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1 Pesquisa e organização: Prof. Coord. Elizabete Herling Ilustração: Ionit Ziberma

Textos Para 5 Ano Otimos Autores

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1 Pesquisa e organizao: Prof. Coord.ElizabeteHerling

Ilustrao: Ionit Ziberma 2 Caixinha Mgica Roseana Murray Fabrico uma caixa mgica para guardar o que no cabe em nenhum lugar: a minha sombra em dias de muito sol, o amarelo que sobra do girassol, um suspiro de beija-flor, invisveis lgrimas de amor. Fabrico a caixa com vento, palavras e desequilbrio e, para fech-la com tudo o que leva dentro, basta uma gota de tempo. O que que voc quer esconder na minha caixa? Roseana Murray, autora deste poema, j escreveu mais de 40 livros, entre eles Receitas de Olhar (Ed. FTD) e Kira (Ed. Abacatte). Vampi & O Presente Mgico Regina Drummond Vampi, a vampira chique e cheia de imaginao, morava numa casinha em cima de uma rvore. Um dia, ela ganhou de presente um carro conversvel rosa-choque.Vampi montou, acelerou com fora e buzinou forte - Fon-fon!O carro furou o ar e sumiu pelo mundo afora.Vampi viu um trem grande e comprido, viu nibus pequenos e curtos.Viu prdios cinzentos, viu casas coloridas.Viu ruas com gente apressada e becos onde s tinha fantasma, uh...Viu gente, bicho, planta.Redondo, quadrado, oval e retangular.Viu o cu, viu o mar, viu a montanha.Azul e violeta, laranja e vermelho, verde em mil tons.Viu nuvens brancas, apertou um boto e voou.Os pssaros passavam pertinho e tudo era pequenininho, l embaixo...Vampi s ria, fazendo bi-bi, fon-fon e pedalando, pedindo passagem para as estrelas, que eram maiores do que ela, vejam s!De olho na volta, procurou um lugar para aterrissar, mas, ao ajeitar o cabelo, errou o alvo e caiu no mar.Opa! Apertou outro boto, o carrinhoavio virou navio, flutuou, comeou a afundar e j era um submarino, 3 quase um peixe, nadando no meio das algas e dos corais...Um peixe olhou para ela, dois peixes, trs, quatro, cinco, mil, um cardume inteiro, quantos peixes so?Nem deu tempo de contar. Devagarinho, o submarino subiu, virou navio, flutuou, virou avio, pousou e virou carrinho outra vez, parando ao p da sua rvore. Na mesma hora, nasceram seis patas no lugar das rodas, e ele virou uma aranha, que subiu pelo tronco at alcanar os altos galhos cheios de folhas... Atravessando-os como se fosse um fantasma, levou Vampi de volta para casa."Puxa, meu carro mgico!" - disse ela, encantada, saindo por cima, sem abrir a porta. Mas logo mudou de ideia: sentando-se outra vez no seu carrinho rosa-choque, Vampi riu, sonhando com a prxima aventura. Regina Drummond, autora deste conto, escritora de livros infanto-juvenis, tradutora e contadora de histrias. Escreveu Sete Histrias do Mundo Mgico (Ed. Devir), Eu, Bruxa (Ed. Saraiva) e Andersen e Suas Estrias (Ed. Ave Maria), entre outras obras. Dona Cotinha, Tom e Gato Joca Clo Busatto Em frente minha casa tem outra casa, pequena, de madeira, azul com janelas brancas. Est no fim de um terreno enorme com muitas rvores. Para mim aquilo o que chamam de floresta. Tom diz que um quintal. Ali mora dona Cotinha, uma velhinha que tem cabelos lils e dirige um Fusquinha vermelho. Esse passou a ser meu esconderijo. Dona Cotinha sempre aparece com um prato de comida. Diz:- Vem, gatinho. Olha s o que eu trouxe para voc.Sou premiado com sardinha fresca, atum, macarro. Tenho engordado alm da conta. Dia desses estava tomando sol e ouvi o Tom me chamar. O danado sentiu meu cheiro e descobriu meu segredo. Ele estava no porto quando chegou dona Cotinha, no seu Fusquinha.- Bom dia, menino - disse ela. J que est em frente minha casa, faa uma gentileza e abra o porto.Tom obedeceu. Dona Cotinha afagou minha cabea e perguntou:- Este gatinho seu?- Sim, senhora.- Ele muito educado.- Obrigado - disse eu, na minha voz de gato.- No primeiro dia que o vi por aqui, ele entrou na casa e cheirou tudo. Agora, sempre deixo uma comidinha para ele!- Ah! Mas o Joca no come comida de gente, no, senhora. S come rao - disse o Tom.- Come, sim, meu filho. E come de tudo.Dona Cotinha acabava de denunciar minha gula e o aumento de peso. Continuou:- Passe aqui no fim da tarde. Fao um bolo de fub com cobertura de chocolate que de dar gua na boca.Com gua na boca fiquei eu. Naquela tarde voltamos casa de dona Cotinha. Ela foi logo mostrando pro Tom uma coleo de carrinhos antigos. Era do filho dela, que morreu bem pequeno. Depois nos levou para uma sala repleta de livros. Tom ficou de boca aberta e perguntou:4 - A senhora j leu todos esses livros?- Praticamente todos. Ler foi minha diverso, meu bom vcio. Infelizmente meus olhos no ajudam mais. Essa pilha que voc est vendo aqui ainda nem foi tocada.Tom comeou a ler em voz alta, e sua voz encheu a sala de seres fantsticos. O tempo parou.Desse dia em diante, tardinha, eu e Tom tnhamos uma misso. Abrir os livros de dona Cotinha e deixar os personagens passearem pela casa mgica, no meio da floresta da cidade de pedra. Clo Busatto, autora deste conto, escritora e contadora de histrias. Viva a Paz! Tatiana Belinky Dois gatinhos assanhados se atracaram, enfezados. A dona se irritou e a vassoura agarrou! E apesar do frio, na hora, os varreu porta afora, bem no meio do inverno, com um frio "do inferno"! Os gatinhos, assustados, se encolheram, j gelados, junto porta, no jardim, aguardando o triste fim! De terror acovardados, os dois gatinhos, coitados, no puderam nem miar, lamentando tanto azar! Sem ouvir nenhum miado, a dona, por seu lado, dos gatinhos teve d, e a porta abriu de uma vez s! Mesmo estando to gelados, os dois gatinhos arrepiados Zs! Bem junto do fogo surgem, sem reclamao! E a dona comentou: tanto faz quem comeou! Uma encrenca boba assim bom que tenha logo um fim! E ela acrescentou, ento, no querem brigar mais, no? E os gatinhos, enroscados, esqueceram da briga, aliviados. Confortados, no quentinho, com sossego e com carinho, dormem bem, bichos queridos, j da briga esquecidos. Tatiana Belinky, adaptadora desta canco popular inglesa, escritora e tradutora. Tem mais de 100 livros publicados. Em 1989, ganhou o Prmio Jabuti por sua trajetria literria. 5 Bruxas no existem Moacyr Scliar Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando coisas perversas. Os meus amigos tambm acreditavam nisso. A prova para ns era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaos no fim de nossa rua. Seu nome era Ana Custdio, mas ns s a chamvamos de "bruxa".Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca tnhamos entrado na casa, mas tnhamos a certeza de que, se fizssemos isso, ns a encontraramos preparando venenos num grande caldeiro.Nossa diverso predileta era incomod-la. Volta e meia invadamos o pequeno ptio para dali roubar frutas e quando, por acaso, a velha saa rua para fazer compras no pequeno armazm ali perto, corramos atrs dela gritando "bruxa, bruxa!".Um dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal ns no sabamos, mas logo descobrimos o que fazer com ele: jog-lo na casa da bruxa. O que seria fcil. Ao contrrio do que sempre acontecia, naquela manh, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da frente. Sob comando do Joo Pedro, que era o nosso lder, levantamos o bicho, que era grande e pesava bastante, e com muito esforo ns o levamos at a janela. Tentamos empurr-lo para dentro, mas a os chifres ficaram presos na cortina.- Vamos logo - gritava o Joo Pedro -, antes que a bruxa aparea. E ela apareceu. No momento exato em que, finalmente, conseguamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa, empunhando um cabo de vassoura. Rindo, samos correndo. Eu, gordinho, era o ltimo.E ento aconteceu. De repente, enfiei o p num buraco e ca. De imediato senti uma dor terrvel na perna e no tive dvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas no consegui. E a bruxa, caminhando com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na mo, aproximava-se. quela altura a turma estava longe, ningum poderia me ajudar. E a mulher sem dvida descarregaria em mim sua fria.Em um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas a viu a minha perna, e instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e comeou a examin-la com uma habilidade surpreendente.- Est quebrada - disse por fim. - Mas podemos dar um jeito. No se preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira muitos anos, trabalhei em hospital. Confie em mim.Dividiu o cabo de vassoura em trs pedaos e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma tala, imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui at minha casa. "Chame uma ambulncia", disse a mulher minha me. Sorriu.Tudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o mdico engessou minha perna e em poucas semanas eu estava recuperado. Desde ento, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma senhora que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Custdio. 6 Moacyr Scliar, autor desta crnica, escritor e tem mais de 70 livros publicados. Ganhou o Prmio Jabuti quatro vezes e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Um problema difcil Pedro Bandeira Era um problema dos grandes. A turminha reuniu-se para discuti-lo e Xexu voltou para casa preocupado. Por mais que pensas se, no atinava com uma soluo. Afinal, o que poderia ele fazer para resolver aquilo? Era apenas um menino! Xexu decidiu falar com o pai e explicar direitinho o que estava acontecendo. O pai ouviu calado, muito srio, compreendendo a gravidade da questo. Depois que o garoto saiu da sala, o pai pensou um longo tempo. Era mesmo preciso enfrentar o problema. No estava em suas mos, porm, resolver um caso to difcil.Procurou o guarda do quarteiro, um sujeito muito amigo que j era conhecido de todos e costumava sempre dar uma paradinha para aceitar um cafezinho oferecido por algum dos moradores.O guarda ouviu com a maior das atenes. Correu depois para a delegacia e exps ao delegado tudo o que estava acontecendo.O delegado balanou a cabea, concordando. Sim, alguma coisa precisava ser feita, e logo! Na mesma hora, o delegado passou a mo no telefone e ligou para um vereador, que costumava sensibilizar-se com os problemas da comunidade.Do outro lado da linha, o vereador ouviu sem interromper um s instante. Foi para a prefeitura e pediu uma audincia ao prefeito. Contou tudo, tintim por tintim. O prefeito ouviu todos os tintins e foi procurar um deputado estadual do mesmo partido para contar o que havia.O deputado estadual no era desses polticos que s se lembram dos problemas da comunidade na hora de pedir votos. Ligou para um deputado federal, pedindo uma providncia urgente. O deputado federal ligou para o governador do estado, que interrompeu uma conferncia para ouvi-lo.O problema era mesmo grave, e o governador voou at Braslia para pedir uma audincia ao ministro.O ministro ouviu tudinho e, como j tinha reunio marcada com o presidente, aproveitou e relatou-lhe o problema.O presidente compreendeu a gravidade da situao e convocou uma reunio ministerial. O assunto foi debatido e, depois de ouvir todos os argumentos, o presidente baixou um decreto para resolver a questo de uma vez por todas.Aliviado, o ministro procurou o governador e contou-lhe a soluo. O governador ento ligou para o deputado federal, que ficou muito satisfeito. Falou com o deputado estadual, que, na mesma hora, contou tudo para o prefeito. O prefeito mandou chamar o vereador e mostrou-lhe que a soluo j tinha sido encontrada.O vereador foi at a delegacia e disse a providncia ao delegado. O delegado, contente com aquilo, chamou o guarda e exps a soluo do problema. O guarda, na mesma hora, voltou para a casa do pai do Xexu e, depois de aceitar um caf, relatou-lhe satisfeito que o problema estava resolvido.O pai do Xexu ficou alegrssimo e chamou o filho.7 Depois de ouvir tudo, o menino arregalou os olhos:- Aquele problema? Ora, papai, a gente j resolveu h muito tempo! Pedro Bandeira, autor deste conto, escritor. Ganhou o Prmio Jabuti na categoria Melhor Livro Infantil em 1986 com O Fantstico Mistrio de Feiurinha (Ed. FTD). Se Eu Fosse Esqueleto Ricardo Azevedo Se eu fosse esqueleto no ia poder tomar gua nem suco porque ia vazar tudo e molhar a casa inteira.Tirando isso, ia acordar e pular da cama feliz como um passarinho. que ser uma caveira de verdade deve ser muito divertido.Por exemplo. Faz de conta que um banco est sendo assaltado. Aqueles bandides nojentes, mauzes, armados at os dentes, berrando:- Na moral! Cad a grana?Se eu fosse esqueleto, entrava no banco e gritava: bu!Bastaria um simples bu e aquela bandidagem ia cair dura no cho, com as calas molhadas de mido pavor.O gerente e os clientes do banco iam agradecer e at me abraar, s um pouco, mas tenho certeza de que iam.Se eu fosse caveira, de repente vai ver que eu ia ser considerado um grande heri.Fora isso, um esqueleto perambulando na rua em plena luz do dia causaria uma baita confuso. O povo correndo sem saber para onde, sirenes gemendo, gente que nunca rezou rezando, o Exrcito batendo em retirada, aquele mundaru desesperado e eu l, todo contente, assobiando na calada.Um reprter de TV, segurando o microfone, at podia chegar para me entrevistar:- Quem voc?E eu:- Sou um esqueleto.E o reprter:- O senhor fugiu do cemitrio?A eu fingia que era surdo:- Ser mistrio?E o reprter, de novo, mais alto:- O senhor fugiu do cemitrio?- Assumiu no magistrio?- Cemitrio!- Fala srio? Quem?A o reprter perdia a pacincia:- O senhor surdo?8 E eu:- Claro que sou! No est vendo que no tenho nem orelha?Se eu fosse esqueleto talvez me levassem para a aula de Biologia de alguma escola. J imagino eu l parado e o professor tentando me explicar osso por osso, dente por dente, dizendo que os esqueletos so uma espcie de estrutura que segura nossas carnes, rgos, nervos e msculos.Fico pensando nas perguntas e nos comentrios dos alunos:- Como ele se chamava?- macho ou fmea?- Quantos anos ele tem?- Tem ou tinha?- Magrinho, no?- O cara sabia ler ou era analfabeto?- E a famlia dele?- Era rico ou pobre?- O coitado est rindo de qu?E ainda:- Professor, ele era careca?Enquanto isso, eu l, no meio da aula, com aquela cara de caveira, sem falar nada para no assustar os alunos e matar o professor do corao.Uma coisa certa. Deve ser muito bom ser esqueleto quando chega o Carnaval. A a gente nem precisa se fantasiar. Pode sair de casa numa boa, cair no samba, virar folio e seguir pela rua danando, brincando e sacudindo os ossos. Parece mentira, mas, no Carnaval, porque tudo brincadeira, a gente sempre acaba sendo do jeito que a gente de verdade.Se eu fosse esqueleto, quando chegasse o Carnaval, ia sair cantando:Quando eu morrer No quero choro nem vela Quero uma fita amarela Gravada com o nome delaTodo mundo sabe que o maior amigo do homem o cachorro.O que a maioria infelizmente desconhece e a cincia moderna esqueceu de pesquisar que o pior inimigo do esqueleto late, morde, abana o rabo, carrega pulgas e aprecia fazer xixi no poste.E se eu fosse esqueleto e por acaso um vira-lata me visse na rua, corresse atrs de mim e fugisse com algum osso dos meus? Ricardo Azevedo, autor deste conto, escritor e ilustrador. J escreveu mais de 100 livros para crianas e jovens, entre eles Trezentos Parafusos a Menos (Ed. Companhia das Letrinhas) e Contos de Espanto e Alumbramento (Ed. Scipione). ganhador de vrios prmios, entre eles o Jabuti, que venceu cinco vezes. Acontece para quem acredita- Edy Lima Ilustrao: Joana Lira 9 Era um jovem pescador muito pobre, que vivia sozinho numa praia distante. Tinha um pequeno barco em que saa noite para pescar e, no dia seguinte, vendia os peixes no povoado mais prximo. Certa vez uma onda enorme tragou o barquinho, mas, na manh seguinte, acordou em sua cabana miservel e viu que tudo era como sempre tinha sido. Veio sua lembrana uma bela moa que o socorrera em meio s guas e o carregara para seu palcio no fundo do mar. Nesse momento, riu de si mesmo e disse alto:- Voc sonhou com a Me Dgua. Foi s.Levantou-se para ir tomar gua, sua garganta queimava de sede. Quando ergueu a caneca para beber viu um anel brilhando em seu dedo.- Que isso?De repente se lembrou de uma cerimnia em que ele recebera aquele anel, no palcio no fundo do mar.Uma coisa dessas no podia ter acontecido. Mas o anel continuava um mistrio.Em seguida sentiu uma dvida terrvel: e se estivesse morto?O jeito era se olhar no espelho, pois ouvira contar que fantasmas no refletem imagem. Claro que era to pobre que nem tinha espelho em casa.E se quando fosse vender o peixe no povoado, se olhasse no espelho da barbearia?Ser que tinha pescado alguma coisa? S se lembrava daquela onda gigante que engolira seu barco. Correu at a praia e no viu o barco. Quem estava l era a linda moa que o salvara na hora do naufrgio.Ela sorriu e disse:- Voc no quis ficar na minha casa, vim morar na sua, afinal agora somos casados. Disse isso e estendeu a mo para ele.Ele viu ento que ela usava um anel igual ao que brilhava em seu dedo.Respondeu:- Venha.Caminharam abraados e, ao chegarem ao lugar onde ficava a cabana, ela no existia mais. L, agora, erguia-se um palcio e havia gente entrando e saindo.A moa disse:- o meu povo das guas.De repente, ele notou que estava vestido com roupas luxuosas em vez dos trapos de antes.Sem dvida a Me Dgua o escolhera para marido e no havia fora humana que pudesse mudar isso.Viveram felizes por algum tempo. Mas, se ele no tinha gostado de morar no palcio no fundo do mar, ela comeou a se cansar de viver em terra firme.Ficava horas diante do mar rodeada por seu povo das guas. O palcio permanecia abandonado. Ningum cuidava de nada, tudo era deixado na maior desordem.Um dia ele pronunciou as palavras fatais que ela o proibira de dizer em qualquer circunstncia.- Arrenego o povo do mar!Era o que todos esperavam para voltar s profundezas do oceano. Suas palavras valeram como sinal para a 10 debandada.A moa e todos os serviais foram cantando para dentro do mar e sumiram nas guas.O pescador olhou para si mesmo e viu que suas roupas de luxo tambm tinham sumido. Estava outra vez vestido de trapos. Quando voltou para casa, s encontrou o casebre de antes, no havia nem rastro de algum palcio.Ao entardecer, sentiu saudades da Me Dgua e foi at a beira da praia. L estava seu velho barquinho, antes desaparecido. O pescador entrou nele e tomou o rumo do quebra-mar.De repente uma grande onda o envolveu e seu pensamento foi:- Ser que tudo vai acontecer de novo? Conto de Edy Lima, ilustrado por Joana Lira Aconteceu na caatinga Clotilde Tavares Ilustrao: Flavio Morais Era meio-dia e a caatinga brilhava luz incandescente do Sol. O pequeno Calango deslizou rpido sobre o solo seco, cheio de gravetos e pedras, parando na frente do majestoso Mandacaru, que apontava para o cu seus espinhos, os grandes braos abertos em cruz.- Mandacaru! Mandacaru! Eu ouvi os homens conversando l adiante e eles estavam dizendo que, como a caatinga est muito seca e cor de cinza, vo trazer do estrangeiro umas rvores que ficam sempre verdes quando crescem e esto sempre cheias de folhas.- Mas que novidade essa? - falou a Jurema.- Coisa de gente besta - disse o Cardeiro, fazendo um muxoxo irritado e atirando espinhos para todo lado.- Eu que no acredito nessas novidades - sussurrou o pequeno e tmido Pre.A velha Cobra, cheia de escamas de vidro e da idade do mundo, s fez balanar a cabea de um lado para o 11 outro e, como se achasse que no valia a pena falar, ficou em silncio.E no outro dia, bem cedinho, os homens j haviam plantado centenas de arvorezinhas muito agitadas, serelepes e faceiras, que falavam todas ao mesmo tempo na lngua l delas, reclamando de tudo: do Sol, da poeira, dos bichos e das plantas nativas, que elas achavam pobres, feias e espinhentas. Enquanto falavam, farfalhavam e balanavam os pequenos galhos, que iam crescendo, ganhando folhas e ficando cada vez mais fortes.Enquanto isso, as plantas da caatinga, acostumadas a viver com pouca gua, comearam a notar que essa gua estava cada vez mais difcil de encontrar. As razes do Mandacaru, da Jurema e do Cardeiro cavavam, cavavam e s encontravam a terra seca e esturricada.O Calango ento se reuniu com os outros bichos e plantas para encontrar uma soluo. E foi a velha Cobra quem matou a charada:- Quem est causando a seca so essas plantinhas importadas e metidas a besta! Eu me arrastei por debaixo da terra e vi o que elas fazem: bebem toda a nossa gua e no deixam nada para a gente.- Oxente! - gritou o Calango. - Ento vou contar isso aos homens e pedir uma soluo.Mas logo o Calango voltou, triste e decepcionado.- Os homens no me deram ateno - disse. - Falaram que eu no tenho instruo, no fiz universidade e que eu estou atrapalhando o progresso da caatinga.E todos os bichos e plantas ficaram tristes, mas estavam com tanta sede que nem sequer puderam chorar: no havia gua para fabricar as lgrimas. Por muitos dias ficaram assim e quando estavam beira da morte houve um movimento: era o Pre, que levantou o narizinho, farejou o ar e, esquecendo a timidez, gritou:- Estou sentindo cheiro de gua!- mesmo! - gritaram todos.- O que ser que aconteceu? - perguntou a Jurema.- Eu vou ver o que foi - e o Calango saiu veloz, espalhando poeira para todos os lados.O Mandacaru estirou os braos, espreguiou-se e sorriu:- Estou recebendo gua de novo! Hum... muito bom! Mas vejam! O Calango est de volta com novidades!E espichando meio palmo de lngua de fora, morto de cansado pela carreira, o Calango contou tudo.- As pequenas bandidas verdes, depois de beber quase toda a gua da caatinga, estavam ameaando a gua dos rios e dos audes perto das cidades. Os homens ento viram o perigo e deram fim a todas elas. Estamos salvos!E todos ficaram alegres, sentindo a gua subir pelas razes. Olharam para o cu azul da caatinga, aquele cu claro, o Sol brilhante, olharam uns para os outros e viram que eram irmos, na mesma natureza, no mesmo tempo, na mesma Terra.E a velha Cobra, desenroscando-se toda lentamente, piscou o olho e concluiu:- como dizia minha av: cada macaco no seu galho! Conto de Clotilde Tavares, ilustrado por Flavio Morais 12 A gata apaixonada Ivan Jaf Ilustrao: Andrea Ebert Quando perguntam como que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir Martins. O pintor famoso.Eu estava, tranqilo, estudando. Juro. L pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.A me morreu h uns quatro anos. O pai superciumento, no a deixa satir de casa nunca.- Oi, Rodrigo... Voc tem um gato grande, malhado?- Tenho. O nome dele Sorvete.- Sorvete?- Quando a gente encosta a mo, ele se derrete todo.- Ele briga com a minha gata, a Tati. J aconteceu vrias vezes. Acho que cime.- De outro gato?- No. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. S ns dois.- Voc vai ver - ela disse.- sempre na mesma hora. J ouviu falar do Aldemir Martins?- J. um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em So Paulo.- Morava. Morreu h pouco tempo. Minha me era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros, revistas, jornais... Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes...13 - T sabendo. Desenhava at rtulos de maionese, de vinho...- Minha me comprava tudo que podia. A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lenis, tapetes, cortina de banheiro...Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitao de lareira, havia uma tela do Aldemir Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme, mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnticos.- Minha me adorava esse quadro.Ento ela me puxou pra trs de uma cortina pesada, que cobria a vidraa que dava pro jardim.Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado. Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. At que ele apareceu. O velho Sorvete. O gato mais descolado do pedao. Veio gingando, passou entre os mveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto e no gostou nada do que viu.Carla segurou no meu brao.Sorvete pulou pro beiral.Briga de gato mais rpido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim, com o Sorvete atrs.- Minha me dizia que um artista capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza um artista. Mas acho que voc vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo. No gostei daquilo.- No, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa... tm de ter liberdade. Tm de ter uma janela aberta.- Mas o Sorvete meio selvagem...- Isso. assim que eu gosto dele. Eu tambm sou meio selvagem. Sabe o que eu fao? Eu como o tomate inteiro. Eu no fico esperando a minha me partir e colocar na salada!Ela riu. No sei de onde eu tirei essa histria do tomate. A me empolguei, e ia dar mais exemplos de como eu era selvagem, mas a cortina se abriu de repente e o pai dela apareceu.O cara ficou nervoso, quase chamou a polcia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou at deixando a filha sair comigo.Eu e a Carla estamos namorando. Juro. Conto de Ivan Jaf, ilustrado por Andrea Ebert 14 A luva Foi nos tempos distantes do amor corts. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibio de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balces onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, to rica e formosa quanto orgulhosa, e de p ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.Chegou a hora do incio da funo. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leo africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguioso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrvel tigre de Bengala, que encarou o leo com olhos ameaadores e deitou-se tambm, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e aumentando a tenso do ambiente.Fez-se um silncio no pblico: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos... E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balco, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irnico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:"Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva."O cavaleiro Delorges no respondeu nada e sem titubear, desceu rpido do balco e com passos decididos pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou a luva, e sem olhar para trs e sem apressar o passo, voltou para o balco, sob os sussurros de espanto e 15 admirao de todo o pblico presente.A donzela Cunegundes estendeu a mo num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de promessas, falou:"Ganhaste a minha gratido, cavaleiro Delorges."Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa: "Dispenso a vossa gratido, senhora!", ele disse.E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre. Recontado de um poema de Schiller por Tatiana Belinky Ilustrado por Maria Eliana Delarissa A menina e o sapo Marcia Paganini Cavquia Ilustrao: Renato Ventura.Nina, menina airosa, formosa como ela s.Bonito era ver Nina correr.Ora corria rpido, feito tufo, ora devagar, parecendo brisa.Nina corria pelo jardim.Nina caa no gramado.Nina fazia folia. E ria. noite, cansada das travessuras do dia, a menina dormia.Certa vez, enquanto passeava pelo jardim, Nina viu um sapo.Sapo tambm viu Nina."Ser que, se Nina beijar o sapo, sapo vira prncipe?"Nina no sabia, mas ficava imaginando como isso seria.Nina beijou o sapo.Sapo continuou sapo.16 No virou prncipe.Mas se apaixonou por Nina.Agora, onde Nina est, l se v o sapo apaixonado suspirando pela menina.Na cabea do sapo, Nina uma princesa-sapa, transformada em menina por uma terrvel feiticeira. Marcia Paganini Cavquia, autora deste conto, ps-graduada em Metodologia do Ensino pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Amplexo Me, me d um amplexo?A pergunta pega Cinira desprevenida. Antes que possa retrucar, ela nota o dicionrio namo do filho, que completa o pedido:- E um sculo tambm. Ainda surpresa, a mulher procura no livro a definio das duas estranhas palavras. E encontra. Mateus quer apenas um abrao e um beijo.Conversa vai, conversa vem, Cinira finalmente se d conta de que o garoto, recm-apresentado s classes gramaticais nas aulas de Portugus, brinca com os sinnimos. "O que vai ser de mim quando esse tiquinho de gente cismar com parnimos, homnimos, heternimos e pseudnimos?", pensa ela, misturando as estaes. "Valha-me, Santo Antnimo!" E emenda:- Pra com essa bobagem, menino!- Ah, me, o que que tem? Voc nunca chamou cachorro de co? E casa de residncia? E carro de automvel?- verdade, mas...Mas a verdade que Cinira no tem uma boa resposta.- E meu nome Mateus - continua o rapaz. - S que voc me chama de Matusquela.17 - Ei, isso no vale. Matusquela apelido carinhoso.- Sei, sei. Tudo bem se eu usar nosocmio e cogitabundo em vez de hospital e pensativo?E criptobrnquio no lugar de mutablio?- Mutablio? O que que isso?- O mesmo que derotremado, ora. T aqui no Aurlio.Est mesmo. um bichinho. Mas pouco importa. A me questiona a opo do menino por vocbulos incomuns. Mateus sai-se com esta:- A professora disse que aprender palavras como ganhar roupas e guardar numa gaveta. Quando a gente precisa delas, tira de l e usa. Cada uma serve para uma ocasio, por mais esquisita que parea. Igual quer-quer roxa que voc me deu no ltimo aniversrio. Lembra?Como esquecer? Cinira nem se d ao trabalho de consultar o dicionrio. Sabe que a explicao para essa ltima provocao est no verbete camiseta. Quem quemMarcelo Alencar, autor deste conto, j trabalhou como cartunista e editor dehistrias em quadrinhos. Jornalista, editor de NOVA ESCOLAMarcelo Cipis, pintor e desenhista que ilustrou estas pginas, autor deO Livro do Alfabeto, Era uma Vez um Livro e 530 Gramas de Ilustraes. A Origem das Revespcies- Maria Amlia Camargo Ilustrao: Renato Faccini Voc j deve ter quebrado muito a cabea pra responder aquela velha pergunta sobre o ovo e a galinha... Ora, convenhamos, desde que os cientistas anunciaram o parentesco entre a dita cuja e os dinossauros, no preciso ser nenhum Charles Darwin pra matar essa charada...Por um capricho da natureza, ficou decidido que os dinossauros pulariam de grandalhes para a categoria peso-pena, passariam a acordar com as galinhas e seriam bichos muito bons de bico. Da, foi s uma 18 tiranossauro botar um ovo com um pintinho dentro, para dar incio era das galinceas no planeta. Pronto, o ovo veio primeiro!E j que estamos falando sobre as transformaes no reino animal, bom lembrar que a evoluo no privilgio apenas das cocoriquentas. Tempos depois de um cavalo amarelo-malhado ter tomado ch de trepadeira e ficado com as folhas entaladas na garganta, transformou-se numa girafa. Quando um camundongo gigante cansou de levar seus filhos a tiracolo e amarrou uma bolsa na barriga, virou um canguru. J a gelatina, que teve a sorte de ser resgatada do mar Morto por um salva-vidas, ah, virou uma gua-viva!E os reveses nas espcies no param por a. Tem exemplo de revespcie pra dar e vender. Veja s:Quem j era devagar quase parando virou preguia.Quem tinha samba no p, uma cuca.Virou solitria quem vivia jogada s traas.Um tremendo furo, quem nunca dava o ar da graa.Quem era bicho-papo ficou barrigudo.Quem era cheio de pneuzinhos, borrachudo.Quem no conseguiu pegar jacar virou mergulho.Quem era nervosinho pacas, um zango!Quem gostava de madeira virou bicho-carpinteiro.Quem dirigia mal pra burro, barbeiro!Quem no comprava no atacado, virou varejeira.Quem lavava roupa suja em casa, lavadeira.Virou quero-quero quem era pido.E serelepe, um mexilho.Virou maria-fedida quem vivia cheia de craca.Quem no entrava em barca furada, uma fragata.O calombo na cachola virou galo.E quem vivia enrabichado, namorado.Virou beija-flor quem namorou a rosa no quintal.Quem pisou na concha acstica, um coral.Virou truta aquele camarada, grande amigo.Quem soltava fogo pelas ventas, maarico.Virou centopeia o cheio de dedos.Mas quem vivia pregado continuou percevejo! Maria Amlia Camargo, autora deste conto, formada em Letras.19 Apenas uma ponte Chegara, enfim, o ltimo dia de aula. Havia sido uma longa trajetria at ali. Mas, agora, o professor observava com ternura os alunos sua frente, cada um voltado para seu caderno, fazendo a lio que colocaria ponto final no ano letivo. Ento, agarrado calmaria daquela hora, ele se recordou do primeiro encontro com o grupo. Todos o miravam com curiosidade, ansiosos por apanhar, como uma fruta, oconhecimento que imaginavam lhe pertencia. Nem tinham idia de que aprenderiam por si mesmos, e que ele, mestre, no era a rvore da sabedoria, mas apenas uma ponte que os levaria sua copa frondosa. Naquele dia, experimentara outra vez a emoo de se deparar com uma nova turma, e o que o motivava a ensinar, com tanta generosidade, era justamente o desafio de enfrentar esse mistrio. Sim, uma ponte. Uma ponte por onde transitassem os sonhos daquelas crianas, o movimento incessante de seus desejos, o ir e vir de suas dvidas, o vaivm do aprendizado em constante algaravia.Lembrou-se da dificuldade da Julinha nas operaes de multiplicar. O resultado correto era um territrio que ela nem sempre conseguia atingir. Mas, agora, a garota estava l, segura da direo que deveria tomar. Ele fizera a ponte. O que dizer da distncia entre o Jos e o Augusto no incio do ano, ambos se temendo em silncio, deixando de desfrutar da aventura de uma grande amizade? Com pacincia, ele os unira. Desdeento, no se desgrudavam. Podia v-los dali, de sua mesa, um ao lado do outro, concentrados em fazer a tarefa. J a Maria Slvia, dona de uma letra redondinha, ainda h pouco lhe dera um sorriso. Antes, contudo, vivia irritada, a letra sem apuro, s garranchos. Fizera a ponte para ela. Mateus, sua frente, detestava Cincias e fugia das aulas no laboratrio. Talvez porque s via dificuldade na travessia e no as maravilhas que o esperavam no outro extremo. O professor estendera-lhe a mo e o conduzira, at que, subitamente, ele se tornara o melhor aluno naquela matria. Tinha tambm a Alessandra, to silenciosa e tmida. Ia bem nos primeiros meses e, depois, o rendimento cara. Ele descobrira que os pais dela viviam em conflito. Alertara-os para que dessem mais afeto filha, e eis que ela florescera, voltando a ser uma boa aluna.E l estava, nas ltimas fileiras, o Lus Fbio. Notara suas limitaes e construra uma ponte especial para ele, mas o menino no conseguira atravess-la. Era assim: para alguns, bastavam uns passos; para outros, o percurso se encompridava. 20 O professor suspirou. Fizera o seu melhor. Lembrou-se das palavras de Guimares Rosa: "Ensinar , de repente, aprender".Sim, aprendera muito com seus alunos. Inclusive aprendera sobre si mesmo. Aquelas crianas haviam, igualmente, ligado pontos em sua vida. Agora, seguiriam novos rumos. Haveriam de encontraroutras pontes para superar os abismos do caminho.Ele permaneceria ali, pronto para levar uma nova classe at a outra margem. E o tempo, como um viaduto, haveria de conduzi-lo emoo desse novo mistrio. Conto de Joo Anzanello CarrascozaIlustrado por Milton Trajano Casa de V Beatriz Vichessi Ilustrao: Mateus Rios Todo av toma remdio, usa dentadura e tira soneca depois do almoo. O meu, no.No toma plula nem xarope. E, tarde, fica acordado, brincando comigo. Dentadura? Isso ele usa. Mas, de resto, diferente.Minha av tambm no igual as outras. Enquanto toda av borda e faz bolo de chocolate, ela s costura para fazer remendos nas roupas e s cozinha no fim de semana. E quase nunca est em casa. De cala comprida (enquanto todas as avs do mundo usam saia), sai cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos.Da, o guarda-roupa dela vira elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos para vov encostar as portas e, como ascensorista, anunciar:- Primeiro andar! Roupas e bonecas. Segundo andar! Balas de goma, mveis e crianas perdidas...A parede da sala transformada em galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe e, o tapete, em 21 tablado de exposio de botes raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal.Ao cair da tarde, na garagem vazia, enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos, uivos e risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo cho. a brincadeira do Pisei.- H? Como assim?, pergunto. Essa nova.Vov explica sua inveno:- Memorize onde esto os papis. Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles. Pode ir perguntando "Pisei?" para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais pedaos.Eu comeo.- Pisei?, pergunto, dando o primeiro passo, apertando os olhos.- No!- Pisei?, insisto mais uma vez, depois de caminhar um tiquinho.- No!Ouo um barulho de chaves. Vov chega, cansada, do trabalho. Diz "Oi". Sei que para mim, mas no posso abrir os olhos para responder. quebra de regra.- Tudo bem, v? Quer brincar de Pisei?, convido.- Agora, no, minha riqueza. Vov vai descansar.Vov continua a me guiar, j sentado na cadeira de praia, lendo o jornal. No vi, mas escutei o barulho dela sendo armada e das folhas nas mos dele.Sigo.- Pisei?- Pisei?- Pisei?E nada.Sinto meus ps tropearem em algo. Abro os olhos. Vov, a minha frente, de braos abertos, pronto para um abrao de vitria.- Mas eu no pisei em nenhum papelzinho, v, digo, meio desanimada, mas j engalfinhada e feliz, nos braos dele.- O vento foi levando tudo para o cantinho do porto, ele explica, sorrindo.- E por que o senhor no me avisou? A gente poderia ter colado os pedacinhos no cho e recomeado...- Porque eu queria que a brincadeira terminasse com voc perto de mim. Beatriz Vichessi, autora deste conto, editora-assistente de NOVA ESCOLA. 22 Aprendizagem - Me, cabelo demora quanto tempo pra crescer?- H?- Se eu cortar meu cabelo hoje, quando que ele vai crescer de novo?- Cabelo est sempre crescendo, Beatriz. que nem unha.A comparao deixa a menina meio confusa. Ela no est preocupada com unhas.- Todo dia, me?- , s que a gente no repara.- Por qu?- Porque as pessoas tm mais o que fazer, no acha?A menina no sabe se essa uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou daquelas que a gente ouve e pronto. Prefere no responder.- Voc muito ocupada, no , me?- H?- Nada, no.A me termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armrio.Enquanto isso, Beatriz corre at o quartinho de costura, pega a fita mtrica e mede novamente o cabelo da boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da me, mas a verdade que ficou meio torto."Nada, no cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E j tem uma semana!Depois volta para onde est a me, que agora lustra os mveis.- Me, existe alguma doena que faz o cabelo da gente no crescer?23 - Mas de novo essa conversa de cabelo! No tem outra coisa pra pensar no, criatura?Sobre essa pergunta no h dvida: do tipo que voc no deve responder.A me continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoo nem est pronto ainda.- Me!- O que foi?- que eu estava aqui pensando.- Pensando o qu?Beatriz no responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas.- Vai, fala logo.- Quando a gente faz uma coisa, sabe, e no d mais para voltar atrs, entendeu?- No, no entendi.Ela abaixa a cabea, d um tempinho e resolve arriscar:- Ento, se voc no entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo?- Ai, meu Deus!Beatriz deixa a me trabalhando e vai procurar de novo sua boneca.Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela:- No liga, no. Cabelo de boneca assim mesmo, cresce devagar, viu?E com um carinho:- Foi minha me que me ensinou. Flvio Carneiro, autor deste conto, roteirista, ensasta e professor de Literatura. Tem 11 livros publicados, dentre eles, A Distncia das Coisas (Editora SM), vencedor do III Prmio Barco a Vapor. Ilustrao: Eva Uviedo Dona Licinha 24 A senhora no me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas... A senhora ensinava na 3a srie B e eu era aluna da 3 srie C no Grupo Escolar do Tatuap... Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianas da srie B...Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silncio quebrado por uma voz suave...era hora de contar histrias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia... Tambm muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontao inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos.A sua sala era colorida com desenhos das crianas, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da Histria do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza!Nunca ouvi berros, um "Cala boca", "Aqui quem manda sou eu" e outras mansides que a minha professora dizia sem cansar. No escutei ameaas de provas de sopeto, castigos, dobro da lio de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo...Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a srie. No fui... Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Tambm duma 3a srie. Agora sou sua colega... S no esqueo que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranas, sem chateaes, sem forar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Tambm quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraante.Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por dcadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas.Um abrao apertado, cheinho de gostosuras, da Cia Conto de fanny AbramovichIlustrado por Carlo Giovani Foto de Leo Feltran 25 Siri, Beb, Corda Milu Leite Ilustrao Yumi Fujita L em casa mora um siri. No fui eu que trouxe, no.Ele veio me seguindo pela praia. Atravessou a rua, desviou dos carros. Eu s espiava. Ele vinha atrs.O siri no tem cama. Dorme na tigela de comida do cachorro.E o cachorro tem medo do siri porque j levou um belisco no focinho.Eu no sei o que o siri come, nem o que ele bebe.Mas ele continua vivo e mora nessa casa faz tempo. Acho at que engordou.Minha me tambm engordou.Eu perguntei para minha me:- O que tem a dentro da sua barriga?Ela respondeu com uma cara toda feliz:- Um beb. Seu irmo.Eu fiquei lembrando do siri e fiz outra pergunta:- Ser que o siri tambm tem um beb na barriga?Minha me fez cara de quem no sabia o que dizer. Mas disse:- Ah, siri no. Siri pe ovo.- E voc no pe?- Claro que no!- Voc tem certeza que o beb t dentro da sua barriga, me?- Tenho, filho.- E por que voc comeu ele?Minha me deu uma gargalhada. Me abraou bem comprido e disse que ia me explicar tudo, tintim por tintim, mais tarde.Ela falou assim: tintim por tintim.Ento, eu me esqueci do siri, do beb e s pensei:"Tintim o barulho que os copos fazem quando os adultos batem um contra o outro em dia de festa!" A comecei a lembrar do meu aniversrio...Por que ser que meu pensamento pensa desse jeito?Quer dizer, por que ele fica pulando de uma idia para outra sem parar?Alis, por falar em pular...Algum quer pular corda comigo? Quem quem Milu Leite, autora deste conto, jornalista. Nasceu em So Paulo e mora em Florianpolis desde 1999. Estreou na literatura com o livro O Dia em Que Felipe Sumiu (80 pgs., Ed. CosacNaify, tel. [11] 3218-1444, 30 reais), que lhe valeu o terceiro lugar no Prmio Jabuti 2006 na categoria juvenil.26 Yumi Fujita Taminato, que ilustrou esta pgina, nasceu em Itatiaiuu (MG) e mora em So Paulo h sete anos. Formada em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, cursou especializao em escultura na Universidade de So Paulo. E vem o Sol Joo Anzanello Carrascoza Ilustrao: Odilon Moraes Tinham acabado de se mudar para aquela cidade. Passaram o primeiro dia ajeitando tudo. Mas, no segundo dia, o homem foi trabalhar, a mulher quis conhecer a vizinha. O menino, para no ficar s num espao que ainda no sentia seu, a acompanhou.Entrou na casa atrs da me, sem esperana de ser feliz. Estava cheio de sombras, sem os companheiros. Mas logo o verde de seus olhos se refrescou com as coisas novas: a mulher suave, os quadros coloridos, o relgio cuco na parede. E, de repente, o susto de algo a se enovelar em sua perna: o gato. Reagiu, afastando-se. O bichano, contudo, se aproximou de novo, a maciez do plo agradando. E a mo desceu numa carcia.O menino experimentou de fininho uma alegria, como sopro de vento no rosto. J se sentia menos solitrio. No vigorava mais nele, unicamente, a satisfao do passado. A nova companhia o avivava. E era apenas o comeo. Porque seu olhar apanhou, como fruta na rvore, uma bola no canto da sala. Havia mais surpresas ali. Ouviu um som familiar: os pirilins do videogame. E, em seguida, uma voz que gargalhava. Reconhecia o 27 momento da jogada emocionante. Vinha l do fundo da casa o convite. O gato continuava afofando-se nas suas pernas. Mas elas queriam o corredor. E, na leveza de um pssaro, o menino se desprendeu da me. Ela no percebeu, nem a dona da casa. S ele sabia que avanava, tanta a sua lentido: assim o imperceptvel dos milagres.Enfiou-se pelo corredor silencioso, farejando a descoberta. Deteve-se um instante. O rudo ldico novamente atraiu o menino. A voz o chamava sem saber seu nome.Ento chegou porta do quarto - e l estava o outro menino, que logo se virou ao dar pela sua presena. Miraram-se, os olhos secos da diferena. Mas j se molhando por dentro, se amolecendo. O outro no lhe perguntou quem era nem de onde vinha. Disse apenas: quer brincar? Queria. O Sol renasceu nele. H tanto tempo precisava desse novo amigo. Conto de Joo Anzanello Carrascoza, ilustrado por Odilon Moraes Folhas Secas Francisco Marques (Chico dos Bonecos) Ilustrao: Ivan Zigg Eu estava dando uma aula de Matemtica e todos os alunos acompanhavam atentamente. Todos? Quase. Carolina equilibrava o apontador na ponta da rgua, Lucas recolhia as borrachas dos vizinhos e construa um prdio, Renata conferia as canetas e os lpis do seu estojo vermelhssimo e Hlder olhava para o ptio. O ptio? O que acontecia no ptio? 28 Aps o recreio, dona Natlia varria calmamente as folhas secas e amontoava e guardava tudo dentro de um enorme saco plstico azul. Terminando o varre-varre, dona Natlia amarrou a boca do saco plstico e estacionou aquele bafu de folhas secas perto do porto. Hlder observava atentamente. E eu observava a observao de Hlder - sem descuidar da minha aula de Matemtica. De repente, Hlder foi arregalando os olhos e franzindo a testa. Qual o motivo do espanto? Hlder percebeu alguma coisa no meio das folhas movendo-se deseperadamente, com aflio, sufoco, falta de ar. Hlder buscava interpretaes para a cena, analisava possibilidades, mas o perfil do passarinho j se delineava na transparncia azul do plstico. Um pssaro novo caiu do ninho e foi confundido com as folhas secas e foi varrido e agora lutava pela liberdade. - Ele t preso! O grito de Hlder interrompeu o final da multiplicao de 15 por 127. Todos os alunos olharam para o ptio. E todos ns concordamos, sem palavras: o bico do passarinho tentava romper aquela estranha pele azul. Hlder saiu da sala e ns fomos atrs. E antes que eu pudesse pronunciar a primeira slaba da palavra "calma", o saco plstico simplesmente explodiu, as folhas voaram e as crianas pularam de alegria. Alguns alunos dizem que havia dois passarinhos presos. Outros viram trs passarinhos voando felizes e agradecidos. Lucas diz que era um beija-flor. Renata insiste que era uma cigarra. Eu, sinceramente, s vi folhas secas voando. Para concluir esta inesquecvel aula de Matemtica, pegamos vassouras, ps e sacos plsticos e fomos varrer novamente o ptio. Conto de Francisco Marques (Chico dos Bonecos), ilustrado por Ivan Zigg. 29 Lado a lado, bem bolado Pedro Bandeira Ilustrao: Daniel Bueno Ricardinho andava sem sorte. Acho at que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-mpar dez vezes seguidas, perderia todas.O caso que ele tinha aprendido que "em cima" se escreve separado e "embaixo" se escreve junto. Mas, na hora de escrever suas redaes, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrrio.Foi queixar-se pra Vov. Afinal, a Vov tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de todas as coisas.- fcil, Ricardinho - ensinou a Vov. - Levante a mo esquerda, bem aberta.- Assim?- No. Essa a direita.- Ento essa?- claro, voc s tem duas, no ? A mo esquerda a que fica do lado do corao.- E de que lado fica o corao?- Do lado dessa pintinha que voc tem no rosto.- Ah, ficou fcil! Mas o que tem a ver mo esquerda levantada com "em cima" e "embaixo"?- Veja, querido: seus dedos, "em cima", esto separados e, "embaixo", eles esto juntos, grudados na palma, no esto? Quando voc ficar em dvida, s levantar a mo aberta, que voc nunca mais vai errar! "Em cima" sempre separado e "embaixo" sempre junto!Ricardinho achou genial a idia da Vov. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque 30 para o Adriano, seu melhor amigo na 1 srie.- T vendo, Adriano? s levantar a mo esquerda e...- No vai dar certo - respondeu o amigo.- Por que no?- Porque, se eu levantar a mo esquerda, como que eu vou escrever? Eu sou canhoto!- Bom, ento levante a direita, que d no mesmo.- E como que eu sei qual a direita?- fcil. Eu, por exemplo, sei que a minha mo esquerda esta, que est do lado da pintinha que eu tenho na cara.- Mas eu no tenho pintinha nenhuma na cara - discordou o Adriano.Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou achando mais fcil saber que a mo esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era... bom, era a outra!Conto de Pedro Bandeira, ilustrado por Daniel Bueno Lpida Carla Caruso Ilustrao: Beto e Andra Tudo lento, parado, paralisado.- Maldio! - dizia um homem que tinha sido o melhor corredor daquele lugar.- Que tristeza a minha - lamentava uma pequena bailarina, olhando para as suas sapatilhas cor-de-rosa.Assim estava Lpida, uma cidade muito alegre que no passado fora reconhecida pela leveza e agilidade de seus habitantes. Todos muito fortes, andavam, corriam e nadavam pelos seus limpos canais.31 At que chegou um terrvel pirata procura da riqueza do lugar. Para dominar Lpida, roubou de um mago um elixir paralisante e despejou no principal rio. Aps beberem a gua, os habitantes ficaram muito lentos, to lentos que no conseguiram impedir a maldade do terrvel pirata. Seu povo nunca mais foi o mesmo. Lpida foi roubada em seu maior tesouro e permaneceu estagnada por muitos anos.Um dia nasceu um menino, que foi chamado de Zim. O nico entre tantos que ficou livre da maldio que passara de gerao em gerao. Diferente de todos, era muito gil e, ao crescer, saiu em busca de uma soluo. Encontrou pelo caminho bruxas de olhar feroz, gigantes de trs, cinco e sete cabeas, noites escuras, dias de chuva, sol intenso. Zim tudo enfrentou.E numa noite morna, ao deitar-se em sua cama de folhas, viu ao seu lado um velho de olhos amarelos e brilhantes. Era o mago que havia sido roubado pelo pirata muitos anos antes. Zim ficou apreensivo. Mas o velho mago (que tudo sabia) deu-lhe um frasco. Nele havia um antdoto e Zim compreendeu o que deveria fazer. Despejou o lquido no rio de sua cidade.Lpida despertou diferente naquela manh. Um copo de gua aqui, um banho ali e eram novamente braos que se mexiam, pernas que corriam, saltos e sorrisos. E a dana das sapatilhas cor-de-rosa. Conto de Carla Caruso, ilustrado por Beto e Andra Memrias de uma infncia qumica Oliver Sacks Ilustrao: Marcelo Hardt Muitas das minhas lembranas da infncia tm relao com metais: eles parecem ter exercido poder sobre mim desde o incio. Destacavam-se em meio heterogeneidade do mundo por seu brilho e cintilao, pelos tons prateados, pela uniformidade e peso. Eram frios ao toque, retiniam quando golpeados.32 Eu adorava o amarelo do ouro, seu peso. Minha me tirava a aliana do dedo e me deixava peg-la um pouco, comentando que aquele material se mantinha sempre puro e nunca perdia o brilho. "Est sentindo como pesado?", ela acrescentava. "Mais pesado at do que o chumbo". Eu sabia o que era chumbo, pois j segurara os canos pesados e maleveis que o encanador uma vez esquecera l em casa. O ouro tambm era malevel, minha me explicou, por isso, em geral, o combinavam com outro material para torn-lo mais duro.O mesmo acontecia com o bronze. Bronze! - a palavra em si j me soava como um clarim, pois uma batalha era o choque valente de bronze contra bronze, espadas de bronze em escudos de bronze, o grande escudo de Aquiles. O cobre tambm podia ser combinado com zinco para produzir lato, acrescentou minha me. Todos ns - minha me, meus irmos e eu - tnhamos nosso menor de bronze para o Hanuc. (O de meu pai era de prata.)Eu conhecia o cobre - a reluzente cor rsea do grande caldeiro em nossa cozinha era cobre; o caldeiro era tirado do armrio s uma vez por ano, quando os marmelos e as mas cidas amadureciam no pomar e minha me fazia gelias com eles.Eu conhecia o zinco - o pequeno chafariz fosco e levemente azulado onde os pssaros se banhavam no jardim era feito de zinco; e o estanho - a pesada folha-deflandres em que eram embalados os sanduches para piquenique. Minha me me mostrou que, quando se dobrava estanho ou zinco, eles emitiam um "grito" espacial". "Isso devido deformao da estrutura cristalina", ela explicou, esquecendo que eu tinha 5 anos e por isso no a compreendia - mas ainda assim suas palavras me fascinavam, faziam-me querer saber mais.Havia um enorme rolo compressor de ferro fundido no jardim - pesava mais de 200 quilos, meu pai contou. Ns, crianas, mal conseguamos mov-lo, mas meu pai era fortssimo e conseguia ergu-lo do cho. O rolo estava sempre um pouco enferrujado, e isso me afligia - a ferrugem descascava, deixando pequenas cavidades e escamas -, porque eu temia que o rolo inteiro algum dia se esfarelasse pela corroso, se reduzisse a uma massa de p e flocos avermelhados. Eu tinha necessidade de ver os metais como estveis, como o ouro - capazes de resistir aos danos e estragos do tempo. Trecho do livro Tio Tungstnio - Memrias de uma Infncia Qumica, de Oliver Sacks (Ed. Companhia das Letras, 2002), ilustrado por Marcelo Hardt 33 Minha chupeta virou estrela Januria Alves Ilustrao: Ionit Ziberman Eu me chamo Pedro e tenho 7 anos. Eu tenho uma estrela, sabe?Uma estrelona, linda, que est l no cu, brilhando, todos os dias.Quando eu tinha 3 anos, para salvar meu dente da frente que ficou mole porque eu ca de boca brincando na gangorra da escola, minha dentista me disse que... EU TERIA QUE PARAR DE USAR A MINHA QUERIDA CHUPETA VERDE!- A chupeta ou o dente! - ela me mandou escolher.Bom, eu nem quis ouvir direito essa proposta to maluca! A doutora Virgnia e a minha me tentaram conversar comigo, explicar por que era importante eu no perder um dente to cedo e... nada. Eu s olhava com o olho mais comprido do mundo para a chupeta verde, minha companheira do sono mais gostoso do mundo! Como dormir sem ela?Na primeira noite em que fiquei sem a minha querida chupeta, s lembro de sentir o cheiro da minha me, que me carregou no colo enquanto papai dirigia nosso carro, passeando em frente ao meu parque preferido pra ver se eu enfim conseguia pegar no sono...No dia seguinte fui com minha me e meu irmo ao parque e levei po para dar aos patos que moram num lago bem bonito que tem l. Um pato maior e mais cinza que os outros me chamou a ateno. Ele veio vrias vezes comer po na minha mo e eu gostei dele. Parecia o patinho feio da histria que meu pai sempre 34 contava antes de eu dormir.Mame chegou perto de ns e disse que aquele era mesmo um pato especial. Ele costumava tomar conta das chupetas de alguns meninos. E fazia isso muito bem: ele transformava todas em estrelas! Superlegal!Pus o nome naquele pato de Pato Po. Eu no queria perder nem o meu dente nem a minha chupeta... Talvez o Pato Po fosse a soluo para o meu problema! Ento... resolvi dar a minha chupeta verde para ele. Ele pegou minha chupeta verde com o bico e atirou longe, no lago. Eu fiquei olhando para ela boiando, boiando... at desaparecer... Na hora de entregar a minha chupeta verde, mesmo para um pato to especial como o Pato Po, eu segurei bem forte a mo da minha me e a do meu irmo!Enquanto a minha chupeta verde ia embora no lago, pensei que naquela noite ela no ia estar embaixo do meu travesseiro. Eu teria que ir at a janela se quisesse dar uma espiada nela.Quando a noite apareceu, meu pai chegou do trabalho e se deitou na cama comigo, olhando pro cu, procurando a minha estrela-chupeta verde. Eu vi primeiro e ns dois batemos palmas pra ela! A eu s me lembro de adormecer com aquele brilho de estrela no meu olho e a sensao do abrao enorme do meu pai.Todas as vezes em que penso na minha chupeta, olho pro cu, procurando a estrela-chupeta verde. Agora, a saudade, em vez de crescer como eu, fica menor a cada noite. Deve ser porque meninos grandes gostam mais de estrelas no cu do que de chupetas, eu acho. Conto de Januria Alves, ilustrado por Ionit Ziberman Moinho de Sonhos Joo Anzanello Carrascoza Ilustrao: Martha Werneck.35 A mulher e o menino iam montados no cavalo; o homem ia ao lado, a p. Andavam sem rumo havia semanas, at que deram numa aldeia beira de um rio, onde as oliveiras vicejavam.Fizeram uma pausa e, como a gente ali era hospitaleira e a oferta de servio abundante, resolveram ficar. O homem arranjou emprego num moinho prximo aldeia. A mulher se juntou a outras que colhiam azeitonas em terras ao redor de um castelo. Levou consigo o menino que, no meio do caminho, achou um velho cabo de vassoura e fez dele o seu cavalo. Deu-lhe o nome de Rocinante.Ao chegar aos olivais, o pequeno encontrou o filho de outra colhedeira - um garoto que se exibia com um escudo e uma espada de pau.Os dois se observaram distncia. Cada um se manteve junto sua me, sem saber como se libertar dela. Vigiavam-se. Era preciso coragem para se acercar. Mas meninos so assim: se h abismos, inventam pontes.De sbito, estavam frente a frente. Puseram-se a conversar, embora um e outro continuassem na sua. Logo esse j sabia o nome daquele: o menino recm-chegado se chamava Alonso; o outro, Sancho.Comearam a se misturar:- Deixa eu brincar com seu cavalo?, pediu Sancho.- S se voc me emprestar sua espada, respondeu Alonso.Iam se entendendo, apesar de assustados com a felicidade da nova companhia.Avanaram na entrega:- T vendo aquele moinho gigante?, apontou Alonso. Meu pai sozinho que faz ele girar.- Seu pai deve ter braos enormes, disse Sancho.- Tem! Mas nem precisava, respondeu Alonso. Ele move o moinho com um sopro.Sancho achou graa. Tambm tinha uma proeza a contar:- T vendo o castelo ali?, apontou. Meu pai disse que o dono tem tanta terra que o cu no d para cobrir ela toda.- E se a gente esticasse o cu como uma lona e cobrisse o que est faltando?, props Alonso.- Seria legal, disse Sancho. Mas ia dar um trabalho.- Temos de crescer primeiro.- Bom, enquanto a gente cresce, vamos pensar num jeito de subir at o cu! - disse Alonso.- Vamos!, concordou Sancho.Sentaram-se na relva. O cavalo, a espada e o escudo entre os dois. Um sopro de vento passou por eles.J eram amigos: moviam juntos o mesmo sonho. Joo Anzanello Carrascoza Autor deste conto, publicitrio, professor da Universidade de So Paulo (USP)e autor de livros infantis, entre eles, Aprendiz de Inventor (Ed. tica). 36 No somos figurinhas Claudia Werneck Ilustrao: Orlando Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Famlia, padrinhos, vizinhos e professores no conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus iguais."Mas o problema justamente esse", gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o plo macio de seu gato magro, branco e preto - o Bandido. "No somos iguais, no somos iguais, tudo mentira. Eu olho para a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tat e s vejo diferenas."Os adultos se entreolhavam desanimados e pediam mais explicaes. "Como diferentes, minha filha? Somos seres humanos, gente igual a voc, iguais entre ns: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma lngua, um crebro, dez dedos na mo, dez no p..."Bandido no estava nem a para aquela conversa sempre to bvia. Entediado, deu um pinote, abandonando o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurana, ouviu sair dos lbios dela, tambm como um pinote, algo que a garota nunca havia dito: "E quem no tem duas pernas? Ou no escuta? Ou tem dois olhos, mas um de vidro? Ou muito feio? A no gente? Para ser gente no basta nascer? E os bebs, no so diferentes? Por que vocs insistem em me convencer de que somos iguais? Gente no como figurinha, que ns arrumamos em fila, deixando de lado as amassadas e as rasgadas para decidir o que fazer com elas depois".Bandido estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina no tinha medo de gente. Acuada, sofria por outras razes. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento dos adultos.Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angstia para os pais, ela experimentou uma sensao 37 nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez, sentia prazer em ser gente. Dedicou um ltimo olhar de amor para Bandido e seguiu pela rua. Conto de Claudia Werneck, ilustrado por Orlando Nem Tudo O Que Seu Mestre Mandar! Rosane Pamplona Ilustrao: Cris Burger.Xang era um sbio chins. Seus alunos aceitavam seus ensinamentos sem pestanejar:- Sim, mestre!- Eu ouo e obedeo, mestre!Um dia, Xang resolveu fazer uma viagem com trs dos seus fiis alunos. Instalaram-se numa carroa puxada por dois burrinhos e l se foram: nhec, nhec. Xang, j velhinho, logo sentiu sono. Tirou as sandlias e pediu aos jovens:- Por favor, me deixem dormir! Fiquem bem quietos!Dali a pouco roncava. Na primeira curva do caminho, as sandlias dele rolaram pela estrada. Os discpulos nem se mexeram. Quando o mestre acordou, logo as procurou.- Rolaram pela estrada - disseram.- E vocs no pararam a carroa? No fizeram nada?- Fizemos sim, senhor. Obedecemos: ficamos bem quietos.- Ai, est bem - conformou-se o mestre. Mas se eu cochilar de novo prestem ateno se alguma coisa cair da carroa, ouviram?- Ouvimos e obedecemos!Xang cobriu os ps com uma coberta e adormeceu. Entretanto, no balanar da carroa, a coberta deslizou e l se foi. O mestre acordou com frio. Mas cad a coberta? Ser que...- Escorregou pela estrada - confirmaram os trs.- E o que vocs fizeram?38 - Fizemos s que o mestre mandou. Prestamos ateno.- No! - esbravejou Xang. Vocs tinham de pegar a coberta de volta! Ateno: se eu dormir e alguma coisa cair da carroa, peam para parar e PONHAM-O-QUE-CAIU-DE-VOLTA-NA-CARROA, entendido?- PERFEITAMENTE!E a viagem continuou: nhec, nhec. O mestre foi cabeceando e cochilou. Dali a pouco, os jumentos sentiram necessidade de fazer... suas necessidades. Ploft, ploft, ploft, caram os cocozinhos pelo caminho. Os discpulos mandaram parar a carroa e, com muito cuidado, foram pondo os fedidos pelotinhos para dentro. Aquela agitao fez Xang acordar. Nossa, que cheirinho!- Esperem! O que esto fazendo?- Apenas obedecendo! - juraramos trs. - Pondo de volta o que caiu da carroa.- No, mas isso no!Ai, com aqueles cabeas-duras, s mesmo muita pacincia:- Est bem, vamos comear de novo. Vou fazer uma lista de tudo o que h na carroa. Se algo cair, verifiquem se est nela. Se no estiver, no peguem de volta, certo?- Somos pura obedincia, , mestre!Xang escreveu a lista. Que canseira! Mas agora podia dormir tranquilo... E a carroa subiu uma estradinha ngreme. Numa curva mais fechada, ops, quem que caiu dessa vez? O mestre! Ele escorregou e se foi ribanceira abaixo.- Socorro! - gritou - Venham me pegar!Graas aos cus ele conseguiu se agarrar numa raiz do barranco.- Ei, o que esto esperando? Me ajudem! - chamou.Mas os discpulos, imperturbveis, consultavam a lista.- Seu nome no est escrito aqui - explicaram. - No podemos peg-lo, , mestre!No teve jeito: Xang, com muito esforo, subiu o barranco e voltou para a carroa. Mas no dormiu mais... Rosane Pamplona, autora deste conto, contadora de histrias e professora de Lngua Portuguesa. 39 O amigo de Juliana Eva Furnari Ilustrao: Eva Furnari Juliana tinha um amigo chamado Fungo. Ele morava na casa de bonecas e conseguia at ajeitar-se bem nas pequenas cadeiras e na caminha azul, apesar de ser mais gordo que elas. Fungo era talentoso. Escrevia poemas, histrias e desejava ser um grande escritor, porm sentia falta de um mestre. Juliana, definitivamente, no podia ser esse mestre, pois prendera a escrever havia pouco tempo. Alm do mais, ultimamente a amizade deles andava estremecida, porque Juliana dava mais ateno s bonecas que a ele. Fungo no entendia qual era a graa que ela via naquelas bonecas mudas, sem cultura e sem entimentos. Fungo suspeitava que fossem mesmo burras, principalmente aquele boneco Tob, que parecia uma montanha de msculos inteis, pois nem se trocar sozinho ele sabia. Era uma dependncia total, um vexame, e Juliana que precisava troc-lo toda vez. Numa certa madrugada, em que Fungo estava sem sono, viu jogado no cho o caderno de Juliana com uma redao assim: 40 Fungo leu e achou pobre, mal escrito, com cinco erros de portugus, alm da falta de estilo. Num ato de ousadia arrancou a pgina e reescreveu a redao do jeito que ele achava que ficava melhor: Fungo foi dormir orgulhosssimo de sua redao, feliz com a chance de receber comentrios da professora de Portugus de Juliana, essa, sim, uma verdadeira mestra. No dia seguinte, a amiga voltou furiosa da escola e proibiu Fungo de escrever uma linha que fosse em seus cadernos, pois os colegas da classe tinham achado que ela estava maluca por escrever tais bobagens. Chateado, Fungo recolheu-se sua casinha e esperou anoitecer. Quando Juliana finalmente adormeceu, ele foi silenciosamente at a mochila, apanhou o caderno da menina e leu o comentrio da professora: Redao muito criativa, cheia de imaginao e bem escrita, precisa apenas caprichar mais na letra. Nota dez. Fungo adorou, achou o mximo e pensou at em entrar para a escola. Claro, s quando a Juliana se acalmasse. Talvez pudesse ficar na classe dentro da mochila, j que os adultos com certeza no iriam entender um monstro culto como ele querendo assistir aula.Conto de Eva Furnari, ilustrado pela autora. 41 Nino quer um amigo Katia Canton Ilustrao: Srgio Ramos Nino, por que voc est sempre to srio e cabisbaixo?Nino vivia triste. Ele se sentia sozinho. Ningum queria ser amigo dele.Pobre Nino.Um dia, na praia, ele ficou esperanoso de encontrar um amigo.- Ah, um menino. Quem sabe..., e tentou chegar perto dele.Mas o menino virou para o lado, cavou um buraco.E ainda jogou areia no Nino.Coitado dele.Outro dia, na escola, ele tentou puxar conversa com uma colega de turma. Olhou para a menina, que era toda sardenta, uma graa. Esboou um sorriso e tentou puxar assunto.Mas estava to acostumado a ficar calado e srio que as palavras demoraram a sair de sua boca.A menina bonitinha desistiu de esperar que ele dissesse alguma coisa. Virou-se de costas e foi brincar com uma amiga.Tadinho do Nino.Nem os animais pareciam querer ser seus amigos.Uma tarde, Nino viu um menino com um co passeando na praa.42 Ficou com vontade de agradar o cachorro, mas ficou com medo de que ele mordesse.Fez um agrado bem tmido.O co nem a para ele.Que pena, Nino.At que um dia, ele tinha desistido de procurar.Pensando em por que, quanto mais tentava encontrar um amigo, mais sozinho se sentia...Ficou distrado, pensando, e adormeceu.Quando acordou, olhou-se no espelho.Enquanto escovava os dentes, percebeu que fazia muitas caretas.Achou engraado. Enxaguou a boca e continuou brincando com o espelho.Era riso daqui, riso de l. Era lngua do Nino e lngua do espelho. Piscadela aqui, piscadela ali. Comeou ali uma verdadeira folia. Era um jogo de reconhecimento entre Nino e sua imagem no espelho. E no que Nino era bem engraadinho? Ele mesmo nunca tinha reparado nisso antes.Que cara legal era o Nino.Que garoto charmoso, bem-humorado!Nino ficou encantado com seu espelho.Fez-se ali uma grande amizade.E depois dessa amizade surgiram muitas outras.Nino hoje um cara cheio de grandes amigos. Incluindo ele mesmo.Valeu, Nino. Conto de Katia Canton, ilustrado por Srgio Ramos O amigo secreto - Regina Chamlian Ilustrao: Alexandre Dubiela 43 A turma reuniu-se na sala enfeitada. Martinha carregava um pacote enorme, cheio de laos. Suzana e Antnio conversavam animados. Mariana pediu para Juju comear a brincadeira. Cada um devia explicar antes por que escolhera o presente para seu amigo secreto.Quando Juju terminou de falar, um tnis, que mais parecia uma nave espacial, foi parar nas mos de Felipe. Este contou por que comprou o CD importado para o Lus. Que explicou por que escolheu a bermuda de surfista para o Bruno. Bruno! a turma gritou. Agora voc!Bruno ps-se a falar: Bom, pessoal, o seguinte: na primeira semana de dezembro, j tarde da noite, l em casa, ouvimos um grito de filme de terror.Todo mundo saltou da cama: "O que foi? O que foi?" Minha me apontou, soluando: "A ge-la-de-dei-ra! Ela que-que-brou!""O tcnico avisou que, se ela enguiasse de novo, j era", disse meu pai."No fao questo de geladeira", minha irm falou. "O que no d ficar sem computador."A, minha me disse: "Se a gente fosse esquim, jogava a caa sobre a neve, cobria com gravetos pros lobos no roubarem e pronto. Mas, em pleno vero brasileiro, geladeira prioridade. Precisamos comprar uma nova imediatamente"."E da?", minha irm perguntou."E da que o mesmo dinheiro no sai da mesma carteira duas vezes", disse meu pai."Ento o computador danou?!", eu perguntei.Meu pai respondeu: "O computador e outras coisinhas. Nossa geladeira dplex, custa mais"."E o presente do amigo secreto", minha irm lembrou mais que depressa."Bolem um presente criativo e que no custe nada", falou meu pai. Foi a que eu tive a idia continuou Bruno, abrindo a mochila e tirando de l um pequeno pacote. Espero que meu amigo secreto goste. Ele o Rafa. A, Rafa! Vai l! gritou a turma.Rafa comeou a abrir o pacote. O silncio era total. No acredito que voc guardou esta foto, cara! Que idade a gente tinha? Mostra! Mostra!E a foto emoldurada de Bruno e de Rafa, quando tinham 6 anos de idade, foi passando de mo em mo. O maior sucesso. Puxa, Bruno. S faltou uma coisa disse Rafa. O qu? Um abrao, cara. Gosto de voc! Bom fim de ano! Conto de Regina Chamlian, ilustrado por Alexandre Dubiela 44 O ba secreto da vov Heloisa Prieto Ilustrao: Daniel Bueno Quando eu era menina e sentia medo, no lugar de chorar, ficava com raiva.Na noite em que descobri o ba de minha av, eu estava em Santos. Trovejava muito. Apavorada, comecei a gritar que odiava o mar. Foi quando minha av me chamou e disse.- Minha neta, voc sabia que eu tenho um ba cheio de segredos?- Como assim? Onde?- L no fundo da garagem.Pronto. Nada como a curiosidade para espantar o medo. Na garagem, vov o abriu e retirou de dentro dele uma espcie de rgua.- Voc sabe o que isso?- Uma rgua esquisita - respondi.- No, isso uma palmatria. Quem errasse na escola levava uma batida na palma da mo.- No acredito! E por que a senhora guardou este treco horrvel?- Pra lembrar que a gente precisa ser mais forte do que as injustias. Olhe... meu dedal preferido. Foi com ele que eu costurei esta roupa - e ela me mostrou um vestidinho com uma espcie de short por baixo.- Voc jogava tnis, vov?- No, isso um mai!- Voc nadava de vestido?- Sim, e era considerada atrevida. Mas foi assim que conquistei seu av.45 - Nadando de roupa?- Eu vinha de uma famlia pobre. Seu av, no. Ele lia, gostava de danar.- E de nadar tambm?- Sim, e por isso fiz este maiozinho. Corri at a praia de chapu. Seu av estava tomando sol. Fingi que tinha perdido o chapu no mar. Ele, como era um cavalheiro, veio me ajudar. O chapu foi parar no fundo. Ento apostamos uma corrida para ver quem o apanhava. Ele gostou da minha ousadia.- Foi assim que vocs comearam a namorar?- E logo me casei. Guardei o dedal pra lembrar que a gente precisa tecer a felicidade, e o mai, porque um pouco de coragem no faz mal a ningum. Olhe esta caixinha de msica. Seu av me deu quando voc nasceu. No linda?Vov mostrou para mim outros objetos e assim fui descobrindo que se no fosse o mar, que eu temia, no haveria o encontro de meus avs e que viver saber perder o medo de tudo o que a gente nunca espera e nunca vai conseguir controlar. Conto de Heloisa Prieto, ilustrado por Daniel Bueno O caso do espelho Ilustrao: Alarco Era um homem que no sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sap esquecida nos cafunds da mata.Um dia, precisando ir cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mos:- Mas o que que o retrato de meu pai est fazendo aqui?- Isso um espelho - explicou o dono da loja.46 - No sei se espelho ou se no , s sei que o retrato do meu pai.Os olhos do homem ficaram molhados.- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era s um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.- no! - respondeu o outro. - Isso o retrato do meu pai. ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?O homem quis saber o preo. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinhoNaquele dia, o homem que no sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.A mulher ficou s olhando.No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrs. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.- Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - o retrato de outra mulher! Meu marido no gosta mais de mim! A outra linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba mil vezes mais bonita e mais moa do que eu!- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no cho, no tinha feito nem a comida.- Que foi isso, mulher?- Ah, seu traidor de uma figa! Quem aquela jararaca l no retrato?- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.- Aquele mesmo que voc escondeu na gaveta da penteadeira!O homem no estava entendendo nada.- Mas aquilo o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mos no peito:- Cachorro sem-vergonha, miservel! Pensa que eu no sei a diferena entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?A discusso fervia feito gua na chaleira.- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.A me da moa morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criana que se perdeu e no consegue mais voltar pra casa.- Que isso, menina?- Aquele cafajeste arranjou outra!- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta l do quarto, me! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. T l! o retrato de outra mulher!47 A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.- S se for o retrato da bisav dele! A tal fulana a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu j vi at hoje!E completou, feliz, abraando a filha:- Fica tranqila. A bruaca do retrato j est com os dois ps na cova! Conto popular recontado por Ricardo Azevedo, ilustrado por Alarco O dicionrio de formas Ilustrao: Patricia Lima. Foto: Eduardo Delfim Era uma vez eu, Z Sorveteiro, que me apaixonei por uma princesa que acabara de chegar do outro lado da Terra. Bolei para ela um dicionrio de quatro palavras: bola, quadrado, retngulo, tringulo. Japons se escreve com desenhos. Com desenhos a princesa aprenderia portugus!No demorou, ela estava arrasando. Ia at meu carrinho e pedia, desenhando no ar:- Tringulo-bola.Sorvete na casquinha! O dicionrio funcionava s maravilhas.Eu? Mandava bilhetes. Desenhava um quadrado com um tringulo em cima e escrevia: casa!!! Caprichava nos pontos de exclamao. Casa!!! Casa!!! Fcil de entender: casa comigo.Mas toda princesa tem uma fera para encontrar bilhetes. Uma hora a fera mandou me chamar. AA eu transformei ponto de exclamao em sinal de aguaceiro:- Um trao com um pingo chuva. Trs - !!! - muita chuva. Casa, chuva, chuva, chuva. Estou s avisando 48 Cuidado com goteiras.Acabei subindo e limpando as calhas do telhado do futuro sogro e as de cada um de seus amigos e parentes.Hoje, 60 anos depois, repito, valeu a pena. E l vou eu apanhar uns tringulos vermelhos para a minha rainha arrumar no tringulo do retngulo do quadrado da frente. Perfeito. Daqui a pouco a jarra da mesa da sala estar toda perfumada com os Como mesmo? V l! Com os tringulos vermelhos. Conto de Angela Lago, ilustrado por Patricia Lima. Foto de Eduardo Delfim O Grande Encontro Silvana Tavano Ilustrao: Sandro Castelli Era uma vez um Autor com uma vaga ideia para uma nova histria. E como nessa histria tinha vaga de verdade para um grande Personagem, pensou em comear sua busca colocando um anncio no jornal."Procura-se um Personagem disposto a viver aventuras eletrizantes. No necessrio ter experincia no tema, mas algumas caractersticas sero especialmente consideradas: um certo preparo fsico, raciocnio rpido e personalidade carismtica." O primeiro candidato a se apresentar foi logo dizendo: - Participei de passagens importantes de muitos livros famosos, imortalizados por personagens estrelados. 49 - Ah, parabns! O senhor tem razo. Os grandes personagens no envelhecem. Mas, se entendi bem, o senhor nunca foi o protagonista desses enredos, certo? Enfim... uma pena, mas um coadjuvante de idade avanada no o que busco. Desculpe! Dois dias e muitas pginas amassadas depois, o Autor recebe outro candidato - um tipo muito sincero, mas bastante imaturo.-J passei por muitas imaginaes, mas...- Mas?-Nunca cheguei ao papel...- Ah...- Tenho muito potencial, mas...- Mas?- Preciso de algum que acredite em mim, que me decifre e me revele com todas as letras, entende?- Voc muito interessante. Mas... Na semana seguinte, com a cabea embaralhada e ainda sem um heri vista, o Autor comea a pensar em outras possibilidades e, repentinamente, tem uma grande ideia: e se o narrador transformasse a prpria aventura em Personagem? Animado, ele j ia colocar o texto em ao quando o telefone toca.- Bom dia. Posso falar com o Autor?- E o senhor ...?- O Personagem.- Ah, claro, o anncio...- Exato, o anncio. Muito bem escrito, por sinal.- ...?- Quantos livros o senhor publicou?- ... !?!- Al? Al, o senhor est na linha?- Sim... Claro, estou ouvindo... Continue, por favor!- Desculpe! Espero que no me leve a mal, mas preciso saber um pouco mais sobre o seu estilo, como o seu processo criativo, quais gneros o senhor domina, se tem livros premiados... que no me encaixo com naturalidade em qualquer texto. Tenho que sentir alguma consistncia literria, entende?O Autor experimentou vrios estados de esprito. No incio, ficou atnito. Mais que isso, catatnico! Depois, a palavra certa seria "irritado". Mas, pouco a pouco, foi se sentindo, como dizer?, impressionado! Pois, medida em que respondia s perguntas do Personagem, foi se surpreendendo mais e mais com suas prprias palavras.No dia seguinte, conversaram de novo. E no outro, outra vez.Trocaram ideias durante tanto tempo que acabaram se tornando grandes amigos. Anos depois, eram to 50 ntimos que um logo adivinhava o que o outro tinha acabado de pensar e, juntos, inventaram histrias fabulosas. Silvana Tavano, autora deste conto, jornalista, autora de livros infantis e juvenis e escreve noO pobre cocozinho Rosane Pamplona Ilustrao: Biry Sarkis Era uma vez um coc. Um cocozinho feio e fedidinho, jogado no pasto de uma fazenda.Coitado do coc! Desde que veio ao mundo, ele vinha tentando conversar com algum, fazer amigos, mas quem passava por ali no queria saber dele:- Hum! Que coisa fedida! - diziam as crianas.- Cuidado! No encostem na sujeira! - avisavam os adultos.E o cocozinho, sozinho, passava o tempo cantando, triste:Sou um pobre cocozinhoTo feinho, fedidinhoEu no sirvo para nadaNingum quer saber de mim...De vez em quando ele via uma criana e torcia para que ela chegasse perto dele, mas era sempre a mesma coisa:- Olha a porcaria! - repetiam todos.51 No restava nada para o coc fazer, a no ser cantar baixinho:Sou um pobre cocozinhoTo feinho, fedidinho...Um dia ele viu que um homem se aproximava. J imaginando o que ia acontecer, o cocozinho se encolheu. "Mais um que vai me xingar", pensou. Mas... Oh! Surpresa! O homem foi chegando, abrindo um sorriso, e seu rosto se iluminou:- Mas que maravilha! Que belo coc! Era exatamente disso que eu precisava.O coc nem acreditava no que estava ouvindo. Maravilha, ele? Precisando?Aquele homem devia ser maluco!Pois aquele homem no era maluco, no. Era um jardineiro.E, usando uma p, com todo o cuidado, ele levou o cocozinho para um lindo jardim.Ali, acomodou-o na terra, ao p de uma roseira. E, depois de alguns dias, o cocozinho percebeu, feliz e orgulhoso, que, graas a sua fora, a roseira tinha feito brotar uma magnfica rosa vermelha, bela e perfumada. Conto de Rosane Pamplona, ilustrado por Biry Sarkis O Sol Azul Ilustrao: JacaA professora pediu para todo mundo fazer um desenho. O Beto abriu o caderno, cheinho de folhas brancas. Bateu o olho no giz de cera azul, pegou e fez um Sol. E o sol pode ser azul?Claro! E sabe o que mais? Tambm pode ser verde, rosa, vermelho e at cinza com bolinhas roxas. No cu de verdade, o Sol parece que amarelo, mas isso no cu de verdade! No papel, pode de todo jeito.O que no pode ter preguia de imaginar.52 Na imaginao, o Sol pode ser diferente. A menina tambm. Ela pode ter lao de fita ou chapu na cabea. Pode ter cabelo comprido, curto, solto ou preso - e at ser careca! O menino pode ser grande ou pequeno, srio ou risonho, colorido por dentro ou levar s um contorno de lpis preto.A imaginao no d muita bola para a realidade, no. Ela mais amiga da fantasia, da liberdade, da arte e da vontade!O Beto aproveitou o sol azul e fez uma rvore amarela.Ele achou que ficou bonito. E no que ficou mesmo?Lembra at o quadro que tem na casa da tia dele.Para voc que no viu o quadro, vou contar como .Tinha o desenho de uma mulher - mas que mulher esquisita aquela! Alm de amarela, ela voava! Mas espere um pouco: no era uma mulher, era um quadro. O quadro que ficava na casa da tia do Beto, lembra? E quadro que nem papel que a gente usa para desenhar: pode ter as coisas do jeitinho que a gente costuma ver. Mas tambm vale ter gente amarela e que voa!O Beto olhou para o papel: ele tinha agora um sol azul, uma rvore amarela e at uma nuvem em forma de flor. A nuvem parecia voar no caderno, mas ela voava na cabea do Beto, onde cabia muito mais.- Professora, o Beto fez um sol azul! - gritou o Joo do fundo da sala.O Beto ento contou para o Joo que j tinha visto um quadro com uma mulher amarela e que voava.Quando a professora chegou at os dois, o Joo tinha desenhado uma montanha listrada. Aposto que voc nunca viu uma montanha listrada. Mas o Joo, na cabea dele, j. Liliane Prata, autora deste conto, jornalista e escreve no blog Lili Prata. Em 2003, lanou o primeiro livro, O Dirio de Dbora (Editora Marco Zero). O temporal no Amazonas Thiago de Mello Ilustrao: Cia Fittipaldi 53 Passamos o dia em Ponta Alegre, aldeia dos ndios Maus, banhada pelo rio Andir. Muito aprendi com o jovem tuchaua, conhecedor de ervas mgicas e amigo das estrelas. Ao entardecer, samos de canoa com motor de popa, ao rumo da Freguesia, pequenina comunidade no corao da floresta. Era tempo de cheia. Soprava de leve o vento geral. ramos quatro a bordo. Viajvamos rente margem abarrancada, j na metade do percurso, quando, de repente, o temporal desabou. "Este vai ser dos medonhos", disse sereno, l na popa, onde manejava o motor, Morn, um ndio meu amigo. Junto a ele, no cho da canoa, o seu filho menino, todo encolhido de frio. Lembro-me de que, antes de escurecer totalmente, do banco da frente onde eu viajava, virei-me e vi o brilho intenso dos seus olhos enormes. Era o pavor. Na proa, sem camisa, o cabloco Jari, morador da Freguesia. Enfrentamos o temporal em silncio, solidrios. A correnteza crescia, a canoa se balanava na alta crista das ondas, depois se despencava com fragor. A chuva nos vergastava por todos os lados. Houve um momento em que no vimos mais nada. Repetidas vezes a proa tocava num tronco. O baque surdo, a canoa parecia que ia virar. Morn inclinava o motor para a frente, de jeito que a hlice ficasse fora da gua. S os relmpagos nos ajudavam, cortando o cu de um lado a outro: a luz fugaz nos mostrava um tronco enorme, um pedao de rvore ainda com ramos frescos, j quase em cima de ns. O ndio, gil e calado, desviava a canoa num golpe de leme. A escurido era tanta que eu sequer enxergava a minha mo aberta a centmetros do meu rosto. Mesmo assim, em alguns instantes, tive a certeza de que o piloto conseguia distinguir, dentro da treva espessa, alguma coisa das guas e das margens. Um filho da floresta. A tempestade cessou pouco antes de chegarmos Freguesia. E duas coisas aconteceram que eu preciso contar. A primeira que, de repente, demos com vrias canoas vindo em nossa direo. Eram homens e mulheres daquele pedao verde do mundo, certos de que deveramos chegar no comeo da noite e nossa tardana j era tanta, nos sabiam surpreendidos pelo temporal e decidiram ir ao nosso encontro, para nos salvar. Quando nos viram, foi um imenso e prolongado grito de alegria, sado de todas as bocas. Do corao solidrio. A segunda coisa que depois do temporal o cu acendeu as suas estrelas, perdo, todas as suas estrelas, que brilhavam enormes, pairando soltas no campo da noite. Conto de Thiago de Mello, ilustrado por Cia Fitipaldi 54 O tesouro no quintal Moacyr Scliar Ilustrao: Alexandre Camanho Era uma famlia grande, a nossa: pai, me, cinco filhos. Grande e pobre. Papai, pedreiro, mal conseguia nos sustentar. Mame ajudava como podia, fazendo faxinas e costurando para fora, mas mesmo assim a vida era bastante difcil. Papai vivia bolando formas de reforar nosso oramento domstico ou de, pelo menos, diminuir as despesas. Foi assim que lhe ocorreu a idia da horta.Morvamos numa minscula casa de subrbio, no longe de uma bela praia, que, contudo, raramente freqentvamos: era lugar de ricos. Casa pobre, a nossa, sem nenhum conforto. Mas, por alguma razo, tinha um quintal bastante grande. Do qual, para dizer a verdade, no cuidvamos. O capim ali crescia vioso e no meio dele jaziam, abandonados, pneus velhos, latas, pedaos de tijolos e telhas. Papai olhava para aquilo, pesaroso: parecia-lhe um desperdcio de espao e de terra. Um dia chamou os dois filhos mais velhos, meu irmo Pedro e eu prprio, e anunciou: vamos fazer uma horta neste quintal.Proposta mais do que adequada. Ns quase no comamos legumes e verduras, porque eram muito caros. Mas, se plantssemos ali tomate, alface, agrio, cenoura, teramos uma fonte extra de alimento - e o mais importante, sem custo.Sem custo, mas no sem trabalho. Para comear, teramos de capinar aquilo tudo e revirar a terra para depois plantar e colher. Meu pai no hesitou: vocs dois, que so os mais velhos, vo fazer isso.No gostamos muito da determinao. No ramos preguiosos, mas preparar a terra para fazer uma horta 55 no era bem o nosso sonho e representaria um grande esforo. Contudo, no tnhamos alternativa. Quando papai dava uma ordem, era para valer. E, no caso, ele tinha o decidido apoio da mame, que era de uma famlia de agricultores e gostava de plantar.Quem prepararia a terra? Foi a pergunta que fiz ao Pedro, que, alm de mais velho, era o lder entre os irmos. Pergunta para a qual ele j tinha a resposta:- Isso coisa para o Antnio.Antnio era o irmo do meio. Com 9 anos, era um menino quieto, sonhador. Mas no era muito do batente, de modo que fiquei em dvida: como convenc-lo a fazer o trabalho?- Deixa comigo - disse Pedro, que se considerava muito esperto. - Eu sei como convencer o cara.E sabia mesmo. Porque Pedro era dono de uma lbia fantstica, argumentava como ningum. Ah, sim, e sabia contar histrias - inventadas por ele, claro. Era com uma histria que pretendia motivar o Antnio a capinar o ptio.Eu estava junto, quando ele contou a tal histria. Era uma boa histria: segundo um famoso professor, sculos antes piratas franceses haviam andado pela nossa regioe ali haviam enterrado um tesouro. Expulsos pelos portugueses, nunca mais tinham retornado, de modo que a arca com jias e moedas de ouro ainda estava no mesmo lugar,que podia ser o ptio de nossa casa.- O tesouro ser a nossa salvao - concluiu Pedro , entusiasmado.Antnio estava impressionado. Se havia coisa em que acreditava, era em histrias. Alis, estava sempre lendo - era o m