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TIPOGRAFIA VERNACULAR: A REVOLUÇÃO SILENCIOSA DAS LETRAS DO COTIDIANO Ms. Vera Lúcia Dones Resumo: A estética vernacular, aplicada à comunicação gráfica, nos remete a uma nova sensibilidade e a outras formas de saber que chamamos de conhecimento “comum” ou “popular”. A complexidade de estéticas gráficas visuais dos últimos 50 anos testemunha a superação de modelos universais da tipografia aplicada à comunicação visual. Este artigo inicia com uma revisão histórica da tipografia ocidental moderna e pós-moderna, evidenciando os sincretismos entre as formas autênticas e/ou arcaicas e as novas tecnologias. Segue com uma investigação sobre o processo de criação de alguns letristas na região metropolitana de Porto Alegre. Palavras-chaves: Tipografia vernacular, comunicação gráfica, letristas, cultura popular. Introdução A indústria cultural vem reordenando elementos retirados da cultura popular e erudita, hibridando e compondo novos conjuntos. O termo cultura popular não designa um conjunto coerente e homogêneo de atividades, pelo contrário, sua característica é a heterogeneidade, a ambigüidade e a contradição, não somente nos aspectos formais, mas também em termos de valores e interesses que veicula. Assim, comparadas com a cultura erudita, as manifestações populares são, de certa forma, dispersas, elaboradas geralmente com desconhecimento de sua produção anterior e de outras manifestações similares. A perda de confiança nos projetos da modernidade revelou uma nova sensibilidade que descobre a espontaneidade, a comunalidade e a autenticidade das culturas populares. A valorização das pessoas comuns e de seu entorno, vistas no passado como vulgares e primitivas, vem marcando a visualidade atual. A comunicação gráfica se volta para o local, o regional e o popular em meio a outras propostas “globais”, construindo seu espaço em meio às novas tecnologias. As implicações dessas mudanças são especialmente interessantes, pois explicitam o vínculo entre o pós-modernismo e a cultura popular.

Tipografia Vernacular

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  • TIPOGRAFIA VERNACULAR: A REVOLUO SILENCIOSA DAS LETRAS DO COTIDIANO

    Ms. Vera Lcia Dones

    Resumo:

    A esttica vernacular, aplicada comunicao grfica, nos remete a uma nova

    sensibilidade e a outras formas de saber que chamamos de conhecimento comum ou

    popular. A complexidade de estticas grficas visuais dos ltimos 50 anos testemunha

    a superao de modelos universais da tipografia aplicada comunicao visual. Este

    artigo inicia com uma reviso histrica da tipografia ocidental moderna e ps-moderna,

    evidenciando os sincretismos entre as formas autnticas e/ou arcaicas e as novas

    tecnologias. Segue com uma investigao sobre o processo de criao de alguns letristas

    na regio metropolitana de Porto Alegre.

    Palavras-chaves: Tipografia vernacular, comunicao grfica, letristas, cultura popular.

    Introduo

    A indstria cultural vem reordenando elementos retirados da cultura popular e erudita,

    hibridando e compondo novos conjuntos. O termo cultura popular no designa um

    conjunto coerente e homogneo de atividades, pelo contrrio, sua caracterstica a

    heterogeneidade, a ambigidade e a contradio, no somente nos aspectos formais, mas

    tambm em termos de valores e interesses que veicula. Assim, comparadas com a cultura

    erudita, as manifestaes populares so, de certa forma, dispersas, elaboradas geralmente

    com desconhecimento de sua produo anterior e de outras manifestaes similares.

    A perda de confiana nos projetos da modernidade revelou uma nova

    sensibilidade que descobre a espontaneidade, a comunalidade e a autenticidade das

    culturas populares. A valorizao das pessoas comuns e de seu entorno, vistas no passado

    como vulgares e primitivas, vem marcando a visualidade atual. A comunicao grfica se

    volta para o local, o regional e o popular em meio a outras propostas globais,

    construindo seu espao em meio s novas tecnologias. As implicaes dessas mudanas

    so especialmente interessantes, pois explicitam o vnculo entre o ps-modernismo e a

    cultura popular.

  • Neste artigo apresento, primeiramente, um resumo histrico da tipografia

    ocidental moderna, sua passagem ao ps-moderno, para ento comentarmos a esttica

    tipogrfica vernacular, o processo de criao de letristas na regio metropolitana de Porto

    Alegre, e como o imaginrio da cultura popular serve de inspirao criao dos

    designers grficos.

    1- Tipografia: das origens modernas ao ps-moderno

    Uma grande parte do conhecimento atual sobre tipografia procede de um corpus terico e

    prtico que tem origem nos primeiros trinta anos do sculo XX, atravs de artistas e

    tericos como Marinetti, Van Doesburg, Jan Tschichold, Paul Renner, Lszl Moholy-

    Nagy, Josef Albers, El Lissistzky, Kurt Schwitters, Armin Hofmann, Max Schmid,

    Walter Dexel, entre outros. Mesmo apresentando posies diferentes e at mesmo

    opostas, possvel encontrar entre eles, vrios pontos em comum. Todos de alguma

    forma rejeitaram os padres de bom gosto romntico e ornamental promovido pelo

    Vitorianismo e pela Art Nouveau, em nome de uma tipografia direta e impactante, que

    tirasse partido de meios tcnicos de impresso e fosse mais direcionada comunicao.

    O objetivo era restringir o nmero de variveis grficas para fins de economia e

    legibilidade. Ainda que, os elementos de base dos layouts adotados pelos primeiros

    modernistas, abusassem de contrastes fortes e disposies assimtricas, barras

    horizontais e verticais, a maioria das vezes utilizadas para hierarquizar a informao.

    Quanto a essa questo, Cauduro (2002) acredita que a busca da eficincia na

    comunicao se manifestou atravs de uma esttica simples e econmica. Nestes termos:

    () a comunicao seria realizada o mais eficazmente possvel pelo design, supunham eles, quanto mais direta, simples e repetitiva fosse a forma das mensagens. Obviamente, na concepo dos modernistas a comunicao se resumia basicamente transmisso de informaes, isto , duplicao pelo receptor dos contedos simblicos - grifo no texto original - (denotados) das mensagens formuladas pelo emissor, atravs de signos grficos (Cauduro, 2002, 5).

    Seguindo pela estrada dos pioneiros, na dcada de quarenta, designers e

    diretores de arte norte-americanos como Paul Rand, Ray Eames e Herbert Matter

    continuaram apontando na direo da funcionalidade e insistiram na necessidade da

    comunicao tipogrfica /visual que evidenciasse a integrao entre beleza e utilidade.

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  • Todos exploravam as tcnicas que sua poca lhes oferecia collages, fotogramas,

    fotografias recortadas. Paul Rand mudou a maneira que as palavras e as imagens se

    combinam, de forma a conseguir passar uma nica idia. Como diretor de arte em

    agncias de propaganda, ele foi um dos pioneiros da Nova Publicidade, segundo a qual, o

    leitor deveria ter um papel ativo, suscitando sua curiosidade, para em seguida completar

    a mensagem. Segundo Hollis (2002), Paul Rand e seus colegas defendiam o design que

    alm da informao factual contemplasse uma apresentao clara e objetiva, buscando

    solues para as polarizaes entre a forma e o contedo.

    Os anos cinquenta foram protagonizados pelo Estilo Internacional ou Escola

    Sua, que retomou os princpios da Bauhaus e do Neoplasticismo, impondo uma drstica

    reduo do contedo tipogrfico. Utilizava-se elementos simples e repetitivos, buscando

    a ordem, o rigor e a forma depurada em vista de uma claridade na comunicao. A

    valorizao dos espaos em branco na composio, tornou-se elemento essencial de uma

    filosofia redutora que, liderada por Emil Ruder e Joseph Mller-Brockmann, produziu

    uma design racional onde a subjetividade do autor era silenciada em favor do emissor e

    receptor. Extremamente normatizadores, estes designers instituram a grade de

    construo como base para qualquer projeto grfico, propunham uma comunicao

    funcional baseada na economia, com a tipografia enquadrada dentro de normas estritas.

    As fontes Univers e Helvetica foram legtimas representantes deste perodo, neutras e

    perfeitamente legveis.

    Todos os construtivistas suos, como Richard Hollis (2002) prefere

    cham-los, dividiam o princpio das solues minimalistas com nmero limitado de

    meios grficos. Mller-Brockmann adotava uma atitude construtivista ao colocar os

    caracteres dentro de uma construo geomtrica plana e concreta. Ele transformava

    radicalmente as propores nos enquadramentos fechados e inclinados das fotografias em

    preto e branco, acompanhadas por slogans em caracteres coloridos. Enquanto que Emil

    Ruder reafirmava os critrios que marcaram a modernidade defendendo os princpios da

    neutralidade e legibilidade tipogrfica: uma tipografia que no se pode ler um produto

    intil.

    Entretanto, no podemos esquecer que a Escola Sua se desenvolveu num

    contexto dominado pelo nascimento e consolidao de novas tcnicas como a

    fotocomposio, que trouxe limpeza, flexibilidade e maior rapidez no campo tipogrfico.

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  • Naquela poca, j se falava em perda de qualidade da tipografia, em virtude de uma

    suposta falta de mincias de seu uso. Alguns designers estavam encantados pelas

    facilidades oferecidas pelo novo sistema manipulao das entrelinhas e kernings,

    mescla de corpos e caracteres -, deixando para segundo plano o conceito tradicional de

    legibilidade.

    No mercado grfico dos anos 60, os computadores eram usados em grande

    parte para a fotocomposio, mas a seu lado surgem as folhas de letras transferveis

    (Letraset, Mecanorma, entre outras) que facilitavam ainda mais a experimentao com os

    tipos. Essa dcada assistiu s mudanas tecnolgicas e o aparecimento da cultura pop

    jovem e dos hippies, interessados na moda e na msica, com atitudes de crtica e protesto

    expressa na mdia underground. Eles contriburam para a construo de uma mentalidade

    mais aberta no meio onde transitavam os desenhistas.

    Comeou-se quebrando a pureza e a funcionalidade do design,

    experimentavam-se novas formas de utilizao da tipografia, buscando, as vezes, uma

    relao mais direta com a fotografia. Descobriu-se o poder comunicativo, emocional e

    conceitual das letras, atravs de jogos interpretativos com sentido de humor. Nos Estados

    Unidos, figuras como Reid Miles, Herb Lubalin, Alan Fletcher, Colin Forbes, Bob Gill e

    Willi Fleckhaus, destacaram-se atravs de propostas alternativas direcionadas cultura

    pop, enquanto a Escola Sua continuava defendendo solues na linha de ordem e

    claridade na comunicao grfica.

    Uma das primeiras insurreies contra o International Style da Escola Sua

    foi liderada pelo tambm suo Wolfgang Weingart, cabea de um estilo que ficou

    conhecido como New Wave, uma reviso dos estritos pontos de vista daquela escola.

    Atravs da alegoria as fontes so imagens que falam (Schwemer-Scheddin,

    1991), Weingart pretendia falar da desconstruo do pensamento moderno, questionando

    as solues econmicas e contidas daquela escola. Voz alternativa dentro da Escola de

    Desenho da Basilia, Wolfang Weingart defendeu o enfoque experimental na tipografia.

    Suas experimentaes tipogrficas contriburam para a criao de um novo cenrio no

    campo da comunicao grfica. Sinalizando uma mudana do papel do designer, que

    deixou de apresentar as mensagens em cdigos claros e transparentes para produzir, por

    estratgias visuais sutis, uma leitura polissmica dos traos impressos (Cauduro, 2001,

    p. 102). A passagem do racionalismo intuio representou mudana de atitude e um

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  • processo de reviso importante. Sobre esse tema, Ellen Lupton observa:

    A grade tipogrfica deixa de ser uma tela transparente, reveladora de mensagens evidentes, escurecendo-se em vu opaco para transformar-se em terreno de jogo formal, no lugar da expresso de mensagens didticas (Lupton, 1999, 52).

    importante destacarmos a importncia, para o design grfico, do

    conhecimento produzido nos campos da filosofia, da sociologia e semitica a partir dos

    anos 70, desencadeando a grande virada na imagstica visual do Ocidente.

    2- As escolas norte americanas da desconstruo

    Desde os anos 70, uma nova postura foi assumida por

    algumas escolas norte americanas de arte, design e

    arquitetura, entre elas Cal Arts e Cranbrook Academy of

    Arts. Em seus programas tericos foram incorporados textos

    de Barthes, Foucault, Baudrillard e Derrida (Miller, 1989),

    servindo como ponto de partida conceitual para a inverso do

    modelo moderno daquelas escolas. O ps-estruturalismo

    havia chegado s escolas de design.

    Os textos de Derrida invadiram os estudos

    literrios, estendendo-se arquitetura e s artes visuais, para

    ento chegar ao design atravs da Cranbrook Academy, constituindo-se em rico material

    de reflexo e sustentao terica para os projetos grficos daquela escola. Assim, o

    design tipogrfico ps-moderno inicia-se como uma extenso da teoria ps-estruturalista.

    No artigo intitulado The academy of deconstructed design (1991), escrito para a revista

    Eye, Ellen Lupton atribui escola Cranbrook de Detroit os primeiros passos no caminho

    do design ps-estruturalista, atestando sua contribuio no alargamento das fronteiras do

    design grfico. O campo terico ps-estruturalista oferecia aos designers a oportunidade

    de explorar os aspectos subjetivos em seus projetos, funcionando, invariavelmente, como

    comentrios sobre um determinado assunto, onde as imagens poderiam ser lidas e

    interpretadas, tanto quanto vistas (Lupton, 1991, 53). Os estudantes comearam a

    desconstruir a dinmica da linguagem visual e compreend-la como um filtro para as

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    Fig. 1: Cartaz Typography as discourse criado por Allen Hori em 1989.

  • respostas do pblico. Daquela escola saram Jeffery Keedy, David Frej, Edward Fella,

    Allen Hori, P. Scott Makela, Joan Dobkin, Scott Zukowski, Glen Suoko, entre outros.

    As pesquisas semnticas da Cranbrook, nos anos 80, aplicadas ao design

    grfico manifestam-se de maneira flagrante. No cartaz Typography as Discourse (fig.

    1), Allen Hori (1989) teve por base um diagrama sobre as teorias de comunicao

    apresentadas num curso de Katherine McCoy (diretora e mentora daquela escola). Sobre

    esse cartaz Ellen Lupton observa:

    Esse tipo de trabalho encanta ou exaspera, segundo o grau de pacincia do leitor e pelo fato dos designers da Cranbrook, freqentemente, dirigirem seus projetos a outros designers, que j estariam preparados para tal esforo (Lupton, 1991, 55).

    Como podemos observar, no cartaz Loaf

    (fig. 2) de Scott Zukowiski (1986) e outras peas

    produzidas no fim dos anos 80, os signos visuais e verbais

    so explorados atravs de seus mltiplos significados e

    no somente pelos motivos estticos. So peas grficas

    pouco requintadas, visualmente mais cruas.

    A teoria da desconstruo contribuiu para desafiar o pensamento rgido, os

    esquemas visuais, a obsesso pela regularidade e a preciso do design moderno,

    demonstrando a importncia da ambigidade aos olhos de destinatrios capazes de

    negociar suas complexidades.

    3- Emigre: tecnologia e excentricidades tipogrficas

    A histria da tipografia contempornea foi marcada pelo

    aparecimento dos microcomputadores pessoais e seus

    aplicativos grficos em 1984. Numa combinao do tipo

    Apple Macintosh-Aldus PageMaker, os novos

    microcomputadores ofereciam a possibilidade de gerar,

    processar e exibir pginas com desenhos, fotos e tipos

    grficos. Alm de alterar radicalmente o mundo do design

    grfico, os microcomputadores abriram infinitas possibilidades para a criao de novas

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    Fig. 2: Cartaz Loaf criado por Scott Zukowiski (1986).

    Fig. 3: Fonte Modula desenhada por Zuzana Licko em 1985.

  • fontes. Se antes, para desenh-las, necessitava-se de vrios meses e um profundo

    conhecimento tipogrfico, atualmente, precisa-se somente de alguns dias, e qualquer

    designer, com um software adequado, estar capacitado para faz-lo. Na primeira dcada

    do computador pessoal (PC), nasceu toda uma gerao de designers que fizeram da

    tipografia o eixo de seus trabalhos, como Neville Brody, Eric Spiekermann, David

    Carson, Rudy Vanderlans e Zuzana Licko.

    A dupla Vanderlans e Licko encontraram no Macintosh um poderoso instrumento

    criativo com linguagem prpria. J desde seu incio, compreenderam que essa ferramenta

    oferecia muita liberdade no trabalho. Tornando possvel um dos projetos editoriais mais

    interessantes das ltimas dcadas: a revista Emigre. Nascida em 1984, em Berkeley

    (Califrnia), junto com a fundio digital Emigre Graphics, encabeada por Zuzana

    Licko . A empresa passou a divulgar e comercializar fontes desenhadas pela proprietria,

    alm de outras criadas por jovens designers de todas as partes do mundo. Emigre

    disponibiliza e divulga fontes que exploram a mistura de elementos vernaculares com a

    tecnologia digital, alm de cultivar projetos experimentais. Em sua lista esto Barry

    Deck, Jonathan Barnbrook, Jeffery Keedy, Christian Schwartz, Miles Newlyn, John

    Downer, Frank Heine e a prpria Zuzana Licko (figura 3), entre outros. Dessa forma, eles

    conseguem colocar no mercado do design grfico um acervo cada vez maior fontes, alm

    das idiossincrticas, geralmente desprezadas pelos grandes fornecedores.

    Em se tratando de legibilidade da tipografia aplicada ao design grfico, vale

    notar que, numa perspectiva moderna, a legibilidade tida como o resultado de uma srie

    de atributos e critrios fixos aplicados ao texto, com base em normas criadas a partir de

    pesquisas ticas-funcionais, as regras tipogrficas. Esses referenciais no consideram

    as conotaes culturais dos caracteres, e tampouco vm o design como parte de uma

    cultura cada vez mais complexa e diversa. Parte-se do princpio que a tipografia e o

    design grfico tm como objetivo a comunicao com pblicos bem precisos. Um dos

    primeiros exemplos de fontes consideradas como signos a serem interpretados foram

    produzidos por Neville Brody para a revista The Face, na metade dos anos 80.

    Se analisarmos esta questo dentro de um determinado contexto histrico, as

    normas de legibilidade mudam conforme a poca. Baskerville , sem dvida, uma fonte

    de fcil leitura, poderamos consider-la uma verdadeira representante das fontes

    clssicas. Entretanto, na poca em que surgiu, em 1757, a Baskerville foi muito criticada

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  • por sua ilegibilidade, ao ponto de ser acusada de causar fadiga em seus leitores (Dauppe,

    1991). Essa pretensa dificuldade de leitura adveio de suas serifas mais finas, em

    conseqncia de uma aquisio tecnolgica da poca, o papel tornou-se mais fino e liso.

    O que parece legvel hoje, talvez fosse totalmente indecifrvel em outros tempos.

    As fontes desenhadas por Neville Brody,

    Barry Deck, Zuzana Licko, so testemunhas da

    complexidade e diversidade do mundo em que vivemos,

    suas criaes asseguram a identidade, o tom e a voz de

    cada projeto. O debate da tipografia ps-moderna vai de

    encontro neutralidade da comunicao grfica e dos

    padres defendidos pela escola modernista. Se

    observarmos a fonte Template Gothic (fig. 4) de Barry

    Deck, veremos como as fontes podem servir para

    representar um mundo imperfeito, conforme nota seu

    autor: fontes imperfeitas para um mundo imperfeito.

    4- Aprendendo com o cotidiano

    A paisagem verbal-visual criada pelas placas, faixas e luminosos de fachadas na regio

    metropolitana de Porto Alegre demonstra um processo complexo de apropriaes e

    circulao de esteretipos e de referncias culturais. A funo destes meios informar,

    esclarecer aos pblicos sobre determinados contedos, envolvendo o uso de diferentes

    linguagens e recursos grficos. Alguns letreiros das fachadas se destacam pelos estilos

    comerciais, ornamentais, irnicos e casuais. O problema consiste em saber se existe um

    vocabulrio especfico entre os letristas, os seus autores. E como eles resolvem as

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    Fig. 4: Fonte Template desenhada por Barry Deck em 1990.

    Fig. 5: Diferentes placas e letreiros comerciais na cidade de Novo Hamburgo.

  • questes entre forma e funo.

    De acordo com Kim & Kim (1993), a maneira que os grupos culturais so

    tipograficamente reconhecidos depende de valores conotativos e denotativos das formas

    das letras, considerando que elas devem ser analisadas dentro de uma determinada

    ambincia cultural envolvendo determinadas prticas e conhecimentos evidenciados no

    somente pelo o que est escrito, mas como est escrito.

    Com base em entrevistas realizadas com letristas em Novo Hamburgo,

    podemos perceber que: a) Em sua maioria, os letristas entrevistados so autodidatas,

    criam o desenho de suas letras, ou, buscam inspirao em fontes do computador; b)

    Raramente vem relao entre os estilos das letras com o tema abordado; c) No existem

    critrios para combinao entre diferentes estilos de letras; d) Diferenciam os ttulos dos

    textos pelo uso de caixa-alta e baixa, respectivamente.

    As placas e letreiros comerciais que registramos nesta pesquisa foram

    pintados mo livre, s vezes, diretamente nas paredes dos prdios, ou, em pequenas

    placas colocadas na frente do comrcio. A maioria deles exibe adornos ou detalhes

    curiosos, revelam destreza do letrista pelo uso seguro dos pincis. Percebemos que,

    determinadas letras apresentam particularidades em suas serifas, nas propores, no

    sombreamento, nas finalizaes dos traos, etc. Quando s repeties de determinados

    detalhes acontecem em nmero suficiente, reconheceremos, nas mesmas, um modelo

    reduzido. Algumas caractersticas reforam a expressividade e autenticidade dessas

    peas. Vemos ainda, a identificao da natureza do negcio por determinados signos

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    Fig. 6: Placas e letreiros comerciais em Novo Hamburgo

  • figurativos, garantindo o reconhecimento de propriedades que o cliente pretende

    comunicar (na figura 5, o desenho do pincel refora seu enunciado), a comunicao por

    imagens resulta mais ampla e imediata, garantindo ao receptor uma imediata relao ao

    referente (Eco, 1979).

    A comunicao grfica engloba atualmente uma grande variedade estilstica e

    tecnolgica em seus processos de produo. Ao investigarmos a profisso do letrista ou

    cartazista e as tcnicas tradicionais do desenho e pintura manual de letras, entendemos

    ser importante superar padres elitistas ditados pelo gosto e por modelos prontos, e

    reconhecer a necessidade de preservar-se um conhecimento que corre o risco de cair no

    esquecimento. So profissionais que transitam e convivem com o design grfico oficial, e

    devem, portanto, ser inseridos e reconhecidos na comunicao grfica atual.

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    Palavras-chaves: Tipografia vernacular, comunicao grfica, letristas, cultura popular.