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A MÚSICA DE MATRIZ AFRICANA NA COMPOSIÇÃO DE UM HORIZONTE REVOLUCIONÁRIO EM BARRAVENTO Thiago Henrique Felício Universidade Federal do Paraná Este trabalho se propõe a análise de “Barravento” (Glauber Rocha, 1962), uma das obras clássicas que marcam o advento do “Cinema Novo Brasileiro”. Após trazermos algumas reflexões a partir da bibliografia disponível, iremos elaborar uma breve análise com enfoque na interação entre imagem e som, procurando pensar a música de matriz africana como fonte de significações. Considerou-se a hipótese de que este filme de Glauber Rocha pode ser enquadrado naquilo que o historiador Marcelo Ridente chamou de “estrutura de sentimento da brasilidade romântico - revolucionária”, ou seja, significados e valores que foram compartilhados por amplos setores de artistas e intelectuais brasileiros a partir do final dos anos de 1950, segundo os quais era preciso buscar nas raízes populares nacionais as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante. Assim, ao final, defendemos que a cultura afro- brasileira foi resgatada em “Barravento” de maneira a recuperar no passado uma cultura popular autêntica, mas sem que, com isso, houvesse uma dissociação em relação a utopias de construção de um futuro que vislumbrava um horizonte socialista. Palavras-chave: Barravento; Romantismo; Revolução. A problemática do misticismo Reconhecido como o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por Glauber Rocha, Barravento (1962) é uma das grandes obras clássicas do cinema brasileiro. Ao lado de outros títulos de grandes diretores, tais como Nelson Pereira Santos, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, entre outros, marca o advento do Cinema Novo Brasileiro, movimento este que, por sua vez, é comumente elencado como um dos mais importantes da história do cinema mundial. A fábula do filme gira em torno do reencontro de Firmino com a sua comunidade de origem, uma aldeia de pescadores chamada de Buraquinho. O protagonista toma para si a missão de compelir essa comunidade a libertar-se da exploração e da resignação. Sua estratégia é a de alertar aos integrantes da aldeia para o mecanismo de dominação e de controle social que vem sendo exercido sobre eles através do misticismo religioso que, neste caso, é representado a partir de elementos presentes na cultura religiosa de origem afro-brasileira. No início do filme, há a projeção de um letreiro que parece querer alertar o espectador para o problema da alienação pela religião, como se pode ver no extrato que transcrevemos a seguir: No litoral da Bahia vivem os negros puxadores de "xaréu", cujos antepassados vieram escravos da África. Permanecem até hoje os cultos aos deuses africanos e todo esse povo é dominado por um misticismo trágico e fatalista. Aceitam a miséria, o analfabetismo e a exploração com a passividade característica daqueles que esperam o reino divino (...).

Thiago Henrique Felício

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A MÚSICA DE MATRIZ AFRICANA NA COMPOSIÇÃO DE UM HORIZONTE

REVOLUCIONÁRIO EM BARRAVENTO

Thiago Henrique Felício

Universidade Federal do Paraná

Este trabalho se propõe a análise de “Barravento” (Glauber Rocha, 1962), uma das obras clássicas que marcam o

advento do “Cinema Novo Brasileiro”. Após trazermos algumas reflexões a partir da bibliografia disponível, iremos

elaborar uma breve análise com enfoque na interação entre imagem e som, procurando pensar a música de matriz

africana como fonte de significações. Considerou-se a hipótese de que este filme de Glauber Rocha pode ser

enquadrado naquilo que o historiador Marcelo Ridente chamou de “estrutura de sentimento da brasilidade romântico-

revolucionária”, ou seja, significados e valores que foram compartilhados por amplos setores de artistas e intelectuais

brasileiros a partir do final dos anos de 1950, segundo os quais era preciso buscar nas raízes populares nacionais as

bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante. Assim, ao final, defendemos que a cultura afro-

brasileira foi resgatada em “Barravento” de maneira a recuperar no passado uma cultura popular autêntica, mas sem

que, com isso, houvesse uma dissociação em relação a utopias de construção de um futuro que vislumbrava um

horizonte socialista.

Palavras-chave: Barravento; Romantismo; Revolução.

A problemática do misticismo

Reconhecido como o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por Glauber Rocha,

Barravento (1962) é uma das grandes obras clássicas do cinema brasileiro. Ao lado de outros títulos

de grandes diretores, tais como Nelson Pereira Santos, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade,

entre outros, marca o advento do Cinema Novo Brasileiro, movimento este que, por sua vez, é

comumente elencado como um dos mais importantes da história do cinema mundial.

A fábula do filme gira em torno do reencontro de Firmino com a sua comunidade de origem,

uma aldeia de pescadores chamada de Buraquinho. O protagonista toma para si a missão de

compelir essa comunidade a libertar-se da exploração e da resignação. Sua estratégia é a de alertar

aos integrantes da aldeia para o mecanismo de dominação e de controle social que vem sendo

exercido sobre eles através do misticismo religioso – que, neste caso, é representado a partir de

elementos presentes na cultura religiosa de origem afro-brasileira. No início do filme, há a projeção

de um letreiro que parece querer alertar o espectador para o problema da alienação pela religião,

como se pode ver no extrato que transcrevemos a seguir:

No litoral da Bahia vivem os negros puxadores de "xaréu", cujos antepassados vieram

escravos da África. Permanecem até hoje os cultos aos deuses africanos e todo esse povo é

dominado por um misticismo trágico e fatalista. Aceitam a miséria, o analfabetismo e a

exploração com a passividade característica daqueles que esperam o reino divino (...).

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Neste momento inaugural do filme, a narrativa parece querer revelar uma preocupação com

a alienação religiosa. Poderíamos rapidamente aproximar a crítica que parece se desenhar à uma

categoria que recorrentemente é atribuída à algumas vertentes do pensamento marxista: “a religião é

o ópio do povo”. Também por este motivo, a fita muitas vezes foi recebida como parte integrante de

um movimento mais geral da década de 1960, que no Brasil ficou marcada pela presença da

alienação no centro das abordagens sobre a consciência de classe. Ismail Xavier (2007), no entanto,

foi um dos críticos que procurou rever a sua posição, ao chegar à conclusão de que essa

interpretação não dá conta do filme em sua complexidade. Para chegar a este ponto, o autor

observou alguns importantes elementos que surgem durante o desenrolar da trama de Barravento e

que contradizem a perspectiva da crítica a religiosidade. Um exemplo se pode ser observado na

posição do protagonista ao decorrer da narrativa. Inicialmente ele era um sujeito que se julgava

mais esclarecido, que retornava da cidade para o seu local de nascimento, a aldeia de pescadores,

onde agora passa a querer impor um discurso antirreligioso, que se propõe a transformação da

consciência mística da comunidade - Firmino surge como o “malandro”. Os moradores da aldeia,

que por seu turno não aceitaram o discurso do malandro, passaram a defender e reiterar o seu modo

de vida. Firmino então passa a adotar diferentes estratégias. Em um dado momento ele passa a

investir contra Aruã, um pescador que estava predestinado a vir ocupar o lugar de líder da

comunidade de Buraquinho. No seu primeiro ataque a figura mística do pescador, Firmino recorre

ao terreiro da comunidade no intuído de empreender um feitiço. Mesmo sem a ajuda da mãe-de-

santo, ele realiza um “despacho” na praia. Então chegamos a um ponto onde a perspectiva crítica ao

misticismo é fortemente posta em cheque. Isso porque a esta altura o espectador naturalmente se

pergunta: mas tal prática, a realização de um “despacho”, na verdade não é algo que pressupõe fé?

Este ponto surpreende o espectador porque o protagonista, a princípio não tem fé, não acredita nos

valores místicos daquela comunidade e mesmo assim ele recorre a um “despacho”, pratica religiosa

que na verdade pressupõe fé.

Então, qual o significado desta ocorrência para a constituição do sentido da narrativa de

Barravento? Xavier responde a esta questão defendendo que o filme pode ser compreendido a partir

dos valores religiosos presentes na própria aldeia de pescadores. Pois deste ponto em diante, o filme

se desenvolve de maneira a revelar determinados procedimentos que, segue o autor, “nos colocam

diante de uma disposição de situações que faz do sistema religioso dos pescadores uma boa, senão a

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melhor, explicação para a lógica dos fatos”. A chave deste valor significante, portanto, passa por

uma ressignificação – ou por uma melhor compreensão – do papel do protagonista na composição

da trama:

A passagem de Firmino por Buraquinho constitui o núcleo da estória; é seu principal

elemento motor. Em termos da religião, Firmino é um autêntico Exu. Desde o primeiro

momento em que reencontra sua aldeia natal até seu desaparecimento de cena, ele tem seu

comportamento marcado pela constante militância. Ao seu estilo, agita sempre, tece suas

tramas e faz seus discursos a qualquer hora, como se tivesse uma missão a cumprir sem

descanso e não pudesse incluir nada mais em sua relação com os pescadores. (XAVIER,

2007: p. 46).

Ao observar este e alguns outros elementos que constituem a película, desde os movimentos

da câmera até a montagem, para além do desenrolar da trama, Ismail Xavier percebe que de uma

crítica à consciência religiosa passamos a um polo oposto, onde a própria religiosidade compõe os

elementos significantes. Tal interpretação contradiz a perspectiva de que Barravento se constitui

como uma obra que lança mão da categoria da alienação religiosa. E, mais ainda, pode sugerir

também que o filme, na verdade, tece um grande elogio a cultura e a religiosidade afro-brasileira.

Partindo destas observações, iremos avançar para alguns momentos em que imagem e música

surgem de maneira a gerar significantes também avessos a perspectiva da crítica ao misticismo.

Música e imagem na constituição de sentidos

O Barravento

A primeira consideração que se pode ser feita sobre a película de Glauber Rochas refere-se

ao título escolhido: Barravento. Também aqui são inseridas na projeção algumas informações que

parecem querer direcionar o olhar do espectador. Segue a transcrição daquilo que o letreiro inicial

nos informa acerca do título o filme:

“Barravento” é o momento de violência, quando as coisas da terra e mar se transformam,

quando no amor, na vida e no meio social ocorrem súbitas mudanças.

De maneira um tanto romantizada, o texto – ou poesia – associa o termo Barravento a mudanças. E

é basicamente este o significado que ele evoca. Curiosamente, tal definição não diverge daquilo que

podemos encontrar nos dicionários. A partir do dicionário Houaiss de língua portuguesa, por

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exemplo, se pode observar que Barravento é uma palavra utilizada no Candomblé brasileiro de

forma aparentemente polissêmica. Ela pode referir-se tanto ao “estado de estonteamento que

precede a posse da filha ou filho-de-santo pelo orixá, caracterizado por transe com movimentos

descoordenados, agitação, tremores” (HOUAISS, 2001), quanto ao toque dos atabaques que produz

esse estado. Uma mudança, portanto, que ocorre em um filho de santo e que é provocada pelo som

do atabaque em um terreiro de candomblé ou mesmo em um terreiro de umbanda.

Como música, sabe-se que o Barravento possui características especificas, configurando-se

a partir de um ritmo marcado, que é capaz de provocar o estado de atordoamento que precede o

transe em que ocorre a possessão de um filho de santo. O ritmo é usado em diferentes canções, e

durante a projeção do filme ele aparece de forma recorrente. É possível identifica-lo a partir da sua

configuração em um compasso binário composto, em 6/8, conforme transcrevemos a seguir:

Figura 1- Transcrição do ritmo do Barravento.

Após o termino da segunda frase rítmica descrita na transcrição acima, inicia-se a primeira

frase novamente, e assim por diante, até o término da canção. O andamento da batida, por sua vez,

pode variar de música para música ou mesmo dentro de uma mesma canção, podendo iniciar com

um ritmo um pouco mais lento, mas sempre chegando a um ponto mais acelerado e é sempre

possível acelerar a batida mais ainda – podendo mesmo chegar a um andamento que na notação

musical erudita equivaleria ao chamado Prestissimo (200 batidas por minuto ou mais). No

candomblé a percussão que executa este ritmo se constituí, em geral, por três instrumentos, o Rum,

o Rumpi e o Lê, que são três tipos de atabaques, com timbres distintos e todos eles executados com

varetas, chamadas Aguidavi. Na umbanda a batida é feita também com as palmas das mãos.

As duas versões da batida, com as mãos e com o Aguidavi, aparecem durante a projeção do

filme de Glauber Rocha, marcando a trilha em diversas cenas ao longo da película. No entanto, ele

não é o único ritmo utilizado e nem mesmo marca as ações mais importantes do personagem

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central, tal como veremos adiante. Por hora, para entender, então, a escolha do título do filme é

preciso que tomemos o significado do termo por completo, e não apenas o seu significado parcial,

ou seja, o ritmo dos atabaques.

Talvez o elemento chave aqui seja a definição etimológica do termo Barravento. O

dicionário Houaiss alude neste ponto o trabalho de Olga Cacciatore (1977), autora que explica que o

termo foi composto a partir das palavras barra e vento, em referência a um elemento da natureza

característico de uma localidade bem especifica, o vento forte da região da Barra, que fica na

entrada para a Baía de Todos os Santos na cidade de Salvador. Neste ponto, então, estamos mais

próximos de entender alguns dos significantes impressos a partir da articulação entre imagem e

áudio no filme Barravento. Pois, ao longo da projeção, ouvimos em diversos momentos o ritmo

binário sendo produzido pelos atabaques, principalmente nas transições entre as cenas – o que

demonstra que há também um esforço para que a montagem, nas mudanças entre uma cena e outra,

corresponda ao sentido de mudança que imprime o termo Barravento –, mas há também uma forte

presença do ruído produzido pelos ventos, que em certos momentos acentuam o sentido das ações e

falas dos personagens. E mais do que isso, também os ventos, ou o barravento, servem para

demarcar acontecimentos de extrema relevância narrativa, como modificações que ocorrem na vida

dos personagens centrais. Neste ponto, Ismail Xavier também identificou uma importante

correlação entre os valores míticos e o desenvolvimento da trama, mais especificamente no

momento do filme em que finalmente é profanada a virgindade de Aruã, o que para Firmino era

algo que iria ajudar a esclarecer os pescadores da aldeia sobre a problemática do misticismo:

De início, o plano geral o situa num contexto sereno, onde a praia e o mar fornecem o

quadro para a afirmação de um ser integrado, cujo retrato vem nos três planos seguintes.

Nestes, a angulação procura reforçar o vigor que vem da própria postura do ator, e a

sucessão de imagens marca um cerco obsessivo do seu corpo, coroado pela posição final da

câmera, que, de frente para Aruã, deixa-se atropelar pela sua caminhada. É preciso que seu

corpo ocupe todo o quadro antes de ser abruptamente substituído pela imagem, em primeiro

plano, do pé da árvore. A passagem tão ostensiva de Aruã para a árvore, seguida do

movimento ascensional da raiz ao topo, estabelece uma relação direta entre seu corpo

sexuado, como raiz, e a convulsão da natureza, como resposta à profanação, deflagrada pelo

céu nublado e pelo trovão (XAVIER, 2007: p.40).

A cena em especifico, na verdade, sucede o momento em que Aruã havia cedido a sedução

de Cota, deitando-se com ela. A perda da virgindade de Aruã, vale dizer, foi algo que modificou de

forma importante o rumo dos acontecimentos, pois a pureza do personagem, segundo os preceitos

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da fé dos pescadores, é algo que garante que ele mantenha um poder sobrenatural. Vale ressaltar

também que aqui a trilha do filme age de forma fundamental na geração de significados. Nesta cena

anterior, Aruã e Cota deitados com o corpo nu, um sobre o outro, alternam-se as imagens com os

detalhes de um ritual no terreiro de Candomblé. Ao fundo sonoro ouve-se o som dos atabaques, que

executam o Barravento de forma intensa. Toda a operação parece culminar em uma importante

intensificação dramática. Após esta cena ocorre o trecho analisado por Ismail Xavier. No primeiro

dos seis planos vemos Aruã acordando na areia da praia. Ele levanta-se, ainda com o corpo nu, e

começa a caminhar lentamente pela praia. A trilha continua agindo fortemente, pois o atordoamento

causado pela batida frenética dos atabaques agora é aliviado com o silêncio, como se ocorresse uma

pausa na canção, e agora mantêm-se ao fundo apenas o leve ruído do vento. No plano seguinte

vemos Aruã de perfil. Ele caminha e olha para a paisagem com um olhar sereno, como que

satisfeito com o que havia ocorrido. Mais uma mudança de plano e agora vê-se Aruã de costas. Esta

fotografia serve como que de prelúdio para os três planos seguintes, os quais irão demarcar a

modificação psicológica do personagem. Assim, o plano seguinte foca novamente em Aruã de

perfil, mas agora ele interrompe sua caminhada. Na imagem percebe-se a mudança em seu rosto,

que agora parece ostentar um olhar mais decidido. Em um instante, ele recomeça a andar, mas agora

em direção ao quadro. Antes que seu corpo tome totalmente o quadro, há um corte que nos leva ao

quinto plano desta sequência, onde vê-se apenas um coqueiro. A câmera faz um movimento em L

subindo pelo tronco da arvore até a copa, ao passo que no plano sonoro ouve-se mais claramente o

ruído do vento, que sopra cada vez mais forte. A sequência termina com a imagem do Céu, nublado

e com os sons de vento e trovoadas – o que parece ser o pronunciamento de uma grande

tempestade.

De um breve lapso de calmaria, há a retomada do barravento, que agora irá vir com maior

intensidade, não apenas porque deste ponto em diante o fundo sonoro se constituirá pelo ruído de

um vento mais forte, ou porque a batida dos atabaques também ressurgirá, mas também pela

intensidade dos acontecimentos que marcarão o desfecho da história. Essa pontuação, embora possa

parecer uma operação usual, possuí fortes elementos significantes: há uma relação entre os

personagens e a natureza, e na continuação dessa passagem acentua-se mais essa relação. O

argumento de Xavier, no entanto, aponta para o fato de que todas essas imagens atuam não apenas

no sentido de dar sequência aos fatos que constituem a história, mas também de maneira a mediar e

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aproximar as coisas que acontecem no céu e na terra, relacionando assim o microcosmo da

comunidade de pescadores e o macrocosmo da natureza. E essa relação entre o céu e terra, por sua

vez, não deve ser vista como uma mera coincidência, pois trata-se de um acontecimento

coordenado, para que o desejo de Firmino se cumpra com o auxílio das forças da natureza.

Exu Firmino

Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje! Se zanga-se, ele

sapateia uma pedra na floresta, e esta pedra põe-se a sangrar! (VERGER, 1996: p. 8).

A compreensão de alguns aspectos do universo místico da religiosidade afro-brasileira pode

ajudar a esclarecer alguns pontos em Barravento, pois trata-se de uma narrativa construída

justamente a partir dos mitos, ritos e músicas de matriz africana. Iremos dialogar na medida do

possível com a bibliografia disponível acerca deste tema, afinal o universo místico afro atua na

narrativa como uma importante fonte de significações, de maneira que o filme se torna até mesmo

inapreensível na medida que não procuramos abrir os olhos e ouvidos para o sentido da cultura

religiosa que a obra se propõe. A apresentação do personagem de Firmino, que se dá logo durante

os primeiros planos do filme, é um importante exemplo nesse sentido. As suas primeiras imagens

vão se alternando as primeiras imagens da aldeia de pescadores. Uma montagem paralela,

construída de forma que é possível afirmar que as principais características do personagem se

encontram logo de saída bastante definidas. Basta atentarmos ao arquétipo que ele traz em sua

aparição: ele é o típico malandro da cultura popular brasileira. Nosso ponto neste tópico é reafirmar

a identificação de Firmino como um autêntico Exu.

E isso é algo que se pode perceber desde o seu aparecimento na aldeia dos pescadores,

durante os planos inicias, que já trazem elementos suficientes para que possamos afirmar essa

característica especifica do personagem central. A primeira imagem dialoga com a canção que

estava sendo reproduzida ainda nos créditos iniciais. Vê-se um grupo de pescadores puxando a rede

de pesca na praia. Eles trabalham e cantam. A sequência de músicas que sucedem-se mesmo antes

do aparecimento destas imagens inaugurais proporcionam toda uma ambientação que não deixa

dúvidas da composição a partir de uma estética negra. O segundo plano do filme mostra um homem

caminhando pela areia da praia ao anoitecer, ao passo que há também uma nova canção, executada

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pela voz de um barítono: Quando eu vim de Aruanda/Eu vim só/deixei lá pai/deixei lá vó/só, só, eu

venho só.

Vai desenhando-se uma narrativa musical, muito aparentada ao gênero dos musicais

clássicos, nos quais o drama avança através da música, das canções e até mesmo da dança - vale

lembrar que os termos utilizados nas canções já trazem elementos significativos, mas que vão

ganhando o seu sentido fundamentalmente na medida que o filme avança. Assim, o plano seguinte

apresenta uma nova trilha, dessa vez o ritmo característico utilizado na capoeira de angola,

conhecido como toque de angola, um ritmo binário simples, como se pode ver na transcrição abaixo

(fig. 2) que é executado com um berimbau, batida de palmas e voz:

Figura 2 - Transcrição do ritmo do de Capoeira Angola, berimbau.

Firmino salta, saindo de traz de um farol e para no meio das pedras a beira-mar. Neste

momento ouve-se apenas o berimbau. Nesta aparição, chama atenção as suas vestes, terno, chapéu e

sapato, tudo em cor clara, talvez branco, o que não podemos afirmar com toda certeza, visto que o

filme foi rodado em preto e branco. O fato é que na cultura afro-brasileira as suas roupas

assemelham-se às vestes utilizadas nas imagens do Zé Pelintra (fig. 3), uma das mais conhecidas

entidades de cultos afro-brasileiros:

Figura 3 - Fotografia da Imagem de Zé Pilintra,

importante Exu da cultura afro-brasileira.

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Figura 4 - Quadros referentes a sequência da entrada de Firmino, no filme Barravento

Os quadros reproduzidos acima ajudam a evocar a fotografia, a caracterização do

protagonista e os seus movimentos dentro do quadro. E isto é importante, pois trata-se de um

momento chave para a compreensão do filme como um todo. Firmino surge, em seguida fica de

costas, mas em um movimento ele gira novamente em 180 graus, ficando de frente, para só então

começar a descer das pedras em direção a areia da praia. Neste momento a letra é entoada: Oia tu

que é moleque/Moleque é tu/Cala boca muleque. Muleque é tu/Te assunta muleque/Muleque é tu/Te

arrebento muleque/Muleque é tu. Por fim, acreditamos que este plano deixa bastante clara, logo

durante a primeira aparição do personagem no filme, a identificação entre o protagonista e Exu.

Os planos que se seguem irão revelar um repertório sonoro ainda maior, com a inserção de

outras músicas. Mas até o final, na verdade, o filme continuará sendo construído através da

utilização de um amplo repertório musical. As canções que compõem este seu universo diegético,

vale dizer, são todas provenientes do universo afro-brasileiro, tais como o Samba de Roda, o ritmo

da Capoeira, o ritmo do barravento ou mesmo dos Xirês, canções que comumente são executados

nos terreiros durante os ritos do padê ou ao longo das giras de santo.1 Entre as músicas de terreiro,

estão os Xirês de Iemanjá, de Exu, de Oxalá, além de outras, tais como as canções utilizadas durante

as imagens dos rituais dentro dos terreiros que surgem ao longo da projeção. Aqui as escolhas

1 Nos terreiros de umbanda e de candomblé da Bahia, ocorrem periodicamente as giras de santo, momento em que

ogans trabalham na execução dos xirês dos Orixás, para que os outros filhos de santo, sob a orientação do Babalaorixá,

ou do pai ou mãe de santo, realizem danças e se dedicam às incorporações das entidades espirituais. Mas o primeiro

passo, geralmente antes de qualquer coisa, é a execução do padê, que é o momento em que invoca-se o Exu para que

todos o saúdem. O rito é necessário, conforme Pierre Fatumbi Verger, por dois motivos: “convocar os outros deuses

para a festa e, ao mesmo tempo, afastá-lo para que não perturbe a boa ordem da cerimônia com um dos seus golpes de

mau gosto” (VERGER, 2002: p. 40). O primeiro motivo, o de convocar os outros deuses para a festa, diz respeito ao

papel atribuído a Exu como o Orixá mensageiro e único capaz de estabelecer o diálogo entre os demais Orixás e os

humanos (PRANDI, 2001: p. 20). O segundo, talvez mais controverso, refere-se ao mito que informa que “para haver

paz e tranquilidade entre os homens, é preciso dar de comer a Exu, em primeiro lugar” (PRANDI, 2001: p. 20), ou seja,

apenas saciados os anseios de Exu é que ele irá permitir que as coisas aconteçam.

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também foram feitas não sem nenhum cuidado, de forma que os universos diegéticos das canções

acabam dialogando com o próprio espaço diegético do filme. Neste ponto, e para exemplificar, vale

atentar para o fato de que os Xirês dedicados a Exu surgem no plano sonoro em alguns momentos

com a função de acentuar as ações de Firmino, personagem que possui muitas das características

atribuídas aos arquétipos dos filhos de Exu. Assim, o Xirê de Exu soma-se a ação do personagem

fortalecendo ainda mais a identificação entre as duas figuras.

A música dedicada a Exu ilustra justamente a identificação de Firmino com o seu Orixá. Um

exemplo marcante desse diálogo entre os diferentes espaços diegéticos, ou seja, entre as ações de

Firmino e a natureza de Exu segundo a tradição mística, pode ser observada na cena em que o

protagonista recorre a Mãe-de-Santo no intuito de solicitar ajuda em seu intento contra Aruã. Nesta

altura do filme, o personagem já havia sido apresentado: uma figura maliciosa, com uma fala

controversa, e que será capaz de utilizar-se das peripécias necessárias para causar a mudança que

ele deseja que aconteça na aldeia de pescadores. O estratagema utilizado na montagem não é

exatamente o usual, pois o início da sequência não é marcado por um corte, mas pelo movimento do

personagem, que levanta-se da areia da praia e caminha, movimento que é feito de forma

sincronizada com o plano sonoro das batidas dos atabaques que precedem o canto referente ao Xirê

de Exu. Nos planos que seguem, vemos que a mãe-de-santo recusa o seu pedido, em seguida em

primeiro plano sonoro o canto agora deixa claro a quem dedica-se a canção que estava sendo

introduzida. A primeira voz irrompe a saudação dedica a Exu: Laróyè! (Salve Exu). E tem início a

canção: Bara un Bebe/Tiriri Lonan/Exu Tiriri/Bara un Be Be/Tiriri Lona/Esú Tiriri (Exu realiza

proezas maravilhosas, Tirirí é o Senhor dos Caminhos, Exu Tirirí). Ao que o coro responde com

uma variação do refrão: Bará ô bébé/tirirí lónã/Exú tirirí/Bará ô bébé/tirirí lónã/Exú tirirí.

Considerações Finais: Revolta e Melancolia

Nesta comunicação procurou-se trazer alguns exemplos que servem para ilustrar a

importância da interação entre imagem e som, tendo a música de matriz africana como fonte de

significações. Estas questões fazem parte do trabalho que está sendo desenvolvido em fase ainda

inicial, em função da escrita da tese de doutorado em história para a linha de pesquisa de Cultura e

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Poder, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História do Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes da UFPR.

Além disso, procurou-se contribuir para o entendimento de que de que a ideia de que

Barravento tem como prerrogativa a alienação causada pela religiosidade é uma interpretação que

na verdade não dá conta do filme em sua complexidade. Além disso, apenas após perceber isso é

que é possível compreendê-lo a partir de um espectro mais amplo. Em outros termos, percebemos

que entender a fábula do filme em si acaba sendo um pré-requisito para que possamos compreendê-

lo também dentro do seu contexto de produção.

O resgate da cultura mística afro-brasileira em Barravento, em nossa perspectiva, ocorre em

um contexto marcado no plano das ideias não tanto pela crítica a alienação, mas essencialmente por

uma vertente romântica do pensamento marxista (LÖWY; SAYRE: 2015), ou, ainda, marcada por

aquilo que o historiador Marcelo Ridente chama de “estrutura de sentimento da brasilidade

(romântico-) revolucionária” (RIDENTI, 2005: p. 82). Este conceito é importante, pois refere-se a

algo que Ridente identificou de forma bastante pontual, a saber, o fato de que existiu uma linha de

pensamento compartilhada por amplos setores de artistas e intelectuais brasileiros a partir do final

dos anos de 1950. Romantismo e revolução pode parecer uma formulação ambígua, pois tratam-se

de conceitos a princípio contraditórios. Mas tal formulação se justifica quando observamos o

contexto com o qual estamos trabalhando. Ela é possível graças a uma correlação com um período

anterior ao golpe de 1964, principalmente com o período do governo de João Goulart (1961- 1964),

quando se difundia uma ideia essencialmente enraizada no modernismo, a ideia de que havia dois

brasis, um Brasil moderno e outro atrasado. Trata-se, em suma, de procurar no passado uma cultura

popular autêntica para construir uma nova nação, esta moderna e também “desalienada”.

A leitura mais geral do filme, por sua vez, foi elaborada justamente no intuito de poder

desenvolver a hipótese que pretende-se levantar no desenvolvimento da pesquisa de doutorado, a

saber, a de que, nos anos 1960, os filmes de Glauber Rocha representaram esta vertente, romântico-

revolucionária, de forma bastante eloquente.

No caso de Barravento, consideramos que é importante afastar-se da interpretação de que o

filme se constitui pura e simplesmente a partir de uma crítica a alienação, também porque tal leitura

poderia sugerir, entre outras coisas, que no fundo o que a narrativa defende é que as personagens do

filme, que sofrem com a fome e com a miséria, são elas mesmas as responsáveis pela sua

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pauperização social. Ao contrário, procuramos demonstrar que o filme buscou resgatar na cultura

tradicional da religião afro-brasileira, que tem se desenvolvido ao longo dos séculos, principalmente

no nordeste brasileiro, os elementos necessários para construir uma narrativa que traz uma história

marcada por uma revolução social, provocadas por mudanças ocorridas a partir de uma crítica

interna da mística afro-brasileira a partir da mística afro-brasileira.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E BIBLIOGRAFIA BÁSICA

Fontes Primárias:

BARRAVENTO. Direção: Glauber Rocha. Produção: Rex Schindler; Braga Neto. Roteiro: Glauber

Rocha; José Telles de Magalhães. Fotografia: Tony Rabatony. Elenco: Antonio Pitanga, Luiza

Maranhão, Lucy de Carvalho e Aldo Teixeira. Salvador: Iglu Filmes, 1961. Material: 2 DVDs (80

min), P&B, cópia restaurada distribuída por Sonopress.

Bibliografia:

CACCIATORE. Olga G. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, l977.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de

Janeiro: Objetiva, 2001.

LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: Romantismo na

Contracorrente da Modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

RAMOS, A. As Culturas Negras do Novo Mundo. São Paulo: Companhia Editorial

Nacional, 1979.

RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. In: Tempo Social, Revista

de Sociologia da USP, v. 17, n. 1, p. 81-87, jun. 2005a.

VERGER, Pierre. Lendas Africanas dos Orixá. Salvador: Corrupio, 1997.

_______. Os Orixás. Salvador: Corrupio, 2002.

XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac

Naify, 2007.