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HABITAR:UMA INTERFACE DE ESPAÇOS NÃO ACABADOS TRABALHO DE GRADUAÇÃO INTEGRADO II _ JUNHO 2012 IAU_INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO DE SÃO CARLOS TARSILA BORGES DUDUCH DA ARTE À ARQUITETURA Este trabalho se inicia com experimentações plásticas e inquietações de uma vanguarda artística nos anos 1960 e 1970 no Brasil, insatisfeita em reconhecer a dimensão concreta da experiência no fazer artístico tradicional. A busca por novas estruturas para além daquelas soluções de suporte da representação, de invólucros que contém seus significados, resultam numa idéia de obra em concepção aberta, também iminente às discussões no campo da arquitetura. Neste contexto, procuro revelar aqui esta sincronia arte – vida – arquitetura, propondo uma arquitetura como plataforma aberta, e interface de espaços não acabados. O HABITAR Para pensar a habitação, é preciso entender o processo espaço-temporal iminente ao termo habitar. Na linguagem construtiva comum, entende-se semanticamente o habitar pelo seu caráter durável e permanente; pelo contrário, ao abrigar, implica obrigatoriamente uma noção de construção temporária, provisória. Para Heidegger, “ao habitar, pertence um construir, e dele recebe sua essência”, ou seja, o habitar é pensado como ato poético de construir e cultivar o espaço de morar, como essência de vida do indivíduo filosófico. O homem habita no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo. O lema da “habitação digna” como espaço mínimo de qualidade e salubridade já não é suficiente para dar sentido e sustentação ao habitar. É preciso pensar, construir, edificar, transformar e cultivar a sua casa para criar uma relação interna e íntima com a habitação e o ser. Habitar adquire então um sentido mais amplo e passa a ser entendido como um sistema, onde se desenvolvem diversas ações nos espaços concretos, virtuais e híbridos, que se combinam e interagem. Neste sentido, a habitação se aproxima da idéia de abrigo, em constante transformação pelo indivíduo e uma temporalidade. A discussão acerca dos espaços de morar é o motriz para se pensar esta nova arquitetura, que tem foco no processo e não no domínio da forma final. NÃO-OBJETO As primeiras aproximações da arte com o pensamento arquitetural se dão na busca por criar uma forte relação do indivíduo com o corpo. É inaugurado o conceito de não-objeto, como estrutura que soma, subtrai, se afirma, se nega, e comunica através do manuseio. A obra de arte tradicional dá lugar a um espaço poético-tátil que quando exposto à participação, revela sua lógica, e o usuário a define e redefine. Espaço torna-se volume, volume torna-se plano, plano torna-se textura, textura torna-se movimento, movimento torna-se linha, dentro torna-se fora, fechado torna-se aberto. A participação e a maleabilidade possibilitam leituras e cancelam o conceito de autonomia e a pretensão de estabelecer premissas estéticas e morais. O indivíduo se apropria, usa, entende e cria a obra. O indivíduo deixa de ser observador distante, mas participa diretamente na construção da experiência artística, formulada a partir dos sentidos e percepções. A discussão da participação implica então no entendimento da relação entre parte e todo, a fim de diferenciar o que podemos chamar de projeto participativo, em que as partes estão subordinadas a uma totalidade; da participação fragmentária, que implica em uma relação complementar recíproca. “A pureza é um mito.” Hélio Oiticica 1 / 4

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HABITAR:UMA INTERFACE DE ESPAÇOS NÃO ACABADOS

TRABALHO DE GRADUAÇÃO INTEGRADO II _ JUNHO 2012 IAU_INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO DE SÃO CARLOS

TARSILA BORGES DUDUCH

DA ARTE À ARQUITETURA

Este trabalho se inicia com experimentações plásticas e inquietações de uma vanguarda artística nos anos 1960 e 1970 no Brasil, insatisfeita em reconhecer a dimensão concreta da experiência no fazer artístico tradicional. A busca por novas estruturas para além daquelas soluções de suporte da representação, de invólucros que contém seus significados, resultam numa idéia de obra em concepção aberta, também iminente às discussões no campo da arquitetura. Neste contexto, procuro revelar aqui esta sincronia arte – vida – arquitetura, propondo uma arquitetura como plataforma aberta, e interface de espaços não acabados.

O HABITAR

Para pensar a habitação, é preciso entender o processo espaço-temporal iminente ao termo habitar. Na linguagem construtiva comum, entende-se semanticamente o habitar pelo seu caráter durável e permanente; pelo contrário, ao abrigar, implica obrigatoriamente uma noção de construção temporária, provisória. Para Heidegger, “ao habitar, pertence um construir, e dele recebe sua essência”, ou seja, o habitar é pensado como ato poético de construir e cultivar o espaço de morar, como essência de vida do indivíduo filosófico. O homem habita no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo. O lema da “habitação digna” como espaço mínimo de qualidade e salubridade já não é suficiente para dar sentido e sustentação ao habitar. É preciso pensar, construir, edificar, transformar e cultivar a sua casa para criar uma relação interna e íntima com a habitação e o ser. Habitar adquire então um sentido mais amplo e passa a ser entendido como um sistema, onde se desenvolvem diversas ações nos espaços concretos, virtuais e híbridos, que se combinam e interagem. Neste sentido, a habitação se aproxima da idéia de abrigo, em constante transformação pelo indivíduo e uma temporalidade. A discussão acerca dos espaços de morar é o motriz para se pensar esta nova arquitetura, que tem foco no processo e não no domínio da forma final.

NÃO-OBJETO As primeiras aproximações da arte com o pensamento arquitetural se dão na busca por criar uma forte relação do indivíduo com o corpo. É inaugurado o conceito de não-objeto, como estrutura que soma, subtrai, se afirma, se nega, e comunica através do manuseio. A obra de arte tradicional dá lugar a um espaço poético-tátil que quando exposto à participação, revela sua lógica, e o usuário a define e redefine. Espaço torna-se volume, volume torna-se plano, plano torna-se textura, textura torna-se movimento, movimento torna-se linha, dentro torna-se fora, fechado torna-se aberto. A participação e a maleabilidade possibilitam leituras e cancelam o conceito de autonomia e a pretensão de estabelecer premissas estéticas e morais. O indivíduo se apropria, usa, entende e cria a obra. O indivíduo deixa de ser observador distante, mas participa diretamente na construção da experiência artística, formulada a partir dos sentidos e percepções. A discussão da participação implica então no entendimento da relação entre parte e todo, a fim de diferenciar o que podemos chamar de projeto participativo, em que as partes estão subordinadas a uma totalidade; da participação fragmentária, que implica em uma relação complementar recíproca.

“A pureza é um mito.” Hélio Oiticica

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FRAGMENTO

O conceito de fragmento aparece como rompimento com o projeto fechado, em direção a construção dos espaços-tempo. O fragmento não existe apenas como uma parte dentro de uma totalidade, compõe também em si uma totalidade, autônoma, porém não fechada, é porosa e inacabada. O fragmento, em todas suas possibilidades de repetição e variação, compõe um signo, que só é compreendido em uma leitura do conjunto. Tanto a parte confere significado ao todo, como o todo à parte. Nesse sentido, uma arquitetura fragmentária, não é necessariamente fragmentada, desordenada, em sua lógica formal e estrutural, pelo contrário, o fragmento também aparece como figura espacial, que se repete marcando uma espacialização do tempo. Em suas obras, Oiticica defende a construção de uma totalidade através de um núcleo construtivo primário. Neste contexto, uso aqui este elemento como diretriz projetual, na forma de um módulo construtivo prismático, como primeiro fragmento signo de uma estrutura geral, e se organiza pela constante repetição e articulação variada dentro de uma lógica de multiplicidade. Os módulos se agrupam e se abrem, se entrelaçando e criando novas organizações internas e possibilidades de passagem sobre, sob e entre.

LABIRINTO

O labirinto é a expressão da lógica fragmentária na escala urbana. A arquitetura labiríntica, não é um sistema que se resolve em si, na escala do edifício, como um jogo interno, mas constrói um vínculo direto com a cidade. O espaço labiríntico é um espaço de vertigem desenhado por cheios e vazios, ausências e presenças, em que os percursos e narrativas não são lineares, mas construídos pelo entrelaçamento de experiências e apropriações individuais e coletivas, nos planos físico e virtual. Os espaços entre se tornam plataformas para apropriação, e a cidade se torna extensão da casa, de construção e apreensão temporal. O labirinto permite ao morador habitar no negativo daquela habitação tradicional, rígida. Contudo, a concepção arquitetônica labiríntica não é obrigatoriamente de desordem. Assim como no não-objeto artístico, há uma estrutura geral que não se revela de imediato. Retomando o fragmento como signo de uma estrutura geral, a compreensão do todo se dá pela descoberta do conjunto através da apreensão das partes no espaço-tempo. Para Kevin Lynch, “não deve haver o risco de se perder a forma básica ou a orientação de não se encontrar o caminho procurado. A surpresa deve ocorrer dentro de uma estrutura geral, a confusão deve dar-se em pequenas regiões dentro de um todo visível. Além disso, o labirinto ou o mistério deve conter, em si, alguma forma que deve ser explorada e apreendida no devido tempo.” Aqui, o elemento da costura aparece como fragmento signo de conexão dos espaços-entre, espaços de apropriação e sociabilidade, e as diversas camadas criadas pela organização labiríntica.

MOVIMENTO

Por definição, o movimento é uma coleção de fragmentos de espaço e tempo. Na dança, a sucessão de gestos e imagens formam um todo pela repetição variada dos fragmentos em que a forma não é estática, mas está em constante transformação, gerando um processo de continuidade e descontinuidade de imagens. Tradicionalmente, no pensamento arquitetônico, o conceito de espaço predomina em relação ao conceito de tempo, contudo, para pensar estas novas experiências, é preciso pensar em cidades em movimento. O conceito de movimento está nos acontecimentos imprevistos, como na bricolagem, em uma sucessão temporal de eventos espontâneos transformadores. Seguindo a lógica fragmentária, o indivíduo, como o bricoleur, transforma o espaço através de uma incessante construção e re-construção –ou ainda, montagem e desmontagem- com diferentes fragmentos de materiais detentores de uma história construtiva própria. A forma final é o resultado de todos os eventos e ações que buscam não só atender contingentes e intenções formais, construtivas, mas enriquecer as relações entre o individuo, espaço de morar e a cidade.

Neste trabalho, faço uma leitura de cunho fenomenológico, no diálogo abstrato de experimentações neocontretas de uma vanguarda artística que busca se aproveitar de uma vontade construtiva nas formas de vida marginalizadas. A lógica fragmentária, labiríntica, remonta à imagem das construções espontâneas e favelas; porém não busco aqui a tematização desta cultura, e sim a transposição dessas experiências possibilitadas nesse contexto social e urbano para o projeto arquitetônico. Faz-se necessário um rigor e apuro construtivo estratégico, herdado de várias décadas de discussões em arquitetura, para gerar um suporte técnico para as propostas, contudo sem perder a qualidade dos espaços de apropriação e espontaneidade. A noção de fragmento aparece no sistema construtivo modular, como elemento que reflete a temporalidade pelo montar e desmontar. A idéia de suporte, para as ações modificadoras do participador, configura uma estrutura geral em que ainda se pode identificar a ação do arquiteto, diferentemente dos espaços labirínticos das favelas. Seu caráter de adaptabilidade, e flexibilidade aos diferentes perfis e especificidades é uma lógica estrutural que permite o movimento, como nas diferentes fases dos parangolés de Oiticica; dos desfiles da Mangueira, à metrópole Nova Iorquina, em que o lugar e os indivíduos modificam diretamente a obra através de novas vivências e experiências.

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O bairro do Bixiga, na Bela Vista, região central de São Paulo, é um lugar que revela uma característica de transição, congestão, e cruzamento de diferentes situações urbanas, potencializando o caráter múltiplo do projeto. Ao mesmo tempo que é cercado por um caráter de aglomeração urbana, trânsito e perda da identidade, é também historicamente conhecido pelas vivências íntimas e pela fortes relações entre vizinhança.

A área escolhida aparece como um espaço-entre, que conecta diversas situações na escala do edifício, do bairro e da cidade, criando núcleos de diferentes gradientes de sociabilidade. Como a conexão com o intenso fluxo do viaduto da Radial-Leste, e com o Teatro Oficina, que propõe uma forte relação do dentro e fora do teatro, através do grande pano de vidro na fachada oeste, fazendo deste espaço uma extensão de seus eventos; assim como na arquitetura labiríntica, em que a cidade é a extensão da casa.planta de cobertura: gradiente de gabaritos

mapa-diagrama: pontos de encontro, micro- e macro-escala

implantação e plano de piso: corte no pavimento térreo em todos os níveis

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