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Resumo provisório dos nossos desagrados contra o despotismo da velocidade por ocasião da extensão das linhas do TGV Alliance pour l’opposition à toutes les Nuisances

TGV-resumo provisorio dos nossos desagrados

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Tradução portuguesa do livro "Alliance pour l’opposition à toutes les Nuances" - ou Resumo provisório dos nossos desagrados contra o despotismo da velocidade por ocasião da extensão das linhas do TGV

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Resumo provisório dos nossos desagrados contra o despotismo da velocidade por ocasião da ext ensão das l inhas do TGV

Alliance pour l’opposition à toutes les Nuisances

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Resumo provisório dos nossos desagrados contra o despotismo da velocidade por ocasião da ext ensão das l inhas do TGV

Alliance pour l’opposition à toutes les Nuisances Tradução: Daniel Vivas

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Título original: Relevé provisoire de nos griefs contre le despotisme de la vitesse À l’occasion de l’extension des lignes du TGV

Tradução: Daniel Vivas Copyright: © Editions de l’Encyclopédie des

Nuisances, Paris 1998 1a. edição: Janeiro de 2011

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Resumo provisório dos nossos desagrados contra o despotismo da velocidade por ocasião da extensão da linhas do TGV

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Sobre a relevância de dif undir cá em Portugal o “Resumo provisório dos nossos desagrados contra o despotismo da velocidade” Quando o « Resumo provisório dos nossos desagrados contra o despotismo da velocidade » foi publicado em 1991 pelo grupo Alliance pour l'opposition à toutes les nuisances – manifesto republicado sete anos depois pela editora parisiense l’Encyclopédie des Nuisances -, ao mesmo tempo uma vasta campanha fomentada e iniciada pelo gratin tecno-industrial e difundida pelos seus lacaios politico-mediáticos, avisava os franceses que sem extensão das linhas TGV para o sudeste da França, nunca mais haveria salvação para as populações dessas regiões. Tratava-se, a partir desta injunção vendida à opinião pública, de desencravar essas regiões do sul que ficaram até então “atrasadas” por não serem ainda atravessadas pelo TGV. Sabemos hoje em dia o que desencravamento de uma região significa na boca de tecnocratas de todos os géneros, isto é, antes mais, uma “necessidade” totalitária defendida por uma aliança de homens de negócio e políticos, insaciáveis, companheiros do dever acerca desses imprescindíveis progressos técnicos, dos quais os seus interesses foram bem entendidos. Este “resumo provisório dos nossos desagrados...” previne-nos de todos os aspectos

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humanamente mais nefastos que esta “necessidade” acumula: amontoamento demográfico e especulação imobiliária em torno das zonas servidas, finalização da desertificação de regiões inteiras, destruição do que resta de Natureza, nocividades administradas e monotorizadas a partir de uma informática “infalível”... Pois, um resumo de todas essas consequências lastimáveis que resultam de esses ordenamentos necessários e que ergue uma nação ao range de superpotência do desastre.

O projecto de implantação do TGV em Portugal, a sua “relevância”, e por conseguinte a sua estrita “necessidade”, estiveram há pouco tempo no centro de uma controvérsia oriunda do meio bem-pensante e consensual da classe dirigente portuguesa. Encontra-se aqui a clivagem clássica dos “Em favor” e dos “Contra” o TGV. É interessante, antes de deixar descobrir o “Resumo provisório...” ao leitor, e para pôr melhor em perspectiva pensamos nós, toda a força, todo a justeza e toda a actualidade que este texto preservou na sua integralidade quase vinte anos depois, opor-lhe em paralelo e a posteriori, os argumentos políticos e sociais dos predicadores nacionais do “Em favor” e do “Contra”. Os leitores que tomaram consciência dos perigos de ver dogmaticamente o progresso técnico como a panaceia de todos os males da humanidade - enquanto se tornou o problema -, verão sem dúvida aqui dentro, o miserabilismo de rigor ao qual o triunvirato Estado-Máquina-Mercado nos acostumaram. Não nos é porém proibido divulgar

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aqui algumas amostras entre as que estiveram mais à vista, onde a critica sobre a técnica ficou lamentavelmente ausente. É certo que nos casos presentes, não as vamos “empurrar só por uma metade” para acompanhar toda a sabedoria do conselho promulgado pelo “Resumo provisório de nossos desagrados...”. Entre os opositores ao TGV, encontra-se adeptos da “democracia on-line”, que espalham pela Internet as suas petições cidadãs chamadas « Não ao TGV » ou ainda « Petição TGV? NÃO, OBRIGADO! ». Apoiam-se sobre o argumento bem cómodo de “Em qualquer sítio com certeza e ainda bem, mas por favor, aqui não” – como cada vez que esses verosímeis ordenamentos ameaçam os seus interesses enquanto morador, metendo a prova a sua boa conscienzinha de “cidadão” e os obrigam a recorrer então ao pragmatismo de circunstância. Eis como se ilustram esta consciência e este pragmatismo na prosa destes imbecis soturnos. Segundo a « Petição TGV? NÃO, OBRIGADO! », trata-se de “impedir que o traçado Porto – Vigo passe pelo concelho de Ponte de Lima” e referem-se então a um Estado responsável para lhe suplicar que mude a sua passagem par outro sítio, “considerando que esta questão do TGV deve ser vista com sentido de responsabilidade política, promovendo o desenvolvimento sustentado” entendendo obviamente “que este não parece ser o melhor caminho, por comprometer as próximas gerações e por ser criticável, socialmente e economicamente”. Aqui estão algumas inépcias que

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deveriam aliviar por enquanto a angústia das próximas gerações, pelo menos no pequeno perímetro do distrito de Viana de Castelo e o concelho de Ponte de Lima. No que diz respeito à petição « Não ao TGV », é feita da mesma farinha, dando direito a uma pequena lição de economia: « O TGV é um transporte adequado a países de dimensão continental, extensos, onde o comboio rápido é, numa perspectiva de tempo de viagem/custo por passageiro, competitivo com o transporte aéreo ». Tudo se resume por conseguinte numa história de território em confronto com duas variáveis postas em relação, o “tempo de viagem” e o “custo por passageiro”, de ordem de grandeza demasiada pequena para a primeira e demasiada grande para a segunda, não conseguindo competir com o avião. Esta investida do bom senso da ciência económica pode também nos deixar sossegados porque é mutatis mutandis com o mesmo estado de espírito que os nossos caros traders empurram o seu Mundo e esfomeiam assim o terço/quarto do planeta. Os instigadores desta petição poderão com este dinheiro salvo das águas, ir pregando o seu ensino de economia à la Scandinave nas suas novas escolas, tomando como caso de estudo o TGV e submetendo as nossas crianças, ceteris paribus, ao ratio tempo de ensino percorrido/aluno bem doutrinado. Reforçando a argumentação dos revoltados on-line, alguns comentários na imprensa portuguesa, nestes tempos de cataclismos financeiros, dão para rir, qual o espanto de Fernando Ulrich, presidente do BPI,

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que « não [percebe] como é que o TGV ainda está de pé » e considera que « é uma falta de bom senso » nesta matéria. Entre megalomania tecnicista e “bom senso” em torno dos subprimes um pouco nebuloso, deve-se saber com efeito de que lado se quer fica. Porque dentro do mundo da “sobrevivência administrada”1 e da oligarquia “financeirizada”, a tacanhez das alternativas sociais, opondo-se àquela por exemplo proibida de viver a sua vida como se ambiciona a partir da sua própria vontade, contrasta vivamente com os projectos grandiloquentes e chave na mão das forças tecnoprogressistas. Ficando dentro dessas mesmas forças irresistíveis, um lindo espécimen chamado Jack Soifer exerce a sua atracão peculiar, relegando o TGV para umas autênticas ferragens de cento e cinquenta anos de idade, que faria assim sombra ao seu brinquedo high-tech que ele defende, o LightAlfa, Train à Grand Développement. TGD contra TGV, eis a alternativa que nos oferece este “consultor internacional, colaborador de jornais e revistas e autor de obras fáceis de ler, divertidas e práticas”. Reconhecemos aqui por conseguinte, o perito-vulgarizador

1 O conceito de sobrevivência administrada é segundo a Encyclopédie des Nuisances o modo de vida do mundo laboral post Estado Providência, ou seja o triunfo das verdadeiras virtudes da economia que mantêm os assalariados em geral a um nível de indigência intelectual, espiritual e material tão alto, que só podem reclamar por um lado o que o Estado, à medida que esta hegemonia vai se espelhando, está retirando e removendo gradualmente por outro lado – por exemplo o poder de compra, os direitos laborais, a segurança social, etc.-, sem qualquer esperança de encarar a vida de outra maneira.

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procurando a sua niche ao pé do Estado e de Bruxelas, que nos vende empregos como se nos vendesse cuecas – o Jack garante dezoito mil empregos, envolvendo setenta e oito empresas – disfarçando como o quer a época, este projecto aos efeitos colaterais light garantidos, de uma “consciência verde” que se torna lucrativa – “compósito, ligas de alumínio e carbono” para o LightAlfa contra “ferro fundido” para o TGV, que o torna para este primeiro, “mais leve, flexível nas curvas e exige muito menos betão nas pontes e retirada de terras nas serras”. Nessas horas do mundo laboral descartável, do trabalho altamente perecível e de uma Natureza globalmente em feixe, quem é que este lastimável charlatão pensa convencer com isto? Ao certo, os que ainda se agarram aos farrapos do Estado Providência e os adeptos do “Green Business” e do modelo francês des Etats Généraux da ecologia (o patético Grenelle de l’environnement), campeões da externalidade positiva, que mão na mão nos soprariam ao ouvido um “quem me ama, me segue” para os caminhos reencontrados de um crescimento económico finalmente razoável. No que diz respeito aos Pró TGV, deve-se reconhecer aqui também que as argúcias com a garganta bem afinada para nos avisar do perigo contra uma paragem eventual ou recusa do projecto TGV, são a réplica de uma logorreia bastante fétida mas infatigável – ameaça acerca da criação de empregos, abertura impossível de novos mercados, aposta e desafio sobre o futuro comprometidos, produtores e

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consumidores prejudicados e assim por diante –, que os comerciais ambulantes da oligarquia politico-industrial tomaram por hábito de avançar cada vez que um mastodonte high-tech é contestado, por qualquer razão que seja. Entender-se-á aqui também que o encravamento estará a bater a nossa porta: “Abandonar o TGV será a Albanização de Portugal” avisa assim Luís Filipe Menezes, um dos responsáveis do PSD e presidente da câmara de Gaia. Sem o TGV, o mercado português e os seus empreendedores perderiam a oportunidade de uma indigestão de “50 milhões de consumidores espanhóis” Acompanhando a nova esperança de grandeza nacional deste megalomaníaco, a nova linha TGV Madrid-Lisboa se tornaria assim o novo tubo digestivo da economia portuguesa. É verdade que aqui, as prateleiras e as vitrinas das lojas transbordam à medida que o que foi concedido sob o reino do Estado Providência se ameniza e que a última perna de pau do consumo – o crédito – abolorece a olhos vistos. Este iluminado quer aproveitar desta nova oportunidade tecnológica para mandar vir a grande velocidade, num território que se tornaria o grande Outlet luso-ibérica, consumidores espanhóis em massa até, como o diz René Riesel, que “o stock ameaça esgotar-se e o esgoto começa finalmente a transbordar”. Para concluir, atribui-se a palma do conformismo tecno-progressista ao partido “Os Verdes”, com uma argumentação situando-se molemente no centro deste lastimável panorama dialéctico dos “em favor”

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e dos “contra”. Como todos os administradores e gestores políticos de desastres de todos os géneros, as suas reservas – no que diz respeito à relevância do TGV – se afastam sensivelmente de todo o que podia ser interpretado desgraçadamente como um regresso ao uso da tracção animal. Neste esquerdismo bem ancorado às “necessidades” do país – cujo Bloco Esquerdo fica no entanto como a figura de proa – opta-se por uma gestão “razoável” do risco e um princípio de precaução de circunstância porque “Os Verdes entendem que a opção TGV deve depender de uma avaliação dos impactes ambientais e da análise dos seus custos ambientais e socio-económicos". No entanto, a História oficial e “gloriosa” do comboio e do seu ordenamento eclipsa abundantes exemplos dessas “avaliações de impactes ambientais” chamadas também pelos chefes dessas forças tecno-progressistas, “danos colaterais”, ou seja outra maneira abstracta de designar inúmeras vidas arruinadas em prol do progresso. Pensemos no período do Segundo Império francês e como nesta época o barão Haussmann ou o arquitecto Alfred Armand estriparam Paris para fazer entrar o comboio em Saint-Lazare, Gare de Lyon ou Gare de l’Est. Nestes tempos de guerra ao ser vivo sob tirania tecnológica, o TGV não passará finalmente do exemplo a seguir. Exemplo acerca do qual justamente se oponha com uma rara lucidez, esta Alliance pour l’opposition à toutes les nuisances. Auto-dissolvida quatro anos depois da publicação do “Resumo provisório dos nossos desagrados...” e não tendo

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assim impedido a progressão do TGV no sudeste da França – on n’arrête pas [si facilement] le progrès! segundo o ritual ditado francês -, esta aliança mostrou no entanto que as vias da insubmissão a todas as formas de bem-estar e de progresso preestabelecidas, administradas e vendidas à opinião pública, qualquer que sejam o seu conteúdo – TGV ou Automóvel com electricidade nuclear, OGM, Biotecnologia e Biometria, Nanotecnologias, etc. -, são ainda possíveis e abertas. Se nós nos reclamamos uma humanidade que não disse ainda a sua última palavra, saibamos então agarrá-las, aqui como em qualquer outro sítio!

Daniel Vivas

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“Todo o sistema do caminho de ferro é destinado a pessoas que estão sempre com pressa e por conseguinte que não podem apreciar nada. Qualquer pessoa que o pudesse evitar de uma maneira ou de outra não viajaria desta forma. Tomaria o tempo de viajar à sua vontade pelas colinas e entre as tapumes, e não através de túneis e aterros. E aquele que apesar de tudo preferisse esse género de viajem, esse não possuiria um sentido suficientemente desenvolvido da beleza, para que devêssemos falar com ele logo na estação. Nesta perspectiva, o caminho de ferro é algo sem interesse do qual nos desembaraçamos tão rápido quanto possível. Torna o homem que era um viajante num pacote vivo”.

John Ruskin

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Introdução

NO SÉCULO XIX, o território foi transformado por uma primeira onda de industrialização, e em particular, pela implantação generalizada de linhas de caminho de ferro. Este novo meio de transporte foi criticado por uma fracção da classe dominante que se manteve ociosa e que, por seus gostos e sua sensibilidade, foi sempre ligada aos prazeres antigos da viajem, que o comboio ia abolir. Em troca disso, permitiu um verdadeiro desenvolvimento da liberdade de circulação, com todas as suas felizes consequências sobre a vida social.

Inúmeros argumentos sensíveis, outrora utilizados contra os primeiros comboios, podem ainda hoje ser utilizados mais cientemente, contra o TGV. Tanto mais que a sua implantação não comporta desta vez nenhuma contrapartida; pelo contrário, contribui para um novo isolamento de regiões inteiras, para a desertificação do que ainda subsiste do campo, para o empobrecimento da vida social. E não é dentro da classe dominante, onde todos daqui em diante trabalham sem descanso e andam à cotevelada para ficar na corrida económica, que se arriscará julgar tudo isso a partir dos seus gostos pessoais, isto sem falar de avançar qualquer verdade histórica que seja. É por conseguinte necessário que do outro pólo da sociedade, indivíduos que não estejam pressionados pelo interesse carreirista de qualquer género, nem como “contra-perito” ou oponente oficial, se encarreguem de enunciar todas as boas razões, tanto

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subjectivas como objectivas, de se opor a esta nova aceleração da desrazão. A aliança que formaram para publicar este texto terá sem duvida outras oportunidades para se manifestar e para se estender.

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O melhor dos mundos pos s íve i s

O mundo moderno não precisa de mais nada para ser feliz (ver a sua abundante panóplia farmacêutica), e pode assim apresentar sob o nome “consenso” um inegável sucesso: parece ter conseguido conciliar dentro de uma espécie de harmonia ainda pouco perturbada, poderosos que ditam o que deve ser a vida e pobres que ficaram sem ideia sobre o que ela poderia ser; industriais da alimentação e da cultura adulterada, e consumidores deixados na incapacidade de provar outra coisa; ordenadores que nada os faz parar a sua destruição das cidades e dos campos, e moradores que nada quase sempre retém de onde estão, excepto o acorrentamento a um trabalho qualquer; tecnocratas pelos olhos dos quais só existem paisagens e países para serem atravessados cada vez com mais velocidade, e utentes dos transportes sempre com pressa de deixar as cidades que se tornaram inabitáveis, e de fugir da multidão atirando-se em massa nas estradas, nas estações e nos aeroportos...Em soma, tudo está para o melhor dentro do “melhor dos mundos possíveis” , pelo menos enquanto este mundo moderno se mantiver como o único possível, tão indiscutível como todos os seus progressos técnicos; dito de outra maneira, enquanto ninguém colocar uma dessas perguntas simples que trata do emprego da vida: porquê diabo se teria sempre e a qualquer custo, de ganhar tempo sobre os trajectos, enquanto é precisamente esta transformação da viajem em puro trânsito que o faz parecer ainda mais longo, que o torna uma maçada.

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De tal forma que hoje em dia, é preciso introduzir a televisão nos TGV – como em breve nos automóveis onde os Franceses * passam em média três horas por dia - , para tentar distrair de um tal aborrecimento. O ciclo da desrealização estará perfeitamente fechado quando essas televisões derem a contemplar sob o formato de vídeos turísticas os prazeres das regiões atravessadas.

As oposições locais que se constituíram no sudoeste contra o traçado da linha do TGV não pretendem certamente voltar a pôr le monde sur ses pieds; e é certo que será preciso outras forças, mas são justamente essas oportunidades que podem permitir juntá-las. Estas oposições têm de facto o mérito de mostrar, pela sua simples existência, que indivíduos, em número maior do que se pretende fazer-nos acreditar, estão determinados a não trocar pela sombra do “progresso” os aspectos das suas vidas, que nenhum progresso técnico saberia lhes devolver. Desde então vacila a falsa evidência de um tão singular “bem comum”, composto do mal-estar particular de tanta gente. Para que ela se desmorone primeiro sobre este ponto, e depois talvez sobre outros, não basta empurra-la só por uma metade: se concordamos com as “razões” do TGV enquanto potencial transportado, não estamos obviamente posicionados no melhor dos lugares para as recusar enquanto residente prejudicado. E deve-se pelo contrário reconhecer que o facto de aceitar por um lado o conjunto das famosas “necessidades da vida moderna”, inibe toda boa razão de recusar o TGV,

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em todo o caso toda a razão que possa interessar aquele que não moura a beira das vias previstas.

Dizia-se no século XVIII: “Se vós não sabeis ser livres, pelo menos saibais ser infelizes!”. Para responder a isto, tem de se afirmar nitidamente: se não queremos aprender a ser infelizes, saibamos ser livres. A primeira liberdade a adoptar consiste aqui como em qualquer outro lugar, em julgar e em denunciar tudo o que disfarça um constrangimento no seu contrário, pretendendo-nos fazer gostar.

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Quem cal a cons ente

Pretendeu-se por vezes que um crime cometido em comum funda uma sociedade. O que é certo, é que qualquer “sociedade respeitável” – qualquer máfia – impõe a sua lei do silêncio envolvendo nos seus actos um máximo de pessoas. As máfias do progresso não agem de outra maneira, procuram nos implicar de qualquer forma, nos dominar por uma pequena vantagem que faria de nós cúmplices. Com base no modelo de uma publicidade recente da EDF, segunda a qual todos teríamos interesse na existência das centrais nucleares, porque nos acontece preparar batatas no forno ou ouvir a música de Bach, trata-se de nos reduzir ao silêncio em prol do cui prodest: é claro que tiramos proveito do crime; como não o soubemos impedir, só nos resta calarmo-nos.

Toda a propaganda em favor do TGV pode assim resumir-se em dois sofismas, ou antes mais num só, oportunamente reversível: o que prejudica todos serve pessoalmente a cada um, o bem particular sai do mal geral – paisagens são destruídas, aldeias e vilas tornam-se inbitáveis ou desaparecem, bens que não eram de ninguém, como o silêncio ou a beleza, são-nos tirados, e descobrimos então quanto esses eram comuns. No entanto, individualmente, para a sua conta de amolador ambulante do progresso, interessa a cada um, duas ou três vezes por ano, atravessar França em poucas horas. Somos portanto cúmplices, pecamos, é-nos da mesma maneira proibido ter uma opinião sobre todo isto tal como sobre o mundo

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laboral ou a mercadoria, acerca dos quais se atesta cada dia que não podemos renunciar.

Este sofisma pode ser invertido sem deixar de se opor à verdade. Torna-se então assim: o que prejudica alguns serve contudo a todos, o bem geral sai deste mal particular. Esta versão serve cada vez que em algum lado, indivíduos precisos, reais – não “o utente dos transportes” em geral, este fantasma das estatísticas da SNCF -, se opõem aos diktats dos ordenadores. Aqui está o que seria de um egoísmo inimaginável, sem outro exemplo numa sociedade tão unidamente dedicada aos interesses universais da humanidade.

Na base dessas pobres mentiras, existe o interesse suposto do “transportado” em se mover cada vez mais depressa. Mas quem é que hoje em dia, antes que esteja imposto a todos a necessidade do TGV, está realmente interessado em se mover mais depressa, senão os que precisamente, com armas e bagagens, vão levar assim mais longe a desolação? São esses clientes que a SNCF tenta tirar do avião. É para este frete humano estandardizado e condicionado, esses “turbo-managers” (como se designam a eles próprios), que se deveria tratar a maioria das cidades francesas como subúrbios de Paris.

Só aqueles que vendem suficientemente caro o seu próprio tempo, no mercado do trabalho, têm interesse em comprar a poupança de tempo proposta pelo TGV. Mas a grande diferença com a antiga

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hierarquia social, apesar de ser ainda neste caso um avatar da velha sociedade de classes, é que daqui em diante esses privilegiados da mobilidade imposta, antes mais que permitida, são muito pouco invejáveis, para aquele que não perdeu toda sensibilidade: nenhuma rapidez de movimento alguma vez apanhará a fuga do tempo que foi pago, vendido ao trabalho ou comprado de novo aos lazeres. Mais uma razão para desprezar esses “benefícios” que fazem a desgraça de alguns só para permitir aos outros de ter acesso a um simulacro de felicidade.

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Mobi l i s i n mobi l i

Se a mobilidade mantém ainda mais ou menos o seu antigo prestígio, não pode porém permitir a ninguém fugir da mobilização exigida pela economia moderna. Aquilo que prometia a liberdade de circulação foi na verdade destruído ao mesmo tempo que a possibilidade de não a usar: sujeitos ao mundo laboral, à procura de meios de sobrevivência e aos lazeres organizados uniformemente, os indivíduos têm colectivamente perdido nesta corrida económica as suas razões de deixar um lugar, assim como de se afeiçoar a ele.

A liberdade de circulação foi umas das causas mais certas de queda dos despotismos, mas no final de contas, são as mercadorias que a conquistaram, enquanto os homens, remodelados à categoria de mercadorias que pagam, são transportados de um sítio de exploração para outro. No fim deste processo, a promessa de emancipação que tinha por base o facto de não mais estar constringido a passar a sua existência num único sítio, inverteu-se para a certeza infeliz de não se sentir em casa em sítio algum, e de procurar de se encontrar em algum lugar. O TGV corresponde a esta última fase: há contudo uma certa lógica em atravessar o mais depressa possível um espaço onde desaparece quase tudo aquilo que merecia atenção; e acerca do qual se poderá sempre ir consumir a reconstituição paródica na Eurodisneyland oportunamente situada à “interconexão” da rede ferroviária.

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Os homens sempre procuraram livrar-se da sujeição dentro da qual os poderosos os detinham pela delimitação do espaço. Já as antigas comunidades enfraqueceram à medida que a tentação de cada um ir à sua vida, prevalecia sobre as formas de vida reguladas e sufocantes. O desenvolvimento económico, provocando a reconsideração dos direitos sociais pelas novas gerações, a inovação técnica e uma maior mobilidade social, conseguiu durante muito tempo captar este desejo de inventar a sua própria vida, de estabelecer os seus próprios valores. Foi necessário que, uma vez desembaraçada dos obstáculos que constituíam vários vestígios históricos, a velocidade sempre crescente do movimento da economia mostre que não levava a lado nenhum senão ao seu movimento frenético sempre no mesmo sítio, na autodestruição da sociedade, para que se desenvolva em massa o desejo de ir procurar para outro sítio não algo novo mas algo do género antigo, ou seja algo que se viu devastado aí onde se vive. E não é por acaso que a palavra “evasão”, que significava a fuga dos escravos, os prisioneiros em fuga, ou o exilo voluntário dos refugiados do leste da Europa, serve hoje para designar, da mesma maneira, a corrida estival dos civilizados para fora das cidades e do ritmo extenuante do mundo laboral.

Se os trajectos individuais podem eventualmente variar, de circulações repetitivas em evasões furtivas, em compensação os destinos desta sociedade, aos quais levam todos os trajectos, são mundialmente

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idênticos, e a isto cada um mantém-se submetido. A velocidade não é nada mais do que mais outra obrigação, uma ilusão imbecil.

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Perder o seu tempo a ganhá- lo

Todos os promotores dos meios de transporte consideram como uma espécie de evidência incontestável o facto que “a velocidade faz ganhar tempo”, e não perdem a oportunidade de o recordar a cada novo projecto. O senso comum admite este facto, consoante as leis da física. Mas a prática parece, por sua vez, antes de mais contradizê-lo, tanto o tempo perdido nos transportes ou para os transportes cresce ao mesmo tempo que a sua velocidade.

Para as ciências físicas, a velocidade é de facto uma função do tempo e da distancia. Mas para a desgraça dos tecnocratas – que não parecem raciocinar mais longe do que os seus cálculos – não vivemos no mundo conceptual das ciências físicas. Quanto mais a velocidade instantânea de um veículo estiver elevada, maior é a resistência do meio físico (resistência ao ar e esfregadura do chão), do ambiente natural (relevo e terrenos) e do meio humano (resistência dos moradores às nocividades futuras); quanto mais for preciso meios para vencer essas resistências selvagens, para as aniquilar, mais será preciso trabalho para produzir esses meios, e para os utilizar; ao fim e ao cabo, menos elevada estará a velocidade efectiva dos passageiros (relação entre as distâncias que eles percorrem e todo o tempo dedicado aos transportes).

Se se cumula a totalidade do tempo de trabalho social gasto para o transporte (construção,

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funcionamento e manutenção dos meios de transporte bem como as despesas diversas, de tipo hospital e outros), constata-se que as sociedades modernas lhe dedicam mais do que um terço do seu tempo de trabalho global, muito mais do que uma sociedade pré-industrial, nem sequer aquela dos nômades Touareg, jamais gastou para se mover. Para além de uma certa velocidade, os transportes rápidos são contraproducentes, custam mais tempo aos que os utilizam do que fazem poupar, o que não os torna menos lucrativos para os seus proprietários. O mundo laboral perde o seu tempo a ganhar a sua vida, e os consumidores perdem a sua vida a ganhar tempo.

As pessoas desejam no entanto remover este constrangimento que transforma o tempo numa mercadoria rara e a sua existência numa corrida sem fim para agarrar um padrão de vida que se apresenta como desejável...e a sua vida real lhe escapa entre os dedos: “Nunca mais é noite...nunca mais é fim de semana...as férias...a reforma”. Essa aspiração desarmada deixa o caminho aberto aos tecnocratas que podem, com toda a experiência da objectividade fria, propor soluções técnicas, ou seja substituir aos caprichos dos homens coisas sólidas e máquinas bem afinadas. Também, a função criando a necessidade e não o contrário, aquilo que os transportes permitiam, tornou-se obrigatório; se nossos antepassados não podiam, por falta de meios, percorrer distâncias grandes, nós, devemos as percorrer.

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Os transportes permitiram ir mais longe e mais depressa, ter acesso a mais sítios, que tiveram de ser ordenados principalmente por causa da sua frequentação, e assim tornaram-se comuns. Resultou desta ordenação uma especialização do espaço e uma redistribuição das actividades concentradas em vários pontos do território (tecnopólos, parques de lazer, sítios prestigiosos, centros industriais, comerciais e administrativos, supermercados, cidades dormitórios, subúrbios, etc.), o que necessita obviamente de transportes mais rápidos ainda para remover as novas distâncias assim criadas. Se percorremos num ano mais distancia que nossos antepassados durante toda uma vida, não é por irmos para outros sítios, mas por irmos sempre para os mesmos sítios.

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A corr ida da r atazana

A desertificação dos campos, o sobrepovoamento nos subúrbios sem nome e nas cidades inabitáveis, a estandardização das existências, a vida totalmente dominada pelos imperativos económicos, o tempo dito livre e os lazeres tornados eles próprios em mercadoria, o sentimento crescente do absurdo de uma vida assim e a fuga permanente para a frente para tentar a esquecer, aqui está o lote comum da nossa época. Com uma exigência basicamente económica, o transporte rápido das mercadorias e dos homens tornou-se um fim em si mesmo (“Tornámos o mundo mais pequeno” clama uma companhia de charters); as exigências funcionais da vida estereotipada dos executivos, traders e cortesãos desta mobilidade mercantil e verdadeiros apêndices biológicos da economia, impuseram-se à totalidade da população como necessidades dominantes.

Seja o que for que se possa pensar do carácter pouco invejável da precipitação permanente dos homens de negócios, dos “responsáveis”, ou do rapaz novo da classe média, que parece quase sempre surgir do metro ou do escritório em BTT, deve-se infelizmente admitir que a sua postura se tornou o padrão. A ironia da História é ter dado ao slogan de Maio de 68 “Vivre sans temps mort” este conteúdo tão lastimável.

A psicose da urgência para qualquer coisa ganhou as populações. Efectivamente disponíveis para tantas práticas diferentes, todas formadas com a mesma

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forma, nossos contemporâneos parecem freneticamente querer prová-las todas, e não perder nenhuma. Temos de ir para frente! Mal saímos da idade do carvão, deve-se correr para todos os lados, para a montanha ou para a praia, para os trópicos e para o círculo polar, em tempo recorde, tão a existência literalmente exausta, parece ter ficado mais pequenina ao longo dos tempos. É em primeiro lugar nos movimentos profissionais que se expressa, sem contenção nenhuma, este despotismo da velocidade: os fluxos económicos presentes em qualquer sítio “em tempo real” são ainda mais voláteis, a corrida dos business men ainda mais desesperada, dado que se deve recomeçar tudo perpetuamente. A epopeia de pacotilha que a ideologia neo-liberal elaborou a volta das gesticulações dos cavalheiros de indústria, golden boys e outros tantos, terá finalmente dado os seus frutos. Deve-se suprimir o trajecto. É importante ‘chegar’somente.

Por inúmeras razões cuja menor não é a demissão perante o enigma que se tornou a invenção da sua própria vida, os homens não se querem mover mais a um ritmo sensível; não é que eles tenham no fundo gosto pela velocidade, mas antes não suportam mais de se mover lentamente. A remoção de qualquer comunidade possível tal como de qualquer individualidade profunda, produziu um isolamento quase esquizofrénico dentro dos transportes modernos tal como na vida urbana da qual eles são uma extensão. A literatura de gare, nascida com os caminhos de ferro, faz-se agora acompanhar do uso

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do walkman, e o equipamento vídeo dos vagões deve encher o silêncio pesado que domina. O que não tem mais graça deve ser reduzido e entretido; o movimento (metro, comboio, carro, barco, avião) não é nada mais que tempo morto, perdido, tempo de aborrecimento.

Ir depressa e longe era em primeiro lugar abstractamente desejável; tornou-se concretamente indispensável para a maioria das pessoas, dado que não têm nada para fazer nem ninguém para encontrar pelo seu caminho. O TGV responde perfeitamente a esta necessidade falaciosa; não é uma qualquer melhoria do comboio, mas uma qualquer outra coisa, “um Airbus em voo perto do chão”, como escreve com tanto jeito o imbecil de serviço do jornal Le Monde. As condições do transporte aéreo desceram à terra e nada as fará descolar.

A abstracção da viagem aérea impôs-se legitimamente sobre a terra quando esta se tornou tão vazia como o céu. Ir para longe sem parar em nenhum sítio, voar sobre países onde nunca se porá os pés e dos quais nunca se saberá nada, aqui está a experiência democrática espalhada pelo TGV. Com a ordenação completa do território e a eliminação gradual das linhas clássicas de caminho de ferro, as condições comuns do transporte moderno vão cair, da mesma maneira democrática e obrigatória, em cima da totalidade da população. Décor clean tal como um fast food, ar e passageiros condicionados, alimentação de síntese, ambiente anestesiante, tudo deve evidenciar

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ao transportado, maltratado e pressionado pelas exigências informáticas da máquina a transportar, que tem direito efectivamente às condições do actual transporte aéreo de massa sobre o qual ergonomistas e psicólogos calcularam as suas normas: lotação máxima e isolamento total na promiscuidade.

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Para que serve a uti l idade?

Respondendo a uma necessidade falsificada, forçado pelas contradições de uma existência submetida, o TGV pertence à família do forno de micro-ondas, tão conveniente quando não se sabe mais preparar de antemão alguns pratos. O desenvolvimento técnico, arrastando cada um dentro da espirale infinita dos males que as suas falsas curas agravam cada vez mais, impõe-se assim como uma evidência a civilizados cada vez mais despojados, ávidos de se vestirem de próteses para compensar as capacidades e as aspirações bem danificadas. Para quem se esqueceu, ou nunca soube que viajar significa mudar o seu trajecto e as suas paragens conforme o seu humor, o TGV pode aparecer como figura de progresso, ainda mais indiscutível pela possibilidade de realmente viajar ser gradualmente proibida por outros progressos feitos da mesma farinha. O que resta de paisagem rural, de onde foi abstraído tudo aquilo que não é identificado economicamente e onde subsistem apenas bifes com quatro patas, hectares de prados bonificados, e quotas de mamas de vaca, merece apenas que seja atravessado em grande velocidade.

Esta felicidade singular assistida por computador seria perfeita se industriais e consumidores pudessem ficar em levitação, uns obnubilados pela rentabilidade esperada dos seus investimentos, outros mamando vorazmente as suas irreais compensações perecíveis, perpetuamente renovadas. O problema, é que por maior que seja a velocidade deste mundo a reduzir

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cada elemento vivo numa equação económica, haverá sempre esta incógnita que é a multiplicação das nocividades, com as reacções de rejeição que ela suscita.

Mal as ilusões mercantis são repreendidas, aparece logo a beatitude tecnicista para responder que só as realizações do passado seriam friáveis e sem futuro, e que nada de incómodo pode ficar sustentavelmente sem solução. Pode-se mesmo assim, posteriormente, fazer um processo para cada nocividade, contando que o raciocino dado como imparável, e que as constitui a todas, continue lançado e vá mais longe para criar outras novas. As panaceias técnicas sucessivas, cujas falhanças repetidas invadem gradualmente todos os aspectos da vida, confirmam suficientemente o impasse na qual a humanidade se comprometeu. A despossessão é tão ultrapassada pelas suas consequências das quais cada desastre resulta naturalmente, que parece impor novos meios urgentes aos mesmos precários paliativos, e obviamente aos especialistas que os têm prontos para aplicar.

Uma tal fuga para a frente não saberia ter fim: tudo será sempre engolido, e a recomeçar indefinidamente. A perspectiva de obter um resultado benéfico qualquer para a imensa maioria (menos trabalho por exemplo) não é sequer evocada pelos dirigentes. A verdadeira utilidade do desenvolvimento técnico do mundo moderno está doravante aqui : a sua função social é impedir a solução dos problemas que ele

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próprio gera criando sempre novos. De acordo com o adágio “Porquê fazer simples quando se pode fazer complicado?”, a proliferação de uma tecnologia autodestrutiva permite contornar a contradição histórica de uma riqueza perpetuamente confiscada.

Pode-se por conseguinte descrever o TGV como mais uma arma no arsenal com a ajuda da qual a sociedade de hoje luta contra as possibilidades emancipadoras que ela contém, bombardeando os diversos campos da existência. Desde que um ministro da defesa comparou a entrada das tropas francesas no Iraque à corrida de um TGV, deveria ser conhecida melhor a função atribuída a este meio de transporte no imaginário dos que decidem. O padrão – obviamente japonês – não tinha por nome “comboio obus”? Os efeitos reais sobre as populações beneficiárias serão sem dúvida tão obscurecidas como pode ser a ligação entre a campanha militar tonitruante no Golfo e o “drama” das populações curdas ou a catástrofe dos poços de petróleo em fogo. Trata-se de facto aqui de uma guerra, cujo furado do TGV (“arrasando tudo à sua passagem”) é um momento decisivo; tendo a particularidade de reduzir mais do que qualquer outra, o ciclo destruição-construção, duas operações que se encontram, nesta guerra, confundidas numa só, sobre o nome de ordenamento.

Como é uma guerra de onde, de uma certa maneira toda a gente sai vencida – as ilusões de melhorias, de poupança de tempo, etc., passam, as nocividades

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ficam -, é tentador ver na sua acção uma fatalidade, que seria aquela da “técnica”, ou da “sociedade moderna”. A indignação que se dirige contra as circunstâncias impessoais, e que assim não as considera mais como uma realidade atacável e alterável, deve necessariamente esgotar-se bastante depressa. Não faltam inimigos para apontar e para combater se se tem vontade de lutar, além do pára-vento democrático, contra os que decidem, e de fazer subir as nocividades até os nocivos.

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As redes da t i rania

Os promotores do desastre acabam eles próprios por deplorar a degradação da vida à qual chegámos. Ao se juntarem ao coro das madalenas arrependidas, propondo mesmo os seus serviços (segundo o princípio do racket) para remediar ilusoriamente o que destruíram realmente, tentam fazer esquecer a sua participação preponderante na destruição. Assim continuam a insinuar que se o fluxo da economia escapa visivelmente a toda gente, ninguém em particular se aproveitaria disso e não teria interesse em que essa demência continue. Os mais manhosos, pensemos no pessoal politico, cuja tarefa principal consiste em convencer as populações que o seu interesse é de confiar totalmente neles e de admitir que as suas escolhas arbitrárias servem para o interesse geral, têm a impudência de colocá-las aos encarregados devotos que assumem na adversidade as cargas colectivas; são obviamente os mesmos que mandam a tropa quando a sociedade pensa em apanhar outros caminhos que não os seus. E que clamam logo, depois de terem aniquilado as perspectivas que se formavam, que qualquer outra coisa não é possível e que é irresponsável querer pôr em causa a submissão de toda a vida aos imperativos dos seus negócios.

Para fazer aceitar o trajecto do TGV e para dissimular os seus próprios interesses triviais no negócio, a propaganda daqueles que decidem, tem à sua disposição uma ampla palete de mentiras;

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apoiando-se às vezes nas mentiras antigas para fabricar novas, esclarecem o arbitrário inicial e ao mesmo tempo a enormidade à qual chegam: assim, se se acredita que sem economia não se consegue viver em sociedade, e se se admite por outro lado que sem o TGV a economia se enfraqueceria, tem de se concluir logicamente que sem o TGV não se conseguiria mais viver em sociedade. É aqui que se apresenta o nó nevrálgico do conflito sobre o traçado, dado que os oponentes ficam persuadidos, e com razão, do contrário, ou seja que a sociedade se desmantela sob as pancadas de tais ordenamentos. A dependência económica das populações, o seu aprofundamento ou a sua contestação, é o objectivo verdadeiro de tais conflitos, mas não é inútil pormenorizar como agora se encaixam os argumentos falaciosos da propaganda em favor do TGV.

Tratar-se-ia em primeiro lugar, modo ecológico oblige, do meio de transporte menos devorador de energia e o mais ecológico; para além de que – e não é mistério para ninguém – a potência requerida para alcançar grandes velocidades consome necessariamente mais energia, a electricidade de origem nuclear utilizada pelo TGV é um aperfeiçoamento ecológico do qual os habitantes deste planeta ainda não acabaram de saborear as delícias. Temos aqui o procedimento comum que consiste em opor, comparando-as, realidades contudo objectivamente complementares e ligadas: não há concorrência verdadeira entre a estrada, o carris e o avião, mas um desenvolvimento simultâneo

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e coordenado. A auto-estrada ocupada pelo transporte de mercadorias, ou as partidas concentracionárias para as férias, e o avião mais rápido em vôos de médio curso acordam ao TGV a função de super comboio dos subúrbios, terminando a suburbarnização2 do território, no melhor para o benefício de algumas conurbações e no pior da única região de Paris cujo taxa de crescimento, superior ao resto do país, não faltará de crescer com o apoio desta nova rede centralizada.

Em prol do crescimento sempre necessário, e por definição nunca adquirido, dado que a concorrência, a cada novo patamar, põe em causa os equilíbrios penosamente mantidos no estado anterior (empregos, etc.), os ordenadores pretendem incrustar ainda mais brutalmente à superfície da terra o seu delírio manomániaco: falam de aproveitamentos económicos quando o exemplo de Creusot-Montchanin3 na linha do TGV Paris-Lyon, rico pelo seu único parque de estacionamento de neo-subúrbio, é de outra maneira mais eloquente; submetem as paisagens seculares aos imperativos balísticos da circulação rápida, “rectificam” regiões” especializando-as. O cúmulo é com certeza atingido quando querem mostrar a todos o fantasma ridículo de uma França que estaria à frente, graças ao TGV, 2 Termo urbanístico para descrever o processo de transformação de

zonas rurais em zonas urbanas (habitat, infa-estrutura e actividade económicas) formando assim a grande urbanização (NDT).

3 Nome de umas das estações da linha TGV Paris-Lyon.

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da organização dos transportes europeus, para que aproveitamentos económicos tão abundantes como ilusórios, venham embelezar a vida dos moradores.

Na realidade, os ditos poderes públicos não têm mais o monopólio e o domínio da iniciativa relativamente aos equipamentos colectivos: cada vez mais em simbiose com a máfia da Construção Civil e das Obras Públicas, imputa-se-lhes só “vender à opinião” como resposta a necessidades sociais preexistentes, os projectos simili-faraónicos de todos os géneros, concebidos pelos construtores. Nesta colusão entre o “privado” e o “público”, elabora-se a inversão que transforma e disturpa as necessidades sociais, submetendo-as aos meios sempre renovados e impostos. Os poderosos interesses do betão e da terraplaneagem, isto é também do cimento e do veículo pesado, tornaram-se tão monstruosos financeiramente, requerendo cada ano volumes cada vez mais importantes de operações e tornando sempre mais urgente e imperativo fornecer novas fatias de megalomania, incentivando os decisores por sua vez ávidos de se ilustrarem por algum “gesto arquitectónico” ou proeza tecnológica. E é inegável que o conhecimento profissional da Construção Civil se enriqueceu consideravelmente, pelo menos numa área, aquela baseada na arte da persuasão: conseguiu tornar-se imprescindível para os responsáveis políticos, oferecendo-lhes antes de mais, serviços garantidos com facturas verdadeiras ou falsas.

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Este aspecto quase vaudevillesque do governo dos homens e da regência das suas actividades daria para sorrir se esta comédia do poder onde o artifício lho briga à mentira cúpida, não parisse uma situação dramaticamente irreversível.

Para não falar aqui que da ameaça do aquecimento catastrófico do planeta devido ao efeito de estufa, do qual as despesas energéticas dos transportes, quais sejam eles, e das indústrias que os fabricam, contribuem notavelmente, todos os peritos oficiais, por uma vez de acordo, preconizam uma alteração drástica do modo de produção, única solução para conseguir estabilizar a evolução do clima para meados do próximo século. E em paralelo, em prol de outros imperativos (interesses privados da indústria, interesses nacionais dos Estados, interesses peculiares dos políticos para a sua carreira), é pelo contrário um crescimento ininterrupto das despesas energéticas que outros especialistas “competentes” à sua maneira, mantêm enquanto único objectivo. Dado que os ordenadores nos falam do interesse geral, aqui está a oportunidade de subtrair daquele a discussão, e nomeadamente aquela em torno das necessidades do transporte, às redes da omnipotência catastrófica dos eleitos locais, dos interesses privados delimitados e dos tecnocratas robotizados. O único interesse geral que merece ser discutido neste fim de século4, é tentar acabar com a destruição da vida, e

4 Recordamos ao leitor que este texto foi escrito em 1991 (N.T.).

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não ganhar uma dezena de minutos por passar pela Vallée du Rhône5. No que diz respeito ao único crescimento que merece toda a nossa atenção, é aquele, qualitativo, da existência humana, a única que permite sair desta obscura pré-história económica.

5 Trata-se aqui de uma das principais regiões do sul de França onde o traçado da linha TGV estava prevista naquela altura e foi de facto construída (N.T.).

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O Grão de Are ia

Por vezes, ouve-se que as oposições ao TGV se manifestam demasiadamente tarde, que a Provence e a Vallée du Rhône foram já danificadas por as auto-estradas e a urbanização. Além de estar aqui a negligenciar as oposições de menor envergadura que se ergueram, na altura, contra as auto-estradas e as centrais nucleares, é normal que a soma inexorável de ordenamentos, delineando o espaço em áreas funcionais, acabe por provocar a angústia de não poder mais respirar – nem sequer suspirar. Menosprezar as oposições actuais, seria sobretudo desconhecer a importância que pode ter para todos esta tentativa de parada brutal em torno das quimeras dos ordenadores. Ninguém escapa ao desastre. Se não somos todos moradores das terras onde passa o TGV, somos todos moradores do território da economia.

Aqueles que querem acima de tudo, dobrar a vida aos seus critérios contabilísticos, às suas medidas em Mtep6 etc., esses não lhes importa denunciar os interesses “mesquinhos” que seriam o lote das oposições aos seus projectos. Que desejassem efectivamente e somente interesses muito limitados, estas oposições teriam pelo menos o benefício, nestes tempos tão sombrios, de constringir os poderosos a se conterem um pouco acerca do desprezo da vida 6 Unidade de medida da desmesura, significando “milhões de

toneladas equivalentes de petróleo” (N.A.).

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real. Mas de qualquer maneira, a partir de quê as pessoas se poderiam erguer contra o abitrário dos projectos que caiem do ceús dos tecnocratas, senão a partir daquela que sensivelmente melhor conhecem, aquela que se reprova vivamente como sendo egoista, isto é o meio onde eles vivem? Quando a fria desrazão económica clama que não poderia haver futuro fora dela, como é que aqueles que recusam acompanhá-la mais adiante, não o fariam em nome deste passado ameaçado, o qual já conheceram? Ao defenderem o que elas conhecem contra o que elas receiam do desastre em curso, as populações envolvidas defendem em todos os casos melhor o interesse geral que os cientistas, os peritos e os funcionários que estabelecem, cada um dentro da sua área, o balanço dos danos sem poder nem querer pôr-lhe termo.

No extremo oposto desta barafunda de generalidades comprometidas e lamentações hipócritas, as oposições práticas podem só pela sua tenacidade, começar a fazer a ligação entre as diferentes depossessões que sobrecarregam o ser vivo, e preparar o terreno onde a apreensão do futuro pare de ser uma consciência infeliz e passiva para se inverter numa reapropriação do presente. Outras lutas, contra as barragens da Loire7, contra os sítios de despojos 7 Houve uma série de barragens contruidas no rio La Loire que foram desmanteladas ao longo dos anos 90, consecutivamente às oposições e lutas de populações que viviam na zonas exploradas pela EDF, entre as quais algumas se iniciaram já nos anos 50 com uma vertente ecológica: a barragem de Saint-Etienne de Vigan foi

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nucleares, o lixo industrial ou as pedreiras, serviram já de exemplos e contribuíram para melhorar a atmosfera geral. As poucas intuições sólidas que estão na raiz destes movimentos de oposição às nocividades, são as suas melhores armas para alargar a sua recusa e encontrar um apoio sem passar pela publicidade dos médias, que as apresentam inevitavelmente sob o ângulo o mais indigente, querendo só conhecer os proprietários, viticultores, moradores prejudicados e não a intuição cada vez mais espalhada de que este mundo só sabe propor a agravação do que ele é. O que cada um já pressente, deve-se dizer. Não vale a pena entrar nas transacções propostas esperando obter um sossego: nenhum sacrifício conseguirá garantir uma pausa, não fará nada mais que exortar os promotores da devastação. Porém, opor-se ao TGV com todas as razões universais para o fazer, fazer obstáculo àquele projecto, e ao mesmo tempo aos que o acompanham , ou o acompanharão inevitavelmente.

Assim, é particularmente vergonhoso que ecologistas, tais como a Fédération Rhône-Alpes de la Protection de la Nature ou o senhor René Dumont8, osem pretender que o TGV nos evitaria auto-estradas, quando

destruída em 1998 para permitir a reprodução de salmão que estava ameaçada de extinção ao longo da exploração dessas barragens (N.T.). 8 Agrónomo francês que alertou sobre os perigos da agricultura industrial e productivista (depois de ele a ter defendido e desenvolvido durante a segunda guerra mundial em França) e que foi em 1974 o primeiro candidato “ecologista” às eleições presidenciais francesas (N.T.).

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qualquer um pôde constatar ao longo da última década como, em paralelo com o arranque do TGV Paris-Lyon, os tráfegos aéreos e rodoviários aumentavam sem parar. Longe de provocar a criação de novas auto-estradas (que também outra gente recusa no sudeste), ou francamente alargar a auto-estrada du Soleil9, o sucesso da oposição ao TGV abriria uma brecha dentro deste consentimento forçado que faz cada vez menos sentido a cada um. A insidiosa questão “Porquê recusar esta nocividade quando vocês aceitaram e legitimaram tantas outras?” será definitivamente arrumada quando ainda mais recusas tiverem sucedido àquela. É difícil imaginar que o dilúvio actual de ordenamentos de todos os géneros, a menos que se abatam em cima de populações que acabariam totalmente por se desorientar, bem como lobotomizadas em silêncio, não provoque oposições determinadas a acabar com esta demência organizada.

Que se avalie o dinamismo “sem preconceitos” que se espera hoje em dia de executivos e técnicos da produção de nocividades, como uma certa Nicole Le Hir, recrutora de alto nível para a área agro-alimentar, que declarava: “Hoje em dia, não se deve pensar muito, temos de avançar” (jornal o Ouest France , 18 de abril de 1991). Podemos também nos debruçar sobre a descoberta de Pierre Verbrugghe, prefet de polícia de Paris, sobre a mutação dos

9 Nome de uma das auto-estradas do sudeste de França, que liga Lyon a Marselha (N.T.).

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antropóides empreendida sob o seu égide: “hoje em dia, o Parisiense não tem duas pernas, tem quatro rodas” (Jornal Le Monde, 27 de abril de 1990). Ou mais ainda a súbita cegueira de um ordenador local, vice-presidente da região Poitou-Charentes, para justificar o projecto de auto-estrada Nantes-Niort que atravessa o Marais Poitevin10 : “Entre os sapos e os homens, escolho os homens” (mas quais homens?).

Estes argumentos não são excepcionais, testemunham a vontade em impor em todos os sítios o irreversível. Esta teimosia desesperada dos decisores em continuarem a qualquer custo a agravação, comprova que não conhecem mais nada: aquilo que eles meteram em marcha, eliminando os modos de vida anteriores, reprimindo as tentativas de emancipação do século, perdem-no agora o domínio, não dispondo mais de outros meios, a não ser os que produzem este desastre. A sua estreiteza de espírito prática se reencontra na estreiteza escandalosa da sua concepção da vida: passa a fazer parte das primeiras medidas de salubridade pública combatê-la sob qualquer forma que ela apareça. Imputa-se aos opositores de investir sem mais pejo nem hesitação o terreno desertado do pensamento, para construir a sua argumentação e encontrar as razões universais da sua recusa: aquelas que poderão servir a estende-la.

Alliance pour l'opposition

10 Zona do litoral atlântico acima da cidade de La Rochelle que tem a particularidade de ser composta em maioria de pântanos (N.T.).

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à toutes les nuisances, 1991

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ANEXO: O Universo do SATU ou o Proto-Mundo do « Tudo-Máquina » Escrevi inicialmente este texto em francês e foi publicado em França na revista do colectivo “Pièces et Main d’Oeuvre” em Novembro de 2009. Acho relevante juntar em anexo ao “Resumo provisório dos nossos desagrados...” esta crítica sobre um exemplo português de obra tecnológica megalomaníaca liderada por políticos e empreendedores irresponsáveis, porque responde implicitamente e localmente à questão “para que serve a utilidade” colocada no manifesto pela Alliance pour l’opposition à toutes les nuisances. No texto inicial, os nomes dos principais protagonistas desta obra “pública” surreal estavão explicitamente citados. Escolhi designá-los nesta tradução portuguesa só pela função burocrática encarregada por cada um, meramente por duas razões. A primeira é que assim ficaremos então livres de toda acusação de um pressuposto complot praticando uma denúncia ad hominem e partidária contra a governação local incriminada neste texto. A segunda é revelar que seja qual for a marca política em função, a consequência sui generis deste sistema político mostra que os políticos passam e os desastres da desumanização em marcha cada vez mais irreversíveis ficam.

Janeiro de 2011, Daniel Vivas

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Podemos sempre produzir instrumentos através do funcionamento dos quais nós nos tornamos supérfluos, nós nos eliminamos, nós nos “liquidamos”. Tanto faz que este objectivo seja só aproximadamente alcançado. O que importa é a tendência. E o seu lema é precisamente: “Sem nós”.

Günther Anders

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SATU ou a concepção de um Proto-Mundo do Tudo-máquina

Estamos em Portugal, mais precisamente num subúrbio da Grande Lisboa, à beira do Tejo, na freguesia de Paço de Arcos do Concelho de Oeiras, um dos mais ricos do ponto de vista económico do país. Entre a sobrevivência de um pequeno mundo arcaico constituído essencialmente de algumas casas pombalinas antigas e de algumas hortas agonizantes, e o assédio esmagador pela construção moderna, existe um Proto-Mundo do tudo-Máquina. Este mundo prototipado onde a máquina está presente em todos os lugares, e o homem em nenhum, “imaginado” pelos responsáveis políticos da Câmara de Oeiras, é designado pelo nome de SATU (Sistema Automático de Transporte Urbano). Porquê apresentar aqui um sistema de transporte público urbano, destinado à utilização humana, como o esboço de um mundo onde precisamente a humanidade está ausente e a máquina e a sua tecnologia presentes em todos os lugares? Porque este sistema de transporte desde a sua instalação nesta freguesia há agora cinco anos, funciona praticamente sem ninguém e para ninguém. É com efeito muito fácil constatar dentro desta ocorrência “a presença de um sistema que apanhou o seu desenvolvimento por si próprio e que funciona porque funciona!”, citando aqui as palavras de

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Jacques Ellul que caracterizava há quarenta anos atrás a sociedade tecnicista. No que diz respeito à justificação racional sobre a (in)utilidade deste sistema tecnológico e sobre a sua estrita “necessidade”, bebe como de costume em cada discurso oficial, a sua inspiração numa fraseologia inesgotável e pomposa, impregnada de inépcias tecnoprogressistas revelando um pouco mais cada dia a força desastrosa e desumanizadora das suas pretendidas propriedades beneficentes.

A empresa SATU oriunda da « imaginação fért i l » de empreededores e pol ít i cos re solutamente modernos e visionários

A propaganda oficial e local, difundida pela Câmara de Oeiras e pela empresa SATU, dá uma versão muito enfática da génese do projecto SATU. É divulgada sobre o tom da revelação, um pouco à maneira dos grandes pensadores da Revolução industrial que expunham ao povo as suas últimas pérolas industriais e tecnológicas oriundas das suas viagens de estudo através a Europa ou os Estados Unidos. O presidente em exercício da Câmara, afirma-nos a versão oficial, teve a ideia, enquanto estava a viajar pela Austrália - país eminentemente conhecido por suas preocupações e os seus esforços relativamente ao consumo de energia -, de transpor este sistema de “transporto urbano a trajecto reduzido” em funcionamento neste país, para o

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concelho de Oeiras. O excelentíssimo presidente “pensou [será que ele teve ainda tempo e capacidade para isto?] que seria interessante para o concelho adoptar este meio de transporte”. Por costume, qualquer projecto integrando quimeras high-tech é sempre publicamente e sistematicamente divulgado sob o ângulo da inovação. O serviço de propaganda do município de Oeiras, escolheu por sua vez apresentar este projecto de transporte, não sob o ângulo directo da novidade, mas sob aquele bem pensado e moderado da reutilização e da importação do conhecimento. Com efeito, a Câmara sob o olho avisado dos seus engenheiros e peritos de todos os géneros, e uma das maiores empresas de construção civil nacional, rainha dos construtores portugueses, colaboraram na concepção e na construção desta obra prima baseando-se numa experiência existente na Europa, reforçando mais uma vez esta colusão tão conveniente entre oligarcas do mundo político e empresarial. Foram procurar o “know-how”, ou seja o conhecimento, num sítio qualquer em França. Quando se considera melhor esta vasta empresa inconsciente de promoção da máquina para a máquina e da tecnologia para a tecnologia, esses burocratas deixaram deliberadamente e manifestamente de lado as questões “porquê?” “para quem?”. A partir desta impregnação do conhecimento técnico directamente tirada da « Sociedade do Conhecimento » e da « Aldeia Global », da Austrália,

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passando por França, para chegar até Portugal, o excelentíssimo presidente da Câmara de Oeiras, mestre de obras visionário, acompanhado por seus lacaios tecnocratas e o seu amiguinho de negócio construtor conseguiram produzir à volta de um quilometro de viaduto sustentado por enormes pilares, o conjunto todo garantido em aço e betão armado, para fazer circular sempre vazio, todos os dias desde há cinco anos, e na indiferença absoluta, dois comboios à tracção automática, podendo transportar até dois mil e trezentos passageiros por hora, com paragens em três blocos de betão disfarçados de estação, humanamente desertos mas povoados de máquinas high-tech.

As caract erí s t icas do Proto-Mundo do Tudo-Máquina totalmente acabadas

O que chama imediatemente atenção quando se entra numa das estações do SATU, é ausência total de humanidade. É ver abertamente aqui também o reinho absoluto da máquina totalmente realizado. Na entrada da estação dos Navigantes, à esquerda por exemplo, erguem-se duas máquinas automáticas de venda de titúlos de transporte. Duas portas automáticas electronicamente aferrolhadas controlam as entradas e saidas da estação. A abertura destas portas desencadeia-se à passagem e à leitura do titúlo de transporte, assinalando com um bip ligeiro a validade do bilhete. A sua forma e a sua estutura

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parecem terem sido concebida pela imaginação utilitarista de Jeremy Bentham para as entradas do seu Panopticon, que não podia ter sonhado neste caso melhor aplicação. Seguem a escada rolante e o elevador (as escadas clássicas estão lá como solução de contingência usando aqui os termos de um técnico que tem a certeza absoluta de não ter negligenciado nada) para subir o equivalente de um meio-piso, que ambos conduzem à entrada de um corredor que leva ao cais. Immediatamente à direita, um multibanco a ecrã táctil esperando pela solicitação funcional original que nunca vem, desempenha então a sua função anexa difundindo sem parar uma sequência publicitária sobre os benefícios do crédito ao consumo. As paredes deste longo corredor apresentam uma emurraria de paineis publicitários rotativos prontos a agir. Quando se senta finalmente encima de uns dos bancos metálicos do cais, esperando a chegada do SATU, é o silêncio ensurdecedor da ausência humana que domina, coberto pelo ruído da máquina em acção. É com efeito o ruído dos cabos puxando o SATU de estação em estação que se intensifica ou diminui, dando uma ideia da sua proximidade ou do seu afastamento. É o som dos painéis rotativos sincronizados para competir sobre a difusão de uma publicidade consternadora da qual cada produto que nos manda comprar se autoproclama “amigo do ambiente”. É o ruidozinho da escada rolante que se

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manifesta quando um raro “viajante” se encaminha ao cais ou à saída. É a voz sintética e programada que anuncia a chegada do SATU, locomotiva sem condutor e carruagem sem passageiro. São as portas que se abrem e se fecham automaticamente sincronizadas com a voz programada que nos convida a sermos cuidadosos “com o fecho e a abertura automáticos das portas”. E é o ruído produzido pela tracção do cabo que recomeça acabando e iniciando uma iteração sem fim.

O Proto-Mundo do Tudo-Máquina fi lmado e arquivado para as futuras gerações

A parte menos visível do SATU, a sua parte conexa, inscreve-se por sua vez dentro do delírio tecnológico securitário de hoje em dia: a videovigilância como norma perante a ameaça humana e os seus comportamentos suspeitos, que no caso do Proto-Mundo SATU apresenta, considerando a sua “frequentação”, um risco a doses fracas. Uma armada de câmaras de filmar disposta dentro das três estações, ligada a uma plataforma central de vigilância, grava o flagrante da desumanização acabada, arquivando assim nanosegundo por nanosegundo, o filme numerizado deste Proto-Mundo do maquinismo totalitário em acção. Cornélius Castoriadis imputava à subida da insignificância, a razão, entre outras, de uma escolha política e social muito inclinada para “o

Page 66: TGV-resumo provisorio dos nossos desagrados

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desenvolvimento dos gadgets” e esquecendo-se totalmente “do desenvolvimento dos seres humanos”. Estes arquivos numéricos, por sua forma e seu conteúdo, testemunharão para as gerações futuras, de quais “necessidades” é feito o mundo de hoje em dia, desta insignificância finalizada pela tecnologia high-tech, território prefabricado, insaciavelmente reproduzível e administrados por tecnocratas, políticos e empreendedores, visionários enfartados pelo progresso e pelo poder absolutos e feitos da mesma farinha - do género de aqueles que actuam na Câmara Municipal de Oeiras -, que transformam a terra num deserto onde o homem se torna totalmente supérfluo.