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Tese de dissertação
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Bruno Guimares Martins
Tipografia popular Potncias do ilegvel na experincia do cotidiano
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Comunicao Social da Universidade Federal de Minas Gerais
como requisito parcial obteno do ttulo de mestre.
Linha de Pesquisa: Comunicao e sociabilidade contempornea
rea de concentrao: Meios e produtos da comunicao
Orientador: Prof. Doutor Paulo Bernardo Ferreira Vaz
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da ufmg
2005
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Gostaria de deixar aqui registrados os meus sinceros agradecimentos ao
programa de ps-graduao em Comunicao Social da UFMG, representado
por todos os seus professores e funcionrios, que acolheram to generosamente
o pesquisador e seu objeto de pesquisa. Quero tambm agradecer especialmente
ao meu orientador, Paulo Bernardo Vaz, que foi, desde o incio, um entusiasta do
projeto, guiando e confundindo seu percurso com um perfeito equilbrio entre apoio,
liberdade e crticas; ao professor Mike Hanke e professora Maria Beatriz Bretas,
que, no parecer de aprovao do projeto junto ao colegiado, acrescentaram,
cada um a seu modo, consideraes que foram incorporadas pesquisa; aos
professores Bruno Souza Leal, Csar Guimares, Regina Mota e Vera Regina Frana,
cujas aulas, acredito, podem ser ouvidas durante a leitura desta dissertao; ao
professor Jalver Betnico, pelas observaes valiosas e pela insistncia na importncia
do carter poltico do projeto; aos colegas da turma de ps-graduao, pela
amizade, pela boemia e pelas imensurveis contribuies dentro e fora da sala de aula;
aos colegas da lista Tipografia Tpica cujas discusses foram incorporadas de
alguma forma ao texto da dissertao; a Andr Brasil, pelo interesse e pela indicao
do texto de onde foi retirada a epgrafe inicial do trabalho; a Fernanda Goulart, pelas
crticas ao mesmo tempo carinhosas e rigorosas; a Pedro Dolabela, pela leitura atenta
de um iseriano; a Roberta Veiga, pelo entusiasmo e ateno dedicados pesquisa
desde seu anteprojeto; a Rodrigo Tavares, pelas dicas de traduo e pela discusso de
temas variados; a Ana Martins Marques, cujas contribuies ultrapassaram em muito
a cuidadosa reviso, fazendo esta dissertao legvel aos seus futuros leitores; a
Marclio Frana Castro, por todas as idias interessantes; ao meu pai, pelo afeto e
pelas preocupaes metodolgicas; a minha me, pelos almoos de domingo; a todos
os amigos que colaboraram com a elaborao desta dissertao, incentivando ou
simplesmente silenciando suas crticas.
Finalmente, dedico este texto a Renata, pelo apoio incondicional e pela
pacincia necessria para ceder diante da perturbao.
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Na extrema conseqncia do empirismo, o sentido est totalmente
imerso no rudo, o espao da comunicao granular, o dilogo
est condenado cacofonia: o transporte da comunicao
transformao perene. Ento, o emprico estritamente o rudo
essencial e acidental.
Michel Serres
4
Sumrio
1. introduo ............................................................................... 6
2. um objeto multiforme
2.1 Paisagens tipogrficas .......................................................... 10
2.2 Ocupao e transio: um objeto da passagem ........................... 15
2.3 Imagens tipogrficas ................................................... 16
2.4 O recorte do ilegvel .................................................... 18
2.5 Corpus de anlise ...................................................... 21
3. tipografia e comunicao
3.1 Por uma cincia do comum ............................................................................................................
26
3.2 A tipografia como ato comunicativo ........................................ 27
3.3 Um breve histrico: da caverna ao computador........................... 31
3.4 Tipografia clssica e experimental .......................................... 36
3.5 A tipografia popular ................................................... 42
4. potncias do ilegvel
4.1 Leitura de caracteres excntricos ......................................... 49
4.2 Uma ttica de fala ..................................................... 53
4.3 O significado suspenso ................................................. 63
4.4 Do esttico no pragmtico ......................................... 69
4.5 Contexto, presenas e sentidos ...................................... 71
4.6 A materialidade dos meios ............................................ 74
5. s margens do legvel
5.1 Perceber o ilegvel ............................................................ 78
5.2 Maneiras de olhar, maneiras de dizer ..................................... 98
6. referncias bibliogrficas .................................................... 102
5
resumo
margem das mdias convencionais, a tipografia popular um ato comunicativo que
aparece discretamente no espao cotidiano. Forma annima de comunicao, essa
escrita do homem ordinrio capaz de estimular a atividade criadora do leitor de seus
caracteres excntricos e irregulares. Quando os princpios definidores da legibilidade
se fazem ausentes, a letra distancia-se da idia de um signo transparente e o ilegvel
emerge como potencializador de sentidos. Esse processo de leitura incomum,
proporcionado pelas singularidades formais e contextuais da tipografia popular,
constitui o objeto desta dissertao. A partir de dez imagens da tipografia popular,
selecionadas por seu carter de excentricidade em relao aos parmetros de
legibilidade que norteiam a tipografia clssica, procura-se investigar o modo como, na
recepo desses textos, a ateno do leitor conduzida, simultaneamente, para a
materialidade dessas manifestaes e para a complexidade do espao cotidiano.
palavras-chave
comunicao, cotidiano, tipografia, ilegvel, leitura.
Summary
Besides traditional medias, popular typography is a discrete communicative act in
everyday life space. These anonymous writing of ordinary people is capable to
estimulate a criative activity on the reader of their eccentric and irregular characters.
When the principles of legibility are not present, type emerge as an enpowerment of
meaning, becaming far from the idea of a transparent sign. This unusual reading
process made possible by formal and contextual singularities of popular typography
is the main object of this dissertation. Since ten images of popular typography, chosen
by their eccentricity from the rules of lebilility in classic typography, is made an
investigation of how, during reading process, the reader attention is guided
simultaneously for the materialities of these texts and for the complexity of everyday
life space.
Key words
communication, everyday life, typography, illegible, reading.
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1. introduo
Nuvens de letras-gafanhotos, que j obscurecem o sol do
suposto esprito aos habitantes das metrpoles, tornar-se-o
cada vez mais espessas com a sucesso dos anos.
Walter Benjamin
Na cidade contempornea onde os muros invisveis e a velocidade das redes
aprisionam e impem ritmos acelerados percepo, o caminhar desinteressado do
flneur no parece mais ser possvel. Os espaos pblicos surgem como esvaziados,
espaos limite que seguem, contudo, habitados. Em meio saturao e a
homogeneizao do espao urbano, subsistem, no entanto, vestgios de vozes, formas
de apropriao (e de reapropriao) desse espao que resistem s regras que os
constituem.
As cidades formam diferentes paisagens tipogrficas: aqui e ali, placas de
sinalizao, fachadas comerciais, vitrines, outdoors, painis eletrnicos, empenas,
faixas, bandeirolas, estandartes, panfletos, cartazes lambe-lambe revelam a
onipresena da escrita. A sinalizao e a publicidade seguem no s um conjunto de
leis mesmo que muitas vezes desrespeitado que determinam seu posicionamento
no espao, mas tambm obedecem a regras de linguagem que preservam sua eficcia
comunicativa. Como exemplo podemos citar a esttica da legibilidade universal das
tipografias utilizadas nas placas de sinalizao e dos transportes urbanos, ou o
conhecido limite de doze palavras que impe uma necessria rapidez leitura dos
ttulos de outdoors. Se a fascinante rebeldia dos graffiti e das pichaes, com seus
limites difusos, suscita discusses diversas e apaixonadas, propomos voltar o nosso
olhar para outras manifestaes, que surgem discretamente no espao urbano, na
maioria das vezes desvinculadas de contedos culturais ou identitrios declarados.
Essas manifestaes, valendo-se de tticas sutis, se contrapem e se misturam s
estratgias da publicidade e da rebeldia estetizada. Devido a uma de suas
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caractersticas o carter democrtico de sua produo, pois potencialmente podem
ser realizadas por qualquer um , vamos cham-las de tipografia1 popular.
So inscries que invadem paredes, muros, edifcios, objetos, pessoas, chos;
so letras produzidas manualmente que surgem em qualquer local onde exista uma
demanda de comunicao: estabelecimentos comerciais, beira de estrada,
encruzilhadas, entradas de residncias, praas, parques, mercados, banheiros
pblicos No existem regras que determinem seu estilo ou sua posio no espao.
Mas se sua localizao pode parecer aleatria, devemos lembrar que uma demanda de
comunicao sempre est orientada para algum, para um outro. Diferentemente das
hermticas pretenses de demarcao territorial presentes nos traos de assinatura
dos chamados pichadores, essas inscries tm sua razo primeira de ser no prprio
ato de comunicar, esto ali para serem lidas.
Alm da intencionalidade comunicativa, a tipografia popular caracteriza-se por
utilizar tcnicas de produo manuais, s vezes bastante precrias. O desenho de uma
letra nunca ser idntico ao de outra, que se repete mais frente. Mesmo quando se
percebe uma continuidade no estilo, ou uma maior habilidade tcnica, a familiaridade
improvvel. Esses desenhos de letras e suas composies geralmente diferem
daqueles aos quais um leitor experimentado se habituou, ou seja, configuram-se, em
relao tipografia tradicional, como desenhos excntricos. Sabemos que o desenho
das letras, a composio, o espaamento entre as letras e entre as linhas, alm de todas
as variaes que compem a tipografia (tamanho, contraste, cor, etc.) so elementos
determinantes para a produo de sentido. O significado de um determinado texto
no dado apenas por seu contedo semntico, mas tambm por sua imagem, por
seu desenho, por sua tipografia. Quando a imagem da letra explicitada em desenhos
e composies singulares, o leitor obrigado a rearranjar constantemente seus
parmetros e expectativas de leitura, promovendo uma atividade criadora durante o
processamento do texto. O ilegvel presente na tipografia popular provoca uma
oscilao entre a percepo e a significao de uma determinada placa ou inscrio,
possibilitando, assim, a emergncia de outros sentidos.
Circulam na rede e-mails cujos ttulos (por exemplo, Noa Lingua
Portugueza) revelam a inteno de ressaltar os tropeos gramaticais e ortogrficos
1 O termo tipografia utilizado aqui em um sentido amplo, direcionado no s criao do desenho das letras, mas tambm de sua composio no espao, assim como ser melhor desenvolvido
8
presentes nesses grafismos annimos. Sem dvida, o riso uma reao comum na
recepo de muitas dessas manifestaes (FIG. 1). Porm, o que nos fascina a no so
os desvios da lngua ou seu efeito cmico. Uma leitura superficial poderia apresentar
esses grafismos como simples exemplos de curiosidades gramaticais ou transcries
da linguagem oral; entretanto, essas constataes esto longe de revelar todas as suas
potencialidades. Sabemos que nenhum texto diz apenas aquilo que desejava dizer,
pois as intenes do enunciador (nem mesmo em um texto pragmtico!) no so
capazes de aprisonar o leitor durante o ato da leitura. Se em geral no h, na
tipografia popular, complexidade frasal, encontramos nesses textos uma grande
complexidade espacial, material e temporal. Ao mesmo tempo que o leitor realiza um
processo redutor, ao compreender o significado de uma determinada placa ou
inscrio, impem-se a ele outras caractersticas contextuais e visuais singulares que o
impelem para alm dos significados imediatos.
Tomando emprestadas as idias de Bergson (1999), sabemos que o corpo
necessita de um certo tempo para responder aos estmulos do mundo. Quanto mais
curto o tempo para a devoluo desses estmulos, mais mecnicas sero as respostas.
Por outro lado, quanto mais distendido o tempo, mais elaboradas sero essas
respostas. A partir de elementos que bloqueiam a ao imediata, a percepo
liberada e somos capazes de ultrapassar o objeto percebido e alcanar,
progressivamente, outras camadas da realidade. Os fracassos de reconhecimento
deslocam o sujeito para um estado de suspenso em que o prolongamento sensrio-
motor momentaneamente interrompido, situando-o no campo das potencialidades,
do possvel, do virtual. Ao desacelerar (ou, muitas vezes, bloquear) o acesso imediato
ao contedo, a ilegibilidade da tipografia popular coloca o leitor em um estado de
suspenso, possibilitando percepes outras, diversas da apreenso de contedos
semnticos.
O fazer tipogrfico, de acordo com o designer Bruce Mau (2000), est
fundamentalmente relacionado com a idia de dar forma ao tempo (shaping time).
No universo das letras, o que d forma nossa leitura (e ao nosso tempo de leitura)
a tipografia. Se na atividade da leitura a concentrao de nossos esforos encontra-se
na ateno cognitiva quando lemos nossa ateno se direciona principalmente para
o contedo do que estamos lendo , temos, concomitantemente, uma outra ateno, a
no tpico do terceiro captulo: A tipografia popular.
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ateno associativa, que est ligada percepo dispersa nos cinco sentidos. Na
tipografia clssica a arbitrariedade do signo lingstico nos faz buscar o significado de
um determinado texto sem que nos atenhamos forma da letra; ora, justamente
com a inverso desse movimento que o ilegvel institui uma nova temporalidade
leitura. A tipografia popular subverte a hierarquia das atenes surgindo como um
signo opaco, cujos significados se constituem a partir da prpria materialidade de
suas formas. O potencial de sentido da tipografia popular catalizado no leitor pela
frico entre suas referncias e o que lhe apresentado. A instabilidade formal retarda
a passagem do significante para o significado, fazendo emergir mltiplos sentidos
para textos simples como campainha, garagem ou cuidado com o co. Em
contraposio seletividade de vozes dos meios de comunicao de massa
encontramos nestas inscries polifnicas vestgios de presena nas paisagens
esvaziadas.
Figura 1 Fotografia realizada em banca de revistas no Rio de Janeiro, em que pode ser notado um
tom cmico na inscrio.
fonte camargo & soares, 2003. p. 13.
10
2. um objeto multiforme O olho percebe uma frase graficamente contorcida em forma de rosa:
simultaneamente ele olha a flor e l a frase. A percepo do texto se
desdobra () A leitura se enriquece com toda a profundeza do
olhar.
Paul Zumthor
2.1 Paisagens tipogrficas
Vivemos imersos no universo da linguagem. Estamos cercados de letras e
smbolos por todos os lados. Nas comunidades urbanas, o capitalismo expe sua
fora em painis luminosos gigantescos; crianas so capazes de identificar alguns
smbolos e marcas antes mesmo de serem alfabetizadas. A escrita se faz onipresente,
acenando no s com sua tradicional funo de domnio da informao e
transmisso do saber, mas com imponncia visual. Nosso cotidiano revestido por
uma profuso tipogrfica que vai da bula de remdio sinalizao do trnsito, dos
painis eletrnicos interface das telas, dos livros aos graffiti. Em meio a essa grande
diversidade de paisagens tipogrficas, a protagonista desta dissertao ser a
tipografia que chamamos de popular. As manifestaes tipogrficas populares
utilizam-se de tcnicas manuais e tm como caracterstica principal a apropriao do
seu contexto de insero. Essas manifestaes tipogrficas surgem, inicialmente, em
qualquer local onde exista uma demanda de comunicao. So avisos, placas,
inscries, advertncias, recados, assinaturas, pensamentos, anncios de produtos ou
servios que tm por objetivo sinalizar, anunciar, demarcar, avisar, ou seja: comunicar
algo. Suas formas tm por destino o olhar do outro, desejam ser vistas, desejam ser
lidas. Na maioria das vezes possuem proposies pragmticas que dependem da
decodificao para que se realizem.
A inteno de comunicar e o movimento de se apropriar de uma ocasio so,
portanto, caractersticas definidoras da tipografia popular. No tarefa fcil
encontrar especificidades nesse objeto multiforme que se configura distintamente em
cada ocasio. Assim como so singulares a voz e a caligrafia, cada indivduo, cada
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ocasio faz surgir, a partir de uma mesma matria-prima lingstica, desenhos e
composies nicos. No entanto, possvel distingir, inicialmente, dois padres:
a) placas produzidas por pintores-letristas profissionais, que so utilizadas
em fachadas e interiores de estabelecimentos comerciais, como
supermercados, mercearias, aougues, padarias, lanchonetes, sacoles,
etc. (fig. 2 e 3);
b) placas e inscries realizadas por no-profissionais, annimos,
ambulantes, comerciantes, etc.
Enquanto no desenho das letras produzidas pelos pintores-letristas percebe-se
uma certa regularidade, devido habilidade do profissional, no segundo padro
pode-se observar uma maior imprevisibilidade nos desenhos e composies, causada
pela falta de domnio tcnico dos seus produtores. Mas apesar dessa distino, em
ambos os casos as tcnicas de produo so manuais e, quase sempre, precrias.
Sendo assim, tanto em um caso quanto em outro, a regularidade improvvel, ou
seja, uma letra nunca ser idntica outra e, mesmo quando se percebe uma
continuidade no estilo, ou um maior domnio de uma determinada tcnica, os
desenhos distanciam-se das formas convencionais a que estamos habituados.
Justamente por isso devemos estar atentos para as limitaes dessa diferenciao, pois
o profissional que em muitos casos curiosamente grafa junto sua assinatura a
palavra arte pode produzir uma tipografia carregada de interferncias em que
ser difcil reconhecer com clareza a mensagem grafada; por seu lado, o no-
profissional, eventualmente, pode-se investir de uma habilidade tal que sua
composio ir se aproximar do trabalho dos pintores-letristas.
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Figura 2 Placa produzida por pintor-letrista
onde se pode ler a palavra arte integrada
assinatura.
fonte camargo & soares, 2003. p. 50.
Figura 3 Inscrio feito por pintor letrista
em que pode ser observada uma regularidade
formal.
fonte camargo & soares, 2003. p. 29.
Uma vez que no existe uma sistematizao consensual e aprofundada sobre o
tema, vamos comparar a tipografia popular com outras manifestaes das quais se
aproxima. A escolha dessas manifestaes as mdias externas da publicidade, os
graffiti e a caligrafia se baseia em pontos de aproximao e contraposio que iro
contribuir para delimitar melhor o que chamamos de tipografia popular.
A presena macia de publicidade nos espaos pblicos pode ser notada,
muitas vezes inadvertidamente, em outdoors, empenas, cartazes, fachadas, vitrines,
folhetos, painis eletrnicos, dirigveis, etc. Sabemos que os processos de criao e
produo da publicidade so baseados, principalmente, em tecnologias digitais, o que
13
faz com que suas mensagens possam ser reproduzidas indefinidamente. A publicidade
pode compartilhar o mesmo espao com a tipografia popular, mas devemos apontar
aqui algumas diferenas entre as duas. Em primeiro lugar h uma diferena visvel em
relao s tcnicas de produo, uma vez que a tipografia popular se utiliza de tcnicas
manuais variadas, o que impossibilita, ao menos em princpio, sua reprodutibilidade.
Curiosamente, ocorre na publicidade uma apropriao do carter irreprodutvel da
tipografia popular, com a inteno de esquentar ou tornar mais real um
determinado layout (fig. 4). Outra diferena relevante em relao publicidade diz
respeito ocupao do espao. Enquanto a publicidade possui um espao
institucionalizado, ou seja, existe uma regulamentao que determina onde e de que
forma a publicidade ser veiculada nos espaos pblicos ( claro que estamos cientes
das inmeras transgresses que ocorrem s determinaes legais, mas no cabe aqui
entrar nessa discusso), a tipografia popular no possui um conjunto de normas que
regulem sua posio no espao. Apesar do vazio regulador, a ocupao no
aleatria; como observamos anteriormente, a tipografia popular ocupa o espao a
partir da apropriao de uma determinada ocasio, sempre relacionada com a
inteno de comunicar.
Figura 4 Marca utilizada no lanamento do filme carandiru em que se pode notar claramente a
inspirao na forma das letras escritas com ranhuras nas paredes das celas. Percebemos na palavra
carandiru o uso de uma tcnica recorrente no desenvolvimento de famlias tipogrficas
inspiradas em temas populares, com a realizao de dois desenhos de algumas das letras (no caso
em questo, isso pode ser percebido no a e o r), como uma tentativa de reproduzir a
irregularidade do desenho mo.
fonte http://carandiru.globo.com/
Como distingir a tipografia popular do graffiti? O graffiti constitui, sem
sombra de dvidas, um objeto que possui um enorme potencial comunicativo e no
s compartilha dos mesmos espaos, mas, em alguns casos, das mesmas tcnicas e
suportes da tipografia popular. No entanto h algumas diferenas marcantes:
enquanto o graffiti possui uma linguagem relativamente organizada e est
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explicitamente ligado rebeldia, contestao, afirmao da identidade e, at
mesmo, s artes plsticas, a tipografia popular pode ser realizada por qualquer um
que tenha uma demanda de comunicao e no se baseia em uma atitude
explicitamente contestatria. Sua inteno primeira o ato comunicativo. A tipografia
popular no busca o desenvolvimento de uma linguagem prpria, sua expresso se d
no movimento de reiterao da linguagem. Tambm no devemos confundir a
tipografia popular com as inscries indecifrveis (a no ser para um grupo restrito)
que interferem na paisagem das cidades. Ao contrrio da complexa codificao dos
grafismos dos pichadores, que tm seus apelidos ou os nomes de seus grupos
colocados nos locais mais improvveis, a tipografia popular , essencialmente, feita
com o objetivo de ser lida, de ser decodificada, de ser compreendida, mesmo que sua
posio nos parea muitas vezes discreta e seus caracteres, ilegveis.
A caligrafia talvez seja a manifestao da escrita que mais se aproxima da
tipografia popular. Ambas coincidem em seu aspecto gestual. No entanto, a caligrafia
feita visando a um nmero muito restrito de leitores (como, por exemplo, no caso de
um bilhete), ou mesmo ao prprio autor (no caso das anotaes pessoais), algumas
vezes com intenes artsticas ou decorativas (poemas caligrficos, endereamento
para convites). J a tipografia popular produzida para ser lida por um nmero
ilimitado de leitores; ela tem um carter pblico, mesmo que, muitas vezes, sua
insero no espao seja discreta. Enquanto a caligrafia se manifesta sempre no
movimento de seus instrumentos (canetas, lpis, penas, pincis, etc.) sobre um suporte
relativamente constante (papel), na tipografia popular no existe uma tcnica ou um
suporte predominante, pois sua forma de produo se transforma de acordo com a
insero no contexto. Apesar das visveis diferenas entre um bilhete pessoal e uma
placa localizada na rua, necessrio observar que a tipografia popular se aproxima
da letra caligrfica em sua expressividade, na espontaneidade da escrita que espelha o
gesto.
15
2.2 Ocupao e transio: um objeto na passagem
Entre as diferentes paisagens tipogrficas das cidades, a tipografia popular se
estabelece como uma apropriao singular da linguagem, uma voz de resistncia que
no se posiciona antagonicamente expresso institucionalizada, mas resiste a ela de
forma silenciosa. importante notar a enorme amplitude espacial da tipografia
popular, uma vez que uma demanda de comunicao pode surgir em qualquer lugar.
Alm dos espaos pblicos da cidade, no podemos desprezar outros espaos mais
restritos, como banheiros pblicos, o interior de estabelecimentos comerciais ou as
placas localizadas nas margens das estradas.
Afirmar que a tipografia popular situa-se na passagem significa incorporar ao
objeto sua perspectiva comunicacional. A passagem nunca fixa, ela se configura
sempre a partir do movimento, o espao constitudo como um entre, espaos de
cruzamentos, de encontros, de caminhos, de atravessamentos, de intersees.
necessrio ultrapassar a espacialidade delimitadora do objeto para apreend-lo nos
momentos fugazes em que se constitui. Se compreendermos a tipografia popular
como um meio que torna presente algo que estava ausente, devemos encar-la como
uma trajetria no tempo, que s se realiza na interao com o leitor-passante. O
produtor dessas inscries busca inscrever-se no espao, mas essa ocupao s se
realiza nos momentos de transio, quando o leitor-passante lana seu olhar sobre
elas, tentando decodific-las. A complexidade espacial de insero interfere na
constituio do sentido, pois atravessa o leitor-passante independentemente de sua
vontade. somente quando ele olha para as inscries da tipografia popular que seus
sentidos podem ser percebidos. Nosso objeto se situa, dessa forma, na inter-relao
entre as inscries e seus leitores, o que significa, em ltima instncia, que ele se situa
no encontro entre o produtor-inventor e o leitor-passante promovido pela percepo
das inscries.
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2.3 Imagens tipogrficas
H muito a tipografia j no entendida somente como desenhos que
representam algo; suas formas se revelaram portadoras de uma grande diversidade de
aspectos culturais, tcnicos e temporais. Observar a tipografia a partir de suas formas
um movimento importante para o raciocnio proposto. Apresentamos, ao longo da
dissertao, algumas imagens relacionadas com a histria da escrita e da tipografia, a
fim de delimitar e contextualizar o recorte do objeto, alm de exemplificar alguns dos
argumentos indicados. As imagens tm como funo no s ilustrar o texto, no
sentido forte do termo, mas tambm dar ao leitor a possibilidade de experiment-las
visualmente. Podemos separar as imagens em dois grandes grupos: exemplos da
histria da escrita e demais imagens ilustrativas e imagens de tipografia popular.
As imagens da histria da escrita tm como funo apresentar exemplos de
algumas transformaes tcnicas e formais e relacion-las com a constituio de
sentido em diferentes momentos. Esses exemplos, extrados de publicaes diversas,
revelam de que maneiras a visualidade da tipografia se materializa para ns a partir de
transformaes histricas. Como referncia ao recorte proposto para o objeto foram
escolhidos alguns exemplos dentro do universo conhecido como tipografia clssica.
a partir desses exemplos que se define o que aceito culturalmente como legvel. Por
outro lado, para configurar um horizonte de contraposio, foram escolhidos
exemplos de tipografia que no se encaixam no ideal clssico e que ressaltam aspectos
imagticos da tipografia. Alm dessas imagens da histria da escrita e da tipografia,
outras imagens ilustrativas auxiliam na delimitao do objeto e na compreenso de
sua lgica de produo.
A construo da tipografia popular como objeto para esta pesquisa se deu a
partir da prpria experincia do pesquisador, que, caminhando pelas ruas, deparou
com diversas das suas manifestaes e passou a se perguntar por que elas o
fascinavam tanto. Parte dessa experincia foi registrada e, dentre dezenas de fotos
feitas no espao urbano da cidade de Belo Horizonte nos ltimos cinco anos, dez
foram escolhidas para constituir o corpus de anlise da pesquisa. O recorte espacial e
temporal se justifica pela prpria experincia do pesquisador, uma vez que reside na
cidade e coleta, h algum tempo, imagens de tipografia popular encontradas em seus
trajetos. Algumas excurses exploratrias para registrar imagens foram realizadas
17
como forma de tornar os trajetos do pesquisador um pouco mais aleatrios, j que a
definio de um lugar especfico (ou de um trajeto especfico) iria contrariar a prpria
natureza ocasional do objeto. O desenvolvimento de um grande nmero de famlias
tipogrficas digitais a partir de uma inspirao popular e o aparecimento recente de
publicaes como O Brasil das placas (fig 5) e a revista Tupigrafia apontam a
relevncia do tema na atualidade.
Figura 5 A publicao recente do livro O Brasil das Placas pela editora Abril veio confirmar o
crescente interesse nas manifestaes tipogrficas populares. O jornalista e editor especial do Guia 4
Rodas Jos Eduardo Camargo realizou, por todo o Brasil, registros fotogrficos de vrias placas,
faixas, inscries, fachadas, etc. Neste exemplo, uma placa encontrada em Tabatinga, sp.
fonte camargo & soares, 2003. p. 69.
18
2.4 O recorte do ilegvel
Dentre as imagens registradas no espao urbano de Belo Horizonte, dez foram
escolhidas para compor o corpus desta dissertao, e sero alvo de uma anlise mais
aprofundada no captulo 5. A seleo das imagens foi realizada tendo como
parmetro as caractersticas de excentricidade em relao tipografia clssica. Assim,
o objeto desta dissertao se constitui inicialmente a partir de suas diferenas em
relao idia convencional de que a tipografia funcionaria como uma ponte de livre
acesso para o significado. Esse recorte se justifica pelo fato de compreendermos que a
fora da tipografia popular est justamente nos elementos que a tornam formalmente
singular. Na tipografia popular a excentricidade visual que desvia o leitor do
significado imediato dos enunciados, colocando-o diante de uma multiplicidade de
sentidos a serem percebidos no momento da leitura. Quando a inscrio no
imediatamente compreendida pelo leitor, ou seja, quando de uma forma ou de outra
ela se torna ilegvel, seus sentidos possveis so potencializados.
Ao tratar aqui de manifestaes tipogrficas que nascem mais de uma pulso
do que de um planejamento de escrita, nas quais procuramos a potencialidade do
ilegvel, temos como contraponto as preocupaes com a legibilidade tipogrfica
pertinentes ao meio editorial. Muitos especialistas europeus e americanos j se
dedicaram a estudos sobre a legibilidade, dentre os quais Franois Richaudeau (1979,
111-122) que desenvolveu um manual que aponta algumas regras que otimizam a
legibilidade da tipografia para livros didticos, a saber:
a) a dimenso dos caracteres (ou corpo da letra),
b) o desenho dos caracteres (ou esqueleto: minsculas, maisculas, itlicas),
c) o estilo dos caracteres (ou detalhes da execuo: famlias tipogrficas),
d) o espao entre as letras e o espao entre as palavras,
d) o alinhamento das palavras,
e) o comprimento das linhas,
f) o espao entre as linhas,
g) tintas e papis (ou o contraste do texto impresso sobre o suporte).
Para cada um desses tpicos existem regras que, se seguidas em seu conjunto,
produzem composies de textos com um alto grau de legibilidade. Sabemos que esses
19
princpios funcionam para o texto impresso, pois foram formulados para serem
aplicados em livros didticos. Entretanto, pretendemos utiliz-los como um
contraponto para identificar o ilegvel na tipografia popular. Dentro do universo da
tipografia popular, existem alguns exemplos que se aproximam das caractersticas de
legibilidade, como nos casos de composies realizadas por alguns pintores-letristas
que, devido a um bom domnio tcnico, realizam composies legveis. Sendo assim, a
tipografia popular produzida por profissionais e que se aproxima de um estilo
reconhecvel ou dos conceitos de legibilidade da tipografia clssica foi desconsiderada
para anlise. A opo pela tipografia excntrica se justifica porque acreditamos que
justamente na singularidade de suas formas que a tipografia popular encontra sua
maior potencialidade. Partimos, portanto, da idia da ilegibilidade como
potencializadora de sentidos. As dez imagens escolhidas, assim, no nos revelam
situaes tpicas, mas a grande diversidade de configuraes do objeto.
Como vimos, as manifestaes aqui estudadas so produzidas para serem
lidas, mas o que acontece quando seus leitores deparam com inscries ilegveis?
importante observar que buscamos no ilegvel um ponto de partida para as anlises
que visam, em ltima instncia, a apontar quais so as experincias de construo de
sentido possveis ao leitor da tipografia popular. A tipografia popular se constitui
como um ato comunicativo revestido de rudos, e justamente da dificuldade de
leitura imposta aos seus leitores que surge sua fora. Considerando intangvel o saber
tcnico e cultural de seus annimos produtores, procuramos identificar na
materialidade do objeto os fatores que determinam a ilegibilidade dos textos. Na
maioria dos casos notamos claramente a inteno de comunicar (por exemplo pelo
tamanho exagerado de uma inscrio), mas, mesmo assim, sua aparncia surge como
excntrica, como ilegvel. Ou seja, o ilegvel no surge como inteno, mas como
conseqncia de fatores extrnsecos e intrnsecos habilidade do produtor. Assim
como os erros de grafia, acidentes no ato de escrever e nas tcnicas utilizadas para
as inscries podem fazer com que a tipografia popular torne-se ilegvel: uma rasura
aparente, interferncias de terceiros, sobreposies, ao do tempo, a
imprevisibilidade de reao do suporte tcnica de inscrio, etc. No entanto, isto no
deve ser tomado como uma regra determinante, pois, em alguns casos, podemos
identificar o ilegvel como proposio, j que existem inscries secretas ou
codificadas, como uma gravao das iniciais dos enamorados sobre o caule de uma
20
rvore. Tambm devemos lembrar que no s os desenhos das letras, mas tambm o
contexto de insero no espao, podem determinar o grau de dificuldade ou de
facilidade da leitura: o excesso tipogrfico em um quadro de anncios de empregos,
onde dezenas de letras diferentes disputam um espao reduzido, dificulta a fixao do
olhar do leitor, atrapalhando o acesso informao desejada. Temos ento que o
ilegvel determinado menos pela inteno, e mais pela materialidade e pelo contexto
de insero espacial da inscrio.
Para organizar nosso corpus de anlise vamos organizar as imagens a partir
dos seguintes itens descritivos, que tm por objetivo apresentar o contexto de insero
e as tcnicas utilizadas para produzir as inscries escolhidas:
data e local do registro fotogrfico;
insero no espao breve descrio do contexto e da insero espacial da
inscrio:
interno: banheiros, interior de estabelecimentos comerciais, etc.;
externo: espao pblico (ruas, avenidas, estradas, etc.) com circulao de carros e pedestres;
mvel: quando a inscrio no est presa a um local fixo e circula pelos espaos;
tcnica e suporte: descrio das tcnicas e dos suportes utilizados pelas a
inscries;
tamanho: tamanho aproximado das placas e das inscries um dado
importante, uma vez que o tamanho dos caracteres pode vir a definir sua
legibilidade;
transcrio do texto: transcrio dos textos identificados nas mensagens.
21
2.5 Corpus de anlise
Figura 6
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Agosto de 2002, av. do Contorno,
Belo Horizonte.
Insero no espao
Tapume na entrada de uma obra de
construo civil localizado em uma
avenida com grande circulao de
pedestres.
Tcnica e suporte
Giz e cermica sobre tapume de
compensado.
Tamanho
200 x 40 cm.
Transcrio do texto
ca(n)mpain(m)ha.
Figura 7
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Novembro de 2002, av. Bias Fortes,
Belo Horizonte.
Insero no espao
Estabelecimento comercial onde o
motoqueiro deixou seu capacete sobre
o balco.
Tcnica e suporte
Ranhuras e pintura sobre capacete.
Tamanho
40 x 40 x 40 cm.
Transcrio do texto
sou de jesus no sou nada.
22
Figura 8
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Outubro de 2001, av. do Contorno,
Belo Horizonte.
Insero no espao
Banca de camel colocada sobre a
calada de uma avenida
com grande circulao de pedestres.
Tcnica e suporte
Caneta esferogrfica e caneta hidrocor
sobre papelo.
Tamanho
40 x 25 cm.
Transcrio do texto
porang(9)aba.
Figura 9
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Outubro de 2002, av. Antnio Carlos,
Belo Horizonte.
Insero no espao
Porto de residncia em avenida de
grande circulao.
Tcnica e suporte
Durex colorido sobre placa de metal.
Tamanho
45 x 15 cm.
Transcrio do texto
lava-se roupas.
23
Figura 10
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Julho de 2001, Rua Almandina, Belo
Horizonte.
Insero no espao
Porto de metal localizado em rua de
bairro
com pouca circulao de carros e
pedestres.
Tcnica e suporte
Spray sobre metal.
Tamanho
500 x 300 cm.
Transcrio do texto
No (no) estacione (estacione)
em(em) uso(uso) 24hs (24hs)
danger.
Figura 11
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Janeiro de 2002, cruzamento da Rua
Esprito Santo com av. Bias Fortes.
Insero no espao
Pedinte circulando entre os carros em
cruzamento de grande movimento.
Tcnica e suporte
Caneta hidrocor sobre cartolina
colorida.
Tamanho
65 x 45 cm.
Transcrio do contedo
triste . rotina . meajuda estou.
com. aids [voce . tem . corao,]
meajuda.preciso sobrevive.
obrigado que.deus.te.abeoa
aceito vale....
24
Figura 12
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Janeiro de 2002, sem local
determinado, Belo Horizonte.
Insero no espao
Nota recebida de troco em
supermercado.
Tcnica e suporte
Caneta esferogrfica sobre papel-
moeda.
Tamanho
14 x 6,5 cm.
Transcrio do texto
todas as pessoas que pe(r)gar est
nota de 1 real vai ter sorte,
assi(:) eudes de ribeiro pires.
Figura 13
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Janeiro de 2002, cruzamento de Rua
Cristina com Rua Viosa, Belo
Horizonte.
Insero no espao
Placa afixada no caule de uma rvore.
Tcnica e suporte
Tinta sobre placa de metal.
Tamanho
60 x 110 cm.
Transcrio do texto
lavador de carros, lavar
r$5,00, aspirar r$1,50, passo
produto encerar r$10,00, com
a cera do fregus, contato:
rubens rua cristina 968o
fundos so pedro tel: 2214880,
volte sempre!.
25
Figura 14
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Janeiro de 2002, av. Afonso Pena, Belo
Horizonte.
Insero no espao
Caixa de engraxate localizada em
avenida de grande circulao
no centro comercial da cidade.
Tcnica e suporte
Pintura sobre caixa de madeira.
Tamanho
50 x 30 cm.
Transcrio do texto
pedra bruta.
Figura 15
fonte Arquivo do pesquisador
Data e local do registro fotogrfico
Novembro de 2004, Praa Cairo, Belo
Horizonte.
Insero no espao
Fragmentos encontrados sobre o
passeio de uma rua residencial
de pouca circulao de pedestres.
Tcnica e suporte
Caneta hidrocor sobre papel.
Tamanho
21 x 15 cm.
Transcrio do texto
[...] de-se [...] a gs falar com
caitano.
26
3. tipografia e comunicao A forma no pode ser compreendida independentemente do
contedo, mas ela no tampouco independente da natureza do
material e dos procedimentos que este condiciona. A forma depende,
de um lado, do contedo e, do outro, das particularidades do
material e da elaborao que este implica.
Mikhail Bakhtin
3.1 Por uma cincia do comum
O progressivo distanciamento do discurso cientifco em relao ao discurso do
senso comum foi cristalizado, de acordo com Boaventura de Souza Santos (1989), a
partir do sculo xvii. A partir da a cincia tornou-se um campo autnomo, estranho
at mesmo ao prprio cientista, incapaz de vislumbrar a totalidade diante da crescente
especializao e do surgimento de novos campos de conhecimento. As contradies
encontradas pelas cincias sociais, criadora e objeto de seu prprio discurso, no so
resolvidas por meio das mesmas proposies lgicas das cincias naturais e
matemticas. Originado na burguesia do sculo xviii como senso mdio e universal e
transformado pela mesma burguesia ascendida ao poder em um conceito ilusrio
e superficial, o senso comum, com sua ambivalncia, deve ser encarado pelas cincias
sociais com ateno, uma vez que sua relao com o discurso da cincia marcada por
ambigidades. Apesar de seu vis muitas vezes conservador, interessa-nos aqui olhar
para o senso comum em seu carter de permeabilidade e resistncia.
... se certo que o senso comum o modo como os grupos ou classes subordinados
vivem a sua subordinao, no menos verdade que, como indicam os estudos sobre as
subculturas, essa vivncia, longe de ser meramente acomodatcia, contm sentidos de
resistncia que, dadas as condies podem desenvolver-se e transformar-se em armas de
luta. (santos, 1989: 37)
Se a cincia moderna constri suas bases ao se distanciar do senso comum,
privilegiando a relao epistemolgica eu/objeto, Santos prope uma nova forma de
27
se pensar a epistemologia a partir de uma dinmica relacional intersubjetiva e da
hermenutica. Essa desconstruo operada a partir de uma dupla ruptura
epistemolgica. Num primeiro momento ocorre um rompimento, um
distanciamento do senso comum, necessrio constituio de um discurso cientfico,
mas num segundo momento h uma negao dessa primeira ruptura, visando
contemplao de fenmenos que, principalmente para as cincias sociais, no se
encaixam no conceito de verdade cientfica. Uma desconstruo que no ingnua
nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipao e a criatividade da
existncia individual e social, valores que s a cincia pode realizar, mas que no pode
realizar enquanto cincia (santos, 1989: 42). Tudo que incerto, aleatrio ou
regido por regras pouco lgicas, como as atividades criadoras e a esttica, podem
finalmente ser inseridas dentro do discurso cientfico. Curiosamente, a cincia ps-
moderna uma cincia reencantada. dentro desse contexto que desejamos voltar o
nosso olhar para um objeto do universo do comum, um objeto que inicialmente
no apresentaria cincia elementos relevantes para anlise. Ressaltar a importncia
da tipografia popular como um objeto para os estudos da comunicao significa
olhar para um lugar desconhecido e desprezado, no qual, contudo, podemos
vislumbrar a existncia de uma polifonia de vozes excludas que, se no ousam gritar,
murmuram uma existncia vigorosa.
3.2 A tipografia como ato comunicativo
Cada cultura transfere sua maneira marcas para a forma de sua escrita, como
poderamos apontar em inmeros exemplos: os caracteres cuneiformes dos sumrios,
os hierglifos egpcios, os ideogramas chineses, a caligrafia rabe, as lpides romanas,
a escrita gtica ou uma das fontes-padro do Windows. Desde os primeiros
pictogramas inscritos nas paredes das cavernas at os alfabetos digitais, miramos um
enorme abismo de transformaes tcnicas e culturais. Mas o que existe de comum
entre o homem pr-histrico que grava suas mos nas paredes da caverna e o homem
contemporneo que envia e-mails? Poderamos dizer, sem nos aprofundar nas
questes especficas da arte rupestre ou da web, que os dois esto inseridos em uma
situao de comunicao. Ambos se utilizam do ato de inscrever/escrever para
28
comunicar. Se o primeiro faz a sua marca com as prprias mos, sem a utilizao de
um sistema de signos organizado, o segundo se utiliza no s de um sistema de signos
complexo, mas de tecnologias informticas sofisticadas que conjugam eletrnica e
matemtica.
Vamos tomar a linguagem como ponto de partida para pensar as interaes
sociais. Lembrando os fundamentos da sociologia do conhecimento, exposta no
livro A construo social da realidade, de Luckmann e Berger, podemos certamente
repetir que vivemos "em um mundo de sinais e smbolos todos os dias" (2002: 61). A
vida cotidiana , para ns, o espao em que experimentamos a realidade. Sabemos que
a expressividade humana capaz de objetivaes ao se utilizar da linguagem. O
cotidiano se baseia sobretudo na linguagem e por meio dela que compartilhamos o
mundo com nossos semelhantes. Ao apreender a linguagem, apreendemos no s um
contedo enunciado, mas a prpria realidade da vida cotidiana. O abismo que se faz
entre a nossa compreenso subjetiva e a realidade somente pode ser transposto pela
linguagem. A compreenso do outro que torna o existir possvel. Ao ultrapassar a
expresso direta do aqui e agora, efetivada na conversa face a face, a linguagem
possibilita ao homem acumular e transmitir significados atravs das geraes. O
inatingvel linguagem descritiva encontra alento no simblico, podendo nos levar a
regies distantes da nossa experincia cotidiana. Ao vivificar constantemente sinais e
smbolos construmos e apreendemos uma realidade subjetiva e compartilhada. O
movimento de experimentar o mundo est, dessa forma, mediado pela linguagem a
partir de um processo dialtico contnuo de interiorizao (de uma realidade objetiva)
e exteriorizao (de uma realidade subjetiva). No se trata de compreender a
linguagem como esttica e representativa, mas como capaz de expressar subjetividades
e tecer relaes. A realidade construda a partir da linguagem e se realiza na
linguagem, e so as inter-relaes entre sujeito, sociedade e linguagem que constituem
um estar no mundo, que instituem uma diversidade de discursos estimulados pela
experincia. O desaparecimento da dicotomia indivduo e sociedade ressalta a idia de
que o sentido no dado, mas construdo: o sentido deve ser visto como
construo, em vez de processo de revelao de verdades institudas (borba, 2003:
26).
Diante da complexa textura mvel de relaes que configuram o indivduo e
seus vnculos sociais, no podemos caracterizar a relao eu/mundo e a vertiginosa
29
importncia dada linguagem de forma superficial. Para compreender o papel da
linguagem que constitui, e ao mesmo tempo, constituda pelo tecido social em que
est inserida, vamos compreender a palavra em seu carter dialgico, como apontado
por Bakhtin:
Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato
de que procede de algum, como pelo fato de que se dirige para algum. Ela
constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expresso a um em relao ao outro. Atravs da palavra, defino-
me em relao ao outro, isto , em ltima anlise em relao coletividade.
(bakhtin, 1992: 113)
O que percebemos aqui a dinmica da interlocuo. A palavra no definida
exclusivamente por seu locutor, no se diz apenas aquilo que se deseja, o prprio
desejo de dizer leva o outro em considerao. Vamos apontar aqui para uma possvel
transposio do raciocnio dialgico de Bakhtin para a tipografia. Sabe-se que o
objetivo primeiro da tipografia a leitura. Para que uma composio tipogrfica se
efetive como ato comunicativo o leitor deve ser considerado. Cada grupo de leitores
possui particularidades especficas. Vejamos o caso de crianas que ainda no
consolidaram a alfabetizao. A tipografia que pretende ser lida por essas crianas
deve levar em conta alguns aspectos, como o fato de elas no diferenciarem bem as
direes, podendo espelhar a leitura das letras (como o b, o d, o p e o q).
Pode-se afirmar, a partir dessa constatao, que uma tipografia para crianas deve ser
criada com desenhos de letras muito diferentes entre si, ou seja, no adequado que o
desenho do d seja simplesmente o b espelhado. Existem ainda muitos outros
aspectos que podem definir o desenho ideal de letras para crianas, mas nesse
momento, interessa-nos ressaltar como a considerao de um determinado grupo de
leitores interfere na forma final da tipografia.
No caso da tipografia popular, como vimos anteriormente, podemos sempre
perceber a existncia de uma inteno comunicativa, mesmo que essa inteno no se
efetive com o sucesso pretendido. O conjunto de leitores para o qual ela se direciona
flutuante, uma vez que seu posicionamento no espao faz com que seja acessvel,
aleatoriamente, a uma diversidade indefinvel de indivduos. Temos ento uma curiosa
dinmica comunicativa entre texto e leitor. A relao entre produtores e leitores no se
30
d na forma de um projeto, um conflito criativo que define seus atos de linguagem.
Nesse jogo agonstico, os produtores no podem ser classificados como
manipuladores ou simplesmente como propositores de dilogo. Pressionados em
parte pela escassez, os produtores incorporam em seus textos mesmo que de forma
inconsciente elementos que ultrapassam o que pretendiam transmitir. importante
lembrar tambm que nem sempre h uma informao a ser transmitida, pois
algumas das inscries tm contedos pouco objetivos como pensamentos, devaneios,
poemas, etc. Quando as realidades subjetivas dos produtores se realizam em intenes
comunicativas, novas formas de vivificar a linguagem surgem nos lances de um jogo
interativo com leitores indeterminados e com os inmeros contextos de produo e
insero.
... falar combater, no sentido de jogar, e [...] os atos de linguagem provm de
uma agonstica geral. Isto no significa que se joga para ganhar. Pode-se realizar
um lance pelo prazer de invent-lo: no este o caso do trabalho de estmulo da
lngua provocado pela fala popular e pela literatura? (lyotard, 1993: 17)
A constituio do campo da comunicao, para usar os termos de Braga
(2001), enfrenta as dificuldades geradas pela pouca idade das reflexes, pelo seu
carter de interdisciplinaridade singular, por sua aparente falta de especificidade em
relao a outras disciplinas das cincias sociais e, principalmente, pela falta de
delimitao de seu objeto. Sem negar a importncia das contribuies trazidas pelos
estudos realizados a partir da crescente importncia dos meios de comunicao de
massa, no podemos nos deixar seduzir por sua aparente onipresena, pois a
comunicao nos diz menos de um objeto especfico e mais da mediao, de como a
sociedade conversa, das interaes travadas entre os indivduos. Dessa forma, a
pesquisa em comunicao deve se configurar como uma perspectiva, como um olhar
comunicacional sobre os fatos sociais. Se compreendemos a tipografia como uma
configurao possvel da linguagem, olhar para a tipografia popular a partir de uma
perspectiva comunicacional significa ento, olhar para as interaes que, mediadas
pela tipografia, processam trocas simblicas e prticas entre os indivduos. O ato da
escrita constituindo-se como um delineamento de mapas identitrios. a importncia
do prprio ato, permeado por escolhas de um sujeito, independentemente de sua
31
projeo ou de seu contedo, que marca a diferena entre o comunicar e o identificar-
se. Vejamos a distino descrita por Braga entre a cultura e a comunicao:
O gesto de cultura [...], em situao de auto-explicitao, j no apenas
movimento de participao e de identificao do indivduo na comunidade.
tambm expresso consciente desse identificar-se comunicao (aos iguais e aos
diferentes) da opo feita. Corresponde a uma seleo entre diversos jogos e
atuao consciente sobre suas regras, via interao social. (braga, 2001: 35-36)
justamente no ato de auto-explicitao que encontramos os elementos
constitutivos da comunicao. Desvinculada de territrios identitrios tradicionais a
tipografia popular um ato comunicativo no qual escolhas so feitas, identidades so
explicitadas. Compreendemos ento a tipografia popular como um ato comunicativo
que se direciona a um leitor indeterminado, e justamente neste ato que podemos
observar uma comunicao ruidosa. Poderamos dizer que o desejo de se adequar a
um leitor indefinido uma das razes pelas quais a tipografia popular nos aparece
multiforme; a imprevisibilidade dos seus traos parece acompanhar a indeterminao
de seu pblico.
3.3 Um breve histrico: da caverna ao computador
O desenvolvimento da escrita e do alfabeto possibilitou o surgimento e o
avano da cincia, inaugurando novas maneiras de compreender e representar o
mundo. As configuraes da escrita no cessam de se transformar criando novas
formas e novos usos para esse notvel sistema de smbolos. O que a tipografia seno
a prpria materializao da escrita? no desenho de suas formas e em sua
configurao sobre o suporte que a escrita se realiza. A grande diversidade de tcnicas
da escrita nos mostra, em seu desenvolvimento, particularidades e caractersticas que
so conformadas culturalmente e historicamente. A pulso de escrever do homem se
realiza a partir de tcnicas (incises, o pincel, o clamo, o osso, o buril, o lpis, a pena,
os tipos mveis, a mquina de escrever, o computador) que do forma a signos
grficos sobre uma grande diversidade de suportes (a parede das caverna, a pedra, as
placas de argila, a cermica, o couro de animais, o pergaminho, o metal, a madeira, o
32
papel, as telas luminosas, etc.). As intrincadas relaes da forma com a tcnica e o
suporte nos apontam caminhos para compreender a importncia da materialidade da
escrita, pois aqui no parece haver uma relao simples de causa e efeito, ou seja, a
forma no determinada puramente por uma transformao tcnica. Em momentos
de transio uma forma anterior se reproduz e interfere na forma nova at que ela
adquira uma relativa autonomia, o que comprova que as formas esto em constante
movimento. Para citar apenas um exemplo, podemos nos lembrar da escrita egpcia
captulo importante na passagem de uma escrita pictogrfica para uma escrita
fontica. A rapidez demandada dos escribas para a realizao dos desenhos
complexos dos hierglifos (fig. 16) fez com que surgisse uma nova forma de
anotao a escrita cursiva hiertica (fig. 17), que adquiriu, com o passar do tempo,
caractersticas formais muito diferentes.
Figura 16 Os hierglifos egpcios mesclavam
trs espcies de smbolos: pictogramas (desenhos
estilizados), fonogramas (desenhos que
representavam sons) e determinativos (que
classificavam coisas e seres em categorias). Nesta
imagem, o calendrio de Elefantina gravado em
pedra por volta do ano de 1450 a.c.
fonte jean, 2003. p. 30.
Figura 17 Escrita cursiva hiertica e
instrumentos utilizados pelos escribas. A
escrita era, inicialmente, uma verso cursiva
dos hierglifos, at se distanciar
completamente de suas formas originais.
fonte jean, 2003. p. 39.
Algumas transformaes tcnicas e histricas importantes indicam as diversas
possibilidades de configurao da escrita, que se relacionam no s com invenes
tcnicas, mas com as mentalidades de cada perodo, de cada cultura. Para comear,
33
no podemos negar a importncia do aparecimento da escrita, que promoveu um
movimento de ruptura nas sociedades tradicionais, ao deslocar o lugar do
conhecimento da oralidade para a escritura, criando as bases para o pensamento
moderno. Inicialmente pictogrfica, pode-se dizer que a escrita ocidental surgiu da
necessidade de controle do tempo, das relaes comerciais e administrativas de uma
sociedade que se tornava cada vez mais complexa e mais numerosa. Quando o
homem se fixou no encontro dos rios Eufrates e Tigre, fez-se necessrio criar um
registro das estaes climticas para planejar a sazonalidade das colheitas e o
nascimento dos rebanhos; as trocas comerciais e questes relacionadas propriedade
tambm foram determinantes para a aurora da escrita. Alguns milnios depois das
tabuletas de cermica (fig. 18), a escrita comea a se democratizar, ampliando seu
alcance para alm das elites religiosas e aristocrticas. Isso se deu no ocidente, de
forma mais expressiva, aps a inveno dos tipos mveis de metal no sculo xv (fig.
19), quando Gutenberg inaugurou um captulo decisivo na histria do impresso.
Apesar de, sintomaticamente, a primeira publicao ter sido a famosa bblia de 42
linhas (fig. 20), poucas dcadas aps o surgimento das prensas tipogrficas elas j se
haviam espalhado por toda a Europa, propiciando uma grande difuso de livros
cientficos e clssicos da literatura, dentre outros. O aparecimento da litografia no
sculo xix libertou o desenho das letras das formas rgidas impostas pelos tipos de
metal (fig. 21) e abriu caminho para a inveno do sistema de impresso off-set em
meados do sculo xx. A revoluo industrial e a inveno da fotografia expandiram,
ainda no sculo xix, as possibilidades de representao no impresso e aumentaram
seu alcance para uma sociedade de massas.
O resgate da caligrafia pelo movimento arts&crafts, no final do sculo xix, se
contrape s experincias tipogrficas das vanguardas europias, sem, contudo,
deixar de apontar para um horizonte comum em que se percebe uma liberdade formal
da letra, quer seja por uma presena corporal ou mecnica. Ainda na Idade Mdia,
anteriormente inveno das prensas, as iluminuras e o desenvolvimento de alguns
alfabetos j apontavam claramente para uma dimenso visual da letra, partindo da
fuso do desenho ilustrativo com a escrita (fig. 22). Ao pensar nos dias de hoje, no
podemos deixar de citar o surgimento da informtica e do desktop publishing, que,
em conjunto com outras tecnologias, abriu possibilidades antes inimaginveis para o
design grfico e a tipografia. O digital inaugura um captulo de grande liberdade, no
34
qual percebemos no s uma revisitao dos mais diversos estilos, como o surgimento
de novas direes: sobre a superfcie das telas o pixel substitui a tinta, fazendo as
letras surgirem efmeras, letras-luz em constante movimento.
Figura 18 Fragmentos de um livro de contas
em cermica pertencente ao templo de Uruk na
antiga Sumria, datado do quarto milnio
a.c.
fonte jean, 2003. p. 13.
Figura 19 Tipos mveis e espaos
tipogrficos utilizados para a composio da
Encyclopdie de Diderot.
fonte jean, 2003. p. 105.
Figura 20 A conhecida Bblia de 42 linhas
de Gutenberg, por volta de 1450.
fonte friedl & ott & stein, 1998. p 263.
Figura 21 Cartaz impresso em litografia,
criado por Toulouse-Lautrec em 1892.
fonte barnicoat, 1972. p. 14.
35
Figura 22 Alfabeto desenvolvido por Franco em 1596.
fonte friedl & ott & stein, 1998. p 64.
Esse breve resumo de mais de 6.000 anos de histria importante no s
como contextualizao, mas tambm para ressaltar dois aspectos. Primeiramente
devemos compreender a importncia da inveno da escrita, que se funde com o
prprio surgimento do pensamento ocidental. Num segundo momento pretendemos
indicar como as transformaes tcnicas determinam, em conjunto com outros
fatores histrico-culturais, a forma de uma tipografia. Vrios exemplos podem ser
citados para reafirmar as relaes entre tcnica e forma na histria da tipografia. O
tipo de pena utilizado pelos monges copistas, que caligrafavam variando os ngulos
em relao ao papel, produziu a relao singular entre as espessuras do desenho da
letra gtica. O aparecimento de detalhes no desenho da letra, como a serifa, tem
tambm algumas explicaes interessantes, apesar de alguns atriburem sua funo
unicamente a uma melhor legibilidade em grandes manchas de texto. A funo
atribuda serifa a de conduzir o olhar do leitor, no entanto, de acordo com alguns
pesquisadores, a serifa teria se originado da necessidade de que as letras esculpidas
no acumulassem poeira e gelo em suas incises. Sabemos que as questes tcnicas
ultrapassam o trao final do desenho da letra e envolvem outros aspectos do processo
de produo, como a mecnica das prensas, a qumica da tinta e do papel, a fundio
do tipo, etc. O prprio Gutenberg, utilizando suas habilidades de ourives,
desenvolveu uma liga de metal que permitiu que os tipos mveis resistissem s batidas
da prensa. Podemos tambm lembrar o desenvolvimento de papis e tintas de
qualidade superior para que, na segunda metade do sculo xviii, o famoso tipgrafo
36
e editor Giambattista Bodoni pudesse imprimir com preciso os contrastes de sua
elegante famlia tipogrfica.
Tambm no caso da tipografia popular a questo tcnica interfere
decisivamente na forma. No entanto, como vimos anteriormente, no possvel
identificar tcnicas predominantes. A escolha da tcnica est ligada ao seu contexto de
insero, e em cada nova ocasio surge uma nova tcnica. , portanto, o prprio
contexto que define, provisoriamente, a escolha de uma determinada tcnica de
produo. As formas com as quais o leitor depara no foram desenhadas para ele; a
ocasio que determina sua aparncia.
3.4 Tipografia clssica e experimental
Mesmo no tendo a pretenso de realizar um registro detalhado das
transformaes por que passou a tipografia ao longo da histria, vamos identificar
duas faces distintas que conformam, de uma forma ou de outra, grande parte da
histria mais recente da escrita ocidental: a tipografia clssica e a tipografia
experimental. Enquanto a chamada tipografia clssica segue a tradicional funo de
legibilidade, na tipografia experimental pode-se observar um deslocamento da letra de
sua funo primordial para a proposio de um signo autnomo a letra passa a ser
percebida como imagem.
Compreendemos aqui a tipografia clssica como aquela que no percebida,
que est integrada visceralmente ao contedo e, portanto, no deveria chamar a
ateno para si (rocha, 2002: 52). importante notar que essa transparncia
desaparece ao olhar atento, capaz de perceber que a tipografia incorpora em sua
prpria forma a mentalidade de uma poca, ou seja, a tipografia tem sua forma
definida a partir de conformaes tcnicas, histricas e culturais. No decorrer da
histria os diversos estilos caractersticos de cada poca se transferem para os
desenhos das letras, como se v na ampla classificao proposta por Bringhurst
(1999: 12-15) (fig. 23, 24, 25 e 26). No entanto, ainda possvel perceber claramente
na tipografia clssica a inteno de transformar a letra em um signo transparente. A
forma subjugada pelo contedo. O que est em jogo aqui a inteno de tornar a
tipografia um caminho confortvel e imperceptvel para o contedo do texto. O
37
surgimento do sujeito moderno trouxe consigo um ideal de representao da
realidade, onde o racionalismo surge com fora dissipando as vises msticas ou
supersticiosas, o corpo se desliga da conscincia propondo uma razo pragmtica e
funcionalista que se mostra na clareza da composio tipogrfica na pgina.
Com a noo da totalidade orgnica, em que as partes definem-se por
participarem do todo, tambm a forma de apresentao deveria acompanhar esses
princpios. A neutralidade da tipografia, sua suposta transparncia, sua
ordenao, sua clareza no seriam arbitrrias, mas espelho de uma necessidade
inerente da expresso em que a palavra era adequada para representar o real. De
acordo com essa convico, no poderia ser a letra impressa uma barreira entre o
pensamento e a compreenso do leitor, mas apenas uma ponte de livre acesso.
(gruszynsky, 2000: 38)
38
Figuras 23, 24, 25 e 26 Sinopse histrica das transformaes dos alfabetos clssicos da
Renascena aos dias de hoje. interessante notar que, ao relacionar as fomas com os estilos de cada
poca, palavras como humanista e racional tornam-se adjetivos para classificar os desenhos.
fonte bringhurst, 1999. p. 12, 13, 14 e 15.
Seguindo outras direes, a tipografia experimental caracteriza-se pela
renovao da linguagem ou a busca da ruptura esttica (rocha, 2002: 53). O
experimentalismo tipogrfico explicita a forma da letra, questionando a legibilidade e
distanciando os desenhos e composies da idia de transparncia. A imagem da
tipografia colocada em relevo, em detrimento de sua funo de mera interface para o
contedo semntico. A tipografia experimental nos aparece como um signo opaco,
cujos significados no esto apenas em sua ligao com um contedo, mas
constituem-se em sua prpria materialidade: a forma o contedo.
Podemos fazer aqui uma aproximao da tipografia com a pintura,
compreendendo que determinadas tendncias modernas ao abstracionismo
39
distanciaram a linguagem pictrica de uma representao orgnica da realidade.
Pensamos aqui especificamente em alguns movimentos pr-modernos e modernos
que, diante do advento da fotografia, apontaram novas solues formais para a
pintura, buscando para isso recursos nas possibilidades do prprio suporte. Assim
como na pintura, percebemos na tipografia experimentaes em uma direo auto-
reflexiva, ou seja, o desenvolvimento de uma linguagem formal relativamente
autnoma. A palavra no tem apenas a funo de representar algo, em sua aparncia
ela j . O significante entendido aqui como as formas das letras e sua composio
no espao surge, assim como na poesia moderna de vanguarda, como imagem
autnoma, cujo sentido no est apenas em sua ligao com o contedo, mas emana
de sua prpria materialidade. A letra se aproxima do estatuto do imagtico, como no
exemplo dos caligramas (fig. 27): a letra-imagem que avana sobre a letra-
representao. Nas vanguardas do incio do sculo xx, a comear pelo futurismo (fig.
28), passando pelo dadasmo (fig. 29), pelo construtivismo, pelo suprematismo, pelo
de Stijl, dentre outros, mudanas sensveis foram propostas na tipografia,
deslocando-a da funo de representar a voz de um autor. Surgem ento novas
relaes entre a letra e sua imagem a forma passa a ser compreendida como um
elemento intensificador, constituidor do texto.
40
Figura 27 Caligrama do poeta Guillaume
Apollinaire realizado em 1918.
fonte blackwell, 1998. p. 28.
Figura 28 Capa e pgina interna do
romance Zang Tumb Tumb do futurista
Filippo Marinetti, produzido em 1914.
fonte blackwell, 1998. p. 25.
Figura 29 Cartaz Small Dada Evening
realizado por Theo Van Doesburg e Kurt
Schwitters em 1922.
fonte blackwell, 1998. p. 42.
Figura 30 Cartaz do designer David Carson
para exposio de seu trabalho realizada em
1996 no Brasil. Carson se tornou
emblemtico para o design da dcada de 90
ao propor lay outs caticos com misturas e
fragmentaes tipogrficas nos quais os
paradigmas da legibilidade eram
desrespeitados.
fonte blackwell & carson. 1998. p. 156.
41
Depois das vanguardas, nossa condio ps-moderna, para usar o termo
cunhado por Lyotard, colocou em xeque a vocao humanstica da tipografia. Os
computadores pessoais e a tecnologia digital (com destaque para o post script, o
desktop publishing e os softwares para criao de fontes digitais) transformaram
radicalmente o design grfico e a tipografia ao acelerar vertiginosamente suas
possibilidades formais. A fragmentao advinda dos experimentos tipogrficos
obriga o leitor a interagir com verdadeiros quebra-cabeas visuais criados a partir de
referncias individuais, impe-se ao leitor uma grande variedade de representaes
subjetivas do mundo. Os princpios formais de equilbrio e simetria, definidores da
legibilidade, so subvertidos. As convenes so desrespeitadas, a tipografia
ultrapassa sua funo de passagem para um contedo proposto reafirmando sua
potencialidade visual (fig. 30). No basta transmitir uma informao, mas impor
uma experincia, tensionar a interao com o leitor. Existem vazios, fissuras,
porosidades. A participao do leitor no se limita decodificao dos signos visuais,
mas se coloca como um processo de mediao intersubjetiva em que rudos se
entrecruzam e repertrios individuais se inter-relacionam. Numa das faces da
tipografia contempornea, que alguns chamam de ps-moderna, as possibilidades
visuais so levadas ao extremo. Em detrimento linguagem verbal do texto, as
composies visuais como propunham os movimentos de vanguarda no incio do
sculo xx alcanam autonomia.
Podemos dizer que a tipografia comporta duas faces, uma que se relaciona ao
seu carter verbal e outra ao seu carter visual. a conjugao do duplo movimento
de olhar e ler, durante o processo de leitura, que articula uma linguagem formal com
uma linguagem que no pode ser formalizada.
... a atividade de criar tipos e organiz-lo com arte no espao alia-se tanto
articulao de uma linguagem formal como ao manejo de foras culturais e
estticas. O primeiro aspecto revela seu lado mais conservador, vinculado
existncia de um sistema simblico de signos verbais regido por uma srie de
convenes sociais e culturas genricas. O ponto de vista icnico/indicial, por
outro lado, mostra sua face mais malevel e passvel de ser trabalhada segundo
preferncias subjetivas e levando em conta adaptaes ao contexto. Na tipografia
h, ento, a sobreposio entre signos verbais e visuais. (gruszynsky, 2000: 16)
42
Sabemos que a palavra escrita nunca est descolada de sua imagem. A leitura
s se realiza em conjunto com uma experincia visual que envolve o conhecimento
prvio do leitor e a aparncia do texto. Se a leitura se d a partir dessa relao, as
caractersticas formais peculiares da tipografia popular so um fator relevante para
compreender as relaes que o leitor estabelece com ela. O que tanto nos fascina na
tipografia, seno essa sua face malevel, em que a forma escapa de uma funo
puramente cognitiva para surgir como um anteparo imagtico? Conscientes das
complexas discusses filosficas que acompanham as vanguardas, no desejamos
aqui analisar as manifestaes da tipografia popular a partir de suas teorias, mas
devemos tom-las como uma referncia valiosa no que diz respeito compreenso da
potencialidade formal da tipografia. Se na tipografia popular no pressentimos um
saber terico ou conceitual elaborado, percebemos indcios de um saber que se afasta
da autonomia e clama sempre pela presena de um outro cuja ateno se debrua
sobre as apropriaes singulares da linguagem, a sobreposio inconsciente das
tradies, os rastros do corpo visveis em suas formas.
3.5 A tipografia popular
No podemos nos esquivar aqui de uma discusso um pouco mais
aprofundada sobre o termo tipografia popular, pois, apesar do crescente interesse de
tipogrfos em digitalizar caracteres a partir de manifestaes populares, sabemos que
essas manifestaes, que gostaramos de classificar como tipogrficas, no so criadas
para serem reproduzidas mecanicamente umas das caractersticas que alguns
autores apontam como pr-condio para determinar o que tipografia. Faz-se,
assim, necessrio explicitar a acepo atual do termo tipografia, uma vez que esta
ainda alvo de confuso, mesmo entre especialistas. O que chamamos aqui de
tipografia no est relacionado tcnicas de impresso mecnicas ou digitais, ou ao
local onde se guardam ou executam impresses com tipos mveis, mas sim a um
conceito amplo de desenho e composio.
Confundida muitas vezes com a tipologia, a tipografia , dentro das muitas
disciplinas do design, uma rea de estudos voltada para o desenho e a composio de
caracteres no espao. Pode-se dizer que, por uma lacuna terminolgica, o termo
43
tipografia agrega na lngua portuguesa trs termos da lngua inglesa writing,
lettering e typography. Writing se aproxima do que conhecemos como caligrafia ou
qualquer ato de escrever manual que se utiliza de instrumentos que vo do lpis ao
pincel para desenhar letras de apenas uma linha (stroke). Por sua vez lettering o ato
de desenhar letras, tambm com a utilizao de tcnicas manuais, mas sem a restrio
de que sejam desenhadas com apenas uma linha, podendo, por exemplo, ser
preenchidas ou hachuradas. Finalmente, entende-se por typography a criao de
desenhos e composies predeterminados por meio de tcnicas mecnicas ou digitais
que independem do movimento da mo. Apesar dessas diferenciaes possveis,
vamos compreender tipografia a partir de um conceito amplo, que se relaciona tanto
com o ato de escrever quanto com a composio dos elementos no espao. Vamos
ento nos apropriar de trs definies possveis fornecidas por autores de origens
distintas:
Definiremos [...] tipografia como o conjunto de prticas subjacentes criao e
utilizao de smbolos visveis relacionados aos caracteres ortogrficos (letras) e
para-ortogrficos (tais como nmeros e sinais de pontuao) para fins de
reproduo, independentemente do modo como foram criados (a mo livre, por
meios mecnicos) ou reproduzidos. (farias, 1998: 11-12)
Percebemos, na definio da tipgrafa brasileira Priscila Farias, um
direcionamento para a criao e utilizao da tipografia dentro de um ambiente
profissional. Nela pode-se observar uma predominncia da idia de tipografia como
ofcio; o tipgrafo aquele que vai tratar tanto da produo do desenho das letras,
quanto da sua utilizao. Apesar da nfase profissional, o fazer tipogrfico
compreendido como livre, uma vez que sua criao e reproduo no se encontram
tecnicamente definidas.
Numa segunda conceituao, o tipgrafo alemo Wolfgan Weingart constata a
importncia da composio dos elementos no espao como fator determinante para a
constituio do sentido e aponta para questes que ultrapassam a funo inicial de
legibilidade.
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Tipografia transformar um espao vazio num espao que no seja mais vazio.
Isto , se voc tem uma determinada informao ou um texto manuscrito e precisa
dar-lhe um formato impresso com uma mensagem clara que possa ser lida sem
problema, isso tipografia. Mas essa definio tem o defeito de ser muito curta.
Tipografia tambm pode ser algo que no precisa ser lido. Se voc gosta de
transformar partes desta informao em algo mais interessante, pode fazer algo
ilegvel, para que o leitor descubra a resposta. Isso tambm possvel, e isso
tambm tipografia. Tipografia a arte de escolher o tamanho correto, o
comprimento certo da linha, de escolher as diferentes espessuras das informaes
do texto. Ela pode incluir cor, que d outro significado palavra. Se voc
imprimir algumas partes em vermelho, elas se transformam numa outra
informao. (weingart, 2000: 72)
Weingart chama a ateno para o fato de que o desenho das letras, a
composio, o espaamento, as entrelinhas, alm de todas as variaes que compem
a tipografia (tamanho, contraste, cor, etc.), so elementos determinantes para a
construo do sentido. Pode-se concluir que o significado de um determinado texto
dado no s por seu contedo lingstico, mas por sua imagem, por seu desenho, por
sua composio, por sua tipografia.
O objetivo inicial da tipografia era substituir os escribas, reproduzindo os
textos indefinidamente. De acordo com o tipgrafo canadense Robert Bringhurst, se
no mundo da reprodutibilidade digital a caligrafia pode ser reproduzida com a mesma
facilidade com que se reproduz uma composio tipogrfica, pouco haveria mudado
na funo da tipografia: criar a iluso de preciso e velocidade da mo que escreve.
Tipografia simplesmente isto: a escrita idealizada. Hoje so raros os escritores
que mantm a habilidade caligrfica dos antigos escribas, mas eles evocam
inmeras verses de uma escrita ideal em uma variedade de vozes e estilos
literrios. A essas vises encobertas e freqentemente invisveis, o tipogrfo deve
responder em termos visveis.2 (Traduo do autor. bringhurst, 1999: 19)
2 Typography is just that: idealized writing. Writers themselves now rarely have the calligraphic skill of earlier scribes, but they evoke countless versions of ideal script by their varying voices and literary styles. To these blind and often invisible visions, the typographer must respond in visible terms. (bringhurst, 1999: 19)
45
Se so as diferentes vozes de autores e estilos literrios que se fazem visveis na
diversidade de desenhos tipogrficos produzidos profissionalmente, haveria uma
correspondncia entre essa escrita idealizada com a tipografia popular? Na
tipografia popular que no se utiliza de um projeto para tornar suas mensagens
visveis, a preciso e a velocidade da mo que caligrafa so substitudas pelo iluso do
fazer. Afastando-se das determinaes impostas pelo processo do projeto, a tipografia
popular no possui uma intencionalidade pr-determinada sua singularidade
produzida no processo de materializao do que foi idealizado. A escrita ,
portanto, idealizada e o prprio fazer que se torna visvel em suas formas. Uma
grande mutiplicidade de vozes invisveis surgem no cotidiano e se fazem ouvir nos
detalhes precrios dos desenhos da tipografia popular.
Devemos agora nos perguntar por que chamar esta tipografia de popular?
Alguns crticos da indstria cultural apontam, com alguma razo, para a manipulao
e o controle que seus produtos pretendem exercer sobre as massas. No estamos aqui
nos referindo ao popular que medido pelo grau de avidez de consumo das massas,
ou s categorizaes hierarquizadas da cultura. O popular deve ser compreendido
aqui como algo que ultrapassa a idia daquilo que feito pelo povo. O popular se
constitui como um movimento que no se delimita simplesmente pela fora das
tradies, ele instaura um lugar hbrido, em se pode observar um acmulo de
impurezas, de contaminaes mtuas, de transformaes. Dessa forma, concordamos
com Canclini quando ele diz que o popular no se define por uma essncia a priori,
mas pelas estratgias instveis, diversas, com que os prprios setores subalternos
constroem suas posies (1997: 23). O popular, portanto, est em tenso contnua
com as manifestaes no-populares, ou seja, com aquelas que esto legitimadas por
instituies, e se constitui como um processo conflituoso, em que ocorre um duplo
movimento de conter e resistir, de manter a tradio e subvert-la. Esse duplo
movimento pode ser observado claramente em alguns exemplos da tipografia
popular. Ao observar as placas produzidas pelo pintor-letrista pernambucano Seu
Juca, Priscila Farias identificou a fuso de desenhos de letras pertencentes a tradies
distintas com a criatividade de um saber-fazer popular. (fig. 31)
46
Embora Juca afirme no copiar modelos, este tipo de letra bastante comum em
cartazes e manuais de estilo vitoriano. uma espcie de forma hbrida que
mistura a estrutura formal das maisculas romanas com os terminais tpicos da
fratura (uma variao da letra gtica) germnica, resultando em um tipo de
serifa conhecida como toscana. A quebra das hastes na altura mdia das
letras, tambm presente em algumas letras de fantasia do sculo xix, tem
precedentes em modelos de letra romanescos dos sculos 2 e 3. (farias, 2000: 20)
Figura 31 Tipo de letra identificado por Priscila Farias como o mais utilizado pelo pintor-letrista
pernambucano Seu Juca e a comparao feita pela autora a partir de uma fuso da estrutura formal
de letras romanas com uma das variaes das letras gticas germnicas.
fonte tupigrafia, v. 1, 2000. p. 20.
Seu Juca provavelmente no teve contato direto com as tradies citadas por
Farias, mas seus desenhos se apropriam delas distorcendo-as, transformando-as.
Para o popular a tradio um elemento vital, mas no imutvel. a partir da
associao e articulao de elementos da tradio num determinado momento
histrico e das suas constantes mudanas de posio que o popular pode adquirir
significado e relevncia. O popular se relaciona com grupos de excludos que jogam
sutilmente com a ordem estabelecida, utilizado-se de uma astcia que subverte sem
deixar de concordar suas acrobacias de baseiam maneiras de fazer e desfazer. Como
escreveu Certeau, muito mais do que a repetio ou a manuteno de uma tradio, o
popular um processo de apropriao constante, no qual o saber e o agir so
indissociveis:
a cultura popular [] se formula essencialmente em artes de fazer isto ou
aquilo, isto , em consumos combinatrios e utilitrios. Essas prticas colocam
em jogo uma ratio popular, maneira de pensar investida numa maneira de
47
agir, uma arte de combinar indissocivel de uma arte de utilizar. (certeau, 1994:
42)
A (re)criao digital de algumas fontes feita por tipgrafos brasileiros
inspirados nas mais variadas manifestaes populares e artsticas nacionais to
diversas como a prtica de marcar o gado com ferro quente (fig. 32), o graffiti
urbano ou os bordados de Arthur Bispo do Rosrio so exemplos de apropriaes
do saber popular. Paradoxalmente, numa era dominada pelas lgicas industriais e
informticas, o olhar se volta para o popular, para o espontneo, para as prticas
cotidianas: a racionalidade tcnica se mistura com o saber intuitivo. Podemos
observar esse deslocamento nas apropriaes que o design industrial faz do
artesanato, manifestao que sabemos inserida no centro de uma extensa discusso
sobre o popular. O que vemos hoje no s um artesanato extico, mas sim o
artesanato incorporado lgica da indstria. Assim as tradies so deslocadas de
seu lugar de origem para serem resignificadas em um novo sistema. Sua relao
singular com o contexto, a criatividade na utilizao dos materiais, o desenvolvimento
de tcnicas viveis, a apropriao de materiais industrializados, dentre outras
caractersticas, fazem do artesanato uma fonte vigorosa de solues no s para o
desenvolvimento sustentado ou para a reciclagem, mas para o design produzido de
forma industrial3. Ao conhecimento funcional e ergonmico que visa eficincia e
produtividade se contrape uma lgica que possui caractersticas singulares e
contextuais, levando-nos a repensar nossas relaes com o popular. So formas de se
apropriar desse saber-fazer do arteso, no-cientfico, que no se expressa e no se
transmite a partir de um discurso sistematizado.
3 Podemos destacar o reconhecido trabalho dos irmos Campana, que utilizam bonecas de pano feitas por uma cooperativa de artess para formar uma poltrona (fig. 33) ou ralos plsticos de banheiro que colados uns aos outros, transformam-se em uma mesa.
48
Figura 32 Famlia tipogrfica intitulada
Alfabeto Sertanejo, desenvolvida
digitalmente por Virglio Maia a partir de
marcas de ferrar gado do serto
pernambucano.
fonte tupigrafia 3, 2003. p. 42.
Figura 33 Poltrona Multido, projetada
pelos irmos Campana. O estofado
composto de bonecas de pano produzidas por
uma cooperativa de costureiras.
fonte arc design, 2004, no 38. p. 23.
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4. potncias do ilegvel embaixo[], a partir dos limiares onde cessa a visibili