa dizer que o CNS precisa se organizar, somente uma competência estab e-lecida na Resolução n o 291, de 06/05/1999 trata do assunto. Ela estabelece a possibilidade de o plenário do CNS pedir ao

Ministro da Saúde a substituição do coordenador do CNS.

Seria possível, como no caso anterior, juntar estes grupos em três classes.

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Quadro 5 Classes de Grupos de Competências do Conselho Nacional de Saúde, segundo o art. 3 o da Resolução n o 291, de 6/5/1999

Sistema Aqueles que têm relação com o funcionamento do sistema (grupos A, B, C, D)

Outros atores Aqueles que visem sobre as relações do CNS com outras entidades, órgãos, instituições ou particulares

(grupos E, F, G)

Conselho Aquele que se refere à organização interna (grupo H)

Novamente, para classificar as atribuições em fortes ou fracas segundo o seu con-teúdo semântico, precisa-se ainda das seguintes informações contextuais, além das citadas: (iv) na administração pública, o capital político mais precioso é a capacidade de influir na distribuição dos recursos públicos, “quem decide sobre o dinheiro é quem tem poder”. E (v) até hoje o plenário não pediu a substituição do coordenador do Conselho. Com isso poder-se-ia afirmar também o que segue.

As atribuições que têm relação com o funcionamento do sistema são mais fortes que as que não têm; afinal, este é o objeto primeiro do CNS.

As atribuições que versam sobre as relações do CNS com outras entidades são mais fortes que as que se referem à organização interna, porque a capacidade do CNS em influenciar o aparelho de Estado depende mais da sua posição frente aos outros atores institucionais.

Entre as atribuições que dizem respeito ao funcionamento do sistema, o grupo A (recursos) é mais forte que os demais. O grupo B (sistema) é mais forte que os grupos C (recursos humanos) e D (ética), uma vez que se refere de maneira mais direta ao funcionamento do sistema. E o grupo C é mais forte que o D, porque, intuitivamen-te, se diria que a qualidade do profissional de saúde influencia mais diretamente o funcionamento do sistema que a discussão e/ou o desenvolvimento da ética na pes-quisa e na aplicação tecnológica.

Entre as atribuições que versam sobre a relação do Conselho com outras entidades, o grupo E (articulação) é mais forte que o F (Conferência Nacional de Saúde) e o G (comunicação), pois a articulação é uma tarefa cotidiana e constante que tem uma grande importância na efetividade das decisões do Conselho. O grupo F é mais forte que o G, uma vez que as Conferências Nacionais de Saúde são marcos históricos im-portantes de onde saem princípios e diretrizes que serão aplicadas no sistema de saúde; princípios que surgem de um amplo debate entre os diversos segmentos envolvidos.

A partir destas considerações, pode-se montar o quadro seguinte, classificando as atribuições das mais fortes às mais fracas.

Nas colunas, à esquerda estão os verbos mais fortes. Nas linhas, os conteúdos mais fortes estão no alto. Entre parênteses, as competências que possuem verbos de diferentes grupos.

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Quadro 6 A Força das Competências Institucionais do Conselho Nacional de Saúde Normativos Executivos Exortativos

Grupo 1 (estabelecer…)

Grupo 2 (aprovar)

Grupo 3 (criar…)

Grupo 4 (atuar…)

Grupo 5 (propor…)

Grupo 6 (deliberar…)

Grupo A (recursos)

(X) (VI), (XII), XIII

I, (VI), (X), (XII)

Grupo B (sistema)

III, XX IV II, VIII

Grupo C (RH)

(IX), (XVII), XXI (IX) (XVII) V

Sistema

Grupo D (ética)

(XIX) XVI, (XIX)

Grupo E (articulação)

(XVIII) VII XIV, XV, XXIII

(XVIII)

Grupo F (conferência)

(XI) (XI)

Outros atores

Grupo G (comunicação)

XXIV, XXV

Conselho Grupo H (organização interna)

XXII

O quadro anterior poderia ser reduzido, numericamente, no quadro a seguir.

Quadro 7 Quantidade de Atribuições por Classe

Normativos Executivos Exortativos

Sistema 10 9 3

Outros atores 2 5 3

Conselho 0 0 1

O quadro 6 parece reforçar a classificação da força das atribuições, se for consi-derado que uma finalidade maior de atribuições corresponde à importância do seu conteúdo. Na classe “Sistema”, muitas atribuições têm, ao mesmo tempo, caráter normativo e executivo e estão concentradas nos grupos A (recursos) e C (recursos humanos); essa concentração pode ser explicada pela importância respectiva desses grupos em matérias estratégicas para o sistema de saúde. Por essa razão não basta ape-nas estabelecer diretrizes ou princípios ou mesmo aprovar os valores de procedimen-tos, é necessário também, de alguma forma, acompanhar a execução dessas decisões. O Grupo B, por sua vez, não apresenta redundâncias, e suas atribuições são distribuí-das de maneira mais homogênea (duas normativas, uma executiva e duas exortativas).

Na classe “Outros Atores”, não faz muito sentido atribuições normativas, uma vez que o Conselho não tem poder efetivo para submeter outros atores às suas deli-berações. As duas atribuições normativas dizem respeito à Conferência Nacional de Saúde (alínea XI) e aos outros conselhos (alínea XVII). Quanto ao primeiro, o Con-selho “aprova” as “normas de funcionamento das Conferências Nacionais de Saú-de”. Quanto ao segundo, o Conselho “decide” sobre os “impasses ocorridos nos

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Conselhos Estaduais de Saúde”. Na redação desta competência, o verbo “opinar” vem antes de “decidir”.

Retiradas estas duas, as demais competências são executivas ou exortativas. A di-ferença entre as executivas está na definição dos atores, no caso das alíneas XIV, XV e XXIII. A outra competência executiva (alínea VII) diz respeito às comissões interseto-riais que são “criadas, coordenadas e supervisionadas” pelo Conselho. As exortativas são genéricas o suficiente para permitir quase qualquer coisa: uma diz que o Conselho deve divulgar suas ações em todos os mecanismos possíveis de comunicação social (alínea XXIV); a outra, que o Conselho deve manifestar-se sobre todos os assuntos de sua competência (alínea XXV).

Nas mesmas classes de competências, existem as que se sobrepõem, algumas delas mais gerais, outras mais específicas. Como exemplo, tem-se o grupo A (recursos). A pri-meira atribuição é “atuar na formulação e controle dos aspectos econômicos e financeiros do setor público e privado”. Essa competência se sobrepões às das alíneas VI, X, XII, XII-I, XX. A diferença é que estas últimas são mais detalhadas.

Esta é, no entanto, apenas uma descrição formal das atribuições do Conselho. É preciso compará-las com o seu funcionamento real. Isso leva à seguinte questão: a dis-tinção analítica entre proposições fortes e fracas corresponde ao que, de fato, acontece?

4 COMPARAÇÃO DOS RESULTADOS ANALÍTICOS COM OS DADOS EMPÍRICOS

A título de exemplo, tem-se a alínea no VI (“Aprovar a proposta setorial da saúde, no Orçamento Geral da União e participar da consolidação do Orçamento da Segurida-de Social, após análise anual dos planos de metas, compatibilizando-o com os planos de metas previamente aprovados”). Segundo a classificação anterior, ela seria uma das mais fortes atribuições do Conselho. No entanto, não é o que, de fato, acontece. O trajeto do orçamento envolve a Secretaria de Orçamento Federal (SOF), o Ministério da Saúde e as Unidades Orçamentárias. O fluxo de elaboração é esquematicamente o seguinte: a SOF define diretrizes e estratégias, fixando parâmetros quantitativos e referenciais monetários para a apresentação da proposta setorial (também fixa normas gerais de elaboração orçamentária); o Ministério da Saúde consolida, articula o pro-cesso setorialmente; estabelece diretrizes setoriais, define prioridades de programas e ações, distribui valores dos parâmetros orçamentários; então a envia ao Conselho. O Conselho, por sua vez, sugere modificações e aprova a proposta. A proposta volta ao Ministério da Saúde, que aceita ou não as sugestões. O Ministério da Saúde formaliza a proposta e envia à SOF, que, por sua vez, analisa e ajusta a proposta setorial, depois formaliza a Proposta Orçamentária da União. Do Planejamento, a proposta vai para a Presidência, que decide; volta ao Planejamento, que a consolida e formaliza e é, en-fim, enviada para o Congresso, onde será discutida, emendada e votada.3 O Orça-mento da Saúde pode ser modificado em qualquer dessas etapas. As regras do proces-so de elaboração orçamentária são o limite para as decisões. Definem o papel das ins-tituições e dos atores. Elas são a referência para as negociações. Segundo entrevistas, a 3. Para descrição mais detalhada, ver Manual Técnico do Orçamento, (2001).

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prática no CNS é, por exemplo, “propor um teto de R$ 25 bilhões quando o Plane-jamento já havia estabelecido um teto de R$ 15 bilhões”. A proposição demarca uma posição política, mesmo porque o Ministério “não saberia como gastar mais do que efetivamente gasta”, como disse um conselheiro. A declaração do Conselho, desta forma, investe contra os limites da regra e, paradoxalmente, a confirma.

Os exemplos da Emenda Constitucional e da NOB também mostram os limites da análise citada.

(i) No caso da Emenda Constitucional, o Conselho não aplicou, efetivamente, nenhuma das suas atribuições mais fortes segundo nossa classificação. O Conselho atuou em várias etapas da elaboração da Emenda,4 inclusive apresentou um documen-to à Comissão Especial criada para avaliar a proposta, com a manifestação institucio-nal do Conselho. A atuação do Conselho poderia resultar do conjunto de três compe-tências: as alíneas II (“deliberar sobre os modelos de atenção à saúde da população e de gestão do Sistema Único de Saúde”), XIV (“incrementar e aperfeiçoar o relacio-namento sistemático com os poderes constituídos…”) e XXV (“manifestar-se sobre todos os assuntos de sua competência”).

Cada uma das competências pertence a uma classe de conteúdo diferente. A II per-tence à classe de conteúdo mais forte; mas o seu verbo, ao grupo mais fraco (grupo 6). A XIV pertence à segunda classe de conteúdo (grupo E); e o seu verbo, ao grupo mais fraco da classe dos executivos (grupo 4). A XXV pertence ao mais fraco da segunda classe de conteúdo (grupo G); e o seu verbo, ao mais fraco (grupo 6).

(ii) A atuação do Conselho na formulação das Normas Operacionais está regula-da pela competência da alínea VIII (“deliberar sobre propostas de normas básicas nacionais para operacionalização do Sistema Único de Saúde”) que, como no caso anterior, também é uma competência que não está entre as mais fortes, segundo a classificação dada. Pertence à classe de conteúdo mais forte, ao segundo grupo mais forte (grupo B); mas ao grupo mais fraco da classe mais fraca dos verbos (grupo 6).

Observando as Normas Operacionais mais atentamente, observa-se que elas são capazes de influir decisivamente na gestão do SUS não apenas porque o gestor está obrigado a segui-la, mas também, e provavelmente, porque ela vem associada a con-dicionamentos e sanções. A adesão às diferentes formas de gestão está vinculada a incentivos na forma de recursos adicionais. O não cumprimento de certos procedi-mentos pode resultar na perda desses recursos.

E mais. As Normas Operacionais Básicas (NOB) e as Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS) resultam de extensas discussões e negociações. Embora aconteçam dentro do Conselho, elas contam com a participação de todos os atores institucionais envolvidos, desde órgãos do Ministério da Saúde, até representantes dos estados e municípios (que, aliás, têm representantes no Conselho). É razoável supor que, na medida em que o resultado da negociação seja, senão o consenso, uma solução de compromisso, os agentes envolvidos se disponham mais ativamente a implementá-la.

4. Para uma descrição sintética do processo legislativo envolvido na tramitação de uma emenda constitucional, ver Abreu (2000).

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Nesse caso, portanto, a importância do Conselho no desenho de políticas públicas é, em parte, o resultado das suas competências, mas não decorre inteira-mente delas. É fruto, principalmente, da capacidade de articulação intraburocráti-ca, capaz de sustentar uma vinculação entre diretrizes gerais de atendimento e critérios de repasse de recursos.

A comparação com os exemplos mencionados mostra uma relativa inadequação dos resultados da análise formal. As competências utilizadas pelo Conselho nestes exemplos, nos quais teve um papel decisivo na formulação de políticas públicas, não foram as mais fortes segundo a classificação. Isso resulta na seguinte pergunta: é preciso reformular os critérios utilizados para a força de uma competência?

E a resposta é não, porque os critérios foram elaborados com o objetivo da gene-ralidade, ou seja, para que pudessem ser aplicados à administração pública e aos con-selhos em geral, e não apenas ao Conselho Nacional de Saúde. Desta perspectiva, os critérios continuam parecendo corretos.

O problema está no método. O método analítico utilizado, mesmo com os me-lhores critérios possíveis, tem suas limitações. Pode-se formular o problema da seguin-te maneira: na observação da realidade empírica, sobra um excesso de significação que não pode ser reduzido à análise, aos critérios pelos quais se ordena a força de uma competência. E justamente por causa de sua “relativa” inadequação à realidade empí-rica, a análise formal fornece pistas valiosas sobre a influência do CNS no desenho de políticas públicas; valiosas porque ajudam para que se prossiga com a investigação.

A importância do CNS não deriva das suas competências mais fortes, mas do conjunto: competências mais fortes e específicas alternam-se com competências mais gerais e mais fracas. Como no caso das Normas Operacionais, as mais fracas servem para multiplicar os efeitos de poder das mais fortes, a capacidade de influenciar a ação dos agentes. Em outras palavras, competências mais fortes e mais fracas são comple-mentares: estas multiplicam os efeitos daquelas, e aquelas dão consistência a estas.

Tudo se passa como se as competências do Conselho Nacional de Saúde cons-truíssem, por assim dizer, um campo de ação possível e alguns instrumentos fortes; coisas que o Conselho pode negociar. A questão é, então, quais são as ações que, no âmbito destas competências, conseguem construir uma influência con-sistente no desenho de certas políticas públicas.

É preciso, portanto, reformular a hipótese original. Ela também deve explicar es-se excedente de significado que, por enquanto, localiza-se no domínio da ação. Antes de prosseguir, porém, é preciso examinar uma questão epistemológica, a relação entre a norma e a ação.

5 A NORMA E A AÇÃO, O TÉCNICO E O POLÍTICO

A hipótese original, de certa forma, supunha uma consistência entre a norma escrita e a prática dos agentes que assumiam papéis institucionais, como se uma fosse o reflexo da outra, como se a ação fosse a projeção num outro material daquilo que diz a regra.

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A suposição é, em si mesma, problemática. É preciso saber se ela se confirma empiricamente. Em outras palavras, é examinado agora não mais a pertinência dos critérios de classificação nem os limites do método, mas o princípio gnosiológico no qual se funda.

O exemplo aqui é a distinção entre o técnico e o político e traz uma vantagem adicional. Um dos problemas com os quais nos deparamos desde o início da pesquisa era justamente a questão: o Conselho é um órgão técnico ou político? A discussão a seguir mostra que esta questão não faz sentido.

“Uma decisão técnica” significa uma decisão isenta, com base em critérios de efi-ciência e racionalidade ou, no caso de uma decisão normativa, baseada também no critério da legalidade, juridicidade e técnica legal, sugerida por um especialista que conhece a fundo o assunto na teoria e, de preferência, também na prática; em suma, um conhecimento derivado ou colado em critérios científicos, em experiências anteri-ores vistas sobre uma perspectiva sistemática. “Uma decisão política”, por sua vez, significa uma decisão que resulta de um conflito, onde os agentes possuem interesses próprios e no qual sempre está em jogo o domínio e, no limite, o usufruto, para si ou para um grupo, dos bens simbólicos e materiais advindos da instituição política (en-tendida, aqui, no seu sentido weberiano). No entanto, quando aplicada à realidade empírica, esta distinção apresenta problemas.

Um exemplo foi o relatório da execução orçamentária-finaceira do Ministério da Saúde apresentado pelo Sr. Elias Jorge, na Reunião Ordinária de abril/2001. O rela-tório consistia numa descrição sumária sobre a movimentação financeira do Ministé-rio. O assunto é praxe nas reuniões. No entanto, naquele 04 de abril, a leitura do relatório tinha um uso diferente. A questão era a aplicação da Emenda Constitucional no 29, que estabeleceu vinculação de patamares mínimos de aplicação de recursos da União, estados e municípios na manutenção do Sistema Único de Saúde. Isso faz parte de um acirrado debate.

O texto da emenda é o seguinte:

“Legislação 1 Art. 77o da Emenda Constitucional no 9

Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados em ações e serviços públicos serão equivalentes:

I – No caso da União:

• no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento;

• de 2001 ao ano de 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB.”

O objetivo explícito da emenda foi proporcionar maior estabilidade ao financi-amento setorial. No entanto, logo surgiram diferenças na sua interpretação.

A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), no final de 2000, emitiu parecer sobre a aplicação dos critérios de vinculação de recursos. O valor apurado a que se refere a alínea “b” seria o valor calculado na forma da alínea “a” (“o montante

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empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento”). O parecer fixava os montantes mínimos para o exercício 2000 e, depois, bastaria aplicar a variação PIB. (Mais tarde esse ponto seria também objeto de controvérsia; o parecer apenas determinava o ano-base para aplicação do critério, mas não as ações e serviços que compunham o montante).

A Advocacia Geral da União (AGU), por sua vez, emitiu seu parecer em janeiro de 2001. Nele fixavam-se o ano base como 1999 para a aplicação da variação do PIB. A partir daí, o ano 2000, calculado na forma da alínea ‘a’, seria base para reajustes dos orçamentos. O parecer – vê-se – era similar ao da PGFN.

Porém, o Ministério da Saúde, por meio da sua Consultoria Jurídica, interpre-tou diferente. Segundo o Ministério, “o valor apurado no ano anterior” refere-se sempre ao ano imediatamente anterior ao da proposta orçamentária e não a um ano e valor. Para 2002, a base de cálculo para a aplicação da variação nominal do PIB seria o valor empenhado em 2001, computados os acréscimos resultantes da abertura de créditos adicionais. A diferença dessas interpretações representa um valor aproximado de R$ 1,2 bilhão em 2002.

O CNS posicionou-se ao lado do Ministério da Saúde. O Coordenador Adjunto sugeriu os seguintes encaminhamentos, acatados por unanimidade:

a) solicitar pronunciamento de Parlamentares envolvidos na negociação da EC no 29, em especial dos relatores Deputado Federal Ursicino Queiroz e o Senador An-tônio Carlos Valadares sobre a interpretação do Ministério da Fazenda acatada pela Advocacia Geral da União em confronto com a área jurídica do Ministério da Saúde quanto à aplicação da EC no 29 na esfera federal;

b) provocar a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão para que também se pronuncie a respeito;

c) autorizar à Coordenação Geral do CNS e à COFIN/CNS a articulação com parlamentares visando oferecer emendas a LDO/2002 que será encaminhada ao Con-gresso Nacional até 15/04/01;

d) convocar os responsáveis pelos itens orçamentários que apresentam posterga-ção de execução para o final do ano, com a finalidade de explicar ao Plenário do CNS as razões que determinam tal anomalia, bem como alternativas para quebrar o círculo vicioso.5

O exemplo mostra que às declarações, nas quais se inclui a lei, podem ser dados diversos usos. O que, no caso citado, aparentemente, é apenas uma questão técnica; a interpretação “correta” do texto constitucional assume o caráter de luta política por recursos. Esse é um fenômeno geral; não há interpretação técnica sem conseqüências políticas e vice-versa, como disse um dos entrevistados, alguém com larga experiência na administração pública, “eu sempre estou fazendo as duas coisas ao mesmo tempo”.

Isso não significa dizer que “essa é uma decisão técnica” não tenha um uso. Pode servir, por exemplo, para delimitar um espaço de poder; para dizer que o interlocutor

5. Ata da 107a reunião ordinária.

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é incompetente para a discussão; para encerrar uma discussão; para ganhar capital simbólico, etc.

A constatação empírica da diferença entre a norma e a ação que se faz em seu nome, muitas vezes, se exprime como uma condenação moral. Diz-se, por exemplo, que o problema no Brasil é que os indivíduos não seguem as normas como deveriam. As conseqüências disso, completa-se, são nefastas: os indivíduos corrompem a institu-ição, imiscuem nela interesses pessoais. Se todos agissem de acordo com a norma, con-clui-se, a instituição pública conseguiria maximizar a aplicação dos seus recursos, de forma a promover, alcançar o bem para o maior número de pessoas. Desta perspecti-va, seguir as normas favorece a racionalidade da instituição pública como um todo e, portanto, legítima a ação individual. Princípio conhecido como o “princípio da legali-dade” e incorporado na legislação brasileira: frente à lei, o particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe, enquanto o funcionário público deve agir como a lei determina.6

O problema é que a observação empírica mostra que a norma é sempre reinter-pretada em situações concretas e vai ganhando sentidos, usos diferentes.7 Mas é uma característica empírica da própria linguagem: uma palavra, um conceito tem usos diferentes conforme o contexto, servindo a propósitos diversos. E não existe nada em comum em todas as vezes que aplicamos um conceito; mas, sim, uma rede de seme-lhanças que ora se cruzam, ora se justapõem, às vezes semelhanças no conjunto, ou-tras, no detalhe, mais ou menos como as semelhanças entre os membros de uma fa-mília: o nariz de um na face do outro; a cor dos olhos; trejeitos e maneirismos, etc. Mas, mesmo assim, não são essas semelhanças que definem o conceito. O que o defi-ne é o seu uso, quer dizer, como ele é utilizado em contextos específicos.8

Pelo princípio da legalidade, o agente público tem de justificar suas ações pela regra formal, quer dizer, ele deve ser capaz de argumentar que aquela ação específica segue a norma, por tais e quais razões. Este é um dos usos possíveis, um dos mais im-portantes das regras formais. Desta perspectiva, o Conselho Nacional de Saúde deve ser capaz de argumentar que tal ou qual declaração está de acordo com o seu conjun-to de competências. Isto é, se o conjunto de competências estabelece limites à ação do Conselho. Mas, se os limites são dados pela capacidade de o Conselho justificar suas ações pelas suas competências, é preciso ver também que tal capacidade varia confor-me a disposição de outros atores institucionais de aceitar a justificativa.

A proposta epistemológica é ver a legislação como uma forma de linguagem. Isso permite que se examine o resíduo que se encontrou antes. Permite a reformulação de nossa hipótese da seguinte maneira: examinar o uso das competências formais e da legislação que cria, define e institui o CNS. O nosso próximo passo é, então, exami-nar como o Conselho se organiza como instituição, como as normas são reinterpreta-das, resignificadas e recriadas pelas práticas cotidianas e quais os seus usos.

6. Ver Meirelles (1991, p. 78).

7 A relação entre a norma jurídica e a ação dos indivíduos já foi exaustivamente estudada pela antropologia. Ela suscita ques-tões que vão desde a sua inserção no conjunto de bens simbólicos e materiais que, seguindo a tradição sociológica francesa, chamaríamos de “civilização brasileira”, até os princípios metodológicos mais apropriados para lidar com o fenômeno. Contu-do, não é o caso de seguir aqui o debate em todas as suas implicações e desdobramentos. Para o caso brasileiro, entre outros, ver Abreu (2000, p.313-27), Bezerra (1995); Cardoso & Cardoso de Oliveira (1996); Leal (1997); Da Matta (1979). Na antropo-logia jurídica, entre outros, ler Cardoso de Oliveira (1989); Cardoso e Corrêa (1983); Cardoso e Geertz (1983); Moore (1978).

8. Sobre o assunto, ver Wittgenstein (1978) e Parágrafo 35. E (1995). Philosophical investigations.

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6 O CONSELHO

Na descrição do, digamos assim, “esqueleto” de uma organização social (suas posi-ções institucionais e as relações que mantêm entre si), o pesquisador que se co ntenta com a exposição das regras mais formais corre o risco de deixar de lado o compor-tamento real. A suposição de que existe uma correspondência entre a norma escrita e a prática dos agentes é problemática onde quer que se aplique, seja nas competên-cias formais, seja nas regras formais dos procedimentos administrativos. Tanto num quanto noutro caso, encontraríamos o mesmo excedente de significado, porque ele é o resultado da aplicação do mesmo instrumento metodológico.

A solução é nos aproximarmos do que, de fato, fazem as pessoas quando assu-mem as posições institucionais de coordenador geral, conselheiro ou burocrata. Co-mo conseqüência, o relato em questão perde a estrutura formal que adquiriu até este momento e ganha em plasticidade e vividez.

A descrição, daqui em diante, agrupa-se em quatro aspectos empíricos do Conse-lho: o plenário, as declarações, as comissões e os conselheiros.

7 O PLENÁRIO

Como um órgão colegiado, as decisões do Conselho são tomadas em reuniões plená-rias, nas quais, idealmente pelo menos, deveriam participar todos os conselheiros. Ser conselheiro significa ter o direito à palavra e ao voto nas deliberações do CNS. Como se verá adiante, a descrição de uma reunião plenária nos mostra maneiras de agir que têm um caráter típico.

As reuniões plenárias ordinárias, mensais e públicas acontecem, habitualmente, no anexo do Ministério da Saúde, na sala “Conselheiro Omilton Visconde”, e são presididas pelo coordenador geral da Secretaria Executiva do CNS ou seu substituto. A sala é ocupada por uma enorme mesa retangular e, nos dias de reunião, à frente de cada um dos conselheiros, um pedaço de cartolina indica qual organização ela ou ele representa. Atrás dos conselheiros, que sentam à mesa, uma outra fileira de cadeiras, freqüentemente ocupadas, serve à audiência. Durante a sessão plenária, em volta da sala maior, salas menores estão em constante atividade. Em outros períodos, nas salas menores, funcionam grupos de trabalho formados por conselheiros, pela burocracia do CNS e por outros atores ou instituições. Toda reunião obedece a uma pauta pre-viamente acertada. Regimentalmente, a pauta deve ser decidida pelo plenário do Conselho, entretanto o coordenador geral tem grande latitude de decisão e a ajuda de um grupo mais próximo. Claro,“decidir a pauta é poder”.

Na 107a reunião ordinária, entre 04 e 05 de abril de 2001, o coordenador ini-ciou a reunião fazendo inversão e alteração da ordem da pauta. Essa prática é usual; sempre que necessário, o coordenador usa de suas prerrogativas para compatibilizar a pauta do dia com a agenda e disponibilidades dos convidados.

O primeiro item foi o Projeto de Capacitação de Conselheiros de Saúde e Minis-tério Público, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O

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problema foi a seguinte questão formal: o CNS decidiria ou não sobre os instrumen-tos de capacitação? Ele possuía essa prerrogativa? A discussão prosseguiu durante um certo tempo, então alguém “lembrou” que o CNS tem dois representantes no Comitê de Acompanhamento que cuida do projeto de capacitação. Logo em seguida, o secre-tário e uma técnica da Secretaria de Investimentos fal aram pelo Ministério da Saúde. Ressaltaram a importância e as dificuldades do projeto e sugeriram ao Conselho que se manifestasse junto ao BID. A mesa acatou a sugestão.

E o caso é aparentemente simples. Só aparentemente. Tem-se uma descrição de fatos: a discussão foi gravada e, pelo menos parte dela, está registrada em ata. Mas o que isso significa? É justamente o que se perguntam as pessoas que estão em volta da mesa, os conselheiros que participam da reunião, os burocratas que atendem ao con-selho e um ou outro pesquisador que esteja por ali. E o sentido literal das palavras não é necessariamente o que elas significam para estas pessoas que estão em volta da e-nunciação, sejam conselheiros ou burocratas.

A diferença entre o sentido literal das palavras e o que, “de fato”, querem dizer é uma constatação antiga. Uma maneira, um tanto irônica, mas, talvez por isso, mais interessante de expressá-la é utilizando um personagem inusituado, o espião britânico Kim Philby na versão de Ernest Gellner (1995). “[Kim Philby] nota – diz Gellner – que somente um espião ingênuo e inexperiente pensa que conseguiu alguma coisa roubando um documento confidencial de, digamos, uma embaixada estrangeira”. O ponto todo é que esse documento não é por si só inteligível. Por exemplo, “como saber se ele não é o movimento de uma intriga interna, cujo objetivo é provocar uma reação e levar à adoção da perspectiva contrária àquelas advogadas no documento?” O que era realmente importante – segundo Philby na versão de Gellner – era a possibi-lidade de “falar informalmente durante um bom tempo com os membros da embai-xada em questão, de forma a ter uma impressão concreta da maneira como eles habi-tual e naturalmente pensam. Uma vez que isso tenha sido compreendido, torna-se fácil interpretar os menores sinais que não são confidenciais. Sem esse entendimento, sinais, vazamento de informações, documentos são, todos eles, inúteis”.

Na superfície, parece-nos que, na discussão, travava-se o seguinte diálogo: o Conselho estava preocupado com sua participação na definição das regras que a capa-citação dos conselheiros deveria seguir, preocupação representada pela definição dos “instrumentos” (seja lá o que isso signifique). Por outro lado, a Secretaria de Investi-mentos, por meio de um representante, queria o apoio institucional do CNS junto ao BID. Configura-se, aparentemente, uma troca: o Conselho dá apoio à medida que tiver alguma influência no desenho desta política pública. Mas tudo poderia ter um outro sentido, por exemplo, como saber que a discussão não foi, na realidade, uma briga entre grupos mutuamente excludentes? De uma lado, a discussão poderia ter sido provocada justamente para mostrar a fragilidade da posição do Conselho que dava apoio mas não poderia escolher os instrumentos. Nesta linha de raciocínio, as colocações dos conselheiros poderiam ser críticas àqueles que defendiam o apoio, do Conselho, ou seja, tinham uma aliança com aquela Secretaria do Ministério. E elas poderiam significar o seguinte: “não conte comigo”. O fato é que a menção do comi-tê encerrou a discussão. Mas isso não aconteceu necessariamente porque os conselhei-ros tivessem se convencido de alguma coisa. O objetivo da discussão pode ter sido trazer a público a aliança de um grupo rival. E a mesa poderia ter agido desta maneira

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para encerrar a discussão antes que a celeuma tivesse se tornado grande demais para administrar em público ou ter tomado uma posição.

O nosso problema, no entanto, não é, neste momento, o que “de fato” aconte-cia; mas é o sentido da expressão “descrição de fatos” que utilizamos antes. Ela pre-cisa ser revista. Não é suficiente descrever o que aconteceu como se estivesse escre-vendo uma ata com um viés literário. Um conselheiro, um burocrata, um especta-dor ou mesmo um pesquisador diriam: o que “de fato” aconteceu é principalmente o(s) seu(s) significado(s).

Naquele mesmo dia, à tarde, realizou-se um ato pelo dia mundial da saúde cujo tema era: Saúde Mental. O ato servia para expressar o apoio do Conselho à aprovação da Lei Paulo Delgado, que modifica o regime de internação dos doentes mentais. O ato demorou para começar. O ministro não vinha. Enquanto isso, uma conselheira, após discorrer sobre sua história (que se confundia com a história da política de saúde mental) sobre as dificuldades que a envolveram, lamentou emocionada o “descaso” do ministro. Não bastava a presença da assessoria. Ela argumentou, enfática, tampouco a mera assinatura nos documentos legais. Segundo a conselheira, as transformações no campo da saúde mental eram importantes, como era importante o reconhecimento do Conselho, do seu papel nas mudanças institucionais. Num momento destes, o ministro não estava. Será que ele desconhecia a importância do acontecimento?

O ministro, de todo jeito, não compareceu nem à reunião do Conselho nem ao ato pelo Dia Mundial da Saúde. A mesa foi composta, então, pelo Secretário de Assis-tência à Saúde (representante do Ministério), pela OPS e pelo deputado Carlos Mos-coni. Formada a mesa com um representante do ministro, iniciou-se o ato, e o depu-tado relatou o histórico da tramitação do projeto sobre saúde mental do qual foi rela-tor. Os conselheiros discorreram longamente a respeito da importância dos trabalhos da Comissão Intersetorial de Saúde Mental e sobre a III Conferência de Saúde Men-tal. E o Secretário da Secretaria de Assistência à Saúde (SAS) enfatizou a importância da saúde mental como questão e como objeto de política, e comunicou ao plenário do Conselho que a portaria de convocação da III Conferência de Saúde Mental fora assinada pelo ministro.

Ao final da reunião, foram aprovadas quatro recomendações sobre a saúde mental: a) Solicitação de convocação da III Conferência Nacional de Saúde Mental, b) Discussão no MS do seminário técnico promovido pela SAS/SPS-MS, objetivan-do a integração das ações de saúde mental no âmbito do PSF, c) apoio do CNS a um percentual mínimo de 3% do orçamento da saúde para a saúde mental nos três níveis de governo e d) encaminhamento de proposta para que os repasses dessa área fossem feitos fundo a fundo e não pela modalidade convenial. Também foi aprova-da a moção de aplauso para a Lei Paulo Delgado, que trata da mesma questão.

Depois do evento, soube-se que os conselheiros haviam planejado as quatro resolu-ções para enfatizar a importância da Conferência e seu apoio. Uma delas, “a solicitação da convocação da III Conferência Nacional de Saúde Mental”, revelou-se, num certo senti-do, extemporânea; afinal, o Secretário da SAS informou ao Conselho, antes da aprovação das recomendações, que o ministro já havia assinado a convocação da Conferência.

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O “contexto”, digamos assim, institucional era completamente diferente. Na manhã daquele dia, tivemos uma discussão sobre o projeto de capacitação dos con-selheiros; pela tarde, uma solenidade, com a aguardada presença do ministro. Mas num e noutro caso a mesma opacidade se repete. Todo um mundo de acordos, ali-anças, trocas e interesses escapa da nossa observação. Qual o sentido da solenidade? Prestigiar o deputado Carlos Mosconi; ou marcar a aprovação da lei; ou estabelecer a importância do Conselho na discussão do tema; ou enfatizar a legitimidade do Conselho; ou ocupar um espaço político; ou estabelecer e consolidar alianças; ou, talvez, não tenha sido nada disso.

Da mesma forma, podemos nos perguntar: por que o ministro não foi? A praxe, nestes casos, é usar um outro compromisso importantíssimo, inadiável e imprevisto como desculpa. Pode, até mesmo, corresponder à verdade. O problema é que, mesmo sendo verdade, a desculpa estabelece uma ordem de importância das coisas. Assim, algo era mais importante que a reunião do Conselho. Mas talvez não tenha sido isso. A ação do ministro poderia significar, por exemplo, que ele não concorda com a legi-timidade do Conselho. A sua ausência, neste caso, seria mais um movimento da que-da-de-braços que ministro e Conselho freqüentemente travam entre si; conflito enfa-tizado pelas entrevistas com conselheiros e com a burocracia do Conselho.

Aliás, a presença do ministro é um assunto controverso. Em algumas das entre-vistas, os conselheiros disseram que “alguns ministros não vão ao Conselho” e não recebem o coordenador. A explicação: “o ministro não sabe dividir poder”. Em outros casos, diziam o contrário. “Não precisa ir [o ministro]. Até atrapalha, porque ele é executivo. Os conselheiros não ficam à vontade… e também pra que ir? Para ser criti-cado?” Claro, a discussão supõe sessões plenárias, digamos assim, “comuns”. Não é o caso daquela tarde, quando se encenava uma cerimônia.

Três conclusões são possíveis a partir dos dados anteriores. i) A opacidade daqui-lo que se diz equivale à existência de dois planos empíricos: um, o plano do discurso público, do enunciado literal; o outro, o plano da interpretação, do que tudo aquilo, “de fato”, significa. Geralmente entende-se que aquilo que se pode ver ou ouvir é, em grande medida, conseqüência do que não vemos, do que “de fato” acontece. E a situ-ação se complica ante a possibilidade empírica de um mesmo fenômeno ter diversos significados, o que equivaleria a dizer que tem vários usos e causas. ii) O plano da interpretação é a tentativa de, partindo do discurso público, chegar aos bastidores, às relações de tensão, aliança, competição e conflito que se “escondem” por detrás da representação pública.

Mas aí nos deparamos com um problema metodológico: os bastidores. Este é um aspecto do fenômeno empírico, via de regra, inacessível ao pesquisador. Fato explicável, por outro dado empírico: o segredo é parte importante destas práticas. A solução é, por um lado, admitir os limites do conhecimento fatual que podemos obter do objeto e, por outro, encontrar formas de contornar o problema. Embora não se possa estar presente ao que acontece, nem confiar plenamente naquilo que é dito pelos entrevistados a esse respeito, é possível encontrar outras maneiras de se aproximar do fenômeno.

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8 AS DECLARAÇÕES

Institucionalmente, por meio de declarações o Conselho exerce o seu papel legal. Po-de-se dizer que elas constituem os resultados mais evidentes do CNS.

As declarações dividem-se formalmente em três tipos.

Legislação 2 − art. 15O da Resolução nO 291, de 06/05/1999

Art. 15o − As deliberações do Conselho Nacional de Saúde, observado o quo-rum estabelecido, serão tomadas pela maioria simples de seus membros, mediante:

a) Resoluções homologadas pelo ministro de Estado da Saúde sempre que se re-portarem a responsabilidades legais do Conselho;

b) Recomendações sobre tema ou assunto específico que não é habitualmente de sua responsabilidade direta, mas é relevante e/ou necessário, dirigido a ator ou atores institucionais de quem se espera ou se pede determinada conduta ou providência;

c) Moções que expressem o juízo do Conselho, sobre fatos ou situações, com o propósito de manifestar reconhecimento, apoio, crítica ou oposição.

As resoluções são consideradas mais fortes que as recomendações que, por sua vez, são mais fortes que as moções. A ordem de, digamos assim, “importância”, ex-pressa o juízo dos próprios conselheiros e dos funcionários do Conselho. Uma análise formal concordaria com este juízo.

À diferença das recomendações e das moções, as resoluções do CNS devem ser homologadas pelo ministro e publicadas no Diário Oficial da União (DOU) no prazo de 30 dias após a aprovação pelo plenário; a não aprovação faz com que a matéria volte ao plenário na reunião seguinte acompanhada de justificativa e proposta alterna-tiva, se for o caso. Depois disso, volta ao ministro para procedimento de homologa-ção. Caso o procedimento não se conclua, solicita-se audiência especial com o minis-tro em comissão de conselheiros designada pelo plenário. Ocorre novo processo de homologação que, não concluída, abre margem à representação contra o ministro da Saúde junto ao Ministério Público.

A seguir, observa-se a tabela com o número de resoluções, recomendações e mo-ções do Conselho de 1996 a 2000.

TABELA 1

Número de Resoluções, Recomendações e Moções Aprovadas pelo CNS de 1996 a 2000

Ano Resoluções Recomendações Moções

1996 32 8 2

1997 56 2 4

1998 22 15 6

1999 3 16 6

2000 14 7 6

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Os conselheiros expressaram que o tipo de declaração a ser usado é decidido não apenas pela competência à qual se refere mas, principalmente, pelo cálculo político. Resistências ou dificuldades na implementação por parte do Ministério podem trans-formar uma resolução em recomendação ou moção. Desta perspectiva, as declarações e a forma como são apresentadas podem ser o resultado destas relações e de um certo senso prático que intenciona maximizar certos efeitos. Pode ser tanto pactuação e aliança entre diversos atores, como a ênfase no conflito — uma declaração pode servir para “causar constrangimentos ao gestor”, como foi dito por um dos entrevistados.

Declarações pretendem ter desdobramentos. Qual a melhor forma para a apre-sentação de uma proposição? Qual os atores envolvidos e, nesse caso, como maximi-zar as conseqüências da posição a ser tomada? Quais intenções políticas almejadas? A resposta a essas questões varia conforme o contexto.

Boa parte das resoluções objetivam ações internas ao próprio Conselho, como a criação de grupos, comissões temáticas, ou outras ações do gênero. Do total de 219 resoluções entre 1995 e 2000, pelo menos 66 referiam-se às comissões e aos grupos de trabalho. Esse é um indicativo da sua importância para o CNS, importância que e-xaminaremos com maiores detalhes daqui a alguns instantes.

As declarações têm potencialmente diversos usos. Elas podem servir, por exem-plo, para estabelecer posições, mesmo quando há pouca chance de serem, de fato, implementadas. Já vimos um exemplo: a aprovação do orçamento para saúde. Assim, a Resolução no 193 aprova o montante de R$ 25.950.264.081,00 para o orçamento global do Ministério da Saúde em 1996. Já a Resolução no 247, de 1997, aprova o montante de R$ 22.814.522.798,00. E, em 1998, a Resolução no 289 “aprova o montante mínimo” de R$ 23.555.641.686,00.

Outras declarações também parecem marcar posição, embora seu significado não seja tão claro, uma vez que não se conhece o conjunto de conflitos e alianças que está por trás destas declarações. Assim, a Resolução no 156 “recomenda” ao ministro da Saúde que, por meio da Secretaria de Vigilância Sanitária, proceda à elaboração de normas técnicas de produção e venda de óculos para presbiopia com graus padroniza-dos. Estabelece ainda um prazo de 120 dias para que o pedido seja cumprido. A Re-solução no 165 recomenda a elaboração de um plano de erradicação do aedes aegypti e a implementação imediata do Plano de Intensificação das Ações de Controle da Den-gue, da Fundação Nacional de Saúde. E, apenas para dar mais um exemplo, a Resolu-ção no 172 solicita ao Ministério da Saúde que faça a revisão da base legal que define as proibições e penalidades referentes à produção, manipulação, comercialização e propaganda inadequadas e indesejáveis de medicamentos e substâncias de uso tera-pêutico e profilático.

E algumas, inclusive, servem para enfatizar o disposto em resoluções anteriores, como o caso da Resolução no 233 que “reitera” a necessidade do cumprimento das resoluções no 200 e 213. A de no 200 “recomenda” que os responsáveis pelo Inan, Ceme, Fiocruz, Funasa e Fundo Nacional de Saúde elaborem e encaminhem ao CNS avaliação crítica da Execução Orçamentário-Financeira do respectivo órgão até 31/10/1996 e a perspectiva até 31/12/1996. Também recomenda ao Ministério da Saúde a elaboração de uma nota técnica para explicar a redução do seu orçamento. Já

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a no 213, de 1997, aprova a proposta de trabalho da Comissão de Acompanhamento do Processo Orçamentário do CNS.

Difícil entender o que “está em jogo” nas resoluções, sem um conhecimento técnico, tanto da área médica quanto da legislação e do funcionamento do “sistema” de saúde. Em algumas é mais evidente, como a Resolução no 234, que “reitera” a determinação que a Coordenação Geral encaminhe aos CES, CMS, CONASS e CONASEMs expediente lembrando a existência das Resoluções no 29, de 1992, no 67 e 68, de 1993, bem como do artigo 12o da Lei no 8.689. Ou a Resolução no 265 que “recomenda” à Administração do Ministério da Saúde especial atenção ao De-creto no 2.401, de 21/11/97 (DOU, de 24/11/97).

Todas as resoluções “dialogam” com, pelo menos, um interlocutor, porém, mais freqüentemente com vários, sejam eles implícitos ou explícitos. Algumas são particu-larmente explícitas quanto a isso, como a no 287 que altera a Resolução no 218 e que, por sua vez, reconhece as categorias profissionais de nível superior. A Resolução no 287 relaciona 14 categorias além de se dirigir, explicitamente, a todas elas. Mas ao fazer isso, uma vez que o CNS tem como uma de suas competências deliberar sobre a necessidade social de novos cursos de nível superior na área de saúde (alínea XVII, do artigo 3, da Resolução no 199, de 06/05/1999), ele também está dialogando com outros órgãos e instituições do governo e da sociedade que regulamentam ou prestam estes cursos. Noutras, os interlocutores não são todos implícitos, como a Resolução no 302 que alerta para os riscos à saúde e qualidade de vida da população causados pela política de saneamento baseada no contingenciamento de recursos do FGTS. A rigor, o interlocutor desta última resolução seria a população cuja qualidade de vida é ameaçada, mas, mais provavelmente, ela se dirigia àqueles responsáveis pelo contingenciamento.

Neste sentido, poderia ser dito que uma declaração é forte quando é usada por outros atores em contextos diversos, ou seja, quando ela tem conseqüências. Para justificar uma posição política, uma outra declaração, para legitimar uma legislação ou ação. Uma declaração é forte quando se torna referência para outras declarações. O CNS relaciona-se com diversos atores institucionais. O Ministério da Saúde é, sem dúvida, muito importante. É possível não gostar, concordar ou aprovar o que o Con-selho diz; porém, não ignorá-lo.

Em resumo, é o conjunto de conflitos e alianças que dá sentido a uma declara-ção. Sem conhecê-los e sem entender os mecanismos, histórias e regras de funciona-mento do sistema que são internalizados pelos agentes que atuam no Conselho, não é possível saber o que está em jogo sociologicamente.

Em certos casos, como o das Normas Operacionais, sabemos que as resoluções resultam de longos processos de “pactuação” entre o CNS e demais atores, o que con-fere legitimidade e praticamente assegura a aprovação. Esse é o exemplo de algumas das Normas Operacionais Básicas (NOB). As NOBs 01/93 e 01/96 do SUS, por e-xemplo, foram intensamente negociadas pelo Conselho Nacional. Já as Normas Ope-racionais de Assistência à Saúde (NOAS) 01/01 estão em vigor desde fevereiro de 2001 e foram criadas a partir de sucessivas negociações entre Ministério da Saúde, estados e municípios em diversas reuniões da Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Esta comissão envolve representantes do próprio Ministério, do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde e do Conselho Nacional dos Secretários

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Municipais de Saúde. As Normas Operacionais definem estratégias e movimentos táticos que orientam a operacionalidade do sistema. São resultado da pactuação inter-gestores, e o papel dos Conselhos, em especial do CNS, é central.

A NOB-SUS 01/96, “a mais debatida e democrática”, foi objeto da Resolução no 195 que a “aprova”. Porém, não está entre as competências formais do CNS a “aprova-ção” das NOBs. Tanto que o Ministério pode, legalmente, instituí-las sem a “aprova-ção” do Conselho. A própria NOB 01/96 é um exemplo. Apesar da Resolução no 195, a NOB foi implantada pela Portaria MS n° 1.742, de agosto de 1996.

Podemos concluir que as declarações são um epifenômeno de um conjunto de relações estabelecidas entre grupos que atravessam a sociedade civil e instituições. A sua eficácia não está vinculada a um poder impositivo. Ela depende então do conjun-to de alianças, conflitos, acordos, barganhas e consensos que a geraram. O motivo não parece estar longe. O CNS não é uma peça isolada, uma instituição solitária. Ele está inserido numa realidade institucional, política e social mais ampla, atravessado por diversas instituições e forças sociais. A descrição das declarações aponta para a seguinte direção: a eficácia do Conselho não está contida nos seus instrumentos le-gais, nas suas atribuições formais, embora essas sejam condições necessárias de sua influência. A condição suficiente desta influência parece ser, pelo que foi exposto, a relação que o Conselho estabelece com essas outras instituições e forças sociais.

Por fim, é preciso observar que o Conselho Nacional de Saúde possui poucas re-gras formais de procedimento para aprovar ou rejeitar uma resolução, recomendação ou moção. A situação é, num certo sentido, oposta à do Congresso. Neste último, existem regras para a discussão em plenário, o encaminhamento de votação, a ordem da votação (o que será votado primeiro), a ordem de votação das emendas e regras para modificar essa ordem. Há regras para a solução das questões de ordem que po-dem impedir ou modificar o conteúdo do que é votado. Há a possibilidade de desta-car partes da proposição para votar em separado. Há regras para outras coisas, como a maneira de se manifestar, o tempo da manifestação e como resolver cada tipo de re-curso. A lista não é exaustiva; há muito mais. E no Congresso esse conjunto de regras tem também o seguinte sentido: é usado pelos parlamentares e partidos políticos co-mo um instrumento de luta para impedir, aprovar, adiar, apressar ou rejeitar uma proposição e, às vezes, faz-se tudo isso ao mesmo tempo.9 A comparação com o uso dos instrumentos regimentais no Congresso nos fornece uma explicação do porquê o Conselho Nacional de Saúde tem poucas regras formais de procedimento.

Por meio das entrevistas, percebeu-se a ênfase que os conselheiros davam ao co n-senso. Um conselheiro, por exemplo, disse que, em geral, discute-se até chegar ao consenso ou até ficar claro que o consenso não é possível. Este seria o momento de votar. Isso não significa que as declarações do Conselho sejam sempre consensuais. Na realidade, observou-se que os conselheiros fazem duas afirmações contrárias entre si. Por um lado, a reiteração constante e repetida periodicamente de que o consenso é importante e de que todos devem procurá-lo. Por outro, a constatação de que o con-senso era, na maioria das vezes, dificílimo, quando não impossível.

9. Ver Abreu (2000), op. cit.

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A seguir, são citados três exemplos de discussões no Conselho onde se percebe a im-portância e dificuldade do consenso, bem como a simpliciade dos seus procedimentos.

1) Na centésima décima sétima reunião do CNS, os conselheiros tematizaram so-bre ela. Segundo um conselheiro, a PEC “estaria requerendo do CNS uma posição mais combativa”. Inclusive foi sugerido que até a reunião seguinte o Conselho deveria se posicionar por meio de uma resolução. Ainda foi dito que a área econômica se com-portava como se pudesse desconsiderar a vinculação. Então encaminhou-se um relató-rio que analisava entre outros pontos a aplicação da PEC 29. Ele concluía que o Decre-to no 4.120 atualizava as estratégias da equipe econômica do governo e era responsável por um bloqueio orçamentário de R$ 925 milhões.O contingenciamento “acarretou o descumprimento da PEC 29 pela União, segundo os parâmetros adotados pelo Plená-rio do CNS”. Foi sugerido que o relatório fosse enviado para o Ministério Público Fe-deral – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC – solicitando análise e providências. Também foi sugerido que na reunião seguinte o CNS se posicionasse formalmente com um referencial que orientasse o acompanhamento e aplicação da Emenda pelos estados, DF, municípios e União. Um conselheiro lembrou ainda de outro ponto indefinido que exigia posicionamento formal e explícito do Plenário do CNS: o que deve ser considerado como Ações e Serviços Públicos de Saúde para fins de cumprimento da PEC no 29. O conselheiro enfatizou que “a mobilização que garantiu a aprovação da PEC 29 deve[ria] continuar para que o seu cumprimento se efetue”. Em outra reunião o Conselho afinal aprovou uma resolução (Resolução no 316, de 04 de abril de 2002), explicitando seu posicionamento sobre a questão.

2) Um conselheiro se preocupou com o fato de a Portaria de publicação da NOAS, assinada pelo ministro da Saúde, afirmar que ela fora aprovada pelo CNS. Ele disse que o Conselho não discutiu e nem aprovou a matéria. Sugeriu uma nota de repúdio do CNS com relação a essa questão. Ainda assim o CNS e o Ministério da Saúde discutem alterações. O coordenador disse que a diretora do Departamento de Descentralização da SAS apresentou um documento com modificações acorda-das da NOAS. Dois pontos eram importantes : a questão do comando único no processo de qualificação e o mecanismo de explicitação do poder estadual sobre as referências. A Tripartite também é importante na reestruturação da NOAS. Em dezembro, a comissão tripartite definiu que um grupo técnico traduziria as negocia-ções sobre os pontos na revisão da NOAS 01. Todas as portarias relativas a NOAS seriam acrescentadas à nova versão do documento sem alteração dos co nteúdos.

3) O Coordenador apresentou a proposta de moção de um conselheiro. Ela ratifi-cava uma moção já votada há um ano. O conselheiro explicou que ela se devia às “de-clarações públicas do representante da CNBB, publicadas numa revista conceituada e de grande circulação”. Elas diziam que o uso de preservativos eram ineficazes. As decla-rações, segundo o conselheiro, eram um desserviço na luta contra a AIDS. A represen-tante da CNBB lembrou aos Conselheiros a cultura da Igreja Católica. Pediu que pes-quisas comprovando a eficácia do preservativo fossem enviadas ao presidente da CNBB. Então solicitou, a exemplo da moção anterior, que fosse retirado o item 4 e justificou que não era hábito do Conselho fazer moções contra instituições. Um conse-lheiro sugeriu que fosse publicada a fonte do artigo, e não a entidade; outro afirmou que não era papel do Conselho entrar nessa disputa entre CNBB e o artigo publicado na mídia impressa. O coordenador enfatizou “que tudo aquilo que atua nos hábitos

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saudáveis ou não é objeto de preocupação do Conselho”. Propôs que o item 4 da mo-ção fosse mantido, mas sem citar a CNBB, a instituição. Então, argumentou-se que milhares de cópias da reportagem estavam distribuídas entre formadores de opinião e era necessário pautar o assunto, mas que, entretanto, deveria ser considerado que os responsáveis pela orientação, educação e proteção dos grupos de risco da AIDS e da terapêutica do diagnóstico são a rede básica de saúde e a rede da média complexidade, e não especialistas em AIDS. O coordenador encerrou a discussão. Considerou a propos-ta de publicar a fonte do artigo ao invés da entidade e colocou a matéria em votação. A moção foi aprovada com a abstenção do representante da CNBB.

Como podemos perceber nos três exemplos, a busca de significados para as ações e declarações de tantos quantos participam da deliberação, formulação e implementa-ção da política, tal qual o tear de Penélope, é uma atividade política interminável.

De todo modo, o ideal do consenso, mesmo ante a sua impossibilidade, nos mostra um aspecto importante da comparação com o Congresso: ao contrário desse, no Conselho, o consenso é um princípio regulador; princípio cuja repetição constante tem uma eficácia, constrói efeitos de poder que serão explorados intensamente pelo Conselho, como se verá adiante. Essa parece ser a razão segundo a qual os procedi-mentos devem permanecer simples. Se se quer o consenso, para que criar procedi-mentos que vão servir para incentivar o conflito?

9 AS COMISSÕES

Os conselheiros também participam de Comissões Intersetoriais Permanentes − defi-nidas em lei, conforme o artigo 3o da Resolução no 291, de 06/05/1999.

Legislação 3 art. 19O da Resolução 291, de 06/05/1999

Art. 19o − As Comissões Intersetoriais Permanentes constituídas por força da Lei no 8.080/90, criadas e estabelecidas pelo Plenário do Conselho Nacional de Saúde, têm por finalidade articular políticas e programas de interesse para saúde cujas execu-ções envolvam áreas não integralmente compreendidas no âmbito do Sistema Único de Saúde, em especial:

a) alimentação e nutrição;

b) saneamento e meio ambiente;

c) vigilância sanitária e farmacoepidemiologia;

d) recursos humanos;

e) ciência e tecnologia;

f) saúde do trabalhador; e

g) comissão de orçamento e finanças, em cumprimento ao disposto na Lei no 8.142/90.

O Conselho pode, ainda segundo seu regimento, Resolução no 291, de 06/05/1999, criar outras comissões ou grupos de trabalho. Uns e outros podem ser

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permanentes ou temporários. Há algumas regras, também simples, que regulam a participação dos conselheiros nas comissões. Por exemplo: as comissões permanentes definidas em lei serão formadas por, no máximo, nove conselheiros, e nenhum deles poderá participar de mais de uma comissão permanente. As outras comissões e grupos de trabalho, permanentes ou temporárias, podem ser formadas e coordenadas por outros indivíduos mas, neste caso, devem ser acompanhadas por um conselheiro.

O Conselho conta, ainda, com uma pequena burocracia cujas principais ativida-des são acompanhar e assessorar as comissões. Algumas outras atividades burocráticas ganham menos atenção. As reuniões, por exemplo, são gravadas e as fitas, entregues a uma firma que se encarrega de redigir a ata.

A seguir, apresentamos um extrato de uma reunião plenária. Ela permitirá que aspectos importantes do papel e funcionamento das comissões sejam introduzidos.

No dia 9 de maio de 2001, entre outros pontos, a pauta do Conselho incluía uma exposição da conselheira Carmem Maria Brunder da Fonseca, representante das Entidades Nacionais de Prestadores de Serviços de Saúde, sobre a “saúde econômica” dos hospitais privados que prestam serviços ao SUS. Os dados apresentados por ela foram alarmantes: os hospitais estão falidos, segundo critérios de endividamento. Ob-servou-se o crescimento de 107 % (cento e sete por cento) na planilha de custo dos hospitais versus um aumento de 31 % (trinta e um por cento) nos procedimentos pagos pelo SUS. A conclusão ganhava ares de indiscutível verdade: os dados mostra-vam a inviabilidade do sistema a médio prazo. Vários conselheiros declararam que aquele era um assunto importante, um assunto para o CNS. Enfatizaram também que o problema não era apenas melhorar a remuneração dos procedimentos, mas repensar o modelo assistencial como um todo. O Secretário Executivo do Conselho afirmou que era preciso resolver o problema de maneira correta, uma oficina adminis-trada pela Comissão de Orçamento e Finanças que congregasse todos os atores políti-cos relevantes. Com isso, o Conselho poderia influenciar algo.

O exemplo mostra um fenômeno típico. Os fatos são reinterpretados e redimen-sionados pelo Conselho Nacional de Saúde. As ações do Conselho não espelham exa-tamente os movimentos e opiniões sociais externas, mas filtram-nas. Uma clara de-manda por reajuste na tabela do SUS se transforma numa oportunidade para reafir-mar as atribuições gerais do Conselho: seu papel na organização do modelo assistenci-al. A sugestão do Secretário Executivo a esse propósito é elucidativa. O objetivo era criar um espaço de articulação entre diversos órgãos e instituições públicas e privadas.

A razão disso não parece estar distante. O Conselho está inserido num ambiente ins-titucional que impõe condições objetivas de existência. Sua atuação depende da posição institucional dentro da estrutura governamental, mas também de alianças, apoios e rela-ções de interdependência entre os agentes envolvidos.O poder, o mando, a decisão sobre políticas públicas não se identificam facilmente. Como exemplo: nem sempre o ministro se impõe às secretarias e aos órgãos do ministério; muitas vezes, necessita do seu apoio. Nas entrevistas, percebe-se que vários ministros são lembrados como ministros “fracos”, justamente porque não conseguiram vencer as resistências da burocracia. As resistências são vinculadas a interesses políticos, inclusive interesses eleitorais.

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E as comissões têm um papel fundamental na articulação do Conselho com outras instituições, importância que se pode representar graficamente, como na figura a seguir.

FIGURA 1

O Papel das Comissões nas Relações do Conselho Nacional de Saúde com Outras Institui-ções Governamentais e Forças da Sociedade Civil

O mecanismo sociológico consolidado pelas comissões poderia ser chamado de “colonização do discurso”. Práticas, interesses e demandas que, muitas vezes, não têm nenhuma relação entre elas são, por assim dizer, colonizadas pela atuação das comis-sões, pela construção de um discurso baseado no interesse comum. Esse discurso será eficiente, caso seja considerado, em alguma medida, representativo das posições de um grupo expressivo de agentes ou, pelo menos, um discurso que não afronte interes-ses considerados vitais por aqueles. Sua eficiência, por outro lado, garante ao Conse-lho capital simbólico, alianças e apoios que, na situação ótima, lhe permite intervir, causar desdobramentos, exercer influência.

CNS

Ministério da Saúde

OUTROS SETORES DO GOVERNO

OUTRAS INSTITUIÇÕES E ATORES DA SOCIEDADE CIVIL

COMISSÕES

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Além disso, o desenho institucional das políticas de saúde dá ao CNS um espa-ço e forma de atuação característicos. As instituições públicas, pelo menos formal-mente, no caso brasileiro, separam e subordinam, ou seja, hierarquizam. Na prática, porém, as coisas são um pouco diferentes. Um agente pode competir com seu supe-rior, mesmo quando deveria subordinar-se. Como este tipo de conflito é, em rela-ção ao ideal formalizado, espúrio, a competição é relegada à sombra, aos bastidores, àquilo que é dito mas nunca admitido em público por aqueles que o praticam. A maneira mais eficiente de competir é, então, estabelecer alianças com outros agen-tes, sejam do mesmo órgão, sejam de uma outra instituição. Foi visto também que o agente público tem de agir como a lei determina. Contudo, para acomodar essas práticas cotidianas, ele é forçado a reinterpretar a regra segundo o contexto de for-ças atuantes numa determinada situação. Na prática, fazer política é usar a lingua-gem de alguma maneira esperando desdobramentos, na forma de alianças, conflitos e posicionamentos. Em suma, vários são os usos da linguagem e eles expressam in-terdependências, estratégias e relações de poder.

A lógica de atuação do Conselho é contrária à lógica do governo brasileiro, en-quanto organização burocrática baseada na hierarquia. O CNS, como se viu, procura incluir o maior número possível de interlocutores nas discussões, como pode ser per-cebido na demanda pelo reajuste da tabela do SUS. Ele inclui e coloniza. Em outras palavras, trata-se de um mecanismo de constrangimento e coação que força os agentes públicos a fazer alianças e concessões que, de outra forma, não fariam.

10 OS CONSELHEIROS

O processo de representação é um dos elementos que justificam as instituições demo-cráticas. Formalmente a composição do Conselho Nacional de Saúde foi regulada pela Lei no 8.142/90. No seu artigo 1o, a lei estabeleceu quatro categorias de conse-lheiros: representantes do governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários. Definiu que a representação dos usuários seria paritária em relação às de-mais representações. Previu a representação do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems). Os usuários são a metade da representação e têm 15 membros; o governo tem doze; os profissionais da saúde são três; e os prestadores, dois. A bancada do governo é constituída por representantes de diversos ministérios, os representantes do Conass e Conasems. Três deles pertencem à comunidade científica e são indicados pelo Ministério da Saúde, como se pode ver em seguida.

Legislação 4 − art. 2o do Decreto no 99.438, de 07/07/1990

Art. 2o − O CNS, presidido pelo Ministro de Estado da Saúde, tem a seguinte composição:

• Um representante do Ministério da Educação;

• Um representante do Ministério do Trabalho e da Previdência Social;

• Um representante do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento;

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• Um representante do Ministério da Ação Social;

• Um representante do Ministério da Saúde;

• Um representante do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass);

• Um representante do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems);

• Um representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT);

• Um representante da Central Geral dos Trabalhadores (CGT);

• Um representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores na A-gricultura (Contag);

• Um representante da Confederação Nacional da Agricultura (CNA);

• Um representante da Confederação Nacional do Comércio (CNC);

• Um representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI);

• Um representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB);

• Um representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC);

• Um representante do Conselho Nacional das Associações de Moradores (Conam);

• Um representante das entidades nacionais de representação dos médicos: Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica (AMB) e Fe-deração Nacional dos Médicos (FNM);

• Dois representantes das entidades nacionais de representação de outros profissionais da área de saúde;

• Dois representantes das seguintes entidades prestadoras de serviços pri-vados na área de saúde: Federação Nacional de Estabelecimentos e Servi-ços de Saúde (Fenaess), Associação Brasileira de Medicina de Grupo (A-bramge), Federação Brasileira de Hospitais (FBH), Associação Brasileira de Hospitais (ABH) e Confederação das Misericórdias do Brasil;

• Cinco representantes e entidades representativas de portadores de pa-tologias; e

• Três representantes de entidades da comunidade científica e da sociedade civil, indicados pelo ministro de Estado da Saúde.

Contudo, apesar do caráter democrático e representativo do Conselho Nacional de Saúde, há um hiato, uma diferença inconciliável entre a justificativa e os enuncia-dos que os próprios entrevistados retiram das suas experiências. Quando se perguntou sobre a relação entre os conselheiros e aqueles que eles representam, houve unanimi-dade em apontar a “baixa representatividade” desta relação, isto é, os conselheiros têm larga autonomia de ação, são constituídos, muitas vezes, por procedimentos não de-mocráticos e conversam pouco com aqueles que representam. Aliás, alguns conselhei-

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ros disseram que raramente as entidades ou os seus representados os procuram para esclarecimentos ou para discutir as questões que estão sendo objeto de apreciação do Conselho. Acontece, na prática, justamente o contrário: parte do conselheiro a inicia-tiva de consultar a instituição a qual representa, mesmo quando representante do próprio governo. As mesmas pessoas que defendem essa posição reconhecem as difi-culdades da proposta, derivadas, em última instância, do contexto social mais amplo no qual o Conselho está inserido.

De qualquer forma, a maioria dos conselheiros acredita ocupar um espaço polí-tico importante onde se articulam e se definem políticas. Mas, para tanto, é necessá-ria uma aliança tácita entre os conselheiros, decorrente do seguinte arrazoado implí-cito: eles só poderão exercer, individualmente, influência nas decisões governamen-tais sobre políticas públicas, se o Conselho for “forte”. Caso contrário, suas ações individuais teriam muito menos eficácia, seriam talvez inócuas. Em outras palavras, ser conselheiro só faz sentido com a criação concomitante, para utilizar com certa liberdade o vocabulário weberiano de uma representação da existência de uma or-dem legítima que justifica o Conselho e o seu espaço de atuação. Muitos dos ins-trumentos utilizados com esse objetivo pertencem ao discurso, como o elogio per-manente ao caráter legítimo e democrático do Conselho; a construção de um dis-curso que o usa como sujeito; a tentativa de colonizar práticas heterogêneas; e a expansão da influência do CNS em outras direções.

Por outro lado, não há uma regra única, um princípio admitido implicitamente segundo o qual se reconhecem os “bons” conselheiros. Há, digamos assim, vários “tipos”: alguns são mais ativos, outros falam menos, há aqueles que ainda são novos, outros são percebidos como “formadores de opinião”. O reconhecimento dessas dife-renças não impede que eles tenham admirações e respeito recíprocos – não houve insultos, mas é possível que ocorram. Um dos entrevistados, por exemplo, apontou o peso institucional e a “maneira sensata de se expressar” como fatores determinantes para a boa atuação de um conselheiro. Outro mencionou exatamente o contrário, a paixão. Essa classificação lembra a clássica distinção entre o funcionário burocrático e o líder político. O político toma posição, pois é guiado pela paixão; o funcionário, ao contrário, deveria desempenhar suas funções de maneira imparcial, sine ira et studio, conforme afirmava o sociólogo Max Weber.

Além disso, os termos em que uma determinada questão é discutida e as habili-dades envolvidas são diversas, dependendo do assunto. Paixão e moderação podem ou não ser valorizados dependendo do contexto. Ser moderado pode significar que é necessário ter feeling, saber quando e como intervir para ser eficaz politicamente. Em outros momentos, pode acontecer justamente o contrário: é preciso ser incisivo e a-paixonado. Difícil julgar se moderação e paixão são colocados no jogo com base em um cálculo estratégico, ou se são expressão de traços psicológicos dos participantes. Mais difícil ainda é o julgamento sobre as conseqüências de cada linha de ação.

De uma perspectiva pragmática, os conselheiros, por um lado, se reconhecem como “representantes de interesses legítimos”, num certo sentido como iguais. Por outro lado, eles prestam muita atenção, valorizam as diferenças históricas, contextuais e “estruturais”, as diferenças de habilidades e procedência, as diferenças dos tempera-

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mentos e dos interesses. É pelo conjunto desses dois aspectos, a igualdade institucio-nal e as diferenças individuais, que eles vão procurar explicar as ações e posições uns dos outros. Alguns dos fenômenos que surgiram, até então, nas entrevistas realizadas podem exemplificar tal fato.

As estratégias individuais e institucionais, para ganhar capital simbólico. As longas e antigas relações de confiança e, até mesmo, amizade entre membros do Conselho. O papel da imprensa, a necessidade de gerar desdobramentos simbólicos. As razões, as justificativas que os conselheiros utilizam para sua atuação. Os “tipos” diferentes de atuação política tendo em vista a história e as condições objetivas nas quais os conselheiros individualmente se inserem. A fragmentação burocrática do Ministério da Saúde, cortado e perpassado por, digamos assim, linhas de influência e aliança. A utilização do Conselho como um fórum onde seria possível, para os funcionários do Ministério, ganhar reconhecimento, gerar desdobramentos, tornar pública uma questão ou um trabalho. A influência do ministro da Saúde nos outros agentes, suas alianças, ambições e possibilidades políticas (à época da elaboração deste estudo o então ministro se colocava como um possível candidato à sucessão do atual presidente da República). As inclinações pessoais dos funcionários do ministé-rio: alguns são mais “sensíveis” à participação democrática no processo de tomada de decisões. Tudo isso perpassa, condiciona e promove a percepção que os conse-lheiros têm da relação dos outros conselheiros com outros agentes nos diversos ór-gãos e instituições da administração pública.

No fundo, trata-se do mesmo procedimento que vimos anteriormente: como, partindo daquilo que se diz, se compreende o que não é dito e que é, na opinião de todos, o que “realmente” acontece. Porém, a situação dos conselheiros não é dife-rente da dos pesquisadores: a cada embate afloram dúvidas sobre os significados dos comentários, posicionamentos e interesses. Aqui não há uma regra que possa ser aplicada a todos os casos. E mais, as interpretações podem variar ao longo do tem-po. É, enfim, também para eles, opaco − embora não seja a mesma opacidade com a qual se depara o pesquisador.

11 A FRAGMENTAÇÃO E A COLONIZAÇÃO

A hipótese inicial procurava nas competências formais a resposta à questão: “como o Conselho influencia a formulação e o desenho de políticas públicas?” A investigação fez com que fosse admitido que o exame formal destas competências não era suficien-te, pois havia um “excedente de significado” que não conseguia ser explicado pelas competências formais do Conselho. Verificou-se que o problema era a suposição da consistência entre a norma e a ação, suposição implícita na hipótese original. Por meio da observação empírica, chegava-se à conclusão contrária: a norma podia, mais apropriadamente, ser percebida como uma linguagem. Desta perspectiva, uma nor-ma qualquer vai ganhando usos diferentes, conforme o contexto. Tal constatação resultou na reformulação da hipótese original da seguinte maneira: procurou-se este excedente de significado nos usos das competências formais, isto é, de que maneira

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estas normas eram reinterpretadas, re-significadas e recriadas pelas práticas na ativi-dade cotidiana do CNS.

Porém, surgiu um outro obstáculo. Quanto mais se aproximava daquilo que as pes-soas faziam e como faziam, mais os dados foram ficando opacos. Percebia-se que as alian-ças e os interesses dos conselheiros pareciam determinantes para elucidar o “excedente de significado”. Contudo, pelas próprias características destes acordos, eles se colocavam num lugar inacessível à observação. Os interesses, por outro lado, pareciam cada vez me-nos seguros. Não se conseguiu encontrar critérios empíricos válidos que permitissem as-severar: “tal ação é o resultado de tal ou qual interesse”. Ao contrário, foi encontrada uma pluralidade de critérios igualmente válidos e, muitas vezes, contraditórios entre si que, para um mesmo evento, permitiam inúmeras possibilidades de explicação.

A opacidade do Conselho é, então, resultado da divisão entre aquilo que, de fa-to, acontece e o que parece acontecer entre o público e os bastidores. Uma das for-mas que os agentes (mas também os pesquisadores) lidam com essa opacidade é enfatizar os interesses ao invés das alianças. O princípio disso tudo é que as alianças derivam dos interesses dos agentes. Tudo é claro: os interesses explicam ações dos conselheiros e o comportamento deles pode ser explicado pelos interesses. Não a-contece nada assim tão simplesmente. As entrevistas apontaram que representantes do governo simpatizam com teses normalmente atribuídas à oposição; por exemplo, o aumento de recursos para o setor saúde, mesmo com as prioridades fiscais. Outro exemplo das entrevistas: "os trabalhadores defendem os planos de saúde, e não o SUS" − aqui imagina-se, claro, que os trabalhadores teriam interesses e eles corres-pondem à defesa do sistema público.

Há, claro, várias alternativas para superar essa dificuldade. Uma delas, talvez a mais promissora, parece ser a construção de uma teoria da realidade social ou a ado-ção de uma ideologia que forneça ao observador uma tipologia de interesses e uma relação causal entre estes e as posições sociais dos atores. Em outras palavras, supera-se a dificuldade empírica com a construção de uma espécie de teoria sociológica.

Recusou-se essa solução pelo seguinte argumento: a opacidade do dado empírico estabelece um limite para o que se pode dizer do objeto. Não é possível esquecer que para os conselheiros a ação alheia também contém certa dose de opacidade. Ou me-lhor, a opacidade é uma característica empírica do objeto estudado, é parte integrante do seu mecanismo de funcionamento e ajuda a constituir o seu movimento.

O conjunto de categorias pelas quais as pessoas envolvidas nas atividades do Conse-lho vão interpretar o que “de fato” acontece não cabe em conceitos, tais como participa-ção, consenso, interesse, normas formais, democracia, interesse geral, etc. Por esse moti-vo, um observador menos rigoroso poderia acreditar que descrever a ação dos conselhei-ros a partir daquelas categorias equivale transformar a política num “jogo frívolo”.

Ao se enfatizarem as ações individuais, o nosso objeto foi de tal forma fragmen-tado que o caminho de volta pareceu impossível: já não se conseguiu compor o todo, a instituição, voltar ao ponto de partida, à constatação original. De um lado, o fato de o Conselho se consolidar como um ator importante que influencia, de maneira deci-

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siva, a formulação e o desenho de políticas públicas. De outro, a fragmentação e a singularidade das ações além da pluralidade dos interesses.

A nossa proposta interpretativa é que esta tensão não é somente o resultado dos instrumentos metodológicos, de duas maneiras diferentes de perceber o objeto. O problema, que parece, é outro e se relaciona às características empíricas do objeto estudado. De um lado, acontece uma vigília constante dos próprios participantes so-bre as ações e intenções alheias, das alianças e dos conflitos, muitas vezes disfarçados, opacos, presentes no Conselho; de outro, a produção de declarações que são declara-ções “do Conselho”. Portanto, é preciso haver algum instrumento, um conjunto de ações ou estratégias que consiga, de alguma forma, partindo do fragmentário e da pluralidade, compor algo que seja considerado “a vontade do Conselho”. Na realida-de, já foi observado este fenômeno naquilo que se chamou "colonização do discurso".

A força institucional do Conselho não está na participação de setores populares, embora esta lhe confira legitimidade em face dos demais órgãos da administração pública. Também não vem da força das suas atribuições. A força do Conselho tam-bém não reside na sua capacidade de articulação intraburocrática. Reside no comple-xo formado pela relação entre essas dimensões, complexo que não pode ser reduzido à somatória dos seus elementos. Ou seja, o lado mais visível dessa importância é justa-mente a circulação de suas declarações, mesmo se institucionalmente fracas.

A capacidade de o Conselho influenciar políticas públicas depende de sua ca-pacidade de colonizar práticas, alianças, interesses e conflitos feitos, muitas vezes com objetivos ou ganhos heterogêneos entre si. Dar-lhes uma direção, um caminho. Isso acontece tanto nas comissões e nos grupos de trabalho quanto no plenário do Conselho, que são os seus momentos mais solenes. E o seu principal instrumento é a construção de um discurso que vai se referir ao sistema, ao atendimento de saúde como um todo, ao Conselho, ao bem-estar, etc. Não é difícil ver que estes instru-mentos, para serem eficazes, exigem que os indivíduos acreditem no consenso, pelo menos como um objetivo ideal, possível em algumas circunstâncias.

Isso decorre apenas em parte das suas competências formais. Uma vez que o CNS não tem poder discricionário, não pode dizer como alocar verbas, nem imple-mentar políticas públicas. No espaço empírico entre o Estado, entendido como um conjunto de ideais, e a realidade de uma administração fragmentada, o Conselho con-segue impor-se como um lugar onde é possível construir sínteses “impossíveis”, colo-car lado a lado, como partes de uma mesma política, instituições que, por si só, não conseguiriam realizar esse feito.

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ANEXO I

O discurso dos conselheiros: problemas metodológicos

As entrevistas que foram feitas com os membros do CNS apresentaram vários pontos em comum. Um destes pontos, que convém destacar, em princípio, foi a sua reação à técnica de entrevistas.10 Invariavelmente, eles terminaram com uma frase padrão “a-cho que falei demais”, embora o comentário não signifique que eles tenham contado os “segredos do Conselho”. Muito mais provável é que eles tenham falado sobre ser conselheiro de uma posição mais à vontade do que seria possível em outras situações. Um dos entrevistados comparou a experiência com duas outras situações pelas quais já havia passado: dar uma entrevista para alguém que já sabe o que vai escrever, ou para alguém que não entende nem tem muito tempo para entender o que ele tem a dizer. Nossa hipótese é que ele teve aí a possibilidade de se expressar, se colocar como um sujeito no mundo, ser ouvido.

A seguir, foram sistematizadas as conclusões sobre as entrevistas sob a perspectiva de um discurso sobre sua própria atuação. Alguns cuidados, no entanto, foram necessá-rios. Esse não é o discurso que eles fazem para os seus representados ou numa situação formal quando eles têm de descrever o seu papel no Conselho, mas sim um discurso feito para pesquisadores de uma instituição governamental.

Era bem claro que o que era falado tinha relação imediata com a posição destes indivíduos no mundo, embora não fosse uma relação causal direta, isto é, dado um lugar no mundo não se segue necessariamente a defesa de determinadas posições políticas ou ideológicas. Pessoas com posições institucionais semelhantes podem de-fender e muitas vezes efetivamente argumentam a favor de posições diferentes ou mesmo antagônicas diante dos mesmos assuntos. A relação seria descrita com mais propriedade como uma relação de constrangimento, isto é, um indivíduo incorpora, introjeta uma Weltancshauung, uma visão de mundo consistente com a posição social e institucional que ocupa − esta impõe limites àquela.

Havia uma tentativa consciente de vigiar seu próprio discurso. Os silêncios, as pausas, as mudanças súbitas de assunto, as recusas obstinadas de entender certas per-guntas e ouvidos meio surdos são epidêmicos. Certa vez, por exemplo, foi pedido a um entrevistado que desse um exemplo concreto daquilo que ele contava. “Se conta-rem isso… Vocês não podem nem escrever”, ele disse. A anotação sobre este assunto foi interrompida imediatamente, e uma anotação, que dizia respeito a um outro co-mentário não coberto pelo seu pedido de sigilo, ainda estava por terminar. Mas a 10. Utilizaram-se entrevistas semi-estruturadas, com um questionário aberto. O objetivo do questionário foi cobrir uma gama suficientemente grande de assuntos relacionados principalmente ao tema Conselho Nacional de Saúde. Ele foi elaborado com o objetivo de maximizar as possibilidades de fazer o entrevistado falar, utilizando algumas técnicas específicas. Uma delas é começar com assuntos de ordem pessoal e só entrar em assuntos mais complicados ou polêmicos mais tarde. Outra é deixá -lo falar à vontade, interrompê-lo o mínimo possível, e não tomar nada como evidente, apesar de se pertencer à mesma sociedade. Por fim, aproveitar o máximo possível os “fios” que o próprio entrevistado sugerir, ou seja, ao invés de interromper seu discurso para iniciar um outro assunto, fazendo uma pergunta de acordo com o roteiro previamente elaborado, aproveitar ao máximo sua fala, sugerindo e incentivando que ele desenvolva os assuntos que ele mesmo já havia mencionado.

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demora foi suficiente para que ele mudasse de assunto. Nada mais se disse daquilo, mas houve entendimento do fato.

Teve-se a impressão de que os entrevistados evitavam declarações que pudes-sem causar conflitos indesejados, principalmente com outros conselheiros. Houve mais declarações apimentadas a respeito dos ministros, do atual mais do que dos outros. É preciso considerar ainda, neste caso, que o atual ministro da Saúde, se-gundo comentário geral embora não unânime, não vê as funções deliberativas do Conselho com bons olhos. Aventou-se a hipótese de um certo “espírito de corpo” consubstanciado na crença da importância do Conselho e do status, do valor ou da dignidade do papel de conselheiro. O “grau de liberdade” das declarações depende também da confiança e da habilidade do entrevistador e da posição do entrevistado diante dos outros conselheiros, do prestígio, da pretensão de continuar ou não no Conselho, etc. Por exemplo: as declarações mais contundentes foram justamente de pessoas que pretendiam deixar o Conselho.

“O que acontece no Conselho esconde sentidos que somente aqueles que são conselheiros com mais tempo de Casa percebem”. Isso nunca é dito de maneira explí-cita. Insinua-se. Às vezes, começa-se a dizer algo, meio en passant, como se fosse um detalhe irrelevante, enfatizado por um silêncio ou uma pausa dramática e, em segui-da, muda-se de assunto; noutras, um olhar diferente, seja ele meio perdido na distân-cia, seja direto carregando uma expressão pensativa, de qualquer forma uma mudança na atitude anuncia a importância da informação, importância que não pode ser ple-namente confiada, como se houvesse ali muito mais do que é dito, mas que não pode ser dito naquelas circunstâncias. O silêncio, o gesto, a atitude, neste contexto, falam por eles. Além disso, valorizam a experiência de ser conselheiro enquanto tal; traçam uma linha, um limite, uma fronteira, uma diferença. Não se trata, aqui, apenas da afirmação de uma corporação à qual o entrevistado não pertence ou da compreensão que somente uma experiência equivalente poderia trazer. Trata-se fundamentalmente do domínio de certos códigos, informações que permitem “entender” o que “de fato” acontece. E tal como no Congresso (Abreu, 2000), na burocracia ou numa família extensa, a capacidade de entender o que “está em jogo”, no limite, o conhecimento das regras deste jogo (Bourdieu, 1990), determina quem pode jogá-lo.

Os entrevistados, por vezes, contam de pequenas vitórias de que foram protago-nistas ou derrotas alheias. São frases, retrucos, atitudes, manipulações que não pare-cem conter grandes implicações para os destinos do mundo, tampouco para os do SUS, porém carregam grande prazer. O tom muitas vezes modesto esconde e, ao mesmo tempo, revela uma importância, poderia-se pensar, desproporcional que ad-quirem estas pequenas escaramuças. Mas a somatória destas acaba revelando uma outra história não tão irrelevante; como se elas provassem, para além de qualquer dúvida, a capacidade de intervir determinantemente nas ações do Conselho. A tal ponto que não parece ser possível separar facilmente a atuação do conselheiro em grandes ou pequenos embates. Tudo se passa como se a sua atuação fosse percebida por ele como um todo, e sua importância dependesse e, ao mesmo tempo, fosse o resultado destas pequenas escaramuças.

Todos os entrevistados, de um jeito ou de outro, enfatizaram a crença de que sua ação pode fazer diferença, crença que se reflete na declaração de um deles, quando

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disse: “vou ao Conselho fazer política”. E é interessante observar que quem o declara é alguém cuja inserção técnica na burocracia se poderia, talvez, imaginar uma outra resposta. Ao mesmo tempo, há uma valorização do Conselho enquanto espaço rele-vante para o desenvolvimento do sistema de saúde brasileiro, seja como um lugar de aprendizado democrático, seja como um lugar institucionalmente importante por onde passam “grandes questões”, seja, ainda, pela crítica ou apesar dela.

Quando um entrevistado diz, por exemplo, “o Conselho poderia ser um espaço onde se exerce uma democracia de fato”, ele não está querendo dizer que, por isso, o Conselho deve acabar; ao contrário, que ele deveria se transformar, de forma a se a-proximar de um ideal, em, digamos, “discussão democrática” (sabe-se lá o que isso significa). Por sua vez, a afirmação pode ter relação com a posição do entrevistado em face dos outros conselheiros e do Conselho.

Em resumo, os entrevistados estão à procura de sentido para o Conselho, para sua atuação no Conselho, para as posições que defendem, para os objetivos que pro-curam alcançar, para sua relação com os outros conselheiros e com aqueles que repre-sentam, para suas estratégias, para as escaramuças, para o resultado daquilo que fazem e daí por diante. Isso não lhes parece suficiente, contudo. Os entrevistados não se contentam em dar sentido a uma pluralidade de fenômenos dispersos no tempo e no espaço, como realidades fragmentadas e autônomas. Não. A sua experiência deve fa-zer sentido como um todo; coerente com suas histórias de vida (pelo menos tal como eles as apresentam restrospectivamente) e consistente com a representação pública que eles fazem sobre sua atuação no Conselho.

Dentro desta perspectiva, cada um dos entrevistados está, num certo sentido e a seu modo particular, lutando, às vezes sem glória, aventura ou heroísmo, contra aqui-lo que lhe dizem suas próprias experiências, pois elas são, por definição, singulares. Talvez se pudesse representar esta batalha constante pela seguinte fórmula, um pouco imprecisa, mas que, justamente por isso, permite percebê-los de uma outra forma: no fundo, eles nos dizem que as múltiplas facetas da sua existência estão integradas na coerência da sua própria totalidade.

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ANEXO II

Um breve histórico institucional do Conselho

O Conselho Nacional de Saúde é anterior à Constituição de 1988. Ele tem uma longa história que começa na década de 1930. Apesar da identidade nominal, o Conselho exerceu papéis institucionais variados em contextos sócio-políticos hete-rogêneos. Para os fins deste estudo, a história “institucional” do CNS foi dividida em três períodos distintos.

A legislação expressa regras, muitas vezes temporárias, outras vezes são peças duradouras, que resultam de um certo jogo de forças interno e externo ao aparato jurídico-institucional. As mudanças destes marcos históricos oferecem um quadro geral das concepções, crenças, valores e normas envolvidas e que regulam o "fazer" cotidiano dessas políticas.

Primeiro período

A “origem institucional” do Conselho Nacional de Saúde remonta à Lei no 378, de 13/01/1937, no governo Vargas, que reformulou o Ministério da Educação e Saúde Pública. A atuação do Estado na saúde era bastante restrita e não incluía a assistência médica, salvo em casos especiais como tuberculose, doença mental, hanseníase. Ape-nas em 1954 a assistência médica da Previdência começou a ser importante, embora não estivesse representada no Conselho.

O Ministério foi dividido em dois tipos de órgãos: de direção e de execução. Con-tudo, o parágrafo único do artigo 3o previa “órgãos de cooperação” que “funccio-nar[iam], junto ao Ministério, para assisti-lo em suas actividades”. O Conselho Nacio-nal de Educação já era regulamentado pela Lei no 174, de 6/01/1936.

O Conselho Nacional de Saúde somente seria regulamentado 18 anos mais tar-de, pelo Decreto no 34.347, de 08/04/1954, já no segundo governo de Getúlio Var-gas. Este último estabeleceu “por finalidade [do Conselho Nacional] assistir o minis-tro de Estado na determinação das bases gerais dos programas de proteção à saúde”. As funções de secretaria eram exercidas por um funcionário do Ministério; e o Conse-lho, com 17 membros, tinha a seguinte composição:

Legislação 5− art. 2o do Decreto no 34.347, de 08/04/1954

• Ministro da Educação e Saúde (na sua ausência, representado pelo chefe de Gabinete);

• Diretor Geral do Departamento Nacional de Saúde;

• Diretor Geral do Departamento Nacional da Criança;

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• Oito escolhidos por “notória capacidade em assuntos relativos à Saúde”, “designados pelo presidente da República, por indicação do ministro de Estado”; e

• Seis escolhidos entre titulares de cargos ou funções do Ministério da Sa-úde também designados pelo presidente por indicação do ministro.

O Conselho era presidido pelo ministro de Estado, e os seus membros recebiam uma gratificação que variava de 1.000,00 a 4.000,00 cruzeiros por mês.

O Decreto no 45.913, de 29/04/1959, modificou, durante o governo de Jusceli-no Kubitschek, o regimento do CNS, ampliando o número de membros para 24. Passaram a fazer parte do Conselho, como membros natos, os seguintes:

Legislação 6 − art. 1o do Decreto no 45.913, de 29/04/1959

• Diretor Geral do Departamento Nacional de Saúde;

• Diretor Geral do Departamento Nacional de Endemias Rurais;11

• Diretor do Departamento Nacional da Criança;

• Diretor do Instituto Oswaldo Cruz;

• Presidente da Academia Nacional de Medicina;

• Presidente da Associação Médica Brasileira;

• Diretor Geral de Saúde do Exército;

• Diretor Geral de Saúde da Marinha; e

• Diretor Geral de Saúde da Aeronáutica.

O Conselho continuava presidido pelo ministro e contava com a participação dos 14 membros escolhidos conforme o Decreto no 34.347, de 08/04/1954.

O Decreto no 47.793, de 11/02/1960, mudou novamente a composição do Conselho. Passaram a fazer parte, como membros natos, os ex-ministros de Estado dos Negócios da Saúde que tivessem exercido o cargo em caráter efetivo. O Conselho ganhou ainda um secretário geral, função exercida pelo chefe de Gabinete do minis-tro.

O Decreto no 847, de 05/04/1962, consolidou e modificou a legislação, revo-gando todas as disposições anteriores. A composição passou a ser a seguinte:

Legislação 7 − art. 2o do Decreto no 874, de 5/04/1962

• Ministro de Estado da Saúde (presidente do Conselho);

• Diretor Geral do Departamento Nacional de Saúde;

• Diretor Geral do Departamento Nacional de Endemias Rurais;

11. Nessa época, o combate a doenças endêmicas era de responsabilidade federal.

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• Diretor Geral do Departamento Nacional da Criança;

• Diretor do Instituto Oswaldo Cruz;

• Diretor da Escola Nacional de Saúde Pública;

• Superintendente da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública;

• Diretor Geral de Saúde do Exército;

• Diretor Geral de Saúde da Marinha;

• Diretor Geral de Saúde da Aeronáutica;

• Titular da Diretoria de Ensino Superior do Ministério de Educação e Cultura;

• Diretor Geral do Departamento Nacional de Obras de Saneamento do Ministério de Viação e Obras Públicas;

• Diretor da Divisão de Defesa Sanitária Animal do Ministério da Agricul-tura;

• Presidente do Conselho de Medicina da Previdência Social do Ministé-rio do Trabalho;

• Presidente da Academia Nacional de Medicina;

• Presidente da Associação Médica Brasileira;

• Presidente da Sociedade Brasileira de Higiene;

• Presidente da Seção Brasileira da Associação Interamericana de Engenha-ria Sanitária;

• Oito membros escolhidos entre “pessoas de notória capacidade em as-suntos relativos à saúde”; 12 e

• Secretário geral e um secretário adjunto, designados pelo ministro e fun-cionários do Ministério.

Os oito membros escolhidos tinham mandato de três anos, com direito a uma recondução, “a juízo do governo”. O ministro poderia, ainda, indicar funcionários do Ministério para o atendimento dos “serviços do Conselho”.

O Decreto no 847, de 5/4/1962, declarou que a finalidade do Conselho seria “assistir o Ministro de Estado da Saúde, com ele cooperando no estudo de assuntos pertinentes à sua Pasta” – detalhando-as conforme transcrição a seguir:

Legislação 9 − arts. 5o e 6o do Decreto no 847, de 5/04/1962

Art. 5o − Compete ao Conselho Nacional de Saúde:

a) Examinar questões ou problemas que digam respeito à Saúde − sua promoção, proteção e recuperação −, propondo o estudo de medidas adequadas à sua solução;

12. Eram preferencialmente de entidades oficiais ou privadas cujas atividades tivessem interesse para a saúde pública.

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b) Propor a realização de indagação científica, pesquisas e estudos para esclare-cimentos de fatos de relevante interesse no campo de Saúde Pública;

c) Propor à administração Sanitária a formulação de esquemas, normas e provi-mentos de medidas para a ação da Saúde Pública;

d) Opinar sobre trabalho com risco de vida insalubre;

e) Opinar sobre matéria submetida à sua apreciação por dispositivo legal ou soli-citação do ministro da Saúde, sobre assuntos pelo mesmo julgados oportunos.

Art. 6o − O Conselho Nacional de Saúde será sempre consultado sobre:

a) Regulamentos, regimentos, normas, projetos de decretos e de leis, atinentes a problemas de saúde, na esfera de ação do Ministério da Saúde;

b) Convênios Internacionais relativos a questões de saúde;

c) Composição da proposta orçamentária anual do Ministério da Saúde, poden-do oferecer sugestões, quando julgadas necessárias e oportunas;

d) Denegação e revogação de registro de especialidades farmacêuticas, quando submetidas à apreciação do ministro da Saúde, em grau de recurso.

Duas novidades aparecem no Decreto: o Conselho ganhou a possibilidade de propor mudanças no orçamento anual da saúde; e foram estabelecidas regras para suas reuniões e votações (mais tarde essas regras seriam reformadas pelo Decreto no 55.242, de 18/12/1964).

O Decreto no 55.242, de 18/12/1964, revogou o Decreto no 847, de 5/4/1962, e reestruturou o Conselho. Eliminou a relação com a Previdência e perdeu poder em ques-tões orçamentárias. O Conselho passou a ter 13 membros, com a seguinte composição:

Legislação 10 − art. 3o do Decreto no 55.242, de 18/12/1964

• Ministro da Saúde (presidente do Conselho);

• Quatro dirigentes de órgãos de administração superior do Ministério da Saúde;

• Quatro membros escolhidos entre técnicos de notória capacidade e com-provada experiência em assuntos de saúde;

• Quatro membros representantes das seguintes instituições: Academia Nacional de Medicina, Academia Brasileira Militar, Sociedade Brasileira de Higiene e Associação Médica Brasileira.

E suas funções foram definidas de forma mais genérica.

Legislação 11− art. 2o do Decreto no 55.242, de 18/12/1964

Art 2o − Compete ao Conselho Nacional de Saúde opinar:

I - sobre as matérias que lhe devam ser submetidas por força de disposição de lei;

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II - mediante solicitação do ministro de Estado da Saúde;

a) sobre questões e problemas relativos à promoção, recuperação e proteção de saúde, indicando medidas adotadas para sua solução;

b) sobre a realização de pesquisas científicas e estudos atinentes e assuntos rela-cionados à saúde;

c) sobre projetos de regimentos, regulamentos, leis e decretos relacionados com as atividades técnicas, específicas, do Ministério da Saúde.

A partir da leitura do Decreto, é possível aventar a hipótese de que o Conselho perdeu poder. Como ele só poderia opinar sobre as matérias que lhe fossem subme-tidas por força de disposição legal ou sob solicitação do ministro de Estado, o Con-selho não tinha mais a possibilidade institucional de estabelecer sua própria agenda. A Previdência continuou sem ter participação no Conselho. O Ministério permane-ce hegemônico no plenário.

Todavia, sabe-se pouco sobre a atuação do CNS desse período, seu real papel e funcionamento. A legislação mostra que todos os representantes eram escolhidos pelo executivo, sejam eles funcionários do próprio executivo (MS) ou especialistas em te-mas da saúde. Isso pode ser um indicativo da subordinação do Conselho ao executi-vo. É possível, contudo, que os conselheiros tivessem uma influência informal, tanto na articulação política, quanto na proposição, diagnóstico e no convencimento das elites burocráticas. Alguns, inclusive, eram parte desta elite. Porém, a julgar pela au-tonomia da burocracia ministerial e pela inexistência de estruturas de suporte ao Con-selho, é mais provável que sua capacidade de influir efetivamente tenha se limitado a um ou outro tema.

Segundo período

Neste período, o escopo de atuação do Conselho Nacional de Saúde é ampliado. Pas-sou a atuar sobre promoção, proteção e recuperação da saúde, sem incorporar a parti-cipação do principal ator, a Previdência Social, nesse último.

O Decreto no 67.300, de 30/09/1970, editado no governo Médici, não apresen-ta grandes inovações quanto às funções, estrutura e composição do CNS. Ele conti-nuou a ser constituído por representantes de instituições públicas ligadas ao setor saúde, ao próprio Ministério, por setores acadêmicos ligados à medicina, farmácia e hospitais e por técnicos de notória capacidade e experiência. Porém, o número de membros aumentou para 16.

Legislação 12 − art. 2o do Decreto no 67.300, de 30/9/1970

• Ministro de Estado da Saúde (presidente do Conselho);

• Secretário Geral;

• Secretário de Saúde Pública;

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• Secretário de Assistência Médica;

• Superintendente da Fundação Serviços de saúde pública;

• Presidente da Fundação Instituto Oswaldo Cruz;

• Quatro membros designados pelo ministro de Estado, escolhidos em lis-ta tríplice apresentada pelas seguintes instituições: Academia Nacional de Medicina, Academia Brasileira de Medicina Militar, Academia Nacional de Farmácia e Academia Brasileira de Administração Hospitalar;

• Cinco membros escolhidos pelo ministro de Estado, entre técnicos de notória capacidade e comprovada experiência em assuntos de saúde; e

• Um membro, escolhido pelo ministro de Estado, por indicação do Esta-do Maior das Forças Armadas.

O Conselho foi definido como um “órgão de consulta, integrante do Ministério da Saúde [ao qual] compete examinar e emitir parecer sobre questões ou problemas relativos à promoção, proteção e recuperação da Saúde, que sejam submetidas à sua apreciação pelo Ministro de Estado, bem como opinar sobre matéria que, por força de lei, tenha que ser submetida à sua apreciação”. (Art. 1o, Decreto no 67.300, de 30/09/1970).

Contudo, apesar da falta de “inovações institucionais”, os participantes do Conselho dão grande importância a este decreto, a ponto de considerá-lo um marco histórico im-portante. A razão é que ele dotou o Conselho de uma estrutura burocrática estável.

No governo Geisel, a Lei no 6.229, de 17/06/1975, constituiu o Sistema Nacio-nal de Saúde (SNS). Ela estabelece que o “complexo de serviços, do setor público e do setor privado, voltados para ações de interesse da saúde, constitui o Sistema Na-cional de Saúde, organizado e disciplinado nos termos desta lei, abrangendo as ativi-dades que visem à promoção, proteção e recuperação da saúde” (art. 1o, Lei no 6.229, de 17/06/1975). A criação do Sistema Nacional de Saúde modificaria, por assim di-zer, o ambiente institucional no qual o CNS estava inserido. As conseqüências desse novo contexto se delineariam com mais nitidez nos anos posteriores.

O Decreto no 79.056, de 30/12/1976, reestruturou o Ministério da Saúde. O CNS foi definido como um “órgão colegiado” pertencendo à “estrutura básica” do Ministério.13 Ao CNS competiria “examinar e propor soluções para problemas con-cernentes à promoção, proteção e recuperação da saúde e elaborar normas por meio de suas câmaras técnicas, sobre assuntos específicos a serem encaminhados à aprecia-ção do ministro de Estado” (art. 8o, Decreto no 79.056, de 30/12/1976). O Decreto 13. O Ministério da Saúde foi constituído por vários órgãos e entidades. São órgãos da sua “Estrutura Básica”: a) Órgãos de Assistência Direta e Imediata ao Ministro de Estado: 1.Gabinete do Ministro (GM); 2. Consultoria Jurídica (CJ); 3. Divisão de Segurança e Informações (DSI); 4. Coordenadoria de Comunicação Social (CCS); b) Órgão Colegiado: 1. Conselho Nacional de Saúde (CNS); c) Órgãos Centrais de Planejamento, Coordenação e Controle Financeiro; 1. Secretaria Geral (SG); 2. Inspetoria Geral de Finanças (IGF); d) Órgãos de Administração de Atividades Auxiliares: 1. Departamento de Administração (DA); 2. Departamento de Pessoal (DP); e) Órgãos de Administração de Atividades Específicas: 1. Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS); 2. Secretaria Nacional de Ações Básicas de Saúde (SNABS); 3. Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde (SNPES); 4. Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam); f) Órgãos de Coordenação e Atuação Regional: 1. Coordenadoria de Saúde da Amazônia (Corsam); 2. Coordenadoria de Saúde do Nordeste (Corsane); 3. Coordenadoria de Saúde do Centro-Oeste (Corcentro); 4. Coordenadoria de Saúde do Sudeste (Corse); 5. Coordenadoria de Saúde do Sul (Corsul). São “Entidades Vinculadas e Supervisionadas”: a) Autarquia: 1. Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan); b) Funda-ções: 1. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); 2. Fundação Serviço da Saúde Pública (FSESP); 3. Fundação das Pioneiras Sociais (FPS). (Art. 3o, Decreto no 79.056, de 30/12/1976).

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modificou a estrutura institucional do Conselho, incorporando a ele, como “câmaras técnicas”, o “Conselho de Prevenção Antitóxico” (instituído pelo Decreto no 69.845, de 27/12/1971, e denominado, a partir daí, “Comissão de Prevenção Antitóxico”); a “Comissão Nacional de Hemoterapia”; a “Comissão Nacional de Normas e Padrões para Alimentos”; e a “Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes”.

À diferença do momento anterior, temos, neste segundo período, um grande conjunto de análises e interpretações – inclusive com extensa bibliografia. Não cabe aqui fazer uma descrição detalhada dessa época, mas algumas informações contextuais são relevantes para o futuro papel que o Conselho Nacional de Saúde iria desempenhar.

O autodenominado “movimento de reforma sanitária” teve um papel importan-te nas modificações deste período. Médicos sanitaristas começaram a galgar postos importantes na burocracia estatal. Embora o “movimento” fosse composto de várias linhas que, em alguns momentos, defenderam posições antagônicas a respeito de as-suntos específicos, as diversas facções tinham alguns princípios comuns.14 Dentre eles, podemos citar a “integralidade”, a “descentralização” e a “universalidade” da atenção à saúde. Estes princípios, por sua vez, refletiam-se em diferentes propostas para a or-ganização do sistema. Uma destas propostas, que acabou mais tarde tornando-se his-toricamente dominante, foi a da participação de setores não profissionais na gestão do sistema, como os usuários.

Em princípio, essa participação assumiu o caráter de um instrumento de racio-nalização, eficiência dos serviços de saúde, na sua implementação no âmbito local na comunidade. Com efeito, a comunidade era chamada a “participar”, o que significa-va, algumas vezes, fornecer informações aos gestores e, em outras, atuar na programa-ção das ações de saúde. Historicamente isso acabou se transformando numa demanda pela participação social nas decisões de planejamento, gestão e articulação intersetori-al. Nesse sentido, alguns autores chamam a atenção que, com a criação do PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento do Nordeste –, come-çaram a ser incorporadas importantes prescrições da Medicina Comunitária em um abrangente programa. Ao mesmo tempo, apareceram movimentos reivindicatórios nas periferias urbanas e as lutas sindicais na área da saúde federal.

Essas transformações culminam na década de 1980 com a crise da Previdência que, até aquele momento, ditava as regras de funcionamento do modelo médico-assistencial. O “movimento de reforma sanitária” tinha como objetivo institucional criar espaços que lhe possibilitassem redirecionar as políticas de saúde. O resultado des-te embate foi a criação do Conselho de Administração de Saúde Previdenciária – Co-nasp − para operar questões como a organização da assistência médica e o financiamen-to setorial. Era composto por notáveis da medicina, representantes de vários ministé-rios, de trabalhadores, do setor patronal e dos prestadores de serviços. Foi criado pelo Decreto-Lei no 86.329, de 2/09/1981, no governo Figueiredo, e se propunha à reorien-tação da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social com medidas racionaliza-doras (redução de custos e corte de gastos).15

14 A identidade do movimento sanitarista delineou-se num intenso debate, na década de 1970. Estes debates aconteceram, principalmente, em torno do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). Ver Oliveira & Teixeira (1996), Carvalho (1994 e 1995).

15. Ler, a respeito, em: Noronha & Levecovitz (1994).

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As Conferências Nacionais de Saúde foram outro bom exemplo das modifica-ções deste período. Desde a década de 1960, elas exerceram um papel importante na discussão das políticas públicas, “essas Conferências convocaram principalmente os profissionais da área, sobretudo médicos – e entre eles quase exclusivamente os mais ligados à saúde pública –, mas, a partir dos anos 1980, estenderam essa convo-cação à população usuária dos serviços de saúde, por meio de seus representantes organizados em associações ou grupos comunitários específicos, e aos sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais”.16

Com efeito, a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, foi a primeira que contou com presença ampla de diversos segmentos não-governamentais e da sociedade civil, desde as representações sindicais, conselhos, associações e federa-ções nacionais de profissionais de saúde, até representantes das secretarias estaduais e municipais de saúde, prestadores de serviços e titulares e representantes de vários mi-nistérios (Decreto no 91.466, de julho de 1985).

O relatório final da Conferência propôs que o novo Conselho Nacional de Saúde fosse constituído por representantes da área social, dos governos estaduais e municipais, e das entidades civis nacionais (partidos, centrais sindicais e movimentos populares). Por este desenho, o CNS teria, também, as funções de orientar e desenvolver o sistema de saúde, bem como avaliar seu desempenho, definir políticas, orçamentos e ações.

O relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde foi referência para os consti-tuintes e para a elaboração da Constituição de 1988. Entre a Conferência e a promul-gação da Carta, em 1987, foi criado o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde e, por decreto presidencial, de 20/07/1987, o Sistema Unificado e Descen-tralizado de Saúde (SUDS). A implementação do SUDS se dava mediante convênios entre o Inamps e as Secretarias Estaduais de Saúde (SES). O Conasem entra em cena e passa a ser um importante ator. O SUDS tem conseqüências políticas, no rearranjo das forças políticas e na transformação da máquina previdenciária.

Terceiro período

Às vésperas da promulgação da Constituição de 1988, no governo Sarney, e sob in-fluência do movimento sanitarista, o CNS sofre mais algumas mudanças. O Conse-lho é reconhecido como “órgão de deliberação coletiva de segundo grau”, cuja finali-dade era “assistir o ministro de Estado na implantação e execução da Política Nacio-nal de Saúde”. O Decreto no 93.933, de 14/01/1987, deu-lhe funções normativas no que concerne à promoção, proteção e recuperação da saúde. Caber-lhe-ia privativa-mente dispor sobre questões de interesse sanitário relativo ao uso humano de medi-camentos, produtos de higiene, cosméticos, alimentos, hemoterapia, entorpecentes e saneantes domissanitários, ressalvada as competências da Secretaria Nacional de Vigi-lância Sanitária. Seria de sua competência, também, o exercício da função de avalia-ção tecnológica e estabelecimento de padrões de assistência à saúde.

O Decreto no 99.438, de 07/08/1990, confirmou o papel do CNS de formula-ção da estratégia e controle da execução da Política Nacional de Saúde. Suas compe-

16. Ver em Luz (1994).

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tências eram as seguintes: estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos de saúde, em função das características epidemiológicas e da organização dos serviços; estabelecer cronogramas de transferências de recursos federais aos demais entes de governo; aprovar critérios e valores para remuneração de serviços e os parâ-metros de cobertura assistencial; acompanhar e controlar a atuação do setor privado credenciado; acompanhar e controlar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área de saúde. A composição do Conselho sofreu uma grande transformação, incorporando segmentos variados da sociedade (ver art. 2o do Decreto no 99.438, neste estudo).

E a Lei no 8.080, de 19/10/1990, tratou a participação da comunidade como diretriz do SUS, reafirmando aquela que foi estabelecida pela Constituição (no seu artigo 198, Seção II). Ela estabeleceu, ainda, que “serão criadas comissões intersetorais de âmbito nacional, subordinadas ao Conselho Nacional de Saúde, integradas pelos Ministérios e órgãos competentes e por entidades representativas da sociedade civil”. A finalidade seria a articulação de políticas e programas de interesse para a saúde e que envolvessem áreas não compreendidas no âmbito do SUS. A lei também conferiu ao CNS o poder de estabelecer diretrizes para elabo-ração de planos de saúde, em função de características epidemiológicas e a organi-zação dos serviços em cada jurisdição administrativa.

Interessante notar que os artigos desta lei que tratavam do preceito constitucio-nal, da normatização e disciplinamento de transferências financeiras a estados e mu-nicípios foram vetadas pelo presidente mas, logo depois, restabelecidas na Lei no 8.142, de 28/12/1990.

A lei no 8.142 previu no seu § 2o o seguinte:

“O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saú-de e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financei-ros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo”.

Os outros artigos da lei definiram que o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conas-sems) teriam representação no Conselho Nacional e que a representação dos usuários seria paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos.

Durante este último período, o CNS consolidou-se como peça importante do planejamento estratégico e da implementação de políticas de saúde.

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12 CONCLUSÕES

As diferenças destes três períodos estão resumidas no quadro abaixo: Primeiro Período Segundo Período Terceiro Período Composição Titulares dos órgãos da

administração superior, presidentes (a partir de 1964, representantes) de instituições médicas e notáveis da área de saúde indicados pelo executivo

Continuam representan-tes da administração pública superior, institui-ções médicas e notáveis

Governo federal, gesto-res estaduais e munici-pais, trabalhadores, empresários, comunida-de científica, igreja, profissionais de saúde, prestadores, usuários. A composição é paritária

Atribuições Legais Órgão consultivo (as matérias sujeitas à sua consideração variam ao longo do tempo, porém em nenhum momento ele ganha funções normati-vas)

Continua como um órgão consultivo, mas ganha um caráter propositivo limitado e normativo somente nas matérias que lhe forem encami-nhadas pelo ministro da Saúde

Órgão deliberativo, normativo e propositivo

Institucionalidade Não há estrutura buro-crática estável

Criação de uma estrutura burocrática mínima

Expansão da estrutura burocrática, criação dos conselhos estaduais e municipais e sua articu-lação no e com o CNS; consolidação da dinâmi-ca de comissões, articu-lação intersetorial

Conclui-se não apenas que o CNS tem três momentos distintos, mas que estes três momentos são causados pela sua inserção no contexto social mais amplo. Isso explica, em parte pelo menos, a diferença do CNS com outros conselhos. O CNS organiza um conjunto de movimentos sociais que preexistia; ele dá vazão a reivindicações organiza-das da sociedade civil. Isso não acontece com outros conselhos. Podemos dizer, então, que o princípio constitucional da participação popular teve resultados diferentes e que estes resultados dependeram, em grande parte, das demandas mais ou menos organiza-das que preexistiam e também da configuração específica dos agentes envolvidos.

Também pode-se relacionar o perfil e os desenvolvimentos do CNS com o Esta-do em sucessivos períodos. A forma do Conselho é consistente com as concepções e linhas gerais da formação e evolução do Estado no Brasil. Em um primeiro momento, sua estrutura foi composta dentro da concepção de um corpo de especialistas cuja função era simplesmente consultiva. É possível que as opiniões e posicionamentos desses especialistas não tivessem sido freqüentemente decisivos, pois o órgão do qual participavam não estava investido das atribuições legais tampouco dispunha de recur-sos políticos adequados. O período foi marcado pela saúde pública das campanhas e a hegemonia era do Ministério. A partir da década de 1950, as ações públicas incorpo-ram a recuperação da saúde.

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No segundo momento, a partir da década de 1970, o CNS ganhou estruturas bu-rocráticas para o desempenho de suas atribuições legais. Este é um fato marcante. Suas funções institucionais não sofrem grandes alterações neste período. Contudo, ricos mo-vimentos e remanejamentos nas formas de arranjo setorial colocarão novos grupos, segmentos e movimentos no jogo político, transformando profundamente os conceitos de participação social e as definições do que deveriam ser os conselhos de política.

Por fim, no terceiro momento, final da década de 1980 e início dos anos 1990, se reconhece que os problemas de saúde não são apenas técnicos, mas também políti-cos, portanto resultado de conflitos e acordos entre as mais diversas forças políticas. O CNS modificou-se a partir desta concepção. A idéia-chave é a de um Estado na soci-edade, ou seja, um Estado atravessado por conflitos e embates, mas com áreas pró-prias à representação e à negociação política.

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