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Escola Secundária Joaquim Araújo, Penafiel IIIº Concurso de Leitura em Voz Alta “Ler é divertido” Textos de: Língua Portuguesa - Prosa

Textos de: Língua Portuguesa - Prosa · PDF fileA mulher da esfrega ... Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros,

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Escola Secundária Joaquim Araújo, Penafiel

IIIº Concurso de Leitura em Voz Alta

“Ler é divertido”

Textos de:

Língua Portuguesa -

Prosa

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IIIº Concurso de Leitura em Voz Alta

Escola Secundária C/ 3º Ciclo EB Joaquim de Araújo

1

Índice O Menino e o Homem ....................................................................................................................................................... 3

Cinéfilos ............................................................................................................................................................................. 4

O pirata de peter ............................................................................................................................................................... 5

Inspector fidalgo investiga ................................................................................................................................................ 6

Enquanto a luz faltou ........................................................................................................................................................ 7

A estrela ............................................................................................................................................................................ 8

Diário ................................................................................................................................................................................. 9

Fulano e sicrano .............................................................................................................................................................. 10

O bonifácio ...................................................................................................................................................................... 11

A cigarra e a formiga ....................................................................................................................................................... 12

BENGALINHA ................................................................................................................................................................... 13

Gente que conheci .......................................................................................................................................................... 14

A espingarda do estrangeiro... ........................................................................................................................................ 15

A paraboinha de ouro ..................................................................................................................................................... 16

Mestre finezas ................................................................................................................................................................. 17

O tesouro ........................................................................................................................................................................ 18

Memorial do Convento ................................................................................................................................................... 19

Os Maias — Excerto 2 ..................................................................................................................................................... 20

Os Maias — Excerto 1 ..................................................................................................................................................... 21

Luisinho ........................................................................................................................................................................... 22

Pechincha ........................................................................................................................................................................ 23

Nero ................................................................................................................................................................................ 24

Constantino Cuco ............................................................................................................................................................ 25

O Janeiro ......................................................................................................................................................................... 26

Sexa ................................................................................................................................................................................. 27

Hotel do Facho ................................................................................................................................................................ 28

Dos perigos do riso .......................................................................................................................................................... 29

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IIIº Concurso de Leitura em Voz Alta

Escola Secundária C/ 3º Ciclo EB Joaquim de Araújo

2

Eu sou sincero: não aprecio sinceridade ......................................................................................................................... 30

O cágado ......................................................................................................................................................................... 31

A bela e a cobra ............................................................................................................................................................... 32

A Comadre Morte ........................................................................................................................................................... 33

História do compadre rico e do compadre pobre........................................................................................................... 34

Os nossos filhos, em casa, na rua, no passeio, no liceu, no colégio ............................................................................... 35

O colégio ......................................................................................................................................................................... 36

Um pouco de ternura ...................................................................................................................................................... 37

Portugal ........................................................................................................................................................................... 38

Homens de Vilarinho ....................................................................................................................................................... 39

A Estrela de prata ............................................................................................................................................................ 40

O Rapaz não gostava das mãos ....................................................................................................................................... 41

Um nosso semelhante .................................................................................................................................................... 42

A mulher da esfrega ........................................................................................................................................................ 43

O Conto das Artes Diabólicas .......................................................................................................................................... 44

Sonho de Artista .............................................................................................................................................................. 45

A mais velha profissão do mundo ................................................................................................................................... 46

(mesmo mais velha que a outra) .................................................................................................................................... 46

Silvino .............................................................................................................................................................................. 47

A Palavra Mágica ............................................................................................................................................................. 48

Histórias da Meia-Noite .................................................................................................................................................. 49

A Doida e os Miúdos ....................................................................................................................................................... 50

Maria Moisés................................................................................................................................................................... 51

Uma ceia inesperada ....................................................................................................................................................... 52

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IIIº Concurso de Leitura em Voz Alta

Escola Secundária C/ 3º Ciclo EB Joaquim de Araújo

3

O Menino e o Homem

Naquele dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal. Descalço, pouco me incomodando com a lama em que meus pés se afundavam, gostava de abrir regos para que as poças d'água, como pequeninos lagos, escorressem pelo declive do terreiro, formando o que para mim era um caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel, que eram grandes caravelas de piratas. Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas caminho do formigueiro, lá perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia interrompido. As formiguinhas iam até à margem e, atarantadas, ficavam por ali procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras, trocando ideias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho, atropelando as que vinham atrás e estabelecendo na fila a maior confusão. (...) Resolvi colaborar, apelando para os meus conhecimentos de engenharia. Em poucos instantes construí uma ponte com um pedaço de bambu aberto ao meio, e procurei orientar para ela, com um pauzinho, a fila de formigas.

Estava empenhado nisso, quanto senti que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:

— Que é que você está fazendo? Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer

o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:

— Quantas formigas eram? Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética: uma na frente de

duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas, mais três. — Nove! — exclamei, triunfante. Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda em fila, uma

atrás da outra. Então perguntei a ele o que é que cai em pé e cone deitado. — Cobra? — ele arriscou, enrugando a testa, intrigado. Foi a minha vez de achar graça: — Que cobra que nada! É a chuva — e comecei a rir também. — Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água quebra? — Sei: papel. Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficámos conversando um

tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinquenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão te futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltámos. (...)

O homem disse que tinha de ir embora — antes queria me ensinar uma coisa muito importante: — Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida? — Quero — respondi. O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos

nos meus olhos: — Pense nos outros. Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes

na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.

O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo: — Quem é você? — perguntei ainda. Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi -se embora para sempre.

Fernando Sabino, O Menino no Espelho, 1989

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4

Cinéfilos

— Achas que vai? — indago, cheio de inquietação.

— Bê?... Bê?... Olhe-o a chuçar, a fazer sair as tripas do maneta cá pra fora! — torna ele, na sua vozita

cansada. — Um senhor!... — E revela-me, gravemente: — Morreu há dois anos.

Os espectadores nem respiram, dominados pelos acontecimentos que enchem o écran de violência. Trata-

se de um conflito entre criaturas imaculadamente boas e sujeitos irremediavelmente maus. Em Hong-

Kong, ou terra que o valha, um musculoso herói desbarata todo um pulguedo de gentes crudelíssimas com

as mãos, com os pés, com os cotovelos, com a testa. Cada golpe é uma certidão de óbito. Trás, pás, zuc,

pum! — e os serventuários do Mal voam desarticulados, a espirrar vermelho.

Exprime sem dúvida o arrebatamento, mas a sua voz sai tão cansada que me ponho apensar como seria se

ele exprimisse quebranto.

— Ainda bem — suspiro eu, aliviado.

— O maneta bai lubar o artista prà sala dos espelhos, à falsa-fé, pró desorientar - sopra-me,

confidencialmente, a deixar supor que já vira a fita.

Já os espectadores se levantam ruidosamente das cadeiras de pau e demandam os ares soltos, a rua

malcheirosa. Mas o mocinho famélico continua sentado, de olhar ausente, como se sonhasse.

— Um senhor!... — diz ainda, na sua vozita cansada.

Nunca gostei que me contassem o que se segue nas fitas, do mesmo modo que sempre recusei

terminantemente que uma cigana me predissesse o futuro, mas desta vez não me zango.

— Morreu, sim — toma ele, solene. —E sabe porque morreu? Por puxar de mais pelo corpo. Puxou de

mais pelo corpo. Num debia ter puxado tanto pelo corpo.

As palavras tombam, melancólicas, como pingas de chuva num alguidar.

— Bai — confirma o mocinho. — Num lhe bale de nada, porque o artista espeta-lhe um chuço na barriga,

inté as tripas saírem cá pra fora.

— Um senhor!... — exclama o mocinho de aspecto famélico sentado a meu lado.

— Não pode ser! — volvo eu, pesaroso. — Isso é verdade?

Altino do Tojal, Os Novíssimos Putos, 1984

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5

O pirata de peter

Toda a gente se lembra do nome de Peter Pan. Muitos viram os desenhos animados da Walt Disney e a fada Sininho abre as apresentações dos filmes da Disneylandia, fazendo surgir entre as estrelas do seu pó magico os heróis mais famosos dos desenhos animados.

Mas não serão muitos os que leram o original do escritor escocês Sir James Mathew Barrie, que o publicou em 1904. E é grande pena!

Aí se fala de sonho e imaginação, de atitudes muito sensatas à mistura com impossibilidades reais e, sobretudo, de como é possível voar para ir até ao País da Fantasia. Vem no livro: para chegar lá, voa-se até «a segunda à direita e depois em frente até ser de manhã!». De qualquer modo, se não se der logo com o caminho, não é Problema, porque a Ilha da Fantasia toma a iniciativa de procurar os sonhadores.

Mas há uma razão de peso para hoje mencionarmos «Peter Pan». Nele se fala de um dos piratas mais célebres das histórias: o terrível capitão Gancho!

Nada substitui a leitura deste magnífico livro e eis como Wendy, John e Michael tomam conhecimento, pela primeira vez, da presença do famoso pirata na ilha:

«— Queres uma aventura agora, ou preferes o chá primeiro? — perguntou [Peter] com ar casual a John. (...)

Que espécie de aventura? — perguntou cautelosamente. — Está um pirata a dormir nas pampas, mesmo por baixo de nós (...). Se quiseres podemos descer e

matá-lo. (...) — E se ele acorda? (...) Peter falou com indignação: — Não penses que ia matá-lo quando estivesse a dormir. Primeiro acordava-o e depois matava-o. É

assim que faço sempre. — E matas muitos? — Imensos! (...) — Quem é o chefe deles? — É o Gancho. retorquiu Peter, e o seu rosto tornou-se muito grave ao dizer a palavra detestada.

(...) Então Michael começou a chorar e até John falava aos soluços, pois ambos conheciam a reputação

de Gancho. — Era o amigo do Barba Negra — murmurou John, receoso. — É o pior de todos eles (...). — Como é ele? É grande? — Não tão grande como costumava ser. — Que queres dizer? — Eu cortei-lhe um bocado. (...) — Mas que bocado lhe cortaste? — A mão direita. — Então agora não pode lutar? — Isso é que pode. (...) Tem um gancho de ferro em vez da mão direita, e agarra-nos como se fosse

uma garra.» Só lido! Deste «Peter Pan» há grande quantidade de edições em português. As capas aqui reproduzidas são,

respectivamente, da Europa-América e da Dom Quixote/Círculo de Leitores.

In «Público Júnioin, 91-08-18

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Inspector fidalgo investiga

Nem sempre o que parece é! O inspector Fidalgo sabia isso há longo tempo e procurava sempre

esse conceito nas investigações, que por maior dificuldade ou por pouco impacto sobre a opinião , não

avançavam com a celeridade que requeriam.

Naquela tarde de Agosto, debaixo de um calor abrasador, um acontecimento veio alterar o ritmo de

vida daquele bairro de subúrbios. Um acontecimento que, provavelmente, não mereceria mais de duas

linhas em qualquer jornal sensacionalista e um número nas estatísticas de acidentes de trabalho.

Eram 16h 00 e o Telmo estava no seu posto de trabalho, num andaime, no 9º andar de um prédio

em construção. Não soprava uma única aragem e o ar parado provocava uma sensação de vertigem...

- Está bem, talvez eu devesse ter mandado suspender o trabalho, mas a verdade é que eu tenho

prazos a cumprir e nada fazia prever que o Telmo se fosse abaixo, tanto mais que até já trabalhara em

muito piores condições... - justificava-se o patrão, para quem a morte do moço não representava mais que

uma carga suplementar de trabalhos

Pintor de profissão, Telmo estava a acabar a pintura da casa quando, sem outro motivo aparente

que não fosse um colapso, caiu para a estrada, num autêntico voo, que o fez estatelar a quase oito metros

da base do andaime onde laborava.

O seu colega Fausto estava com uma aparência abatida e quase em estado de choque.

- Não pode ser verdade... Ainda não acredito... Estávamos os dois no andaime, lá em cima, no 9º

andar, e quando menos se esperava, o Telmo, aquele homenzarrão de mais de cem quilos, voou pelos ares

e esborrachou-se lá em baixo... Nem posso acreditar... Não me dava muito bem com ele, tínhamos o nosso

feitio, mas respeitava-o e lamento o que aconteceu... Não vamos poder defrontar-nos outra vez no clube

recreativo lá da terra... É que somos ambos, ou melhor, eu sou e ele era lutador de luta livre.

Uma pena!

- Mas não deu conta de nada de anormal? - Interrogou o inspector.

- Não, nada. Só o vi largar a trincha com que estava a pintar a parede e resvalar da tábua, caindo a

pique, em queda livre, até se estatelar no chão... Aterrador!

O inspector Fidalgo meditou... e chegou à conclusão que Fausto empurrou o companheiro, fazendo-

o cair.

Luís Pessoa, In «Público», 92-07-27

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Enquanto a luz faltou

Alfredo Zimke estava reformado. Há muito tempo que esperava com impaciência que a televisão

transmitisse o filme policial que fora anunciado e que tinha por título “Um Estranho a Bordo”. Ficou muito desiludido

quando, às 20 horas e 28 minutos, a locutora anunciou com um simpático sorriso que o filme seria transmitido duas

horas mais tarde por causa de um programa de actualidades desportivas.

Furioso, desligou a televisão e foi para a cama resmungando. Nem percebeu que dois minutos mais tarde

faltou a luz.

Isto aconteceu no dia 29 de Outubro de 1969.

A luz não faltou só em casa de Alfred Zimke. Das 20 horas e 30 às 21 horas e 58 todo o bairro de Oberburg

ficou às escuras.

Apesar de uma intensa pesquisa, os especialistas da Companhia de Electricidade demoraram uma hora para

encontrarem a causa da falta de corrente. Ficaram muito admirados porque parecia evidente que a interrupção

tinha sido provocada propositadamente.

A ligação principal tinha sido cortada por mãos muito habilidosas. Quase ao mesmo tempo que foi feita esta

descoberta, a polícia recebeu a notícia que duas ourivesarias tinham sido assaltadas de uma maneira que revelava

bastante esperteza.

Não restavam dúvidas de que os acontecimentos se relacionavam.

Pouco depois da meia-noite, os funcionários da polícia já tinham examinado os rastos e chegado à conclusão

de que o autor dos dois roubos só podia ser Jacob Tischlinsky, um superladrão que, por sinal, até morava naquele

mesmo bairro.

Mas o novo dia começara e já dois funcionários da polícia tiravam Tischlinsky da cama para o prender. E

exultaram quando ele jurou que, precisamente àquela hora, tinha estado a ver um filme policial na televisão. Era até

capaz de contar o conteúdo do filme.

Os funcionários objectaram que entre as 20 horas e 30 e as 21 horas e 58 tinha faltado a luz e que, por isso,

era impossível alguém ter estado a ver televisão a essa hora. Tischlinsky fez um gesto de desprezo:

- Estão a seguir uma pista errada, meus senhores. Jacob Tis-chlinsky não precisa de luz para ver televisão.

Jacob Tischlinsky tem uma televisão a pilhas.

Examinado o aparelho de televisão chegou-se à conclusão que as suas afirmações eram verdadeiras. Mas,

apesar de não se terem encontrado impressões digitais no lugar do delito e não se terem achado os objectos

roubados na sua casa, Tischlinsky ficou preso.

Por causa de um único pormenor.

Wolfgang Ecke, O homem Vestido de Negro

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8

A estrela

Um dia, à meia-noite, ele viu-a. Era a estrela mais gira do céu, muito viva, e a essa hora passava mesmo por

cima da torre. Como é que a não tinham roubado? Ele próprio, Pedro, que era um miúdo, se a quisesse empalmar,

era só deitar-lhe a mão. Na realidade, não sabia bem para quê. Era bonita, no céu preto, gostava de a ter. Talvez

depois a pusesse no quarto, talvez a trouxesse ao peito. E daí, se calhar, talvez a viesse a dar à mãe para enfeitar o

cabelo. Devia-lhe ficar bem, no cabelo.

De modo que, nessa noite, não aguentou. Meteu-se na cama como todos os dias, a mãe levou a luz, mas ele

não dormiu. Foi difícil, porque o sono tinha muita força. Teve mesmo de se sentar na cama, sacudir a cabeça muitas

vezes a dizer-lhe que não. E quando calculou que pai e mãe já dormiam, abriu a janela devagar e saltou para a rua. A

janela era baixa. Mas mesmo que não fosse. Com sete anos, ele estava treinado a subir às oliveiras quando era o

tempo dos ninhos, para ver os ovos ou aqueles bichos pelados, bem feios, com o bico enorme, muito aberto. E se

não era o tempo dos ninhos, andava à solta pela serra, saltava os barrancos, jogava mesmo, quando preciso, à

porrada como um homem. Assim que se viu na rua, desatou a correr pela aldeia fora até à torre, porque o medo

vinha a correr também atrás dele. Mas como ia descalço, ele corria mais. A igreja ficava no cimo da aldeia e a aldeia

ficava no cimo de um monte. De modo que era tudo a subir. Mas conseguiu – e agora estava ali. Olhou a estrela para

ganhar coragem, ela brilhava muito quieta, como se estivesse à sua espera. E de repente lembrou-se: se a porta

estivesse fechada? Levantou-se logo, foi ver. A torre era muito alta e tinha uma porta para a rua. Pedro empurrou-a

um pouco e viu que estava aberta. Ficou muito admirado, mas depois nem por isso. Ninguém ia roubar os sinos que

eram mesmo muito pesados. E quanto às estrelas, se calhar ninguém se lembrava de que era fácil empalmá-las. E

tão contente ficou de a porta estar aberta, que só depois se lembrou de a ter ouvido ranger. E então assustou-se.

Voltou a experimentar e rangeu outra vez. Rangia pouco, mas o silêncio era muito e parecia por isso que também a

porta rangia muito. E teve medo. Reparou mesmo que estava a suar e não devia ser da corrida, porque este suor era

frio. A porta ficara já deslocada e agora era só encolher-se um pouco e passar. Mas sem tocar na porta, para não

ranger. Meteu-se de lado e entrou. Havia um grande escuro lá dentro. Já calculava isso, mas as coisas são muito

diferentes de quando só se calculam. E cheirava lá a - ratos, a cera, às coisas velhas que apodrecem na sombra.

Como estava escuro, pôs-se a andar às apalpadelas. Mas as pedras frias assustaram-no. Lembravam-lhe mortos ou

coisas assim. Já com os pés não se assustava tanto, porque o frio que entrava por aí era só frio da falta de botas. Até

que pisou o primeiro degrau e começou a subir. Cheirava mal que se fartava. Mas, à medida que ia subindo, vinha lá

de cima um fresco que aclarava o cheiro. À última volta da escada em caracol, olhou ao alto o céu negro, muito liso.

Via algumas estrelas, mas eram tudo estrelas velhas e fora de mão. Até que chegou ao campanário e respirou fundo.

Aproveitou mesmo para puxar as calças que estavam a cair. Eram dois sinos e uma sineta. E de um dos lados havia só

um buraco vazio sem sino nenhum. Agora tinha de subir por uma escadinha estreita que começava ao lado; e depois

ainda por uma outra de ferro, ao ar livre, e com o adro lá em baixo. Mas quando chegou à de ferro, não olhou. Deu

foi uma olhadela à estrela, que já se via muito bem. Todavia, quando a escada acabou, reparou que lhe não chegava

ainda com a mão. Tinha pois de subir o resto de gatas, dobrando e desdobrando as pernas como uma rã. Mesmo no

cimo da torre havia uma bola de pedra e enterrado na bola havia um ferro e ao cimo do ferro estava um galo com os

quatro pontos cardeais. Pedro segurou-se ao varão e viu que tinha ainda de subir até se pôr mesmo em cima do

galo. Subiu devagar, que aquilo tremia muito, e empoleirou-se por fim nos ferros cruzados dos quatro ventos.

Enroscando as pernas no varão, tinha agora os braços livres. E então ergueu a mão devagar.

Vergilio Ferreira, Apenas Homens, 1972

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Diário

Segunda-feira, 8 de Novembro de 1943

Querida Kitty:

Se te desses ao trabalho de ler todas as minhas cartas umas atrás das outras, verias que as escrevi com as

mais diversas disposições. É aborrecido ser-se dependente da disposição de momento, aqui no anexo. Mas isto não

acontece só comigo, é o mesmo com todos os outros (...) Decerto já estão a perceber que me encontro de novo num

período de abatimento e de falta de coragem. E nem posso explicar porquê, pois não há nenhuma razão especial.

Creio tratar-se de uma certa cobardia que nem sempre consigo vencer. Hoje, à tardinha, quando a Ellin) estava aqui,

tocaram a campainha permanentemente e com força. Fiquei logo pálida, tive dores de barriga, palpitações e muito

medo. De noite, deitada na cama, tenho visões terríveis. Vejo-me na prisão, sozinha, sem meu pai e minha mãe. Por

vezes ando a vaguear por qualquer parte, não sei onde, ou vejo o anexo a arder, ou eles vêm, de noite, para nos

buscar. Sinto tudo isto como se fosse realidade 'e a ideia de que me vai acontecer alguma catástrofe não me larga.

A Miep diz, por vezes, que tem inveja de nós por termos aqui calma e sossego. Em princípio, ela podia ter

razão, mas não se lembra de que vivemos sempre com medo. Não consigo já imaginar que o Mundo possa voltar a

ser para nós o que era dantes. Digo muitas vezes: "Depois da guerra". Mas digo-o como se tratasse de um castelo no

ar e não de um tempo que se tornará, algum dia, para mim realidade. Quando penso na nossa vida em casa, na

escola, com todas as suas alegrias e sofrimentos, em tudo o que era "antigamente", tenho a sensação de não ter

sido eu quem viveu essas coisas mas sim uma estranha, alguém totalmente diferente.

Vejo-nos a nós, aos oito do anexo, numa pequena nuvem, clara e azul, no meio de outras nuvens, pesadas e

escuras. O nosso lugar ainda é seguro mas as nuvens estão a ficar cada vez mais densas e o círculo que nos separa do

perigo tão próximo vai-se apertando. Por fim ficamos todos de tal maneira envolvidos na escuridão que, com o

desejo desesperado de encontrar uma saída, esbarramos uns contra os outros. Olhamos para baixo onde os homens

lutam, olhamos para cima onde há felicidade e paz. Mas estamos isolados por uma massa grossa e impenetrável que

nos barra todos os caminhos e nos encerra, como um muro invencível, um muro que nos destruirá quando a hora

soar. E eu só posso clamar e suplicar:

— Oh!, círculo, círculo, alarga-te e abre-te para nós!

Tua Anne

Anne Frank, ob. ret.

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Fulano e sicrano

O homem atirou-se para dentro do táxi, bateu com a porta, disse em voz apressada:

"Rua tal, número tantos."

Era médico e estava sem carro desde a véspera, porque os motores são como as pessoas e têm os seus clínicos gerais e até os seus especialistas. Das suas doenças nem é bom falar.

Não olhou para a cara do motorista, como é óbvio. Os motoristas de táxi são indivíduos sem cara, só com olhos às vezes, no espelhinho retrovisor. Aquele, porém, voltou-se um pouco logo que o carro se pôs em andamento, e tinha um vago sorriso aos cantos da boca.

"É o Fulano, não é?"

O médico teve um leve sobressalto, não soube logo porquê. Algo, no entanto, estava errado naquele começo de conversa. Ele não era o Fulano mas o dr. Fulano ou até o sr. dr. Fulano para um homem como aquele.

"Sou", respondeu em todo o caso.

"Eu bem me parecia. Tenho uma destas memórias para caras! Mas talvez o tenha visto, de vez em quando, ao longo destes anos... Sou o Sicrano, lembra-se? Do Camões! Fomos colegas de carteira no terceiro. Depois o meu pai morreu, desgraças, tive de desistir. Não se lembra?"

Havia uma certa ansiedade na pergunta. Não se lembra? Lembre-se por favor. No Camões. Colegas de carteira.

O médico procurava, tacteando. E de súbito lembrou-se. Foi estranho como se lembrou tão bem. Um rapazinho moreno, de cabeleira e óculos. O Sicrano, pois.

"Lembro-me, pá!", exclamou. E encontrou a palavra "pá" como que esquecida, também, na carteira que ambos tinham habitado. "Uma destas! Então que tens feito?" A estupidez da pergunta magoou-o de súbito como um soco em pleno peito: "Quero dizer..."

"Para aqui ando. Foi o que se pode arranjar. Os sonhos que nós temos às vezes... Eu, era ser engenheiro. Formou-se?" perguntou.

"Medicina. Nem sempre é agradável. Vou ver uma pessoa que está a morrer."

O carro aumentou logo de velocidade, e o homem que ia salvar outro, ou ajudá-lo a morrer, disse desinteressado:

"Aparece lá no consultório. Vou dar-te um cartão. Das cinco às sete estou quase sempre."

O motorista pegou no cartão-de-visita, mas sem entusiasmo, e o médico soube que ele não ia aparecer. Tinha havido entre ambos um "você", um "tu", houve no fim, quando o carro se deteve, aquele momento quase de angústia em que o médico não soube se devia dizer "paga-te de tanto" (contando já com a gorjeta), se não devia dar gorjeta, se... se...

Quando entrou em casa do cliente e soube que ele tinha acabado, apeteceu-lhe fugir para muito longe, esquecer muitas coisas e muitas pessoas. Hibernar talvez como os bichos. Ou ir fazer treze anos e ter como colega de carteira um rapazinho que ambicionava ser engenheiro um dia.

Maria Judite de Carvalho, O Homem no Arame

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IIIº Concurso de Leitura em Voz Alta

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O bonifácio

Os "chauffeurs" ou condutores de táxi são diferentes uns dos outros, cada um tem a sua maneira de ser. Há os que gostam do silêncio; perguntam onde querem ir e não estão para mais conversa. Até certo ponto isso é agradável, porque nos deixam olhar sossegadamente pela janela ou pensar no que nos apetece.

Há outros com o aparelho de rádio sempre ligado a uma central, donde uma voz de mulher lhes diz quem anda à procura dum táxi. É enfadonha essa lengalenga, dá-nos cabo da paciência e chegamos a casa estonteados, como se tivéssemos apanhado com um martelo na cabeça. Outros falam-nos do tempo, se está frio ou calor, se virá chuva ou sol, ou então dos preços da hortaliça, dos ovos, dos jornais. E há ainda os que resmungam durante todo o percurso e chamam "bestas" aos automobilistas que os ultrapassam.

Mas eu não vou fazer uma crónica sobre os diferentes tipos de condutores de táxi. Quero falar dum em especial, do senhor Vicente. O senhor Vicente, sempre simpático e bem disposto, é meu amigo e, enquanto me leva dum sítio para outro, conta coisas engraçadas que dá prazer ouvir. Bem vistas as coisas, não é de admirar que um homem chamado Vicente conte coisas engraçadas, não é verdade?

Ora, há dias, utilizei o táxi do senhor Vicente. Para surpresa minha, o senhor Vicente limitou-se a dizer "boa tarde" e mais nada. E, ainda por cima, com um modo seco, nada próprio dele. Nem se virou para mim e ficou mudo como um peixe.

Que é que tem, senhor Vicente? perguntei.

Estou aborrecido.

— Comigo?

— De maneira nenhuma. Porque é que havia de estar aborrecido com a senhora?

E calou-se. Mas, passados uns minutos, não aguentou mais e desabafou: — Tive de me desfazer do Bonifácio!

— Mas quem é o Bonifácio, senhor Vicente?

— É o meu papagaio... que já não é meu! O mais esperto papagaio do mundo! Estou desolado. Mas não tive outro remédio. Depois de algumas tentativas, consegui, por fim, colocá-lo num supermercado. Lá, ao menos, está perfeitamente à vontade. Pode exibir toda a sua arte. Dá gargalhadas, chama os meninos para os deveres e para a cama, canta:

"A minha mãe mandou-me à fonte

à fonte do salgueirinho...",

toca a buzina do meu táxi e puxa o autoclismo do nosso quarto de banho. É que aquilo é um supermercado à americana, onde se encontra de tudo: o que é preciso, o que não é preciso e mesmo automóveis e autoclismos. Por isso quantos mais ruídos, melhor.

Na verdade o Bonifácio não podia ter encontrado sítio mais apropriado. Contudo, estou aborrecido, desolado. Gostava muito dele, era extraordinário e bom companheiro. Merecia estar connosco em casa, aconchegado, em vez de entreter os fregueses do supermercado. Mas a vida tem as suas coisas, não é assim?

Tínhamos chegado aonde eu queria ir. Agradeci ao senhor Vicente por me ter contado a história do Bonifácio e fiz votos para que o papagaio se fartasse das buzinadelas e do autoclismo e voltasse ao convívio da família.

Ilse Losa, Bonifácio, Livros Horizonte, 1980

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A cigarra e a formiga

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé dum formigueiro. Só parava quando cansadinha; e o seu divertimento, então, era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.

Mas o bom tempo, afinal, passou, e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.

A pobre cigarra, sem abrigo no seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.

Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu — tique, tique, tique...

Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.

— Que quer? — perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e - a tossir.

— Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu... A formiga olhou-a de alto a baixo.

— E que fez durante o bom tempo, que não construiu a sua casa?

A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois dum acesso de tosse:

— Eu cantava, bem sabe...

— Ah!... — exclamou a formiga recordando-se. — Era você então que cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?

— Isso mesmo, era eu...

— Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que a sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado distraía-nos e aliviava o: trabalho. Dizíamos sempre que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.

A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.

Monteiro Lobato, Fábulas

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BENGALINHA

Era uma vez um cão que passava a vida a ouvir as pessoas lamentarem-se levarem uma vida de cão.

Numa tarde de domingo, saiu a passear com os donos.

Nesse dia, a mulher vestia uma blusa vermelha de riscado, uma saia [ta com um pedaço de tecido que há

tempos lhe sobrara das calças do atido; e, por cima da saia, um avental azul lavado.

O marido, uma camisa às riscas, limpa e ponteada.

— Estamos já no fim das férias! E eu que tanto gostava de viajar! Mas tu tão teimoso! E só se faz

aquilo de que gostas — suspirava a mulher, de mãos atrás das costas.

— Deixa-te de lérias!

— Com o preço a que os transportes estão, pobres como somos, só com filete de cão.

— Ão! Ão! Ão.

— "Que é um bilhete de cão?"

— Ão, Ão, Ão!

— Esquece o que eu disse, homem — respondeu-lhe a mulher. — Não há-de haver má sorte que Deus

sempre mande. Talvez um dia — quem sabe? — nos saia a Sorte Grande...

Não vão dar pela minha falta.

Sei eu der um pulo à estação — decidiu, imaginando poder ajudá-los, o bom do nosso cão.

E... um, dois, três...

Se melhor o pensou, melhor o fez. Por acaso, o vendedor estava mesmo distraído.

Via-se bem que tinha carregado na pinguinha, pois tinha as bochechas vermelhuscas e o rubicundo nariz

parecia mais comprido.

Vai daí, o Bengalinha arrebanha com os dentes um cartão que um paz tinha poisado mesmo ao lado para

pedir setenta por cento de desconto no bilhete, por ser soldado.

— Agarra! Agarra! Agarra que é ladrão — gritou o bilheteiro do balcão. Curioso o cão olhou para trás,

e... claro, caiu na ratoeira.

Porque nesse mesmo instante, zás... o próprio bilheteiro passou-lhe aí a rasteira.

Revista Fungagá

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Gente que conheci

Do casarão cinzento, de janelas quase sempre fechadas, saía todos os dias, à tardinha, um velho de barbas brancas que passava pelas crianças sem as ver. Não usava casaco como os outros homens da aldeia, mas sim uma larga capa negra. Ouvi uma vez dizer a alguém que ele se parecia com um morcego. Eu nunca tinha visto morcegos, só sabia que eram criaturas da noite. Talvez por isso, por o seu aspecto evocar criaturas da noite, as crianças interrompiam as brincadeiras, sempre que o viam surgir. Certa tarde, um rapazinho ensaiou uma data de palavrões para o desafiar, mas quando ele se aproximou, devagar e sem nos ver, todos nós parámos no jogo, ficámos em silêncio, e o rapazinho não conseguiu pronunciar um único dos seus palavrões. Contrariado pelo falhanço, afirmou que o Sr Kamp era um fantasma, que com fantasmas não se queria meter, que não faltava mais nada, ora.

O quê? O Sr. Kamp um fantasma? Como os que faziam reboliço em casas abandonadas e nos cemitérios? Sobressaltei-me.

Em minha casa riram-se do meu susto. Afirmaram que o Sr. Kamp era um homem digno de respeito e que não havia fantasmas, nem na aldeia, nem em parte alguma.

— E porque é que usa aquela capa negra? perguntei.

— Porque não quer ser igual a toda a gente. Quer ser ele, o Sr. Kamp, o proprietário mais importante cá da terra.

Não fiquei convencida. E quando o Sr. Kamp morreu, cismei: "Mas como é isso? Os fantasmas também morrem? Então não são as almas de gente morta?"

Estas e outras recordações escrevi no caderno de escola. O meu pai não era dado a leituras. No fim dos dias de semana chegava a casa, cansado do trabalho e lamentava-se:

— Estou arrasado.

E como estava arrasado, só lhe apetecia conversar ou passar os olhos pelo jornal. Nos Domingos, (...) preferia passear, jogar, palrar. Para ler histórias faltava-lhe a paciência. Era o que dizia. E por vezes acrescentava: "Sou um homem com pouca instrução". E isso soava como se quisesse pedir perdão dalguma falta.

Mas eu queria que ele lesse a minha redacção sobre as pessoas que ambos tínhamos conhecido tão bem. Por isso pus-lhe o caderno aberto sobre a mesinha em frente do cadeirão, onde se costumava encostar para fumar o seu cachimbo. Antes de ele entrar, saí para o meu quarto. Calculei o tempo que lhe levaria a ler as páginas que escrevi, se as lesse. Quando tornei a entrar na sala o meu pai estava com o caderno nas mãos. Deixei-me ficar perto da porta. Daí a um bocado ergueu a cara e vi-lhe então os olhos brilhantes como estrelas. Era em mim que os fixava. Tive a sensação de que me beijavam.

Nenhum de nós falou. E para que havíamos de falar?

Nesse dia apercebi-me, pela primeira vez, da alegria que experimentam as pessoas que sabem, através de palavras escritas, comunicar com os outros, e nunca me poderei esquecer daqueles momentos de comunicação perfeita entre mim e o meu pai.

É por isso que considero a singela redacção com o título “Gente que conheci”, escuta num caderno de escola, a minha melhor história.

Ilse Losa, A Minha Melhor História

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A espingarda do estrangeiro...

O rei mandou-me chegar junto da camilha em que estava deitado, enfermo e atribulado da gota, dizendo-me:

— Rogo-te que não te enfades de estar junto de mim, porque folgo de te ver e de falar contigo. Diz-me se sabes de alguma mezinha lá dessa terra do cabo do mundo para esta enfermidade que me tem aleijado ou para fastio, porque vai para dois meses que nada como.

Respondi que não era médico, nem aprendera essa ciência, mas que no junco em que eu viera da China vinha um pau cuja água curava muito maiores enfermidades do que aquela de que ele se queixava; se o tomasse, teria logo saúde, o que ele folgou muito de ouvir.

Querendo pôr em efeito curar-se com ele, mandou-o buscar a Tanixumá, onde o junco estava. A verdade é que se curou com ele, ficando são em trinta dias, quando havia já dois anos que estava entrevado na cama. Vinte dias depois de ter chegado a esta cidade de Fuchéu, passei muito a meu gosto, ora respondendo a várias perguntas que o rei, a rainha, o príncipe e os senhores me faziam, como gente que não tinha notícia de haver mais mundo além do Japão.

Via as suas festas, as suas casas de oração, os seus exercícios de guerra, os seus navios de armada, as suas pescarias e caçadas, a que são muito afeiçoados, principalmente às de altanaria, com falcões e açores ao nosso modo. Algumas vezes passava o tempo com a minha espingarda, matando rolas, pombos e codornizes, de que a terra era bem abastada.

Os desta terra, para quem este modo de tiro de fogo foi coisa tão nova como para os de Tanixumá, vendo uma coisa que até então nunca tinham visto, foi tamanha a importância que lhe deram que não a sei descrever. O segundo filho do rei, Arichandono, moço de dezasseis ou dezassete anos, a quem ele era muito afeiçoado, pediu-me algumas vezes para eu o ensinar a atirar, do que me escusei sempre, dizendo que era preciso muito tempo para o aprender.

Ele, não aceitando esta minha razão, fez queixa de mim ao pai, que, para lhe agradar, me rogou que lhe deixasse dar um par de tiros, para lhe satisfazer o apetite. Respondi que até podia dar cem, os que ele quisesse; como estava a comer com o pai, ficou para depois da sesta, o que não chegou a acontecer porque naquela tarde havia uma romagem a um pagode pela saúde do rei.

No dia seguinte, veio pela sesta à casa onde eu estava, onde me achou dormindo sobre uma esteira. Vendo a espingarda pendurada, não me quis acordar, com o propósito de dar primeiro o par de tiros, parecendo-lhe, como depois contou, que naqueles que ele tomava não se contariam os que eu lhe prometera.

Mandando a um dos moços fidalgos que fosse pela calada acender o morrão, tirou a espingarda de onde estava e, querendo carregá-la, como algumas vezes me tinha visto fazer, como não sabia a quantidade de pólvora que havia de deitar, encheu mais de dois palmos do cano; meteu-lhe o pelouro, pô-la ao rosto e apontou para uma laranjeira que estava defronte.

Ao pôr-lhe o fogo, quis a desventura que rebentasse por três partes, fazendo-lhe duas feridas, uma das quais lhe decepou quase o dedo polegar da mão direita, com o que o moço caiu no chão como morto. Vendo o filho do rei nesse estado, os dois moços que iam com ele correram a caminho do paço, gritando pelas ruas:

— A espingarda do estrangeiro matou o filho do rei!

FERNÃO MENDES PINTO, Peregrinação

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A paraboinha de ouro

Era uma vez três irmãs, que viviam juntas; a mais nova punha à janela uma bacia com água e ali vinha espanejar-se um passarinho, que era um príncipe encantado, que falava com ela. As irmãs tomaram-lhe grande inveja, e procuraram jeito de acabar com as conversas; espreitaram e viram o príncipe, e meteram na bacia de água muitas navalhas de barba. Quando ao outro dia veio o passarinho lavar-se, cortou-se e foi-se embora; a pequena veio à hora do costume; e o passarinho não apareceu; só quando olhou para a água e a achou cheia de sangue e com navalhas de barba é que compreendeu a traição das irmãs. Foi por esse mundo além, perguntando se alguém sabia onde estava o príncipe encantado; até que chegou a casa da Lua. A mãe da Lua disse-lhe:

— Ai, menina, que vem aqui fazer? Se o meu filho a acha cá... Olhe que ele tem uma cara muito arrenegada.

A menina sempre lhe contou o que queria, e a velha escondeu-a e disse-lhe que havia de perguntar ao filho onde estava o príncipe. Por fim entra a Lua, muito arrenegada, dizendo:

— Cheira-me aqui a fôlego vivo.

A velha lá sossegou a Lua, e perguntou o que a menina queria. Respondeu a Lua:

— Eu sei lá dele! Todos os que estão doentes me fecham as janelas assim que anoitece! O Vento é que há-de saber.

A mãe da Lua deu à menina uma paraboinha de oiro, e ela foi ter a casa do Vento. A mãe do Vento também perguntou ao filho, e ele disse:

— O príncipe está muito longe e eu já lá cheguei, mas como está doente fecharam-me todas as janelas. O Sol é que sabe onde o príncipe está.

A menina foi-se embora, e a mãe do Vento deu-lhe uma roca de oiro cravejada de diamantes. Até que chegou à casa do Sol; a mãe tratou-a muito bem e nisto entrou o Sol muito radiante e alegre, e disse onde é que estava o príncipe e ensinou-lhe o caminho. A mãe do Sol deu-lhe um fuso de oiro. A menina chegou defronte do palácio e sentou-se, mas estava tudo fechado. Puxou da sua paraboinha e pôs-se a dobar. As criadas do palácio viram aquilo e foram-no dizer à rainha, que lhe mandou dizer que queria comprar aquela paraboinha.

Ela respondeu:

— Só se me deixar entrar no quarto do príncipe.

E pôs para a banda a paraboinha, e começou a fiar na roca de oiro cravejada de diamantes. Foram dizê-lo à rainha, e ela tornou a mandar-lhe pedir que lhe vendesse a roca e a paraboinha; a menina respondeu que só se a deixasse entrar no quarto do príncipe. A rainha quis, e a menina foi ter ao quarto onde estava o príncipe doente e cheio de feridas. A menina chegou-se ao pé da cama, falou-lhe, e ele reconheceu-a; contou-lhe então a traição que as irmãs lhe fizeram com inveja. O príncipe ficou muito contente com a verdade e melhorou de repente, contou tudo à rainha e casou e viveram ambos muito felizes.

Selecção de BRANQUINHO DA FONSECA Contos Tradicionais Portugueses

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Mestre finezas

Agora entro, sento-me de perna cruzada, puxo um cigarro, e à pergunta de sempre respondo soprando o fumo:

— Só a barba. Ora é de há pouco este meu à-vontade diante de Mestre Ilídio Finezas. Lembro-me muito bem de como tudo se passava. Minha mãe tinha que fingir-se zangada. Eu saía

de casa, rente à parede, sentindo que aquilo era pior que ir para a escola. Mestre Finezas puxava um banquinho para o meio da loja e enrolava-me numa enorme toalha. Só

me ficava a cabeça de fora. Como o tempo corria devagar! A tesoura tinia e cortava junto das minhas orelhas. Eu não podia mexer-me, não podia bocejar

sequer. — "Está quieto, menino" —, repetia Mestre Finezas segurando-me a cabeça entre as pontas duras dos dedos: — "Assim quieto!" — Os pedacitos de cabelo espalhados pelo pescoço, pela cara, faziam comichão e não me era permitido coçar. Por entre as madeixas caídas para os olhos via-lhe, no espelho, as pernas esguias, o carão severo de magro, o corpo alto, curvado. Via-lhe os braços compridos, arqueados como duas garras sobre a minha cabeça. Lembrava uma aranha.

E eu — sumido na toalha, tolhido numa posição tão incómoda que todo corpo me doía - era para ali uma pobre criatura indefesa nas mãos de Mestre Ilídio Finezas.

Nesse tempo tinha-lhe medo. Medo e admiração. O medo resultava do que acabo de contar. A admiração vinha das récitas dos amadores dramáticos da vila.

Era pelo Inverno. Jantávamos à pressa e nessas noites minha mãe penteava-me com cuidado. Calçava uns sapatos rebrilhantes e umas peúgas de seda que me enregelavam os pés. Saíamos. E, no negrume da noite que afogava as ruas da vila, eu conhecia pela voz famílias que caminhavam na nossa frente e outras que vinham para trás. Depois, ao entrar no teatro, sentia-me perplexo no meio de tanta luz e gente silenciosa. Mas todos pareciam corados de satisfação.

Daí a pouco, entrava num mundo diferente. Que coisas estranhas aconteciam! Ninguém ali falava como eu ouvia cá fora. E mesmo quando calados tinham outro aspecto; constantemente a mexerem os braços. Mestre Finezas era o que mais se destacava. E nunca, que me recorde, o pano desceu, no último acto, com Mestre Finezas ainda vivo. Quase sempre mesmo quando a cortina principiava a descer e, na plateia, as senhoras soluçavam alto.

Aquelas desgraças aconteciam-lhe porque era justo e tomava, de gosto, o partido dos fracos. E, para que os fracos vencessem, Mestre Finezas não tinha medo de nada nem de ninguém. Heroicamente, de peito aberto, e com grandes falas, ia ao encontro da morte.

Eu arrepiava-me todo. Uma noite Mestre Finezas morreu logo no primeiro acto. Foi um desapontamento. Todos criticaram pelo corredor, no intervalo. — "O melhor artista morrer mal entra em cenal... Não está certo! Agora vamos gramar quatro actos só com canastrões!" — dizia o doutor delegado a meu pai.

Mas a cena tinha sido tão viva e a sua morte tão notada durante o resto do espectáculo que, no outro dia, me surpreendi ao vê-lo caminhando em direcção à loja.

Ora havia também um outro motivo para a minha admiração. Era o violino. Mestre Finezas, quando não tinha fregueses, o que era frequente durante a maior parte do dia, tocava violino. E muita vez aconteceu eu abandonar os companheiros e os jogos e quedar-me, suspenso, a ouvi- lo, de longe.

Era bem bonito. Uma melodia suave saía da loja e enchia a vila de tristeza. Passaram anos. Um dia, parti para os estudos.

MANUEL DA FONSECA, Aldeia Nova

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O tesouro

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde há muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de Abril, os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro.

Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demónio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas o como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso, ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsilha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

— Bem tramado! — gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, o de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.

Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

— Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e s levar a minha chave! — Também eu quero a minha, mil raios! — rugiu logo Rostabal. Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada

um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente, Guanes, desanuviado, saltou na

o égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

Olé! Olé! Sale la cruz de la iglésia, Vestida de negro luto..

Eça de Queirós, O tesouro

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Memorial do Convento

D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que

chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não

emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre

seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que

caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim,

por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam

no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se extenua a

implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um

rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão

porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante, tanto em

novenas organizadas como em orações ocasionais. Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação

canónica ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e

conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade

total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo

acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima

retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois

anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de D. Maria Ana. Mas Deus é grande.

José Saramago

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Os Maias — Excerto 2

Repita lá isso! repita lá isso! E imediatamente aquela massa de gente oscilou, embateu contra o tabuado da tribuna

real, remoinhou em tumulto, com vozes de ordem e morra, chapéus pelo ar, baques surdos de murros. Por entre o

alarido vibravam, furiosamente, os apitos da polícia; senhoras, com as saias apanhadas, fugiam através da pista,

procurando esbaforidamente as carruagens; - e um sopro grosseiro de desordem reles passava sobre o hipódromo,

desmanchando a linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro...

Carlos achou-se ao pé do marquês, que exclamava, pálido:

- Isto é incrível, isto é incrível...

Carlos, pelo contrário rio, achava pitoresco.

- Qual pitoresco, homem! É uma vergonha, com todos esses estrangeiros!

No entanto a massa de gente dispersava, lentamente, obedecendo ao oficial de guarda, um moço pequenino mas

decidido, que, em bicos de pés, aconselhava para os lados, numa voz de orador, «cavalheirismo» e «prudência...» O

jockey de paletó alvadio afastou-se, apoiado ao braço dum amigo, coxeando, com o nariz a pingar sangue: e o

comissário desceu para a pista, com um cortejo atrás, triunfante, sem colarinho, arranjando o chapéu achatado

numa pasta. A música tocava a marcha do Profeta; em quanto o desgraçado juiz das corridas, o Mendonça,

encostado à tribuna real, com os braços caídos, aparvalhado, balbuciava num resto de assombro:

- Isto só a mim! Isto só a mim I

O marquês, num grupo a que se juntara o Cliford, Craft, e Taveira, continuava a vociferar:

- Então, estão convencidos? Que lhes tenho eu sempre dito? Isto é um país que só suporta hortas e arraiais...

Corridas, como muitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada. No fundo todos nós

somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva lá seu compadre! Aí está o que él

Ao lado dele Cliford, que no meio daquele desmancho todo esticava mais correctamente a sua linha de gentleman,

mordia um sorriso, assegurando, com um ar de consolação, que conflitos iguais sucedem em toda a parte... Mas no

fundo parecia achar tudo aquilo ignóbil. Dizia-se mesmo que ele ia retirar a Mist. E alguns davam-lhe razão. Que

diabo! Era aviltante para um belo animal de raça correr num hipódromo sem ordem e sem decência, onde a todo o

momento podiam reluzir navalhas.

- Ouve cá, tu viste por acaso esse animal do Dâmaso? perguntou Carlos, chamando para o lado o Taveira. Há uma

hora que ando a fareja-lo...

- Estava ainda há pouco do outro lado, no recinto das carruagens, com a

Josefina do Salazar... Anda extraordinário, de sobrecasaca branca, e de véu no chapéu! país que só suporta hortas e

arraiais... Corridas, como muitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada. No fundo

todos nós somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva lá seu compadre! Aí está o que

é!

Ao lado dele Cliford, que no meio daquele desmancho todo esticava mais correctamente a sua linha de gentleman,

mordia um sorriso, assegurando, com um ar de consolação, que conflitos iguais sucedem em toda a parte... Mas no

fundo parecia achar tudo aquilo ignóbil. Dizia-se mesmo que ele ia retirar a Mist. E alguns davam-lhe razão. Que

diabo! Era aviltante para um belo animal de raça correr num hipódromo sem ordem e sem decência, onde a todo o

momento podiam reluzir navalhas.

- Ouve cá, tu viste por acaso esse animal do Dâmaso? perguntou Carlos, chamando para o lado o Taveira. Há uma

hora que ando a farejá-lo...

- Estava ainda há pouco do outro lado, no recinto das carruagens, com a Josefina do Salazar...

Eça de Queirós

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21

Os Maias — Excerto 1

- Vamos nós ver as mulheres, disse Carlos.

Seguiram devagar ao comprido da tribuna. Debruçadas no rebordo, numa fila muda, olhando vagamente,

como duma janela em dia de procissão, estavam ali todas as senhoras que vêem no high-life dos jornais, as

dos camarotes de S. Carlos, as das terças-feiras dos Gouvarinhos. A maior parte tinha vestidos sérios de

missa. Aqui e além um desses grandes chapéus emplumados à Gainsborough, que então se começavam a

usar, carregava duma sombra maior o tom trigueiro duma carinha miúda. E na luz franca da tarde, no

grande ar da colina descoberta, as peles apareciam murchas, gastas, moles, com um baço de pó de arroz.

Carlos cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas, loirinhas, ambas correctamente vestidas de

xadrezinho: depois a viscondessa de Alvim, nédia e branca, com o corpete negro reluzente de vidrilhos,

tendo ao lado a sua terna insuperável, a Joaninha Vilar, cada vez mais cheia, com um quebranto cada vez

mais doce nos olhos pestanudos. Adiante eram as Pedrosos, as banqueiras, de cores claras, interessando-

se pelas corridas, uma de programa na mão, a outra de pé e de binóculo estudando a pista. Ao lado,

conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal, desarranjada, com um ar de ter lama nas saias. Numa

bancada isolada, em silêncio, Vilaça com duas damas de preto.

A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava também aquela que os olhos de Carlos

procuravam, inquietamente e sem esperança.

- É um canteirinho de camélias meladas, disse o Taveira, repetindo um dito do Ega. Carlos, no entanto, fora

falar à sua velha amiga D. Maria da Cunha que, havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque,

com o seu sorriso de boa mamã. Era a única senhora que ousara descer do retiro ajanelado da tribuna, e

vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas, como ela disse, não aturara a seca de estar lá em cima

perfilada, à espera da passagem do Senhor dos Passos. E, bela ainda sob os seus cabelos já grisalhos, só ela

parecia divertir-se ali, muito à vontade, com os pés pousados na travessa duma cadeira, o binóculo no

regaço, cumprimentada a cada instante, tratando os rapazes por meninos... Tinha consigo uma parenta

que apresentou a Carlos, uma senhora espanhola, que seria bonita se não fossem as olheiras negras,

cavadas até ao meio da face. Apenas Carlos se sentou ao pé dela, D. Maria perguntou-lhe logo por esse

aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comedia para se

vingar de Lisboa, chamada o Lodaçal... - Entra o Cohen? perguntou ela, rindo.

- Entramos todos, Sr.2 D. Maria. Todos nós somos lodaçal...

Nesse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan molengão de tambores e pratos, o

hino da Carta, a que se misturou uma voz de oficial e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas,

El-Rei apareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de veludo, e chapéu branco. Aqui e além, raros sujeitos

cumprimentaram, muito de leve: a senhora espanhola,

essa, tomou o óculo do regaço de D. Maria, e de pé, muito descansadamente, pôs-se a examinar o rei. D.

Maria achava ridícula a música, dando ás corridas um ar de arraial... Além disso, que tolice, o hino, como

num dia de parada!

- E este hino, então, que é medonho, dizia Carlos. A Sr.2 D. Maria não sabe a definição do Ega, e a sua

teoria dos hinos? Maravilhosa I

- Aquele Ega! dizia ela sorrindo, já encantada.

- O Ega diz que o hino é a definição pela música do carácter dum povo. Eça de Queirós

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Luisinho

Torturado pela fome, Luisinho acorda a meio da noite de um sonho de compotas sobre fatias de pão

caseiro. Sem acender a luz, silencioso desce a escada em direcção ao frigorífico. Ele conhecia de cor o

interior do frigorífico, a arrumação que a mãe lhe dava, todo o seu conteúdo. Em cima, na porta,

manteigas, margarinas; em baixo, o jarro do leite; os legumes organizados nas gavetas, os restos de

jantares e almoços hierarquicamente sobrepostos por grau de antiguidade. Muito contra o seu hábito,

Luisinho sucumbiu à precipitação. Agarrou no que lhe pareceu maior, sem se preocupar em saber o que

era. E ficou no escuro, apenas iluminado pela fraca luz do frigorífico, a escutar os barulhos da casa,

segurando pela perna um frango inteiro, assado. É que lhe parecera ouvir a mãe a descer as escadas. Ele

bem suspende a respiração, mas o coração bate-lhe tão depressa que não o deixa ouvir. Fecha

devagarinho a porta do frigorífico sem largar o frango e dá dois passos, mas sem direcção determinada,

posto que não sabe o que fazer. A sua primeira ideia é ir para a sala, onde há mais luz, e dar ali mesmo

cabo do frango. Mas a porta da cozinha fechara-se e Luisinho só a encontra no final de muita topada por

armários e esquinas de mesas e caneladas em cadeiras e banquinhos. A mãe era grande apreciadora da

profusão dos móveis, mesmo na cozinha.

Luisinho está no sopé das escadas, o gordo frango assado preso pela perna, a olhar para cima. Agora é que

ouviu mesmo a mãe acender a luz da mesinha-de-cabeceira, vestir o roupão, tossicar. O pai acordou e

perguntou-lhe se não conseguia dormir. Luisinho tremeu à voz serena da mãe:

-Pareceu-me ouvir barulho lá em baixo.

Paralisado, sózinho no escuro, o menino teve o impulso inútil de esconder o frango atrás das costas,

lambuzando o belo roupão de seda que o tio lhe dera. Mas quando viu a figura da mãe aparecer no topo

das escadas, deitou a correr pela sala, em direcção à porta da rua. O pai fechava-a sempre com as duas

voltas da chave e punha-lhe, por maior garantia, uma corrente de segurança. Era o único a fazê-lo entre os

vizinhos, gostava de citar um provérbio que Luisinho nunca conseguia reproduzir e que tinha a ver com

barbas de molho e trancas à porta.

A mãe vinha a meio das escadas e viu o rapazinho colado à parede. Não distinguiu o que ele trazia na mão,

mas percebeu imediatamente que surpreendera uma actividade ilícita.

- Luisinho? - chamou ela - O que é que o menino anda a fazer?

O Luisinho atravessou a sala correndo, passou em velocidade o guarda-vento que dava para a copa e

procurou uma saída. E a única saída era a janela da despensa. Luisinho empurrou a porta e entrou,

naturalmente sem o costumado prazer, no quartinho onde se amontoavam as provisões. Às vezes, quando

se sentia mais triste, pedia à mãe para lá ir com ela, só olhar e cheirar. E contemplava com saudade as

prateleiras dos açúcares, os ovos frescos na cestinha, os belos frascos do feijão e do grão. Agora, que

estava com pressa, subiu para o banquinho, foi direito à janela pequena e abriu-a. Passou, em primeiro

lugar e para maior segurança, o braço que continha o frango assado para o lado de fora, depois o outro

braço, depois içou o peito e muito em breve percebeu que ficara entalado. O rabo do Luisinho não cabia na

janela. Luísa Costa Gomes, A Janela da Despensa como Argumento Moral

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Pechincha

Estava eu parado a olhar a montra quando notei que, a meu lado, um homem baixote e gordo me fazia

sinais agitados: mais algum importuno a pedir um níquel ou um dime para o café. Corja de bêbados! Ia

voltar-lhe as costas, mas ele agarrou-me pela manga do casaco e disse em voz surda e rouca:

– Quer comprar uma pechincha? Um lindo anel com diamante?

Atarracado e vermelhusco, de olhos redondos de sapo, e lacrimosos, tinha o que quer que fosse de piloto

desempregado, em apuros. Puxou-me com vigor para o vão da porta, à direita da montra, e eu deixei-me

levar, mais pela curiosidade que pelo convite.

Não me era estranho o caso: um destes burlões que andam pelas vizinhanças das docas à caça dum

papalvo a quem possam impingir um pedaço de vidro mal lapidado como se fosse um diamante roubado

ou passado aos direitos. Já várias vezes tinham tentado convencer-me a comprar um «autêntico relógio

suíço», de dezassete rubis, pelo preço dum Roskoff...

No entanto (ou talvez por isso mesmo) senti-me atraído pelo sujeito. Eu, que não tenho um anel, dera-me

ultimamente para escrever pequenos episódios de furtos de jóias e pedras preciosas, e tinha mesmo

conseguido vender um conto do género a um magazine popular da especialidade. Era talvez em mim um

desejo subconsciente (e vão) de riquezas.

O homem olhou em torno, com prudência, abriu a mão e exibiu-me um anel com uma pedra incolor:

– Tenho de voltar já para bordo, e preciso de me desfazer disto. Tem aí cem dólares?

A psicologia destes tipos, que parecem adivinhar os secretos instintos predatórios da gente de bem! Mas

porque me teria ele escolhido a mim? Achou-me talvez cara de... «Daqui não levas nada!», pensei.

– Tem cem dólares? Oitenta?

– Não tenho nada, homem. Não compro disso.

– Uma pechincha! Tem cinquenta? Veja lá quanto tem! – insistiu. Depois ergueu a mão e, com agilidade,

deu um talho na vidraça da montra. – Viu? Um diamante autêntico!

A demonstração teria convencido qualquer leigo.

– Não faça isso, que o podem prender.

– Sch! Cinquenta? Trinta? Vá, que eu estou com pressa. Quanto dinheiro tem consigo?

Escondia o anel na palma da mão grossa e (pensei eu) fingidamente nervosa.

– Deixe-mo ver!

O homem rapou duma lupa e, mexendo o anel para lhe tirar rápidos reflexos, mostrou-mo assim. Era

evidentemente uma pedra falsa, de brilho mortiço. Vidro, vidro é o que aquilo era. Sorri com sábio

desdém, «a mim não me comes tu»... É certo que o risco na vidraça... Ele bateu as solas, de impaciência:

– Quanto é que me dá? Trinta? Vinte? Despache-se, que eu tenho pressa. Isto é uma ocasião única. Vale

duzentos bucks , um diamante perfeito, onde é que você encontra uma coisa parecida?

Olhava em redor como se todos os agentes do Tesouro e do FBI o espiassem das esquinas e portais, ou de

entre o enxurro da gente que passava. Eram seis da tarde.

Eu admirei-lhe a astúcia, a hipertensão, o senso histriónico com que representava o seu papel de

contrabandista ansioso de alijar o corpo de delito. «Isto dava mas era uma história, caramba!» – e fitei-o

com mais interesse.

José Rodrigues Miguéis, «O Anel de Contrabando»

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Nero

“Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim

ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra

senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um

enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo

em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da

figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrece.: a dois passos da

cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva,

geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de

caçoada! Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela

fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado

uma vez por outra. Não que fizesse grande finca-pé naquela amizade. Longe disso. A menina dos seus

olhos era a morgada, a filha, que o acariciava como a uma criança. A velha toda a vida o pusera a distância.

Dava-lhe o naco da broa (honra lhe seja), mas borrava a pintura logo a seguir: - Ala! E ele retirava-se

cerimoniosamente para o ninho. Só a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos anos

fora, o consentira ao lume, enroscado a seus pés, enquanto a neve, branca e fria, ia cobrindo o telhado. O

velho também o apaparicava de tempos a tempos. Se a vida lhe corria e chegava dos bens de testa

desenrugada, punha-lhe a manápula na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patrão novo.

Porque o seu verdadeiro senhor era o filho, um doutor, que morava muito longe. Só aparecia na terra nas

férias de Natal. Mas nessa altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros apenas o tratavam, o sustentavam,

para que o menino tivesse cão quando chegasse. Apesar disso, no íntimo, considerava-se propriedade dos

três: da filha, do velho e da velha. Com eles compartilhara aqueles longos oito anos de existência. Com eles

passara Invernos, Outonos e primaveras, numa paz de família unida. Também estimava o outro, o fidalgo

da cidade, evidentemente, mas amizades cerimoniosas não se davam com o seu feitio. Gostava era da voz

cristalina da dona nova, da índole daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote.

- Tens o teu patrão aí não tarda, Nero…

O nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde nascera, não tinha chamadoiro. Nesse tempo

não passava dum pobre lapuz sem apelido, muito gordo, muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe,

que lhe lambia o pêlo e o reconduzia à quentura do ninho, entre os dentes macios, mal o via afastar-se.

Pouco mais. Com dois meses apenas, fez então aquela viagem longa, angustiosa, nos braços duros dum

portador. Mas à chegada teve logo o amigo acolhimento da patroa nova. Festas no lombo, leite, sopas de

café. De tal maneira, que quase se esqueceu da teta doce onde até ali encontrava a bem aventurança, e

dois irmãos sôfregos e birrentos.

- Nero! Nero! Anda cá, meu palerma!

A princípio não percebeu. Mas foi reparando que o som vinha sempre acompanhado de broa, de caldo, ou

de um migalho de toucinho. E acabou por entender. Era Nero. E ficou senhor do nome, do seu nome, como

da sua coleira. […] Miguel Torga, Nero de “Bichos”

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Constantino Cuco

Para o Cuco, almirante de um navio de cana, a grande aventura, a verdadeira, vivera-a ele durante a noite.

Ainda agora se embala nessa aventura maravilhosa de viajar num barco mágico, onde acabara por nascer

duma simples folha um mastro com vela grande e verde. Parecia mesmo um pendão. Só assim pudera

entrar pelo mar dentro – nem sabia bem aonde chegara! –, embora acossado por vagas e temporais

medonhos.

A viagem sonhada fora-lhe preciosa. Aprendera nela muitas coisas de marinhagem, de que aproveitaria

quando repetisse, ao vivo, essa aventura misteriosa. Ah, sim, tem a certeza, e agora mais do que nunca, de

que irá construir um barco seu, arrebanhando quantas canas e tábuas consiga encontrar na aldeia. Há-de

preparar o navio com todo o preceito, sem esquecer o mais importante. Para mastro arranjará um pau de

varejar azeitona. O pai tem um guardado no palheiro; é alto e verga-se bem. Tirará a vela dum lençol

velho, mesmo remendado. Precisa de oferecer ao vento uma boa concha para lhe soprar com força.

Não, não pode ficar-se por uma jangada qualquer feita à matroca com dois molhos de canas amarrados

por arames, à toa. Assim iriam, quando muito, até perto de Bucelas. E ele precisa de alcançar terras mais

distantes…

Quer chegar a serralheiro de navios, há-de construir alguns que deitem fumo, desses que aguentam em

cima com o povo inteiro do Freixial. Não conhece ofício mais bonito!... Precisa de mostrar às pessoas que

merece andar com fato-macaco de duas alças. Não é serralheiro de ferro-velho, como já o Evaristo

Bacalhau lhe chamou a brincar. Um navio custa mais a fazer do que uma casa e o seu barco novo há-de

espantar toda a gente… Daí por um ano, quando fizer o exame, o pai irá levá-lo aos estaleiros, como

prometeu:

– Eh, mestre!... Precisa cá de um aprendiz?...

Ele poderá acrescentar sem melindres para ninguém:

– Aprendiz não é bem assim… Já fiz um barco… Já pus sozinho um barco a navegar. Vim da minha terra até

aqui…

Vive para esse grande e único sonho, nascido à vista do Tejo, quando o levaram a Lisboa pela primeira vez.

Constantino sente-se investido na dignidade de guardador desse sonho. E sabe que o passará inteirinho

para as suas mãos. Quando voltar à cidade, não dirá com espanto nos olhos:

– Ena pai, tanta água!... Donde vem esta água toda?!...

Conhece agora os mistérios da água e do mar. Aprendeu muitas coisas boas e sábias, e vai usá-las, pois

então! Quando?!...

Por enquanto é segredo. O Constantino quer fazer uma surpresa à Ti Elvira, porque a avó lhe disse um dia:

cresce e aparece. E o nosso amigo Cuco sabe também que o verdadeiro tamanho de um homem se mede

pela coragem e pelas obras.

Amanhã mesmo ele vai continuar a construir o seu barco. Já o meteu no estaleiro do coração, conhece-o

de cor, e o resto é fácil… Alves Redol, Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos

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O Janeiro

O Janeiro tirou do bolso o resto de um pente que passou pelos quatro cabelos e levantou-se, pronto a começar o dia.

– Enfrentar, – disse ele ao Carlos cabisbaixo – enfrentar frontalmente, é esse o adjectivo, frontalmente, e de cabeça

erguida. Olha-me este espaço todo, ó Carlos, o que aqui não se construía. Prédios, arranha-céus, como se dizia no

meu tempo, piscinas nos telhados. O futuro sorri-nos, o futuro pertence-nos, o futuro deve-nos muito. Isto é

especulativo, sem dúvida, podes achar que é especulativo, mas o que é que não é? O que passou, passou, adiante, é

no futuro que temos de apostar.

Puseram-se a caminho. O Carlos dava a direita a Janeiro por respeito, mas ouvia-o distraído, preocupado, atento

mais às pedras do passeio. De repente baixou-se para apanhar uma beata.

– Ora providencial, – disse o Janeiro tirando-lha das mãos. – A primeira do dia, a que nos sabe melhor. Sabes o que é

o providencial? A gente vai a passar e ali está ela, é o providencial.

Parou para pedir lume a um homem que lhe deixou ficar a carteira de fósforos, estendendo-lha com dois dedos e

seguindo sem olhar para trás. Com isto, estavam na Praça do Império.

Na esplanada do café, Janeiro ficou discretamente na esquina enquanto o Carlos se aventurava a fazer o peditório.

Janeiro olhava o relvado à sua frente e, vendo-o monumental, imaginava grandes coisas. Depois o companheiro

voltou, entregou-lhe a percentagem que ele contou por precaução e, seguindo ambos lado a lado, Janeiro acenou de

longe aos seus contactos, dois empregados generosos que fechavam os olhos às actividades não muito bem-vistas

do protegido Carlos.

– Sr. Janeiro, – disse o tímido por fim – é o meu tio.

– O teu tio o quê? Outra vez o teu tio?

– O meu tio que vive em Chelas, o que tem a oficina. Diz que me dá trabalho, ele que está doente e não tem filhos,

até tem lá uma cama que também me subaluga. Eu queria pedir ao senhor Janeiro se me deixava ir...

– Trabalhar? – Escandalizou-se o mestre. – Tu queres trabalhar numa oficina?

– Eu cá não me importo.

– E ele paga-te, esse teu tio de Chelas?

– Não é muito, não é muito... – lamentou-se o Carlos, que já estava a ver o Janeiro exigir a sua

comissão.

– Mas como é que eu posso, filho? Eu não posso! Como é que eu posso? – Perguntou afinal o Janeiro. – Ir para

Chelas, tão longe do centro! Se me dissesses, vou para o Paço do Lumiar, vou para o Parque dos Príncipes, isso sim,

vale a pena, são nomes que apetecem logo, vou para a Quinta das Mil Flores! Isso é que são nomes! Mas nós

estamos bem, Carlos, e vamos melhorar mais ainda, esse é que é o paradoxo! Olha-me para esta avenida, para este

espaço aberto, que é que tu queres mais?

– Faz muito frio, senhor Janeiro.

– Isso é só no Inverno e o Inverno passa depressa.

– Mas dormir ao relento, senhor Janeiro, com a minha tosse...

Ao Janeiro desagradava esta conversa que de vez em quando o Carlos arranjava para o incomodar.

Impacientava-se com a choraminguice do rapaz, apetecia-lhe enxotá-lo para longe quando ele se chegava mais para

lhe falar, trotando magrinho atrás dele como um cão.

– Tanta coisa boa, os gajos lá de fora a pagarem-nos tudo, a mandarem as massas à gente para isto e para aquilo, é

só pedir por boca, e tomem lá para as pontes e tomem lá para as estradas. E este põe-se a chorar! É gente que não

sabe a sorte que tem!

Luísa Costa Gomes, «À grande e à francesa»

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Sexa

— Pai... — Hmmm? — Como é o feminino de sexo? — O quê? — O feminino de sexo. — Não tem. — Sexo não tem feminino? — Não. — Só tem sexo masculino? — É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino. — E como é o feminino de sexo? — Não tem feminino. Sexo é sempre masculino. — Mas tu mesmo disseste que tem sexo masculino e feminino. — O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra "sexo" é masculina. O sexo masculino, o sexo feminino. — Não devia ser "a sexa"? — Não. — Porque não? — Porque não! Desculpe. Porque não. "Sexo" é sempre masculino. — O sexo da mulher é masculino? — É. Não! O sexo da mulher é feminino. — E como é o feminino? — Sexo mesmo. Igual ao do homem. — O sexo da mulher é igual ao do homem? — É. Quer dizer... Olha aqui. Tem o sexo masculino e o sexo feminino, certo? — Certo. — São duas coisas diferentes. — Então como é o feminino de sexo? — É igual ao masculino. — Mas não são diferentes? — Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o sexo, não muda a palavra. — Mas então não muda o sexo. É sempre masculino. — A palavra é masculina. — Não. "A palavra" é feminino. Se fosse masculina seria "o pal..." — Chega! Vai brincar, vai. O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta: — Temos que ficar de olho nesse guri... — Por quê? — Ele só pensa em gramática.

VERÍSSIMO, Luís Fernando — Comédias para se ler na escola

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Hotel do Facho

Chuva. Os faróis do carro encontram um muro: fim da estrada. Terá de ser aqui. Hotel do Facho. A porta já

está fechada. É tarde. E agora? Todo o lugar parece dormir — excepto os cães e as ondas. Damos mais uns

passos pelo terraço (os cães estão presos, as ondas tão-pouco nos alcançam). Ainda há luz nas janelas da

sala. É Jorge — saberemos a seguir. Está sentado à lareira. Sozinho.

Jorge lê.

Batemos no vidro. Ele pousa os óculos e vem abrir.

— Boa noite. Desculpe, saímos muito tarde de Lisboa... Reservámos dois quartos. Mendes e Vilhena...

— No problem... Entrem!

— De quem é aquele palacete ali? Parece entaipado, sem parecer abandonado.

— Isso é uma longa história...

Jorge, o dono do Hotel do Facho, não é um hoteleiro. É um sonhador. Conhece muitas histórias. São

longas. Demoram todas o mesmo a contar: uma noite branca. Exigem combustível (lenha fóssil, águas de

fogo). Ele viveu muito e ouviu bastante. São histórias de travessia. Linhas de mar. Linhas de vida. Tangentes

entre sítios, sabedorias, omissões, perdas, nomes, hipóteses. Linhas. Jorge tem uma grande paixão pela

vela. Correu mundo. Confesso: espanta-me esta gente que corre na solidão da água em vez de viajar na

espessura humana da terra. Em terra há caminhos. Há gente. Nós vamos até ela e ela vem até nós. Jorge

inflama-se com tanta ignorância:

— O mar é aquilo que está cheio!

Cheio de linhas que dão volume à água. Um tear delirado, entre margens, portos, tempestades, correntes.

Cheio de passagens, acumulações, regressos. Naufrágios. Cheio de ondas escritas por quem esteve — mais

alteradas, nas palavras de fúria, ou planícies, para dizer calmarias. O mar é aquilo que está cheio.

MENDES, Pedro Rosa 2003 — Atlântico, Temas e Debates

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IIIº Concurso de Leitura em Voz Alta

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29

Dos perigos do riso

Só quando parámos o jipe é que os vi. Estavam ali, à beira da estrada, meio escondidos pelo fragor do

crepúsculo — o velho e os seus lagartos. Eram lagartos enormes e tinham o pescoço enrugado como o do

velho e os mesmos olhos miúdos e misteriosos. Ele reparou no meu interesse e disse o preço:

— Cinco milhões, paizinho. Cada um.

Pareceu-me um preço justo. Valia a pena discutir:

— Cinco milhões?! Por cinco milhões só se eles falassem...

O velho olhou-me muito sério:

— Falar falam pouco, sim, meu pai. Mas riem muito.

Riam, os lagartos?! Riam de quê? O velho encolheu os ombros. Ele não sabia. Riam à toa, como os

malucos, riam uns dos outros enquanto tomavam sol. Achei que só por causa daquela resposta o velho

merecia o dinheiro. Dei-lhe as cinco notas, que ele alisou cuidadosamente antes de as guardar no bolso.

Depois entregou-me o maior dos lagartos:

— Chama-se Leopoldino, este, e é o mais espertíssimo.

Quis saber o que ele comia. O velho explicou-me que o bicho sabia tratar de si. Alimentava-se de moscas,

baratas, mosquitos, mantinha a casa livre de insectos. Tentei brincar:

— E além disso podemos contar-lhe anedotas, não é?

O velho não respondeu. Debruçou-se sobre os lagartos e disse-lhes qualquer coisa. Pareceu-me que falava

uma língua trazida de outro mundo. Falava uma brisa, um sopro, um rumorzinho vegetal e húmido. Entrei

no jipe e fiquei a vê-lo desaparecer, uma sombra dentro da noite escura, com a sensação de que era ele

que tinha feito troça de mim.

Porém, quando estávamos quase a chegar ao Sumbe, o lagarto começou a rir. Sei que parece estranho,

mas é a pura verdade: Leopoldino ria. Não ria exactamente como um pessoa, claro, ria como uma pessoa

semelhante a um lagarto, mas ria. Eram gargalhadas secas, cínicas, que estalavam dentro do jipe de uma

forma vagamente assustadora. Eu ouvi-o e não tive vontade de rir. O meu amigo, que conduzia o jipe, ficou

ainda mais inquieto:

— Esta besta está-se a rir de quê?

Encolhi os ombros (como fizera o velho). E eu sabia? Talvez ele fosse de rir à toa, como os malucos. Disse-

lhe que os lagartos daquela espécie comunicam uns com os outros, às gargalhadas, enquanto tomam sol. O

meu amigo, no entanto, tinha outra opinião:

— Não! — disse —. É óbvio que está a rir-se de nós!...

AGUALUSA, José Eduardo — Fronteiras Perdidas. Contos para Viajar

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Eu sou sincero: não aprecio sinceridade

Talvez o leitor já tenha reparado num flagelo que assola a sociedade portuguesa. É o flagelo da

sinceridade. Há um número alarmante de pessoas para quem a sinceridade é um atributo estimável. Tanto

que, ao que tenho testemunhado com cada vez maior frequência, anunciam a despropósito e sem pudor a

sua própria sinceridade, normalmente antes de uma observação desagradável. Funciona assim: "Eu sou

sincero: essa camisa fica-lhe mal." Como é evidente, o proprietário da camisa fica duplamente

amesquinhado: não só está mal vestido como se encontra junto de uma pessoa sincera. Os nossos defeitos

parecem ainda piores quando estamos na presença de alguém que é tão obviamente virtuoso. As pessoas

com quem me dou sabem bem o que é carregar esse fardo.

É interessante reparar no modo como o autor deste tipo de frase é, em geral, atormentado pela sua

própria nobreza de caráter. Outras pessoas teriam a desonestidade de elogiar aquela camisa, ou fariam um

silêncio igualmente condenável. O sincero não pode, uma vez que é sincero. Não é desagradável, nem

impertinente, nem descortês. É sincero. No fundo, o que está a dizer é: "Não há nada a fazer. Eu bem me

esforço para não ser tão moralmente irrepreensível, mas não consigo. É a mais elevada dignidade que me

obriga a dizer-te que tens mau gosto."

No entanto, tenho dificuldade em entender que ser sincero seja uma qualidade. Dizer o que se pensa não

tem nada de admirável. Penso eu. É fácil (e todos sabemos que o caminho para a virtude é intrincado),

revela sobranceria (que têm as minhas opiniões de tão especial para que eu me sinta no dever de as

comunicar aos outros?), e é muitas vezes desagradável (os meus pensamentos são, na esmagadora maioria

das vezes, de uma inconveniência assinalável). Creio, aliás, que a vida em sociedade se baseia

precisamente na nossa maravilhosa capacidade de não revelar o que pensamos. Sim, eu acho que

determinada senhora é gorda, mas não lho vou dizer sobretudo se ela mo perguntar. Claro que o odor

corporal de certo indivíduo é desagradável, mas ninguém me convence que eu serei uma pessoa melhor se

lhe disser: "Eu sou sincero: o senhor cheira a táxi."

O problema, creio, é que a nossa sociedade está erradamente convencida de que a autenticidade é um

valor que se deve prezar. "Sê tu mesmo", ouvimos a toda a hora. "Tu deves ser igual a si próprio", dizem-

nos também. São, como é óbvio, maus conselhos. Vamos tentar ser um pouco melhores que isso, digo eu.

Só se eu fosse parvo é que seria igual a mim próprio. Trata-se de um caminho que não me levaria a lado

nenhum. Por que razão devo ser eu mesmo se, com algum empenho, posso tentar ser uma pessoa

decente? Não me choca que Shakespeare e Bach tenham passado pela vida a tentar ser eles mesmos, mas

é melhor para o mundo que eu e, por exemplo, Charles Manson, tentemos ser diferentes de nós próprios.

Eu sou sincero: vou continuar a ser dissimulado.

Ricardo Araújo Pereira

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O cágado

Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear.

Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito — um cágado.

O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a

acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia.

O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e

deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por

não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia

suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. 0uando chegou

perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem

não quer a coisa.

O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar

não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado,

nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada.

Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao

comprimento do braço e nada.

Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão

compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando

largou a vara, ela foi por ali abaixo, exactamente como uma vara perdida.

Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato submetida a nova orientação. Havia um grande

tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há.

Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado.

Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já

faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor

da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.

— E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si o homem que era muito

senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou muito senhor da

minha vontade.

O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A

pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar.

— Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas da

minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova, esta é a ocasião propícia, não

percamos tempo! Nada de fraquezas!

Almada Negreiros

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A bela e a cobra

Era uma vez um rei que tinha três filhas, uma das quais era muito formosa e ao mesmo tempo dotada de

boas qualidades. Chamava-se Bela. O rei tinha sido muito rico, mas, por causa de um naufrágio, ficou

completamente pobre.

Um dia foi fazer uma viagem. Antes, porém, perguntou às filhas o que queriam que ele lhes trouxesse.

– Eu – disse a mais velha – quero um vestido e um chapéu de seda.

– Eu – disse a do meio – quero um guarda-sol de cetim.

– E tu, que queres? – perguntou ele à mais nova.

– Uma rosa tão linda como eu – respondeu ela.

– Pois sim – disse ele.

E partiu.

Passado algum tempo, trouxe as prendas de suas filhas. E disse à mais nova:

– Pega lá esta linda rosa. Bem cara me ficou ela!

Bela ficou muito surpreendida e perguntou ao pai porque é que lhe tinha dito aquilo. Ele, a princípio, não

lho queria dizer, mas ela tantas instâncias fez que ele lhe respondeu que no jardim onde tinha colhido

aquela rosa encontrara uma cobra, que lhe perguntou para quem ela era. Respondeu-lhe que era para a

sua filha mais nova e ela disse que lha havia de levar, senão que era morto.

Consolou-o a menina:

– Meu pai, não tenha pena, que eu vou.

Assim foi. Logo que ela entrou naquele palácio, ficou admirada de ver tudo tão asseado, mas ia com muito

medo. O pai esteve lá um pouco de tempo e depois foi-se embora. Bela, quando ficou só, dirigiu-se a uma

sala e viu a cobra. Ia deitar-se quando começaram a ajudá-la a despir. Estava ela na cama quando sentiu

uma coisa fria. Deu um grito e disse-lhe uma voz:

– Não tenhas medo.

Em seguida foi ver o que era e apareceu-lhe a cobra. A menina, a princípio, assustou-se, mas depois

começou a afagá-la. Ao outro dia de manhã apareceu-lhe a mesa posta com o almoço. Ao jantar viu pôr a

mesa, mas não lobrigou ninguém. À noite foi-se deitar e encontrou a mesma cobra. Assim viveu durante

muito tempo, até que um dia foi visitar o pai. Mas quando ia a sair ouviu uma voz que lhe disse:

– Não te demores acima de três dias, senão morrerás.

Lá seguiu o seu caminho, já esquecida do que a voz lhe tinha dito. E chegou a casa do pai. Iam a passar os

três dias quando se lembrou que tinha de voltar. Despediu-se de toda a família e partiu a galope. Chegou já

à noite e foi deitar-se, como tinha de costume, mas já não sentiu o tal bichinho. Cheia de tristeza,

levantou-se pela manhã muito cedo, foi procurá-lo no jardim e qual não foi a sua admiração ao vê-lo no

fundo dum poço! Ela começou a afagá-lo, chorando, e caiu-lhe uma lágrima no peito. Assim que a lágrima

lhe tocou, a cobra transformou-se num príncipe, que ao mesmo tempo lhe disse:

– Só tu, minha donzela, me podias salvar! Estou aqui há uns poucos de anos e, senão chorasses sobre o

meu peito, ainda aqui estaria cem anos mais!

O príncipe gostou tanto dela que casaram e viveram durante muitos anos.

Contos Tradicionais Portugueses, Publicações Europa-América

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A Comadre Morte

Havia um homem que tinha tantos filhos, tantos que não havia ninguém na freguesia que não fosse

compadre dele e vai a mulher teve mais um filho. Que havia do homem fazer? Foi por esses caminhos fora

a ver se encontrava alguém que convidasse para compadre.

Encontrou um pobrezito e perguntou-lhe se queria ser compadre dele.

-Quero; mas tu sabes quem eu sou?

- Eu sei lá; o que eu quero é alguém para padrinho do meu filho. Pois, olha, eu cá sou Deus.

- Já me não serves; porque tu dás a riqueza a uns e a pobreza a outros.

Foi mais adiante; e encontrou uma pobre e perguntou-lhe se queria ser comadre dele.

- Quero; mas sabes tu quem eu sou?

- Não sei.

- Pois, olha, eu cá sou a Morte.

- És tu que me serves, porque tratas a todos por igual.

Fez-se o baptizado e depois disse a Morte ao homem:

- Já que tu me escolheste para comadre, quero-te fazer rico. Tu fazes de médico e vais por essas terras

curar doentes; tu entras e se vires que eu estou à cabeceira é sinal que o doente não escapa e escusas de

lhe dar remédio; mas se estiver aos pés é porque escapa; mas livra-te de querer curar aqueles a que eu

estiver à cabeceira, porque te dou cabo da pele.

Assim foi. O homem ia às casas e se via a comadre à cabeceira dos doentes abanava as orelhas; mas se ela

estava aos pés receitava o que lhe parecia. Vejam lá se ele não havia de ganhar fama e patacaria, que era

uma coisa por maior! Mas vai uma vez foi a casa dum doente muito rico e a Morte estava à cabeceira;

abanou as orelhas; disseram-lhe que lhe davam tantos contos de réis se o livrasse da Morte e ele disse:

- Deixa estar que eu te arranjo, e pega no doente e muda-o com a cabeça para onde estavam os pés e ele

escapa.

Quando ia para casa sai-lhe a comadre ao caminho:

-Venho buscar-te por aquela traição que me fizeste.

- Pois, então, deixa-me rezar um padre-nosso antes de morrer.

- Pois reza.

Mas ele rezar; qual rezou! Não rezou nada e a Morte para não faltar à palavra foi-se sem ele.

Um dia o homem encontra a comadre que estava por morta num caminho; e ele lembrou-se do bem que

ela lhe tinha feito e disse:

- Minha rica comadrinha, que estás aqui morta; deixa-me rezar-te um padre-nosso por tua alma.

Depois de acabar, a Morte levantou-se e disse:

- Pois já que rezaste o padre-nosso, vem comigo.

O homem era esperto; mas a Morte ainda era mais; pois não era?

Adolfo Coelho, Contos Populares Portugueses

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História do compadre rico e do compadre pobre

Moravam numa aldeia dois compadres. Um era pobre e o outro rico, mas muito miserável. Naquela terra

era uso todos quantos matavam porco dar um lombo ao abade. O compadre rico, que queria matar porco

sem ter de dar o lombo, lamentou-se ao pobre, dizendo mal de tal uso. Este deu-lhe de conselho que

matasse o porco e o dependurasse no quintal, recolhendo-o de madrugada, para depois dizer que lho

tinham roubado.

Ficou muito contente com aquela ideia e seguiu à risca o que o compadre pobre lhe tinha dito. Depois

deitou-se com tenção de ir de madrugada ao quintal buscar o porco. Mas o compadre pobre, que era

espertalhão, foi lá de noite e roubou-lho. No dia seguinte, quando o rico deu pela falta do porco, correu a

casa do compadre pobre e muito aflito contou-lhe o acontecido. Este, fazendo-se desentendido, dizia-lhe:

«Assim, compadre! Bravo! Muito bem, muito bem! Assim é que há-de dizer para se esquivar de dar o

lombo ao abade!»

O rico cada vez teimava mais ser certo terem-lhe roubado o porco; e o pobre cada vez se ria mais, até que

aquele saiu desesperado, porque o não entendiam.

O que roubou o porco ficou muito contente e disse à mulher: «Olha, mulher, desta maneira também

havemos de arranjar vinho. Tu hás-de ir a correr e a chorar para casa do compadre, fingindo que eu te

quero bater; levas um odre debaixo do fato, e quando sentires a minha voz, foges para a adega do

compadre e enquanto eu estou falando com ele, enches o odre de vinho e foges pela outra porta para

casa.» A mulher, fingindo-se muito aflita, correu para casa do compadre, pedindo que lhe acudisse, porque

o marido a queria matar. Nisto ouviu a voz do marido e correu para a adega do compadre, e enquanto este

diligenciava apaziguar-lhe a ira, enchia ela o odre. Tinha-lhe esquecido, porém, um cordão para o atar, mas

tendo uma ideia gritou para o marido: «Ah! Goela de odre sem nagalho!» O marido, que entendeu,

respondeu-lhe: «Ah, grande atrevida!... Que se lá vou abaixo, com a fita do cabelo te hei-de afogar!» Ela,

apenas isto ouviu, desatou logo o cabelo, atou com a fita a boca do odre e fugiu com ela para casa. Desta

maneira tiveram porco e vinho sem lhes custar nada, e enganaram o avarento do compadre.

(Beira Baixa)

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Os nossos filhos, em casa, na rua, no passeio, no liceu, no colégio

Leitor! Leitora! – falemos dos vossos filhos. Levantemos a mão das fraquezas, dos ridículos, das misérias do

nosso tempo, e consagremos esta página aos mais puros e aos mais vitais dos nossos interesses.

Conhecemo-los – os vossos filhos. Temo-los visto, ao voltar do colégio, com os babeiros brancos, os

chapéus mais velhos, o cabelo despenteado e o dedo sujo de tinta, esfarpando de encontro às pedras os

bicos dos sapatos, enquanto o vosso criado, com os compêndios do Sr. João Félix presos por uma correia

debaixo do braço, os segue pausadamente conversando em coisas líricas com a criada da vossa vizinha.

Vimo-los no liceu, no dia do primeiro exame, pálidos de concentração e de susto, imóveis, extáticos, com

os olhos pasmados na espessura dos seus juízes, lembrando-se um pouco mais das orações que vós

rezastes por eles, ó mães, do que das lições que vós lhes destes, 6 mestres!

Tínhamo-los também visto no Passeio Público, em noites de concerto, dançando ao pé do quiosque, eles

fingindo-se grosseiros para se darem o chique de velhos colegiais, elas sérias e graves, voltando o rosto por

cima do ombro para contemplarem como pequenas senhoras a cauda hipotética dos seus vestidos.

Elas e eles são pálidos, têm as gengivas esbranquiçadas, os dentes baços, as pestanas longas, as pálpebras

oftálmicas, os cantos da boca levemente feridos, o sorriso triste, os movimentos indecisos e fracos, o olhar

quebrado.

Precisam de tomar banhos frios, de comer carne ao almoço, de beber uma colher de óleo de fígados de

bacalhau todos os dias, de fazer ginástica, e de que se lhes corte o cabelo.

Além do cabelo extremamente longo – o que equivale perante a química e perante a fisiologia a um

dispêndio de ferro com que não podem as constituições anémicas dos vossos pequenos – notamos ainda

excessos de toilette cuja voga dá o seguinte resultado: Em parte alguma do mundo se encontram crianças

tão mal vestidas como em Lisboa.

A gente rica veste os seus filhos de veludo, com meias de seda e plumas no chapéu. Há tipos calabreses,

escoceses, marinheiros, boleeiros... A gente pobre, que não pode adoptar integralmente os modelos

consagrados na mascarada das crianças burguesas, veste os seus pequenos de cães sábios. – O que é de

uma iniquidade verdadeiramente horrível, porque, enfim, ninguém pode evitar que os nossos filhos sejam

os herdeiros forçados das nossas enfermidades e das irregularidades das nossas feições, mas é demais

abusar dos direitos da paternidade até ao ponto de converter uma criaturinha graciosa e simpática no

cabide irrisório das depravações artísticas do nosso gosto!

Ide ver as crianças, como nós as temos visto, aos domingos de tarde no passeio da Estrela ou em S. Pedro

de Alcântara. Lá encontrareis os meninos vestidos de colegiais franceses, de guardas-marinhas ou de

empregados do caminho de ferro, de postilhões, de huguenotes, de puritanos, e, sobre isto, as compósitas

das toilettes de capricho, em que o hediondo toma profundidades de expressão prodigiosamente

alucinantes: as botas cor de pulga com atacadores encarnados e biqueiras de verniz, chapéu de palha

atado por baixo da barba com um laço de fita, vestido verde e paletó encarnado, coisas medonhamente

semelhantes ao trajo de um macaco que dança ao som de um realejo.

Desafiamos-te, leitor, a que entre todos esses pequenos nos mostres duas crianças vestidas simplesmente

– de crianças: com sapatos rasos, largos e grossos, e um fato cómodo, lógico, sensato, de linho no verão e

de lã no inverno, que permita ao rapaz que o tem usar livremente de todos os seus movimentos e de toda

a sua força, sem vontade de olhar para a sombra que vão fazendo nos muros, nem de se considerar

perpetuamente tutelado pelo verniz das suas botas ou pelo delicado estofo da sua túnica.

Ramalho Ortigão, As Farpas

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O colégio

Chega finalmente a época de entrarem no colégio.

O colégio é uma casa triste, sombria, impregnada daquele cheiro abafante que deixa no ar a aglomeração

das crianças. O colégio tem um guarda-portão de aspecto duro, homem habituado a pagar-se nas lágrimas

dos colegiais pequenos das diabruras que os grandes lhe fazem. As paredes têm riscos e letras a lápis; no

chão escuro há pedaços de papéis rasgados; a disposição das camas, o aspecto seco dos prefeitos, as

maneiras dos criados dão aos dormitórios um ar de hospital. As aulas, sujas pela lama que trazem as botas

dos externos, os bancos lustrados pelo uso, as carteiras de pinho pintadas de preto, os transparentes das

janelas manchados pela chuva, a lousa negra polvilhada de giz a um canto da casa, o rodapé da banca do

professor de baeta lagrimejada de tinta, infundem uma tristeza lúgubre. Tudo quanto pode converter o

trabalho num objecto de repulsão e de horror acha-se felizmente reunido na maior parte dos colégios

portugueses. As mulheres, que a experiência tem provado possuírem muito mais aptidão para o ensino do

que os homens, são geralmente excluídas do professorado nos colégios de alunos do sexo masculino. O

ensino é ordinariamente feito por sábios de pouco preço, para os quais os âmbitos da ciência bem como os

da sociedade são igualmente cheios das trevas mais augustas e mais impenetráveis. Por via de regra,

literato falido, escritor malogrado, crítico inédito, o magister tem a pedanteria das pequenas letras e as

severidades da alta magistratura, envoltas num exterior intonso, com maneiras de uma gravidade suspeita

e de um exemplo contestável. No entanto como no tocante às maneiras do aluno tudo quanto se exige é

que ele seja aprovado no seu exame de civilidade, lá estão para suprir tudo os compêndios do Sr. João

Félix, vigoroso freio para que o estudante nunca escarre na cara das pessoas de respeito nem arrote com

repreensível estampido quando jantar na alta sociedade. Poupa o trabalho de dar exemplos a comodidade

de possuir um livro assim, que permite ao preceptor dizer simplesmente o seguinte a um homem que vai

entrar no mundo: «Releia o seu João Félix, e conserve-se sempre de sobreaviso sobre as expectorações e

sobre os gases».

O mesmo que sucede com a civilidade é exactamente o que se dá com todos os demais capítulos em que

se divide a educação da infância.

A preocupação única e exclusiva dos preceptores é que os seus alunos estejam quietos no colégio e sejam

no fim do ano lectivo aprovados no Liceu Nacional. Para conseguir a aprovação dos estudantes nos exames

que eles façam, o preceptor emprega todos os esforços e todos os meios, excepto talvez um único -, que é

o de lhes ensinar o objecto sobre que tem de versar o exame.

Para se ajuizar dos outros meios que dão em resultado a aprovação dos alunos, cumpre saber-se que o júri

dos exames é composto de professores do liceu. Estes senhores têm organizado o programa das suas

perguntas e feitos os pontos que no fim do ano serão tirados à sorte para indicar a passagem sobre que

tem de passar-se exame. Ora neste caso o modo mais simples e mais lógico de conseguir a aprovação seria

haver o programa das perguntas e a colecção dos pontos. Assim quinze dias bastariam para que o aluno

decorasse os textos sobre que tinha de tirar o ponto, e o êxito do exame não poderia ser, depois disso,

duvidoso. Sucede porém que os lentes do liceu insistem em não vender os pontos pela razão um tanto

frívola de que isto seria a mais sórdida das veniagas e o mais abjecto dos subornos. Aqui principiam os

trabalhos memoráveis a que se dá o preceptor para assegurar o futuro científico e literário do seu aluno.

Ramalho Ortigão, As Farpas

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Um pouco de ternura

Nos olhos dela habitava a bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a face transparecia a

tranquilidade interior de quem não fora punida pelo despeito nem agredida pelo ressentimento. Era ainda

nova: vivia na linha de sombra que tenuemente divide a idade das pessoas, entre maduras e velhas. De

onde viera? Que idade tinha? Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios murchos. Por vezes, exibia largos

decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo dos seios, eis os braços roliços, opulentos e sensuais. Era

alta, quase imponente; porém, quando subia a rua íngreme, parecia alada, os pés quase não tocavam no

chão.

Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-

se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas

canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e,

ocasionalmente, embebedavam-se.

Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do clube. Gostava de se colocar à varanda, e os

homens fitavam-na, gulosos, ávidos e sôfregos. Fingia não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela

observava o horizonte, lá, onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstracta, atenta e exposta.

Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das outras. Às vezes dançava ao som de uma

pequena telefonia. Dançava como se estivesse a dançar com o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em

alguém que amara.

As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro era bom e valia tudo o que de ele se

dissesse; o resto era mau, e tudo o que de pior se dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas,

as suposições pérfidas, as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da postura, a

pequena viração de altivez que dela se desprendia.

Suspeitaram de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário de imóveis, que fazia

números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a natureza insidiosa desses boatos. Não lhes

atribuiu a menor importância, o que ainda mais arreliou as outras.

Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde, ocasionalmente ausentava-se pela noite. Acumulavam-se

as suspeições. Até que, certo dia, deixou de aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram ditas,

como se de verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou, outra, e outra ainda. Para onde

fora? Que seria feito dela? E se ele não regressasse, não pudesse regressar ou não quisesse regressar?

Depois, houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía forte. Desapareceu no

cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para descortinar aonde ela ia. Entrou num prédio alto e

antigo, de azulejos, e ao perseguidor assaltou a ideia de que a vizinha misteriosa talvez fosse mulher-a-

dias. Este indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar com ela; porém, fora rejeitado com

uma frase breve e ríspida. Era o ressentimento que o incitara àquela infausta perseguição.

Horas e horas decorreram. A chuva deixara de cair, o homem encostara-se a uma árvore, sem abandonar a

vigilância ao prédio. Até que, finalmente, ela reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente, aproximou-

se da árvore onde o outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem.

Baptista-Bastos

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Portugal

“É que, segundo a declaração de um arcebispo, o de Mitilene, Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Está aí

escrito, Com todas as letras, Que Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Exactamente. Fernando Pessoa

pensou alguns instantes, depois largou a rir, um riso seco, tossicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai

esta gente, e não pôde continuar, havia agora lágrimas verdadeiras nos seus olhos, Ai esta terra, repetiu, e

não parava de rir, Eu a julgar que tinha ido longe no atrevimento quando na Mensagem chamei Santo a

Portugal, lá está, São Portugal, e vem um príncipe da Igreja, com a sua arquiepiscopal autoridade, e

proclama que Portugal é Cristo, E Cristo é Portugal, não esqueça, Sendo assim, precisamos de saber,

urgentemente, que virgem nos pariu, que diabo nos tentou, que judas nos traiu, que pregos nos

crucificaram, que túmulo nos esconde, que ressurreição nos espera, Esqueceu-se dos milagres, Quer você

milagre maior do que este simples facto de existirmos, de continuarmos a existir, não falo por mim, claro,

Pelo andar que levamos, não sei até quando e onde existiremos, Em todo o caso, você tem que reconhecer

que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a própria palavra da Igreja a estabelecer, mais do que

parentescos, identificações, nem sequer precisávamos de receber o Salazar de presente, somos nós o

próprio Cristo, Você não devia ter morrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que

Portugal vai cumprir-se (...)

A beber café dessa maneira, você não vai dormir, avisou Fernando Pessoa, Deixe, uma noite de insônia

nunca fez ninguém, e às vezes ajuda, Leia-me mais notícias, Lerei, mas antes diga-me se não acha

inquietadora esta novidade portuguesa e alemã de utilizar Deus como avalista político, Será inquietadora,

mas novidade não é, desde que os hebreus promoveram Deus ao generalato, chamando-lhe senhor dos

exércitos, o mais tem sido meras variantes do tema, É verdade, os árabes invadiram a Europa aos gritos de

Deus o quer, Os ingleses puseram Deus a guardar o rei, Os franceses juram que Deus é francês, Mas o

nosso Gil Vicente afirmou que Deus é português, Ele é que deve ter razão, se Cristo é Portugal”.

SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis.

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Homens de Vilarinho

Foi um grande acontecimento em Vilarinho, quando na Senhora da Agonia, à missa, o padre João leu os

nomes dos mordomos da próxima festa. É que, à cabeça do rol, vinha o Firmo, e todos esperavam tudo

menos isso.

- O Firmo?! - não se conteve, no silêncio da igreja, o Antônio Puga.

- Psiu!... - sibilou, dos lados da pia benta, o sacristão, que andava às esmolas.

E o caso só à saída foi comentado como merecia.

- O Firmo?! Mas então o Firmo, daqui a um ano... - e o Puga nem era capaz de levar o raciocínio ao fim.

- Fica. Desta vez fica... - garantiu a Margarida, que bebia do fino. - O padre João tantas lhe disse...

A assistência ouvia maravilhada. O Firmo de pedra e cal em Vilarinho! O mundo sempre dá muita volta!

A notícia tinha realmente que se lhe dissesse. Há muito anos já que o Firmo desorientava Vilarinho. Desde

que viera de Amarante da artilharia, e embarcara, nunca mais a seu respeito se soube a quantas se andava.

Nem a própria mulher. Quando lhe perguntavam pelo homem, o que fazia, se voltava, se gozava saúde,

respondia, já resignada:

- O meu Firmo?! Eu sei lá do meu Firmo no Brasil, na América, na Argentina, os que o conheciam estavam

na mesma. Sempre a variar de terra, sempre a mudar de emprego, e às duas por três a oferecer os

préstimos para Portugal.

- Oh! oh! - São meia dúzia de dias. Daqui a nada estou cá. É só o tempo de o navio chegar, esperar que eu

faça um filho à patroa, e levantar ferro...

Dito e feito. Daí a pouco regressava com a mesma cara. De tal maneira, que já todos se riam. Dera em

droga, não havia que ver. Só mesmo o padre João, cabeçudo, é que podia ter ainda fé naquele valdevinos,

e continuar junto dele o sermão deixado a meio da última vez. O padre era o pároco de Vilarinho. E sempre

que Firmo vinha à terra e acordava da primeira noite dormida com a mulher, lá estava ele à entrada da

porta com a sua batina rota e o seu cachaço de cavador.

- Dás licença, Firmo?

- Faça favor de entrar, senhor padre João. - Então tu não terás mais juízo, homem de Deus! Tu não verás

que tens aqui um rebanho de filhos?!

Firmo baixava a cabeça diante daquela voz amiga e repreensiva. Nem se defendia. Aceitava cada censura

como o golpe dum látego purificador. Mas passados dias, quando a Silvana começava a pedir azeitonas às

vizinhas, ia dizendo: _ És tu com desejos de azeitonas e eu com desejos de mundo...

- Ah! Firmo, que sorte a minha! Valia de bem o gemido da infeliz! Quanto mais chorava, mais ele se

enfrenisava na partida. Empenhava uma terra, vendia-lhe o cordão se preciso fosse, recorria em último

caso ao próprio padre João, mas abalava.

- Grandes terras, ti Guilhermino!

- Não há dúvida, Firmo... Não há dúvida... Os lucros que tens tirado delas é que são fracos... - respondia

melancolicamente o velho, quando o Firmo, a caminho do comboio, enchia a boca com a Califórnia.

TORGA, Miguel. Homens de Vilarinho. In: Contos da montanha

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A Estrela de prata

Numa árvore que eu cá sei – que nós sabemos – estão uma estrela de prata e uma bola de cristal.

— O que fazemos aqui? — perguntou a estrela.

— Estamos a enfeitar — respondeu a bola.

— O que é enfeitar? — perguntou a estrela.

— É fazer vista, ornamentar, alindar… — respondeu a bola de cristal.

Passou-se um tempo e a estrela perguntou de novo:

— Porque estamos a enfeitar?

— Porque esta árvore não é como as outras. Os frutos dela são raros. Aparecem um dia, luzem o seu quê,

conforme sabem ou podem, e depois são colhidos e guardados, até para o ano.

A bola de cristal tinha muita experiência de outros Natais, ao passo que a estrela era nova, de prata fresca,

e não sabia quase nada. Mas tinha ouvido falar que havia estrelas cadentes, estrelas que caem do céu e no

céu desaparecem, num sopro de luz.

— Não serei uma dessas? — perguntou à bola.

— Talvez sejas, talvez não sejas… Mas não experimentes.

Passou-se um tempo mais, e a estrela guardou para si aquela ideia, uma ideia pequenina. “Não

experimentes”, dissera-lhe a bola. E se experimentasse? Foi o que fez.

Caiu, num susto, mas como era leve, inocente e frágil, uma corrente de ar, vinda de uma porta aberta,

algures, levou-a consigo.

Levou-a consigo e fê-la poisar, sem estrago, no fofo musgo.

— Olha, é a estrela da gruta — disse alguém que estava a armar o presépio.

E estrela do presépio ficou.

Donde estava, onde a puseram, via o presépio, os pastores, os reis magos, as lavadeiras com a trouxa à

cabeça, as leiteiras com a bilha à cinta, os vagabundos, o moleiro, o azeiteiro e todo o povo do presépio e

mais as pessoas de carne e osso, que vinham admirar aquela lindeza, sorrir para o Menino Jesus e olhar

para a estrela, suspensa do alto da gruta.

Estrela de oito pontas que era, a apontar em todas as direcções, nem ela sabia para onde, brilhou imenso.

Brilhou o mais que pôde.

Para o ano, a estrela de prata já tem muito que contar à bola de cristal.

António Torrado

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O Rapaz não gostava das mãos

Talhado em angústia mansa, o rapaz entrou na taberna, pediu uma garrafa cheia de vinho e regressou à

porta, levando o olhar fosco para além das casas, como se tivesse deixado atrás de si qualquer coisa

fundamental ou viesse acossado

por um bicho fero. Parecia temeroso ou atormentado. Agarrava-se nas mãos a dor que não cabia dentro de

si.

Altarrão e enxuto, vergava um pouco pelos rins, onde a camisa fraldiqueira e suja lhe saltava das calças

derreadas. Tinha cara de menino assustado.

– Ah vida! – disse para a rua quase num grito.

Devia julgar-se sozinho com a vida para lhe atirar aquela acusação irada.

Quando reparou que também nós andávamos na mesma liça, quis perceber para quem falava, olhou à

volta e atirou para o monte a sua pergunta:

Para que quer um homem a vida?...

Depois encolheu os ombros com resignação e desdém, indo sentar-se à ponta do banco encostado à

parede. Pegou na garrafa, mirou-a à luz que vinha da porta e voltou a pousá-la no marmorite do balcão.

Abanava as mãos longas. Pensava que se as não tivesse não estaria ali tão longe. Pudera vir ao mundo

lázaro das duas e andaria agora pela sua terra, batendo feiras na ganhuça de mendigo.

Era por isso que remirava as mãos com desprezo.

Atirou com o chapéu salgadiço de suor para a nuca, arrancou o lenço do pescoço e limpou a testa. Fez

aquilo para não ficar quieto.

Quando pegou de novo na garrafa teve uma cortesia:

– São servidos?...

Uma escala de vozes respondeu-lhe obrigado!

Então o rapaz limpou a boca com a manga da camisa e começou a beber. Todos voltámos a cabeça para

vê-lo beber. Ele percebeu-o, sentiu que reparavam nele, coisa que não lhe acontecia há muito tempo.

Cheio de brio, mamou a garrafa até ao fim. Voltou a limpar a boca, estendeu a garrafa ao taberneiro e

mandou-a encher.

– Já agora preparo a cama... Dorme-se melhor em cima de vinho do que numa esteira...

Largou o chasco e não sorriu. A verdade é que também não lhe achámos graça.

– Ontem o gajo do automóvel pôs-me umas suíças, o filho da mãe. Só hoje vi. Cheguei à noite a Bucelas

com uns camaradas... Viemos todos prà vindima do patrão Soisa, o Tóino de Soisa. E o fi lho da mãe do

chófer andou c’a gente às voltas e vai ao fim pede cinquenta malréis. Por uma légua cinquenta malréis. Se

calhar ao Soisa leva dez... Povo a roubar povo, não há coisa mais feia nem coisa mais certa...

Num repente calou-se assustado. Fez agulha à conversa:

– A gente bebe vinho, mas não bebe juízo... O fi lho da mãe do chófer há-de gastar o dinheiro que roubou à

nossa desgraça com remédios de botica... Não lhe quero outro mal... O meu mal é outro...

Meteu a garrafa à boca sem a gala de se limpar. Levou-a de um trago até meio.

– Andar quase dois dias de camineta, a butes e de comboio para arranjar serviço... E viva! Na minha terra

um homem quer matar o corpo e não encontra.

Não percebo porquê, encarou comigo. Vi que os olhos baços de tristeza se iluminavam de raiva.

Alves Redol, Histórias Afluentes, 1963

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Um nosso semelhante

Leonel Badanas, o bombeiro, acaba de vestir a farda cheia de botões dourados. Está diante do espelho e

põe de várias maneiras o rebrilhante capacete. Vira-se para um lado e para outro. Torna a mudar-lhe a

posição sem se decidir por nenhuma. Mas, como não tem pressa, ainda teima em pôr de acordo aquele

extraordinário chapéu com a alevantada e grave expressão do rosto. Por fim, já com os músculos da cara

doridos, sai, muito embora não vá plenamente satisfeito.

Na rua, alarga um passo de ginasta e adianta o peito; a espinha flecte em arco, pondo em grande relevo as

nádegas magras. Apesar disso, Leonel Badanas sacode os braços com arrogância. Tem assim como que uns

longes de galo, de asas meio abertas, chispando raios de sol da luzidia crista.

De repente, ao voltar da esquina, tropeça numa súbita ideia, e tudo aquilo se desfaz. Equilibra-se a custo:

fica uma farda amarrotada; lá dentro, um homenzinho mirrado com uma enorme campânula amarela na

cabeça.

Desalentado, o bombeiro retrocede. Empurra a porta de casa e grita, levantando lentamente as mãos:

- Onde está a minha medalha ? Do quarto sai uma mulher de feição apagada e receosa:

- Estive a areá-la. ..Esqueci-me. ..

- Vai buscá-la, mulher! "Que irritação! Por um pouco, e entrava no jardim sem a medalha! No jardim, onde

está toda a gente da vila, na grande festa a favor das Florinhas da Rua! ..." E, mesmo agora, enquanto a

mulher lhe cose na farda a fitinha que segura a medalha, ele a descompõe. De instante a instante, repete:

- Olha se eu me esquecesse, hem! De novo na rua, volta ao passo largo e seco; peito arqueado, nádegas

saídas. Dependurada da farda, a medalhinha branca agita-se em movimentos desordena- dos. E reluz ao

Sol, num alegre desafio com o capacete.

Esta medalha ganhou-a ele no último Inverno. Os bombeiros formaram em parada diante da casa-

esqueleto onde fazem exercícios ao domingo. O povo, rodeando as individualidades mais representativas,

assistiu. E, após ter falado cerca de dez minutos, o comandante dos Voluntários parecia muito comovido;

depois de condecorar o bom do Leonel, abraçou-o carinhosamente.

Em seguida, o presidente da Câmara desenrolou uma folha de papel, pôs as , lunetas, e começou a ler num

estranho tom de voz, áspero e sacudido. Louvou o Badanas, comparou-o com os mais abnegados heróis da

humanidade, enalteceu a corporação e o seu chefe. Espraiou-se sobre as belezas da paisagem em redor da

vila, falou das riquezas agrícolas do concelho, elogiou de novo Badanas. E, com palavras ainda mais

sacudidas e ásperas, disse que ia dar uma grande novidade: em breve, os Voluntários teriam, enfim, a sua

autobomba!

Apesar de esta informação não constituir surpresa para ninguém, a assistência rejubilou. Enquanto as

palmas reboavam, todos se voltaram enternecidos para o Leonel Badanas. Em sentido, rígido como uma

estaca espetada no chão, debaixo do capacete amarelo, Badanas, de pálpebra caída, fitava modestamente

os barrotes da casa-esqueleto.

Vai à mulher e empurra-a para dentro do casebre. Volta-se de braços erguidos:

- E eu? Que me deu você? Nem a ponta dum corno! Em que é que você é meu pai, diga lá?

O mendigo vai recuando. E, sem tirar a mão de entre as pernas, cauteloso pela descida que o atalho faz até

à entrada, toma a direcção da vila. Atravessa-a sempre de olhar fixo. E desaparece ao longe, enrolado no

vento e na noite que cresce sobre a planície.

Manuel da Fonseca in O Fogo e as Cinzas

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A mulher da esfrega

Há um mistério na vida de Joana, e no entanto na sua alma lê-se como através dum vidro. Tudo nela será

falso excepto a dor. Não sei, ninguém sabe o que tem.

Sinto que se obstina como se fosse de pedra e dentro houvesse outra Joana a dar com a cabeça pelas

paredes. Não ouço o que diz, nem sei o que sofre – mas a desgraça sua naquele monólogo sem pés nem

cabeça, a que não ligo sentido.

Debalde o sonho se encarniça. O sonho, que cabe no mundo, cabe entre as quatro paredes daquele caco e

revolve-a. Fecha a boca como se tivesse medo de falar.

Não quer ver – e há-de por força ver. Persiste em manter de pé o resto da ilusão em que passou a vida,

obstina-se o ciclone vivo em pô-la frente a frente à desgraça. É sonho contra sonho. O que ela não quer é

ver, e só ela sabe o que não quer ver. Não pode com o peso desconforme que a torna grotesca, e de todo

se assemelha agora à árvore do quintal: mais sonho – mais flor. Abre uma boca enorme, fecha-a sem emitir

som. Mostra as mãos, aperta os gorgomilos e o sonho arranca-lhe farrapos.

Há-de acabar por lhe extorquir a dor...

Sua vida é um monólogo que eu não sei traduzir. Nossa vida é sempre um monólogo de interesse e de

sonho. Sempre o mesmo monólogo interior, de dia, de noite, quando acende o lume ou quando põe em

mim os olhos turvos. Talvez os bichos monologuem assim, muito baixinho, pra dentro, só dor, sem

entenderem a vida nem explicarem a vida. A desgraça está ali ao pé, cada vez mais seca, e nem o sonho

nem a desgraça conseguem arrancar-lhe aquilo de vez para fora. – A minha fi lha... – Mas isso não basta!

não chega! Mais dor, mais sonho. Abre a boca cada vez maior e não tira outro som dos gorgomilos: só

emite um ronco. A desgraça e o doirado tingem e entranham-se na água de lavar a louça. Há-de acabar por

falar...

Até agora por mais que faça sai-me das mãos ridícula.

– E vai eu disse-lhe... – E estaca, esfarrapada e atónita. Sacode-a o sonho com desespero. – Hã... – E, como

naquele caco espesso só há duas ou três ideias como traves-mestras, e ternura naquela alma obscurecida,

não avança mais palavra. E a desgraça sua e tressua. Grotesco, grotesco, e desespero neste grotesco, e dor

neste manequim desconjuntado, com um xale a esvoaçar e a boca espremida. Anda aqui um ser imenso

que luta com um ser humilde e o amolga até à caricatura. Não pode mais – e ainda aperta a boca... O que

tu lhe fizeste, sonho! O que tu lhe fizeste!...

Tornaste-a disforme como a sombra dum bonifrate projectada sobre um écran.

– Criou aquilo a bafo, trouxe-o sempre consigo debaixo do xale, com os olhos aguados e tal ar de aflição

que parece tonta. – A minha filha... – e tu arrastas-lhe a dor como um trapo por todos os esgotos. Debalde

se debate: tem de falar...

– A minha filha casou rica, a minha filha tem uma sala de visitas (é o que a Joana mais admira no mundo)

como a das outras senhoras. A minha filha... não posso! não posso!...

E, para não avançar mais, a Joana ri-se de si própria. Quem a não soubesse capaz de exagerar, diria que

exagera. Ajunta pormenores embaraçosos a essa história que se parece com a mulher da esfrega pelos

empurrões e pelos trapos.

Raul Brandão, Húmus

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O Conto das Artes Diabólicas

Era uma vez um padre que tinha um afilhado.

De maneira que pediu ao compadre que lhe deixasse ir o afilhado lá pra casa, que o queria educar muito

bem-educado.

O compadre disse-lhe que sim, que levasse o afilhado.

Foi o rapaz pra casa do padrinho, e o padrinho pô-lo à escola, e o rapaz aprendeu a ler na ponta da língua.

Quando o rapaz já ia sendo crescido, começou ele a ver fazer artes ao padrinho, que o padrinho fazia artes

diabólicas.

Fazia artes diabólicas o padrinho, e o rapaz tudo era querer aprender, e fartava-se de espreitar o

que fazia o padre!

Até que uma vez encontrou um livro e pôs-se a ler – e viu que dali estudava o padrinho as artes

que fazia.

Começou o rapaz a praticar, e já ia fazendo algumas coisas. O padrinho, como deu notícia que o rapaz ia já

fazendo algumas coisas, mandou-o embora para casa do pai.

O pai era pobre, e não tinha sequer que lhe dar de comer; mas vendo-o o filho tão apaixonado e

adivinhando logo a razão por que era, diz-lhe o rapaz:

– Pai, não tenha fezes! que amanhã saímos, e verá que arranjamos muito dinheiro!

No outro dia prepararam os dois um burrinho que tinham, e foram-se para o campo.

Depois de chegarem ao campo, diz o filho:

– Pai, eu agora faço-me num cão e vou à caça, e as lebres que vir apanho-as todas!

De maneira que o rapaz fez-se num cão, e começou logo a andar caçando. Todas as lebres que apareciam,

todas apanhava!

Carregaram o burro de lebres, e vieram-se embora a vendê-las à terra, e passaram à rua do rei.

Vendo o velho com tanta lebre a carregarem o burro, todos se admiravam!

– Oh! Tanta lebre que leva aquele velho!

Diz-lhe o rei:

– Ó velho! Como apanhaste tu tanta lebre?!

– Isto, senhor, foi o meu cão!

Diz-lhe o rei:

– Hás-de-me vender o teu cão.

– O meu cão não vendo eu, não senhor, que o meu cão é o meu governo!

De maneira que o velho foi-se embora a vender as lebres.

No outro dia voltaram à caça, e o burro tornou a vir outra vez carregado de lebres!

Diz o rapaz:

– Pai, olhe que o rei há-de-lhe dizer para me vender; mas vossemecê peça muito dinheiro, de

modo a nunca vender senão as lebres.

Passa o velho pela porta do rei, e vão dizer logo a Sua Majestade:

– Ali vai o velho outra vez! E outra vez com o burro carregado!

Trindade Coelho, Os meus amores

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Sonho de Artista

António era um pequenino doente que estava sempre deitado na sua cama, ou sentado, de olhos tristes,

na sua cadeirinha verde.

Sabia que no mundo existiam muitas outras crianças que podiam brincar, correr pelos campos, jogar o

eixo, saltar a corda; e quando lhe diziam que um desses meninos se aborrecia de estudar as lições ou

chorava por qualquer insignificância, dizia, sorrindo, em voz baixa:

— Se eu pudesse andar livremente, correr e saltar como eles, estaria sempre feliz!

E a pobre mãe apoquentava-se por ver aquela pálida carita consumida e aqueles olhos expressivos sempre

molhados de lágrimas.

E todos os dias pensava num divertimento, num brinquedo que ajudasse a passar as horas amargas ao seu

adorado filho. Certa manhã, ocorreu-lhe comprar uma caixa de tintas.

António recebeu o presente com alegria e em seguida pôs-se a pintar.

Depois voltou-se para a mãe e disse:

— Gostava de pintar as pétalas de uma flor!

— Não é possível, meu filho, as flores têm já as suas cores naturais.

— Mas eu quero pintar uma flor!

E tanto pediu, tanto insistiu, que a mãe foi ao jardim e perguntou timidamente, se haveria alguma flor que

quisesse renunciar à sua cor, mudar de tonalidade ou de expressão e compadecer-se do seu pequeno

doente.

As rosas nem responderam, na sua altivez serena, tão absurda lhes pareceu aquela doida proposta.

Os lírios, erguidos na sua elegância frágil, declararam que a sua pureza tinha de ser intangível.

E as glicínias, e os cravos, e as tulipas, disseram, diplomaticamente que não era possível imitar o tom

caprichoso e belo das suas variadas corolas.

A pobre mãe, ia voltar a casa, desiludida e mais triste, quando ouviu uma voz débil dizer-lhe quase em

surdina:

— As minhas flores não são belas mas, se o teu filho se contenta, leva-as contigo, não hesites…

A planta que assim falava tinha grandes folhas verdes e pequeninas floritas de um branco doentio

amarelado…

A mãe colheu então um ramo dessas flores e levou-as ao seu filho. Imediatamente, começou a colorir as

suas petalazinhas. Era na verdade, um artista.

As tonalidades mais finas mais delicadas e subtis, um cor-de-rosa esmaecido, um azul diáfano, suave, um

amarelo vibrante, e e muitos outros tons de novidade que nenhuma flor possuía, ele os dava, com singular

simplicidade.

Quando acabou, chamou a mãe para lhe pedir que levasse de novo as flores ao jardim

A mãe obedeceu.

Na manhã seguinte, acordou e disse:

— Minha mãe, quero ver se o orvalho da noite manchou aquelas florinhas.

O sol faiscava nos arvoredos e nas plantas. Apenas chegou encheu-se de contentamento, os largos molhos

de hortênsias estavam cobertos de formosíssimos tons rosados, roxos, vermelhos, amarelos e azuis.

António Botto, O Livro das Crianças

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A mais velha profissão do mundo

(mesmo mais velha que a outra)

O primeiro jornalista chamava-se Adão. Mas não tinha ninguém a quem dar notícias. Um dia, graças a

Deus, chegou Eva e trazia, com a sua curiosidade e outras graças de mulher, a cura para o tédio em que

Adão vivia no Paraíso da Terra.

Então, Adão começou a informar e a comunicar: "Aquilo além é uma montanha, na vertente onde bate o

sol ao nascer há riachos e flores, árvores de frutos bons, peixes e aromas".

Foi esta a primeira notícia de que há notícia. Mais tarde, foram aparecendo novos homens e mulheres que

davam, uns aos outros, notícias, comentários, reportagens e as primeiras análises políticas.

Tendo aumentado a população, tornou-se inviável a troca directa de informações. Um dia, Sapino, bisneto

de Eva e de bisavô incógnito, começou a riscar a vida na pedra. Havia uma esquina de lajedos que era

ponto de passagem da Humanidade de então. E nas grandes faces de granito do basalto, Sapino talhava

sinais sobre a caça que andava nas redondezas ou acerca das sarrafuscas que começavam entre os

homens.

Foram os primeiros jornais de parede.

Mas o aumento de conhecimentos e consequente volume de informações a prestar tornaram impossível

que Sapino se encarregasse de toda a tarefa. É dele, na sua forma original, a frase que se repercutiria no

comboio dos séculos: "Eu não posso fazer o jornal sozinho!". Assim se arranjaram postos de trabalho para

os primeiros escribas, ficando Sapino, ao que se supõe, como chefe de redacção. Dia após dia, chamava os

redactores à pedra, o que ainda hoje ocorre.

Desconhecia-se, então, o cesto dos papéis, não por carência de cestos, mas por falta de papéis. Todavia há

indícios de que os escribas, prezados cole­gas, nem sempre tiveram liberdade de expressão. Isto é: Sapino

fazia já a sua pauta de censura. Não por vontade, mas porque o encostavam à parede. Com efeito,

começaram a aparecer os primeiros poderosos pretendendo ver os escritos à sua feição. E o jornal de

Sapino esteve para ser encerrado mil vidas antes da ANOP¹

A imprensa escrita, pasme-se, estava então em grande crise, não só devido à elevada taxa de

analfabetismo, como pela exiguidade do subsídio de pedra. O primeiro ensaio para uma distribuição

falhou rotundamente: ninguém foi capaz de transportar pedra sobre pedra. Também o primeiro enviado

especial não conseguiu levar a bom termo a sua tarefa: sucumbiu ao peso do bloco-notas.

Com embaraços tais, não surpreende que, ao longo de uma imensidade de anos, o jornalismo mais eficaz e

actuante fosse praticado pela generalidade de homens e mulheres que, na sua troca de notícias, criaram a

comunicação social.

E as próprias crianças quando, ao articularem as primeiras palavras, dirigiam ao pai perguntas ou

protestos, estavam, sem saber, a inaugurar a sec­ção de longo futuro: as Cartas ao Director.

Desde esses primeiros jornalistas não se inovou por aí além a essência do jornalismo. E quando se aponta

outra como a mais velha das profissões esquece-se que, antes da primeira pecadora, já a informação

circulava nas bocas do Mundo.

Muito antes do mau porte e do porte pago.

Mário Zambujal, in Notícias da Tarde, 05-10-1982

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Silvino

Mau grado a folha de serviços de Silvino, o especialista não encontrou sintomas de doença, como não

encontrou um termómetro, a lapiseira e o bloco das receitas, logo após o juvenil paciente ter dado lugar a

outro.

Entretanto, coisa estranha, lá foi saltando de classe para classe, subiu as escadas da Escola Comercial. Foi aí

que se deu o lamentável incidente com o professor de Francês.

O professor de Francês era bruto. E logo à segunda aula, só porque Silvino quis brincar aos siameses

pregando os dois fulanos da frente com um alfinetede-ama, berrou-lhe em português e do mais ordinário:

“Parto-te a fronha se mijas fora do penico! “

Não se diz. Mas como o disse ficou sujeito à vingança de Silvino.

Uma manhã chega-se à escola e, ó espanto dos espantos, indecifrável mistério: desaparecera a porta da

casa de banho das raparigas! Foi, todo o dia, um pagode, um rebuliço. As meninas, coitadinhas, andavam

apertadas sem poder fazer chichi, os galfarros gozando à bruta, os professores reunidos de emergência,

destacamentos de pesquisa por tudo o que era canto, porta se a viste.

No dia seguinte a directora recebeu uma carta horrível e anónima, dizia-se de uma vizinha do professor de

Francês, vira-o chegar de madrugada com uma grande porta azul debaixo do braço. Chamou a directora os

professores todos, o de Francês não estava, “vamos lá!”, disseram os outros, e foram mesmo, um pelotão

de professores a caminho de casa do professor de Francês.

A maltosa montara guarda sob o comando de Silvino, “onde é que eles vão?, bora também!”, guardaram

as distâncias, uns vinte metros, eram mais de cem na cola dos mestres, aí uns dez. Correram estes a tocar

ao portão, encostou-se a tropa toda ao muro do jardim, e logo se ouviu um gritinho, ninguém poderia mais

tarde jurar que fora a voz de Silvino, nem o dedo de Silvino apontando para o canteiro das hortênsias: Olha

a porta! Olha ali a sacana da porta! “

Um pasmo colectivo. Todos os olhos se estamparam de encontro à porta azul da casa de banho das

raparigas, semioculta entre hortênsias no jardim do professor de Francês.

O homem veio e não percebia coisíssima nenhuma, mirado e remirado num silêncio cruel de ouvir. Silêncio

cortado por um dos patifórios - seria a mesma voz? - oh sotôr, tirou a porta para ver o quê?”, e a

malandragem toda na galhofa, “para ver o quê, sotôr?”, o sotôr queria ver alguma coisa?”, até que a

directora, auxiliada pelo professor de Ginástica, os enxotou para o fim da rua.

O professor de Francês fez um grande escarcéu, a directora decidiu que não lhe cumpria decidir, assunto

da Polícia, a Polícia tomou conta da ocorrência, o professor de Francês jurou que ia continuar com as aulas,

a directora disse que sim senhor, lá por ela, e até à conclusão das investigações, o professor de

Matemática lembrou que carta anónima não era prova, só é infâmia”, acrescentou a professora de físico-

química, Lourenço, o contínuo, meteu-se no debate, a porta estar nas hortênsias também não queria dizer

pescoço, qualquer um a poderia ter levado - mas quem, mas quem?, perguntaram todos -, isso é que

Lourenço contínuo não sabia, vá lá uma pessoa adivinhar.

Mário Zambujal, Crónica dos Bons Malandros, Silvino

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A Palavra Mágica

Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes guerreava, com palavras azedas para cá e

para lá, era apenas com os fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas,

o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa o dinheiro das rendas. Semeava tão

facilmente as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça — mesmo da velha —

, mas apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa

dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada, livros ou cadernos ao filho, que andava na

instrução primária. As moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam

para fora, deixando-lhe, no sítio, a paz.

Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o

caso que ao falar-lhe, no correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu

entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de forma alguma bem

pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara de

quem inspira e expira. Todavia, o Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa:

— Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão?

— Homem! — clama o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma aí, se faz favor. Falei por falar.

— E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem

filhos em casa, não tem quebreiras de cabeça. Assim, também eu.

— Faço o que posso — desabafou o outro.

— E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre diabo, Silvestre. Quem é parvo é quem o ouve. Você é um

bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no fim de

contas. Um inócuo é o que você é.

Silvestre já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas, à palavra “inócuo”, estranha ao seu ouvido

montanhês, tremeu. E à cautela, não o codilhassem por parvo, disse:

— «inoque» será você.

Também o Ramos não via o fundo ao significado de inócuo. Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso

de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois

homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-

lo à freguesia:

— Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que a jorna de um homem é fraca. Que era um

paz-de-alma. E um «inoque».

— Que é isso de «inoque»?

— Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que o Silvestre não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.

Como nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com a bebedeira do seu descanso, a mulher

praguejou, como estava previsto, e cobriu o homem de insultos como não estava inteiramente previsto:

— Seu bêbado ordinário. Seu «inoque» reles.

Quando a palavra caiu da boca da mulher, vinha já tinta de carrascão. E desde aí, «inoque» significou,

como é de ver, vadio e bêbado.

Vergílio Ferreira: Contos

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Histórias da Meia-Noite

– ... Serra negra, que onde não é pedra é urze e tojo... Tem pouca roupa como os pobres... E no Verão vêm

os sóis queimar-lhe as costas, no Inverno, as pedras, que são os ossos, estalam do gelo e o vento canta a

moliana a quem não se ativer a uma gabela de lanhiço. Hoje está branca dum camadão de geada, que dá

gosto a gente chegar-se aqui à fogueira que ferve o caldo. Os lobos lá andam, a esta hora, batedores de

ladeiras, até se desenganarem e descerem aos povoados onde agucem o dente... Está a fazer seis anos,

dormi eu na toca dum castanheiro...

– O menino quer freiras? – interrompia a criada velha, farta daquelas bazófias.

Pedro, o filho dos patrões, com os seus catorze anos, tinha já uns modos de homenzinho e dava pouca

confiança a velhas tontas. Para não interromper a treta do João Meco, só abanou com a cabeça, que sim. E

a velhota, com um punhado de milho na mão, limpou da cinza o granito quente e atirou para a pedra

requeimada os grãos que iam abrir em flor branca.

João Meco não perdeu o fio ao discurso e voltou à história:

– O patrão disse-me assim: amanhã vais ao pinhal da Sancha e marcas o desbaste. Ainda a madrugada não

apontava nas tralhiscas, saltei da cama, peguei da roçadoira e ala, fajardo!

– Lá estás tu a rasgar baeta!... – disse o moço dos bois, a entrar na cozinha.

– Não estou, não. Há quem seja mais gabarola do que eu...

– Essa não é pra mim. E olha que trago que contar: vi agora um fantasma. O rapaz da Ilda não podia ser,

que o namoro acabou...

A rapariga olhou-o com desprezo e baixou-se para apanhar dois grãos de milho que tinham estoirado. Mas

a velha comentou:

– Não venhas já com invenções de tolo...

– Eu?... (E acrescentou com ironia:) Não há fantasmas e almas do outro mundo? Então a mão cortada do

Januário?

– Pois sim... Mete-te com a tua vida.

– Nega que contou?

– Nego-te a ti, diabo negro.

João Meco, interrompido em sua prosa, cortou a discussão:

– Vocês não me dão licença que fale?

– Espera aí que não abafas.

E voltando-se para a velha, o moço dos bois, com o mesmo sorriso de troça, intimou:

– E a alma do Elias Gordo?

– Nem magro...

– Eu lhes conto... O Januário era um criado cá de casa, antes de vocês. Ora uma certa noite houve mister

de ir ao moinho e ali a ti Leonor desafiou uma mocita que também cá estava, para irem as duas com ele ao

passeio. Estava uma noite negra, que não se via um palmo à frente do nariz. Iam passadas. Mas não

queriam dar parte de fracas. E o Januário começa a moê-las com histórias da meia-noite... A candeia não

dava luz, e elas abraçadas uma à outra, de cambulhada, e a rirem pra fingir...

Branquinho da Fonseca, Bandeira Preta, 1956

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A Doida e os Miúdos

Certa noite, Sagüi acordou em sobressalto, ao barulho de alguém que resmungava. Mirrou-se mais contra

as pedras, tapou a cabeça com a manta de retalhos. Mas a voz trespassava a roupa, tanto como os baques

do coração sob a caverna do peito. «Quem seria, àquela hora?... Talvez ladrão que descobrira o

esconderijo da fruta, ou espião mandado pelo senhor Castro».

A voz, aguda e áspera, parecia de mulher. «Se calhar era algum dos companheiros disfarçado, por

brincadeira... » Espreitou por um rasgão da manta.

A fraca claridade da lua definia um vulto escuro, estendido sobre monte de caliça, como que à espreita

também. Sagüi sentiu saudades da palhota da vinha em que dantes dormia, e onde nada mais chegava que

latidos de cães.

«...E se aquele vulto fosse de cão raivoso?» Um calafrio gelou-lhe o corpo e as pedras da cama. «Não. A voz

era de mulher.» Ouvia agora gemidos abafados e palavras sem nexo... Depois, o silêncio pesou-lhe nas

pálpebras. Fechou os olhos, esquecido; mas logo voltou a fixá-los no vulto imóvel. Por fim, cansado,

adormeceu profundamente.

Quando acordou, o dia dormitava ainda, e o vulto também. Aproximou-se dele. Era a Doida. Ao primeiro

impulso pensou em fugir, antes que ela tivesse algum daqueles ataques em que corria, à pedrada e aos

gritos, os garotos da rua. Mas viu-lhe o rosto pálido, empastado de sangue. Lembrou-se da mulher que

veio na lancha, chorosa, a engalhar o menino morto – e apiedou-se.

Levemente, estancou-lhe a ferida com um trapo molhado. Ela abriu para ele os olhos tontos, susteve-o nos

braços, chamou-lhe meu menino. Sagüi quis libertar-se daquelas mãos frias que o afagavam; mas, por

medo, deixou-se embalar como criança de colo, fitando a Doida, de esguelha. Pelo decote da blusa, via-lhe

o seio muito branco e uma nódoa negra no pescoço.

– Estás tão crescido, meu menino...

O sorriso dela era um esgar de amargura. Sagüi esboçou uma carícia que se perdeu no ar, e voltou mais a

cara para o lado. Os olhos, porém, continuavam hipnotizados pela nesga do seio. Contra vontade, a mão

prendeu-se também no decote, trémula e suplicante... A Doida beijou-o. E ele esqueceu-se que era menino

ao colo de mãe...

No dia seguinte, Sagüi não vendeu fruta. Mas os companheiros andaram pelas portas, como de costume.

– Quer laranjas? Uma dúzia dez tostões.

– Se calhar são roubadas...

Gaitinhas corava sempre, enquanto que os companheiros protestavam:

– Nã sou ladrão. Fui comprá-las às Areias.

Guedelhas palmilhava três quilómetros de estrada, para vender a fruta toda noutra vila, de manhã. Depois,

ia treinar-se com bolas de trapos, crente de que em breve lhe dariam admissão no clube desportivo. Os

outros acompanhavam-no, ou então jogavam o chinquilho no Mirante.

Foi lá que Sagüi lhes falou, embaraçado, com olheiras profundas no rosto.

– Hoje nã vendi nada...

– Tás doente, pá?

– Não. Andaram uns gajos a ver a capela.

O bando assustou-se.

Soeiro Pereira Gomes, In Esteiros

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Maria Moisés

O pequeno pegureiro contou as cabras à porta do curral; e, dando pela falta de uma, desatou a chorar com a maior

boca e bulha que podia fazer. Era noite fechada. Tinha medo de voltar ao monte, porque se afirmava que a alma do

defunto capitão-mor andava penando na Agra da Cruz, onde aparecera o cadáver de um estudante de Coimbra,

muitos anos antes. O povo atribuíra aquela morte ao capitão-mor de Santo Aleixo de além-Tâmega, por vingança de

ciúmes, e propalava que a alma do homicida, de fraldas brancas e roçagantes, infestava aquelas serras. O moleiro

das Poldras contrariava a opinião pública, asseverando que a avantesma não era alma, nem a tinha, porque era a

égua branca do vigário. A maioria, porém, pôs em evidência o facto psicológico, divulgando que o moleiro era

homem de maus costumes, tinha sido soldado na guerra do Rossilhão, não se desobrigava anualmente no rol da

igreja, nem constava que tivesse matado algum francês.

Era por 1813, meado de Agosto, quando o pastor chorava encolhido, a um canto do curral, e pedia ao padre Santo

António com muitas lágrimas que lhe deparasse a cabra perdida. João da Laje, o amo, assomou à porta da corte, e

bradou:

– Perdeste alguma rês?

O rapaz tartamudeou, tiritando de medo.

– Perdeste, ladrão? Vai em cata dela, e, olha lá: se a não trouxeres, não me apareças mais, que te arranco os fígados

pela boca. E deu-lhe dois valentes pontapés à conta.

Este João da Laje era homem de princípios menos maus, assentados em religião e pátria; havia matado dois

franceses doentes nas ambulâncias retardadas, e acreditava que o fantasma era a alma do capitão-mor e não a égua

branca do vigário.

O rapazinho deitou a correr, e lá foi caminho da serra. Tendo de optar entre os malefícios da alma penada e a

biqueira do tamanco do amo, preferia encontrar o defunto capitão-mor. Ainda assim, ia rezando alto quanto sabia

da cartilha: os Pecados Mortais, as Obras de misericórdia, os Sacramentos da Santa Madre Igreja, tudo. À saída da

aldeia, recuou estarrecido. Vira um fantasma branco a destacar das trevas, e agachado na raiz de um castanheiro.

– Ó Zé da Mónica, és tu? – perguntou o suspeito fantasma.

– Sou eu, tia Brites – respondeu o rapaz suspirando ofegante. – Credo! Que medo você me fez!

– Tu onde vás a esta hora?!

– Vou à cata de uma cabra. Você viu-a?

– Eu não. Olha lá, a tua ama Zefa também anda à procura da cabra?

– Àgora! A senhora Zefinha está doente há mais de mês e meio na cama.

– Isso sei eu; mas havia de jurar que a vi saltar agora o portelo da cortinha do rio! Se não era a Zefa era o demo por

ela!

O rapaz tornou a tolher-se de medo, e perguntou a meia voz:

– Seria a alma?

– Do sr. capitão-mor? Não me pareceu; que ela ia de saia escura, e levava um saiote pela cabeça.

Neste comenos, descia o moleiro do lado da serra pela barroca escura com dois jumentos carregados de foles, e

vinha cantando:

Já fui canário do rei,

Já lhe fugi da gaiola,

Agora sou pintassilgo

Destas meninas d’agora.

– P’ra pintassilgo estás muito fanhoso, ó Luís! – disse galhofando a Brites do Eirô.

– Olá, sua bruxa, que feitiços está você a fazer aí? – respondeu o veterano do 2º regimento do Porto. – Não me

meta medo aos burros que eles já estão estacados a olhar p’ra você. Deixe passar os parentes.

Camilo Castelo Branco

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Uma ceia inesperada

Numa noite gelada de Dezembro, dois pobres cães vadios procuravam abrigo debaixo de uma grande árvore de

Natal erguida no meio de uma praça, com uma vistosa iluminação que podia ser observada até do céu. Debaixo dos

ramos da árvore e próximo do calor das lâmpadas fortes, eles conseguiam ter algum conforto, protegendo-se da

chuva e do frio intenso.

Disse um dos cães para o companheiro:

— Há quanto tempo andas nesta vida?

— Desde o Verão passado. Os meus donos foram de férias e, como acharam que dava muito trabalho arranjar quem

tomasse conta de mim, abandonaram-me. Foi assim que me tornei vadio, embora seja um cão de raça.

— Quer então dizer que é o primeiro Natal que passas na rua?

— Sim, é o primeiro. E tu?

— Para mim já é o terceiro. Eu não sou um cão de raça, sou um rafeiro, e tinha uma dona que gostava muito de mim.

Eu era a sua única companhia. Um dia ela adoeceu e acabou por morrer.

— E o que foi que te aconteceu?

— Os filhos da minha dona não quiseram ficar com este encargo e puseram-me na rua. Já por cá ando há algum

tempo, remexendo nos contentores, bebendo água das poças e das sarjetas e fugindo das camionetas da Câmara

que trazem homens com redes para nos apanharem.

— Pois olha que eu ainda não me habituei a esta vida e nem sei se alguma vez me habituarei. Ainda estou muito

zangado com os meus donos por me terem feito o que fizeram. Pareciam gostar muito de mim, gabavam-se muito

da minha beleza e da minha raça, mas acabaram por me abandonar, dizendo aos filhos que alguém me roubou

quando eu passeava sem trela.

— Já ouvi contar muitas histórias como a tua, e olha que cada vez há mais. As pessoas são egoístas e quando nos

põem em casa não pensam nas responsabilidades que têm para connosco.

— Mas parece que com os gatos isso não acontece, e repara que eu não gosto nada de gatos.

— Estás enganado. Também há muitos gatos abandonados e há alturas em que nos podíamos entender, já que os

nossos problemas são os mesmos quando se trata de abandono.

— Então e qual é o teu desejo para esta noite de Natal?

— Para dizer a verdade, o que eu desejava é que estas lâmpadas se transformassem em ossos saborosos e numa

refeição quente. Se isso acontecesse, eu até era capaz de acreditar que há um céu para os cães.

Mal ele acabou de pronunciar estas palavras, caíram sobre eles vários ossos e duas latas de comida apetitosa. Ambos

se refastelaram com a abundância e com a qualidade da refeição que iria marcar para sempre a memória que ambos

guardariam daquela noite de Natal.

Certamente haverá quem diga que nunca as lâmpadas coloridas de uma árvore de rua se poderiam transformar em

comida para cães abandonados. Mas também é verdade que os cães não costumam falar, e os desta história, para

que nos lembremos sempre da solidão dos que são condenados a tornar-se vadios, falaram durante um bom

bocado. Vale esta história para que não esqueçamos os que não têm tecto, neste ou nos próximos Natais.

José Jorge Letria, A Árvore das Histórias de Natal