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Texto publicado no Livro Caminhos para a transformação da escola 3 –
Organização do trabalho pedagógico nas escolas do campo: ensaios sobre os
Complexos de Estudo, pela Editora Expressão Popular, em 2017, organizado por
Marlene Lucia Siebert Sapelli, Luiz Carlos de Freitas e Roseli Salete Caldart
Complexos de Estudo – do inventário ao Plano de Estudos1
Ana Cristina Hammel2
Maria Isabel Farias3
Marlene Lucia Siebert Sapelli4
Desde os anos 1980, conforme explicitado no primeiro capítulo, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vem engendrando os princípios pedagógicos e
filosóficos que dão sustentação a sua proposta pedagógica e tem buscado aprofundar os
estudos de teóricos (especialmente russos: Pistrak, Makarenko, Vygotsky, dentre outros),
que contribuam para agregar elementos para uma proposta educacional, com vistas a
torná-la instrumento de formação humana, em suas várias dimensões, e que contribua
para a emancipação dos sujeitos. No momento inicial dessa trajetória, Paulo Freire foi a
referência5 e, por muitos anos, o trabalho com temas geradores foi destaque, porém, a
partir de 2009, desencadeou-se um processo intenso de reavaliação e incorporação de
novos elementos, que, no caso do Paraná, culminou com a construção dos Complexos de
Estudo que, agregados à proposta dos Ciclos de Formação Humana6, constituiu a proposta
pedagógica atual.
1 Parte da pesquisa foi realizada com apoio do CNPq, Chamada 43/2013, no processo de execução do
Projeto intitulado Análise do processo de implementação, dos fundamentos teórico-metodológicos e da
origem histórica da proposta curricular dos ‘Complexos de Estudo’. 2 Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná e Docente da Universidade Federal
Fronteira Sul, Laranjeiras do Sul/PR. 3 Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho e Docente da
Universidade Federal do Paraná/Litoral, Matinhos/PR. 4 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina e Docente da Universidade Estadual
do Centro Oeste do Paraná, Guarapuava/PR. 5 Ver Sapelli, M. L. S. Escola do Campo – Espaço de disputa e de contradição: análise da Proposta
Pedagógica das Escolas Itinerantes do Paraná e do Colégio Imperatriz Dona Leopoldina. Tese. Programa
de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado em Educação. 2013. 6 Ver SAPELLI, M. L. S. Escola do Campo – Espaço de disputa e de contradição: análise da Proposta
Pedagógica das Escolas Itinerantes do Paraná e do Colégio Imperatriz Dona Leopoldina. Tese. Programa
de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado em Educação. 2013.
O processo de reavaliação e incorporação de novos elementos à proposta se deu em três
níveis: no nível I, houve o planejamento geral entre as escolas envolvidas e setor de
educação; no nível II, foi feita a implementação do experimento em cada escola ou
coletivo escolar; e no nível III, teve lugar a formação dos educadores do conjunto das
escolas envolvidas. Não houve, na prática, uma separação tão explícita dos três níveis,
pois, várias ações de diferentes níveis foram realizadas de forma concomitante.
O objetivo deste capítulo é apresentar o trabalho inicial do processo de construção dos
Complexos de Estudos, ou seja, descrever o nível I, explicitando os trabalhos da fase 1
(levantamentos e formulações); da fase 2 (análises) e da fase 3 (sínteses e
sistematizações). O trabalho de pesquisa para construir este capítulo foi realizado por
meio de análise de bibliografias específicas, bem como de documentos produzidos
durante o processo em questão.
O processo de construção da proposta dos Complexos de Estudo, segundo Sapelli (2013),
iniciou em 2009, quando foram elaborados alguns cadernos para registrar as experiências
que o MST vinha realizando em algumas escolas:
Em 2009, em vários encontros, representantes do MST, de Universidades e do setor de
Educação do Paraná reuniram-se para registrar algumas experiências do Movimento, tanto
do Paraná como de outros estados. E isso foi feito num processo de construção de quatro
cadernos. Os três primeiros eram o registro das experiências das escolas e a publicação de
artigos de pesquisadores que tratavam de discussões sobre as escolas itinerantes e os
acampamentos e o próprio Movimento. O outro caderno, que ainda se encontra na SEED
para publicação [...] apresenta orientações pedagógicas aos educadores da Educação Infantil
e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Após o término da construção desses quatro
cadernos, iniciou-se a construção do quinto caderno que visava justamente apresentar
orientações pedagógicas para os educadores dos anos finais do Ensino Fundamental e para o
Ensino Médio. Quando o trabalho foi iniciado algumas questões vieram à tona, especialmente
no que se referia aos temas geradores. O trabalho com a produção desse caderno foi suspenso
e iniciou-se uma grande discussão sobre os pressupostos da proposta pedagógica (SAPELLI,
2013, p. 205).
Assim, em maio de 2010, em decorrência das reflexões e da avaliação da proposta em
andamento, ficou indicada a necessidade de potencializar o que estava em processo, mas
também de incluir novos elementos para avançar na construção de uma educação de nova
forma e novo conteúdo para a classe trabalhadora. Para isso, foi constituído um Grupo de
Trabalho, que envolveu educadores das escolas itinerantes e de algumas Universidades
do Paraná e da UFSC, representantes do Coletivo da Coordenação Estadual das Escolas
itinerantes, além de Luiz Carlos de Freitas, da Unicamp, e Roseli Caldart, do Iterra/RS.
Logo no início do processo, discutimos a possibilidade de organizar o trabalho em três
níveis. No processo, a proposição inicial, formulada pelo professor Luiz Carlos de Freitas
com base em seus estudos da experiência e da autocrítica dos pedagogos russos, foi
avaliada,redefinida e articulada da seguinte forma:
Nível I: Planejamento geral entre as escolas envolvidas e setor de educação:
Fase 1: Levantamentos, exame e formulações dos diferentes elementos que compõem o
Plano de Estudos: matriz formativa (considerando exigências de alterações do conteúdo
e da forma escolar); inventários da realidade; conteúdos de ensino e sua distribuição nos
anos e semestres, considerando pré-requisitos; objetivos de ensino; objetivos formativos.
Fase 2: Análises e construção das relações entre os elementos do Plano.
Fase 3: Síntese: constituição dos complexos e definição da forma de sua exposição.
Sistematização do Plano de Estudos em documento de referência para as escolas.
Nível II: Implementação do experimento em cada escola ou coletivo escolar
Reconstrução em cada escola das fases 1,2 e 3 do Nível I
Nível III: Formação dos educadores do conjunto das escolas envolvidas
Programa de formação estadual (coletivos pedagógicos das escolas)
Atividades de formação local (ou em cada escola)
Figura 1 - Esboço das categorias do trabalho pedagógico nos níveis 1, 2 e 3
Categorias do trabalho pedagógico Relação conteúdo – forma escolar
MÉTODOIndicativo geral da
metodologia para cada complexo
Levantamento e análise
Complexos
Síntese
Coletivo da Escola (nível 2)
Nível 1 - Sistema
Formação do magistério
(nível 3)
Fonte: Slide elaborado por Luiz Carlos de Freitas (MST,2015).
Na sequência, explicamos detalhadamente as fases 1,2 e 3, do Nível I. Os níveis II e III
são objeto dos próximos capítulos.
1. Fase 1 - Levantamentos e formulações
O primeiro encontro da fase 1, realizado de 01 a 03 de maio de 2010, em Curitiba, teve
a participação de representantes da coordenação do Coletivo Estadual de Educação do
MST, de coordenadores de escolas itinerantes e da escola-base Colégio Estadual do
Campo Iraci Salete Strozak, de educadores de Universidades, de Roseli Salete Caldart
(Iterra/MST) e de Luiz Carlos de Freitas (Unicamp). Naquele primeiro encontro, as
principais decisões a respeito da construção da proposta foram: envolver, na primeira fase
do experimento, as escolas itinerantes que ofertavam anos finais do Ensino Fundamental
(EF) e Ensino Médio (EM) e a escola-base, que também ofertava os mesmos níveis de
ensino, em um total de 6 escolas. As cinco escolas itinerantes envolvidas foram: Zumbi
dos Palmares e Caminhos do Saber (vinculadas a esta escola-base); e Escola Valmir
Motta, Construtores do Futuro e Carlos Marighela (vinculadas à escola-base Colégio
Estadual do Campo Centrão). Outra decisão foi a de realizar a construção dos inventários
dessas escolas e analisá-los; procederà revisão do rol de conteúdos; fazer o levantamento
de problemáticas da atualidade passíveis de serem elementos dos complexos; elaborar
texto-síntese da concepção de educação e matriz formativa que serviriam de base a este
experimento; definir o método e a forma de organização dos registros do experimento.
Para realizar a construção da proposta, o Movimento precisou contar com trabalho
voluntário, auxílio de universidades e financiamento próprio.
As tarefas definidas inicialmente para o nível 1 foram as seguintes:
● Especificar a concepção de educação e matriz formativa
Identificar o educando, suas características e necessidades em geral
● Fazer as definições iniciais quanto à unidade de tempo disponível e as disciplinas
envolvidas
● Definir os aspectos teóricos (conteúdos) a serem ensinados nestas disciplinas e os
aspectos formativos necessários ao educando
● Formular os objetivos ligados ao conhecimento (ensino) e aos formativos e
especificar os êxitos esperados
● Adequar estes objetivos e seus aspectos teóricos à unidade de tempo disponível e
sua divisão.
● Articular elementos dos inventários do meio com os aspectos teóricos das
disciplinas e/ou objetivos formativos, agrupando-os de forma a propor complexos
gerais (partes da realidade que permitem a integração de conceitos explicativos e
procedimentos de análise oriundos das várias disciplinas em questão) comuns a
todas as disciplinas e sugerir metodologias para sua implementação pelo coletivo
escolar.
● Indicar como conduzir os inventários do meio educativo local, tendo em vista as
disciplinas envolvidas e os educandos, de forma a levar em conta o entorno
concreto da escola no interior dos complexos indicados.
● Definir o aproveitamento particular (em termos de objetivos e êxitos) que uma
dada disciplina fará de cada complexo, bem como os eventuais métodos
específicos necessários para o estudo destas disciplinas específicas
● Fazer uma distribuição inicial dos complexos na unidade de tempo disponível
● Indicar como examinar cada complexo, de forma a elencar as atividades de
preparação necessárias e outras providências para sua abordagem, fixando
responsabilidades na equipe de educadores
● Definir os momentos de balanços coletivos quanto aos êxitos planejados e obtidos
pelos educandos e seu redirecionamento, se necessário.
Assim, na fase 1 - de levantamentos e formulações,ocorreram, de forma concomitante,
tanto o levantamento das condições sociais do entorno das escolas em questão, ou seja, a
construção dos inventários, quantoa formulação da lista de conteúdos, da concepção de
educação, da matriz formativa, dos objetivos de ensino e formativos. Ratificamos que tais
elaborações não representaram o início de um processo, mas sim a avaliação e redefinição
com incorporação de novos elementos e o fortalecimento da Pedagogia do Movimento,
que vinha sendo engendrada desde os anos 1980. No primeiro momento, a construção dos
inventários foi fator fundamental.
1.1. Construção do inventário
Se partirmos do pressuposto de que a realidade é um um instrumento fundamental para
a formação dos sujeitos, ela precisa ser apreendida por todos para que possa fundamentar
o processo pedagógico, vinculado às questões da atualidade. Neste sentido, há
necessidade de inventariar a realidade e buscar nela os elementos que contribuirão para
a construção do conhecimento.
Freitas (2003) considera que a escola, no capitalismo, perdeu sua relação com a vida, com
o trabalho, pois, na medida em que este sistema expropria o ser humano de atividade
criadora, precisa criar mecanismos artificializados para manter sob controle os sujeitos
que passam pela escola, alienados em relação à vida.
Neste sentido, se almejamos romper com a lógica da escola capitalista, é urgente que a
nova forma escolar se vincule às problemáticas da comunidade, identifique a cultura
locale as questões que movem os sujeitos que nela estão inseridos, quais lutas estão
presentes, como se organizam, quais as formas de trabalho, entre outras questões
relevantes.
A organização metodológica da escola dos Sem Terra por Complexos de Estudosignifica
pensar para além dos conteúdos e dos processos cognitivos, significa redimensionar a
forma, vincular conhecimento e realidade para fazer as conexões que permitem a
apropriação dos conteúdos produzidos historicamente pela humanidade, daí a importância
e a necessidade do inventário.
A pesquisa, que resulta no inventário, é fundamental para que essa realidade seja
conhecida e sistematizada, por meio de recursos comoestudos e análises. O inventário
consiste em diagnóstico etnográfico preciso e detalhado da realidade na qual estão
situadas as escolas e sua construção,por isso construí-lo foi uma das tarefas necessárias à
elaboração da proposta dos Complexos. Isso possibilitou conhecer o entorno da escola, e
também os sujeitos que sempre foram parte da escola, mas que historicamente a escola
capitalista ignorou.
Uma questão muito importante, que perpassava os estudos realizados no processo de
construção da proposta, era como abordar a luta pela terra ao ensinar a geografia, a
história, a matemática, a língua portuguesa, partindo da realidade vivida, mas sem tornar
menor a compreensão dos fatos políticos, históricos e econômicos e a apropriação dos
conceitos específicos de cada área. O desafio era e continua constante, pois exige do
coletivo a capacidade de perceber os elementos que precisam ser identificados para a
construção do diagnóstico, mas ao mesmo tempo procurando vislumbrar o trabalho e a
formação com os educandos.
Naquele momento, como a preocupação era organizar o currículo das escolas que
ofertavam os anos finais do Ensino Fundamental, nem todo o conjunto das escolas
participaram. Estavam presentes no primeiro momento da construção dos inventários, as
seguintes escolas:
Escola Itinerante Zumbi dos Palmares – Acampamento 1º de Agosto – Cascavel, Escola Itin.
Construtores do Futuro – Acamp.1º de Setembro – Rio Branco do Ivaí, Escola Itin. Caminhos
do Saber – Acampamento Maila Sabrina – Ortigueira, Escola Itin. Carlos Mariguella –
Acamp.Elias Gonçalves de Meura - Planaltina do Paraná, Escola Itinerante Valmir Mota –
Acamp. Valmir Mota – Jacarezinho e o Colégio Estadual do Campo, Iraci Salete Strozak –
Ass. Marcos Freire – Rio Bonito do Iguaçu (MST, 2015, p. 15).
Desta maneira, as escolas ficaram com o desafio de construir um inventário que mostrasse
a realidade na qual estavam inseridas: o acampamento e o assentamento, para identificar
todas as possibilidades de tornar a escola mais real, mais viva, mais interessante, com
mais produção do conhecimento, na qual os saberes e a organização estão presentes no
dia a dia escolar.
Para este levantamento/inventário do meio, as escolas se organizaram, orientadas pelos
processos formativos realizados no processo de construção da proposta e pela pesquisa
da realidade.
Para isso, foi estabelecido um roteiro que ajudava na pesquisa, sugerindo questões sobre,
dentre outros: agências formativas, religião, cultura local/costumes/lazer/festas, origem
das famílias, juventude (atividades, problemas, participações), contradições e
problemáticas, trabalho, auto-organização, listas dos educandos, influências externas e
relação com a sociedade, pautas e lutas sociais existentes, quem são os estudantes. E
também questões internas da própria escola: referências curriculares, metodologias,
conteúdos, tempos educativos, levantamento das estruturas físicas e humanas; relações
com a comunidade e o projeto político pedagógico. (MST, 2015).
Na primeira fase de elaboração, três escolas realizaram o inventário, orientadas pelo
roteiro elaborado pelo coletivo em formação, para que o trabalho “garantisse” olhar todas
as formas de organização da comunidade, não perdendo de vista nenhuma dimensão.
Estes primeiros inventários foram apresentados para todas as escolas envolvidas no
processo, em uma dinâmica que fez com que a construção fosse se consolidando no
coletivo, trazendo os avanços e as dificuldades que cada escola identificou.
Esse levantamento foi fundamental, porque trouxe para dentro da escola a realidade da
comunidade, seu entorno, muitas vezes ignorado e desconsiderado para a construção do
conhecimento. Essa organização permitiu que as escolas reconhecessem o que precisava
ser visto pelo conjunto dos sujeitos das escolas. Depois desse primeiro momento, as
demais escolas envolvidas também iniciaram a construção do inventário.
As escolas envolvidas nesse processo/experimento tiveram caminhos diferentes para
realizar o inventário da realidade. O roteiro elaborado no coletivo foi o que auxiliou as
escolas na direção e organização do trabalho, mas nem todas as escolas conseguiram
organizá-lo de maneira que envolvesse todos os sujeitos que compõem a escola. Algumas
escolas elaboraram questionários, fizeram o registro fotográfico, entrevistaram pessoas.
Cada escola teve autonomia para organizar o inventário, de acordo com a sua condição.
Muitas famílias também responderam questões e participaram, assim como os educadores
envolvidos na formação e responsáveis pelo trabalho na escola. Desta forma, algumas
escolas optaram por organizar o inventário por partes, por exemplo: em 2013, os
estudantes aplicaram um questionário para os grupos familiares; em 2014, realizaram
entrevista com educandos das turmas. Registramos também situações em que a escola
não realizou inventário descritivo, mas definiu em um primeiro momento que olharia
apenas para aspectos da realidade para o trabalho com os anos iniciais. Ou seja, um
inventário que elencasse aspectos da vida, de forma mais simples, deixando para um
segundo momento a organização mais ampla e exigida pelo processo. Houve escolas que
fizeram visitas às famílias, que registraram imagens por meio de fotografias, fizeram a
sistematização e depois estudaram o texto para contribuições dos demais. Houve casos
em que a escola fez uso da semana pedagógica para atualizar o inventário. Houve
situações em que o Setor de Educação do acampamento esteve presente na construção e
execução dos questionários, e as brigadas e os educadores ficaram responsáveis pelo
levantamento e registro. Em algumas situações, poucas pessoas participaram, dificultando
a construção do inventário.
O inventário não é algo que possa ser feito uma única vez. As escolas demonstram a
necessidade de atualização do inventário, porque a realidade está em permanente
movimento, não é estática. A partir da elaboração, foi necessário sistematizar os
inventários, destacando elementos comuns às várias comunidades envolvidas. Isso tinha
como objetivo construir a “Coluna da Vida”, que representava a síntese dos elementos
encontrados na realidade e expressava a relação entre a natureza e o ser humano na
produção da vida.
Os elementos comuns foram sintetizados, num primeiro momento, da seguinte forma:
Quadro 2 – Coluna da vida
COLUNA DA VIDA
I – Lutas 1. Luta pela terra/ reforma agrária popular
- Pela educação
- Pela saúde
- Acesso e permanência na terra
2. Agroecologia
3. Gênero (participação de poder)
4. Luta pela cidadania (título de eleitor, bloco de produtor, endereço, RG).
5. Luta pela organização
II - Formas de organização no Assentamento/Acampamento - NB
- Setores
SOCIEDADE
NATUREZA
VIDA
SOCIEDADE NATUREZA VIDA
- Coordenação
- Direção
- Brigada
- Associação
- Grupo de Jovens/Adolescentes
- Grupo de Mulheres
- Assembleia
III - Formas de organização da escola - Coordenação da escola do acampamento
- APMF/ Conselho Escolar
- Coletivo de educadores (grupo de estudo)
- NB dos educandos (acampamento)
- Grêmio estudantil
- Conselho de Classe participativo
- Equipes de Trabalho
- Reunião de pais/ Assembleia
- Coordenação de turmas (educandos)
IV - VIDA/TRABALHO 1. Produção familiar (subsistência e comercialização):
- Plantio e colheitas
- Produção leiteira
- Criação de animais
2. Autosserviço:
- Trabalho doméstico
- Organização do espaço escolar
- Embelezamento
- Cuidado das crianças
- Proteção de fontes
- Plantio de árvores
- Guarda no acampamento
3. Empreitada:
4. Venda da força de trabalho:
- Colheitas
- Pedreiro
- Pintor
5. Mutirões
6. Oficina: - Horta
7. Cooperativas do agronegócio
8. Indústria
9. Agentes de Saúde
Outras questões
Fonte: MST (2015, pp. 39-40)
Os dados/elementos apresentados nos inventários, sintetizados na Coluna da Vida,
compunham quatro grandes blocos que giravam em torno: das lutas; formas participativas
de gestão e organização no acampamento/assentamento; formas de gestão e organização
na escola; formas de trabalho.
Os inventários explicitam que todas as escolas que estão implantando a proposta dos
Complexos de Estudo estão localizadas em áreas de Reforma Agrária, seja em
acampamentos ou assentamentos, tendo comunidades que trabalham em atividades
ligadas à terra, à agricultura e à pecuária, seja nos lotes conquistados depois do processo
de ocupação, ou em terras ocupadas, tendo presentes diversas formas de trabalho:
familiar, mutirões, meeiros, empreitadas, diaristas, dentre outros. Algumas dessas formas
são encontradas nos próprios acampamentos e assentamentos, mas também nos arredores,
ocorrendo quando os trabalhadores vendem sua força-de-trabalho para outros. Tais
questões expressam a organização social no interior do capitalismo, que impõe também
aos trabalhadores do campo alienação em relação ao principal meio de produção – a terra;
relações de exploração; submissão ao capital financeiro, por meio de bancos e outros
agentes, o que acarreta o endividamento das famílias; limite de acesso à educação, dentre
outros.
Influências políticas e partidárias, violência, morte de lideranças do MST, infiltração de
pessoas na organização social e administrativa que influenciam para desorganização dos
núcleos e grupos de famílias. Distorção de fatos que colocam uma liderança contra a outra
nas atuações que acabam virando disputa de poder. Influências de pessoas e Instituições como
os meios de comunicação que falam mal e agridem a imagem do MST, e das lideranças sem
conhecimento da realidade, influenciando nas tomadas de decisões dos sujeitos, das
comunidades, das associações, dificultando assim a organicidade do Movimento. Venda dos
lotes, arrendamentos, brigas entre vizinhos devido divisas de terra. Número elevado de
pessoas que estão inadimplentes, seja por dívidas particulares ou por ser avalista de outra
pessoa. Isso ocorre por endividamento com financiamentos em bancos e cooperativas, estas
também precisam ser analisadas com os seguidos anos de estiagem e períodos de seca
enfrentados pelos camponeses, acarretando em dificuldades do pagamento das dividas. Preço
muito baixo dos produtos comercializados pelos camponeses e, o custo de produção muito
alto. Especulação de cooperativas, casas agropecuárias e atravessadores em geral.
Preconceitos e sentimentos de inferiorização dos sujeitos que lutaram por estas terras. Escolas
fragmentadas/ ausência de um método. Pouca participação da comunidade. Desconhecimento
da realidade. Falta de entendimento de quais são os espaços educativos/ a escola é um dos
espaços. Falta de estruturas das instituições educativas – precarização das estruturas Difícil
acesso a universidade. Falta de cursos técnicos. Pouco tempo de estudo.Falta de atendimento
especializado. Falta de motivação e insegurança diante do futuro. Muitos jovens casam-se
cedo – 13 ou 14 anos, abandonando os estudos. Falta de certeza de um trabalho que garanta
um futuro satisfatório. Difícil acesso à universidade e a cursos técnicos. Poucos espaços de
lazer quando existem são masculinos. O trabalho no campo – falta de condições/ trabalho
pesado. (MST, 2015, p. 19).
Os inventários também revelaram a existência de iniciativas importantes de trabalho
coletivo, de práticas agroecológicas, de criação de cooperativas gestadas coletivamente
para o bem comum, de luta pela escola, pela saúde, enfrentamento em relação às questões
de gênero, étnicas e outras que indicam formas de contraposição à organização social
capitalista.
Sobre a escola, os inventários revelaram problemáticas históricas na luta pelas escolas do
campo, questões estruturais como falta de estradas, de salas de aulas, laboratórios,
biblioteca, entre outras. Grande parte das escolas atende estudantes da Educação Infantil
ao Ensino Médio, filhos de assentados e acampados, que sofrem influências dos meios de
comunicação de massa. Por estarem imersos em espaços de lutas e contestação,
acompanham seus pais nas lutas e se organizam para fazer suas lutas na escola, seja contra
a opressão da forma escolar, seja na luta por seus direitos. O texto expressa parte das
situações relatadas:
Péssimas condições das estradas, somente as vias de acesso principais são trafegáveis em
dias de chuvas, pois as demais faltam cascalhos não permitindo que os ônibus façam o
caminho. A redução do tempo aula, as aulas são em média de 45 min, quando os educandos
têm direito a 50 min, em alguns casos este índice chega a 30 min. Isto ocorre devido às
condições de acesso até o colégio, à distância percorrida diariamente pelo transporte que não
garante o tempo aula assegurado pela lei. A pouca leitura, a falta de acompanhamento da
família aos estudos, também dificultam o processo de ensino-aprendizagem, muitas vezes a
televisão ocupa muitas horas das crianças e jovens, o que poderia ser possibilidades de leitura
e estudo. O alto índice de rotatividade de educandos e professores, a resistência dos
professores em assumir uma proposta educativa que em determinados momentos se afasta da
escola tradicional. O fato dos professores, em sua maioria, não residirem na comunidade
(90%) acaba por dificultar a compreensão da realidade, dos limites e possibilidades que a
vida no campo apresenta. (MST, 2015, p. 20)
Além do diagnóstico da realidade, ainda era necessário fazer um levantamento dos
conteúdos ensinados e das metodologias utilizadas nas escolas. Neste caso, o inventário
indicou que as escolas tinham como principal referência as Diretrizes Curriculares do
Estado do Paraná7, por disciplina, mas também as Diretrizes da Educação do Campo
(estas, construídas pela Secretaria de Estado da Educação/PR, em 2006). Além desses
materiais as escolas utilizam os materiais produzidos pelosMST, como os cadernos nº 8,
que estabelecem os princípios filosóficos e pedagógicos, e o caderno nº 9 que estabelece
diretrizes para as escolas do assentamento. Outra constatação é que, embora o Projeto
Político Pedagógico das escolas indique o currículo por área do conhecimento, como
apontam os inventários, os educadores continuam trabalhando disciplinarmente.
A forma de trabalho é por disciplina, muito embora na matriz curricular os conteúdos estão
previstos por área do conhecimento, tem por guia o livro didático, há uma intenção da escola
em trabalhar aspectos da realidade mais isso tem ficado como esforço individual de cada
professor, também tem uma vez por mês uma reunião pedagógica para discutir formas de
trabalho interdisciplinar que por enquanto não tem se efetivado a intenção do trabalho
conjunto. Algumas discussões vêm acontecendo conforme a organização dos ciclos de
formação humana, em que se reúnem os educadores de cada ciclo e a pessoa da equipe
pedagógica responsável pelo ciclo, para avaliar e planejar algumas ações em relação as
problemáticas e questões que forem levantadas. Conforme estas discussões os educadores
chegaram ao consenso do trabalho com o tema. A partir dele cada professor tem replanejado
o seu trabalho com os conteúdos, pois, conforme proposta da escola, cada educador deve
organizar o Plano de Trabalho Docente anual, e isso ocorre no início do 1 semestre. Neste
Plano de Trabalho deve estar a proposta de conteúdos específicos, objetivos, metodologia e
avaliação para o trabalho a ser abordado com cada turma que trabalha na escola. Os conteúdos
são definidos nos planos de ensino, que são organizados semestralmente, tendo como
exemplos os planos organizados no ano anterior, tendo como apoio na pesquisa e
levantamento dos conteúdos o livro didático bem como as diretrizes curriculares do Paraná,
cada professor elabora seu plano de ensino, conforme sua opção e entrega para escola que
por sua vez arquiva numa pasta na secretaria (MST, 2015, p. 14).
Em abril de 2015, num dos processos de formação dos educadores das escolas envolvidas
na implementação da proposta dos Complexos de Estudo, que já se encontra ampliado
em relação ao momento inicial de 2009, foi feita uma avaliação que indicou que os
envolvidos no experimento ratificam a importância do conhecimento da realidade e da
sua da articulação com os conteúdos escolares. Nessa avaliação ficou explícito também
que em 2015 as escolas se encontram em momentos diferenciados em relação à
construção do inventário da realidade, pois, enquanto algumas estão no processo de
elaboração, outras já o atualizaram considerando novos elementos. Observamos que há
consenso entre as escolas que compõem a rede, de que o planejamento ganha um novo
7 Ver Hidalgo, Angela Maria, Mello, Claudio e Sapelli, Marlene Lucia Siebert (orgs). Pluralismo
metodológico nas Diretrizes Curriculares do Paraná. Guarapuava: Unicentro, 2010.
significado a partir da inserção da realidade e das demais estruturas que compõem os
Complexos.
Partir da realidade e estabelecer conexão entre seus elementos e os conteúdos escolares
exige o conhecimento da vida que pulsa no entorno da escola; contribui para a tomada de
consciência sobre ela, tanto pelos educadores, como pelos educandos e demais integrantes
da comunidade; torna a aprendizagem mais significativa; propicia ao sujeito envolvido
no processo educativo possibilidade de reconhecer sua vida no espaço escolar que,
tradicionalmente, ignora-a; potencializa a possibilidade de reconhecer as relações entre o
singular, o particular e o universal, concebendo a vida, portanto, como uma totalidade8.
O relato a seguir expressa as mudanças no fazer pedagógico da escola e na própria visão
da comunidade sobre o coletivo escolar:
A proposta dos complexos, e o inventário da realidade, exigiram maior organização das
escolas e dos educadores. Isso acarretou em um acúmulo de tarefas ao coletivo pedagógico,
devido a este ser reduzido, com poucas pessoas, entretanto dinamizou a escola em vários
aspectos, dando outra visão da escola para comunidade escolar e do próprio coletivo escolar.
(E.I. Carlos Marighella, abril de 20159).
Outro elemento que cabe destacar é o exercício necessário ao coletivo que permanece na
escola, de atualizar os educadores que chegam todos os anos, na realidade em que estão
sendo inseridos. Assim, a cada ano, a atualização do inventário contribui para que os
educadores que chegam às escolas tenham contato com o entorno e possam compreender
as questões nas quais a comunidade está envolvida, o que contribui para que eles
consigam perceber conexões importantes dos conteúdos das suas disciplinas. Entendemos
que o inventário consiste em instrumento importante para explicitar a realidade e que sua
construção possibilita a aproximação dos sujeitos entre si e com as questões da atualidade,
o que se constitui em fundamento para a construção dos Complexos de Estudo, como
veremos a seguir.
Ao mesmo tempo em que se construía o inventário, havia a necessidade de se reavaliar
os conteúdos necessários para a formação pretendida da classe trabalhadora, uma vez que,
em vários momentos de avaliação da proposta e das práticas dela decorrentes, houve a
8 Ver KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1989. 9 Questionário respondido pelo Coletivo da Escola, presente no encontro de formação, em Cascavel, em
abril de 2015.
constatação de dificuldades no tratamento mais rigoroso dos conteúdos, tanto em relação
ao que efetivamente garantir em cada ano escolar como a que abordagem e métodos de
ensino utilizar. Assim, fez parte do processo um trabalho minucioso, realizado por
especialistas de várias áreas, para formular uma nova composição de conteúdos.
1.2. Formulação dos conteúdos
Havia, na avaliação do grupo de trabalho, a partir das reflexões feitas em encontros de
formação continuada das Escolas Itinerantes e da escola-base, a análise de que era
necessária a definição dos conteúdos para cada ano de cada Ciclo de Formação Humana10.
Segundo Sapelli (2013), como nos trabalhos de planejamento feito nas Escolas
Itinerantes (EI), já no período anterior a 2010, percebeu-se que faltava referência em
relação aos conteúdos que deveriam ser garantidos em cada ano, iniciou-se um processo
de construção dos mesmos (o ponto de partida foram as Diretrizes Curriculares que a
Secretaria de Estado da Educação/PR estava acabando de construir). A autora entende
que
Isso serviu de matéria-prima inicial para a construção da nova proposta e potencializou o
trabalho dos conteúdos nas escolas. Houve dificuldade para se construir essas listas, pois os
próprios educadores que atuavam nas escolas tinham dificuldade para definir os conteúdos
por ano. Assim, foram envolvidos vários especialistas de diferentes disciplinas e vários
currículos foram consultados, provocando várias modificações em relação às Diretrizes da
SEED/PR (Idem, p. 166).
Construir os conteúdos a partir das Diretrizes Curriculares da rede estadual do Paraná não
representou a adoção dos princípios daquela proposta (marcada pela adoção, ao mesmo
tempo, de pressupostos do pós-modernismo e do marxismo)11, mas apenas dos conteúdos
nela indicados. A disciplina de História não seguiu o proposto nas referidas Diretrizes,
pois os conteúdos foram organizados a partir da transformação dos modos de produção,
o que não era referência no documento. Ao construir os conteúdos, logo se percebeu que
10 Ver SEED. Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak. Projeto político pedagógico. Rio Bonito
do Iguaçu, 2009.. 11Ver HARVEY, David. Condição Pós-Moderna : uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural . 6
ed. São Paulo: Loyola, 1996; HIDALGO, Angela Maria, MELLO, Claudio e SAPELLI, Marlene Lucia
Siebert (orgs). Pluralismo metodológico nas Diretrizes Curriculares do Paraná. Guarapuava: Unicentro,
2010; e WOOD, Ellen Meiksins e FOSTER, John Bellamy. Em defesa da história: marxismo e pós
modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
havia uma repetição nos diferentes anos de cada fase da Educação Básica. Assim, optou-
se por apresentá-los em tabelas, organizadas para cada fase, utilizando-se a legenda: I –
introduzir; A – aprofundar; R – retomar; C – consolidar, conforme o exemplo do quadro
3.
Quadro 3 – Conteúdos parciais para os anos finais do Ensino Fundamental na
disciplina de Matemática
Conteúdos
estruturante
s
Conteúdos
Básicos
Conteúdos específicos ou
descrição mais detalhada 6º. 7º. 8º. 9º.
Números e
álgebra
Sistemas de
numeração
Linguagem numérica
Sistemas de numeração: dos
Maias, dos Babilônios, dos
Egípcios e dos Romanos
Sistema de numeração decimal
(indo-arábico
R,A,C
Números
Naturais
Conjunto de números naturais;
Decomposição de um número
natural;
Antecessor e sucessor de números
naturais;
Comparação, leitura e escrita de
números naturais
R, A,
C
Números primos I, A,
C
R R R
Fonte: Arquivos do MST
Construir os conteúdos necessários parecia uma tarefa fácil, mas revelou-se um exercício
complexo. No decorrer do processo, alguns especialistas das disciplinas desistiram e
foram substituídos por outros que tiveram que compreender o andamento do trabalho,
seus fundamentos, para dar continuidade ao processo. Em alguns momentos houve
conflitos em relação às concepções de cada especialista, inclusive da mesma área do
conhecimento. Também percebemos o domínio limitado, por parte de alguns deles, em
relação aos conteúdos necessários em cada ano escolar. Além disso, ficou explícita a
diferença nos níveis de exigência do conjunto de conteúdos para cada ano escolar, o que
criou um descompasso entre as disciplinas, inclusive da mesma área do conhecimento.
Esses fatores interferiram na tarefa de definição dos conteúdos e nem todos os conflitos
foram resolvidos, o que acarretou, na proposta, algumas distorções em relação aos
conteúdos. Vários destes conflitos revelam o conteúdo, os problemas e limites dos
processos de formação dos educadores, tanto nos cursos de graduação, como nos de
formação continuada.
Concomitantemente ao processo de construção dos inventários e das tabelas de
conteúdos, houve momentos de reflexão acerca da concepção de educação e das matrizes
formativas, como indicamos a seguir.
1.3. Fortalecimento da concepção da educação e da matriz formativa
A tarefa de organizar o texto da concepção de educação e da matriz formativa coube, no
processo, à educadora Roseli Salete Caldart, que o fez a partir do acúmulo de
aprendizagens e formulações do Movimento, especialmente no setor de educação, desde
os anos 1980. No Plano de Estudos (MST, 2013), apresentado na parte final deste
capítulo, está presente, a partir dessa elaboração, a compreensão de que a educação é um
processo que contribui para “formar seres humanos mais plenos e que sejam capazes e
queiram assumir-se como lutadores, e [...] construtores de novas relações sociais” (MST,
2013, p. 15) e que se tornem sujeitos
ativos, com iniciativa, multilateralmente desenvolvidos, com apropriação de conhecimentos
científicos relevantes, capazes de ligar teoria e prática, que aprendam habilidades técnicas,
hábitos sociais e valores de convivência e trabalho coletivo (Idem, p. 15).
Esses elementos compõem o entendimento da educação como processo de formação
humana plena e do ser humano como sujeito sócio-histórico, produzido a partir do
trabalho. Sustentadas nisso, foram definidas as matrizes pedagógicas da proposta, tendo
a vida como a matriz central e, decorrentes dela, o trabalho, a cultura, a luta social, a
organização coletiva e a história, apresentadas detalhadamente no capítulo 1 deste livro.
1.4. Elaboração dos objetivos de ensino e formativos
Definidos o inventário, os conteúdos, a concepção de educação e as matrizes formativas,
estavam constituídos os elementos fundamentais para a formulação dos objetivos de
ensino e formativos12. Segundo Freitas (apud Sapelli,2013, p. 168),
Os objetivos gerais, correspondem aos objetivos de formação (que também podem ser
especificados para determinado período ou ciclo de formação) e os objetivos específicos
correspondem aos objetivos de ensino, usualmente vinculados a disciplinas. Neste texto, até
que a prática nos contrarie, vamos manter esta divisão apenas com finalidade didática e com
o cuidado de que ao nos preocuparmos com os objetivos da formação, não terminemos
fazendo o caminho inverso, subsumindo os objetivos específicos aos formativos, em
detrimento da aprendizagem do conhecimento. Mas, vamos ficar com as últimas
denominações distinguindo entre objetivos de formação e objetivos de ensino.
Os objetivos de formação pautam não somente a ação da escola e não se restringem à escola,
mas sim, são produto da articulação da escola com a vida. A escola, neste caso, é parceira
da vida. Várias são as instituições sociais que atuam na formação dos educandos. Em
compensação, os objetivos de ensino, embora ancorados na vida, são uma especificidade da
escola – pelo menos em nosso momento histórico. Seria difícil imaginar como determinadas
habilidades pudessem ser desenvolvidas na juventude de maneira dispersa e informal, sem o
concurso da escola.
A fase 1, como apresentamos, constituiu-se da elaboração do inventário, da lista dos
conteúdos, da retomada da concepção de educação e das matrizes formativas, e da
definição dos objetivos de ensino e formativos. Após a definição desses elementos,
passou-se à segunda fase, relativa às análises,apresentadas a seguir.
2. Fase 2 – Das análises
No segundo encontro do grupo de trabalho, realizado em outubro de 2010, em Curitiba,
portanto, quase cinco meses depois do primeiro encontro, passou-se à fase seguinte para
proceder às análises sobre o conjunto produzido. Os processos de levantamento e análises
foram acompanhados de estudo, orientado especialmente pelo educador Luiz Carlos de
12 A análise aprofundada da questão dos objetivos é apresentada no capítulo 4 deste livro.
Freitas, a partir de suas pesquisas sobre a proposta dos Complexos, implementada na
União Soviética após a Revolução de 191713.
O processo de análise foi acompanhado por um exercício de teste de metodologia de
construção de uma proposta curricular. Houve momentos nos quais os exercícios de
análises eram feitos, avaliados e descartados, assim um novo processo de análise era
iniciado, pois se tratava não só da construção da proposta curricular, mas também de uma
metodologia para fazê-lo, o que exigiu a avaliação constante dos encaminhamentos e, em
alguns momentos, de redirecionamentos.
Durante as diversas análises realizadas, os conteúdos exigiram uma reflexão a respeito da
distribuição no ano letivo, por semestre, uma vez que o grupo optou em organizar os
Complexos com, no máximo, um semestre de duração. Era preciso, inclusive, analisar se
as disciplinas eram semiestruturadas, estruturadas14 ou não, no sentido de perceber se
havia conteúdos que exigiam pré-requisitos.
Em seguida, passou-se à análise das conexões possíveis entre os conteúdos do semestre e
a “coluna da vida” e entre os conteúdos e os objetivos formativos. Num primeiro exercício
de análise, sem limitar o número de associações entre os itens, muitas conexões foram
feitas, o que inviabilizava a visualização da concentração de relações, que ficaram
espalhadas. Esse primeiro exercício de análise foi descartado e tivemos que retomar um
trabalho da fase de elaboração, que era a construção dos objetivos de ensino. Fizemos
isso por entender que ter mais claro os objetivos cada conteúdo pode facilitar o
estabelecimento de relações menos aleatórias com os aspectos da realidade inventariados.
Só no terceiro encontro, em junho de 2011, os objetivos de ensino foram elaborados por
semestre e passamos a realizar um segundo exercício de análise, relacionando os objetivos
de ensino com no máximo três questões da vida e destas também com os objetivos
formativos. Portanto, no terceiro encontro tivemos ações de elaboração e de análise. Esse
trabalho de análise foi realizado apenas para os anos finais do Ensino Fundamental, nosso
foco nesse experimento. No exercício feito, vários objetivos ficaram sem indicação de
conexão com as questões da vida, o que inquietou o grupo de trabalho.
13 Ver BAHNIUK, Caroline. Experiências escolares e estratégia política: da pedagogia socialista à
atualidade do MST. Tese. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Estadual de Santa
Catarina. Doutorado em Educação. 2015. 14 Consideramos estruturadas as disciplinas que propõem uma sequência de conteúdos, na qual uns são
requisitos necessários para a aprendizagem de outros; semiestruturadas, aquelas em cuja sequência proposta
alguns conteúdos exigem pré-requisitos e outros não.
O registro das conexões, após numerados os objetivos de ensino pela letra da disciplina e
em ordem crescente, foi disposto em quadros, como no exemplo a seguir:
Quadro 4 – Conexões dos objetivos de ensino com as questões da vida para o 6º.
Ano – 1º. Semestre (quadro preliminar)
Luta pela terra E1 E2 E3 E5 G1 G2 H1 H3 H6 H9 LP4 LP6 LP1 LP2 LP8 LP9
Luta pela agroecologia E8 H8
Luta pela cidadania E1 E7 E8
Luta pela organização H1 H6
Produção Familiar H2H5 H7 H3 A6 E4 E5 E6 G1 G2 G3 G4 G5 G6 G7 C1 C2 C3 C4
C5 C6 LP2 LP4 LP6 LP9 A1 G3
Venda de força de trabalho H2 H3 H6
Lazer EF5 EF9
Formas de organização do acampamento E7 E8 G1 G6 E1 A2 LP3 LP7
Formas de organização da escola G6 LP3 LP7 LP9 LP10 LP11
Fonte: MST (2015, p. 63)
Observação: letra indica a disciplina e o número que a acompanha refere-se ao objetivo;
E (Espanhol); G (Geografia); H (História); LP (Língua Portuguesa); C (Ciências); EF
(Educação Física); A (Arte). A Matemática foi colocada posteriormente, pois num
primeiro momento não havia especialistas desta área para estabelecer as conexões.
Nesse exercício de análise muitas questões já iam sendo indicadas: qual seria a duração
de cada complexo? Poderíamos ter complexos acontecendo concomitantemente? As
porções da realidade dariam nome aos complexos? O que faríamos com os objetivos de
ensino que não foram conectados com as questões da vida? É possível que as disciplinas
trabalhem os complexos em ordem de tempo distinta no semestre? Se cada porção
conectada gerasse um complexo, não teríamos muitas porções da realidade a serem
trabalhadas em cada semestre? Isso não provocaria um processo de estudo das questões
da realidade superficial e aligeirado?
Optamos a partir desse exercício de análise por registrar as justificativas de cada
disciplina para suas conexões com determinada porção da realidade. Isso facilitaria a
implementação da propostaquando o Plano de Estudos, posteriormente, chegasse às
escolas. Os educadores compreenderiam melhor as decisões tomadas para estabelecer as
conexões entre os objetivos das disciplinas e as questões da realidade. Um exemplo de
justificativa feita é:
Ao conectar a Língua Portuguesa com a ‘Luta pela Reforma Agrária”, a justificativa
apresentada foi: “do ponto de vista da disciplina de Língua Portuguesa, a vinculação a
esta porção da realidade pretende tomar variados aspectos da vida, descritos nas falas que
contam os fatos e trazem em si os conflitos, as lutas, as condições de vida. Na escola
essas falas devem ser resgatadas, estudadas, tematizadas na oralidade, leitura e produção
de textos. Os textos lidos e produzidos são organizados em diferentes gêneros textuais,
dependendo das suas condições de produção (quem escreve, para quem, quando, em que
situação, com que intenção etc). E é necessário que o leitor seja capaz de perceber essas
condições para compreender que o texto expressa visões de mundo. Sendo assim, este
permite diferentes leituras e registros evidenciando a função social da escrita. No
primeiro semestre do 6º ano, relatos relativos às histórias de vida e do acampamento
podem gerar textos narrativos orais e escritos. Esses textos farão o registro dos diferentes
aspectos que sustentam a luta pela terra, em narrativas individuais e coletivas, que
garantem que a visão de mundo dos educandos, da comunidade, dos movimentos fique
registrada, podendo ser acessada por outros leitores. Rompe-se com a posição do
educando apenas como consumidor de textos, passando ele a ser também aquele que os
produz. Outros gêneros textuais estarão sendo trabalhados, como: entrevistas com
pessoas mais velhas, poesias e canções que relatem a luta pela terra, bem como notícias
de jornais. Textos que tragam diferentes visões e histórias de vida que serão comparadas
com as relatadas pela turma e que possibilitem ao educando perceber que os discursos
explícitos e implícitos precisam e devem ser identificados pelo leitor” (MST, 2013, p. 38)
O processo de análise consistiu, então, em estabelecer relações entre os conteúdos e
objetivos de ensino com as questões presentes na coluna da vida. Analisar as
possibilidades de relações entre esses aspectos foi um momento significativo para que o
grupo percebesse o porquê da aproximação desses elementos para construir a proposta a
partir da realidade, e a importância da realização de um inventário qualificado, ou seja,
que de fato explicitasse a riqueza do entorno das escolas. Tendo produzido um número
importante de possibilidades, a partir das análises o grupo de trabalho passou ao processo
de sínteses e sistematizações.
3. Fase 3 – das sínteses e sistematizações
Nesta fase, a tarefa era chegar às questões da realidade, portanto, da atualidade, que
seriam mais um elemento para compor cada Complexo de Estudo. Essas questões da
realidade foram nomeadas como porções da realidade/categorias da prática. Ficava claro
naquele momento que seria necessário superar por incorporação a adoção dos temas
geradores, que às vezes eram tratados de forma abstrata, distanciada. Não eram mais
temas, mas sim partes da realidade próxima que deveriam ser explicitadas e que, portanto,
deveriam ser tratadas no âmbito dos conflitos que envolviam as comunidades nas quais
as escolas estavam inseridas.
No quinto encontro do grupo de trabalho, passamos a realizar as primeiras sínteses das
conexões,momento em que houve a decisão de concentração das mesmas em algumas
porções da realidade/categorias de prática para cada semestre. O quadro 4, do 6º. Ano,
anteriormente apresentado neste texto, por exemplo, após as discussões ficou assim
redefinido:
Quadro 5 – Conexões dos objetivos de ensino com as questões da vida para o 6º.
Ano – 1º. Semestre (versão final)
Luta pela Reforma Agrária E1 E2 E3 E5 G1 G2 H1 H3 H6 H9 LP4 LP6 LP1 LP2 LP8
LP9 E8 H8 E1 E7 LP5
Produção de alimentos A1 A6 C4 C5 C2 C3 H2H5 H7 H6 H3 E4 E5 E6 G1 G2 G3
G4 G5 G6 G7 LP2 LP4 LP6 LP9 LP1 LP5
Formas de organização do acampamento e da escola E7 E8 G1 G6 E1 A2 LP3 LP7
G6 LP3 LP7 LP9 LP10 LP11 LP1 LP5 EF5 EF8
Fonte: MST (2015, p. 69)
Obs.Havia naquele momento objetivos ainda não conectados com as questões da vida:
C1 H4 EF1 EF2 EF3 EF4 EF6 EF7 A2 A3 A4 A5
A limitação de três ou quatro porções da realidade para cada semestre teve como objetivo
a possibilidade de aprofundamento no entendimento da realidade, pois se fossem
definidas muitas porções, a possibilidade de compreendê-las ampla e profundamente seria
inviável.
O grupo, após essas sínteses, estava diante de um problema: havia muitos objetivos
desconectados, especialmente nas disciplinas de Educação Física, Arte e História. Várias
questões foram levantadas, mas a principal conclusão do grupo foi que a definição dos
elementos da coluna da vida havia sido simplista e que a mesma não contemplava certos
aspectos da realidade, ou seja, não havia porções da realidade/categorias da prática
suficientes para contemplar a vida de forma mais abrangente e possibilitar as relações
necessárias entre os objetivos das disciplinas e a vida. Houve, então, a inserção de novas
porções da realidade e um esforço para conectar todos os objetivos de ensino a elas.
Algumas conexões foram feitas indiretamente. Por exemplo: os jogos em equipe, em
Educação Física, foram conectados com a organização coletiva, a partir do entendimento
de queeles contribuem para desenvolver habilidades à vida coletiva.
As porções da realidade/categorias da prática, definidas para cada semestre de cada ano,
após as análises e sínteses feitas a partir das relações estabelecidas com os objetivos de
ensino e os elementos da coluna da vida, foram as apresentadas no quadro a seguir.
Quadro 7 – Porções da realidade/categorias da prática definidas para os Complexos
de Estudo dos anos finais do Ensino Fundamental
Ano 1º. Semestre 2º. Semestre
6º. Luta pela Reforma Agrária;
Produção de alimentos;
As formas de organização coletiva
dentro e fora da escola
A cultura camponesa
Luta pela Reforma Agrária;
Manejo dos ecossistemas;
Autosserviço;
As formas de organização coletiva
dentro e fora da escola
7º. Luta pela Reforma Agrária
Criação de animais
Agroindústria
Organização do
Acampamento/Assentamento e na
escola
Luta pela Reforma Agrária
Produção de alimentos
Organização no acampamento e
assentamento e na escola
8º. Luta pela Reforma Agrária
Manejo do agroecossistema
Formas de organização do
acampamento e escola
Luta pela Reforma Agrária
Agroindústria
Formas de organização do acampamento
e da escola
9º. Luta pela Reforma Agrária
Beneficiamento e processamento da
produção
Agronegócio (monocultura e
empresas cooperativas ou outras)
Organização coletiva dentro e fora da
escola (acampamento ou
assentamento)
Luta pela Reforma Agrária
Vendas/comercialização de produtos
Organização coletiva dentro e fora da
escola (acampamento ou assentamento)
Quadro organizado pelas autoras.
Podemos perceber que algumas porções da realidade/categorias da prática se repetem em
vários semestres. À primeira vista pode parecer repetição, mas para entender e superar
essa impressão, devemos compreender que a porção não será trabalhada como um
conteúdo, mas será compreendida por meio dos conceitos/categorias trabalhados em cada
semestre, que não são os mesmos, ou seja, os conceitos das disciplinas, organizados no
conjunto de conteúdos de cada semestre, contribuirão para compreender as questões da
vida, em seus múltiplos aspectos, gradativamente, possibilitando desvelá-las.
Tomadas as decisões acerca das porções da realidade/categorias da prática que
constituiriam junto com os demais elementos cada Complexo de Estudo, era necessário
organizar um quadro com as informações, que ficaram assim apresentadas:
Quadro 8 – Síntese da relação entre porção da realidade, objetivos e conteúdos
Porção da realidade Objetivos conectados Conteúdos correspondentes
Nesse momento iniciamos o processo de sistematização, objetivando a construção do
Plano de Estudos. De posse dos elementos produzidos, percebemos a necessidadede
incluir os pré-requisitos e os êxitos de cada disciplina, com a intenção de oferecer aos
educadores que implementariam a proposta, a partir de 2013, mais elementos teórico-
práticos para fundamentar seu trabalho.
Nesta fase do trabalho, construímos um desenho dos elementos que compõem um plano
de estudos organizado em complexos, apresentado na Figura 2.
Figura 2 – Esboço da proposta dos Complexos de Estudo
Fonte: MST (2015, p. 115)
O esboço da proposta dos Complexos de Estudo pode ser assim entendido:
A unidade básica do plano de estudo é o complexo. [...] Para definir o complexo é preciso
definir uma concepção de educação e os objetivos. O processo educativo acontecerá num
meio (atualidade, contradições, rede de agências formadoras). Uma das categorias que
definem o complexo é o trabalho, que está na vida. Podemos considerar o trabalho a ação
criadora do homem. Outra preocupação é com o conhecimento, portanto as bases das ciências
e artes (produzidas por meio do trabalho) devem estar presentes no complexo. Existem
diferentes maneiras de trabalhar com essas bases, ou seja, temos métodos de ensino
específicos que também fazem parte do complexo. Precisamos ainda considerar na mudança
da forma a auto-direção e organização da vida individual e coletiva. Isso representa abrir
espaços na escola para exercitar a capacidade individual e coletiva de auto-organização. É
preciso rever os processos de gestão dentro e fora da escola e esses processos devem ser
colocados em pauta nos inventários (MST, 2015, p. 53)
Segundo Sapelli (2013), podemos perceber no esboço que representa o conjunto dos
elementos do Plano de Estudos, uma parte comum e outra diferenciada. A parte comum
é composta da concepção e objetivos da educação, do meio educativo, das matrizes
formativas/pedagógicas, do trabalho como método geral e dos tempos educativos. A parte
diferenciada são os Complexos de Estudo, que são unidades curriculares multifacetadas,
que têm uma prática social embutida em sua definição e que são palco, portanto, de
exercício teórico-prático. Cada uma dessas unidades curriculares traz elementos de
diferentes disciplinas, cuja especificidade é preservada na proposta, a qual apresenta,
porém, uma metodologia para romper com a fragmentação do conhecimento, a partir da
compreensão da realidade. Trata-se, portanto, de uma proposta em que o conhecimento é
trabalhado desde uma base disciplinar mas, que se torna interdisciplinar pela conexão
com a realidade.
Além da construção dos conteúdos, metodologias, avaliação e relações com a realidade,
também houve a preocupação com os aspectos da gestão escolar, que culminou com a
construção de uma proposta de auto-organização dos estudantes, propondo a superação
da democracia representativa, atualmente presente nas escolas, indicando elementos que
pudessem contribuir para a ampliação da participação e para o exercício de práticas que
contribuíssem para desenvolver a autonomia, a capacidade de organização, a tomada de
consciência e a participação, dentre outros15.
No encontro de junho de 2011, Freitas apresentou importantes aportes acerca do
significado do processo de construção dessa nova proposta, que ficaram registrados na
memória dos encontros e que, de certa forma, sintetizam questões que precisavam ser
bem definidas naquele momento para a continuidade dos trabalhos:
[...] o que estamos fazendo é uma ação prática. É no âmbito da prática que se define a teoria.
Temos condições de interferir na prática e formular a teoria. O desafio está posto no interior
desse processo de construção teórico-prática. É a prática que indicará a melhor proposição.
Nosso trabalho é justamente a contraposição a essa forma escolar, pois a atual forma escolar
vai contra a possibilidade de consolidar a matriz formativa proposta nesse processo. A
questão é pensar se esse é o momento de alterar a forma escolar. Será que teríamos que
esperar a mudança da sociedade para propor mudanças na forma escolar? Poderíamos pensar
em duas possibilidades, a educação como tática e como estratégia. Precisamos ter
flexibilidade na tática e clareza na estratégia. Não podemos transformar a estratégia em tática.
A matriz formativa da escola capitalista é basicamente cognitiva. Precisamos construir uma
15 Essa discussão é feita no capítulo 6.
matriz alargada, omnilateral. A forma trava o conteúdo. A estratégia é o horizonte, é a
definição de onde queremos chegar. Nossa tarefa é recolocar o futuro em cena, criar
perspectiva de futuro.
O trabalho que vem sendo realizado é acúmulo de um movimento coletivo, sem dono, sem
autor. [...] O que nos guia é o processo de superação por preservação, a construção do novo
a partir do velho. Superar não é eliminar. Por exemplo, quando nos propomos a mudar a
forma da escola, não significa que precisamos jogar tudo fora. É preciso ressignificar alguns
elementos que podem ser trazidos para a nova forma da escola. [...] Complexo é uma porção
da realidade, significa complexidade. Complexidade da vida, da realidade. A nova forma
escolar deve nos levar à compreensão da complexidade da vida e nenhuma disciplina dá conta
disso sozinha, portanto é uma tarefa interdisciplinar, pois a realidade é interdisciplinar. Cada
disciplina dará sua contribuição para compreender essa porção da realidade. Nem tudo que
ensinarei tem relação imediata com a prática. Não posso correr o risco de perder a
possibilidade de elaboração das teorias mais avançadas. O materialismo histórico dialético é
uma teoria do conhecimento que referencia essa experimentação. (MST, 2015, p 52)
No início de 2012, decidiu-se adiar o experimento para 2013, pois os trabalhos ainda não
estavam concluídos e amadurecidos suficientemente para ir às escolas. Nesse mesmo ano
foram feitas reuniões para organizar o documento que apresentava a proposta e foram
iniciados os trabalhos com o Ensino Médio. Apesar do experimento da proposta iniciar-
se em 2013, de 2010 a 2012 alguns elementos foram inseridos nas escolas: objetivos
formativos, revisão dos conteúdos e a relação dos conteúdos com a realidade.
A proposta foi construída ora de forma individual, ora em pequenos ou grande grupos,
cujas formulações em momento posterior eram objeto de discussão no grupo completo,
que apresentava muitas contribuições. Parte do trabalho foi realizado
presencialmente,parte, individualmente ou em pequenos grupos, com comunicação a
distância e avaliação posterior pelo grupo completo ou pelo grupo de sistematização. Uma
das questões que dificultou a construção da proposta foi a rotatividade dos integrantes do
grupo de trabalho, atribuída a problemas financeiros que impossibilitaram alguns a
continuarem no processo, mas também à falta de compromisso e pelo acúmulo de tarefas
de alguns. A sistematização da proposta num Plano de Estudos culminou na elaboração
de uma versão preliminar, em dezembro de 2012.
Nos primeiros nove encontros, dedicados ao Nível I do processo de construção e
implementação da proposta, várias foram as dificuldades encontradas. Segundo Sapelli
(2013, p. 172), essas dificuldades eram:
- O financiamento parcial por parte do governo. Para resolver o problema, alguns fizeram
auto-financiamento, outras despesas foram pagas pelo Movimento, sindicatos e isso
provocou a redução do número de pessoas que participaram e contribuiu, inclusive, para que
o processo ficasse marcado pela dicotomia entre quem planeja e quem executa.
- A mudança dos especialistas que contribuíram para construir a proposta, durante o processo
causou rupturas e descontinuidades;
- A centralidade de todo processo em uma única pessoa que detinha o conhecimento maior
da proposta (Freitas) e o domínio restrito ou nenhum domínio sobre a questão por parte de
quase todos os envolvidos, isso provocou insegurança, desconforto e até uma certa decepção
por parte de alguns que tinham expectativas elevadas sobre o resultado. Apesar dessa
constatação, podemos, com certeza, afirmar que houve um processo coletivo intenso na
produção das bases da proposta.
- A dificuldade de reproduzir recriando a proposta da União soviética com poucos materiais
que apresentassem o registro da experiência que lá se desenvolveu.
- Houve dificuldades para se articular os conteúdos de arte e de educação física às categorias
da realidade. Isso levou a alguns questionamentos: as categorias da realidade foram
adequadamente escolhidas? Os inventários feitos para explicitar essas categorias foram bem
feitos ou suficientemente explorados ao se fazer a síntese dos mesmos? Os conteúdos
definidos para as disciplinas são relevantes no processo de conhecimento da realidade ou tem
outra função no processo de formação dos sujeitos? No que os conteúdos dessas disciplinas
que não se conectaram com as categorias da realidade se conectariam? A conexão desses
conteúdos se daria diretamente com as fontes educativas presentes no meio?
Sapelli (2013, p. 172) também menciona as dificuldades apontadas por Caldart16, ao
afirmar que:
As condições de trabalho do grupo que prolongaram demais o processo, dando uma falsa
noção do tempo necessário para fazê-lo e implicando em descontinuidade: cada encontro
requeria um esforço para retomar os trabalhos; a participação de especialistas que não eram
das escolas itinerantes, talvez possa causar dificuldades na implementação da proposta, pois
considera que seria diferente se os docentes das escolas envolvidas tivessem participado
dessa fase de planejamento, o que já se configuraria como uma formação em processo.
E relata ainda problemas indicados por Freitas ao avaliar os trabalhos17, como:
ter que conseguir colocar em relação todas as frentes de trabalho exigidas pelo processo.
Apesar de ser um grupo grande, segundo ele, o fato é que havia muitas atividades que estavam
inter-relacionadas, não havia como estabelecer método linear, era difícil visualizar o final.
Havia uma exigência de reavaliação constante do que estava sendo feito. A outra dificuldade,
segundo ele, era manter durante o processo a teoria do conhecimento, no caso, o materialismo
histórico dialético, que era a teoria que sustentava Krupskaya, Lenin, Shulgin, Pistrak na
experiência educacional soviética (SAPELLI, 2013, p. 173).
Além dessas dificuldades enfrentadas na fase I, Sapelli (2013) indica que durante o
processo de construção da proposta, foram feitas intensas reflexões sobre aspectos como
a complexidade que envolveria o processo de implementação da proposta, pois o mesmo
exigiria a reorganização de vários processos no interior e no entorno da escola, como um
16 Entrevista concedida a Marlene Lucia Siebert Sapelli em 30/03/2012. 17 Entrevista concedida a Marlene Lucia Siebert Sapelli em 13/10/2011.
intenso processo de formação continuada dos educadores que estarão envolvidos; o
envolvimento de todos os setores do acampamento na escola; a necessidade de
potencializar o processo de planejamento coletivo; a realização de momentos de
avaliação; a organização dos tempos e espaços em outra lógica, com a descentralização
da sala de aula, pois ela não dá conta do trabalho necessário para conhecer a realidade; a
mudança no processo de gestão; a superação da separação entre trabalho intelectual e
manual (entre teoria e prática);a retomada do autosserviço com mais intencionalidade; a
discussão sobre a possibilidade de organizar a escola em tempo integral com matriz
formativa alargada, com formação integral. Muitos desafios estavam colocados para a
fase seguinte do processo de construção e implementação da proposta.
Houve bastante dificuldade, depois das fases de levantamentos, de elaboração, análise e
síntese de se decidir sobre a forma de apresentar o resultado desse processo inicial em um
documento que pudesse orientar o trabalho nas escolas. Eram muitas informações
conectadas que precisavam ser apresentadas da forma mais didática possível. A versão
preliminar do Plano de Estudos chegou às escolas no início de 2013, na semana
pedagógica, mas já havia sido disponibilizada às coordenações escolares em dois
encontros, no final de 2012. O material, impresso em agosto de 2013,possuía três partes:
a primeira, de 30 páginas, composta de introdução; concepção de educação e de matriz
formativa; matrizes (vida, trabalho, luta social, organização coletiva, cultura, história);
orientações gerais sobre a forma escolar (com elementos sobre a função pedagógica do
meio, a organização política e tempos da escola, aspectos metodológicos específicos,
sequenciamento e duração dos complexos, processo de avaliação). Na segunda parte,
apresentava-se o detalhamento do Plano de Estudos do 6º ao 9ºano, com a apresentação
dos Complexos de Estudos para o 1º e o 2º semestre de cada ano, ou seja, com objetivos,
conteúdos, êxitos e justificativas. E a terceira e última parte era composta de referências
e leituras complementares.
Com o documento sistematizado foram iniciados os encaminhamentos da fase II com o
coletivo escolar, como abordado no capítulo que segue.
Considerações finais
O foco deste capítulo concentrou-se na descrição da etapa de planejamento geral do
trabalho com os Complexos de Estudo. A análise desse momento inicial permite indicar
algumas conclusões importantes sobre o processo que não se conclui nele. A construção
da proposta dos Complexos de Estudo foi um exercício complexo, difícil e provocativo,
feito em vários momentos, distanciados pelas dificuldades operacionais, e exigiu um
intenso trabalho coletivo de estudo, de reflexão, de análises, de sínteses e de elaboração.
O coletivo tinha como característica a diversidade de domínio de conhecimento, de
concepção, de vinculação institucional, mas se unia a partir da proposição e acúmulo feito
pelo MST, na sua trajetória de forjar a Pedagogia do Movimento, e pela intenção de
engendrar uma proposta que pudesse, mesmo que minimamente, representar um exercício
de contraposição à escola capitalista.
O coletivo foi formado, além de outros, por educadores da Educação Básica e do Ensino
Superior, por isso, também representou um esforço de superação dos vícios acadêmicos
de formação e de atuação, de revisão das concepções construídas nestes processos,
gerando com issoalguns momentos de conflitos importantes, dos quais decorreram
crescimento pessoal e coletivo.
Foi um esforço coletivo exigente, uma vez que não se tratava apenas de construir a
proposta, mas de testar uma metodologia de construção dessa proposta, o que não é um
exercício realizado comumente.
Um dos aspectos que animou o grupo foi a possibilidade de construir uma proposta
contra-hegemônica, que não respondesse apenas às necessidades didático-pedagógicas do
processo educativo escolar, mas que representasse a ocupação do espaço da escola, com
vistas à formação da classe trabalhadora, no exercício de tornar-se classe para si e não
classe em si, ou seja, submetida à classe dominante.
O coletivo, após os processos iniciais, elaborou o Plano de Estudos e o enviou às escolas,
na expectativa de orientar os trabalhos posteriores. Os processos desencadeados
mostraram lacunas, equívocos e distorções no documento, que foram resolvidos ou não
na implementação da proposta. Em 2015, momento de publicação deste livro, já se
apresenta a necessidade de reescrever algumas partes do documento, porém, as condições
de trabalho ainda não permitiram que tal ação se consolidasse. Mesmo indicando esse
limite, o Plano de Estudos tem sido orientador das práticas realizadas nas escolas que,
desde 2013, têm implementado, parcial ou integralmente a proposta.
Referências
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