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HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA PAUL TEYSSIER Tradução de Celso Cunha Martins Fontes

TEYSSIER HistoriaDaLinguaPortuguesa

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  • HISTRIA DA

    LNGUA PORTUGUESA

    PAUL TEYSSIER

    Traduo de Celso Cunha

    Martins Fontes

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    Sumrio

    Prefcio............................................................................................ 4

    Consideraes iniciais ...................................................................... 5

    Captulo 1 - Do latim aos primeiros textos em galego-portugus (sculo

    XIII) ................................................................................................. 6

    Os fatos histricos ...................................................................................... 6

    Do latim ao galego-portugus: a evoluo fontica ...................................... 10

    Do latim ao galego-portugus: evoluo da morfologia e da sintaxe............. 17

    Do latim ao galego-portugus: formao do vocabulrio.............................. 17

    Captulo 2 - O galego-portugus (de 1200 a aproximadamente 1350) 20

    Os fatos histricos ...................................................................................... 20

    Os textos..................................................................................................... 21

    A grafia ....................................................................................................... 22

    Fontica e fonologia .................................................................................... 22

    Morfologia e sintaxe .................................................................................... 27

    O Vocabulrio ............................................................................................. 29

    Captulo 3 - O portugus europeu (do sculo XIV aos nossos dias) .... 31

    Problemas de periodicidade......................................................................... 31

    Separao do galego.................................................................................... 34

    O territrio do portugus europeu............................................................... 34

    Evoluo fontica do portugus europeu do sculo XIV aos nossos dias ..... 35

    Morfologia, sintaxe e vocabulrio ................................................................ 55

    Captulo 4 - O portugus do Brasil ................................................... 62

    Os fatos histricos ...................................................................................... 62

    Principais caractersticas ............................................................................ 64

    A questo da lngua no Brasil ..................................................................... 72

    Captulo 5 - O portugus na frica e na sia .................................... 76

    O portugus na sia ................................................................................... 76

    O portugus na frica................................................................................. 76

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    Transcrio fontica ......................................................................... 80

    Notas ............................................................................................... 81

    Bibliografia sumria......................................................................... 92

    Advertncia final .............................................................................. 95

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    Prefcio

    A verso original desta Histria da Lngua Portuguesa foi publicada em 1980 por Presses Universitaires de France, numa coleo que tem de sujeitar-se a uma regra imperativa: os volumes no devem ultrapassar um total de 128 pginas de pequeno formato. Uma limitao to rigorosa apresenta, por mais paradoxal que parea, grandes vantagens: obriga os autores a um esforo de sntese que favorece o rigor do pensamento e a clareza da expresso. Concentrar-se na redao cuidadosa de poucas pginas custa mais trabalho e exige mais tempo do que abandonar-se composio fcil de um volume difuso e vago.

    Esta limitao tem, no entanto, certas conseqncias negativas. No se podem incluir num livro de dimenses to reduzidas as notas explicativas e as indicaes bibliogrficas que o leitor exige num trabalho deste tipo.

    A publicao desta Histria em traduo portuguesa proporcionava-me a possibilidade de corrigir esses inconvenientes. Aproveitei, por isso, a ocasio que se me oferecia para acrescentar ao texto propriamente dito muitas notas explicativas, nas quais inclu todas as referncias e justificaes necessrias. Alm disso, a bibliografia foi enriquecida com muitos ttulos novos. Enfim, procedi a uma reviso completa do texto.

    Mas h mais. Este livro teve o grande privilgio de ser traduzido para o portugus pelo Prof. Celso Ferreira da Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro uma autoridade incontestvel e reconhecida como tal pela comunidade cientfica em tudo quanto diz respeito lngua portuguesa na sua evoluo histrica e na sua realidade atual. Um estudioso de to excepcional competncia no podia limitar-se a traduzir: sugeriu no poucas modificaes e acrscimos, tanto no contedo do texto como na bibliografia, contribuindo assim para fazer desta verso da Histria da Lngua Portuguesa, at certo ponto um livro novo. Peo-lhe que aceite aqui o testemunho da minha sincera gratido, extensiva tambm sua colaboradora, Prof. Claire de Oliveira Neto.

    No posso deixar de mencionar tambm as observaes valiosas que me foram feitas por muitas outras pessoas, entre as quais meu dever salientar o Prof. Luis Felipe Lindley Cintra, da Universidade de Lisboa, outra autoridade prestigiosa que muito tem contribudo para alargar os nossos conhecimentos sobre formao histrica da lngua portuguesa. Este livro e muito aos seus trabalhos e publicaes, bem como s observaes e sugestes orais que teve a bondade de me fazer.

    Paris, 26 de maro de 1982

    Paul Teyssier

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    Consideraes iniciais

    Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler.

    Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.

    A generosidade e a humildade a marca da distribuio, portanto distribua este livro livremente.

    Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim voc estar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

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    Captulo 1 Do latim aos primeiros textos em galego-portugus (sculo XIII)

    Os primeiros textos escritos em portugus surgem no sculo XIII. Nessa poca, o portugus no se distingue do galego, falado na provncia (hoje espanhola) da Galcia. Essa lngua comum o galego-portugus ou galaico-portugus a forma que toma o latim no ngulo noroeste da Pennsula Ibrica.

    Os fatos histricos

    1 A romanizao da Pennsula Ibrica

    Os romanos desembarcam na Pennsula no ano 218 a.C. A sua chegada constitui um dos episdios da Segunda Guerra Pnica. Do cabo dos cartagineses no ano de 209 e empreendem, ento, a conquista do pas. Todos os povos da Pennsula, com exceo dos bascos, adotam o latim como lngua e, mais tarde, todos abraaro o cristianismo.

    Mapa 1 A Espanha romana no tempo de Augusto

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    A Pennsula inicialmente dividida em duas provncias (ver mapa 1), a Hispnia Citerior (a regio nordeste) e a Hispnia Ulterior (a regio sudoeste). No ano 27 a.C., Augusto divide a Hispnia Ulterior em duas provncias: a Lusitnia, ao norte do Guadiana, e a Btica, ao sul. Posteriormente, entre 7 a.C. e 2 a.C., a parte da Lusitnia situada ao norte do Douro, chamada Gallaecia, anexada provncia tarraconense (a antiga Hispnia Citerior). Cada provncia subdivide-se num determinado nmero de circunscries judicirias chamadas conventus. Um exame rpido do mapa 1 mostra que o atual territrio da Galcia espanhola e de Portugal corresponde, aproximadamente, a quatro desses conventus os de Lucus Augustus (Lugo), de Bracara (Braga), de Scalabis (Santarm) e de Pax Augusta (Beja). A rea lingstica do que vir a ser o galego e o portugus delineia-se, pois, desde a poca romana, no mapa administrativo do Ocidente peninsular (mapa 1).

    Nesse territrio, assim definido, a romanizao fez-se de maneira mais rpida e completa no Sul do que no Norte. Os gallaeci, em particular, que habitavam a zona mais setentrional, se comparados aos outros povos, conservaram por mais tempo elementos da sua prpria cultura.

    2 Os suevos e os visigodos (sculos VI e VII)

    Em 409, invasores germnicos vndalos, suevos e alanos afluem ao sul dos Pireneus, seguidos, mais tarde, pelos visigodos. Assim comea um dos perodos mais obscuros da histria peninsular, que terminar em 711, com a invaso muulmana. Os alanos foram rapidamente aniquilados. Os vndalos passaram para a frica do Norte. Os suevos, em compensao, conseguiram implantar-se e, por muito tempo, resistiram aos visigodos, que tentavam reunificar a Pennsula a seu favor. No sculo V o reino suevo era muito extenso, mas por volta de 570 reduziu-se Gallaecia e aos dois bispados lusitanos de Viseu e Conmbriga. Em 585, esse territrio foi conquistado pelos visigodos e incorporado ao seu Estado. No que diz respeito lngua e cultura, a contribuio dos suevos e dos visigodos foi mnima. Tiveram um papel particularmente negativo: com eles a unidade romana rompe-se definitivamente e as foras centrfugas vo preponderar sobre as de coeso. Se o latim escrito se mantm como a nica lngua de cultura, o latim falado evolui rapidamente e diversifica-se.

    3 A invaso muulmana e a Reconquista

    Em 711 os muulmanos invadem e em pouco tempo conquistam a Pennsula Ibrica, com incluso da Lusitnia e da Gallaecia. Estes muulmanos eram rabes e berberes do Maghreb. Tinham o Islo como religio e o rabe como lngua de cultura, mesmo aqueles que falavam o berbere. Os povos ibricos chamaram-nos mouros (esp. moros).

    Partindo do norte, a reconquista crist vai gradativa mente expulsando os mouros para o sul. durante esta Reconquista que nascer, no sculo XII, o reino independente de Portugal. At por volta do ano 1000 a Espanha

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    muulmana domina os inimigos cristos. a poca urea do califado de Crdova. Em 997 Al-Mansur destri Compostela. Mas no incio do sculo XI os remos cristos iniciam um movimento ofensivo que se tornaria irresistvel. Na regio ocidental que nos interessa, Coimbra reconquistada em 1064, Santarm e Lisboa em 1147, vora em 1165, Faro em 1249. Com a tomada de Faro, o territrio de Portugal est completamente formado. O resto da Pennsula s seria, porm, definitivamente reconquistado bem mais tarde, em 1492, quando os Reis Catlicos se apoderam do reino de Granada.

    A invaso muulmana e a Reconquista so acontecimentos determinantes na formao de trs lnguas peninsulares o galego-portugus a oeste, o castelhano no centro e o catalo a leste. Estas lnguas, todas trs nascidas no Norte, foram levadas para o Sul pela Reconquista. Nas regies setentrionais, onde se formaram os remos cristos, a influncia lingstica e cultural dos muulmanos tinha sido, evidentemente, mais fraca que nas demais regies. No Oeste em particular, a marca rabe-islmica muito superficial ao norte do Douro, ou seja, na regio que corresponde hoje Galcia e ao extremo norte de Portugal. medida que se avana para o sul, ela vai se tornando mais saliente, sendo profunda e duradoura do Mondego ao Algarve. Foi na primeira destas regies, ao norte do Douro tendo talvez como limite extremo o curso do Vouga, entre o Douro e o Mondego , que se formou a lngua galego-portuguesa, cujos primeiros textos escritos aparecem no sculo XIII.

    Na regio meridional, o domnio muulmano deixara subsistir uma importante populao crist de lngua romnica: os cristos chamados morabes, palavra deriva da de um particpio rabe que significa submetido aos rabes. Conhece-se pouco desses falares hispano-romnicos, mas o suficiente para compreender que formavam, em toda a parte meridional da Pennsula, uma cadeia contnua de dialetos bastante diferentes daqueles que, fala dos no Norte, sero mais tarde o galego-portugus, o castelhano e o catalo.

    A Reconquista provocou importantes movimentos de populaes. Os territrios retomados aos mouros estavam freqentemente despovoados. Os soberanos cristos repovoavam esses territrios e entre os novos habitantes havia em geral uma forte proporo de povos vindos do Norte. Foi assim que o galego-portugus recobriu, pouco a pouco, toda a parte central e meridional do territrio portugus. O mapa 2 mostra os progressos sucessivos da frente crist em 1064, 1147, 1168 e 1249. Adotada pelos morabes do pas, por todos os elementos algenos participantes do repovoamento, assim como pelos muulmanos que a haviam ficado, esta lngua galego-portuguesa do Norte vai sofrer uma evoluo gradativa e transformar-se no portugus. Em comeos do sculo XIII, quando surgem os primeiros textos escritos, a reconquista militar e poltica est em vias de terminar, mas as suas conseqncias lingsticas no tiveram tempo de manifestar-se: a lngua literria que emerge ento o galego-portugus do Norte. Dela estudaremos os traos principais no prximo captulo. Antes, porm, diremos, resumidamente, como esta lngua se constituiu a partir do latim.

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    Mapa 2 rea primitiva do galego-portugus e da Reconquista

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    Do latim ao galego-portugus: a evoluo fontica

    1 O latim imperial no Oeste peninsular

    At ao fim do perodo imperial, o latim falado no Oeste da Pennsula Ibrica conhece as evolues gerais do mundo romano:

    1) O acento tnico Generaliza-se um acento de in tensidade, cuja posio determinada de maneira automtica. Quando nenhuma ao contrria entra em jogo, a acentuao permanece a mesma em galego-portugus e em portugus contemporneo. No latim imperial, a slaba que leva o acento definida pelas seguintes regras:

    a) Palavras de duas slabas: o acento recai na primeira. Ex.: sptem > port. sete, dtum > port. dado.

    b) Palavras de trs slabas ou mais: o acento recai na penltima slaba se esta for longa. Ex.: amcum > port. amigo, capllum1 > port. cabelo; e recai na antepenltima se a penltima for breve. Ex.: rbrem > port. rvore, hmnem > port. homem, qundcim > port. quinze.

    2) As vogais: perda das oposies de quantidade O latim clssico possua cinco timbres voclicos, havendo uma vogal breve e uma longa para cada timbre, ou seja, um total de dez fonemas. As breves eram sempre mais abertas que as longas correspondentes.

    O latim imperial perdeu as oposies de quantidade, mas conservou as oposies de timbre resultantes dos variados graus de abertura.

    A evoluo do vocalismo tnico do latim clssico para o latim imperial pode resumir-se no seguinte quadro:

    Latim

    clssico

    Latim

    Imperial Exemplos

    i fcum > port. figo

    stim > port. sde

    rte > port. rde trra > port. trra

    ltus > port. lado

    a

    amtum > port. amado

    prta > port. p rta

    amrem > port. amr

    bcca > port. bca

    u prum > port. puro

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    Acrescente-se que os ditongos e do latim clssico passaram, em latim imperial, a vogais simples de timbres distintos.

    Latim

    clssico

    Latim

    Imperial Exemplos

    ccum > port. cgo

    fdum > port. fo, hoje feio2

    Assim, as dez vogais e dois dos ditongos do latim clssico foram substitudos por sete vogais no latim imperial:

    /i/ /u/

    // //

    // / /

    /a/

    J este o sistema das vogais o em galego-portugus medieval. E acrescente-se: se considerarmos no mais o sistema, mas sim as palavras tomadas individualmente, verificamos que em posio tnica o timbre das vogais de palavras do galego-portugus e tambm do portugus contemporneo permaneceu o mesmo do latim imperial. o caso em todos os exemplos atrs mencionados. Este notvel carter conservador do vocalismo portugus convm advertir comprova-se como uma tendncia geral.

    Circunstncias diversas contriburam, no raro, para romper esse paralelismo entre as vogais do latim imperial e as do portugus.

    As vogais tonas eram bem mais frgeis. Na regio que nos interessa, as penltimas dos proparoxtonos desa parecem com freqncia na pronncia corrente, de acordo com a tendncia comum a todo o romance ocidental: dizia-se por exemplo oclu- por oclum e caldu- por caldum (da, em portugus, olho e caldo).

    3) As consoantes: a palatalizao Entre as inovaes fonticas do latim imperial, algumas tero conseqncias importantssimas. o caso da palatalizao.

    Nos grupos escritos ci, ce e gi, ge, as consoantes c e g pronunciavam-se em latim clssico como as iniciais das palavras portuguesas quilha, queda e guizo, guerra, ou seja, eram oclusivas velares. Mas em latim imperial o ponto de articulao destas consoantes aproximou-se do ponto de articulao das vogais i e e que se lhes se guiam, isto , da zona palatal,

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    levando pronncia: [kyi], [kye] e [gyi], [gye]. Esta palatalizao iniciou-se j na poca imperial em quase toda a Romnia e iria ocasionar modificaes importantes: [kyi], [kye] passaram a [ti], [te] e, finalmente, a [tsi], [tse]; ex.: ciuittem > port. cidade, centum > port. cento, reduzido a cem. Para os grupos gi, ge o resultado da palatalizao ser inicialmente um yod puro e simples [y] que desaparece em posio intervoclica; ex.: regina > port. rainha, frigi dum > port. frio. Mas, em posio inicial, este yod passa a [d]; ex.: gente (donde o g representa na Idade Mdia [d]). O yod inicial sado de gi, ge confundiu-se, pois, com o que provinha diretamente do latim clssico e que, naturalmente, tambm deu [d]; ex.: iulium > port. julho. Em galego-portugus medieval os grupos gi, ge e ju eram pronunciados em todas estas palavras [di], [de] e [du].

    Em vrias outras palavras um i ou um e no tnicos, seguidos de uma vogal, eram pronunciados yod em latim imperial; ex.: pretium, platea, hodie, video, facio, spongia, filium, seniorem, teneo. Resultaram da os grupos fonticos [ty], [dy], [ly] e [ny] que se palatalizaram em [tsy] e [dsy], [lh] e [nh]. Para os grupos [ky], [gy], ex.: facio, spongia, a palatalizao chega inicialmente a [ty] e [dy], mas os resultados definitivos sero complexos, pois dependero da posio na palavra e do carter mais ou menos popular dessa palavra. Ter-se-, por exemplo, pretium > port. preo, pretiare > port. prezar, platea > port. praa, hodie > port. hoje, medium > port. meio, video > port. vejo, facio > port. fao, spongia > port. esponja. Em galego-portugus medieval as letras c, z e j representavam, respectivamente, em todas estas palavras, as africadas [ts], [dz] e [d]. Na origem destas transformaes fonticas h sempre, em latim imperial, uma palatalizao.

    Quando o yod proveniente de i e e em hiato vinha de pois de -ss-, esta consoante passou a [] transcrito pela letra x; ex.: rssum > roxo.

    Finalmente, quando l ou n eram seguidos de um yod, originrio de i e e em hiato, estas consoantes passaram a [lh] e [nh] palatais ou molhados; ex.: filium > port. filho, seniorem > port. senhor, teneo > port. tenho.

    Como podemos verificar, estes de palatalizao, iniciados j na poca impe tiveram conseqncias importantes no sistema fonolgico da lngua. Como resultado, o galego-portugus medieval apresenta ria seis-fonemas novos:

    /ts/; ex.: cidade, cem, preo, praa, fao (hoje /s/);

    /dz/; ex.: prezar (hoje /z/);

    /d/; ex.: gente, hoje, vejo, esponja (hoje //)

    //; ex.: roxo (sem modificao em portugus moderno);

    /lh/; ex.: filho (sem modificao em portugus moderno);

    /nh/; ex.: senhor, tenho (sem modificao em portugus moderno).

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    4) Numerosas caractersticas do latim imperial mereceriam ainda ser citadas, como a queda do n antes de s; ex.: mensa > port. mesa. provvel que a sonorizao das surdas intervoclicas tivesse comeado desde essa poca no latim ibrico; ex.: caput > port. cabo, amtum > port. amado, amcum > port. amigo.

    2 Do latim imperial aos falares romnicos

    Os trs sculos passados entre a chegada dos germanos Pennsula (409) e a dos muulmanos (711) no nos deixaram qualquer documento lingstico. Mas a linha geral da evoluo no admite dvidas. V-se acelerar a deriva que transformar o latim imperial em proto-romance, e aparecerem certas fronteiras lingsticas. Uma destas fronteiras a que vai separar os falares ibricos ocidentais, donde sair o galego-portugus, dos falares do Centro da Pennsula, donde sairo o leons e o castelhano.

    1) provavelmente por essa poca que se desencadeia a evoluo do grupo consonantal cl; ex.: oclu (de oclum). Nesta posio, c, pronunciado [k] passa a yod ([y]): oclu> *oylo. Esta evoluo comum a todos os falares hispnicos. Mas as conseqncias no sero as mesmas segundo as regies: em galego-portugus [-yl-] passa a [lh] palatal, ou molhado, ao passo que em castelhano passa africada [d], escrita j (o leons constitui uma zona de transio):

    Latim clssico

    Latim vulgar

    Galego-portugus Castelhano

    oclum oclu olho ojo

    auricla orecla orelha oreja

    vetlum veclu velho viejo

    O grupo -ct-, por sua vez, passa a [-yt-]; ex.: nocte > *noyte. A lngua portuguesa mantm ainda a pronncia noite, enquanto o espanhol, continuando a evoluo, apresenta hoje a africada [t], escrita ch: noche. Temos, assim, as seguintes oposies entre as duas lnguas:

    Galego-portugus

    Castelhano

    nocte > *noyte noite noche

    lectu > *leyto leito lecho

    lacte > *layte leite leche

    factu > *fayto feito hecho

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    2) Outra fronteira lingstica de importncia considervel comea a delinear-se durante o mesmo perodo. No Centro da Pennsula, as duas vogais abertas [] e [ ] oriundas das antigas vogais breves [] e [] do latim clssico, ditongaram-se, quando tnicas, em diversas posies: [] passa a [] e finalmente ie; ex.: petra > cast. Piedra; [ ] passa a [ ], depois a uo e finalmente a ue; ex.: nove > cast. nueve. O galego-portugus ignorar esta ditongao e dir, respectivamente, pedra com [] e nove com [ ]. As condies em que se operou a ditongao em castelhano so complexas. Mas uma forte tendncia geral domina o conjunto dos fatos: o galego-portugus isola-se de todos os outros falares da Pennsula, e em particular do castelhano, por lhe ser totalmente desconhecida a ditongao de [] e [ ]. Ter-se- assim:

    Latim clssico

    Latim imperial Galego-portugus Castelhano

    pdem pde p pie

    dcem dce dez diez

    lctum lctu leito lecho

    nvem n ve nove nueve

    frtem f rte forte fuerte

    nctem n cte noite noche

    Como vemos, pode acontecer que o castelhano no tenha ditongado [] e [ ] tnicos: o caso de lecho e noche. Mas o galego-portugus distingue-se radicalmente dele por no ditongar jamais. Esta a razo por que, desde a poca que aqui nos interessa (sculos V, VI e VII), um fosso comea a cavar-se entre o que vir a ser o galego-portugus e o que ser o castelhano. Advirta-se, no entanto, que as duas lnguas no estaro em contato: o leons vai separ-las, criando entre ambas uma zona de transio a que, deliberadamente, no nos referimos, para melhor clareza do nosso estudo.

    3 Do sculo VIII ao XII. emergncia do galego-portugus

    durante o perodo que se segue invaso muulmana (711) que vo aparecer outras inovaes especficas de que resultar o isolamento dos falares do Noroeste da Pennsula, no apenas dos seus vizinhos do Leste, leons e castelhano, mas tambm dos dialetos morabes que se desenvolvem no Sul. Surgir, assim, nos sculos IX a XII, o galego-portugus, cujos primeiros textos escritos aparecero somente no sculo XIII. O limite oriental da sua rea primitiva facilmente delinevel identifica-se, em linhas gerais, com o limite que separa, ainda hoje, o galego e o portugus do leons. O limite meridional mais impreciso: passava ele entre a linha do Douro e a do Mondego (ver mapa 2).

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    No nos falta, para esse perodo decisivo, um certo nmero de documentos. A partir do sculo IX, com efeito, surgem textos redigidos num latim extremamente incorreto (conhecido tradicionalmente como latim brbaro), que, uma vez por outra, deixam entrever as formas da lngua falada3. Percebe-se assim abelha em abelia (< apicula) em vez de apis, ou coelho em conelium (< coniculum), ou estrada em estrata, ou ovelha em ovelia (< ovicula), etc.

    Trs inovaes do galego-portugus devem ser assinaladas:

    1) Grupos iniciais pl-, cl-, e fi- > ch ([t]) Estes grupos iniciais sofreram, num primeiro momento, uma palatalizao do l, fenmeno que se produziu numa vasta zona que compreendia o galego-portugus, o leons e o castelhano, e ainda um pequeno terr situado entre a Catalunha e Arago. Em castelhano, a consoante inicial caiu posteriormente, tendo restado o l palatal, transcrito ll; ex.: plaga > cast. llaga, clave > cast. llave, flamma > cast. llama. O mesmo aconteceu na parte oriental do leons. Tod em galego-portugus e em leons ocidental a evoluo foi mais profunda: a consoante inicial seguida de l palatal deu origem africada [t], que foi transcrita em galego-portugus por ch, donde, para os trs mesmos exemplos, chaga ([taga]), chave ([tave]) e chama ([tama]). Esta evoluo e o ponto mais importante no se produziu na zona morabe4. O galego-portugus e o leons ocidental isolam-se, por isso, no apenas dos vizinhos do Leste, mas tambm dos vizinhos do Sul. Esta evoluo diz respeito s palavras que constituem o fundo mais popular da lngua. Tivemos assim:

    Latim Galego-portugus Castelhano

    plenu- cho lleno

    planu- cho llano Pl-

    plicare chegar llegar

    Cl- clamare chamar llamar

    Fl- flagrare cheirar (no atestada)

    Convm acrescentar que noutra categoria de pala vras, pertencentes a uma srie menos popular, os grupos iniciais p1-, cl- e fl- deram em galego-portugus pr-, cr- e fr-; ex.: placere > prazer, clavu > cravo, flaccu > fraco, evoluo idntica de bi- > br-; ex.: blandu > brando. Acrescente-se por fim que o portugus moderno possui um grande nmero de palavras eruditas em que os grupos iniciais p1-, cl- e fl-, assim como bl-, foram conservados sem modificao; ex.: pleno, clima, flauta, bloco.

    2) Queda de -l- intervoclico Este fenmeno, provvel resultado de uma pronncia velar do l intervoclico, ia ter conseqncias importantes. Ocorreu possivelmente em fins do sculo X, pois num documento em latim

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    brbaro de 995 l-se Fiiz (< Felice) e Fafia (< Ffila). Ele incidiu sobre um grande nmero de palavras e contribuiu para criar em galego-portugus vrios grupos de vogais em hiato. ex.: salire > sai, palatiu > paao (hoje pao), calente > caente (hoje quente), dolore > door (hoje dor), colore > coor (hoje cor), colubra > coobra (hoje cobra), voluntade > voontade (hoje vontade), filu > fio, candela > candea (hoje candeia), populu > poboo (hoje povo), periculu > perigoo (hoje perigo), diabolu > diaboo (hoje diabo), nebula > nvoa, etc. a queda do -l- intervoclico que explica a forma que possuem no plu ral as palavras terminadas em -l- no singular: sol, plural soes, hoje sis.

    Em grande nmero de palavras de origem semi-erudita ou erudita, o -l- intervoclico conservou-se; ex.: escola, astrologia. Em portugus moderno, os -l- intervoclicos deste tipo so inumerveis; ex.: palcio (ao lado de pao), calor (ao lado de quente < calente) , alimento, clice, guloso, volume, violento, etc.

    A queda do -l- intervoclico produziu-se apenas em galego-portugus. No aparece nem a leste da rea primi tiva desta lngua o leons e o castelhano ignoram-na , nem ao sul, nos falares morabes5. Este ltimo ponto abundantemente documentado pela toponmia: tem-se, por exemplo, Mrtola no Alentejo (< Mrtla, por Myrtilis, antigo nome dessa localidade), ou Molino (em lugar de Moinho), ou ainda Baselga (< Baslca). Nas palavras de origem rabe o intervoclico no raro permaneceu; ex.: azmola, javali.

    3) Queda de -n- intervoclico Este ltimo fenmeno produziu-se depois do precedente, no sculo XI, e provavelmente ainda estava em curso no sculo XII, nas vsperas do aparecimento dos primeiros textos escritos. mais complexo que o anterior: por exemplo, na palavra corona houve primeiro nasalizao da vogal que precede o n, donde corna; em seguida, o n caiu e tivemos cora, forma do galego-portugus (hoje coroa). Assim, todos os n intervoclicos desapareceram depois de terem nasaliza do a vogal precedente; ex.: vinu > vo, manu > mo, panatariu > padeiro, mntu > mudo, genesta > gesta, semnare > semar, arena > ara, luna > la, vicinu > vezo, lana > la, homnes > homes, bonu > bo, etc. Em todas estas palavras a vogal nasal e a que veio a segui-la diretamente depois da queda do n pertenciam a duas slabas diferentes: pronunciava-se cor-a, v-o, m-o, p-adeiro, m-do, g-esta, sem-ar, ar-a, l-a, vez-o, l-a, hom-es, b-o, etc. Veremos, posteriormente, como evoluram em portugus estes encontros voclicos resultantes da sucesso de uma vogal nasal e de uma vogal oral.

    Esta queda do n intervoclico, que iria ter conseqncias importantes na fontica e na morfologia do portugus moderno, igualmente um fenmeno particular ao galego-portugus. No se documenta nem em leons, nem em castelhano, nem nos falares morabes6. Nas regies centrais e meridionais do pas, a toponmia oferece numerosos exemplos de n intervoclicos que se mantiveram at os nossos dias. Odiana (antigo nome portugus do Guadiana), Fontanas (Alentejo e Estremadura) em vez de Fonts, Madroneira (Beja) em vez de Madroeira, etc. As pesquisas dialetais revelaram, no Algarve e no Alente jo, e at na Estremadura, palavras da linguagem corrente que apresentam n intervoclicos conservados; ex.:

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    manina (passim) em vez de maninha (estril, falando-se da fmea de um animal), ponente (Algarve), maanera (Algarve e Baixo Alentejo) por macieira, manhana (Algarve) por manh; o sufixo diminutivo -nito (Alentejo); ex.: manita (diminutivo de mo), maanita (diminutivo de ma), granito (diminutivo de gro), franganito (diminutivo de frango), etc. Finalmente, em numerosas palavras de origem rabe permanecem os n intervoclicos etimolgicos; ex.: azeitona, alfenim, atafona, etc.

    Do latim ao galego-portugus: evoluo da morfologia e da sintaxe

    Em matria de morfologia e sintaxe, a evoluo que se processa do latim ao galego-portugus semelhante que leva s outras lnguas romnicas, em particular ao castelhano. A declinao nominal simplifica-se e acaba por desaparecer: sobrevivem apenas duas formas oriundas do acusativo latino, uma para o singular e outra para o plural. As relaes que o latim exprimia pelas desinncias casuais so agora expressas por preposies ou pela colocao da palavra na frase. Os gneros, com a supres so do neutro, reduzem-se a dois. A morfologia verbal consideravelmente simplificada. O sistema dos tempos e dos modos altera-se e multiplicam-se as formas perifrsticas. O futuro simples (ex.: amabo) substitudo, como em toda a Romnia ocidental, por uma perfrase constru da com habere amare habeo , donde se origina o futuro galego-portugus amarei. Um artigo definido forma-se com base no demonstrativo ille. As quatro formas sadas do acusativo, diferenciadas em nmero e em gnero illum, illam, illos, illas , do inicialmente lo, la, los, las, em virtude da afrese sofrida pelo seu emprego pro cltico. Como estes artigos vinham freqentemente precedidos de palavras terminadas por vogal ex.: vejo lo cavalo, vende la casa , o l desapareceu semelhana de todos os l da lngua que se achavam em posio intervoclica, com o que se chegou s formas o, a, os, as. E, por fim, para compensar o empobrecimento da morfologia nominal, a ordem das palavras torna-se mais rgida.

    Do latim ao galego-portugus: formao do vocabulrio

    1 O velho fundo do vocabulrio latino transmitido ao galego-portugus e ao portugus moderno Ex.: pater, mater, filius, manus, bracchium, aqua, panis, bonus, fortis, viridis, dicere, cadere, amare, etc. compreende palavras de aparncia mais clssica do que as suas correspondentes francesas ou italianas; ex.: comedere (> port. comer), percontari (> port. perguntar), metus (> port. medo), avis (> port. ave), etc. Mas este vocabulrio no deixou de ser enriquecido, na lngua vulgar da poca imperial, por ter mos populares: bellus (> port. belo) em vez de pulcher, caballus (> port. cavalo) em vez de equus, cattus (> port. gato) em vez de felis, casa (> port. casa) em vez de domus, grandis (> port. grande) em vez de magnus, etc.

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    A este fundo latino vieram acrescentar-se palavras novas, a comear por emprstimos s lnguas dos povos que habitavam a Pennsula quando da chegada dos romanos (ex.: barro, manteiga, veiga, sapo, esquerdo, etc.), sendo vrias destas aparentadas com o basco. Mas os emprstimos realmente importantes que se fizeram entre a poca romana e os primeiros textos escritos vm do germnico e do rabe.

    a) Palavras de origem germnica Palavras germnicas haviam penetrado no latim muito antes da invaso dos suevos e dos visigodos e encontram-se tambm em outras lnguas romnicas. Assim: portugus guerra (fr. guerre), guardar (fr. garder), trgua (fr. trve). Outras, mais raras, s aparecem em portugus e em espanhol e devem ter sido introduzidas pelos visigodos; ex.: port. e esp. ganso, port. luva e espanhol antigo la. Ressalte-se tambm que as palavras portuguesas de origem germnica pertencem principalmente a determinados campos semnticos, tais como a guerra (guerra, rouba, espiar), a indumentria (fato, ataviar), a casa e seu equipamento (estaca, espeto), os animais (ganso, marta). Acrescentem-se ainda formas como agasalhar, gana, branco, brotar. Note-se, por fim, que grande nmero de nomes de pessoas (Fernando, Rodrigo, Alvaro, Gonalo, Afonso, etc.), assim como de topnimos (Guitiriz, Gomesende, Gondomar, Sendim, Guimares, etc.), remonta aos suevos e aos visigodos7.

    b) Palavras de origem rabe A longa permanncia dos muulmanos em terras da Pennsula deixou a sua marca tanto no portugus como no espanhol. A crer-se nos dicionrios, o nmero de palavras portuguesas de origem rabe andaria por volta de mil (954 mais exatamente, segundo Jos Pedro Machado, em Influncia Arbica no Vocabulrio Portugus8)Nem todas as palavras portuguesas de origem rabe, porm, foram tomadas aos mouros peninsulares: algumas chegaram por caminhos diferentes (via Itlia, por exemplo); outras foram introduzidas em data muito posterior, sendo provenientes da frica, do Oriente ou da Asia. Mas mesmo limitando o nosso estudo apenas s palavras legadas pelos muulmanos durante a sua permanncia em solo da Pennsula, verificamos que esto longe de ser pouco numerosas. Vrias delas integraram-se ao fundo lexical da lngua e encontramo-las, com plena vitalidade, em portugus moderno. Pertencem a campos semnticos particulares que definem bem as reas em que a civilizao rabe-islmica ento resplandecia. Encontram-se a a agricultura, os animais e as plantas: arroz, azeite, azeitona, bolota, aucena, alface, alfarroba, javali; as cincias, as tcnicas e as artes com os objetos e instrumentos que lhes esto vinculados: alfinete, alicate albarda, alicerce, azulejo, almofada; as profisses: alfaiate, almocreve, arrais; a organizao administrativa e financeira: alcaide, almoxarife, alfndega; a culinria e a alimentao: acepipe, acar; a guerra, as armas e a vida militar: alferes, refm; a habitao urbana e rural: arrabalde, aldeia, etc.

    Este vocabulrio compe-se essencialmente de substantivos, mas nele se encontram por vezes adjetivos; ex.: mesquinho, baldio. Em contrapartida, os termos gramaticais constituem exceo. , no entanto, do rabe que se origina a preposio at, port. antigo at, de hatta (com o mesmo sentido). A frmula oxal, por sua vez, provm da locuo wa a llah (e queira Deus). Existem ainda verdadeiros calcos, como fidalgo, em que as palavras de

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    origem romnica fi(lho) dalgo so combinadas segundo modelo fornecido pela lngua rabe.

    As palavras rabes lusitanizaram-se mediante certas adaptaes fonticas. O artigo rabe al aglutinou-se com freqncia aos substantivos, quer na sua forma pura (ex.: al-godo), quer na forma que toma em rabe antes de pa lavras iniciadas por uma consoante dental, caso em que o -l final do artigo se assimila a esta consoante. Este fenmeno produziu-se diante de r-; ex.: ar-roz > arroz; diante de -; ex.: a-car > acar; diante de z-; ex.: az-zeite> azeite; diante de d-; ex.: ad-dufe > adufe, etc.

    Boa parte das palavras de origem rabe atestadas pelos dicionrios j no pertencem lngua viva de hoje e so sentidas como arcasmos. Assim alfageme, anafil, adarga, etc. A arabizao do lxico portugus foi, pois, em outros tempos, maior que hoje. Foi tambm maior na parte sul do pas que no Norte: por exemplo, o que no Norte se chama soro palavra de origem latina designado, a partir de Coimbra, pelo termo de origem rabe almece (ou por suas variantes). Aduza-se, por fim, que a toponmia portuguesa conserva um nmero considervel de arabismos; ex.: Alcntara (a ponte), Almada (a mina), Algarve (o ocidente). Embora no desconhecidos no Norte, estes topnimos so freqentes principal mente no Centro e no Sul do pas.

    2 Palavras populares e palavras eruditas

    Como todas as lnguas romnicas, o portugus possui um vocabulrio complexo: s palavras que se mantiveram sempre vivas desde a poca latina, e que constituem o patrimnio hereditrio da lngua, vieram juntar-se palavras eruditas, criadas, em todas as pocas, com base no latim e no grego (ex.: internacional, automvel e telefone em portugus contemporneo). Este processo de criao vocabular comeou bem antes dos primeiros textos escritos em galego-portugus, ou seja, exatamente durante o perodo por ns estudado neste captulo. As palavras eruditas ou semi-eruditas que ascendem quela poca distante pertencem ao vocabulrio religioso. Podem ser detectadas pelo fato de no terem sofrido certas transformaes fonticas normais no vocabulrio do patrimnio hereditrio. Assim, cabidoo (captulo no sentido eclesistico), hoje cabido, que aparece no testamento de Afonso II (1214), representa o latim captlus, em prstimo posterior data em que todos os latinos se pronunciavam [] (pois que ele conserva este i latino), mas anterior queda do l intervoclico (uma vez que perdeu este fonema). mesma camada de termos religiosos que pertence bispo (epscpus), pela conservao do seu i, assim como culpa e cruz (lat. clpa, crcem), pela permanncia do seu u. Foi tambm a Igreja, no resta dvida, que imps, em data muito antiga, a terminologia crist dos dias da semana: domingo, segunda-feira, tera-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sbado.

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    Captulo 2 O galego-portugus (de 1200 a aproximadamente 1350)

    Acreditou-se durante largo tempo que os mais antigos textos em galego-portugus datavam dos ltimos anos do sculo XII. Estudos recentes mostraram, no entanto, que no foi exatamente nessa poca, mas no comeo do sculo XIII que esses textos apareceram9.

    Os fatos histricos

    Nesse tempo, o reino autnomo de Portugal j existia e a parte meridional do seu territrio estava quase inteiramente reconquistada. Portugal constituiu-se no sculo XII, quando Afonso I (Afonso Henriques), filho do conde Henrique de Borgonha, se tornou independente do seu primo Afonso VII, rei de Castela e de Leo. batalha de So Mamede (1128) que, tradicionalmente, se faz remontar esta independncia, ainda que Afonso Henriques s se tenha feito reconhecer como rei nos anos seguintes.

    Separando-se de Leo para se tornar reino independente, Portugal separava-se tambm da Galcia, que no mais deixaria de ficar anexada ao pas vizinho reino de Leo, reino de Castela e, finalmente, reino de Espanha. A fronteira, que no sculo XII isolou a Galcia de Portugal, estava destinada a ser definitiva.

    Ao mesmo tempo que se separava ao norte da Galcia, o novo reino independente de Portugal estendia-se para o sul, anexando as regies reconquistadas aos mouros (ver mapa 2). Com a tomada de Faro (1249), o territrio nacional atingiu os limites que, com algumas pequenas modificaes, correspondem s fronteiras de hoje. Dentre todas as naes europias, Portugal uma daquelas cujas fronteiras variaram menos.

    Isolado da Galcia, mas acrescido das terras meridionais reconquistadas, Portugal v o seu centro de gravidade transferir-se do Norte para o Sul. A residncia principal do primeiro rei era Guimares, no extremo norte. Os seus sucessores comearam a freqentar de preferncia Coimbra (libertada desde 1064). E, finalmente, Afonso III, em 1255, instala-se em Lisboa, que no mais deixaria de ser a capital do pas. Durante todo esse perodo, a lngua galego-portuguesa, nascida no Norte, vai-se espalhar pelas regies meridionais, que at ento falavam dialetos morabes. Lisboa, a capital definitiva, situava-se em ple na zona morabe.

    Tal como o castelhano, o portugus originou-se de uma lngua nascida no Norte (o galego-portugus medieval) que foi levada ao Sul pela Reconquista. Quanto norma, porm, o portugus moderno diverge do castelhano, pois vai busc-la no no Norte, mas sim na regio centro-sul, onde se localiza Lisboa. Mas ainda no chegamos a. Por agora basta ressaltar que durante todo o perodo compreendido entre o comeo do sculo XIII e meados do sculo XIV, bem depois, por conseguinte, do fim da

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    Reconquista, a lngua comum esse galego-portugus nascido no Norte. Passaremos, pois, a estud-lo.

    Os textos

    1 A poesia lrica O galego-portugus a lngua da primitiva poesia lrica peninsular, que foi conservada fundamentalmente em trs compilaes, das quais s uma foi organizada ao tempo dos trovadores: o Cancioneiro da Ajuda (copiado em fins do sculo XIII ou princpios do sculo XIV). Embora seja o mais antigo dos cdices de poesia profana, ele o menos rico quanto ao nmero de textos conservados, largamente superado no particular pelo Cancioneiro da Vaticana e, principalmente, pelo Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa (antigo Colocci-Brancuti), copiados ambos na Itlia, provavelmente nos primeiros anos do sculo XVI. Estes cancioneiros contm trs categorias de poesias:

    1) as cantigas damigo (poemas de amor, por vezes com traos populares, em que fala a mulher);

    2) cantigas damor (poemas mais eruditos, de freqente inspirao provenal, nos quais o homem quem fala);

    3) as cantigas descarnho e de mal dizer (poemas satricos, no raro extremamente grosseiros).

    Os textos mais antigos so do incio do sculo XIII, mas esta literatura vai buscar as suas origens a um passado mais distante, poesia dos trovadores pro venais para as cantigas damor, ou, para as cantigas de mulher, que so as cantigas damigo, tradio atestada pelas muwaahas dos sculos XI e XII, poemas em hebraico ou em rabe nos quais aparecem versos no romano moarbico.

    Estas compilaes, s quais se devem acrescentar as Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sbio (1221-1284), rei de Castela e de Leo a partir de 1252, so escritas numa lngua complexa, que tem por base os falares da Galcia e do Norte de Portugal. Nela se documentam arcasmos notveis, a atestarem que, para o seu pblico, esta literatura tinha um passado. Os autores so tanto galegos como portugueses. Entre eles encontram-se at leoneses e castelhanos. O galego-portugus, em suma, aparece nessa poca como a lngua exclusiva da poesia lrica, e quem quer que a quisesse praticar deveria, obrigatoriamente, adot-la. A assinatura de Afonso X, rei de Castela e de Leo de 1252 a 1284, junta-se assim, nos Cancioneiros, de D. Dinis de Portugal, rei de 1279 a 1325. Toda essa exploso lrica termina, porm, em meados do sculo XIV, tendo sido D. Pedro, conde de Barcelos (1289-1354), filho bastardo de D. Dinis, um dos ltimos trovadores.

    2 Documentos oficiais e particulares A partir de incios do sculo XIII surgem documentos inteiramente escritos em lngua vulgar testamentos, ttulos de venda, foros, etc. Um dos textos mais antigos deste gnero o testamento de Afonso II, datado de 121410. D. Dinis dar grande impulso utilizao da lngua vulgar ao torn-la obrigatria nos

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    documentos oficiais. A lngua desses textos, principalmente daqueles anteriores a 1350, mais espontnea e diversificada que a dos Cancioneiros. L. E. Lindley Cintra analisou os foros de Castelo Rodrigo, localidade situada a nordeste da Guarda, que pertencia, na poca, ao reino de Leo11. Esses foros datam da segunda metade do sculo XIII e esto escritos numa lngua em que o galego se mescla com o leons. Tal circunstncia explica-se pelo fato de que os reis de Leo, Fernando II (1157-1188) e Afonso IX (1188-1230), que haviam encontrado a regio deserta quando da Reconquista, a repovoaram com colonos vindos da Galcia. Fenmenos anlogos devem ter-se produzido em vrias outras regies. Podemos, pois, facilmente imaginar por que processos as misturas de populaes, ocasionadas pela Reconquista, levaram para o Sul os falares galego-portugueses do Norte.

    3 Os incios da prosa literria Em fins do perodo de que estamos tratando surgem as primeiras obras em prosa literria, merecendo uma meno particular o Livro de Linhagens de D. Pedro, conde de Barcelos (morto em 1354), e a Crnica Geral de Espanha de 134412 que em grande parte a verso portuguesa da Primeira Crnica General de Espaa, redigida por ordem de Afonso X, o Sbio.

    A grafia

    na segunda metade do sculo XIII que se estabelecem certas tradies grficas. O testamento de Afonso II (1214) j utiliza ch para a africada [t] ex.: Sancho, chus , consoante diferente do [], ao qual se aplica a grafia x. Este ch, de origem francesa, j era usado em Castela com o mesmo valor. Para n palatal e l palatal, somente aps 1250 que comeam a ser usadas as grafias de origem provenal nh e lh; ex.: gaanhar, velha. O til (~), sinal de abreviao, serve freqentemente para indicar a nasalidade das vogais, que pode vir tambm representada por uma consoante nasal; ex.: raz, razom ou razon. Apesar das suas imprecises e incoerncias, a grafia do galego-portugus medieval aparece como mais regular e fontica do que aquela que prevalecer em portugus alguns sculos mais tarde.

    Fontica e fonologia

    1 Vogais Em galego-portugus, o acento tnico podia recair na ltima slaba (perdi), na penltima (perde) e, muito raramente, na antepenltima (alvssara).

    Os fonemas voclicos eram mais numerosos quando tnicos:

    /i/ /u/

    // //

    // / /

    /a/

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    Ex.: /i/: aqui, amigo; //: verde, vez; //: perde, dez; /a/: mar, levado; / /: ps, porta; //: ps, boca; /u/: tu, alhur. Pode-se perguntar se, desde essa poca, o fonema /a/ no se realizaria como [] (a fechado) diante de consoantes nasais; ex.: ama, ano, banho.

    Em posio tona final o sistema estava reduzido a:

    (/i/)

    /e/ /o/

    /a/

    A existncia, nos textos mais antigos, de um fonema /i/ tono final no pode dar margem para dvidas. Encontra-se nos imperativos do tipo vendi, parti; nas primeiras pessoas do singular dos perfeitos fortes; ex.: estivi, pudi; nas segundas pessoas do singular de todos os perfeitos; ex.: cantasti, partisti; e em certas palavras como longi, viinti, eiri (ontem). Mas, no incio do sculo XIV, todas essas formas apresentam um -e final: vende, parte, estive, pude, cantaste, partiste. O sistema reduz-se, ento, aos trs fonemas representados pelas letras -e, -a, -o.

    Encontram-se grafias em -u (em lugar de -o) nos textos mais antigos. Alguns historiadores da lngua vem a a prova de que, desde essa poca, o galego-portugus pronunciaria [u] os tonos finais escritos hoje -o; ex.: havemos, campo. Outros, porm, interpretam essas grafias medievais em -u Ex.: avemus, canpu , como latinismos ou como formas de traduzir um timbre muito fechado de -o final. Esta segunda interpretao parece-nos a mais plausvel, por vrias razes, particular- mente porque o galego moderno pronuncia sempre o -o tono final como [] fechado. A nosso ver, as trs tonas finais do galego-portugus medieval deviam ter uma pronncia breve, e lei e lo! seriam realizados como [] e [] muito fechados.

    Em posio tona no final, ou seja, essencialmente em posio pretnica, as oposies entre // e //, de um lado, e entre // e / / de outro, desapareciam. O sistema reduzia-se ento aos cinco fonemas seguintes:

    /i/ /u/ /e/ /o/

    /a/

    Ex.: quitar, pecar, trager, conhocer, burlar.

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    2 Ditongos Eis as combinaes ocorrentes:

    Timbre final i: Timbre final u:

    ui iu

    ei oi eu ou

    ai au

    Ex.: primeiro, mais, coita, fruito, partiu, vendeu, cautivo, cousa. O timbre inicial era, para ei e eu, um [] fechado, e para oi e ou, um [] fechado.

    3 Consoantes O sistema pode ser assim reconstitudo:

    Labiais Dentais-alveolares

    Palatais Velares

    Oclusivas:

    Surdas /p/ /t/ /k/

    Sonoras /b/ /d/ /g/

    Constritivas:

    Surdas /f/ /ts/ /s/ /t/ //

    Sonoras /v/ /dz/ /z/ /(d)/

    Nasais /m/ /n/ /nh/

    Laterais [l]13 /lh/ //13

    Vibrantes:

    Branda /r/

    Forte / /

    Semivogais /y/ /w/

    Exemplos:

    Oclusivas: /p/: pan, rapaz; /b/: ben, cabo; /t/: tio, catar; /d/: dia, vida; /k/ (escrito c ou qu): creer, queixar; /g/ (escrito g ou gu): gostar; guerra.

    Constritivas: /f/: fazer; /v/: vida, aver; /ts/ (escrito e c diante de e e i): apato, paao, cinta, cen; /dz/ (escrito z): fazer; zarelhon (tecido grosseiro); /s/ (escrito ss em posio intervoclica, e s nas outras situaes): passo, saber; vs; /z/ (escrito s e usado somente em posio intervoclica): casa; /t/ (escrito ch): chaga, ancho; /(d)/ (escrito g ou j): trager; j, cajn; // (escrito x): leixar.

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    Nasais: /m/: mar; amor; /n/: nojo, pano; /nh/: vinha, venho.

    Laterais: [l] dental: leer, falecer; /lh/: espelho, velho; [] velar: mal, alar.

    Vibrantes: /r/ brando: fero; / / forte: ferro.

    Semivogais: /y/ (escrito i ou h): dormio, dormho; /w/ (escrito u): guarir, reguardo, quando.

    Seria imprudente tentar reconstituir as realizaes fonticas exatas destes fonemas nas suas diversas posies. Assinalemos simplesmente que /b/ e /v/ eram ento fonemas distintos. Em algumas palavras encontramos regularmente b; ex.: ben, saber; cabo; em outras, sistematicamente v: valer; vida, travar. Os casos de hesitao grfica entre b e v existem, mas num nmero reduzido de palavras; ex.: baron-varon.

    com relao s constritivas dentais-alveolares (as sibilantes) e palatais (as chiantes) que o sistema consonntico do galego-portugus medieval certamente mais se afastava do de hoje. Havia um par de africadas (uma surda e uma sonora): /ts/ e /dz/, bem diferentes de /s/ e /z/:

    /ts/

    Ex.: cen

    /s/

    Ex.: sen

    /dz/

    Ex.: cozer

    /z/

    Ex.:coser

    Nenhuma confuso ocorria entre as africadas e as simples, fenmeno que se verificou no portugus contemporneo, como veremos no captulo seguinte. No caso das palatais, a africada /t/ escrita ch, tambm se distinguia da simples // escrita x, ao passo que hoje o ch de chamar pronuncia-se como o x de deixar. A essas duas surdas correspondia uma nica sonora, que representamos por /(d)/; ex.: trager; j. Este fonema foi inicialmente a africada /d/ mas perdeu, num determinado momento, o seu elemento oclusivo inicial, e passou a //. Torna-se difcil saber se tal evoluo ocorreu durante o perodo que estamos estudando ou depois dele.

    4 Vogais nasais As vogais /i/, /e/, /a/, /o/ e /u/ so nasalizadas por uma consoante nasal implosiva, isto , seguida de outra consoante ex.: pinto, sente, campo, longo, mundo , ou no final de palavra ex.: fim, quen, pan, acaron, comun. Em posio tona final pode-se ter -en; ex.: senten; -an; ex.: venderan (mais-que-perfeito); e -on; ex.: venderon (perfeito). Quando a consoante nasal termina a palavra, a grafia mais comum foi por muito tempo -n. Porm, desde o perodo do galego-portugus medieval, comeam a aparecer nesta posio grafias em -m: quen passa a quem, cantan a cantam, etc. E esta grafia em -m que se vai generalizar em portugus.

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    Convm estudar parte as conseqncias da queda do -n- intervoclico. Como vimos no captulo anterior, esta nasal desapareceu, provavelmente, no sculo XI, aps ter nasalizado a vogal que a precedia. Resultou da um grande nmero de hiatos; ex.: vo (< vinu) e mo (< manu), pronunciados v-o e m-o em duas slabas distintas. Na poesia dos Cancioneiros a escanso dos versos permite comprovar que, de fato, a vogal nasalizada e a que a segue formam duas slabas separadas; ex.: p-o (< pinu-), s-o (< sanu-), alh-o (< alienu-) , b-o (< bonu-), b-a (< bona), companh-es (final em -ones), irm-a (< germana), etc. Mas estes grupos de vogais em hiato so, por natureza, muito instveis, e a maior parte deles ser eliminada ulteriormente pela lngua. J os textos medievais testemunham a ocorrncia de certas evolues que deveriam levar a esta eliminao: por exemplo, pinho por p-o (desenvolvimento do em hiato numa consoante nasal) ou alheo por alho (desnasalizao da vogal).

    5 Encontros voclicos As desnasalizaes do tipo alho > alheo vieram aumentar o nmero j importante das palavras que possuam duas vogais em hiato. Estes encontros voclicos resultam da queda de vrias consoantes: queda de -g- em maestre, meestre (< magister), em leer (< legere) e suas diversas formas leerei, leeria, etc.; queda de -d- em seer (< sedere), em creer (< credere), em traedor, treedor (< traditore). A queda do -l- intervoclico, da qual se tratou no captulo anterior, explica um forte contingente desses encontros; por exemplo: mao (< malu-), maa (< mala-), soo (< solu-), coor (< colore-), coorar (< coborare), coobra (< *colbra), diaboo (diabolu-), etc. Os encontros voclicos que resultam das desnasalizaes descritas no pargrafo anterior s fizeram, ento, aumentar a amplitude de um fenmeno j considervel. O galego-portugus passou a ter, assim, um nmero muito maior de palavras que comportavam vogais em hiato. Por vezes as duas vogais so diferentes (ex.: moesteiro), mas, no raro, colidem tambm duas vogais idnticas (ex.: maa, seer, viir, soo, nuu). Estes grupos voclicos podem incluir o acento tnico ( o caso dos cinco exemplos precedentes), mas podem tambm achar-se em posio pretnica (moesteiro, coorar) ou postnica (diaboo). Nos textos dos Cancioneiros, a escanso dos versos, repetimo-lo, garante que nesses grupos as duas vogais em contato se encontram em slabas diferentes. Dizia-se ento te-er; so-o, so-idade, co-oral; vi-ir, etc., do que resultava, por exemplo, que acha-ar, estender no cho, derivado de ch-o (< planu-) no se confundia com achar, encontrar.

    Documentam-se tambm nos Cancioneiros casos em que as duas vogais em contato devem ser contadas numa s slaba. Por vezes a prpria grafia sugere a crase; ex.: seredes por seeredes (futuro de seer). Inversamente, encontram-se grafias como ataa por at (at), que s podem representar a vogal tnica singela, ou seja, uma pro nncia dissilbica da palavra: a-t. Vemos, pois, que j na poca do galego-portugus se iniciam as evolues que, ulteriormente, tero como efeito eliminar em portugus a maioria dos encontros voclicos.

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    Morfologia e sintaxe

    Selecionaremos aqui apenas alguns pontos que apresentam um interesse particular, seja porque distinguem o galego-portugus do conjunto hispnico, seja porque caracterizam um estado de lngua diferente do portugus moderno.

    1 Morfologia do nome e do adjetivo A queda do -l- e do -n- intervoclicos tivera conseqncias importantes nos paradigmas:

    a) Plural dos nomes e adjetivos terminados por -l-. O -l- mantm-se no singular mas cai no plural.

    Temos, por exemplo:

    Singular Plural

    sinal sinaes (isto , sina-es)

    cruel cruees (isto , crue-es)

    b) Morfologia dos nomes e adjetivos em -o, -an e -on. Aqui a queda do -n- intervoclico que explica as formas galego-portugus.

    Os nomes provindos do latim -anus (ex.: manus, mo), -anis (ex.: canis, co) e -o, -onis (ex.: leo, leonis, leo) tinham dado, a partir do acusativo, as formas esperadas:

    Singular Plural

    manu- > mano > mo *manos > mos

    cane- > can(e) > can canes > ces

    leone- > leon(e) > leon leones > lees

    Advirta-se que, no singular, cane e leone perderam cedo o -e final. Quando os -n- intervoclicos caram, havia muito tempo que se dizia can e leon: o -n- no era mais intervoclico, mas final, razo por que no caiu. No singular mano e nos trs plurais, ao contrrio, o -n- era intervoclico: caiu, ento, depois de ter nasalizado a vogal anterior. Em galego-portugus os grupos o, e e e que da resultaram foram primeiro bissilbicos. Dizia-se, pois, m-o, m-os, c-es, le-es. Da mesma maneira, os adjetivos que em latim terminavam em -anus (ex.: sanus) apresentam as seguintes formas:

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    Singular

    Plural

    masculino: sanu- > sano > so sanos > sos

    feminino: sana > sa sanas > sas

    (pronunciar s-o, s-os, s-a, s-as)

    2 Possessivos Existia para o feminino de meu, teu, seu uma forma tona distinta da forma tnica:

    Masculino Feminino

    Tnica tona

    meu mia, ma, minha mia, mha, ma

    teu tua ta

    seu sua sa

    3 Diticos Os diticos (demonstrativos e advrbios de lugar) organizavam-se de acordo com o seguinte sistema14.

    este esse

    Demonstrativos

    aqueste aquel(e)

    aqui ali

    ac al Advrbios de

    lugar

    ac al

    O sistema ternrio do portugus moderno j estava, portanto, constitudo para os demonstrativos: este (1 pessoa), esse (2 pessoa) e aquel(e) (3 pessoa), com uma forma aqueste, reforada de este. J no que se refere aos advrbios de lugar s havia oposies binrias entre morfemas em -i, em - e em -o, sendo de notar que ac-al eram de emprego mais raro que aqui-ali e ac-al.

    4 Os anafricos (h)i e ende-en Estas palavras tinham a mesma origem, o mesmo sentido e os mesmos empregos que y e en do francs em

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    enunciados do tipo jy suis, jy pense, jen viens, jen veux. Ex.: A Santa Maria das Leiras / irei, velida, se i ven meu amigo15 de uma cantiga damigo; ca de tal guisa se foi a perder / que non podemos en novas aver16 de uma cantiga descarnho e mal dizer. Estes anafricos (h)i e ende-en encontram-se a cada instante nos textos em galego-portugus medieval.

    5 Morfologia do verbo O sistema dos modos e tempos j o do portugus moderno. Contm um mais-que-perfeito simples, diretamente herdado do latim; ex.: amara (< amaram < amaueram), empregado no sentido de temporal (tinha amado) ou modal (amaria), e um futuro do subjuntivo (amar, fezer). Notaremos em particular os pontos seguintes:

    a) O infinitivo flexionado ou pessoal Trata-se de um infinitivo que possui as desinncias pessoais (teer, teeres, teer, teermos, teerdes, teeren). Este tempo, atesta do j nos textos mais antigos, um trao especfico do galego e do portugus, sendo desconhecido do leons e do castelhano. Ex.: Guardade-vos de seerdes escatimoso ponteiro17 poema satrico de Afonso X.

    b) Formas arcaicas da primeira pessoa do singular de alguns verbos Citem-se, por exemplo, seno (hoje sinto), meno (hoje minto), aro (hoje ardo), pero (hoje perco), moiro (hoje morro), paresco (hoje pareo), etc.

    c) Na segunda pessoa do plural, as formas etimolgicas com -d- so todas conservadas; ex.: amades, vendedes, partdes, seeredes (futuro), leixedes (subjuntivo), etc.

    d) Nos perfeitos fortes encontram-se lado a lado, na terceira pessoa, fizo e fez (de fazer), disso-dixo e disse (de dizer), poso e ps (de per), etc.

    e) Os verbos da segunda conjugao (-er) formam geralmente o seu particpio passado em -udo; ex.: avudo (aver), credo (creer), conhoudo (conhocer), perdudo (perder), sabudo (saber), venudo (vencer), apareudo (aparecer), etc.

    f) O tratamento As duas nicas maneiras de diri gir-se a um interlocutor (tratamento) so o tuteamento familiar (tu) e o voseamento deferente (vs). Desconhecem-se ainda as frmulas de tratamento que levam o verbo terceira pessoa.

    O vocabulrio

    1 Emprstimos do francs e do provenal A in fluncia da lngua dol e da lngua doc muito forte durante o perodo do galego-portugus, e explica-se por uma srie de causas convergentes: presena da dinastia de Borgonha, implantao das Ordens de Cluny e de Cister, chegada a Portugal de numerosos franceses do Norte e do Sul, influncia direta da literatura provenal, etc. Da os numerosos emprstimos vocabulares, de que damos alguns exemplos:

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    a) Emprstimos do francs Dama (< dame), daian (< francs antigo deiien, hoje doyen), preste (< francs antigo prestre), sage, maison, etc.

    b) Emprstimos do provenal Assaz (< assatz), greu, difcil, alegre, manjar, rouxinol (< rossinhol), talan, vontade, desejo, freire (< fraire), cobra, copla, estrofe (< cobla), trobar, trobador, etc.

    2 Palavras eruditas e semi-eruditas Como vimos no captulo anterior, o recurso a emprstimos feitos diretamente ao latim ascende a poca muito remota, e nunca deixou de ser praticado. Entre as palavras semi-eruditas, isto , aquelas de entrada mais antiga na lngua, podemos incluir mundo, virgem, clrigo e a sua variante crrigo, diaboo, escola, pensar (cuja variante popular pesar). Outras so mais recentes, por exemplo os adjetivos em -ico (cf. plobico, ou seja pblico, num documento de 1303)18. Para dar uma idia da complexidade e da abundancia destes emprstimos, assinalaremos alguns colhidos ao folhear o glossrio das Cantigas dEscarnho e Mal Dizer na edio de Rodrigues Lapa (Editora Galxia, 1965). Encontram-se a alegoria (no sentido de cincia, arte), animalha (animal irracional), apstata, arcebispo, arcediano (hoje arcediago), bautiar (baptizar), beneficio, calendairo (hoje calendrio), cncer, ciena (cincia), citolon e citolar, derivados de ctola (de cithara), confessar, confirmar defeso, defesa, defenson, eiceion (excepo), estrologia-astrologia, estrolomia (astronomia), fisico (mdico), natura, natural, ofcio, etc.

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    Captulo 3 O portugus europeu (do sculo XIV aos nossos dias)

    Por volta de 1350, no momento em que se extingue a escola literria galego-portuguesa, as conseqncias do deslocamento para o Sul do centro de gravidade do reino independente de Portugal vm tona. O portugus, j separado do galego por uma fronteira poltica, torna-se a lngua de um pas cuja capital ou seja, a cidade onde geralmente reside o rei Lisboa. Embora o rei e a corte se desloquem freqentemente, a sua rea de percurso situa-se agora num territrio delimitado por Coimbra ao norte e vora ao sul. nesta parte do reino que esto implantadas as instituies que desempenham papel cultural mais importante, tais como os Mosteiros de Alco baa e o de Santa Cruz de Coimbra e a Universidade que, fundada em Lisboa em 1288 ou 1290, depois transferida para Coimbra e, em outras ocasies, novamente para Lis boa, foi, por fim, definitivamente instalada em Coimbra em 1537. Residncia privilegiada do rei, Lisboa tambm a cidade mais povoada e o primeiro porto do pas. E o eixo Lisboa-Coimbra passa a formar desde ento o centro do domnio da lngua portuguesa. , pois, a partir dessa regio, antes morabe, que o portugus moderno vai constituir-se, longe da Galcia e das provncias setentrionais em que deitava razes. da que partiro as inovaes destinadas a permanecer, a onde se situar a norma.

    Problemas de periodicidade

    possvel determinai; na histria da lngua portuguesa do sculo XIV at aos dias atuais, perodos que permitam esclarecer-lhe satisfatoriamente a evoluo? No fcil a resposta. Alguns estudiosos distinguem na evoluo do portugus dois grandes perodos: o arcaico, que vai at Cames (sculo XVI), e o moderno, que comea com ele. Outros baseiam a sua periodizao nas divises tradicionais da histria Idade Mdia, Renascimento, Tempos Modernos , ou nas escolas literrias, ou simplesmente nos sculos... Trata-se, em verdade, de um problema muito complexo, que no ser abor dado aqui. Contentar-nos-emos em isolar, na evoluo histrica, vrios eixos que permitam ordenar, esclarecer e melhor compreender os fenmenos lingsticos.

    1 Os Descobrimentos e a expanso ultramarina

    No sculo XIIV os portugueses descobrem os arquiplagos da Madeira e dos Aores, que comeam a povoar em princpios do sculo seguinte. Em 1415, tomam Ceuta. descem pouco a pouco a costa da frica. Em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperana. Em 1498, Vasco da Gama chega ndia. Em 1500, Pedro lvares Cabral descobre o Brasil. Depois, os portugueses prosseguem at Malaca, s ilhas de Sonda, s Molucas, China

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    e ao Japo. A lngua portuguesa, transportada as sim para o ultramar, vai-se expandir por vastos territrios. Poltica e administrativamente, nada resta hoje do antigo Imprio. O Brasil tomou-se independente em 1822, e a descolonizao que se seguiu revoluo de 25 de abril de 1974 ps termo presena portuguesa na frica. A lngua, porm, essa permaneceu no Brasil e em diferentes pases da frica e da Asia.

    Examinaremos nos prximos captulos as modalidades do portugus de alm-mar.

    2 Histria cultural e literria

    Remetemos sobre esse assunto s obras especializa das. No que se refere ao vocabulrio e sintaxe, a evoluo do portugus reflete os grandes perodos que se podem distinguir na histria cultural e literria: o desenvolvimento da prosa literria nos sculos XIV e XV, o Renascimento, o italianismo, o humanismo, a censura inquisitorial, a Contra-Reforma e o controle da educao pelos jesutas, a reao neoclssica e a Arcdia, o liberalismo e o romantismo, o realismo e o naturalismo, etc.

    3 s influncias estrangeiras

    No particular, dois fatos importantes devem ser ressaltados:

    a) O bilingismo luso-espanhol

    Entre meados do sculo XV e fins do sculo XVII o espanhol serviu como segunda lngua para todos os portugueses cultos. Os casamentos de soberanos portugueses com princesas espanholas tiveram como efeito uma certa castelhanizao da corte. Os sessenta anos de dominao espanhola (1580-1640), que se situam no perodo mais brilhante do Sculo de Ouro, acentuaram esta impregnao lingstica. somente depois de 1640, com a Restaurao e a subida ao trono de D. Joo IV, que se produz uma certa reao anti-espanhola. O bilingismo, toda via, perdurar at o desaparecimento dos ltimos representantes da gerao formada antes de 1640. Assim, durante aproximadamente dois sculos e meio, o espanhol foi em Portugal uma segunda lngua de cultura.

    A maioria dos escritores portugueses escreve tambm em espanhol. o caso, para s citar os mais importantes, de Gil Vicente, de S de Miranda, de Lus de Cames, de Francisco Manuel de Meio. Alguns, como Jorge de Montemor, o autor de Diana (1559-?), que hispaniza o seu nome em Montemayor, abandonam completamente a sua lngua. Os partidrios desse bilingismo, frisemos, no vem nisso nenhuma traio, nenhuma infidelidade para com o seu pas. Somente um pequeno nmero de escritores penetrados de cultura humanista, como Antnio Ferreira (1528-1569), manifesta uma certa forma de patriotismo lingstico recusando-se a escrever em espanhol. Alis, deve-se advertir que o espanhol dos nossos portugueses tinha caractersticas bem peculiares. Era pronunciado com

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    sotaque local e, alm disso, a sua morfologia e a sua sintaxe afastavam-se freqentemente da norma do pas vizinho. Assim, o infinitivo flexionado do portugus era introduzido em castelhano: Penitencia ser harta/pensares en mi tormento19, diz, por exemplo, uma personagem de Gil Vicente. Esses lusismos do castelhano de Portugal encontram-se tambm no vocabulrio. Sem saber como exprimir em espanhol o sentimento que o portugus designa com o termo saudade, os nossos escritores bilnges forjam a nova palavra saludad20.

    b) A influncia francesa

    A partir do sculo XVIII o espanhol deixa de desempenhar o papel de segunda lngua de cultura, que passa ento a ser exercido pelo francs. No se trata propriamente de uma situao de bilingismo, mas nos livros franceses que os portugueses vo buscar boa parte de sua cultura, e por intermdio do francs que entram a maio ria das vezes em contato com o mundo exterior. Ainda que rechaado pelos puristas, o galicismo insinua-se de mil maneiras no vocabulrio e na sintaxe.

    4 Os gramticos, lexicgrafos e fillogos

    A obra dos gramticos, lexicgrafos e fillogos tambm interessa histria da lngua.

    A gramtica nasce em Portugal da cultura humanista, cabendo o pioneirismo do seu ensino a Ferno de Oliveira, autor de uma Grammatica da Lingoagem Portuguesa (1536). A esta segue-se a Grammatica da Lingua Portuguesa (1539-1540), de Joo de Barros21. E desde ento at ao sculo XIX vai aparecer um nmero considervel de gramticas normativas e de tratados de ortografia, como os de Duarte Nunes de Leo (Orthographia, 1576; Origem da Lingua Portuguesa, 1606), de Bento Pereira (Ars Grammaticae Pro Lingua Lusitana, 1672), de D. Jernimo Contador de Argote (Regras da Lingua Portuguesa, 1721), de Joo de Morais Madureira Feij (Orthographia, 1734), de D. Lus Caetano de Lima (Orthographia, 1736), de Lus Monte Carmelo (Compendio de Orthographia, 1767). Ainda que bastante decepcionantes, de um modo geral, para o leitor de hoje, essas obras fornecem-nos de vez em quando informaes preciosas sobre a histria da lngua. Quanto lexicografia portuguesa, ela tambm filha do humanismo. O primeiro lexicgrafo, Jernimo Cardoso, redige diversos dicionrios de portugus-latim e latim-portugus (1551, 1562, 1562-1563, 1569-1570)22.

    Surgem mais tarde o dicionrio de portugus-latim de Agostinho Barbosa (1611), os dicionrios de Bento Pereira (latim-portugus em 1634, portugus-latim em 1647), o Vocabulrio Portuguez e Latino de D. Rafael Bluteau (8 volumes, de 1712 a 1721, e 2 volumes de suplemento, de 1727-1728) e, finalmente, o Dicionrio da Lngua Portuguesa de Antnio de Morais Silva (1789), vrias vezes reeditado e aumentado (entre 1949-1959 foi publicada a 10 edio, em 12 volumes), e que pode ser considerado o

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    antepassado de todos os dicionrios modernos da lngua. No que se refere filologia cientfica, ela foi introduzida em Portugal na segunda metade do sculo XIX por Francisco Adolfo Coelho (1847-1909). Ilustram-na, entre outros, Aniceto dos Reis Gonalves Viana (1840-1914), fundador da fontica portuguesa, Carolina Michalis de Vasconcelos (1851-1925) e Jos Leite de Vasconcelos (1858-1941).

    Separao do galego

    O galego comea a isolar-se do portugus desde o sculo XI com obras em prosa de que a Cronica Troiana um dos melhores exemplos. Entre 1350 e 1450 houve na Galcia uma segunda florao lrica, da qual os portugueses no participaram. Mas a partir do sculo XVI o galego deixa de ser cultivado como lngua literria e s sobrevive no uso oral. Sofre, alm disso, uma srie de evolues fonticas que vo afast-lo cada vez mais do portugus: ensurdecimento das fricativas sonoras escritas z, -s- e j (ex.: cozer, coser, j), que se confundem com , -ss- e x; pronncia interdental do antigo ; transformao, em toda a parte ocidental da Galcia, de g oclusivo em uma fricativa velar surda idntica ao jota do espanhol contemporneo (trata-se do fenmeno chamado geada), etc. Ao mesmo tempo, acentuam-se no interior do galego algumas diferenas dialetais, e o vocabulrio invadido de hispanismos. Nos sculos XIX e XX vai haver um Renascimento galego, e escritores e fillogos esforar-se-o por elaborar uma lngua unificada. Mas, pela sua fontica, pela sua morfologia, pelo seu vocabulrio, pela sua sintaxe e mesmo pela sua ortografia, este galego moderno j uma lngua diferente do portugus diferente, contudo suficientemente prxima para que, em condies favorveis, a intercompreenso ainda seja possvel.

    interessante, a este respeito, analisar a maneira como os falares galegos so percebidos e julgados pelos portugueses. Desde o sculo XVI o galego sentido, ao m tempo, como arcaico e provincial. A personagem do constitui at ao sculo XIX uma das figuras tradicionais do teatro popular: trata-se do galego de Lisboa, que exercia as profisses de carregador e de aguadeiro. Caracteriza-se pela linguagem, cujas particularidades acentuam, at caricatura, alguns traos prprios dos falares portugueses do extremo norte. assim que o galego, que nas origens da lngua tanto contribuiu para definir a norma literria, veio a encontrar-se no plo oposto desta mesma norma. A rusticidade da Galcia ope-se, agora, urbanidade de Lisboa.

    O territrio do portugus europeu

    Amputado do galego, o portugus chegou a ocupar um territrio que corresponde, aproximadamente, ao territrio nacional de Portugal continental veja-se a este respeito o mapa 3, p. 5823.

    Os raros pontos onde a fronteira lingstica no recobre a fronteira poltica so os seguintes: ao norte, em Ermisende (provncia de Zamora), fala-se uma variedade de portugus. A leste do distrito de Bragana, do lado

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    portugus da fronteira, em Riodonor, Guadramil, Miranda e Sendim, fala-se uma variedade de leons. Mais ao sul, do lado espanhol, o portugus falado em Alamedilla, em Eljas, em Valverde del Fresno e em San Martn de Trevejo (dialeto oriundo do galego), em Herrera de Alcntara e em Olivena (localidade que foi portuguesa at 1657 e, depois, de 1668 a 1801). Trata-se aqui de sobrevivncias dialetais que no impedem a difuso das duas lnguas nacionais, o espanhol de um dos lados da fronteira e o portugus do outro. Tambm os arquiplagos da Madeira e dos Aores pertencem rea europia da lngua.

    Como se v, o portugus uma lngua nacional praticamente perfeita. Ocupa, alm disso, uma rea que se manteve estvel desde a origem. Portugal um pas que ignora os problemas criados, em outras regies, pela existncia de minorias lingsticas.

    Evoluo fontica do portugus europeu do sculo XIV aos nossos dias

    1 Eliminao dos encontros voclicos

    Vimos no captulo anterior que o galego-portugus medieval possua um grande nmero de palavras com duas vogais contguas que formavam um hiato. Esses encontros voclicos resultavam da queda de diversas consoantes, em particular do -d-, do -l- e do -n- intervoclicos. Ex.: v-o, b-o, irm-a, le-er, se-er, tra-edor, ma-o, ma-a, co-or, co-orar, diabo-o. Desde a poca dos Cancioneiros comeam, porm, as evolues, que tero como conseqncia a eliminao de todos esses hiatos. O estudo das grafias, das rimas e da mtrica, nos textos dos poetas de fins do sculo XV, mostra-nos que esta eliminao j estava ento concluda (salvo casos particulares, que examinaremos a seguir), e que, por exemplo, as palavras citadas anteriormente haviam passado a vinho, bom, irm, ler, ser trdor, mau, m, cor, crar, diabo (formas que as grafias arcaicas escondem freqentemente). As principais solues postas em prtica para chegar supresso dos hiatos so:

    1) Desenvolvimento de uma consoante entre duas vogais

    o caso das seqncias --o e --a, que se tornam -inho e -inha; ex.: v-o (< vinu) > vinho, gal-a (< gallina) > galinha. A consoante nasal [nh] surgida de [] em hiato, separa doravante as duas vogais, suprimindo a seqncia instvel.

    2) Contrao das duas vogais numa vogal nica

    Quando uma das duas vogais nasal, o resultado uma vogal nasal; ex.: l-a > l, b-o > b (escrito bom), t-es > tens, caente > queente > quente, pa-ombo >pombo, f-es > fins, tri-inta > trinta. As vogais nasais resultantes das contraes desse tipo so [], [], [], [], [] que j existiam na lngua. O

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    sistema fonolgico no , pois, afetado. No se d o mesmo, porm, quando a contrao se produz entre duas vogais orais. Embora o resultado seja sempre uma vogal oral, da contrao podem originar-se fonemas novos, que provoquem uma modificao no sistema fonolgico da lngua. Para melhor compreend-lo, convm levar em conta a posio das referidas vogais em relao ao acento tnico.

    a) Posio tnica: tm-se como resultados da contra o as 7 vogais orais [i], [], [], [a], [ ], [], [u]. Ex.: Resultado [i]: vi-es (plural de vil) > vis, v-ir > vi-ir > vir. Resultado []: le-er > ler; se-er > ser; me-esmo > mesmo. Resultado []: pe-e > p, ma-estre > meestre > mestre, sa-eta > seeta > seta. Resultado [a]: ma-a > m, pa-ao > pao. Resultado [ ]: co-obra > cobra, ma-or > moor> mor; mo-a > m. Resultado []: co-or > cor. Resultado [u]: nu-o > nuu > nu. Mas essas combinaes no esgotam todos os casos possveis. Temos, com efeito, ga-anha > ganha (verbo) e ga-anho > ganho (substantivo), nos quais o a, resultante da contrao, conservou at hoje no portugus europeu um timbre aberto ([a]) apesar da presena da consoante nasal seguinte, que, nas palavras que contm um a singelo etimolgico, sempre fechou esta vogal em []; ex.: cama, cano, banho. Desta maneira a contrao ga-anha > ganha (com [a]) d origem a uma oposio fonolgica entre [a] e [] diante de consoante nasal. E, efetivamente, a lngua vai utilizar esta oposio nos perfeitos da primeira conjugao, cuja desinncia mos (com [a] aberto) da primeira pessoa do plural se ope desinncia -amos (com [] fechado) do presente do indicativo. Assim, o sistema das vogais orais tnicas passa a compreender oito fonemas: ressalvando-se que a oposio entre /a/ e // de fraco rendimento.

    /i/ /u/

    // //

    //

    // / /

    /a/

    b) Posio postnica: aqui nenhuma mudana se opera no sistema. Os grupos tonos -oo e -aa situados em fim de palavras contraem-se em -o e -a; ex.: dibo-o > diabo, orgo-o > orago, Brga-a > Braga. O -o e o -a resultantes de -oo e -aa confundem-se, pois, com -o e -a etimolgicos, ex.: amigo, porta.

    c) Posio pretnica: aqui as contraes das vogais em hiato vo produzir trs fonemas voclicos novos que, no portugus contemporneo, sempre se distinguem das vogais simples na mesma posio. Esses trs fonemas voclicos so hoje [], [a] e [ ] abertos. Tem-se, por exemplo, [] aberto pretnico em esca-ecer > esqueecer > esqucer, pre-egar > prgar (predicar); tem-se [a] aberto em ca-aveira > cveira, pa-adeiro > pdeiro, a-a casa > casa; finalmente, tem-se [ ] aberto em co-orar > crar. No sculo XV, quando a das vogais em hiato se completaram, essas vogais deviam ser

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    longas e abertas, em oposio s pretnicas simples [], [] e [ ], que eram breves e fechadas; ex.: pregar (fixar com pregos), cadeira, morar. Os trs fonemas novos sero reforados pelos alongamentos compensatrios resultantes da queda de algumas consoantes na pronncia das palavras eruditas; ex.: director com [] aberto e c mudo, aco com [a] aberto e c mudo, adopo com [ ] aberto e p mudo. assim que, por volta de 1500, o sistema das vogais orais em posio pretnica se toma exatamente o mesmo que em posio tnica:

    /i/ /u/

    // //

    //

    // / /

    /a/

    Ex.: /i/ em livrar; // em pregar; // em prgar; // em cadeira; /a/ em padeira; / / em crar; // em morar; /u/ em burlar.

    3) Contrao de duas vogais orais num ditongo oral

    A pronncia monossilbica de certos grupos de vogais em hiato produz ditongos. Assim a-e dar ae, que se confundir com ai; ex.: sina-es (plural de sinal) > sinaes > sinais. Da mesma maneira a-o dar ao, que se confundir com au; ex.: ma-o > mao > mau. Mas em trs tipos de seqncias voclicas o produto da contrao ser um ditongo inteiramente novo, que no existia na lngua. Essas trs seqncias so -e (com [ ] como primeira vogal), -e (com []) e -o (com []) que daro, respectivamente, oe (escrito hoje i), ee (escrito hoje i) e eo (escrito hoje u). Temos, pois, so-es (plural de sol) > soes, hoje sis; crue-es (plural de cruel) > cruees, hoje cruis; ce-o > ceo, hoje cu. E, assim, o quadro dos ditongos orais, enriquecido de trs unidades i ([y]) i ([ y]) e u ([w]) , passou a ser:

    Timbre final -i: Timbre final -u:

    ui iu

    i i u u i i u

    ai au

    Ex.: primeiro, cruis, mais, sis, sois, fui, partiu, vendeu, cu, mau, cousa.

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    4) Contrao de uma vogal nasal e de uma vogal oral em ditongo nasal

    As seqncias atingidas por essa contrao so trs: -o, -e e -e. Elas vo produzir ditongos nasais o, e, e, pronunciados respectivamente [], [] e [] ex.: m-o > mo, c-es (plural de can) > ces, le-es (plural de leon) > lees. Esta a origem dos ditongos nasais, to caractersticos da lngua portuguesa.

    5) Encontros voclicos provindos da queda de -d- nas desinncias verbais (2 pessoa do plural)

    Enquanto tais evolues voclicas se desenvolviam, uma nova srie de encontros voclicos foi produzida pela queda, ocorrida na primeira metade do sculo XV, do -d- intervoclico da desinncia da segunda pessoa do plural dos verbos. Tivemos assim: estades > esta-es > estaes e, finalmente, estais; vendedes > vende-es > vendees e, finalmente, vendeis; sentides > senti-es > sentis; sodes > so-es > sois.

    Estudamos at aqui o curso normal dessas redues de encontros voclicos. Examinadas nas suas mincias, tais evolues fonticas apresentam por vezes complexidade bem maior do que lcito concluir das nossas anlises. Algumas das vogais resultantes dessas redues foram suprimidas por aes analgicas. Assim, seerei, teerei reduzem-se a serei, terei, com [] pretnico (em vez de [] esperado). Por outro lado, as grafias no seguem as evolues fonticas. Continuam a ser escritas as vogais duplas em hiato (ex.: seer, coorar, moor) muito tempo depois de se haverem contrado. Obstina-se em conservar as letras que figuravam nas formas etimolgicas dos novos ditongos (ex.: sinaes, mao, ceo), ou nas das vogais nasais (ex.: irma, la). Ainda mais: escrevem-se vogais duplas em palavras que nunca as haviam tido, como forma de indicar a slaba tnica (ex.: estaa, poobre, antiigo). Comprovam-se a as conseqncias habituais do atraso da grafia em relao pronncia.

    As evolues que acabamos de descrever produziram-se nos sculos XIV e XV. Estavam concludas por volta de 1500. Permanecero ainda na lngua algumas seqncias de vogais em hiato que sero eliminadas posteriormente: a (escrito em geral ha) feminino de um, passar a uma, forma que se generaliza nas grafias do sculo XVIII; os hiatos e-o, e-a sero suprimidos pelo aparecimento de um iode, donde -eio, -eia; ex.: che-o > cheio, cre-o > creio, cande-a > candeia (formas que aparecem esporadicamente desde o sculo XVI, mas que s vo predominar definitivamente na lngua escrita no sculo XIX). Acrescente-se, por fim, que alguns encontros voclicos sobrevivem na lngua contempornea; ex.: lua (< la), boa (feminino de bom).

    Uma concluso geral se pode tirar do que foi dito. Os hiatos produzidos pela queda de numerosas consoantes desencadearam um processo de reviso que provocou o enriquecimento do sistema fonolgico das vogais no decorrer dos sculos XIV e XV Este sistema doravante constitudo por oito vogais orais: /i/, //, //, /a/, //, / /, // e /u/, tanto em posio pretnica quanto em posio tni ca. Reduz-se a trs

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    vogais em posio final: /E/, /A/ e /O/. As combinaes de ditongos orais, aumentadas de trs, passam a ser onze: ei, i, ai, i, oi, ui, iu, eu, u, ai, ou. Enfim, as nasais compreendem agora trs ditongos.

    Esse, em sntese, o sistema voclico do portugus por volta do ano 1500.

    2 Unificao dos substantivos singulares anteriormente em --o, -an e -on

    Como vimos no captulo anterior, o galego-portugus possua trs categorias de substantivos como mostram os exemplos seguintes:

    Singular Plural

    m-o m-os

    can c-es

    leon le-es

    Aps a reduo dos hiatos nas condies que acabamos de descrever, o sistema passa a:

    Singular Plural

    mao maos

    can, cam ces

    leon, leom lees

    Processou-se, a seguir, uma unificao das formas do singular, enquanto os plurais permaneciam como antes. E, assim, por volta de 1500, chegamos ao seguinte sistema, que o mesmo da lngua moderna:

    Singular Plural

    mo mos

    co ces

    leo lees

    Todas as palavras da lngua que possuam primitivamente -an (-am) e -on (-om) convergiram desta maneira para uma s terminao em -o. o caso das formas verbais tnicas; ex.: dan > do, cantarn > cantaro

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    (futuro), son > so; e as formas verbais tonas; ex.: cantran (mais-que-perfeito) > cantro, escrito hoje cantaram; cantron (perfeito), forma que veio a identificar-se com a do mais-que-perfeito na pronncia e na grafia. Da mesma maneira o advrbio entn e a negao non (primeiramente apenas sob a forma tnica) passam a ento e no.

    No h um consenso entre os historiadores da lngua sobre as causas dessa mutao. Para uns, trata-se de uma evoluo puramente fontica e, para outros, do resultado de aes analgicas complexas24. Inclinamo-nos a pensar que as duas explicaes so igualmente verdadeiras, e que se completam. Em todo o caso, uma afirmao pode ser feita com segurana: o estado da lngua moderna nesse ponto j estava definido por volta de 1500.

    Ainda que as grafias distingam sempre as palavras provindas de -an e -on, que tm a forma -am (ex.: cam, leam, fizeram), das palavras em que -o etimolgico (ex.: mo, so (adjetivo), cristo), o estudo das rimas mostra que, na realidade, -o j era geral.

    Notemos, por fim, que essa evoluo se deu no portugus do Sul, do Centro e s numa parte no portugus do Norte. No foi seguida no extremo norte, e em particular no Minho. Nesta regio, as antigas palavras em -on no passam a -o mas a [u] (ex.: [trubu] trovo, [ferru] ferro) e esta categoria chegou mesmo a absorver as antigas palavras em -an (ex.: [ku] de can).

    Assim, uma inovao nascida no Centro-Sul estende-se maior parte do pas, torna-se a norma da lngua comum, mas poupa o extremo norte. Este primeiro exemplo ilustra bem o deslocamento do centro de gravidade do portugus moderno. , de agora em diante, o Centro-Sul que faz a lei, marginalizando os falares do Norte, donde saa, anteriormente, a norma.

    3 Permanncia da distino entre /b/ e /v/ no portugus comum

    Em galego-portugus, como vimos no captulo anterior, /b/ e /v/ eram fonemas distintos, e continuam sendo no portugus comum de hoje: bala e vala no se confundem, da mesma forma que cabo e cavo. O fonema /b/ realizado como uma bilabial e /v/ como uma labiodental. Tal a pronncia de Lisboa e de toda a parte central e meridional do pas. Numa larga zona do Centro e do Norte h hoje, porm, um fonema nico, como em espanhol. Sempre bilabial, esse fonema realizado, conforme as posies, como oclusiva [b] ou como fricativa [ ] confundir-se-o, assim, cem balas e cem valas com [b] e confundir-se-o tambm cabo e cavo com [ ]. Esse trao de pronncia, chamado a troca do b pelo v, um dos que deixam imediatamente reconhecer a origem provincial de tal ou tal locutor. As pesquisas dialetolgicas modernas permitiram traar-lhe, com preciso, os limites (ver mapa 3): a zona de distino entre /b/ e /v/termina hoje a oeste, um pouco ao sul de Coimbra, mas ela sobe a leste at Trs-os-Montes, penetrando como uma cunha na zona de confuso que abrange o portugus do Norte, o galego e o espanhol. Em que data esta fronteira lingstica, que corta Portugal em dois, foi estabelecida? Cita-se freqentemente, a esse

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    respeito, um jogo de palavras entre o nome de pessoa Bimarder e a frase vi-m arder, que aparece na Menina e Moa, o clebre romance de Bernardim Ribeiro, cuja composio remonta talvez dcada de 1530-1540. Mas o autor cita estas palavras como sendo galegas e no portuguesas25. Tem de se esperar pela segunda metade do sculo XVI para aparecer um testemunho explcito: Duarte Nunes de Leo, na sua Orthographia (1576), menciona a confuso do b e do v, e precisa que ela aparece nos galegos e em alguns portugueses dentre Douro e Minho26. Desde ento, os gramticos e ortgrafos portugueses no deixam de apontar esse erro, pelo qual os portugueses do Norte se vinculam aos galegos e, de um modo mais geral, aos espanhis.

    Mapa 3

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    As modalidades exatas deste fenmeno, que interessa a um tempo Espanha e Portugal, so complexas, e os historiadores das lnguas peninsulares no tm a este respeito uma opinio concordante. Para a maior parte deles, toda a Pennsula teria conhecido primeiro a distino entre um /b/, que era uma oclusiva bilabial, e um /v/, que era uma fricativa labiodental (como, por exemplo