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385 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 ISBN: 978-85-62309-06-9 O TERMIDOR ARTÍSTICO SOVIÉTICO: arquitetura construtivista e stalinismo no processo revolucionário Thyago Marão Villela 1 Resumo: O artigo procura tratar, em linhas gerais, do processo de burocratização do Estado soviético e da reação stalinista no Partido Bolchevique e na Internacional Comunista, à luz da analogia de “Termidor soviético”, desenvolvida pelo dirigente da Oposição de Esquerda Internacional Leon Trotsky. Estabelecerei um paralelo entre a degeneração da Revolução russa, a partir da leitura de Trotsky, e o projeto regressivo que se dá no campo artístico e cultural russos, que culminará, em 1934, no estabelecimento do realismo-socialista como estética oficial do regime stalinista. Vou me valer, para isso, de uma análise da arquitetura soviética no quadro dos desenvolvimentos revolucionários e da vinculação do projeto arquitetônico construtivista com a noção de encomenda social. Irei me deter, portanto, ao caso da arquitetura construtivista soviética, particularmente aos projetos das residências operárias desenvolvidos a partir de 1925 pela Associação dos Novos Arquitetos (ASNOVA 1923) e pela União dos Arquitetos Contemporâneos (OSA 1925). Ambas estas escolas confluíam em relação ao projeto construtivista vinculado à idéia de encomenda social e devem ser interpretados mediante desta matriz conceitual. A partir desta análise da arquitetura soviética poderemos perscrutar um processo amplo de perseguição às correntes artísticas de vanguarda e estabelecer um paralelo entre o Termidor Político e este fenômeno, que talvez possa ser chamado de “Termidor artístico soviético”. Palavras-Chave: Construtivismo russo. Arquitetura soviética.Stalinismo. 1. A “encomenda social” e a arquitetura construtivista Formulado por Serguei Tretiakov, um teórico do movimento construtivista, e incorporado no vocabulário do grupo, a encomenda social é a compreensão, por parte dos artistas, do que a sociedade “quer”, “pede”. Ela programa a produção das obras artísticas em função da tarefa destas obras na organização do psiquismo do proletariado e do campesinato russo, na organização de um novo modo de vida. A encomenda social, deste modo, é a mediação política na produção de objetos artísticos. Isso não implica, absolutamente, em um direcionamento estatal na produção das obras, mas na autonomia dos artistas em relação ao que julgarem necessário em um determinado contexto social e histórico. Segundo François Albera, três pontos definem a encomenda social: 1. não há obra nem escritor “universais”. Tudo o que um autor, um artista faz é atividade em prol de uma classe determinada. Para realizar essa finalidade social, esses autores devem se dar conta, claramente, da tarefa de classe para a qual trabalham; 1 Mestrando no programa de Artes Visuais da Universidade de São Pau lo (USP).

Thyago Marão Villela

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O TERMIDOR ARTÍSTICO SOVIÉTICO: arquitetura construtivista e stalinismo no processo revolucionário

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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9

O TERMIDOR ARTÍSTICO SOVIÉTICO: arquitetura construtivista e stalinismo no processo revolucionário

Thyago Marão Villela1

Resumo: O artigo procura tratar, em linhas gerais, do processo de burocratização do Estado

soviético e da reação stalinista no Partido Bolchevique e na Internacional Comunista, à luz da

analogia de “Termidor soviético”, desenvolvida pelo dirigente da Oposição de Esquerda

Internacional Leon Trotsky. Estabelecerei um paralelo entre a degeneração da Revolução russa, a

partir da leitura de Trotsky, e o projeto regressivo que se dá no campo artístico e cultural russos,

que culminará, em 1934, no estabelecimento do realismo-socialista como estética oficial do

regime stalinista. Vou me valer, para isso, de uma análise da arquitetura soviética no quadro dos

desenvolvimentos revolucionários e da vinculação do projeto arquitetônico construtivista com a

noção de encomenda social. Irei me deter, portanto, ao caso da arquitetura construtivista

soviética, particularmente aos projetos das residências operárias desenvolvidos a partir de 1925

pela Associação dos Novos Arquitetos (ASNOVA – 1923) e pela União dos Arquitetos

Contemporâneos (OSA – 1925). Ambas estas escolas confluíam em relação ao projeto

construtivista vinculado à idéia de encomenda social e devem ser interpretados mediante desta

matriz conceitual. A partir desta análise da arquitetura soviética poderemos perscrutar um

processo amplo de perseguição às correntes artísticas de vanguarda e estabelecer um paralelo

entre o Termidor Político e este fenômeno, que talvez possa ser chamado de “Termidor artístico

soviético”. Palavras-Chave: Construtivismo russo. Arquitetura soviética.Stalinismo.

1. A “encomenda social” e a arquitetura construtivista

Formulado por Serguei Tretiakov, um teórico do movimento construtivista, e

incorporado no vocabulário do grupo, a encomenda social é a compreensão, por parte dos

artistas, do que a sociedade “quer”, “pede”. Ela programa a produção das obras artísticas em

função da tarefa destas obras na organização do psiquismo do proletariado e do campesinato

russo, na organização de um novo modo de vida. A encomenda social, deste modo, é a

mediação política na produção de objetos artísticos. Isso não implica, absolutamente, em um

direcionamento estatal na produção das obras, mas na autonomia dos artistas em relação ao

que julgarem necessário em um determinado contexto social e histórico.

Segundo François Albera, três pontos definem a encomenda social:

1. não há obra nem escritor “universais”. Tudo o que um autor, um

artista faz é atividade em prol de uma classe determinada. Para realizar

essa finalidade social, esses autores devem se dar conta, claramente, da

tarefa de classe para a qual trabalham;

1 Mestrando no programa de Artes Visuais da Universidade de São Pau lo (USP).

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2. não há inovação em geral, inovação por si só. Apenas uma inovação

que segue na contracorrente do gosto dominante será por conseguinte

reconhecida.;

3. a encomenda social não exclui a autonomia dos trabalhadores

literatos: porque a encomenda em questão não é feita por representantes

individuais da própria classe nem de organizações distintas. Trata-se de

uma compreensão autônoma dessa encomenda, que pode entrar em

contradição com as encomendas reais dos representantes dessa classe;

essa autonomia é a autonomia não de um grupo social, e sim de um

coletivo de produção. Que pode declarar ao “cliente” que ele mes mo não

compreende a encomenda. 2

É a partir desta noção de encomenda social que se deve entender a produção do

movimento construtivista, que surge na Rússia em 1921. É a partir desta matriz conceitual,

que relega aos artistas o papel de organizadores da vida, que se deve entender, por exemplo, o

abandono da pintura de cavalete, do caráter representativo da arte, da reivindicação acerca da

produção de “objetos justificados socialmente por sua forma e utilidade”3 propostos pelos

construtivistas. A título de exemplo, podemos citar os croquis de trajes para operários

produzidos por Aleksandr Rodchenko (imagem 1) e os projetos de móveis desenvolvidos por

vários construtivistas, como Vladimir Tatlin – que combinam a funcionalidade e a

experimentação estética.

FIGURA 1: Rodchenko, traje masculino, 1921

2 ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo. Trad. Helo ísa Araújo Ribeiro. São Paulo : Cosac &

Naify, 2002, p. 180. 3 TARABUKIN, N. M. El ultimo quadro: del caballete a la maquina . Trad. Andrei B. Nakov. Barcelona: G.

Gili, 1977, p. 32.

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A crítica, no caso, que os construtivistas teceram em relação à “arte de cavalete” (a

pintura em tela, por exemplo), partia da avaliação de que haveria se perdido o sentido

histórico da pintura como um princípio visual da cultura ocidental. O desenvolvimento

industrial, combinado à Revolução de Outubro, abria as portas para que a arte pudesse se

inserir concretamente na produção material da vida (e não apenas representá- la). A arte se

dissolveria no social, a arte acabaria enquanto um campo especializado, fundado na divisão

social do trabalho. Ela se fundiria, em última instância, com um novo tipo de trabalho não-

estranhado (Nikolay Tarabukin chega a utilizar a expressão “tornar o trabalho uma atividade

alegre” 4). A pintura e outras formas de arte artesanais pertenciam a uma etapa anterior da

organização social, e o papel que havia cumprido, o de representar, de promover um prazer

estético passivo, apenas indicavam, então, o caráter datado deste esquema de produção

artístico; apenas evidenciava o abismo que existiu, na sociedade burguesa, entre arte e vida, e

que não poderia ser reproduzido em uma sociedade sem classes que começava a se gestar no

processo revolucionário.

Este vínculo direto entre este projeto artístico construtivista e a Revolução de Outubro

se expressou no campo arquitetônico mediante os projetos de residências operárias, por

exemplo, mais notadamente os projetos das Casa-Comunais, desenvolvidos por arquitetos

como Moses Guinzburg.5

4 TARABUKIN, Nikolay. op. cit.

5 Cf. KOPP, Anatole. Town and Revolution: soviet architecture and city planning 1917-1935.Trad. Burton, T. E.

New York: George Braziller, 1970.

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Estes projetos e construções respondiam ao processo de formação de habitações

coletivas espontâneas, empreendidas por uma fração do proletariado russo, em parte pelas

necessidades materiais, em parte pelo convencimento em relação ao projeto de mudança dos

modos de vida. Tanto a Associação dos Novos Arquitetos (ASNOVA – 1923) e a União dos

Arquitetos Contemporâneos (OSA – 1925) encontravam-se embasados pelas idéias de

combate ao individualismo pequeno-burguês (desta forma, as habitações funcionavam como

grandes organismos coletivos, promovendo a socialização dos habitantes) e de emancipação

da mulher em relação ao trabalho doméstico e de destruição da família, promovedora da

opressão do homem em relação à mulher – lembro que o livro de Alexandra Kollontai, d´A

Nova moral e a classe trabalhadora, fora publicado em 1918, no calor da Guerra Civil, e

animava os projetos destes arquitetos. Estas “encomendas” demandadas pela população

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propunham amplos espaços de vivências coletiva – salão de jogos, cozinha, áreas de lazer, etc

– e os habitantes se revezavam por turnos para as tarefas, indiscriminadamente entre homens e

mulheres. Como contraposição às habitações destinadas aos núcleos familiares, a

coletivização e a “desagregação” da família. O espaço, deste modo, procurava imprimir uma

nova lógica de relações sociais.

Pois bem: no curso do processo revolucionário, o desenvolvimento destas experiências

foi interrompido pelo Estado soviético, e suplantado pelo retorno (ou dominação oficial, com

o apoio do Partido Bolchevique) da arquitetura neoclássica. Como explicar este processo,

dado globalmente no campo artístico e cultural? Antes de voltarmos ao processo arquitetônico

em particular, tratarei de precisar este processo global a partir da análise empreendida por

León Trotsky.

2. O Termidor soviético nas artes ou “a estatização da encomenda social”

Referi-me, no início do artigo, ao conceito de “Termidor Soviético”. O que é, então,

esta noção? Ela alude, em primeira instância, ao golpe de 9 Termidor, de 1794, no qual os

girondinos franceses puseram fim ao período do governo jacobino da Revolução Francesa,

mediante o assassinato de Robespierre e da ala radical da pequena-burguesia. Alude, portanto,

ao fim do radicalismo político revolucionário e ao momento de inflexão do processo

revolucionário, no qual foi, de certa maneira, restabelecido o projeto inicial girondino e

contida a fúria popular.

A comparação deste processo histórico com os rumos da Revolução Russa,

empreendida pela ala dos opositores ao regime stalinista, procurou dar conta de explicar e de

precisar a existência ou não (e de quando dataria) deste momento de inflexão no processo

revolucionário russo – no qual, a partir da correlação de forças no interior do Estado soviético,

haveria se gestado esta reação aos princípios do processo revolucionário.

Em um texto de 1935, intitulado “O Estado operário, Termidor e bonapartismo”6, o

dirigente da Oposição de Esquerda Internacional, Leon Trotsky, prognosticou que já haveria

se concretizado o Termidor soviético, e que este processo haveria começado

6 TROTSKY, Leon. Estado operário, Termidor e bonapartismo . Disponível em:

<http://revistaiskra.wordpress.com/especiais -iskra-trotsky-e-engels/o-estado-operario-termidor-e-

bonapartismo/>. Acesso em: 18 set. 2012.

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aproximadamente em 1924. Trotsky revisa, a partir deste texto, a posição formulada pelos

oposicionistas anteriormente, desde 1926, de que ainda não teria ocorrido o Termidor, na

medida em que as bases produtivas da Rússia ainda seriam planificadas pelo Estado e a

produção socializada. Ou seja, o Termidor soviético se daria apenas com o retorno ao

capitalismo. A precisão do conceito de Termidor se dá a partir dos seguintes pontos: 1. O

Termidor francês não representou uma volta ao modo de produção feudal, ou seja, uma

contra-revolução em sua acepção mais radical, alterando os fundamentos econômicos do

modo de produção capitalista concretizado pela Revolução Francesa, mas reestruturou, à

direita, a fração que conduzia o curso revolucionário; 2. Do mesmo modo, as bases materiais

da produção soviética não haviam ainda retornado a um esquema de apropriação privada,

mantendo-se socializadas. A concretização do Termidor, portanto, residia na substituição da

camada dirigente e na supressão da democracia partidária, soviética e sindical – em suma, na

distorção dos princípios do Estado soviético. 7

Este processo histórico de “distorção” assentou-se em contradições materiais

produzidas por múltiplos fatores decorridos de uma revolução em um país com uma estrutura

social atrasada, e que passou por contradições importantes como a guerra civil e,

especialmente, a Nova política Econômica, que reintroduziu elementos capitalistas na

economia na tentativa de dar um novo fôlego contra as pressões do capital e o imperialismo a

nível internacional, mas que gerou também pressões burocráticas importantes, formando uma

classe de camponeses ricos (kúlaks) e dando bases para a reação termidoriana no interior do

partido, a partir da fração liderada por Stalin e sua teoria do “socialismo num só país”.

Conforme escreveu Trotsky no texto mencionado:

O burocratismo soviético (seria mais correto dizer anti-soviético) é o

produto das contradições sociais entre a cidade e a aldeia, entre o

proletariado e o campesinato (...), entre as repúblicas e os distritos

nacionais, entre os diferentes grupos do campesinato, entre as distintas

camadas da classe operária, entre os diversos grupos de consumidores e,

finalmente, entre o Estado soviético de conjunto e seu entorno

capitalista. 8

7 Cf. TROTSKY, Leon. op cit.

8 TROTSKY, Leon. op cit.

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Este encadeamento de contradições, elencadas por Trotsky, desenvolveu-se a partir

das políticas do Comunismo de Guerra, a partir de 1918, mas, mais precisamente, a partir da

evolução das medidas de exceção da Nova Política Econômica – medidas como a proibição

dos Partidos políticos e das frações no interior do Partido bolchevique (ambas estas medidas

datam de 1923), bem como o incremento das desigualdades sociais no interior do país. O

crescimento econômico de 1923 garantiu a estabilização da burocracia e a conquista de alguns

privilégios materiais (Trotsky referir-se-á ao fator “harém- limusine” como constituinte destes

privilégios) 9.

Em função do tempo, não conseguirei desenvolver as contrad ições que Trotsky aponta

em seu texto. Dois deles, entretanto, merecem, no que cabe às intenções desta comunicação,

uma atenção especial. Tratam-se, 1. da dialética entre a derrota das revoluções em outros

países e o fortalecimento da burocracia; e 2. o que Trotsky formulou como “a aquisição, por

parte do vencedor, dos hábitos do vencido”10.

A derrocada dos processos revolucionários na Alemanha, em 1923, seguida pela

derrocada do processo chinês de 1926-27 (e poderia citar ainda outros, como a Hungria e a

Bulgária, de 1918) isolaram a Rússia, mantendo-a atrasada economicamente em relação ao

Ocidente e sustentando a posição da burocracia. Ao mesmo tempo, as direções da Comintern,

orientadas pela burocracia stalinista e pela política da mesma de “socialismo em um só país”

promoveram também a derrocada destes processos, alçando a burocracia a postos cada vez

mais consolidados. Desta maneira, da necessidade da burocracia soviética de regular as

contradições entre o campesinato e o proletariado russos, bem como entre a União Soviética e

o imperialismo – mediante todo o tipo de aventureirismos e oportunismos – deriva o caráter

centrista, ou seja, de constante oscilação política, da burocracia soviética (ou anti-soviética)

fundamentado na suspensão desta em relação às massas (Trotsky emprega a expressão

“vitória da burocracia sobre as massas”).

Este processo de constituição da burocracia termidoriana deu-se também pela

substituição das camadas dirigentes do Partido, em um jogo de perseguições e calúnias que se

desdobrará, muito posteriormente, nos Grandes Expurgos. Diz Trotsky:

9 Cf. TROTSKY, Leon. A Revolução traída. Trad. Henrique Canary, Rodrigo Ricupero, Paula Maffei. São

Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005. 10

Cf. TROTSKY, Leon. op. cit.

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Foram esmagados os velhos quadros do bolchevismo. Destruídos os

revolucionários. Foram substituídos por funcionários de espinha

flexível. O pensamento marxista foi substituído pelo temor, pela calúnia

e pela intriga. Do Bureau Político de Lên in, sobra somente Stálin; dois

de seus membros estão politicamente quebrados e rendidos (Rikov e

Tomski); outros dois estão na prisão (Zinoviev e Kamenev); outro está

no exterior e privado de sua cidadania (Trotsky). Lênin, como disse

Krupskaia, somente pela morte livrou-se das repressões da burocracia;

na falta de oportunidades de colocá-lo preso, a epígonos o trancaram em

um mausoléu. Todo o setor governante se degenerou. Os jacobinos

foram substituídos pelos termidorianos e pelos bonapartistas, os

bolcheviques foram substituídos pelos stalinistas. 11

O segundo elemento desenvolvido por Trotsky, ao qual eu quero atentar, é, então, o

retorno às práticas culturais burguesas, ou a elementos culturais burgueses, promovidos pela

burocracia a partir do atraso russo. Ao longo da década de 1920, por exemplo, pode-se

observar a manutenção relativa do índice de prostituição, ao mesmo passo em que um

retrocesso cultural em relação ao papel das mulheres na produção material e na vida política –

chamado por Trotsky de “Termidor no lar”. O incremento das desigualdades sociais no seio

do proletariado e campesinato, bem como o movimento stakhanovista incentivavam a

competição e o arrivismo entre os operários, ao invés da cooperação.

Pois bem: conforme havia comentado em relação à arquitetura russa, o projeto

construtivista foi barrado pelo Estado. Não que houvesse tido uma grande expressão no

período em termos quantitativos, é preciso frisar, mas ele participou de um retrocesso amplo

do campo artístico e sua subsunção pelas mãos da burocracia stalinista. Podemos caracterizar

como um processo de “estatização da encomenda social”este, no qual, a partir da saída de

cena das massas nos rumos da revolução (conforme comentado, a partir da supressão da

democracia soviética), a burocracia formula suas demandas e as impõe aos artistas russos.

Mais do que uma mudança de mãos do “cliente”, este processo configura uma distorção dos

princípios da encomenda social.

11

TROTSKY, Leon. Estado operário, Termidor e bonapartismo . Disponível em:

<http://revistaiskra.wordpress.com/especiais-iskra-trotsky-e-engels/o-estado-operario-termidor-e-

bonapartismo/>. Acesso em: 18 set. 2012.

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A ASNOVA e a OSA são dissolvidas pelo decreto de 1932, do Partido Bolchevique,

que acaba com todas as tendências artísticas para reuni- las em grandes grupos submetidos ao

Estado. O retorno às linhas da arquitetura neoclássica é a marca deste período.

As fotos acima datam dos anos 50, no caso, mas os projetos de construções deste tipo

são iniciados e intensificados a partir da década de 1930. Podemos observar um retorno à

idéia de habitação fundada no núcleo familiar, bem como na inserção de elementos

nacionalistas. Trotsky já apontava, no texto de 1935 que referi acima, o “nacionalismo

messiânico” como um desdobramento ideológico da teoria do socialismo em um só país. Ou

seja,a Rússia deveria ser resgatada em sua tradição para explicar os elementos particulares

que a permitiram ser o único país socialista do mundo. Esta vinculação entre o projeto

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stalinista e o projeto regressivo artístico encabeçado por esta burocracia é também sintetizado

na seguinte formulação de Trotsky, de 1938, e com a qual encerro este artigo: “A arte da

época stalinista entrará para a história como a expressão mais profunda do declínio da

revolução proletária em nível internacional”12.

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12

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