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DIÁLOGO SOBRE AS MASSAS, O MEDO E A MORTE UMA CONVERSA ENTRE ELIAS CANETTI E THEODOR W. ADORNO Tradução: Otacílio F. Nunes Jr. ADORNO — Eu sei que frequentemente o senhor se distancia muito de Freud, e que mantém posições críticas muito duras em relação a ele. Mas não há dúvida de que o senhor está de acordo com ele em uma questão de método, que é a seguinte: Freud salientou com insistência — sobretu- do na época em que a psicanálise se achava ainda em fase de formação, quando ainda não havia se constituído totalmente — que não tinha de ma- neira nenhuma intenção de contestar ou rechaçar os resultados de outras ciências consolidadas, mas simplesmente queria acrescentar algo que ha- via sido esquecido por elas. E para Freud os motivos desse esquecimento são algo muito essencial, uma espécie de caráter-chave para a vida coletiva do homem, precisamente como no seu caso. Creio que o senhor pode explicar isso perfeitamente, dada a impor- tância central que o problema da morte assume em sua obra, assim como em muitos outros trabalhos antropológicos, em sentido amplo, de nossos dias. Poderia fazê-lo precisamente com a complexidade da morte — se é que se pode falar de maneira tão empolada de uma coisa tão elementar —, entre outras razões para dar a nossos ouvintes uma idéia, um modelo, do que significa efetivamente esse "esquecimento", a que momentos — na experiência da morte — o senhor atribui um valor tão grande. Assim se poderá observar a fecundidade do método e perceberemos que aqui não só se discutem coisas sobre as quais, por outro lado, se reflete pouco, mas também que a mesma naturalidade com a qual esses momentos são aceitos contém algo perigoso. Algo que, a partir do espírito do Iluminis- mo, o senhor quer mitigar, tornando-o consciente. Este encontro teve lugar em março de 1962. A tra- dução foi feita a partir da versão publicada na revis- ta valenciana Debats 17, de setembro de 1986. 116

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DIÁLOGO SOBRE AS MASSAS, O MEDO E A MORTE

UMA CONVERSA ENTRE ELIAS CANETTI E THEODOR W. ADORNO

Tradução: Otacílio F. Nunes Jr.

ADORNO — Eu sei que frequentemente o senhor se distancia muito de Freud, e que mantém posições críticas muito duras em relação a ele. Mas não há dúvida de que o senhor está de acordo com ele em uma questão de método, que é a seguinte: Freud salientou com insistência — sobretu- do na época em que a psicanálise se achava ainda em fase de formação, quando ainda não havia se constituído totalmente — que não tinha de ma- neira nenhuma intenção de contestar ou rechaçar os resultados de outras ciências consolidadas, mas simplesmente queria acrescentar algo que ha- via sido esquecido por elas. E para Freud os motivos desse esquecimento são algo muito essencial, uma espécie de caráter-chave para a vida coletiva do homem, precisamente como no seu caso.

Creio que o senhor pode explicar isso perfeitamente, dada a impor- tância central que o problema da morte assume em sua obra, assim como em muitos outros trabalhos antropológicos, em sentido amplo, de nossos dias. Poderia fazê-lo precisamente com a complexidade da morte — se é que se pode falar de maneira tão empolada de uma coisa tão elementar —, entre outras razões para dar a nossos ouvintes uma idéia, um modelo, do que significa efetivamente esse "esquecimento", a que momentos — na experiência da morte — o senhor atribui um valor tão grande. Assim se poderá observar a fecundidade do método e perceberemos que aqui não só se discutem coisas sobre as quais, por outro lado, se reflete pouco, mas também que a mesma naturalidade com a qual esses momentos são aceitos contém algo perigoso. Algo que, a partir do espírito do Iluminis- mo, o senhor quer mitigar, tornando-o consciente.

Este encontro teve lugar em março de 1962. A tra- dução foi feita a partir da versão publicada na revis- ta valenciana Debats nº 17, de setembro de 1986.

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CANETTI — É absolutamente certo, creio, que a consideração da morte cumpre um papel importante em meu trabalho. Se tivesse que dar um exem- plo do que o senhor assinalava, me referiria à questão da sobrevivência, so- bre a qual, a meu ver, se refletiu muito pouco. O momento em que um homem sobrevive a outro é um momento concreto e eu creio que a expe- riência desse momento tem consequências muito importantes. Creio que essa experiência é ocultada pelas convenções sociais, pelo que se deve sentir quando se experimenta a morte de outro ser humano, mas que por baixo, escondidos, existem determinados sentimentos de satisfação e que desses sentimentos de satisfação, que às vezes podem inclusive ser de vitória — por exemplo no caso de uma luta —, pode derivar-se algo muito perigoso se eles se produzem com frequência e se acumulam.

A meu ver essa experiência da morte alheia, perigosamente acumu- lada, é um germe absolutamente essencial do poder. Dou esse exemplo isoladamente e sem entrar em maiores detalhes. Vi que o senhor falou de Freud: eu sou o primeiro a admitir que a forma como Freud começava as coisas, desde o princípio, sem se deixar assustar ou desviar por nada, me marcou profundamente, durante meu período de formação. É certo que atualmente eu já não acredito em alguns de seus resultados e que devo me opor a algumas de suas teorias específicas. Mas tenho, como sempre, o má- ximo respeito pela maneira como ele enfrentava as coisas. Adorno — Devo dizer que precisamente num ponto em que o senhor ape- nas tocou existe entre nós dois um contato muito forte. Na Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e eu analisamos o problema da autoconser- vação, da razão que se conserva a si mesma, e assim deparamos com o fato de que esse princípio da autoconservação, tal como foi formulado pe- la primerira vez, pode-se dizer classicamente, na filosofia de Spinoza — e que o senhor, em sua terminologia, chama de momento da sobrevivên- cia em sentido pleno —, que esse motivo da autoconservação, quando se torna em certa medida "selvagem", quer dizer, quando perde a relação com as pessoas que o rodeiam, se transforma em uma força destrutiva, em des- truição, e ao mesmo tempo também em autodestruição. O senhor não co- nhecia nossos pontos de vista e nós não conhecíamos os seus. Creio que aqui nosso acordo não é casual, mas poderia se dever a um fator objetivo, que se tornou atual precisamente a partir da crise da situação presente (a qual definitivamente é uma crise dessa autoconservação tornada selvagem, dessa sobrevivência tornada selvagem).

Canetti — Alegra-me saber que suas reflexões o tenham levado a resultados similares, e creio que o fato de que o senhor tenha chegado a eles de maneira autônoma contribui para reforçá-los.

Adorno — Eu penso o mesmo. Mas por outro lado creio que há um problema metodológico que para nosso objetivo — a localização de seu pensamento — não é indiferente. Em seu livro,1 a primeira coisa que cha- ma a atenção de um pensador como eu, não importa se se chama filósofo ou sociólogo, e que, se posso dizê-lo abertamente, é também um pouco kakakka

(l)Canetti, Elias. Massa e Poder. Brasília, UNB/Me- lhoramentos, 1983.

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escandalosa, é o que eu chamaria de subjetividade do enfoque. Por subje- tividade não entendo a subjetividade do pensamento, do autor, ao contrá- rio: a liberdade da subjetividade, que esse pensamento não se submeta já a priori às regras codificadas do jogo científico e não respeite os limites da divisão do trabalho, me parece infinitamente simpático. Por subjetivi- dade entendo muito mais o distanciamento dos objetos que leva em con- sideração e, portanto, dito de um modo mais completo, mais amplo, o dis- tanciamento dos modos de representação. Além do mais, tenho total cons- ciência de que o senhor — também nesse caso de maneira não muito dife- rente da de Freud — relaciona os conceitos fundamentais que utiliza — massa e poder —, tal como eu o faria, com condições reais, e portanto com a experiência de uma realidade. Não obstante, o leitor de seu livro não po- de livrar-se totalmente da sensação de que no desenvolvimento de seu li- vro a imaginação, a representação desses conceitos ou fatos — uma coisa e outra vão juntas — é ainda mais importante do que eles mesmos; o con- ceito de massas invisíveis, que em seu pensamento cumpre um papel mui- to importante, é um exemplo disso.

Agora gostaria de fazer-lhe outra pergunta muito simples que pode- ria dar a nossos ouvintes uma idéia mais clara da questão. Gostaria de sa- ber como o senhor avalia a importância real das massas e também do po- der ou dos detentores do poder em relação às representações puramente internas, em relação às imagens. Em outras palavras: as imagens de massa e poder das quais o senhor se ocupou. Canetti — Para responder a esta pergunta eu gostaria de voltar um pouco atrás. (Adorno — Creio que seria muito útil.) O senhor cita meu conceito de massas invisíveis. Entretanto eu gostaria de dizer que as massas invisí- veis constituem só o 14º breve capítulo do livro, que portanto antes há outros treze capítulos nos quais me ocupo muito detidamente da massa real. O ponto de partida do livro é, a meu ver, absolutamente real. Come- ço pelo que chamo de medo do contato. Creio que o indivíduo se sente ameaçado pelos outros e que por essa razão tem medo de ser tocado pelo desconhecido, e que trata de se proteger de todos os modos do contato com o desconhecido, criando em torno de si distâncias, procurando não se aproximar demais dos outros seres humanos. Todos os homens tiveram essa experiência de tentar não tocar os outros, pelo fato de que é desagra- dável ser empurrado por estranhos. Apesar de todas as preocupações o homem nunca perde completamente o medo do contato.

Pois bem, é preciso constatar o fato muito surpreendente de que na massa o homem o perde de todo. Trata-se de um paradoxo realmente importante. O homem só se libera do medo do contato quando se encon- tra muito próximo de seus semelhantes na massa, quando está totalmente rodeado por outros homens, de maneira que já não pode saber quem é que o oprime. Nesse momento ele já não teme o contato com os outros. Seu medo se subverte; e eu creio que uma das razões pelas quais os ho- mens se reúnem prazerosamente à massa, se sentem à vontade na massa, kakakakkkak

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é o alívio que experimentam por essa subversão do medo do contato. Penso que se trata de uma abordagem muito real, que deriva de uma experiência concreta que qualquer um que esteja integrado na massa conhece.

Muito bem, nos capítulos seguintes eu estudo também outros as- pectos da massa real. Falo de massas abertas e de massas fechadas. Ponho em relevo como as massas querem crescer sempre, como essa coação para o crescimento é decisiva para elas. Trato da sensação de igualdade no seio da massa e de muitas outras coisas sobre as quais não quero me deter ago- ra. Posteriormente, no 14º capítulo, chego ao conceito de massas invisí- veis, sobre o qual ainda posso dizer muito rapidamente alguma coisa: para qualquer um que se tenha ocupado de religiões, e em particular de reli- giões primitivas, é extraordinariamente surpreendente notar até que pon- to essas religiões estão povoadas de massas que de fato os homens não podem ver realmente. Basta pensar nos espíritos, que nas religiões primiti- vas desempenhavam esse papel. Existem inumeráveis exemplos de como os homens estão autenticamente convencidos de que o ar está cheio des- ses espíritos que se apresentam de maneira massiva — essa crença chega até nossa religião universal.

Nós sabemos qual é o papel que desempenha no cristianismo a idéia de diabo, a idéia de anjo. Na Idade Média existem numerosíssimos teste- munhos disso. Supõe-se que os demônios existem em massas infinitas. Um abade cisterciense da Idade Média, Richalm, dizia que quando fechava os olhos sentia em torno de si enxames de demônios. Essas massas invisíveis cumpriam um papel importante nas religiões e na fantasia dos crentes. En- tretanto eu não as definiria como irreais, porque esses homens crêem ver- dadeiramente nessas massas, para eles são algo absolutamente real.

Para compreender plenamente isso é suficiente pensar que também nós, em nossa vida moderna, conhecemos massas invisíveis semelhantes. Já não são demônios, mas são talvez igualmente ameaçadoras, igualmente agressivas e igualmente temidas por nós. Ao fim e ao cabo todos nós acre- ditamos na existência dos bacilos. Só uma minoria olhou através de um microscópio e os teve efetivamente diante de seus olhos, mas cada um de nós tem certeza de que está ameaçado por milhões de bacilos, que podem estar sempre em qualquer parte, e a idéia que fazemos disso cumpre um papel muito importante.

Essas seriam pois as massas invisíveis, que não obstante eu definiria como reais em certo sentido, e creio que o senhor admitirá, senhor Adorno, que então ainda se pode falar de uma espécie de realidade das massas invisíveis. Adorno — Sim, se em seguida eu puder fazer uma objeção (peço-lhe que perdoe o pedantismo de um teórico do conhecimento). Antes de mais na- da, não é a mesma coisa se, como é o caso da consciência primitiva, não se distingue ainda tão nitidamente entre a realidade e a imaginação como na consciência ocidental desenvolvida, que se baseia precisamente nessa distinção. É pelo fato de que no pensamento arcaico, em um pensamento kkakka

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primitivo, ainda não se faz nenhuma diferenciação entre o imaginar espíri- tos ou demônios e sua existência real que esses não se tornaram objetiva- mente reais. Evidentemente não podemos sair de nossa natureza que nos diz, em nome de Deus, que o mundo não é habitado por espíritos. E a este respeito eu também gostaria de dizer, depois do que o senhor disse até agora, que em seu pensamento existe uma certa superioridade do ima- ginário, do que é relegado ao mundo da imaginação em relação à realida- de imediata, drástica, porque eu não creio — talvez valesse a pena o se- nhor falar rapidamente disso, entre outras coisas para deixar claros seus propósitos —, não creio que o senhor seja da opinião, como foram, por um lado, Klage e, por outro, Oskar Goldberg, de que essas imagens, en- quanto portadoras de caráter coletivo, têm uma realidade imediata, quer dizer, equiparável às massas na moderna sociedade de massas. Canetti — Não, certamente eu não diria isso. Não obstante cheguei à for- mulação de um conceito que me parece importante: é o conceito dos sím- bolos de massa. E a esse respeito ainda diria de bom grado alguma coisa: por símbolos de massa entendo unidades coletivas, não constituídas por homens, mas que, não obstante, são percebidas como massas. A essas uni- dades pertencem imagens como o fogo, o oceano, o bosque, o trigo, a ri- queza ou quantidades de certo tipo como, por exemplo, o volume da co- lheita. Embora seja certo que se trata de unidades efetivamente existentes, na mente do indivíduo são usadas como símbolos de massa. É preciso ana- lisar detalhadamente esses símbolos e explicar por que cumprem essa fun- ção e que significado assumem nessa função. Gostaria de dizer simples- mente, para dar um exemplo prático, que esses símbolos de massa foram absolutamente decisivos para a formação de uma consciência nacional. (Adorno — Certamente!)

Quando homens que sentem pertencer a uma nação, em um mo- mento difícil de sua existência nacional (digamos em um momento de ex- citação nacional como, por exemplo, o começo de uma guerra) se defi- nem como ingleses ou franceses ou alemães, então pensam em uma massa ou em um símbolo de massa, algo a que possam se referir. E em sua mente isso é extremamente poderoso, de grande importância para seu modo de agir. Creio que até aqui talvez o senhor queira concordar comigo em que a eficácia de tais símbolos de massa existentes no indivíduo é indiscutível. Adorno — Nisso estou completamente de acordo com o senhor. Por exem- plo, creio que com a descoberta do bosque como imagem, como símbolo de massa, o senhor captou algo verdadeiramente essencial, que considero extremamente fecundo. Creio que em comparação com os símbolos ar- caicos um pouco áridos que aparecem em Freud e, por outro lado, em com- paração com os arquétipos estabelecidos um pouco arbitrariamente por Jung, por meio dessas categorias se pode realmente ir muito longe. Mas gostaria de dizer: mesmo depois dessa explicação — o senhor não intro- duziu o conceito de símbolo como central sem motivo — o interesse per- manece essencialmente nas categorias já interiorizadas, já usadas na imagi- ksakakakkaka

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nação. E o que eu queria lhe perguntar agora é algo realmente muito sim- ples; algo que de certo modo também seria necessário indagar a propósito da teoria da sociedade orientada psicanaliticamente, quer dizer, se o se- nhor acredita que esses símbolos desempenham efetivamente um papel- chave na problemática da sociedade contemporânea — que interessa ao senhor, como a mim — ou se ao contrário as massas reais, concretas, fa- lando despretensiosamente, a extraordinária pressão exercida por um nú- mero enorme de pessoas (mesmo que a instituição da sociedade facilite e ao mesmo tempo complique potencialmente a conservação da própria existência) —, se portanto essa pressão das massas reais sobre a formação da vontade política não é mais importante, para a sociedade atual, do que essas coisas imaginárias, em um sentido mais amplo social-psicológicas, às quais o senhor se referiu.

A esse respeito posso simplesmente lembrar que se observou que mesmo movimentos que aparentemente eram ditaduras absolutas e nos quais se havia eliminado qualquer consideração pela vontade popular — como o fascismo e o nacional-socialismo — também possuíam sempre, em forma latente, o que o sociólogo Arkadi Gurland chamou caráter de compromisso. Quer dizer que até nessas formas de poder tirânicas para as massas continuou a se fazer valer constantemente a consideração dos interesses reais das massas, das estruturas reais dos interesses e de sua exis- tência real, mesmo que de maneira solapada. E o que me interessa agora de verdade, e sobre isso eu gostaria que o senhor dissesse ainda alguma coisa, é: que valor o senhor atribui a esse peso real da massa em relação ao campo do simbólico? Canetti — Sim, naturalmente eu diria que o valor, a importância das mas- sas reais é incomparavelmente maior. Não duvidaria sequer por um segun- do, chegaria inclusive a dizer que as ditaduras que nós vivemos se compu- nham completamente de massas, que sem o crescimento das massas, que é particularmente importante, e sem a constante e artificial mobilização de massas cada vez maiores, o poder das ditaduras seria absolutamente incon- cebível. Esse é um dado real do qual parti para minha investigação. Uma pessoa, um contemporâneo que viveu os acontecimentos dos últimos cin- quenta anos a partir do estouro da I Guerra Mundial — uma pessoa que portanto viveu a guerra, depois revoluções, inflações e depois a ditadura fascista — muito provavelmente sentiu acima de tudo, sob o efeito dessas coisas, a necessidade de se confrontar com o problema das massas. Lamen- taria profundamente que o fato de haver levado em conta também outros aspectos da massa — no curso de uma investigação que durou anos — pu- desse induzir alguém a pensar que a real importância das massas não é pa- ra mim o fenômeno decisivo e absolutamente importante. Adorno — Isso me parece ter importância fundamental para uma correta compreensão de seus propósitos. Se eu mesmo tivesse que emitir um juí- zo teórico a esse respeito, então seria uma espécie de mediação, mas não no sentido de compromisso, muito mais no sentido em que o conceito kkkkkkkkkkkkk

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de mediação aparece em Hegel: assumir que o fato de que a pressão real das categorias de massa e poder, profundamente interconectadas — como o senhor reconheceu com exatidão — cresceu de tal maneira que para o indivíduo é extremamente difícil opor-se, auto-afirmar-se na qualidade de indivíduo, e que por esse motivo cresceu também o significado simbólico dessas categorias, significa, só por esse fato, que os homens por assim di- zer retrocedem em sua interioridade, em sua vida espiritual, para fases ar- caicas, nas quais se atribuía a essas categorias, na medida em que eram in- teriorizadas, um significado corpóreo, e se identificam com elas em tudo e por tudo; provavelmente só assim chegam a se resignar com o próprio debilitamento devido ao crescimento dessas duas categorias correlaciona- das, representando-o, em certa medida, como algo significativo, lumino- so, possivelmente irracional e precisamente por isso sagrado.

Portanto, a meu ver existe uma relação entre o crescente significa- do simbólico dessas coisas e sua realidade. Entretanto, gostaria de atribuir certo valor a um aspecto: aquilo que depois retorna — quer dizer, esse sig- nificado simbólico e irracional —, aquilo que retorna sob pressão não é diretamente o que era antes. Diria que agora trata-se muito mais de uma espécie de resultante da situação real na qual o homem se encontra e do mundo da imaginação ao qual recorre e para o qual inclusive retrocede. Eu me inclinaria a pensar que o tom fatal, perigosamente mortal, que con- ceitos como ditador ou massa assumem tão facilmente na atualidade, prin- cipalmente quando entram reciprocamente numa espécie de curto-circuito, está relacionado com o fato de que hoje, ao já não existirem verdadeira- mente essas relações primitivas, em cujo contexto os conceitos eram efi- cazes, esses são muito mais, por assim dizer, evocados, e o que vem evoca- do do passado, mas que já não tem nenhuma realidade, através desse mo- mento de específica falsidade no presente, se transmuda numa espécie de veneno. Canetti — Creio que deveria dizer ainda muitas coisas a esse respeito e me aprofundar em algumas delas. Queria também, se o senhor me permitir, corrigi-lo um pouco a meu modo. Mas em geral estaria de acordo. Não obs- tante, devo dizer que um dos pontos essenciais, um ponto ao qual se che- ga constantemente quando se consideram as massas na atualidade, é cons- tituído por dois elementos arcaicos que se encontram nelas. Não sei se o senhor concordará comigo sobre a necessidade de contemplar esses ele- mentos arcaicos como algo muito importante. Não é possível estudar a mas- sa apenas tal como ela se manifesta na atualidade, mesmo que apareça com suficiente clareza e em múltiplas formas. Creio também que é importante relacioná-la com algo que já existe faz muito tempo, que apareceu com freqüência e apareceu em formas diversas. Adorno — Naturalmente aqui estou de acordo com o senhor. Na tradição da psicologia social mais recente repetidas vezes se chamou a atenção pa- ra o arcaísmo que transparece nas formações de massas — primeiramente Gustave Le Bon que, em sua Psicologia das Massas, em uma primeira apro- kakakaakkaakakak

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ximação, entendeu esses modos de comportamento arcaicos, irracionais das massas em uma série de momentos, de maneira puramente descritiva, e posteriormente os reconduziu à categoria bem mais problemática e vaga de sugestão; a seguir Freud, que em sua pequena mas muito importante (ao menos a meu ver) obra Psicologia das Massas e Análise do Ego, tratou de sustentar a descrição das massas de Le Bon, que ele aprovava, com uma derivação genético-psicológica.

Seria muito interessante se o senhor, precisamente porque nesse pon- to se acha em conflito com uma tradição do pensamento social em todo caso muito notável — também o sociólogo americano McDougall perten- ce a ela —, se o senhor — sempre do ponto de vista de uma topologia, de uma localização de seu pensamento — esboçasse para nós as diferen- ças concretas entre sua própria teoria e a dos autores mencionados. Canetti — Para fazer isso, eu deveria voltar um pouco atrás e em primeiro lugar à pergunta sobre a forma em que se encontra a massa nas sociedades primitivas, porque é claro que as sociedades primitivas, que são formadas por um número inferior de pessoas, não poderiam levar às organizações de massa que conhecemos hoje. Adorno — Essa é precisamente a pergunta que eu tenho a todo instante na ponta da língua: nas sociedades primitivas, onde eram ainda pouquíssi- mas as pessoas, pode-se falar em massas? Alegra-me que o senhor tenha chegado a esse ponto. Canetti — Creio então que é preciso introduzir um conceito novo. Falei de maltas, e por maltas entendo um grupo pequeno de pessoas em um particular estado de excitação, que tem um parentesco absoluto com o es- tado de excitação de nossas massas modernas, mas que se diferencia pelo fato de ser limitado, enquanto nossas massas podem crescer ilimitadamen- te. As maltas fazem sua aparição em sociedade constituindo pequenos gru- pos — alguns só de dez, vinte ou trinta pessoas em busca de alimentos. Na literatura etnológica os exemplos mais conhecidos de tais pequenos grupos são as hordas dos aborígenes australianos.

Pois bem, é surpreendente como em deteminadas circunstâncias de suas vidas, da vida dessas hordas, como são denominadas hoje em antro- pologia, formam-se pequenos grupos excitados, que têm um claro objeti- vo e que o perseguem com grande energia e em estado de máxima excita- ção. Um tipo dessas hordas, por exemplo, é a malta de caça. Há um grande animal que os homens não podem dominar; é necessário que muitos de- les se reúnam para capturar esse animal. Ou então aparece uma grande quantidade de animais. Possivelmente se quer capturar muitos de uma vez, não deixá-los fugir, poderiam desaparecer de novo, ou então poderia ha- ver um período de escassez e já não se disporia de muitos animais. Creio que o conceito de malta de caça é tão evidente que não é necessário falar muito dele.

A segunda malta — também isso é claríssimo — é a que se volta contra outra, e aí temos a malta de guerra. Quando existem duas maltas kakakakkamia

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que se ameaçam mutuamente, nasce algo que nós hoje conhecemos em escala muito ampliada, em enorme medida, através da guerra. Mas essa si- tuação existe já nas sociedades precedentes quando uma malta combate contra outra.

A terceira forma, que não é tão fácil de explicar, é a que eu, talvez pela primeira vez, defino como malta de lamentação. Quando um grupo formado por poucas pessoas perde um membro, quando um membro lhe é arrancado pela morte, então o grupo normalmente se reúne para tomar de alguma maneira consciência dessa morte. Primeiro tratará de conservar o moribundo, de mantê-lo ainda no grupo por algum tempo; logo, uma vez morto, recorrerá a qualquer rito que o distancie do grupo, o reconcilie com seu próprio destino e não o converta em um perigoso inimigo do grupo. A esse respeito existe uma grande variedade de cerimônias muito importantes, e dificilmente se encontrará um país sobre a terra que não as conheça. Todos os fenômenos desse tipo eu os defino como maltas de lamentação.

Chegamos agora à quarta forma de malta, que para nós é provavel- mente a mais interessante de todas: os homens, que existiam em quantida- de bastante exígua, queriam ser cada vez mais. Se tivessem sido mais nu- merosos também teriam podido caçar mais, na guerra teriam podido en- frentar melhor o grupo agressor. Existem muitíssimos ritos e cerimônias que servem para o crescimento. Por crescimento se entende não apenas o crescimento numérico dos próprios homens, mas também o dos ani- mais e das plantas dos quais eles vivem. Tudo que se relaciona com esse fenômeno eu defino como malta de multiplicação.

Essas quatro formas de malta me parecem verdadeiramente defini- das. Creio que é possível demonstrar sua existência de muitas maneiras, e além do mais me parece que também continuam a existir em nosso tem- po, sobre o qual as três primeiras formas teriam uma espécie de repercus- são arcaica. Em nossa vida moderna a malta de caça se converteu em uma massa sublevada. Conhecemos casos de linchamento, quando algumas pes- soas de repente se lançam sobre um homem... (Adorno — A malta do pogrom!)

Naturalmente isso deve ser relacionado a esses casos primitivos de malta de caça. A guerra, nós a conhecemos demais. A lamentação conhe- cemos, talvez mais do que na forma bastante comedida em que se mani- festa hoje socialmente, através das religiões. A lamentação desempenha um papel importantíssimo no cristianismo e em outras religiões. Entretanto, a malta de multiplicação se transformou. Evidentemente ela dependia to- talmente da mudança nas relações de produção, e quando se fala da im- portância das relações de produção pensa-se sobretudo, creio, no que se refere à malta de multiplicação. Portanto, essa não é só uma forma arcaica, mas também experimentou tais modificações qualitativas que em nossa so- ciedade, na qual ela se manifesta como produção, já não é reconhecida. Creio que é importante — e não sei até que ponto o senhor concordará kakakakamakmakamkm

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comigo — distinguir nitidamente as formas de malta que têm um caráter puramente arcaico daquelas que penetraram a tal ponto em nossa vida mo- derna que se converteram em uma parte verdadeiramente atual de nossa vida. Adorno — Para começar eu vou revolver um pouco o que o senhor disse. Dentro há algo muito essencial: para o senhor o conceito de massa não é, como hoje comumente parece, um conceito puramente quantitativo. O senhor o define referindo-o muito mais ao conceito de malta, através de uma série de momentos qualitativos, como os que citou: a caça, a guerra, que é uma fase um pouco mais racional, mais avançada e mais evoluída que a caça, a lamentação e o que o senhor chama de multiplicação. Por isso creio que é preciso acentuar precisamente esse momento, porque as- sim se poderá compreender até que ponto são superficiais as frases feitas, hoje tão difundidas, sobre a era das massas e todas essas coisas, que efeti- vamente são formuladas como se tudo dependesse exclusivamente do nú- mero, do qual, como é sabido, se diz num poema de Stefan George: "Já vosso número é um insulto", enquanto o insulto não depende do número, mas desses momentos qualitativos que o senhor destacou. Agora, dessas categorias de malta, as três primeiras são muito evidentes, se bem que o senhor me concederá que naturalmente não podem ser simplesmente se- paradas uma da outra de modo tão estático, já que entre elas existe tam- bém uma interdependência; portanto a malta de caça e a malta de guerra se prolongam sem dúvida uma na outra, mesmo que a malta de guerra, enquanto forma organizada em relação à malta de caça, que é — pode-se dizer — espontânea, represente também a negação do imediatismo desta última. Canetti — Gostaria de dizer rapidamente que eu também estou convenci- do de que a malta de guerra deriva originalmente da malta de caça. (Ador- no — Deriva, exato!) Tratava-se de se vingar alguém que talvez houvesse cometido um homicídio, e então se reuniam todos e iam vingar esse ho- micídio. Quando o grupo ao qual pertencia o homicida se preparava para a defesa, surgia uma segunda malta, e aí temos já o modelo da malta de guerra. Adorno — Exatamente! Além do mais, creio que essa é hoje a opinião qua- se geral da etnologia a esse respeito. (Canetti — Sim.) Falando claramente, tenho certa dificuldade com o conceito de malta de multiplicação, porque isso de vontade de se multiplicar me parece algo problemático. Essa von- tade é no mínimo ambivalente. É preciso refletir sobre o fato de que o man- damento de multiplicar-se, característico das grandes religiões, sobretudo do judaísmo e do catolicismo, é típico precisamente daquelas religiões que se diferenciam das religiões naturais, míticas ou mágicas. É possível supor que em estágios mais primitivos — nesse sentido penso por exemplo na construção de uma fase oligárquica no desenvolvimento humano — esse problema da multiplicação não era tão terrivelmente importante para os homens, e mais, que não lhe atribuíam nenhuma importância. Eu me in- kamakamkamkh

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clinaria muito mais a pensar que o próprio mandamento da automultipli- cação tem uma origem exclusivamente histórica vinculada à categoria de propriedade, da propriedade estavelmente transmissível. Só onde existe algo como a propriedade, algo que deve ser conservado, que tem um cará- ter fetichista, torna-se automática a necessidade de transmiti-lo. Só nesse momento se converte em um mandamento o fato de que seja preciso criar herdeiros que tomem posse da propriedade, e daqui deriva posteriormen- te essa necessidade secundária, não principal, de multiplicar-se, de cres- cer. Seria interessante que o senhor antes de mais nada dissesse algo a esse respeito. Eu ainda queria dizer depois uma palavra sobre a interpretação do que nessa categoria de crescimento da malta me parece muito fecundo. Canetti — Dos numerosos exemplos que recolhi, exporei com prazer dois: no Shih-King, o clássico livro das fábulas dos chineses, há um poema que fala de gafanhotos e compara o número de gafanhotos com o número de descendentes — e precisamente como algo desejável. Esse poema é curto e eu gostaria de lê-lo: "As asas dos gafanhotos dizem: puxa, puxa. Oh, que teus filhos e teus netos possam ser um exército inumerável. As asas dos gafanhotos dizem: amarra, amarra. Oh, que teus filhos e teus netos pos- sam suceder-se em uma linha infinita. As asas dos gafanhotos dizem: une, une. Oh, que teus filhos e teus netos possam ser sempre uma única coisa." Temos aqui, definitivamente, o grande número, a não-interrupção da descendência, a unidade; três auspícios para a posteridade. E que os gafanhotos sejam adotados aqui como símbolos da posteridade já é parti- cularmente surpreendente, porque obviamente os gafanhotos eram temi- dos. (Adorno — Normalmente têm um papel negativo.) Entretanto a enor- me quantidade de seu número é exatamente o que se auspicia para a pró- pria descendência. Adorno — Mas não é esse um estágio muito tardio de uma sociedade já institucional, organizada, de um Estado e de uma religião organizados frente às relações naturais? Canetti — Talvez se pudesse dizer isso. O Shih-King é muito antigo, po- rém... (Adorno — Mas apesar disso pressupõe uma sociedade altamente desenvolvida, quer dizer, hierarquicamente desenvolvida.) Isso provavel- mente é correto. E precisamente por isso, gostaria de lhe dar ainda outro exemplo. É particularmente importante, porque se trata de mitos totêmi- cos trazidos a público há quinze anos aproximadamente. Foram descober- tos pelo jovem Strehlow entre os Aranda. Gostaria de contar-lhe um: trata- se da origem do totem dos ratos marsupiais, que na Austrália são também chamados bandicoots. Conta-se a seguinte história: imagina-se que o ante- cessor do totem dos bandicoots, o velho Karora, jaz no fundo de um charco imerso em um sono perpétuo. Dorme desde a noite dos tempos. Um belo dia, sai de seu umbigo e de suas axilas uma quantidade inumerável de ban- dicoots, que o circundam completamente. Mas ele continua dormindo. Sai o sol. Ele se levanta, põe-se de pé, sente fome, nota que está rodeado por um grande número de bandicoots, estende a mão em todas as direções, kakakkakaak

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agarra um deles, cozinha-o no sol abrasador e o come — portanto, falando com propriedade, come uma das criaturas que nasceu dele mesmo. Ador- mece e durante essa mesma noite cai de sua axila um talismã que se trans- forma e se converte em um homem. É seu primeiro filho, que cresce e no dia seguinte é reconhecido por ele como filho. Na noite seguinte che- gam outros desses filhos, que caem sempre de suas axilas; e assim a cada noite. No final chegam a sair de suas axilas cinqüenta filhos de cada vez, e ele sempre os envia em busca de bandicoots, que eles capturam e cozi- nham, e é assim que se alimentam.

Portanto aqui temos uma espécie de dupla multiplicação: em pri- meiro lugar está o antecessor dos bandicoots, que surgiram de repente em grandes massas: mais tarde, dele, pai, nasce um grande número de filhos. Efetivamente se poderia chamá-lo uma mãe de massas, já que se pode di- zer realmente que ele é constituído seja de bandicoots seja de filhos. A relação entre esses bandicoots e os filhos de Karora é muito interessan- te. Uns se alimentam dos outros. Assim, ele produziu o alimento e tam- bém os filhos. Ele é o antecessor do totem, que é considerado o totem dos bandicoots, e este totem significa exatamente que os bandicoots e os homens pertencentes a ele têm um parentesco muito próximo. Os homens, seus filhos humanos, são uma espécie de irmãos pequenos desses bandi- coots. A esse mito podem-se acrescentar muitas outras tradições similares. Creio que aqui pode-se falar realmente de um instinto de crescimento muito forte. Adorno — Gostaria de acrescentar — isso nos levaria muito longe e eu não creio que agora possamos esgotar a discussão — que aqui se trata de algo ambivalente. Sem dúvida existe um momento arcaico desse tipo que pe- netra no múltiplo, no amorfo, na variedade das formas. Mas também exis- te o momento oposto e é provável, me parece, que seja quase impossível distinguir o principal do secundário (o que, além do mais, em problemas desse tipo não leva muito longe), distinguir o que é primário e o que é derivado. Em todo caso, parece claro que a idéia de crescimento — e isso naturalmente pelas conhecidas razões econômicas e de civilização — é ao mesmo tempo desejada e temida, tanto por parte dos indivíduos e das fa- mílias como também dos povos e da humanidade em conjunto, para a qual, nas atuais formas de organização, essa multiplicação quantitativa parece pôr em perigo a própria sobrevivência, estando, além do mais, atormenta- da pelo temor, em parte naturalmente imaginário, de que a velha Terra não seja capaz de alimentar uma humanidade multiplicada sem controle. Canetti — Quero dizer só uma coisa: essa idéia de superpopulação da Ter- ra também é muito velha e mítica. (Adorno — Muito velha!) Aparece já en- tre os antigos persas e existia também entre os povos que buscavam com força o crescimento e davam grande importância ao desejo de crescimento. Adorno — Nessa ambivalência há sem dúvida a consciência muito profun- da de que, por um lado, toda existência possível, tudo aquilo que em geral pode ser, tem direito a existir, mas, por outro lado, por obra das formas, kakakkkkk

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das instituições entre as quais o homem viveu e vive ainda hoje, tudo que aparece de novo no horizonte, inclusive o mais distante, é ao mesmo tem- po uma ameaça para a existência de todos os outros. Eu diria que essa am- bivalência não tem só motivos psicológicos, mas também motivos reais, mesmo que se encontrem ainda tão distantes.

Mas a esse respeito acho que posso voltar a um detalhe que, em sua teoria do crescimento, me pareceu muito interessante, seja qual for o des- tino dessa controvérsia. Em certo momento de seu livro o senhor sustenta que hoje a produção, a multiplicação de bens, se converteu em uma espé- cie de fim em si mesmo, ou melhor, como eu diria, foi fetichizada. Pois bem, do ponto de vista da teoria econômica da sociedade, poder-se-iam aduzir muitos motivos racionais e pseudo-racionais para explicar como se chegou a isso: nas condições atuais, o aparato produtivo, e com ele o con- junto das relações de produção, só pode se manter funcionando se procu- rar um círculo sempre renovado de compradores de produtos: precisa- mente aquela extraordinária inversão entre principal e secundário pela qual os homens, para os quais se supõe que existe tudo, são simplesmente des- locados pela máquina que eles mesmos construíram.

Nesse ponto sua teoria, não obstante, cumpre uma excelente fun- ção: porque presumivelmente não se poderia compreender totalmente co- mo foi possível prosperar em toda a Terra esse culto à produção pela pro- dução, sem nenhuma diferença entre sistemas políticos, se não encontras- se também uma extraordinária acolhida na subjetividade dos homens, em seu inconsciente, em toda sua herança arcaica. Ao contrário, se deveria sim- plesmente eliminar a objeção a por que é necessário produzir cada vez mais, dado que o que se produz na realidade basta e sobra para satisfazer nossas necessidades. Que essa pergunta de fato não se coloque, me parece que vem a significar que aqui o aparato produtivo mobiliza enormes re- cursos libidinais aos quais pode recorrer para sua constante, e também mui- to problemática, difusão entre as massas. É por isso que eu considero esse ponto de vista, quando menos, extremamente fecundo, embora eu não es- teja propenso a colocar essa pulsão de crescimento ou vontade de cresci- mento tão em nível de princípio como o senhor faz.

Agora me permito voltar mais uma vez à pergunta que lhe coloquei antes e na qual o senhor até agora não se deteve; a pergunta sobre as dife- renças entre sua abordagem e suas teorias sobre a massa e as de Le Bon e Freud, que são também muito conhecidas — em geral a fecundidade de uma teoria reside essencialmente nas diferenças mínimas pelas quais se se- para de teorias contíguas. Canetti — Talvez o senhor permita que eu sublinhe sobretudo a diferença entre a teoria de Freud e a minha, porque eu acho... Adorno — A de Le Bon não é uma verdadeira teoria, é mais uma descri- ção. Uma descrição de um fenômeno relativamente restrito. Quero dizer, as massas que ele descreveu na realidade são só as massas que surgem em situações muito determinadas, como os incêndios e outras ocasiões simi- kaakmakmkama

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lares, e que naturalmente não se pode dizer que sejam protótipos para o conceito de massa em geral. Eu também acho que é melhor falar só de Freud. Canetti — No que se refere a Freud, é preciso dizer algumas coisas: Freud fala de duas massas concretas que ele dá como exemplo, uma é a igreja e a outra é o exército. O fato de que Freud escolha dois grupos — vamos chamá-los assim — hierarquicamente articulados para explicar sua própria teoria da massa me parece já uma característica muito particular. Eu real- mente não considero as massas como algo hierarquicamente articulado. A meu ver, o exército não é totalmente uma massa. O exército é uma reu- nião de pessoas que são mantidas juntas através de uma determinada es- trutura de mando precisamente para que não se convertam em massa. Em um exército é extremamente importante que através de uma ordem cinco homens possam ser divididos e trezentos utilizados em qualquer lugar co- mo uma unidade. O exército é divisível, a qualquer momento. Às vezes, em determinados momentos, no momento da retirada ou de um ataque particularmente violento, pode se converter em massa; mas em princípio, a meu ver, o exército não é totalmente massa. Portanto é já muito significa- tivo que Freud explique sua teoria utilizando o exército. Outra coisa que eu poderia destacar como diferença importante é que Freud na realidade só fala de massa que tem um chefe. Freud vê sempre um indivíduo que as massas têm como ponto de referência. Adorno — Naturalmente isso está relacionado com a teoria do progenitor, do pai das hordas. Canetti — Mas também há massas, e acho que aqui o senhor estará de acor- do comigo, totalmente distintas: por exemplo uma massa em fuga. Algu- mas pessoas são inesperadamente ameaçadas em algum lugar... Adorno — Essas Freud as concebe como decomposição da massa, em to- tal coerência com seu ponto de vista. Canetti — Não, a meu ver é preciso distinguir entre massa em fuga e massa tomada pelo pânico. (Adorno — Sim, a massa tomada pelo pânico.) A mas- sa em fuga se encontra ainda em uma condição de massa, como em uma manada em fuga, quando todos escapam juntos. O pânico é... (Adorno — ...uma desintegração) uma massa indo aos pedaços, quando cada indiví- duo tenta simplesmente salvar sua própria vida. A massa em fuga, que não está ainda tomada pelo pânico, que é ainda uma unidade, não tem um che- fe. Tem uma direção, que é: longe do perigo! Não obstante apresenta as- pectos de massa muito pronunciados, que podem ser explicados detalha- damente e que são muito importantes. Também creio que a massa subleva- da nem sempre tem um chefe. O senhor objetará, com razão, que as mas- sas sublevadas são muito freqüentemente instigadas por determinados demagogos... Adorno — Sobretudo na fase histórica sempre foi assim, as massas suble- vadas não eram espontâneas e sim manipuladas. Era assim já durante o po- grom das Cruzadas.

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Canetti — Está absolutamente certo. Entretanto creio que existe uma mas- sa sublevada que precede e se situa além dessa massa dirigida por um che- fe, referida a um chefe. Além do mais há outros casos. O senhor recordará que também descrevo a massa festiva. (Adorno — Sim.) Esse é seguramen- te um caso que não tem nada a ver com um chefe. Aqui se trata de uma reunião de pessoas e de uma grande quantidade de produtos que elas que- rem gozar juntas, em um estado de excitação e de alegria. Aqui tudo se move desordenadamente; aqui nem sequer se fala já de uma direção, e o tema do chefe não se coloca. Creio que o conceito de massa em Freud depende demais do de Le Bon. Adorno — Freud o tomou como referência. Na realidade é um comentário ou uma interpretação, uma interpretação genérica da fenomenologia da mas- sa de Le Bon. Canetti — Agora eu teria ainda alguma coisa a dizer: quando se pensa nes- se caso limitado de massa, tal como o explica Freud segundo a representa- ção de Le Bon, também é preciso fazer outras objeções. A mim interessa sobretudo o conceito de identificação. Considero esse conceito não total- mente ponderado, não suficientemente preciso, não completamente cla- ro. Em muitas passagens de sua obra, quando fala de identificação, Freud diz que se trata de um modelo, que a criança por exemplo se identifica com o pai e queria ser precisamente como o pai. O pai é o modelo. Segu- ramente isso está certo. Mas o que acontece realmente nessa relação com o modelo ainda não foi descrito com precisão. Com certeza o senhor se surpreendeu um pouco pelo fato de que uma parte de meu livro seja dedi- cada aos problemas da metamorfose. O segundo volume concederá uma importância ainda maior a esse tema. Eu me impus verdadeiramente a ta- refa de estudar desde o princípio todos os aspectos da metamorfose, de maneira que ao final possa estabelecer o que é realmente um modelo, o que acontece realmente entre o modelo e quem assume um modelo. Tal- vez só então possamos ter conceitos mais claros da identificação. Enquan- to isso não acontecer, estaria mais propenso a evitar o conceito de identifi- cação. Ao longo de toda a minha descrição da massa o senhor não encon- trará nunca nenhuma referência a ele. Trato de prescindir absolutamente dele. Só citei alguns pontos, também há outros. Adorno — Essa crítica me parece extraordinariamente fecunda e justa em muitos aspectos. De fato, nesse ponto, precisamente por causa de sua ten- dência fundamental a substituir a teoria da sociedade por uma psicologia individual ampliada para a coletividade, Freud pensa continuamente nos quanta fundamentais (Grundquanten), invariantes e invariáveis, do incons- ciente, omitindo modificações históricas essenciais. Então sua psicologia social fica um pouco abstrata. Portanto, eu subscreveria plenamente que exército e igreja não podem de nenhuma maneira ser incluídos no concei- to de massa, que talvez sejam mais reações a ele, nas quais esse momento arcaico de massa, que Freud tinha presente, comparece também como mo- mento, mas vem essencialmente negado e dominado precisamente pelos kakakaknfb

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momentos hierárquicos e também por um determinado tipo de racionali- dade. E se se vai adiante chega-se ao fato de que também os chamados fe- nômenos de massa com os quais temos que nos haver hoje não podem ser totalmente concebidos como simples manifestações primárias da mas- sa arcaica — como fez Freud durante a I Guerra Mundial —, mas neles se descobrem formas reativas, autênticas regressões a estágios sociais que não são de nenhuma maneira conciliáveis com o presente.

No que se refere à festa, naturalmente é certo que nas festas não se pode falar em mando. Nesse sentido quero lembrar o trabalho muito significativo, que apareceu há alguns anos, do antropólogo cultural fran- cês Roger Caillois sobre a festa, porque Caillois interpreta a formação rea- tiva como subversão dos ritos fortemente hierárquicos no interior das muito rígidas sociedades bárbaras, que em certa medida só podem assegurar a própria sobrevivência institucional subvertendo suas regras e permitindo em determinadas situações excepcionais — mais até, convertendo isso in- clusive em um dever — aquilo que habitualmente é proibido. Nesse senti- do, também o que o senhor chamaria de massa festiva seria um fenômeno historicamente dinâmico e não primário.

Se ainda pudesse acrescentar alguma coisa, então diria que o que mais me impressionou em seu livro foi uma passagem que mais do que com a teoria da massa deve ser relacionada com a teoria do poder, que em todo caso está correlacionada com a primeira e é inseparável dela. Refiro-me a sua teoria do mando, que me parece extraodinariamente clari- ficadora e essencial, porque o senhor expressa algo — e aqui eu gostaria de recordar de novo nossa Dialética do Esclarecimento — que por con- traste desaparece atrás da fachada da sociedade, quer dizer que, ainda que seja muito remotamente, atrás de todos os comportamentos sociais, sociais em sentido pleno, aprovados, socialmente exigidos, há algo como a vio- lência física direta, a ameaça do aniquilamento. E creio que só quando se dá conta de que a sociedade, e consequentemente a própria conservação do homem, tem como essência fundamental a ameaça de morte, se pode ter verdadeiramente consciência da pavorosa combinação entre sobrevi- vência, como o senhor a chama, e morte, segundo sua formulação. Por tudo isso, senhor Canetti, creio que seria interessante, para terminar, que o senhor acrescentasse alguma coisa sobre sua teoria do mando. Canetti — Com muito prazer, ainda que seja difícil explicá-la em poucas palavras. Eu relaciono — biologicamente — a ordem com a contra-ordem de fuga. Creio que a ameaça de um animal que se alimenta de outros ani- mais empurra estes últimos para a fuga. Um leão que sai à caça e se faz reconhecer pelos rugidos provoca a fuga dos outros animais. Parece-me que isso constitui o germe do mando tal como se desenvolveu mais tarde e que entre nós se converteu em uma instituição importante. Originalmente a ordem é uma ordem de fuga. Empurra quem está ameaçado para longe do perigo.

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Isso é muito importante, porque esse modelo foi utilizado em nos- sa sociedade. São distribuídas ordens talvez sem que os homens se dêem conta de que com elas recebem uma ameaça de morte. Mas sempre que se distribui uma ordem, por trás existe essa ameaça. E através da execução das condenações à morte, dado que a maior parte das sociedades se acostumou a ela, restitui-se ao mando sua pavorosidade. É uma advertên- cia: se você ou vocês não fizerem o que se lhes pede, então acontecerá precisamente o que está se desenvolvendo diante de vocês nessa execução. Adorno — Toda execução se dirige aos outros, aos que não são justiçados. Canetti — E além do mais, muito rapidamente, é preciso assinalar ainda um ponto: através da reflexão sobre a ordem cheguei a decompô-la no que se constitui seu impulso, sua energia motriz e em outra parte que denomi- no o aguilhão da ordem. Esse aguilhão tem exatamente a estrutura da or- dem, seu conteúdo, e permanece em quem executou uma ordem. Assim, ocorre que um homem que executou uma ordem não está totalmente con- tente por isso. Talvez não o saiba; talvez exteriormente não se perceba. Mas o aguilhão dessa ordem permanece em seu interior e esse aguilhão é abso- lutamente imutável.

Isso é muito importante. Os homens podem acumular em seu inte- rior esses aguilhões, que podem ter sua origem em ordens recebidas vinte ou trinta anos antes. Está tudo dentro deles e tudo, através de uma espécie de subversão, deve voltar à luz. Os homens querem livrar-se desses agui- lhões, e com freqüência estão buscando situações que representem uma exata subversão da situação originária da ordem, a fim de poderem livrar- se de seus aguilhões. As conseqüências disso são claras. As coisas estão simplesmente assim: todo homem que vive em sociedade está cheio de algum tipo de aguilhões de ordem. Esses podem multiplicar-se até empurrá- lo para ações absolutamente monstruosas, porque seus aguilhões o estão sufocando. Adorno — Penso que isso é algo extraordinariamente importante sobre o que refletir, sobretudo porque aqui se expressa de modo muito original, e também convencional, o seguinte: assim como a ameaça de uma violên- cia imediata sobrevive em toda mediação, qualquer intento de sair dessa esfera permanece envolto no poder desse ciclo mítico, que impulsiona a fazer novamente a outros aquilo que foi feito a nós. A extraordinária frase de Nietzsche — é necessário que o homem se liberte de sua vingança — alude precisamente ao estado de coisas que o senhor chamou aqui pelo nome. E precisamente porque o senhor o chama pelo nome, porque em seu livro descreve esse mesmo "sortilégio", o objetivo de seu livro — se entendi bem — é exatamente esse: nomeando a palavra-chave desse "sor- tilégio", a palavra que serve para enfeitiçar os homens, ao final também se conseguirá rompê-lo.

Novos Estudos

CEBRAP Nº 21, julho de 1988

pp. 116-132

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