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Tiragem: 33028 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 14 Cores: Cor Área: 25,70 x 30,15 cm² Corte: 1 de 9 ID: 64449881 15-05-2016 Apanha ilegal de toneladas de Centenas de pessoas retiram diariamente do estuário do Tejo cerca de 15 toneladas de amêijoa ilegal. Muita espalha-se pelo mercado nacional. Bivalves que podem estar contaminados com toxinas e metais pesados. Um estudo científico, autarcas e autoridades alertam para uma grave ameaça para a saúde pública que o consumo desta amêijoa pode significar. No estuário mistura-se um mundo de miséria e um negócio pirata que vale milhões de euros Luciano Alvarez Texto Enric Vives-Rubio Fotos amêijoa no Tejo ameaça saúde pública Todos os dias, quando a maré bai- xa, centenas de pessoas entram Tejo adentro entre a Trafaria e Alcochete. Munidos de sachos, ancinhos, facas de mariscar ou mesmo enxadas, fa- mílias inteiras, homens, mulheres e crianças, andam quilómetros para escavar o lodo. Buscam todo o gé- nero de bivalves, mas especialmente amêijoa-japonesa. Para muitos, esta actividade ilegal é o único sustento. Mas há também um circuito orga- nizado de intermediários que com- pram a amêijoa a estes mariscadores a preços irrisórios para a levar para o mercado espanhol, onde a procura é grande, ou para a passar para o mer- cado nacional. Tudo de forma ilegal. Muitos destes bivalves que che- gam ao prato dos portugueses não passam por qualquer análise, trata- mento ou depuração e podem estar

Tiragem: 33028 Pág: 14 Cores: Cor Period.: Diária Área: 25 ... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor ˚ nal tem sido

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Tiragem: 33028

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 14

Cores: Cor

Área: 25,70 x 30,15 cm²

Corte: 1 de 9ID: 64449881 15-05-2016

Apanha ilegal de toneladas de

Centenas de pessoas retiram diariamente do estuário do Tejo cerca de 15 toneladas de amêijoa ilegal. Muita espalha-se pelo mercado nacional. Bivalves que podem estar contaminados com toxinas e metais pesados. Um estudo científi co, autarcas e autoridades alertam para uma grave ameaça para a saúde pública que o consumo desta amêijoa pode signifi car. No estuário mistura-se um mundo de miséria e um negócio pirata que vale milhões de euros

Luciano Alvarez TextoEnric Vives-Rubio Fotos

amêijoa no Tejo ameaça saúde pública

Todos os dias, quando a maré bai-

xa, centenas de pessoas entram Tejo

adentro entre a Trafaria e Alcochete.

Munidos de sachos, ancinhos, facas

de mariscar ou mesmo enxadas, fa-

mílias inteiras, homens, mulheres e

crianças, andam quilómetros para

escavar o lodo. Buscam todo o gé-

nero de bivalves, mas especialmente

amêijoa-japonesa. Para muitos, esta

actividade ilegal é o único sustento.

Mas há também um circuito orga-

nizado de intermediários que com-

pram a amêijoa a estes mariscadores

a preços irrisórios para a levar para o

mercado espanhol, onde a procura é

grande, ou para a passar para o mer-

cado nacional. Tudo de forma ilegal.

Muitos destes bivalves que che-

gam ao prato dos portugueses não

passam por qualquer análise, trata-

mento ou depuração e podem estar

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País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

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cadores, cerca de 1500 ilegais, que

retiram do estuário a maioria dos 19

mil quilos de amêijoa-japonesa por

dia (dez mil pelos aparelhos de arras-

to) num negócio na sua larga parte

pirata que, em 2014, terá envolvido

uma verba estimada entre os 10 e os

23 milhões de euros.

Se se tiver em conta que os 182

apanhadores legais licenciados em

2014 registaram em lota nesse ano

um valor de cerca 1,6 toneladas por

dia e as apreensões feitas pela GNR

nos primeiros quatro meses deste

ano (58 toneladas a nível nacional),

percebe-se melhor a dimensão desta

actividade completamente desregu-

lada.

Autarcas da região do estuário

ouvidos pelo PÚBLICO falam de um

“problema gravíssimo”, “assusta-

dor”, “dramático” e com “graves

consequências para a saúde públi-

ca e ambiente”. Dizem-se de “mãos

atadas” por não terem poderes pa-

ra a resolução do caso e já apelaram

bastam”. O ministério aponta para a

necessidade de “um plano de gestão

integrado” que o Governo irá “de-

senvolver com as autarquias e outros

parceiros locais para criar condições

para a regulamentação da apanha no

estuário do Tejo”.

O impacto de um estudoO estudo, intitulado “Amêijoa-japo-

nesa, uma nova realidade no rio Te-

jo, reestruturação da pesca e pres-

são social versus impacto ambien-

tal”, juntou os investigadores João

Ramajal (do Centro em Rede de In-

vestigação em Antropologia, CRIA,

da Faculdade de Ciências Sociais

e Humanas da Universidade Nova

de Lisboa e do Centro de Ciências

do Mar e do Ambiente, MARE, da

Faculdade de Ciências da Univer-

sidade de Lisboa), David Piccard

(também do CRIA), José Lino Costa

(MARE e Instituto Português do Mar

e da Atmosfera, IPMA), Frederico B.

Carvalho (MARE), Miguel B. Gaspar

(IPMA e Centro de Ciências do Mar,

da Universidade do Algarve) e Pau-

la Chaínho (MARE).

O trabalho teve como objectivo a

“caracterização da pesca de amêi-

joa-japonesa e a caracterização do

circuito comercial dos exemplares

capturados no estuário do Tejo,

providenciando o conhecimen-

to científi co essencial para apoiar

uma proposta de regulamentação

de pesca sustentável às entidades

públicas”. O quadro que este estu-

do traça é negro: começa logo por

revelar que, embora não exista um

regulamento específi co para a pesca

de R. philippinarum (nome científi co

para amêijoa-japonesa) em Portugal,

“a pesca deste bivalve no estuário do

Tejo é enquadrada através da publi-

cação da Portaria 1228/2010, de 6 de

Dezembro, onde aparece elencada

com a designação genérica de Rudita-

pes spp., na lista de espécies animais

marinhas que podem ser objecto de

apanha”. “Apesar deste en-

contaminados com toxinas e até me-

tais pesados, levantando um grave

problema de saúde pública. Existem

também impactos ambientais nega-

tivos, causados especialmente pela

captura com uma técnica de arrasto:

ganchorras atreladas a barcos (apa-

relhos com uma espécie de lâminas

que rasgam o fundo do rio), por mer-

gulho, ou uso de berbigoeiros, uma

arte que revolve o solo do Tejo de

forma manual.

Desde o dia 3 deste mês que a

apanha de bivalves está proibida no

estuário do Tejo “devido à presença

de fi toplâncton produtor de toxinas

marinhas ou de níveis de toxinas ou

de contaminação microbiológica aci-

ma dos valores regulamentares”, in-

forma o Instituto Português do Mar

e da Atmosfera (IPMA).

Um estudo científi co que reuniu

departamentos de investigação de

várias universidades, realizado entre

Janeiro e Dezembro do ano passado,

revela existirem mais de 1700 maris-

a diversos ministérios, mostrando

estar “totalmente disponíveis para

colaborar”. “É um problema que to-

da a gente conhece, mas que poucos

querem resolver”, diz Luís Miguel

Franco, presidente da Câmara de

Alcochete.

O PÚBLICO contactou o Ministério

do Mar para saber que medidas tinha

em curso para combater esta activi-

dade ilegal. A resposta veio através

de um comunicado. “Os diferentes

contornos do problema e a nature-

za inorgânica dos apanhadores, que

agem a título individual, sem qual-

quer estrutura ou organização de

enquadramento, exigem que a res-

posta a dar ao problema seja pensada

de forma integrada”, lê-se no texto.

O comunicado acrescenta que o IP-

MA “continuará o seu programa de

acompanhamento e monitorização

da qualidade das águas e as autorida-

des fi scalizadoras mantêm a pressão

no combate às ilegalidades”, mas re-

conhece que “estes dois factores não c

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País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

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16 | PÚBLICO, DOM 15 MAI 2016

LISBOA

Loures

Vila Francade Xira

Ponte25 Abril

PonteVasco da Gama

Parque dasNações

1111431

12

5

105

60

0 10 20 30 40 50 60 70

Área de apanha para as várias artes de pesca de amêijoa-japonesa

Apeados Berbigoeiro apeado Berbigoeiro com vara

Apneia

Arrasto com ganchorraem embarcação

Mergulho

0 a 3 metrosprofundidade

3 a 18 metrosprofundidade

Foram detectadas seis artes de apanha da amêijoa-japonesa, os apanhadores designados como “apeados” foram identificados nas zonas intertidais, todos as outras artes são realizadas em zonas subtidais, umas com pouca profundidade, outras com mais, como é o caso do mergulho.

Apanha da amêijoa-japonesa no estuário do Tejo

Total de apanhadores por tipo de apanha

Apanhadores por género, em %

Fonte: Estudo Amêijoa-Japonesa, uma nova realidade no rio Tejo. Restruturação da pesca e pressão social versus impacto ambiental Cátia Mendonça

1

1 2 3 4 5 6

2 3

4

6

5

Apanhadores por faixaetária, em %

Técnicas de apanha

Cala do Norte

Moita

Barreiro

Alcochete

Baía do Seixal

TrafariaAlmada

Montijo

Estuáriodo Tejo

Estimativa das quantidades e dos preços totais de apanha por técnica de pesca em 2015

Para onde vai a amêijoa?

das capturas são expedidas para Espanha, podendo representar 9000 toneladas por ano sem controlo

Este molusco bivalve vive enterrado a cerca de 4 cm da superfície em sedimentos arenosos e vasosos das zonas intertidais e subtidais

Distribuição e rendimento médio da pesca de amêijoa-japonesa no estuário do rio Tejo em Maio de 2015, gramas/30 seg. arrasto

Kg/maré

Preço/kg

90%

Quantidades totais por ano*, em kg Valores por ano*, em euros

/embarcação/dia

Quantidade/esforço total anual de captura, kg/ano

17.271.102

3.393.434

Máximo

Mínimo*Estimativa**Acções da apanha

Amêijoa-japonesa Ruditapes philippinarum

836.637

1.069.809

31.864

12.702

1.412.512

2.990.010

1.673.275

1.783.015

63.728

25.404

1.765.640

11.960.040

1.606.344

2.139.618

75.836

32.264

3.587.780

2.990.010

3.212.688

3.566.030

151.673

64.526

4.484.726

11.960.040

Esforço mínimo** Máximo Esforço mínimo** Máximo

Apeados Berbigoeiroapeado

Berbigoeirocom vara

Apneia Mergulho Arrasto com ganchorra

1,92€ 2,00€ 2,38€ 2,54€ 2,54€ 1,00€

5-10 15-25 20-40 20-40 80-100 300-1200

Apeados

Berbigoeiroapeado

Berbigoeirocom vara

Apneia

Arrasto comganchorra

Mergulho

Espécie não ocorreu na estação

≥1 e <99 g

≥100 e <1000 g

≥1000 e <2500 g

≥2500 e <5000 g

≥5000 g

Apeados

Berbigoeiro ap.

Vara

Apneia

Ganchorra

Mergulho

Apeados

Berbigoeiro ap.

Vara

Apneia

Ganchorra

Mergulho

MasculinoFeminino

Indiferenciado

20-30 30-40 40-50 50-60 >60

Indeterminado

Berbigoeiroapeado

Apeados Berbigoeirocom vara

Apneia Arrasto comganchorra

Mergulho

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País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

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quadramento legal específi co para

o estuário do Tejo, todo o circuito co-

mercial, desde a apanha, depuração,

até ao consumidor fi nal tem sido alvo

de uma gestão defi citária, quer pela

dimensão da actividade, em expan-

são, que envolve um número cada

vez maior de pessoas, na sua maioria

ilegais, quer aos meios limitados das

autoridades públicas competentes na

fi scalização”, acrescenta.

Com base em diversas metodolo-

gias aplicadas no terreno, os investi-

gadores chegaram a uma estimativa

de um total de 1724 apanhadores de

amêijoa-japonesa no estuário do

rio Tejo, “sendo a grande maioria

apanhadores apeados com apanha

manual, com sacho, ancinho, faca

de mariscar ou enxada (1111 apanha-

dores) e com berbigoeiro (431)”. As

artes com menor representatividade

“são o mergulho em apneia e com

berbigoeiro com vara, perfazendo

cerca de 1% da média de apanhado-

res diários no estuário do rio Tejo”.

Os investigadores concluem ain-

da que a maioria dos apanhadores

“exerce a sua actividade durante

todo o ano e em todos os tipos de

maré (47%)”. No entanto, uma boa

proporção efectua a apanha apenas

quando a maré está baixa (42%), em

particular os apanhadores que estão

mais dependentes da área disponí-

vel que surge quando a maré baixa,

como é o caso dos apeados e com

berbigoeiro.

Relativamente ao esforço sema-

nal, a maioria dos inquiridos indi-

cou que “exerce esta actividade 6

dias por semana (33%), havendo

também uma elevada proporção

de apanhadores que o fazem todos

os dias da semana (22%) e 5 dias por

semana (21%).

Os resultados do estudo apon-

tam para um esforço de pesca (idas

à apanha) anual “maior para os apa-

nhadores apeados (167.327 unidades

de esforço/ano)”. “No entanto, o in-

tervalo de rendimento (5-10 quilos/

dia) desses apanhadores é inferior

ao das restantes artes, pelo que as

capturas diárias são dominadas pe-

los apanhadores por arrasto com

ganchorra, cujo rendimento diário

varia entre os 300 e os 1200 kg.”

A disparidade destes e de outros

valores apresentados no estudo fi -

cam a dever-se ao facto de os apa-

nhadores retirarem quantidades

muito variáveis de amêijoa do rio,

além das variações de apanha nos

diversos meses do ano.

Os investigadores estimaram um

número aproximado de 35 interme-

diários (centros de depuração e ex-

pedição e compradores com locais

de armazenamento) “a distribuir 5

toneladas/semana/ cada para Espa-

nha, perfazendo um total estimado

em cerca de 9400 toneladas no ano

de 2014”.

A lei em vigor estabelece um má-

ximo de 80 quilos por dia por apa-

nhador legal no estuário do Tejo.

Em 2014, foram emitidas 182 licen-

ças, o que pode perfazer um total de

Após apanhar a amêijoa no Samouco, a GNR regressou a Lisboa para a devolver ao rio no Poço do Bispo

14,7 toneladas por dia como limite

máximo de capturas legais. Os regis-

tos das descargas em lota em 2014,

cedidos pela Direcção-Geral dos Re-

cursos Naturais aos investigadores,

apontam para um valor aproximado

de 1,6 toneladas por dia. “Estes dados

agregam os registos nas capitanias de

Cascais, Lisboa e Setúbal e Sesimbra,

tendo em conta que os apanhadores

podem registar as suas capturas nas

capitais imediatamente a montante e

jusante daquela onde está registada a

sua licença. Tendo em conta o inter-

valo de esforço anual estimado, que

varia de 4000 a 17.000 toneladas,

grande parte das capturas não são

registadas em lota e entram ilegal-

mente no circuito comercial nacio-

nal. Foram identifi cadas diferentes

vias de canalização da amêijoa-japo-

nesa até ao consumidor fi nal, fora do

circuito legal. Foi observada a venda

directa efectuada por apanhadores a

mercados, restaurantes e cafés. Não

foi possível quantifi car este volume

devido ao elevado número transac-

ções efectuadas a este nível”, revela

o estudo.

9 mil toneladas sem controloOutra forma ilegal de comerciali-

zação identifi cada, acrescentam os

investigadores, “foi o transporte de

amêijoa-japonesa por apanhadores

em viaturas próprias e de lotes de

amêijoa com rótulos falsos, sendo

difícil obter informação junto dos in-

tervenientes, sempre reticentes em

revelar detalhes”. Também a GNR já

detectou a falsa rotulagem, tendo

instaurado dois processos-crime a

dois intermediários.

Os autores do estudo apuraram

ainda que a amêijoa-japonesa é ven-

dida pelos mariscadores aos interme-

diários “entre os 8 cêntimos e 4 euros

por quilo” e “chega ao consumidor a

preços que podem variar entre os 8

e os 12 euros/quilo”. Autarcas e mili-

tares da GNR dizem que em alturas

de maior procura, como no Verão

ou fi ns-de-semana, o preço mais alto

pode chegar aos 5 euros/quilo.

“Verifi cou-se que 90% das capturas

de amêijoa-japonesa são expedidas

para Espanha, podendo representar

9000 toneladas/ano, sem controlo

por parte das autoridades, estando

as mais-valias deste recurso a ser

deslocalizadas para o país vizinho”,

salientam.

Segundo o estudo, os impactos

ambientais “são diferenciados en-

tre as diferentes artes de apanha de

bivalves e devem-se maioritariamen-

te ao revolvimento dos sedimentos

em zonas estuarinas”. A apanha re-

alizada pelos apanhadores apeados

“aparenta ser a menos lesiva sobre

o ecossistema (...) uma vez que a

sua intervenção restringe-se as áre-

as intertidais e o tempo de trabalho

é limitado ao período e amplitude

das marés”. Continua o estudo: “A

ganchorra rebocada por embarcação

é mais lesiva para o ecossistema por

intervencionar uma maior profundi-

dade do sedimento, devido à maior

dimensão dos dentes, à extensão

da área da actuação e tempo médio

de operação superior desta arte no

estuário.” Esta arte de apanha tem

ainda “consequências ao nível ben-

tónico [comunidade de organismos

que vive no substrato de ambientes

aquáticos], seja pela alteração da sua

biologia, suspensão de nutrientes e

consequente alterações na composi-

ção química e biologia na estabilida-

de do sedimento”.

Perigo para a saúdeEm termos de recomendações, os

investigadores dizem ser “necessá-

rio um plano estratégico de apoio à

gestão da apanha desta espécie no

estuário do Tejo, evitando uma po-

tencial exploração excessiva e conse-

quentemente a sua exaustão, como

verifi cados noutros ecossistemas” e

“de uma urgente regularização de

toda a cadeia-de-valor, visando adap-

tar o esforço de pesca ao estado de

conservação dos bancos de amêijoa-

japonesa”.

“O circuito comercial é defi ciente

e inefi ciente face a grande expansão

desta espécie no estuário do Tejo e

requer a colaboração e participação

de todos os intervenientes para a re-

gulamentação desta actividade eco-

nómica face a uma nova realidade”,

recomendam no documento que foi

entregue no fi nal do ano passado à

Direcção-Geral de Recursos Naturais,

Segurança e serviços Marítimos tute-

lada pelo Ministério do Ambiente.

Os problemas graves para a saúde

pública, abundantemente referidos

no estudo, é o que mais preocupa as

diversas entidades ouvidas pelo PÚ-

BLICO. Segundo explicou Paula Cha-

ínho, bióloga do MARE, o estuário

do Tejo está, em termos de salubri-

dade, classifi cado como área de ní-

vel C. Esta classifi cação signifi ca que

para estes bivalves serem vendidos e

consumidos teriam de ser colocados

em depuração prolongada em meio

natural, numa zona de nível A, onde

os bivalves podem ser apanhados e

consumidos. Acontece que em Por-

tugal não está defi nida em termos de

regulamentação nenhuma área de

transposição para essa depuração

prolongada, não podendo assim le-

var a cabo esse processo.

A amêijoa-japonesa apreendida

pela GNR é assim lançada ao estuário

do Tejo, podendo acabar por voltar

às mãos dos apanhadores ilegais.

Paula Chaínho não tem dúvidas

de “que o consumo desta amêijoa só

poderia ser feito após um processa-

mento industrial”, ou seja, cozida.

Consumida sem tratamento, acres-

centa, “pode constituir um grave

problema para a saúde pública”,

podendo causar doenças como in-

toxicação diarreica.

A bióloga aconselha que os portu-

gueses consumam apenas amêijoa

“devidamente ensacada e rotulada

com a autorização ao consumo” e

lembra que a venda de amêijoa em

tabuleiros ou outros recipientes e

sem rótulos, como acontece em mui-

tos restaurantes, “é proibida”.

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praia na sexta-feira da semana

passada (dia 6).

António Almeirim, 77 anos,

conhece como poucos a zona,

que é uma das mais frequentadas

pelos mariscadores ilegais devido

ao fácil acesso ao rio. Por ali

nasceu e trabalhou “uma vida” na

base área do Montijo. Foi eleito

autarca pela primeira vez em

1976, cumpriu o mandato, depois

afastou-se da junta por oito anos

e voltou a ser eleito em 2005.

Cumpre o seu terceiro e último

mandato, sempre eleito pelas

listas do PCP.

“Isto [os mariscadores ilegais] é

um cancro, um cancro. Dão cabo

de tudo, deixam lixo por todo o

lado, não respeitam ninguém”,

afi rma apontando para os montes

de lixo que os funcionários da

junta reuniram no areal e onde

se destacam garrafas e latas de

cerveja. “Isto é um perigo. Já

duas raparigas se cortaram aqui

nos vidros e tiveram de ir para o

hospital”, conta.

António Almeirim fala com

orgulho do trabalho que a

junta de freguesia tem feito

na praia do Samouco ao longo

Assim que a maré começa a subir, centenas de homens, mulheres e crianças saem do rio carregados de amêijoa

Em baixo, António Almeirim, presidente da junta do Samouco

Na página seguinte: em menos de uma hora, a GNR apreendeu cerca de 400 quilos de amêijoa--japonesa

dos anos, ainda frequentada

pela população local no Verão.

Aponta o parque infantil bem

cuidado, os balneários públicos,

o parque das merendas e o

“ginásio”, um telheiro onde se

encontram alguns aparelhos de

exercício físico. Conta a história

das palmeiras que “há muitos

anos” plantou “à borla” no

pequeno areal, dos chapéus-de-

sol coloridos e na insistência em

manter o local limpo.

Na véspera, uma operação

da GNR “limpou” os barcos

clandestinos que há “muitos

anos” se amontoavam junto ao

areal. “Foi uma luta longa, mas

fi nalmente conseguiu limpar-se a

praia, mas ainda há este cancro.”

“Mas qual é a família que quer

vir para aqui? Não respeitam

ninguém, saem da água e despem-

se com toda a gente a ver, exibindo

a nudez. Qual é o avô que vem

com os netos para aqui? Olhe,

ainda ontem à noite [quinta-feira,

dia 5], houve tiros entre grupos de

mariscadores a provocarem-se uns

aos outros”, revela.

O autarca diz que “o

espectáculo é igual todos os

façam apreensões de amêijoa

e de instrumentos de apanha

e identifi que mariscadores e

intermediários ilegais, mas

estes acabam sempre por voltar

quando a maré baixa, faça chuva

ou sol, porque o negócio, que

para alguns garante apenas a

subsistência, é para muitos uma

mina de ouro. Nos primeiros

quatro meses deste ano, a GNR

já apreendeu 58 toneladas de

amêijoa-japonesa um pouco por

todo o país. Estimam que cerca

de 90% seja retirada do estuário

do Tejo.

Dezenas de carros enchem

quase por completo o parque de

estacionamento e as ruas perto

da praia do Samouco, concelho

de Alcochete, no distrito de

Setúbal. Além de meia dúzia de

trabalhadores da junta de freguesia

que fazem a limpeza do local,

pouca gente se vê mais por ali.

“Os donos dos carros estão

todos no rio. Daqui a pouco

já começam a aparecer”, diz

António Almeirim, presidente da

junta de Freguesia do Samouco,

que se encontrou com os

jornalistas do PÚBLICO junto à

São centenas de pessoas que

diariamente se dedicam à apanha

ilegal de amêijoa no estuário

do Tejo. Assim que saem do rio

quando a maré começa a encher,

têm à sua espera receptadores

igualmente ilegais que vão

enchendo carrinhas depois

de pesarem os bivalves em

balanças comerciais pagando

valores irrisórios por quilo

(entre 8 cêntimos e 5 euros).

Depois vendem-no em Espanha

e Portugal pelo dobro do valor

pago aos mariscadores (de 8 a 12

euros).

Quando a GNR faz uma

operação de combate, “o

que acontece quase todos os

dias” ao longo do estuário, a

actividade não pára. Só que os

sacos carregados desta espécie

de amêijoa fi cam à espera no

estuário aguardando que a guarda

se vá embora para depois serem

trazidos para terra.

Segundo a GNR, é raro o

dia em que os militares não

Um negócio ilegal feito

às claras por gente que

não gosta de fotografias

A pacata praia da vila do Samouco transforma-se quando a maré começa a encher. A amêijoa é negociada com

intermediários ou enfi ada logo em carros. Quando a GNR aparece, o negócio atrasa-

se um pouco, mas nunca pára

Reportagem Luciano Alvarez

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Tiragem: 33028

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 19

Cores: Cor

Área: 16,50 x 30,34 cm²

Corte: 6 de 9ID: 64449881 15-05-2016

dias. “Assim que maré começa a

baixar, entram pelo rio. Todos os

dias andam por lá 200, 300, 400

pessoas. Tiram-se centenas de

quilos de amêijoa. Tudo ilegal”,

assegura.

Naquela sexta-feira a maré

atingiu o pico mínimo perto das

9h. Pelas 10h30, uma carrinha de

caixa fechada estacionou à boca do

areal. Três homens tiraram bidons

altos do interior que encheram

com água do rio. “Estes vêm para

o negócio. Não tarda nada, salta lá

de dentro uma balança para pesar

as amêijoas”, diz o presidente da

junta. Não tardou cinco minutos

para que uma balança comercial

fosse tirada da carrinha e colocada

em terra.

António Almeirim fala dos

“negócios paralelos” que a

apanha ilegal de amêijoa gera.

Aponta para um homem que

vende laranjas, para uma rulote

de bifanas que por essa altura

abria a venda e diz que “há dias”

em que por ali “se vende de tudo,

desde cerveja a alfaces”. Fala

também do “negócio dos barcos”,

que, “por cinco euros”, levam

os mariscadores para os baixios

mais distantes e depois “os vão

buscar”.

“Isto [mariscar a amêijoa] é

uma vida muito dura. Andar ali

horas dobrado no lodo não é fácil.

Para uns é o único sustento, mas

para muitos é um grande negócio.

Ui, ui”, afi rma o autarca.

“Se me dessem a escolher

ganhar um euromilhões ou

dinheiro que aqui passa, dizia

logo que queria o dinheiro

daqui”, acrescenta Vasco

Vespeiro, um funcionário da

junta que acompanha a conversa

enquanto vai reunindo o lixo

acumulado na praia.

Questionado por António

Almeirim “a como anda o preço

da amêijoa-japonesa por estes

dias”, o funcionário diz que

“ronda os 3,8 euros o quilo”,

mas quando a fartura é muita e a

procura menor “pode ser vendida

a um euro o quilo.”

“Isto é tudo ilegal, mas feito às

claras. À noite, os intermediários

até holofotes trazem para fazer o

negócio. Aqui acontece de tudo,

aqui há uns meses até houve uma

‘greve’”, conta António Almeirim,

explicando que os romenos,

que por ali andam em grande

número como confi rmámos, “não

foram para o rio e não deixaram

ninguém ir para obrigar os

intermediários a subir o preço. “A

‘greve’ durou um dia. No outro

dia, os preços subiram um pouco

e voltou tudo para o rio”, revela.

Pouco depois das 11h, os

primeiros homens, mulheres e

crianças começam a chegar a

terra. São dezenas, que formam

longas fi las no estuário numa

marcha lenta. Uns usam fatos

de mergulho, outros roupa

normal. Quase todos carregam

grandes mochilas ou sacos cheios

de amêijoa, ancinhos, facas e

aparelhos de arrasto manuais,

conhecidos como “berbigoeiros”.

Uns seguem directamente com

a carga para os carros, outros

juntam-se perto da carrinha e da

balança. A amêijoa é rapidamente

pesada e trocada por dinheiro. A

fi la de gente junto à carrinha vai

crescendo. As sacas carregadas de

amêijoa também.

Assim que o repórter

fotográfi co do PÚBLICO faz as

primeiras fotografi as, um dos

homens da carrinha chega-se

perto dos jornalistas. “Amigo, não

faça fotografi as que esta gente não

gosta de fotografi as”, diz.

Ao argumento dos jornalistas

de que ninguém será identifi cado

nas fotografi as e ao pedido de,

pelo menos, fotografar só as sacas

de amêijoas, o homem responde

como um seco “é melhor não”.

“Sempre que para aqui vêm

jornalistas e televisões, no dia

seguinte aparece logo a GNR.

Hoje [os militares] andam ali

por Alcochete, amanhã se calhar

estão aqui”, diz o homem.

Enquanto decorria a conversa,

um dos mariscadores sai de junto

da carrinha e dirige-se ao repórter

fotográfi co. “Se tiras mais uma

fotografi a, parto a máquina toda”,

ameaça num português mal

amanhado.

Acabada a venda, os

mariscadores, já mais longe do

areal, juntam-se em grupos.

Mudam de roupa e arrumam o

material que ajuda na apanha

da amêijoa. Muitos olhos dos

mariscadores ilegais viram-se

para os jornalistas. É uma boa

altura para deixar o local. O

presidente da junta de freguesia

do Samouco despede-se com mais

um desabafo. “Isto é uma tristeza,

vão acabar por dar cabo disto

tudo. A mim, um dia destes ainda

me limpam o sebo.”

GNR: operações diárias, O PÚBLICO voltou à praia

do Samouco na terça-feira

desta semana, desta vez para

acompanhar uma operação da

Unidade de Controlo Costeiro do

destacamento da GNR de Lisboa

contra a apanha ilegal de bivalves,

especialmente a captura de

amêijoa-japonesa.

Segundo o capitão Delgadinho,

a unidade “faz operações quase

diárias no estuário do Tejo, quer

pelo mar quer por terra”, contra

esta prática. No ano passado,

foram apreendidas cerca de 25

toneladas de amêijoa ilegal no

estuário do Tejo. Nos primeiros

quatro meses deste ano, até 30

Abril, a GNR já contabiliza cerca

de 18 toneladas.

O capitão Delgadinho revela

que e amêijoa-japonesa é

vendida pelos apanhadores

aos intermediários por valores

que oscilam entre um e cinco

euros, que muitas vezes a

comercializam, seja em Espanha,

seja no circuito nacional, por

“mais do dobro do preço”.

É sobre os intermediários

que incidem muitas das

acções da GNR, pois são eles

que transportam as grandes

quantidades e promovem este

negócio ilegal.

O 1.º sargento Gil Matos, da

Unidade de Controlo Costeiro, sai

de Lisboa pelas 13h acompanhado

por um militar. No caminho

para a margem, fala das “muitas

toneladas de amêijoa” que

apreendem e “no perigo que pode

causar para a saúde pública”.

Confessa mesmo que deixou de

comer amêijoas desde que faz

operações contra a apanha ilegal.

E faz operações desde que a

unidade foi criada, em 2009.

Um dos problemas com que

os militares se deparam é com

a apanha ilegal mascarada de

apanha lúdica. Cada cidadão

pode apanhar até cinco quilos

de amêijoa no estuário do Tejo

sem qualquer licença se a c

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Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

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A pesca de bivalves no estuário do Tejo tem sido uma actividade relevante ao longo de toda a história

de ocupação humana, sendo as ostras, berbigão, amêijoa-boa, lambujinha e amêijoa-macha as espécies mais capturadas.

Segundo os investigadores do estudo a que o PÚBLICO teve acesso, “a exploração destas espécies tem sido particularmente afectada pelos níveis de contaminação microbiológica e por metais pesados verificados neste estuário, que impõem restrições à sua comercialização [Despacho n.º 14515/2010 de 17 de Setembro] e pela depleção dos stocks de algumas espécies”.

“A amêijoa-boa e a amêijoa-macha são exemplos do decréscimo acentuado das populações de bivalves deste estuário. No primeiro caso, foi observado um decréscimo significativo nos últimos dez anos, que coincidiu com a colonização extensiva do habitat ocupado pela amêijoa-japonesa, uma espécie não nativa”, acrescentam os investigadores.

Essa depleção levou à interdição da captura da amêijoa-boa (Portaria n.º 85/201de 25 de Fevereiro), sendo simultaneamente autorizada a captura da amêijoa-japonesa. “A partir de 2010 verificou-se um decréscimo tão significativo das

populações de amêijoa-macha que levou à paragem da quase totalidade das embarcações dedicadas a esta pescaria”.

Não se sabe exactamente como a amêijoa-japonesa foi introduzida em Portugal, “mas a sua ocorrência nos sistemas portugueses é conhecida há mais de duas décadas”, refere o estudo.

“É provável que a espécie, endémica do Japão, tenha sido importada até águas europeias no contexto de ensaios de aquicultura, inicialmente em França em 1972, e subsequentemente em Itália, Espanha e Irlanda”.

Os investigadores dizem ainda que em Portugal, “apesar de as abundâncias

A “japonesa” está no Tejo há duas décadas

recolha for feita à mão, se usar

um instrumento como uma faca

de mariscar ou um ancinho, pode

igualmente apanhar até cinco

quilos, mas necessita de pagar

uma licença para a pesca naquele

dia. Acontece que muitos ilegais

só trazem aos cinco quilos de

cada vez para terra para puderem

alegar pesca lúdica perante as

autoridades.

Gil Matos diz ter conhecimento

de que os intermediários têm

vigilantes junto às capitanias, ou

junto aos locais de apanha, para

avisarem que está pronto para

comprar amêijoa nas margens do

estuário. “Se um intermediário

for apanhado com 300 quilos de

amêijoa ilegal, tendo pago quatro

euros por quilo, ao preço que ela

anda por estes dias, são 1200 euros

que perde em minutos”, afi rma.

Pelas 13h30, encontra-se com

parte da equipa de 11 homens que

vai coordenar na operação num

parque de estacionamento junto

ao Montijo. No local, fazem um

compasso de espera de cerca de

meia hora antes de partirem para

a praia do Samouco, que já está a

ser vigiada à distância. Pelas 14h,

partem para a praia.

Chegam com serenidade, sem

alaridos e agem de forma rápida

e coordenada. Mostram, todos

eles, ter uma grande experiência

e conhecimento do terreno e do

comportamento dos mariscadores

ilegais. Os 11 militares espalham-se

pelo perímetro da praia de forma

a controlar o terreno, rodeados

por centenas de ilegais, num

ambiente claramente hostil.

Ao contrário da primeira vez

que o PÚBLICO esteve na praia,

não há nenhuma carrinha a fazer

negócio. É notório que estavam

avisados da proximidade da GNR.

Os militares depressa descobrem

uma pequena carrinha de

transporte com vários sacos

de amêijoa-japonesa. É uma

viatura que está estacionada

no mesmo lugar junto à praia

há cerca de dois meses. Os

militares chamam-lhe “carrinha-

armazém”. O marisco é colocado

no seu interior, para mais tarde

ser levantado e transportado

para Espanha ou para o circuito

nacional, provavelmente pela

calada da noite.

O seu proprietário é identifi cado

e alvo de uma contra-ordenação

que segue para a Direcção-Geral

de Recursos Naturais, Segurança

e Serviços Marítimos (DGRM), a

quem cabe aplicar a multa quando

a apanha de bivalves está proibida

no Tejo, como acontece neste

momento, devido à presença de

fi toplâncton produtor de toxinas

marinhas, detectadas por análises

realizadas pelo Instituto Português

do Mar e Atmosfera. Se a apanha

não estivesse interdita e se se

tratasse de um caso de apanha

ilegal, a multa seria aplicada pela

ASAE. As multas variam entre os

600 e os 3400 euros, dependendo

acima de tudo da reincidência no

crime.

Ao contrário da sexta-feira da

passada semana, as centenas

de mulheres e homens que

saem do rio para a praia do

Samouco não carregam mochilas

ou sacos cheios de amêijoa.

Os mariscadores também não

abandonam rapidamente a praia.

Muitos fi cam em terra, juntando-

se em grupos. “Deixam os sacos

no mar, para os irem buscar

quando formos embora. Se a

maré já estiver alta, vão buscar os

sacos quando ela voltar a baixar”,

explica o sargento Gil Matos.

Uma pouca-vergonhaMuitos não se chegam à praia,

esperam nas pequenas ilhotas

que a maré baixa criou, até que a

GNR parta, para depois trazerem

os sacos carregados. “Se o rio não

estivesse já a subir e pudéssemos

entrar, apanharíamos dezenas

de sacas”, acrescenta o sargento.

Ainda assim, apanham três sacos

já próximos de terra.

Cerca de meia hora depois de

chegarem à praia, os militares

descobrem uma nova carrinha

igualmente carregada com vários

sacos de amêijoa-japonesa,

utensílios para a apanha e

uma balança comercial. Foi

abandonada pelo proprietário

devido à presença da GNR. Um

telefonema para Lisboa basta para

identifi car o proprietário, mas

isso não signifi ca que seja ele que

conduzia a viatura. A GNR mostra-

se esperançada em encontrar o

condutor na praia, mas acaba

por não conseguir. O material

é apreendido e o proprietário

receberá uma contra-ordenação.

Enquanto a operação decorre,

uma mulher dirige-se aos

militares. “Ó senhor guarda, não

pode chamar uma televisão para

vir fi lmar esta pouca-vergonha?”

O militar responde que isso não é

da sua competência.

Informada da presença

dos jornalistas do PÚBLICO,

manifesta-se interessada “em

fazer uma reclamação”. Diz

chamar-se Cláudia Santos,

identifi ca-se como mariscadora

ilegal e reclama “por licenças

que os autorizem a mariscar.”

À volta dos jornalistas e da GNR

juntam-se agora várias dezenas de

pessoas.

Cláudia continua o protesto:

“Isto é uma pouca-vergonha.

Anda aqui tudo ilegal, quando

devia ter licenças para apanhar

a amêijoa. Vamos unir-nos e

pressionar o Governo para nos

dar licenças. Isto tem de passar a

ser legal.”

Questionada sobre o facto

de a apanha estar por estes

dias totalmente interditada, a

mariscadora tem uma resposta

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desta espécie serem ainda geralmente baixas nos sistemas colonizados, no estuário do Tejo, onde ocorre há cerca de 12 anos, verificou-se uma explosão demográfica nos últimos anos, não existindo ainda produção aquícola da espécie e um circuito comercial com muitas práticas ilegais”.

A bióloga Paula Chaínho admite que para quem não é especialista é fácil confundir a amêijoa-japonesa com outros tipos de amêijoa consumida pelos portugueses. As principais diferenças estão na concha, sendo a da japonesa mais rugosa, e na composição dos sifões com que se alimentam.

curta: “Temos de comer todos os

dias.” Já sobre os problemas que

isso pode causar para a saúde

pública, Cláudia ignora a questão

e passa a palavra a um colega.

César Nascimento repete as

palavras de Cláudia e pede a

“construção de uma depuradora”

na margem Sul. “Isto [a amêijoa

japonesa] vai toda para Espanha.

Eles é que lucram com isto, e

muita da amêijoa volta depois

para ser vendida em Portugal.”

César é o mesmo homem que

na sexta-feira negociava a amêijoa

ilegalmente numa carrinha

junto à praia do Samouco e

que, de forma ameaçadora,

aconselhou os jornalistas a não

tirarem fotografi as no local.

Antes de a conversa acabar, César

ainda pede ao redactor para se

identifi car, anotando o nome no

telemóvel.

A GNR conhece bem Cláudia

Santos e César Nascimento, já que

por várias vezes os identifi cou e

lhes apreendeu amêijoa-japonesa

colhida ilegalmente.

A operação termina de forma

tranquila pouco antes das 16h. No

porta-bagagem do carro seguem

cerca de 400 quilos de amêijoa-

japonesa apreendida, que, após

o regresso a Lisboa, é novamente

lançada ao rio, como manda a

lei. A descarga é feita num local

isolado no Cais da Pedra, no

Poço do Bispo. “Se a deitássemos

ao rio do outro lado, assim que

partíssemos mandavam-se todos

ao Tejo para a recuperarem”, diz

o sargento Gil Matos.

O militar e os homens da

Unidade de Controlo Costeiro vão

voltar muitas vezes ao estuário do

Tejo nos próximos tempos, com

uma certeza: em cada operação

vão apreender muitas centenas

de quilos de amêijoa capturada

de forma ilegal. Gil Matos diz

que a sua unidade nada mais faz

do que “cumprir a sua missão”,

mas não deixa de afi rmar que o

que mais o preocupa “é o grave

problema para a saúde pública”

que o consumo desta amêijoa

pode causar.

Autarcas alarmadosComo Gil Matos, também é

esta a principal preocupação

dos autarcas da região. Carlos

Humberto Carvalho, presidente

da Câmara do Barreiro, diz que

este “é um problema que se

estende a todas as câmaras do

arco ribeirinho”, mas que “devia

preocupar todos os portugueses,

uma vez que a amêijoa se espalha

por todo o país”. Este autarca

eleito pela CDU diz que as

câmaras “não têm nenhuma

competência para intervir” e

revela que já lançaram “muitos

alertas e diversas entidades e

ministérios”, mas que acaba tudo

no que chama de “difícil gestão de

contradições” e “nada é feito”.

“Não posso fazer mais do que

desabafar. Todos nós temos

grandes preocupações pelas

pessoas, pelos confl itos sociais,

pelos problemas ambientais e de

saúde pública, mas nada podemos

fazer a não ser lançar alertas. Só

que, depois, cada cabeça, sua

sentença. Nós estamos de mãos

atadas a assistir a esta desgraça”,

afi rma.

“É um gravíssimo problema

aos mais variados níveis. É uma

ameaça para o ambiente, para a

saúde pública e uma economia

paralela que ninguém controla.

É assustador e dramático”,

acrescenta por sua vez Luís

Miguel Franco, presidente da

Câmara de Alcochete. O autarca,

também eleito pela CDU, lembra

que “todos os presidentes

de câmara da região” já se

disponibilizaram “para ajudar a

resolver o problema”, mas que

não obtêm resposta das entidades

governamentais.

Além do problema para a saúde

pública, Franco fala de “praias

onde é deixado diariamente todo

o tipo de lixo, latas, garrafas,

fraldas”, estas últimas usadas

pelos mariscadores para se

manterem mais tempo no mar. “É

também um caso de uma grande

indignidade humana.”

Como soluções apontam uma

regulamentação deste tipo de

actividade, mais fi scalização

aos ilegais e a construção de

uma unidade de processamento

industrial ou uma depuradora na

região.

Luís Miguel Franco diz que

tem também “de haver respeito

pelas pessoas que vivem desta

actividade ilegal e que para

muitos é o único sustento”,

passando “pela criação de um

enquadramento profi ssional

e por garantias da realização

do trabalho com segurança e

dignidade”.

Armando Silva,

veterinário municipal do Barreiro,

é muitas vezes chamado pelas

autoridades para certifi car

apreensões feitas na região

pelas autoridades. Diz ter

conhecimento pessoal de “várias

pessoas que fi caram gravemente

doentes” devido ao consumo

de amêijoa-japonesa. “São

contaminadas com toxinas que

causam gastroenterites graves e,

em alguns casos, com materiais

pesados, que podem causar

cancro”, afi rma.

Diz ainda que, da Trafaria

a Alcochete, “a situação é

muito grave, por mais que

a polícia actue é impossível

controlar centenas e centenas

de apanhadores que fazem uma

captura brutal”. Armando Silva

também refere que muita dessa

amêijoa é vendida para Espanha,

“num circuito que ASAE e a

polícia conhecem bem”.

Fala de grupos organizados,

que chegam na baixa-mar para

fazer grandes apanhas para

vender aos intermediários. “Muita

desta amêijoa entra num mercado

de candonga, com vendas às

escondidas nas ruas ou para

vendas em alguns restaurantes.

Esses restaurantes misturam esta

amêijoa com a amêijoa legal,

ensacada, depurada e com selo

de garantia”, afi rma. “Não como

amêijoas em nenhum restaurante

da margem Sul. Só como as

compradas ensacadas, com o

selo legal, em lojas que eu sei que

são de confi ança ou em grandes

superfícies”, remata.

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País: Portugal

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Âmbito: Informação Geral

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Cores: Cor

Área: 25,70 x 24,64 cm²

Corte: 9 de 9ID: 64449881 15-05-2016PATRÍCIA DE MELO MOREIRA/AFP/GETTY IMAGES

Amêijoa apanhada no Tejo é grave ameaça à saúde públicaTodos os dias são recolhidas ilegalmente toneladas de amêijoa no estuário do Tejo. Um negócio pirata que vale milhões e para o qual alertam autarcas, autoridades e um estudo científi co Págs. 14 a 21