Textos de Machado de Assis Afrodescendente (1)

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Textos de Machado de Assis afrodescendenteMachado de Assis afro-descendente - escritos de caramujo [ antologia ]. Organizao, ensaio e notas: Eduardo de Assis Duarte. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Pallas/ Crislida, 2007 I Crnicas da Escravido

1. Duelo de filantropia

Era um leilo de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam ali de mistura com os mveis, havia uma pobre criancinha abrindo os olhos espantados e ignorantes para todos. Todos foram atrados pela tenra idade e triste singeleza da pequena. Entre outros, notei um indivduo que, mais curioso que compadecido, conjecturava meia voz o preo por que se venderia aquele semovente. Tratvamos conversa e fizemos conhecimento; quando ele soube que eu manejava a enxadinha com que revolvo as terras do folhetim, deixou escapar dos lbios esta exclamao:- Ah!Estava longe de conhecer o que havia neste - ah! - to misterioso e to significativo. Minutos depois comeou o prego da pequena. O meu indivduo cobria os lances com incrvel desespero, a ponto de pr fora de combate todos os pretendentes, excepto um que lutou ainda por algum tempo, mas que afinal teve q ceder. O preo definitivo da desgraadinha era fabuloso. S amor humanidade podia explicar aquela luta da parte do meu novo conhecimento; no perdi de vista o comprador, convencido de que iria disfaradamente ao leiloeiro dizer-lhe que a quantia lanada era aplicada liberdade da infeliz. Pus-me espreitada virtude. O comprador no me desiludiu, porque, apenas comeava a espreit-lo, ouvi-lhe dizer alto e bom som:- para a liberdade!

O ltimo combate do leilo foi ao filantropo, apertou-lhe as mos e disse:- Eu tinha a mesa inteno.O filantropo voltou-se para mim e pronunciou baixinho as seguintes palavras acompanhadas de um sorriso:- No v agora dizer l na folha que eu pratiquei este ato de caridade.Satisfez religiosamente o dito de filantropo, mas nem assim me furtei honra de ver o caso publicado e comentado nos outros jornais. Deixo ao leitor a apreciao daquele airoso duelo de filantropia.2. 13 de maio

Eu perteno a uma famlia de profetas aprs coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holands. Por isso digo, e juro se necessrio for, que tda a histria desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforri-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notcias dissessem trinta e trs (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simblico. No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha lngua), levantei-me eu com a taa de champanha e declarei que acompanhando as idias pregadas por Cristo, h dezoito sculos, restitua a liberdade ao meu escravo Pancrcio; que entendia que a nao inteira devia acompanhar as mesmas idias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens no podiam roubar sem pecado.Pancrcio, que estava espreita, entrou na sala, como um furaco, e veio abraar-me os ps. Um dos meus amigos (creio que ainda meu sobrinho) pegou de outra taa, e pediu ilustre assemblia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenos comovidos apanharam as lgrimas de admirao. Ca na cadeira e no vi mais nada. De noite, recebi muitos cartes. Creio que esto pintando o meu retrato, e suponho que a leo.No dia seguinte, chamei o Pancrcio e disse-lhe com rara franqueza:- Tu s livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, j conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...- Oh! meu senh! fico.- ...Um ordenado pequeno, mas que h de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje ests mais alto que eu. Deixa ver; olha, s mais alto quatro dedos...- Artura no qu diz nada, no, senh...- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-ris; mas de gro em gro que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.- Justamente. Pois seis mil-ris. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.Pancrcio aceitou tudo; aceitou at um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me no escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, no podia anular o direito civil adquirido por um ttulo que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.Tudo compreendeu o meu bom Pancrcio; da pra c, tenho-lhe despedido alguns pontaps, um ou outro puxo de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe no chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que at alegre.O meu plano est feito; quero ser deputado,e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolio legal, j eu, em casa, na modstia da famlia, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notcia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposies) ento professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente polticos, no so os que obedecem lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: s livre, antes que o digam os poderes pblicos, sempre retardatrios, trpegos e incapazes de restaurar a justia na terra, para satisfao do cu.Boas noites.3. 19 de maio

ONTEM DE MANH, descendo ao jardim, achei a grama, as flores e as folhagens transidas de frio e pingando. Chovera a noite inteira; o cho estava molhado, o cu feio e triste, e o Corcovado de carapua. Eram seis horas; as fortalezas e os navios comearam a salvar pelo quinto aniversrio do Treze de Maio. No havia esperanas de sol; e eu perguntei a mim mesmo se o no teramos nesse grande aniversrio. to bom poder exclamar: "Soldados, o sol de Austerlitz!" O sol , na verdade, o scio natural das alegrias pblicas; e ainda as domsticas, sem ele, parecem minguadas.

Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos samos rua. Sim, tambm eu sa rua, eu o mais encolhido dos caramujos, tambm eu entrei no prstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delrio. Verdadeiramente, foi o nico dia de delrio pblico que me lembra ter visto. Essas memrias atravessaram-me o esprito, enquanto os pssaros treinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que receberam ontem nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorificao. No meio de tudo, porm, uma tristeza indefinvel. A ausncia do sol coincidia com a do povo? O esprito pblico tornaria sanidade habitual?

Chegaram-me os jornais. Deles vi que uma comisso da sociedade que tem o nome de Rio Branco, iria levar sepultura deste homem de Estado uma coroa de louros e amores- perfeitos. Compreendi a filosofia do ato; era relembrar o primeiro tiro vibrado na escravido. No me dissipou a melancolia. Imaginei ver a comisso entrar modestamente pelo cemitrio, desviar-se de um enterro obscuro, quase annimo, e ir depor piedosamente a coroa na sepultura do vencedor de 1871. Uma comisso, uma grinalda. Ento lembraram-me outras flores. Quando o Senado acabou de votar a lei de 28 de setembro, caram punhados de flores das galerias e das tribunas sobre a cabea do vencedor e dos seus pares. E ainda me lembraram outras flores... Estas eram de climas alheias. Primrose day!

Oh! se pudssemos tem um primrose day! Esse dia de primavera consagrado memria de Disracli pela idealista e potica Inglaterra. o da sua morte, h treze anos. Nesse dia, o pedestal da esttua do homem de Estado e romancista forrado de seda e coberto de infinitas grinaldas e ramalhetes. Dizem que a primavera era a flor da sua predileo. Da o nome do dia. Aqui esto jornais que contam a festa de 19 do ms passado. Primrose day! Oh! quem nos dera um primrose day! Comearamos, certo, por ter os pedestais.

Um velho autor da nossa lngua, creio que Joo de Barros; no posso ir verific-lo agora; ponhamos Joo de Barros. Este velho autor fala de um provrbio que dizia: "os italianos governam-se pelo passado, os espanhis pelo presente e os franceses pelo que h de vir." E em seguida dava "uma repreenso de pena nossa Espanha", considerando que Espanha toda a pennsula, e s Castela Castela. A nossa gente, que dali veio, tem de receber a mesma repreenso de pena; governa-se pelo presente, tem o porvir em pouco, o passado em nada ou quase nada. Eu creio que os ingleses resumem as outras trs naes.

Temo que o nosso regozijo v morrendo, e a lembrana do passado com ele, e tudo se acabe naquela frase estereotipada da imprensa nos dias da minha primeira juventude. Que eram afinal as festas da independncia? Uma parada, um cortejo, um espetculo de gala. Tudo isso ocupava duas linhas, e mais estas duas: as fortalezas e os navios de guerra nacionais e estrangeiros surtos no porto deram as salvas de estilo. Com este pouco, e certo, estava comemorado o grande ato da nossa separao da metrpole.

Em menino, conheci de vista o Major Valadares; morava na Rua Sete de Setembro, que ainda no tinha este ttulo, mas o vulgar nome de Rua do Cano. Todos os anos, no dia 7 de setembro, armava a porta da rua com cetim verde e amarelo, espalhava na calcada e no corredor da casa folhas da Independncia, reunia amigos, no sei se tambm msica, e comemorava assim o dia nacional. Foi o ltimo abencerragem. Depois ficaram as salvas do estilo.

Todas essas minhas idias melanclicas bateram as asas entrada do sol, que afinal rompeu as nuvens, e s trs horas governava o cu, salvo alguns trechos onde as nuvens teimavam em ficar. O Corcovado desbarretou-se, mas com tal fastio, que se via bem ser obrigao de vassalo, no amor da cortesia, menos ainda amizade pessoal ou admirao. Quando tornei ao jardim, achei as flores enxutas e lpidas. Vivam as flores! Gladstone no fala na Cmara dos Comuns sem levar alguma na sobrecasaca; o seu grande rival morto tinha o mesmo vcio. Imaginai o efeito que nos faria Rio Branco ou Itabora com uma rosa ao peito, discutindo o oramento, e dizei-me se no somos um povo triste.

No, no. O triste sou eu. Provavelmente m digesto. Comi favas, e as favas no se do comigo. Comerei rosas ou primaveras, e pedir-vos-ei uma esttua e uma festa que dure, pelo menos, dois aniversrios. J demais para um homem modesto.

II PoemaSabina, IN: Americanas, 1875

Disponvel em: http://www.ig.com.br/paginas/novoigler/livros/americanas_machado_de_assis/sabina.htmlIII Contos de escravido

1. Virginius (Narrativa de um advogado)

Disponvel em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000194.pdf2. MarianaDisponvel em:http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000267.pdf3. O espelhoDisponvel em:http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf4. O caso da varaDisponvel em:http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000219.pdf5. Pai contra me

Disponvel em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.pdf Duarte, Eduardo de Assis (2007, p. 27) Crnica sem assinatura, publicada no Dirio do Rio de Janeiro, em 1864, ausente tanto da edio Jackson, quanto da Nova Aguilar. Encontramo-la em Magalhes Jnior, Machado de Assis desconhecido. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1957, pp. 154-5)O ttulo no foi dado pelo autor, mas retirado das ltimas palavras do texto.

Duarte, Eduardo de Assis (2007, pp.51-3)

Crnica publicada no jornal Gazeta de Notcias, em 19 de maio de 1888. Bons Dias

Duarte, Eduardo de Assis (2007, pp.66-8)

Gazeta de notcias, 14 de maio de 1893. A Semana

Ver o ensaio de A REAO DO CTICO VIOLNCIA: o caso Machado de Assis, de Gustavo Bernardo

HYPERLINK "http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a308.htm" http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a308.htm

Crnica falada em HYPERLINK "http://www.youtube.com/watch?v=Uo74nVW_nhM&noredirect=1" http://www.youtube.com/watch?v=Uo74nVW_nhM&noredirect=1