18
DOI: 10.35355/0000031 PANORAMA DAS INVESTIGAÇÕES SOBRE O PUNK NO BRASIL E SUAS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS (1982 2010) Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de Goiás - UEG [email protected] RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos que, direta ou indiretamente, abordaram o tema punk no Brasil, procurando evidenciar como ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000, foram retratadas as experiências desses indivíduos e coletividades que se vincularam aos referenciais punks. Explorando, especialmente, como as conjunturas de inserção social interferiram na produção de identidades punk pelos investigadores, que, por sua vez, espelharam os dilemas de sua época. Diante deste desafio se tornou imprescindível à utilização das ferramentas conceituais de Michel de Certeau, que a partir de sua categorização de lugar social favoreceu a exploração das condições de produção do saber, assim como Stuart Hall que através de suas três concepções de sujeito permitiram estabelecer uma ferramenta de mensuração dos modos de pertencimento identitário. PALAVRAS CHAVE: Punk, Identidade, Escrita da História. PANORAMA OF THE INVESTIGATIONS ON PUNK IN BRAZIL AND ITS IDENTITY CONSTRUCTIONS (1982 - 2010) ABSTRACT: The purpose of this paper is to analyze monographic works that, directly or indirectly, addressed the punk theme in Brazil, trying to show how during the 1980s, 1990s and 2000s, the experiences of these individuals and collectives that were linked to punks. Exploring, especially, how the social insertion conjunctures interfered in the production of punk identities by the researchers, mirrored the dilemmas of their time. Faced with this challenge, it became essential to use the conceptual tools of Michel de Certeau, who from his categorization of social place favored the exploration of the conditions of knowledge production, just as Stuart Hall, through his three conceptions of subject, was fundamental for establishing a tool that measures the modes of identity belonging. KEYWORDS: Punk, Identity, Writing of History. Doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso, Docente de História Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual de Goiás.

Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG [email protected] RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

DOI: 10.35355/0000031

PANORAMA DAS INVESTIGAÇÕES SOBRE O PUNK NO

BRASIL E SUAS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS

(1982 – 2010)

Tiago de Jesus Vieira

Universidade Estadual de Goiás - UEG [email protected]

RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos que, direta ou

indiretamente, abordaram o tema punk no Brasil, procurando evidenciar como ao longo das décadas de

1980, 1990 e 2000, foram retratadas as experiências desses indivíduos e coletividades que se vincularam

aos referenciais punks. Explorando, especialmente, como as conjunturas de inserção social interferiram na

produção de identidades punk pelos investigadores, que, por sua vez, espelharam os dilemas de sua época.

Diante deste desafio se tornou imprescindível à utilização das ferramentas conceituais de Michel de

Certeau, que a partir de sua categorização de lugar social favoreceu a exploração das condições de

produção do saber, assim como Stuart Hall que através de suas três concepções de sujeito permitiram

estabelecer uma ferramenta de mensuração dos modos de pertencimento identitário.

PALAVRAS CHAVE: Punk, Identidade, Escrita da História.

PANORAMA OF THE INVESTIGATIONS ON PUNK IN

BRAZIL AND ITS IDENTITY CONSTRUCTIONS

(1982 - 2010)

ABSTRACT: The purpose of this paper is to analyze monographic works that, directly or indirectly,

addressed the punk theme in Brazil, trying to show how during the 1980s, 1990s and 2000s, the

experiences of these individuals and collectives that were linked to punks. Exploring, especially, how the

social insertion conjunctures interfered in the production of punk identities by the researchers, mirrored

the dilemmas of their time. Faced with this challenge, it became essential to use the conceptual tools of

Michel de Certeau, who from his categorization of social place favored the exploration of the conditions

of knowledge production, just as Stuart Hall, through his three conceptions of subject, was fundamental

for establishing a tool that measures the modes of identity belonging.

KEYWORDS: Punk, Identity, Writing of History.

Doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso, Docente de História Moderna e

Contemporânea da Universidade Estadual de Goiás.

Page 2: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

176

INTRODUÇÃO

Havendo-se passado 36 anos da publicação da obra “O que é punk” (BIVAR,

1982), primeira investigação sobre o tema no Brasil, o punk enquanto “referencial

coletivamente compartilhado” se disseminou para as mais distintas regiões do país, e

por consequência também se intensificou a produção de materiais destinados a relatar

e/ou retratar as experiências de tal fenômeno, resultando, por sua vez, numa imensa

gama de escritos, materializados principalmente na forma de trabalhos de conclusão de

curso, dissertações e livros. Fato esse que, “por si só”, já demonstraria a necessidade de

um empreendimento seguindo os moldes das investigações de “estado da arte” ou

“estado do conhecimento” (FERREIRA, 2002), a respeito dessa fabricação intelectual.

Além disso, nesse intervalo de tempo ocorreram grandiosas transformações,

tanto na dimensão global, quanto no panorama nacional, que alteraram a relação

dialógica dos sujeitos que se identificam como punks. Em concomitância a essa

evidente alteração nos “espaços de experiência” e “horizonte de expectativas”

(KOSELLECK, 2006) que se inscreveram sobre as atuações daqueles que compartilham

os signos punk, também se modificaram os modos como os pesquisadores retrataram as

experiências desses indivíduos e coletividades.

Considerando que a fabricação intelectual, por parte desses autores, não

ocorreu como um ato isolado, apartado do “corpo social”, na forma de discurso neutro,

pelo contrário, as interações sociais, nesse período, interferiram decisivamente nas

retratações identitárias, que, inevitavelmente, espelharam a sua época, pois, mesmo que

indiretamente quando os pesquisadores produziram suas investigações sobre o tema

punk também o normatizam, já que envolto a essa sistemática de elucidação dos

referenciais coletivamente compartilhados pelos punks, também se insere uma ação de

cristalização das práticas dos indivíduos e/ou grupos, transposta na forma de identidade,

essa que, por sua vez, igualmente espelha o modo como os investigadores capturaram o

mundo.

A respeito dessa problemática, Tomaz Tadeu da Silva, observou que “fixar

uma determinada identidade como norma é uma das formas privilegiadas de

hierarquização das identidades e das diferenças”, que, por sua vez, “significa atribuir a

essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras

identidades só podem ser avaliadas de outra forma” (SILVA, 2009, p.83). Nesse

Page 3: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

177

sentido, torna-se extremamente necessário compreender: quais as identidades do punk

brasileiro foram construídas nos trabalhos acadêmicos ao longo das décadas de 1980,

1990 e 2000?

Por esse viés, neste artigo, pretende-se examinar o período que assinala,

respectivamente, o ano do primeiro trabalho monográfico sobre o punk (1982) e do

término da terceira década de produção acadêmica (2010). Quanto à triagem da

produção temática, pautou-se nos seguintes procedimentos: Primeira etapa: busca pela

palavra-chave punk nos bancos de dados da “Capes” e demais portais de

armazenamento de trabalhos monográficos das universidades brasileiras, a fim de

estabelecer um panorama inicial da produção do tema; Segunda etapa: pesquisa por

“assunto” punk na Plataforma “Lattes”, a fim de ampliar os dados levantados na

primeira etapa. Após este levantamento se acredita ter chegado a um mapeamento

próximo do total da produção de trabalhos monográficos (livros, teses, dissertações e

trabalhos de conclusão de curso) sobre o tema punk no Brasil, contudo, não se pode

descartar a possibilidade de alguns trabalhos terem escapado na referida triagem. Após a

triagem se chegou ao seguinte quadro relativo à produção de livros, teses, dissertações,

trabalhos de conclusão de curso, sobre a temática punk no Brasil entre 1982 e 2010.

PERÍODO TCC’s Dissertações Teses Livros Total por

período

1982 - 1990

01 01 00 02 04

1991 - 2000

02 03 01 03 09

2001 - 2010

28 17 03 06 54

Quadro 01: Referente à produção de trabalhos monográficos relativos ao tema “punk no Brasil” entre

1982 e 2010.

O referido quadro evidencia uma produção total de sessenta e sete (67)

trabalhos monográficos que, direta ou indiretamente, abordam o tema punk com maior

propriedade, dos quais trinta e um (31) são trabalhos de conclusão de curso de

graduação e/ou especialização, vinte e um (21) dissertações de mestrado, quatro (04)

teses de doutoramento e onze (11) livros autorais, contemplando obras inéditas,

produzidas a partir de critérios do mercado editorial, e republicações de teses e

dissertações.

Page 4: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

178

Após este mapeamento se procurou sintetizar as principais características

identitárias dispostas em cada uma das décadas analisadas, visando identificar as

condicionantes que eventualmente contribuíram para essas fabricações identitárias

nesses períodos. Nesse sentido, foi de fundamental importância às proposições de

Michel de Certeau (1982), que principalmente por intermédio de seu conceito de lugar

social, possibilitou um melhor entendimento dos modos como os pesquisadores

manifestam em seus escritos elementos relativos à sua conjuntura de inserção,

contribuindo, assim, para a percepção de práticas, técnicas, métodos e procedimentos

que interferiram nas construções identitárias. Do mesmo modo, as considerações de

Stuart Hall (2005) foram relevantes por contribuírem para a compreensão das

“permanências” e “rupturas” em meio ao processo de “adesão” identitária no ocidente,

dessa forma, suas três concepções de sujeito, permitem estabelecer um parâmetro de

fácil mensuração acerca do nível de agenciamento identitário inscrito nos sujeitos

discursivamente construídos nas investigações analisadas.

Para tanto, optou-se por uma organização em tópicos a fim de apresentar as

principais características dispostas em cada uma das três décadas, observando como

cada uma dessas conjunturas temporais impôs novas condicionantes a essas obras,

resultando, por conseguinte, em diferentes identidades punk.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A DÉCADA DE 1980

Em função da superexposição ganhada em Londres, desde o final da década de

1970, existia no Brasil relativo interesse por informações acerca do tema punk, que

inclusive já passava a ser “replicado”, aqui, na forma de postura identitária. Nesse

primeiro momento as informações se limitavam a parcas matérias veiculadas em jornais

e revistas1, cuja retratação do punk oscilava de fenômeno da moda até manifestação

máxima da imbecilidade juvenil. Havia, portanto, uma evidente necessidade de

produção de investigações com reflexões mais aprofundadas, que de fato só veio a

ocorrer, mesmo que de maneira incipiente, com a chegada da década de 1980, em

função de temas relativos ao universo juvenil serem considerados menores e até mesmo

1 Nesse primeiro momento se destacaram as reportagens das revistas POP e Isto É.

Page 5: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

179

reacionários nas universidades brasileiras2, resultando, assim, no empreendimento de

apenas 033 investigações ao longo de toda década.

O primeiro trabalho a abordar a temática punk com maior propriedade no

Brasil surgiu de uma iniciativa da Editora Brasiliense, que se valeu do interesse de parte

do público pelo tema tido como “do momento”, em função da atenção dada pela

imprensa escrita e televisiva, e enquadrou na coleção “Primeiros Passos”4 a obra “O que

é punk” de autoria de Antônio Bivar (1982). Também nessa década foram

desenvolvidos os trabalhos monográficos “Absurdo da Realidade: O movimento Punk”

de Helenrose Aparecida da Silva Pedroso e Heder Augusto de Souza (1983),

empreendido no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas. E no

Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi

desenvolvida a Dissertação de Mestrado, “Movimento Punk na Cidade: invasão dos

2 Ângela de Castro Gomes observou que a luta pelo fim do regime militar e a posterior campanha pelas

"Diretas já" influenciou decisivamente as temáticas das pesquisas desenvolvidas pelos discentes dos

programas de pós-graduação, em especial de História e Ciências Sociais. Privilegiando temas como

“movimentos sociais urbanos e rurais, bem como uma história social do trabalho, na qual os

protagonistas eram escravos, libertos, homens livres, camponeses, artesãos, operários e assalariados

em geral”, assuntos estes que propunham abrir novos caminhos para reflexão daquela sociedade. Em

complementariedade, Ronaldo Vainfas (também salientou que, naquele contexto, o fundamental era

“fazer uma história que buscasse as raízes socioeconômicas de nosso atraso, subdesenvolvimento ou

dependência do imperialismo, em especial o norte-americano”, desvelando “uma história engajada,

portanto, uma história militante”. Tais proposições se justificavam pelo fato de a produção

historiográfica brasileira estar “de certo modo, hegemonizada pelo marxismo, ou pelas várias

correntes marxistas”. Contudo, para o autor, essa forma de concepção do fazer historiográfico, em

partes, dificultou a entrada de novas tendências historiográficas no Brasil, que por sua vez já estavam

consolidadas na Europa. Em meio a esse cenário, novos temas relativos a “mobilizações feministas,

ecologistas ou do movimento gay” eram entendidos como temas reacionários e/ou desmobilizantes.

De modo que o “tom geral foi, assim, o de condenação dos chamados novos paradigmas não

marxistas”, resultando num atraso de 10 a 15 anos, em relação ao tempo de formulação das novas

correntes historiográficas na Europa, e sua efetiva difusão no Brasil, fato que “foi, em grande parte,

responsável por tais confusões, pois todas essas inovações da historiografia, principalmente europeia,

chegaram juntas ou, pelo menos, se difundiram juntas nos anos 1980”. Essas formulações acerca da

escrita da História no Brasil na década de 1980 são legitimadas no trabalho quantitativo/analítico

realizado por Carlos Fico e Ronald Polito que constataram a predominância de temas relativos ao

“movimento operário, grupos de trabalhadores, sindicatos e mundo do trabalho” no campo da História

Social. No entanto, nesse período também foi possível focalizar o surgimento de algumas pesquisas a

respeito de temas como cotidiano, mulheres, família e doenças. GOMES, 2004, p. 158; VAINFAS,

2009; FICO; POLITO, 1992, p. 56.

3 Importante destacar que a dissertação de Janice Caiafa Pereira intitulada “Movimento Punk na

Cidade: invasão dos bandos sub” também resultou na publicação de um livro homônimo, resultando

assim em dois trabalhos.

4 A coleção “Primeiros Passos” se caracterizou pela diversidade temática e pela editoração em formato

de bolso, que articulado ao baixo valor de revenda contribuiu para o acesso do grande público as

publicações da editora.

Page 6: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

180

bandos sub”, de Janice Caiafa Pereira (1985), que também resultou na publicação do

livro homônimo no mesmo ano pela Jorge Zahar Editora.

Em linhas gerais essas investigações, dentre outras preocupações, procuravam

mapear os diversos elementos que efetivamente compunham a “identidade” punk no

território nacional. Embora em alguns estudos seja perceptível maior atenção a aspectos

relativos à musicalidade, política, gênero e sexualidade, foi ponto comum nessas

investigações a legitimação do punk no Brasil, em especial, a partir de elementos de

vivência suburbana, constituindo, assim, uma identidade punk que, mesmo que

indiretamente, exteriorizava a revolta daqueles que se sentiam oprimidos. Não obstante,

a interação desse punk com o mundo social se fundamentava na violência, que, por sua

vez, espelhava esse modo de interpretar o mundo.

Dessa forma, permite-se conjecturar que a atenção comum dos pesquisadores

ao tratar o aspecto suburbano do punk e sua caracterização como manifestação

fundamentada na insubordinação periférica, também refletia a conjuntura política

daquele momento. Pois, como ainda havia uma necessidade, reprimida, de expressar o

descontentamento à ordem vigente, incidiu que direta ou indiretamente houvesse

formulações identitárias baseadas nessa combatividade, que, em última instância,

também espelhava os postulados do marxismo, especialmente, os relativos à luta de

classe.

Ao tomar a confluência dos elementos de acepção identitária presentificados

nos estudos relativos à temática punk na década de 1980, e ao compara-los as três

concepções de sujeitos formuladas por Stuart Hall (2005), permite-se mensurar que as

definições identitárias desses autores, recorrentemente, expressaram um punk brasileiro

que se aproxima da idealização do sujeito sociológico e/ou moderno, pois, os punks

eram majoritariamente retratados como compartilhando características comuns que

conferiam a esses uma espécie de “coerência”, como no caso dos referenciais

suburbanos e sua atuação fundamentada na violência.

Contudo, a concretude desses estudos também permite perceber um

deslocamento deste polo de rigidez identitária, sendo possível focalizar em

determinados momentos da narrativa dos investigadores elementos que indicam uma

identidade dialógica, por ir além das determinações preestabelecidas, como quando na

obra de Antônio Bivar (1982) foi feita uma reflexão no tocante à aceitação de

homossexuais em meio à coletividade, retratando que este se configurava como um

Page 7: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

181

ponto ainda em discussão, sendo, portanto, passível de questionamento a aparente

rigidez imposta pela identidade. Além disso, os conflitos entre gangs punks, ressaltados

na investigação Helenrose Aparecida da Silva Pedroso e Heder Augusto de Souza

(1983), que, por sua vez, chegaram a adquirir efeito de guerra, também expressam por

meio da violência uma negação as determinações identitárias.

Nessa lógica, mesmo que os autores do período não tenham dado tamanha

atenção à mutabilidade identitária, pode-se observar que por trás dos rígidos quadros

autodeterminativos que expressam uma identidade do punk fundamentada a partir de

alguns parâmetros, também se pode focalizar nesses empreendimentos a exposição de

elementos que tencionavam a cristalização identitária do punk, evidenciando a

existência de um embate no campo das representações de qual seria o “modelo de punk

ideal” a ser seguido. Assim, tal qual o sujeito sociológico e/ou moderno de Stuart Hall,

esse punk, majoritariamente retratado possui uma coerência interior. Contudo, sofre

estímulos do mundo exterior que fazem com esse seu “eu real” seja eventualmente

modificado.

Portanto, como a década de 1980 foi a de entrada do punk no meio

acadêmico/bibliográfico brasileiro, pode-se considerar “natural” a escassez de material

relativo ao tema, o que justifica a produção de investigações, primordialmente,

centradas na compreensão e definição do sujeito punk, bem como na valorização de

aspectos como musicalidade, política, gênero e sexualidade. Além disso, também foi

recorrente, nessas pesquisas, a busca pela legitimação do punk no Brasil a partir da

suburbanidade, dando ênfase a um punk combativo que se insere como mais um

personagem ativo na luta de classe. Dessa maneira, a identidade punk externava, em

última instância, a necessidade de questionar a ordem vigente na reta final do regime

militar. O sujeito que era retratado nessas investigações dispunha de certa “coerência”.

Embora em determinados momentos os autores tendessem a problematizar o conflituoso

relacionamento dos punks com os signos constituidores dessa identidade, destacando,

nessa perspectiva, a obra de Janice Caiafa. (1985)

CONSIDERAÇÕES SOBRE A DÉCADA DE 1990

A década de 1990 trouxe significativo avanço na produção de trabalhos

relativos à juventude, que, por sua vez, também refletiu nos estudos relativos ao punk no

Page 8: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

182

Brasil, caracterizado por um leve aumento no volume de estudos, sendo registrado no

período nove trabalhos monográficos, destacando-se uma tese de autoria de Márcia

Regina da Costa, intitulada “Os carecas do subúrbio: caminhos de um nomadismo

moderno”(COSTA, 1992), três dissertações “Grupos juvenis nos anos 80 em São Paulo:

um estilo de atuação social” (ABRAMO, 1992) produzida por Helena Wendel Abramo,

“Grupos de estilo jovem: O Rock Underground e as práticas (contra)culturais dos grupos

punks e trashs em São Paulo” (KEMP, 1993) de Kênia Kemp, e “Punk: cultura

subversiva e protesto, as mutações ideológicas de uma comunidade subversiva – São

Paulo 1983/1996” (SOUSA, 1997) de autoria de Rafael Lopes de Sousa. Nesse período

também foi notável o empreendimento do livro “Punk, a anarquia planetária e a cena

brasileira” (ESSINGER, 1999) escrito pelo jornalista Silvio Essinger.

Ao direcionar o foco da observação para esses principais estudos temáticos

desenvolvidos na década de 1990, constata-se uma visível preocupação dos

pesquisadores em produzir narrativas teorizantes que buscassem compreender a adesão

do punk pelos jovens. Nesse contexto, a constante busca por uma teorização das

relações juvenis recorrentemente era acompanhada de maior utilização de elementos

diacrônicos, que objetivaram fazer uma análise tendo em vista percorrer o limiar

temporal do pós-guerra, a fim de contingenciar as práticas que geravam pertencimento

coletivo na juventude para com os signos punks.

Tais características, por sua vez, remetem ao lugar social da universidade

brasileira, naquele período, à medida que refletem o cenário de profissionalização que a

pós-graduação começava a atravessar, pois essas pesquisas, comumente, procuravam

apresentar sínteses processuais através de padrões macro históricos, em concomitância

com a busca pela inteligibilidade e explicação, aliado a expulsão do irracional,

elementos que constituem os pilares daquilo que Ciro Flamarion Cardoso (1997)

conferiu como paradigma iluminista. Essas definições, por sua vez, compreendem

modelos, como o weberianismo e o estruturalismo, em algumas de suas vertentes, e,

fundamentalmente, o marxismo que se configurava como a tendência dominante no

início da década, e que ao longo dessa, em função da própria dinâmica da globalização,

perdera espaço para tendências genericamente compreendidas como pós-modernas5 e

5 Com chegada da década de 1990 o termo: pós-moderno, que embora já fosse usado na década

anterior, também ganhou força por contingenciar diversas tendências como “‘desconstrução’, ‘pós-

estruturalismo’ etc”. Genericamente todas essas proposições conferidas a partir desse termo tinham

em comum “um ceticismo essencial sobre a existência de uma realidade objetiva, e/ou a possibilidade

Page 9: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

183

que privilegiavam novas possibilidades6 de compreensão do mundo, com extrema

validade para investigações como as relativas ao punk. Contudo, como enfatiza Jurandir

Malherba ( 2002), esse processo de adesão às novas perspectivas teóricas não ocorreram

de maneira imediata, pois mesmo partindo de novos postulados, os pesquisadores

brasileiros ainda conservavam uma verve marxista.7

Assim, as pesquisas relativas à temática punk na década de 1990

“naturalmente” também repercutiram esse amplo quadro de dualidade e/ou rivalidade

entre esses paradigmas. Tal quadro se evidencia, especialmente, nas investigações que,

direta ou indiretamente, expressavam a maior necessidade de “historicizar” as

coletividades estudadas, expressando, por um lado, certo desejo de inteligibilidade

processual, mas por outro expôs a dinamicidade das trajetórias internas de cada grupo,

apresentando assim a recorrência de conflitos motivados pelas distintas interpretações

dos signos punks, bem como a inexistência de um referencial claro e rígido do que seria

“efetivamente” o punk. É perceptível, dessa forma, uma clara ruptura para com as

investigações empreendidas na década de 1980, que, por vezes apresentavam uma

crença numa suposta essência do punk brasileiro, fundamentada a partir dos elementos

de suburbanidade.

Ao tomar novamente os referenciais proferidos por Stuart Hall (2005) para

estabelecer uma aferição do perfil identitário contidos nos estudos relativos ao punk no

Brasil, permite-se inferir que na década de 1990 essas construções identitárias também

se aproximam da concepção de sujeito sociológico ou moderno. Sobretudo, em

decorrência de grande parte desses pesquisadores, ainda que com menor frequência,

de chegar a uma compreensão aceita dessa realidade por meios racionais, tendendo a um relativismo

radical”. Em linhas gerais, pode-se observar que a década 1990 impusera novos dilemas a todos,

permeando desde a vida cotidiana até as reflexões sociais que eram conferidas entre os muros das

universidades. Nesse meio, o abandono a determinados paradigmas e até mesmo a discussão sobre o

“fim da História” apareceram na forma de tendência, em função da enunciada fragilidade que

supostamente possuíam de refletir acerca dos novos dilemas que o mundo agora produzia..

HOBSBAWM, 1995. p. 499 – 500.

6 Margareth Rago enfatizou que nos anos 1990 se vivenciou um expressivo aumento de temas de

pesquisas relativos à cultura urbana. Como efeito disso, também se pôde constatar a significativa

expansão dos estudos relativos à juventude urbana, produzidos sobretudo a partir das universidades e

seus programas de pós-graduação. RAGO, 1999.

7 Embora, Thiago Felipe dos Reis destaque que no período a perspectiva marxista foi aquela que sentiu

maior derrocada, ao longo da década, pois apesar de no início da década, praticamente ter

hegemonizado a produção do conhecimento histórico no Brasil, no final desse período se constituía

apenas como um forte nicho de investigação, perdendo cada vez mais espaço para as investigações

orientadas pelos paradigmas da História Cultural, que, por sua vez, se demonstrou um fecundo terreno

para temas como arte, religião e a questão urbana. REIS, 2015.

Page 10: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

184

procurarem criar uma finalidade autoexplicativa para as práticas cotidianas dos punks,

inevitavelmente remetendo, ainda que indiretamente, a noção de núcleo interior ou

essência, pois, tal direcionamento recorrentemente incidiu em eleger aspectos como

revolta e insubordinação, ou até mesmo a espetacularização social como inerentes dessa

coletividade juvenil.

Nesse mesmo período, foi possível observar uma visível fluidificação na

concepção desse sujeito, que em diversos momentos pulveriza as definições mais

rigorosas, a despeito disso, no estudo empreendido por Marcia Regina da Costa (1992),

claramente se pode observar uma percepção identitária que permite ao punk assumir, ao

longo de sua vida, outra percepção identitária, por vezes totalmente antagônica àquilo

que inicialmente era definido, arbitrariamente, como sua “essência”.

Desse modo, embora a década de 1990 não tenha efetivamente produzido um

punk totalmente desalojado de eixos norteados do ponto de vista identitário, tal qual

versa o sujeito pós-moderno proferido por Stuart Hall (2005), algumas experiências

analíticas realizadas no período expressaram um deslocamento nessa direção.

Houve, assim, um efetivo avanço na produção de trabalhos relativos ao punk,

seja na esfera quantitativa que obteve um leve aumento na produção, bem como no

tocante a densidade do material produzido. Entretanto, ainda havia um vasto horizonte

de possibilidades a serem problematizadas pelos pesquisadores que optassem por se

debruçar sobre o tema, em especial no tocante as singularidades que os punks

apresentavam para além do eixo Rio-São Paulo. Sendo esse justamente o ponto de

investigação privilegiado pelos pesquisadores que retornaram a esta temática na

primeira década do século XXI.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A DÉCADA DE 2000

Ao longo da primeira década do século XXI, o Brasil vivenciou uma série de

transformações com destaque nos aspectos social e econômico, ocasionando, dentre

outras coisas, uma notável expansão do acesso ao ensino superior. Esse cenário de

crescimento da universidade brasileira também levou a uma expressiva descentralização

da pós-graduação para além do eixo Rio-São Paulo, que veio acompanhada crescente

diversificação de postulados teóricos nas ciências humanas. Conferindo, assim, um

novo panorama para os estudos relativos à juventude, e, especialmente, nas

Page 11: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

185

investigações que, direta ou indiretamente, abordaram o tema punk, que, por seu turno,

registrou um crescimento de 488,88% no período, em comparação a década anterior que

havia contabilizado apenas 09 trabalhos monográficos. Ao passo que nos dez anos

seguintes foram desenvolvidos 28 (trabalhos de conclusão de cursos e/ou monografias),

17 (dissertações), 03 (teses), 06 (livros) totalizando 54 pesquisas sobre o tema punk.

Nesse sentido, exceto os 06 livros que expressam interesses diversos,

contabilizam-se 48 trabalhos monográficos produzidos no bojo das universidades no

período, esses que estão distribuídos por área do conhecimento da seguinte forma:

Quadro 02: Referente à distribuição por área do conhecimento dos trabalhos monográficos relativos ao

tema “punk no Brasil”, produzidos entre 2001 e 2010.

A observação dos dados contidos nessa tabela permite evidenciar em primeira

instância o predomínio da disciplina História, concentrando 43.75% dos estudos

realizados no período, ao passo que na década anterior havia sido registrado apenas 01

trabalho dessa dimensão na referida área, “Punk: cultura subversiva e protesto, as

mutações ideológicas de uma comunidade subversiva – São Paulo 1983/1996” de

Rafael Lopes de Sousa (1997). Tal cenário enuncia a evidente abertura do referido

campo aos ditos novos temas e novas abordagens. Pois, se nas décadas de 1980 e 1990,

o tema não despertava a atenção dos historiadores, posteriormente, na primeira década

do século XXI, a área de História se colocava como campo do conhecimento majoritário

no tocante a estudos relativos ao punk. Mesmo cenário que aparentemente se repercutiu

Page 12: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

186

nas Ciências Sociais, Antropologia e Sociologia, que, embora já produzissem, desde as

décadas anteriores, alguns parcos trabalhos, também vivenciaram a partir de 2001,

significativo salto no volume de produção.

Estes dados também permitem evidenciar a emergência do interesse pelo tema

punk por “novas” áreas do conhecimento como: Geografia (pesquisas centradas

especialmente no aspecto da territorioalização, buscando, dessa maneira, compreender a

construção social do espaço pelos punks); Educação (atentando-se especial a construção

e difusão de saberes inerentes as coletividades punk); Etnomusicologia (objetivando

compreender como a articulação irradiada por meio da música possibilitou novas

experiências de vivência); Relações Internacionais (destinando-se a compreensão dos

rearranjos dos signos importados adaptados a realidade brasileira); Linguagens (com a

manifesta preocupação de perceber com o corpo do punk produz significações em suas

práticas cotidianas).

Por meio desta quantificação dos estudos relativos ao tema punk, realizados no

período, e se valando do método bibliométrico8 também se tornou possível observar a

distribuição geográfica, tendo como referência o local de produção dos trabalhos.

Instituição Trabalhos Região

UEG (1); UFG (1); UFMS (1); UFMT (1); UNB (1);

UniCEUB(1) 6 CO

UFPA (3) 3 N

UFPB (3); UFPE (1); UFRN (1); UNIFLOR (1); UEPB

(1); UECE (1); UFCG (1); UNICAP (1); FUNESO (1) 11 NE

UEL (2); UFRGS (1); UFSC (1); UTP (1); UNICENTRO

(1); UNIOESTE (1); UFPR (1); UDESC (1); PUC -

Uruguaiana (1)

10 S

PUC/SP (5); UNESP (3); UFRJ (2); USP (2); UFU (2);

UNAR (1); PUC - Campinas (1); UNICAMP (1) 17 SE

UCLA - University of California, Los Angeles (1) 1 Exterior

Total 48

Quadro 03: Referente à distribuição por instituição de ensino superior e concentração regional de

trabalhos monográficos relativos ao tema “punk no Brasil”, produzidos entre 2001 e 2010.

8 A pesquisa bibliométrica tem por finalidade mapear a produção científica a partir de áreas ou

temáticas, buscando traçar um panorama quantitativo do conhecimento de determinado campo de

estudo, num determinado período, esse tipo de investigação recorrentemente é utilizado em auxilio a

pesquisas de estados da arte, a fim de estabelecer indicadores da referida produção científica.

Page 13: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

187

Esses dados ainda evidenciam predomínio das pesquisas tendo como principal

palco para o seu desenvolvimento a região sudeste que totalizou 17 pesquisas, domínio

que também se estende ao estado de São Paulo que contemplou 13 investigações. No

entanto, embora tenha se registrado uma elevação no volume de produção dos trabalhos

no sudeste e no estado de São Paulo, quando observado esses dados em contrates com o

restante do quadro e com os dados da década anterior, claramente se observa a perda de

patamar do estado e da região, que praticamente hegemonizavam a produção de

trabalhos monográficos temáticos nas décadas de 1980 e 1990.

Nessa linha, foi perceptível a expansão do tema por todas as regiões do país,

registrando 11 estudos empreendidos no nordeste, 10 sul, 06 no centro-oeste e 03 norte

do país. Tal cenário claramente repercute a evidente expansão dos cursos de graduação

e pós-graduação, bem como sua interiorização9 no Brasil no período.

No tocante a concentração por instituição, tais dados conferem a Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo o status de lugar privilegiado para realização de

pesquisas referentes ao punk brasileiro, sendo que, muito disso se deveu a criação, nesse

período, do “acervo sobre o movimento punk” no CEDIC (Centro de Documentação e

Informação Científica Prof. Casemiro dos Reis Filhos) localizado na referida instituição,

servindo, assim, como proeminente base de dados para elaboração de uma nova leva de

estudos do punk.

Contudo, embora a PUC de São Paulo tenha se destacado com o

desenvolvimento de 05 trabalhos dessa dimensão, pode-se evidenciar ao longo do

9 A expansão do ensino superior inevitavelmente também demandou uma elevação na oferta de vagas

em curso de pós-graduação, de ordem, stricto senso. Nesse sentido, de acordo com pesquisa

empreendida por Claudia Cirani, Milton Campanario, Heloisa Silva, tomando como referência os

dados da CAPES houve no Brasil, entre o período entre 1999 e 2011, um aumento de 71,5% na oferta

de cursos de mestrado e 100,8% em doutorados. O mesmo estudo observou, quantitativamente, que

essa evolução no volume dos programas de pós-graduação brasileiros, também ocasionou um

processo de descentralização destes cursos que, anteriormente, estavam aglutinados quase que

hegemonicamente na região Sudeste. Dessa maneira, nesse período foi notada uma elevação de

(441,7%) desses cursos na região Norte, (229,7%) no Centro-Oeste, 210,2%) no Nordeste e (154,1%)

no Sul. Ademais, no tocante as áreas do conhecimento essa pesquisa constatou que as áreas que

apresentaram maior crescimento foram Multidisciplinar (1083%), Ciências Sociais e Aplicadas

(204,7%) e Ciências Humanas (145,2%). Em meio a esse cenário de expansão da pós-graduação

brasileira, notavelmente acompanha-se um notável amadurecimento da área de História, conforme

enunciou Estevão de Rezende Martins, que enfatizou que a organização dos programas através de

áreas de concentração, e consequentemente sua estruturação através de linhas de pesquisa

proporcionou avanço e diversificação dos objetos históricos estudados. CIRANI,2015; MARTINS,

2011.

Page 14: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

188

período um claro predomínio das instituições públicas que registraram 33 investigações,

ao passo que as privadas contabilizaram apenas 13 estados realizados.

Torna-se notável também o empreendimento de uma pesquisa na UCLA

(University of California, Los Angeles) “Dark matter towards an architectonics of rock,

place, and identity in Brasília's utopian underground” de autoria de Jesse Samba

Samuel Wheeler (2007), envolvendo indiretamente o tema punk na capital federal.

Cabe ainda observar a quantificação por região levando em consideração o

local explorado na pesquisa.

Região abordada no trabalho Trabalhos

Centro Oeste 5

Norte 3

Nordeste 12

Sul 11

Sudeste 10

Amplitude nacional 7

Total 48

Quadro 04: Referente à distribuição por região de abordagem dos trabalhos monográficos relativos ao

tema “punk no Brasil”, produzidos entre 2001 e 2010.

Como indicam os dados, nota-se um novo cenário no tocante a pesquisas

relativas ao tema punk no Brasil, sendo possível observar a amplitude geográfica dessas

investigações que passaram a contemplar todas as regiões brasileiras. Nesse sentido,

diferentemente do que ocorrera nas décadas anteriores em que os trabalhos se limitaram,

especialmente, a compreensão das articulações punks no sudeste, a partir de 2001 se

percebeu uma clara inversão nesse fluxo, no qual o nordeste passou a ser o principal

foco de investigação, contingenciando um total de 12 estudos, sendo seguido pela região

sul que foi alvo de 11 análises.

Em linhas gerais os estudos sobre o punk, empreendidos nesse período,

destacaram-se, especialmente, por proporcionar investigações centradas em estabelecer

uma revisão crítica acerca da história do punk no Brasil, bem como analisar a inserção

do punk em novos territórios, tais como Brasília, Belém, Campina Grande, Cuiabá,

Curitiba, Fortaleza, Guarapuava, Ilha Solteira, João Pessoa, Londrina, Natal, Porto

Alegre, Recife, Ribeirão Preto e Uruguaiana. Também se soma a essas investigações

aquelas que procuraram examinar a atuação de grupos “dissidentes” como Hardcore,

Riot Grrrl, Emos e Straight Edges.

Page 15: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

189

Destarte, o que se evidenciou foi um significativo avanço de perspectivas

compreendidas genericamente como pós-modernas, que, por seu turno, empreenderam

uma efetiva desconstrução dos signos que anteriormente eram compreendidos como

“constituidores da verdadeira identidade punk”. Portanto, ao tomar esse panorama para

se estabelecer uma reflexão a partir dos postulados de Stuart Hall (2005) permite-se

enunciar que a produção acadêmica acerca do punk no período, formulou um sujeito que

alterna entre moderno e o pós-moderno. Sujeito moderno à medida que mostra, ainda

que em última instância, uma rigidez, especialmente, no tocante a suas bandeiras de

atuação, sendo comum sua inserção na forma de agente de enfrentamento do status quo.

Assim, mesmo que as experiências descritas ao longo da própria investigação não

evidenciem tal prerrogativa do ponto de vista teórico, até mesmo negligencie tal

proposição, recorrentemente foi possível focalizar uma idealização no que concerne a

atuação política do punk, remetendo a ideia de um “eu real” que embora dialogue com o

mundo cultural ainda preserva certa rigidez. E sujeito pós-moderno à medida que os

autores frequentemente problematizaram, desalojaram e apresentaram novos

significados para os signos identitário do punk, expondo como essa identidade pode

emergir em condições sociais destoantes das tidas como “essências”, inclusive

apresentando que essa adoção identitária poderia ser conveniente a um determinado

momento ou condição.10

Ao longo da primeira década do século XXI, diante de uma série de

transformações de cunho social e econômico, que alteraram, especialmente, o panorama

da universidade brasileira, houve consequentemente, uma possibilidade de

descentralização dos programas de pós-graduação para além do eixo Rio-São Paulo.

Esse novo cenário, por seu turno, também veio acompanhado de uma crescente

diversificação de postulados teóricos nas ciências humanas, resultando, por conseguinte,

em um novo panorama para os estudos que, direta ou indiretamente, abordaram o tema

punk, contribuindo para que, cada vez mais, houvessem investigações pautadas em

10 Como retratado nos estudos a respeito da inserção do punk nas cidades de Brasília e Guarapuava.

GONÇALVES, Hoana Costa. Dominação e Transgressão: A relação da violência do movimento punk

com a inconformidade com a ditadura militar no Brasil nos anos de 1980 a 1985 – Uma leitura do

movimento punk inglês em Brasília. 2006. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Relações

Internacionais), Centro Universitário de Brasília -UniCEUB, Brasília/DF, 2006; TURRA NETO,

Nécio. Múltiplas trajetórias juvenis em Guarapuava: territórios e redes sociabilidade. 2008. Tese

(Doutorado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita Filho. Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita”, Faculdade de

Ciência e Tecnologia, Presidente Prudente – SP, 2008.

Page 16: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

190

empreender uma revisão crítica da história do punk no Brasil e desbravar a inserção dos

punks “novos territórios”. Por fim, tal panorama claramente evidencia um ligeiro, mais

significativo, deslocamento na concepção de sujeito implícita nos estudos relativos ao

punk, decorrente, principalmente, de um novo panorama que se emerge em relação à

pesquisa, na primeira década do século XXI.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Tomando a problemática de mapear a produção identitária do punk nos estudos

monográficos realizados no Brasil, ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000, o

presente estudo buscou expor como esses empreendimentos inevitavelmente

inscreveram um ato de cristalização das práticas, formulando, assim, identidades.

Constatando que as formulações identitárias acerca do punk no Brasil inevitavelmente

foram moldadas a partir da fabricação intelectual dos pesquisadores, que, por sua vez,

produziram-nas a partir de seu diálogo com o mundo social, o que, direta ou indireta,

contribuiu para projetar essas identidades em resposta às demandas inscritas em seus

lugares sociais, o que, por sua vez, contribuiu para que cada uma das décadas, aqui

analisadas, dispusesse de particularidades que se transpuseram na forma de traços

identitários do punk brasileiro.

Através desse mapeamento, de modo geral, tornou-se perceptível constatar um

deslocamento na concepção de sujeito, que alternou, ao longo das três décadas, entre

moderno e o pós-moderno. Evidenciando, assim, um constante fluxo de abandono às

rígidas definições identitárias, que inicialmente se concentrava em retratar o punk a

partir de elementos “essenciais” e aos poucos passaram a explorar as peculiaridades dos

desdobramentos identitários. Como efeito disso, também surgiram com maior

constância investigações destinadas a explorar as dissidências e/ou sub-grupos que

emergiram do punk. Por fim, cabe ressaltar que esse artigo não teve a pretensão de

estabelecer uma “verdade” sobre do punk nacional, ao contrário, constitui-se apenas

como um empreendimento analítico que a partir de utilização de ferramentas

conceituais procurou estabelecer um mapeamento dos estudos sobre o punk no Brasil.

Page 17: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

191

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMO, Helena Wendel. Grupos juvenis nos anos 80 em São Paulo: um estilo de

atuação social. 1992. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-

Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

BIVAR, Antônio. O que é Punk. São Paulo: Brasiliense, 1982.

CAIAFA, Janice. Movimento Punk na Cidade: invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1985.

CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro

Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e

metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

1982.

CIRANI, Claudia Brito Silva; CAMPANARIO, Milton de Abreu; SILVA, Heloisa

Helena Marques da. A evolução do ensino do pós-graduação senso estrito no Brasil:

análise exploratória e proposição para pesquisa. Avaliação. Campinas; Sorocaba, v. 20,

n. 1, p. 163-187, mar. 2015.

COSTA, Márcia Regina da. Os carecas do subúrbio: caminhos de um nomadismo

moderno. 1992. Tese (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em

Antropologia, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1992.

ESSINGER, Silvio. Punk, a anarquia planetária e a cena brasileira. São Paulo:

Editora 34, 1999.

FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas “estado da arte”.

Educação & Sociedade. n. 79, p. 257 - 272, ago 2002.

FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A História no Brasil (1980 – 1989): Elementos para

uma avaliação historiográfica. Ouro Preto: UFOP, 1992.

GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas

para um debate. Estudos Históricos, São Paulo, n. 34, p. 157-186, jul./ dez. 2004.

GONÇALVES, Hoana Costa. Dominação e Transgressão: A relação da violência do

movimento punk com a inconformidade com a ditadura militar no Brasil nos anos de

1980 a 1985 – Uma leitura do movimento punk inglês em Brasília. 2006. Trabalho de

Conclusão de Curso (Graduação em Relações Internacionais), Centro Universitário de

Brasília, Brasília/DF, 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª ed. Rio de janeiro: DP&A;

2005.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo:

Cia. das Letras, 1995.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos

históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Ed. PUC-Rio, 2006.

KEMP, Kenia. Grupos de Estilo Jovens: o “Rock Underground” e as práticas (contra)

culturais dos grupos “punks” e “trashs” em São Paulo. 1993. Dissertação (Mestrado em

Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Estadual

de Campinas, Campinas, 1993.

MALHERBA, Jurandir. Notas à margem: a crítica historiográfica no Brasil dos anos 1990.

Textos de História, v. 10, n. 1/2, p. 181-211, 2002.

MARTINS, Estevão de Rezende. Conhecimento histórico e historiografia brasileira

contemporânea. Revista portuguesa de história. Coimbra/ Portugal, n. 42, p. 197-214,

2011.

Page 18: Tiago de Jesus Vieira Universidade Estadual de …...Universidade Estadual de Goiás - UEG tiago.vieira@ueg.br RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar os trabalhos monográficos

Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro de 2019 Vol.16 Ano XVI nº2

ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br

192

PEDROSO, Helenrose Aparecida da Silva; SOUZA, Heder Claúdio Augusto de.

Absurdo da Realidade: O Movimento Punk. Coleção Cadernos IFCH Unicamp n. 6.

Campinas: Editora Unicamp, 1983.

RAGO, Margareth. A “nova” historiografia brasileira. Anos 90. Porto Alegre, v. 7, n. 11, p. 73-

96, 1999.

REIS, Thiago Felipe dos. A produção historiográfica da Revista História: questões e

debates – uma contribuição à história da historiografia paranaense. In: Anais: II

Congresso Internacional de História UEPG – Unicentro, 2015.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais.

9ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2009.

SOUSA, Rafael Lopes de. Punk: cultura subversiva e protesto, as mutações ideológicas

de uma comunidade subversiva – São Paulo 1983/1996. 1997. Dissertação (Mestrado

em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 1997.

TURRA NETO, Nécio. Múltiplas trajetórias juvenis em Guarapuava: territórios e

redes sociabilidade. 2008. Tese (Doutorado em Geografia), Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita Filho. Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita”,

Faculdade de Ciência e Tecnologia, Presidente Prudente – SP, 2008.

VAINFAS, Ronaldo. História cultural e historiografia brasileira. História: Questões e

Debates, Curitiba, n. 50, p. 217-235, jan./jun. 2009.

WHEELER, Jesse Samba Samuel. Dark matter towards an architectonics of rock,

place, and identity in Brasília's utopian underground. 411 p. 2007. Tese (Doutorado

em Etnomusicologia), University of California, Los Angeles/CA, 2007.

RECEBIDO EM: 27/09/2018 PARECER DADO EM: 21/02/2019