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RDS VI (2014), 3‑4, 833‑902 Titularização, a alquimia financeira da crise do subprime DR. RUBEN MARQUES Sumário: Introdução. Capítulo I – Características da titularização: 1. O instrumento finan‑ ceiro; 2. Tipos de ativos titularizáveis; 3. Métodos de titularização. Capítulo II – Titularização em Portugal: Secção I – Parte geral: 1. Âmbito; 2. Cedentes; 3. Cessionários; 4. Créditos susce‑ tíveis de titularização: 4.1. Requisitos de elegibilidade dos critérios para efeitos de titularização; 4.2. Créditos futuros; 4.3. Plenitude da cessão; 5. Gestor de créditos; 6. Forma; 7. Efeitos da cessão e insolvência do cedente; Secção II – Fundos de Titularização de Créditos: 8. Noção, modalidades e constituição; 9. Empréstimos e cobertura de riscos; 10. Sociedades gestoras; 11. Depositário; Secção II – Sociedades de Titularização de Créditos: 12. Princípios funda‑ mentais na emissão de obrigações titularizadas; 13. Objeto; 14. Recursos financeiros; 15. Trans‑ missão de créditos. Capítulo III – Titularização no mundo: Secção I – Espanha: 1. Ativos titu‑ larizáveis; 2. Estruturas de titularização; 3. Questões jurídicas; Secção II – França: 4. Ativos titularizáveis; 5. Estruturas de titularização; 6. Questões jurídicas; Secção III – Reino Unido: 7. Ativos titularizáveis; 8. Estruturas de titularização; 9. Questões jurídicas; Secção IV – EUA: 10. Tipos de ativos titularizáveis; 11. Estruturas de titularização; 12. Principais questões legais na titularização nos EUA. Capítulo IV – Crise Subprime: Secção I – O processo de desregulação: 1. Shadow Banking; 2. A crise das Saving & Loans; 3. Duas visões, dois caminhos opostos: A expansão da atividade bancária e o fim do Glass-Steagall Act; Secção II – A titularização: 4. A explosão no crédito à habitação; 5. A estruturação de operações de titu‑ larização; 6. Interesses e incentivos à titularização; Secção III – O fim da alquimia financeira: 7. A Loucura; 8 – Consequências: 8.1 – Os factos; 8.2 – A crise era evitável? Capítulo V – Conclusões. Bibliografia. Relatórios oficiais. Jurisprudência. Operações de titularização. Introdução Os mercados financeiros estão constantemente na vanguarda do desenvolvi- mento financeiro. A titularização constituiu um sinal da sofisticação desses mesmos mercados. Nos anos 90 e até 2007, a titularização desempenhou um papel central nos EUA, especialmente em Wall Street. Imbuídos por lucros exponenciais, os intervenientes deste mercado assumiram riscos que não eram supostos, e que irão figurar nos livros de história e de economia durante décadas.

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Titularização, a alquimia financeira da crise do subprime

dR. RUBen MaRQUes

sumário: Introdução. Capítulo I – Características da titularização: 1. O instrumento finan‑ceiro; 2. Tipos de ativos titularizáveis; 3. Métodos de titularização. Capítulo II – Titularização em Portugal: Secção I – Parte geral: 1. Âmbito; 2. Cedentes; 3. Cessionários; 4. Créditos susce‑tíveis de titularização: 4.1. Requisitos de elegibilidade dos critérios para efeitos de titularização; 4.2. Créditos futuros; 4.3. Plenitude da cessão; 5. Gestor de créditos; 6. Forma; 7. Efeitos da cessão e insolvência do cedente; Secção II – Fundos de Titularização de Créditos: 8. Noção, modalidades e constituição; 9. Empréstimos e cobertura de riscos; 10. Sociedades gestoras; 11. Depositário; Secção II – Sociedades de Titularização de Créditos: 12. Princípios funda‑mentais na emissão de obrigações titularizadas; 13. Objeto; 14. Recursos financeiros; 15. Trans‑missão de créditos. Capítulo III – Titularização no mundo: Secção I – Espanha: 1. Ativos titu‑larizáveis; 2. Estruturas de titularização; 3. Questões jurídicas; Secção II – França: 4. Ativos titularizáveis; 5. Estruturas de titularização; 6. Questões jurídicas; Secção III – Reino Unido: 7. Ativos titularizáveis; 8. Estruturas de titularização; 9. Questões jurídicas; Secção IV – EUA: 10. Tipos de ativos titularizáveis; 11. Estruturas de titularização; 12. Principais questões legais na titularização nos EUA. Capítulo IV – Crise subprime: Secção I – O processo de desregulação: 1. shadow Banking; 2. A crise das saving & Loans; 3. Duas visões, dois caminhos opostos: A expansão da atividade bancária e o fim do Glass -steagall act; Secção II – A titularização: 4. A explosão no crédito à habitação; 5. A estruturação de operações de titu‑larização; 6. Interesses e incentivos à titularização; Secção III – O fim da alquimia financeira: 7. A Loucura; 8 – Consequências: 8.1 – Os factos; 8.2 – A crise era evitável? Capítulo V – Conclusões. Bibliografia. Relatórios oficiais. Jurisprudência. Operações de titularização.

Introdução

os mercados financeiros estão constantemente na vanguarda do desenvolvi-mento financeiro. a titularização constituiu um sinal da sofisticação desses mesmos mercados. nos anos 90 e até 2007, a titularização desempenhou um papel central nos eUa, especialmente em Wall Street. imbuídos por lucros exponenciais, os intervenientes deste mercado assumiram riscos que não eram supostos, e que irão figurar nos livros de história e de economia durante décadas.

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o objetivo de “Titularização, a alquimia financeira da crise do subprime” é permitir a compreensão do instrumento financeiro que é a titularização, qual o papel que esta assumiu na crise do subprime, cujos efeitos nefastos se fazem sentir até ao dia de hoje, e procurar saber se esta crise era evitável.

assim, no primeiro capítulo vamos abordar os modelos, métodos e tipos de créditos titularizáveis, de modo a delimitarmos um quadro conceptual sobre a titularização.

no segundo capítulo iremos analisar as idiossincrasias da titularização em Portugal e realizar uma análise jurídica das principais questões que se suscitam. as questões abordadas tiveram na sua génese não apenas a análise da legislação sobre a titularização, mas, também, as operações de titularização que ocorreram no nosso país.

o terceiro capítulo é dedicado ao estudo das principais características e problemas da titularização nos estados Unidos da américa, Reino Unido, espanha e França. Para o efeito, estabelecemos uma matriz de questões que foram anali-sadas transversalmente em cada um destes países.

no quarto capítulo, mergulhamos pelo século XX norte -americano em busca dos acontecimentos e das políticas que criaram as condições para a titularização assumir o papel que teve.

o último capítulo é um resumo da nossa viagem, dedicado às conclusões da mesma.

Capítulo I – Características da titularização

1. O instrumento financeiro

titularização, jogo de soma zero ou alquimia1 financeira? enquanto instru-mento financeiro complexo, a titularização resume -se, na sua essência, à trans-formação de uma relação de natureza obrigacional num valor mobiliário.

a caracterização deste instrumento financeiro será realizada no capítulo i e ii deste trabalho, por ora, importa perceber quais as principais vantagens e riscos que lhe estão associados.

as vantagens devem ser analisadas numa dupla perspetiva, do cedente e dos investidores. assim, numa perspetiva intemporal do cedente, destacamos: a liquidez imediata, uma forma alternativa de financiamento2, o melhoramento do

1 steven L. schwarcz, The global alchemy if asset securitization, international finance law review, 1995, 30 a 35.2 Frank J. Fabozzi, e vinod Kothari, Securitization: The Tool of Financial Transformation, 11 do pdf.

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rácio de solvabilidade e a saída do ativo do balanço de um conjunto de créditos, o denominado off ‑balance sheet3.

a conjuntura atual adicionou uma importante vantagem para os bancos cedentes de países que pertençam à zona euro. essa vantagem consubstanciou -se na possibilidade de entrega de ativos junto do Banco central europeu (doravante “Bce”) como garantia, para efeitos de política monetária do eurosistema, de modo a assegurar liquidez para esses bancos4. isto é, os bancos cedem créditos para titularização, subscrevem os valores mobiliários emitidos no âmbito das operações de titularização, e entregam a classe mais sénior dessa operação (normalmente denominada por Classe A) ao Bce, obtendo, por esta via, liquidez.

no que concerne às vantagens por parte dos investidores verifica -se a possi-bilidade de diversificação de carteira, atendendo aos diferentes tipos de crédito que são titularizados. adicionalmente os valores mobiliários associados a estas operações possuem, em muitos casos, um rating, o que constitui um importante elemento a considerar na tomada de decisões.

Relativamente aos riscos associados a este instrumento destacam -se a extrema complexidade5 do mesmo, a dificuldade de conhecimento efetivo dos créditos que

3 a utilização do off ‑balance sheet é um fenómeno generalizado de financiamento que se caracteriza pela transferência dos fluxos financeiros de um ativo para um terceiro, e.g. um SPV, por parte de uma empresa que, em regra, mantém os direitos de controlo sobre esses mesmos ativos. isto é, retiram -se do balanço os créditos e, em sua substituição, entra a contraprestação da cessão dos créditos, por exemplo dinheiro. neste sentido Gary Gorton e nicholas s. souleles, in Special Purpose Vehicles and Securitization, 43.4 a decisão do Bce/2011/25, de 14 de dezembro de 2011, que introduziu este mecanismo pretendeu “(…) promover a concessão de empréstimos bancários e a liquidez no mercado monetário da área do euro. (…)”, conforme considerando 2.º da referida decisão. esta decisão foi alterada pela decisão Bce/2012/11 de 28 de junho de 2012, que diminui o rating exigido, de a para BBB, às operações de titularização realizadas, em virtude dos sucessivos downgrades do rating de alguns países da zona euro, uma vez que para a atribuição do rating de uma operação de titularização o risco país é incluído na análise e limita a obtenção de melhores ratings.5 a complexidade deve ser analisada numa dupla perspetiva. numa primeira perspetiva a opacidade verifica -se face a alguns segmentos do mercado e aos reguladores. existe por vezes um desconhecimento do preço, e da identificação das partes, o que pode conduzir a uma falsa perceção da real exposição das sociedades. neste sentido, dan awrey, Complexity, Innovation and the Regulation of Modern Financial Markets, 21. a segunda perspetiva refere -se à complexidade que emerge da estruturação das operações de titularização, que contém um vasto conjunto de mecanismos que visam cobrir determinados riscos, garantir determinados rácios de solvabilidade ou assegurar a prioridade de pagamento entre classes. em muitos destes mecanismos existem contrapartes cuja eventual insolvência poderá repercutir -se nas operações. Por exemplo, se uma sociedade que assegura o swap de taxa de juro fixa para variável for à falência e não for substituída antes da existência de uma subida/ descida das taxas de juro, então a operação poderá ter que reconhecer um prejuízo que não decorre exclusivamente da qualidade dos créditos.

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compõem a carteira6 e, por conseguinte, a necessidade de confiança na análise realizada pelas agências de rating7.

corroborando os riscos identificados em outubro de 2008, alan Greenspan, antigo presidente da Reserva Federal dos estados Unidos, disse, relativamente à crise económica a nível mundial que se iniciou no verão de 2007, que: “(…)The evidence strongly suggests that without the excess demand from securitizers, subprime mort‑gage originations (undeniably the original source of the crisis) would have been far smaller and defaults accordingly far lower (…)”8.

devemos então entender que a titularização é um instrumento financeiro nocivo? ou, por outro lado, face às vantagens apresentadas devemos aceitar que são justificáveis alguns dos problemas associados à titularização? em suma, a titu-larização é um bom ou mau instrumento financeiro?

intrinsecamente relacionada com esta questão está a natureza humana. É essa natureza que constitui o ponto de partida, e talvez, de chegada para respondermos a esta última questão.

Para o efeito, pensámos que devíamos tentar compreender esta questão procurando outras situações em que a natureza humana assumiu um carácter fundamental. assim, chegamos ao contrato social, relativamente ao qual os filó-sofos ingleses, thomas Hobbes e John Locke, apresentam visões diametralmente opostas sobre a natureza das pessoas e consequentemente sobre a fundamentação da necessidade do mesmo.

Joseph s. nye, Jr refere9 que a natureza descrente e pessimista de Hobbes sobre a natureza humana resulta do facto de este ter sido profundamente influen-ciado pela Guerra civil inglesa (1642 -1651)10. Pelo contrário, Locke escreveu as suas principais obras no final do século Xvii, este distanciamento face à guerra ter -lhe -á permitido conceptualizar uma visão mais positiva do homem e do desenvolvimento da vida em sociedade.

assim, na titularização como em qualquer instrumento financeiro ou de uma forma mais lata nos diferentes aspetos da vida, as circunstâncias constituem

6 existe também uma certa opacidade decorrente do excesso de informação existente no mercado, cujo caráter extremamente técnico dificulta a compreensão da qualidade dos créditos. neste sentido, dan awrey, Complexity, Innovation and the Regulation of Modern Financial Markets, 21 e 22.7 a própria análise dos créditos não obedece à mesma metodologia entre agências de rating, o que conduz a uma maior possibilidade de variação da apreciação realizada. assim, enquanto a Fitch e a s&P avaliam a capacidade geral do credor cumprir com as suas obrigações, a Moody’s incorpora um juízo de recuperação de perdas. adam B. ashcraft, e til schuerman, Understanding the Securitization of Subprime Mortgage Credit, 37.8 http://www.nytimes.com/2008/10/24/business/economy/24panel.html?_r=0 9 Joseph s. nye, Jr, Compreender os conflitos internacionais: uma introdução à teoria e à história, Gradiva, 2002, 2 a 6.10 em 1651, Hobbes publicou o livro Leviatã.

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um elemento preponderante na tomada de decisões, mas fundamental é a ética e os valores que subjazem ao sujeito que toma as decisões. a titularização não é boa, nem má, é um meio que visa alcançar um conjunto de resultados positivos para todas as partes. não obstante, quando não é usada diligentemente, ou seja, quando os sujeitos que usam este instrumento, imbuídos pelo seu sucesso, buscam incessantemente cada vez melhores resultados ignorando os riscos associados a este instrumento poderemos ter não num jogo de soma zero, mas um jogo de soma negativa em que, partes e stakeholders, todos perdem.

2. Tipos de ativos titularizáveis

em teoria todos os ativos e créditos são suscetíveis de serem titularizados. a opção sobre o que pode ser titularizado depende da opção política e legislativa de cada país. sem prejuízo das especificidades inerentes às diferentes legislações existem características que são transversais e que, acompanhando vries Robbé11, nos permitem agrupar os ativos e créditos que mais frequentemente são objeto de titularização. deste modo, a maioria das operações relativas a titularização são enquadráveis num dos seguintes tipos:

•RMBS–Residential Mortage ‑Backed Securities. isto é, estamos no âmbito do crédito hipotecário que é o mais comum e o que apresenta um maior grau de segurança para os investidores, uma vez que este tipo de crédito tem associado a hipoteca do imóvel adquirido.

•CMBS–Comercial Mortgage ‑Backed Securities. este tipo de crédito constitui uma especificidade do anterior na medida em que apenas incide sobre cré-ditos hipotecários de natureza comercial.

•CLO–Collateralized Loan Obligations. são créditos originados no âmbito da atividade bancária. todavia existem créditos que embora de natureza ban-cária, integram outra designação devido à sua especificidade e.g. RMBs.

•CDO–Collateralized Debt Obligations. este tipo de crédito refere -se à titula-rização de outras obrigações titularizadas, ativos financeiros estruturados ou dívida empresarial12. a título exemplificativo, os fluxos financeiros gerados pelas obrigações titularizadas X assegurarão o reembolso e a remuneração das obrigações titularizadas Y.

11 Jan Job de vries Robbé, Securitization Law and Practise – In Face of the Credit Crunch, Wolters Kluwer Law & Business, 6 e 7.12 salientamos que de modo a compreendermos os cdo na sua essência, deveremos proceder não só à análise dos seus ativos, mas também no que respeita às responsabilidades que são assumidas, à sua finalidade, e ao modo de estruturação de crédito. douglas J. Lucas, Laurie s. Goodman, e Frank J. Fabozzi, Collateralized Debt Obligations and Credit Risk Transfer, 3 a 9.

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• ABS–Asset ‑Backed Securities. este termo é o mais genérico de todos e engloba, inter alia, créditos relativos a cartões de crédito, empréstimos pesso-ais, a PMe, ao consumo e leasing. o termo aBs ganhou tal preponderância que, nalguns países, consome as designações RMBs, cMBs e cLo.

3. Métodos de titularização

a parafernália de metodologias de titularização de crédito apenas encontra limite na imaginação humana. esta ideia encontra -se corroborada no capítulo iii relativo à titularização de créditos noutros países, onde melhor se compreenderá que os métodos de titularização utilizados variam em função dos objetivos que se pretendem alcançar. deste modo, existem métodos que visam a otimização fiscal, outros a transferência completa de risco e outros pretendem mitigar ques-tões jurídicas.

nesta fase, contudo, convém caracterizar as metodologias que são mais comuns nos processos de titularização independentemente das especificidades que estas possam ter quando concretizadas.

assim, na sua génese os principais métodos de titularização são:

i) Pass Through – neste método o cedente transfere os créditos para um Spe‑cial Purpose Vehicle (doravante “sPv”) que emite valores mobiliários para o pagamentos destes. Por esta via os subscritores dos valores mobiliários assumem o risco pelo cumprimento dos créditos.da aplicação deste método resulta que o papel do cedente esgota -se na alienação dos créditos, enquanto a função do sPv circunscreve -se, con-forme observa calvão da silva13, à de um “depositário ‑gestor desses créditos”.em termos contabilísticos, esta cessão assegura que o cedente retira de balanço os créditos que tinha e que estes deverão ser reconhecidos no balanço dos subscritores (caso sejam sociedades).

ii) Pay -through – neste método o cedente transfere os direitos de créditos para um sPv que emite dívida para o pagamentos destes. contudo, estes créditos permanecem na titularidade do cessionário (sPv)14. sendo esta a grande diferença para o método Pass Through. nesta medida, os subscritores recebem direitos de crédito sobre o sPv que são garantidos pelos créditos titularizados. isto é, os investidores não estão, somente, a investir no risco de cumprimento dos créditos mas no risco de cumprimento do sPv (do qual fazem parte os créditos).

13 João calvão da silva, Titul[ariz]ação de Créditos. Securitization, almedina, 2114 João calvão da silva, Titul[ariz]ação de Créditos. Securitization, almedina, 20

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em termos contabilísticos, este método permite que o cedente retire os créditos do seu balanço, devendo os mesmos serem reconhecidos no balanço do SPV.

iii) CMO – Collateralized Mortgage Obligations – este método constitui uma ramificação do Pay -through, ou seja, todas as características que foram descritas nesse método são aplicáveis a este.esta estrutura tem a particularidade de o valor mobiliário emitido poder possuir diferentes classes. assim, numa operação de titularização podemos ter classes seniores cujo pagamento de capital é preferencial face às junio-res. Hipoteticamente é também possível diferir o pagamento de capital das classes mais juniores para momento ulterior ao pagamento das classes seniores. sem prejuízo de, em regra, o pagamento de juros ser efetuado com a mesma periodicidade. a especificidade deste método resulta da necessidade de mitigar os pagamentos antecipados dos créditos, de modo a abranger investidores interessados em valores mobiliários com maturidades de longo prazo, e.g. companhias de seguro e fundos de pensões. considerando que o paga-mento de capital é diferido, logo o risco inerente aos valores mobiliários emitidos é maior, e por conseguinte, o juro pago será superior ao de outras classes mais seniores. deste modo, é também possível atrair investidores com um perfil de risco menos conservador, e.g. hedge funds.

Por fim, uma nota acerca sobre Revolving Asset Securitization. de acordo com Leite de campos e cláudia saavedra Pinto15 Revolving Asset Securitization constitui também uma importante estrutura de titularização. entendemos que não estamos perante uma estrutura de titularização, mas sim perante uma característica que algumas operações de titularização possuem.

o Revolving consiste na aquisição de novos créditos, com o capital que provêm do reembolso dos credores, ou seja, durante um determinado período não é amor-tizado o capital dos subscritores de valores mobiliários, sendo esse capital cana-lizado para a aquisição de novos créditos com o objetivo de prolongar a vida das operações de titularização. este mecanismo foi inicialmente pensado no âmbito de créditos cujos períodos são muito curtos (e.g. cartões de crédito), todavia o Revolving é aplicado transversalmente a todo o tipo de crédito, inclusive crédito hipotecário16.

15 diogo Leite de campos e cláudia saavedra Pinto, Créditos Futuros, Titularização e Regime Fiscal, almedina, 33.16 operações de titularização Pelican Mortgage n.º 6, e Pelican Finance n.º 1 cujas obrigações titula-rizadas foram emitidas pela sagres – stc, e tagus – stc, respetivamente.

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considerando estes aspetos, entendemos que o revolving não é uma estrutura de titularização no sentido em que não existem especificidades relativamente à titularidade dos créditos e, consequentemente, quanto à entidade que assume o risco ou quanto às partes intervenientes numa operação. É apenas, uma caracte-rística que as operações de titularização podem ou não ter. não existe nenhum óbice a que todos os métodos de titularização que enunciamos tenham revolving.

Capítulo II – Titularização em Portugal

Secção I – Parte geral

o decreto -Lei n.º 453/99, de 5 de novembro17 (doravante “Regime Jurí-dico da titularização de créditos” ou “RJtc”) regula a titularização de créditos em Portugal18.

o RJtc tem três capítulos principais. o primeiro é relativo a uma parte geral da titularização, o segundo e terceiro incidem sobre as especificidades dos fundos de titularização de créditos (doravante “Ftc”) e das sociedades de titu-larização de créditos (doravante “stc”), respetivamente. Por razões de índole sistemática e de modo a captar as idiossincrasias de cada veículo de titularização a nossa exposição obedecerá à divisão estabelecida no RJtc.

1. Âmbito

Uma vez realizado um breve enquadramento sobre os ativos e métodos de titularização que existem no mundo importa perceber quais as principais carac-terísticas do nosso sistema.

em primeiro lugar devemos referir que o RJtc “(…) estabelece o regime das cessões de créditos para efeitos de titularização e regula a constituição e o funcionamento dos fundos de titularização de créditos, das sociedades de titularização de créditos e das sociedades gestoras daqueles fundos”, conforme n.º 1 do artigo 1.º.

17 todos os artigos referidos no capítulo ii deste trabalho referem -se a este diploma salvo declaração expressa em contrário.18 existem questões jurídicas que não encontram resposta no RJtc. assim, procurámos integrar essas lacunas recorrendo à “norma aplicável aos casos análogos”, conforme n.º 1 do artigo 10.º do código civil (doravante “cc”). considerando que a titularização de créditos constitui uma ramificação da cessão de créditos, procurámos integrar as lacunas encontradas recorrendo preferencialmente ao código que regula esta matéria, ou seja, o cc.

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a questão sobre no que consiste a titularização em Portugal encontra resposta no n.º 2 do artigo 1.º que estabelece que “consideram ‑se realizadas para efeitos de titularização as cessões de créditos em que a entidade cessionária seja um fundo de titulari‑zação de créditos ou uma sociedade gestora de titularização de créditos”. da análise deste artigo resultam duas ideias chave. a primeira é que a cessão incide sobre cessões de crédito, a segunda é que a entidade cessionária tem que ser um Ftc ou uma sociedade de titularização de crédito (“stc”), conforme n.º 1 e 2 do artigo 1.º, respetivamente.

Relativamente à primeira ideia chave devemos procurar concretizar o conceito de crédito. intrinsecamente ligado a este conceito está o de obrigação e deve ser este o ponto de partida para definirmos o âmbito da titularização em Portugal. assim, de acordo com o artigo 397.º do cc obrigação “(…) é o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação (…)”. no direito civil esta noção deve ser analisada, seguindo almeida costa19, em conjunto com o n.º 2 do artigo 398.º do cc que estatui que “(…) a prestação não necessita de ter valor pecuniário; mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de proteção legal.”.

do exposto resulta que a obrigação de uma pessoa realizar uma determinada prestação traduz -se num direito de crédito que a outra parte possui. É este direito de crédito que é passível de ser titularizado. sem prejuízo do suprarreferido, no âmbito da titularização de créditos, a cessão de um direito de crédito terá que corresponder a um determinado valor pecuniário, ou seja, ao preço de compra desse direito.

2. Cedentes

em Portugal vigora o princípio da tipicidade no que respeita às entidades que podem ceder créditos para efeitos de titularização, opção que é discutível. isto é, o universo de entidades cedentes20 circunscreve -se ao estado e demais pessoas coletivas públicas, às instituições de crédito, às sociedades financeiras, às empresas de seguros, aos fundos de pensões e às sociedades gestoras de fundos de pensões,

19 almeida costa, Direito das Obrigações, almedina, 9.ª ed., 58 e 59.20 importa delimitar os conceitos de originador e cedente. deste modo, originadores são as entidades que ficam com um direito de crédito no momento em que um determinado negócio jurídico é celebrado. diferentemente, cedentes são as entidades que cedem créditos para efeitos de titularização. o cedente e o originador não têm que ser a mesma entidade mas em regra estas figuras coincidem. a título exemplificativo, o Banco a pode ter sido o mutuante de um determinado montante a um seu cliente, tendo posteriormente cedido o seu direito de crédito ao Banco B que cedeu o seu crédito a uma stc com o objetivo de titularizar este crédito. neste exemplo o Banco a é o originador (do crédito) e o Banco B é o cedente (do crédito para efeitos de titularização).

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bem como outras pessoas coletivas cujas contas dos três últimos exercícios tenham sido objeto de certificação legal por auditor registado na comissão do Mercado de valores Mobiliários (doravante “cMvM”), conforme n.º 1 do artigo 2.º.

entendemos que esta opção não nos parece razoável atendendo às finalidades da titularização de crédito e à própria constituição da República Portuguesa. considerando que a titularização na sua essência constitui uma forma de finan-ciamento das pessoas que pretendem titularizar os seus créditos, obtendo deste modo liquidez e mitigando o risco de incumprimento por parte devedores dos créditos, não parecem existir razões que justifiquem a impossibilidade de pessoas singulares, ou pessoas coletivas que não tenham certificação legal de contas dos três últimos exercícios de titularizarem os seus créditos. conexa com esta questão e, acompanhando calvão da silva21, entendemos que esta opção gera dúvidas constitucionais atendendo ao princípio da igualdade. a inexistência de funda-mento atendível que permita a diferenciação entre pessoas parece consubstan-ciar uma colisão de um ato jurídico -público, no caso o RJtc, com o princípio constitucional da igualdade, pelo que, entendemos estar perante uma inconsti-tucionalidade material22.

salientamos que a opção legislativa portuguesa que exige às pessoas coletivas que as suas contas tenham sido objeto de certificação legal por auditor registado na cMvM nos três últimos exercícios teve inspiração no Real Decreto 926/1998, de 14 de mayo, diploma que regula a titularização de ativos em espanha. não obstante, a opção pela limitação de entidades que podem ceder créditos para efeitos de titularização é bastante rara a nível internacional e, na nossa opinião, constitui um entrave injustificado a este instrumento financeiro.

Por fim, importa indagar sobre se os cedentes de créditos têm que reter um interesse económico líquido nos créditos que titularizam. a questão é especial-mente relevante uma vez que a assunção de parte do risco pelo cedente tende a assegurar uma maior prudência e diligência na seleção dos créditos objeto de titularização. deste modo, a existência deste requisito é suscetível de mitigar a titularização de créditos nocivos e constituir um fator de credibilização das opera-ções de titularização.

na Ue esta questão é regulada não na perspetiva do cedente mas na ótica de determinados investidores. assim, estabelece o n.º 1 do artigo 405.º do Regula-mento da Ue n.º 575/2013 de 26 de junho estabelece que “uma instituição23 que

21 João calvão da silva, Titul[ariz]ação de Créditos. Securitization, 45 a 4822 sobre a noção de inconstitucionalidade material, carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo I, Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade, 136 a 147.23 o conceito de instituição corresponde a: “uma instituição de crédito ou uma empresa de investimento”, conforme n.º 3, do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento da Ue n.º 575/2013.

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não esteja a atuar na qualidade de entidade cedente, patrocinadora ou mutuante inicial só pode ser exposta ao risco de crédito de uma posição de titularização inscrita na sua carteira de negociação ou extra carteira de negociação se a entidade cedente, patrocinadora ou mutuante inicial tiver comunicado expressamente à instituição que irá manter, de forma contínua, um interesse económico líquido substancial que nunca pode ser inferior a 5%”.

considerando que não existe legislação adicional que incida sobre esta matéria que seja aplicável em Portugal, entendemos que não existe qualquer obrigação do cedente em reter um interesse económico sobre os créditos que são objeto de titularização.

assim, a detenção pelo cedente, quando seja uma instituição de crédito ou empresa de investimento, de um interesse económico líquido não inferior a 5% apenas se justifica na eventualidade de este pretender que o leque de entidades (i.e. instituições de crédito ou empresas de investimento) que possam deter os valores mobiliários dos créditos que titularizou seja mais alargado.

na nossa opinião, se entendemos como adequada a preocupação de tutelar as instituições de crédito e as empresas de investimento, pensamos que dever -se -ia tutelar, também, todas as outras empresas que pretendessem titularizar créditos (e.g. empresas que fornecem eletricidade ou água), à semelhança do que acontece nos eUa24. não parece existir nenhum motivo que justifique a necessidade de determinados cedentes terem que reter risco e outros não. a retenção de risco constitui uma forma de promoção da titularização enquanto instrumento finan-ceiro, pelo que não deveria existir qualquer discriminação em função do cedente.

24 o dodd–Frank Wall street Reform and consumer Protection act estabelece na sec. 15G que:• “(…) The regulations prescribed under subsection (b) shall—

(A) (…);(B) require a securitizer to retain—(i) not less than 5 percent of the credit risk for any asset— (I) that is not a qualified residential mortgage that is transferred, sold, or conveyed through the issuance of

an asset ‑backed security by the securitizer; or(II) that is a qualified residential mortgage that is transferred, sold, or conveyed through the issuance of an asset ‑backed security by the securitizer, if 1 or more of the assets that collateralize the asset ‑backed security are not qualified residential mortgages; or

(ii) less than 5 percent of the credit risk for an asset that is not a qualified residential mortgage that is transferred, sold, or conveyed through the issuance of an asset ‑backed security by the securitizer, if the originator of the asset meets the underwriting standards prescribed under paragraph (2)(B).

(…)”; e• a definição de securitizer corresponde a:

“(…) (A) an issuer of an asset ‑backed security; or(B) a person who organizes and initiates an asset backed securities transaction by selling or transferring assets, either directly or indirectly, including through an affiliate, to the issuer; (…)”. (sublinhados nossos).

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salientamos todavia que na eventualidade dos créditos cumprirem determi-nados parâmetros que fossem suscetíveis de assegurar a qualidade dos créditos então poder -se -ia prescindir da necessidade de retenção do risco. este nosso enten-dimento resulta do facto de se estar a assegurar a qualidade do crédito não por via um incentivo à seleção de “bons” créditos (i.e. retenção) mas pela definição, por via legal, de critérios que aferissem o que são créditos de elevada qualidade. ambas as formas são passíveis de contribuir para a promoção da titularização.

3. Cessionários

as sociedades cessionárias para efeitos de titularização de créditos são: i) os fundos de titularização de créditos25, de inspiração francófona, e ii) as sociedades de titularização de créditos26, de inspiração anglo -saxónica, conforme artigo 3.º.

a tipicidade legal existente no nosso sistema exclui qualquer outro tipo de veículo de titularização que não os identificados. a principal característica destes veículos reside na segregação patrimonial que oferecem, ou seja, não há qual-quer confusão patrimonial entre o conjunto de ativos que são titularizados e o património da sociedade que gere os fundos (doravante “sGFtc”) ou da stc.

4. Créditos suscetíveis de titularização

4.1. Requisitos de elegibilidade dos critérios para efeitos de titularização

a definição de requisitos que permitam a elegibilidade dos créditos para efeitos de titularização foi uma opção tomada em Portugal e que se encontra concreti-zada no artigo 4.º. Facto interessante sobre esta matéria é a diferente opção entre países anglo -saxónicos e países romano -germânicos27. isto é, os primeiros optam por não estipular requisitos sobre créditos para titularização, o que em abstrato, permite a titularização de todo o tipo de crédito, diferentemente, países romano--germânicos (e.g. Portugal) optam pela identificação de critérios que os créditos devem obedecer para poderem ser titularizados.

25 À data de 15 de setembro de 2014 as sGFtc existentes em Portugal eram: a navegator, a Portucale e a Finantia. cf. http://web3.cmvm.pt/sdi2004/fundos/app/pesquisa_gestora_ftc.cfm?nomegestftc=26 À data de 15 de setembro de 2014 as stc existentes em Portugal eram: a sagres, a tagus, a Hefesto, a Gamma e a Gesphone securities. cf. http://web3.cmvm.pt/sdi2004/titularizacao/pesquisa_stc.cfm27 Infra capítulo iii.

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esta opção, pela existência de critérios, permite expurgar os critérios cuja qualidade é duvidosa assegurando -se deste modo uma qualidade mínima dos créditos. aliás, a qualidade do crédito é de tal modo relevante que originalmente não podiam ser titularizados créditos vencidos.

contudo, a Lei n.º 103/2003, nomeadamente o n.º 1 do artigo 2.º, definiu que o “(…) O Estado e a segurança social podem ceder créditos para efeitos de titulari‑zação, (…) ainda que esses créditos se encontrem vencidos, sujeitos a condição ou sejam liti‑giosos, podendo, neste caso, o cedente não garantir a sua existência e exigibilidade. (…)”. na sequência desta lei, surgiu o decreto -Lei n.º 303/2003 que revogou o critério relativo ao vencimento dos créditos, mas manteve os requisitos referentes à não litigiosidade dos créditos e à não existência de créditos com condições, salvo quando os cedentes sejam o estado ou a segurança social, n.º 2 no artigo 4.º28.

da análise do preâmbulo do decreto -Lei n.º 303/2003 não resulta qualquer justificação para o diferente tratamento que foi dado aos critérios existentes29. Pensamos que a justificação para tal opção reside no facto de se pretender titu-larizar créditos constituídos em que a relação bilateral, entre credor e devedor, não é afetada por situações exógenas a esta relação e à existência dos mesmos. a título exemplificativo num processo litigioso poderá haver uma terceira parte que coloque em causa a titularidade do próprio crédito, enquanto numa situação em que o crédito tenha uma condição o próprio crédito ou parte dele estão dependentes de um facto futuro e incerto. deste modo, o crédito ainda não esta plenamente determinado no momento inicial, consequentemente, não é susce-tível de ser titularizado.

4.1.1. a transmissibilidade não se encontrar sujeita a restrições legais ou conven-cionais

este requisito corresponde ao princípio da cessão de créditos definido no artigo 577.º do cc, que estatui: “(…) O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor. (…)”.

28 assim, mantiveram -se padrões mínimos de qualidade e de segurança do crédito, o que permite “(…) que os agentes do mercado apreciem a qualidade das operações realizadas (…)”, cf. preâmbulo do decreto -Lei n.º 303/2003.29 apenas é referido que “(…) foi eliminada a proibição legislativa de titularização de créditos vencidos, deixando que os agentes do mercado apreciem a qualidade das operações realizadas, face à classificação de risco que a empresa de notação de risco lhes atribua. (…)”.

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considerando que a redação do n.º 1 do artigo 4.º não é idêntica ao do artigo 577.º do cc, ainda que a finalidade subjacente a ambas as normas seja a mesma, e que o RJtc nada refere sobre a possibilidade de se titularizar uma parte do crédito, suscita -se a questão sobre se é ou não admissível a titularização parcial de um crédito. atendendo a que o artigo 577.º do cc prevê a possibi-lidade de cessão de uma parte do crédito entendemos que é possível titularizar uma parte de um crédito.

Relativamente a esta temática importa referir que já foram realizadas operações de titularização de créditos em que apenas foi titularizado uma parte do crédito. a título exemplificativo veja -se a operação Volta Electricity Receivables30, na qual a edP – serviço Universal s.a. titularizou parte do direito de crédito que tem sobre os consumidores, em virtude da compra de energia a produtores em regime especial no ano de 2012 e dos ajustamentos referentes às compras realizadas nos anos de 2010 e 2011.

4.1.2. serem de natureza pecuniária

a natureza pecuniária do crédito pretende circunscrever a natureza dos créditos que são objeto de titularização, uma vez que em abstrato as prestações não têm que ter natureza pecuniária, conforme n.º 2 do artigo 398.º do cc que estatui: “a prestação não necessita de ter valor pecuniário; mas deve corresponder a um inte‑resse do credor, digno de proteção legal”.

assim, apenas é admissível a titularização de créditos constituídos por obriga-ções pecuniárias, independentemente de serem em moeda nacional ou estrangeira, artigo 550.º e 558.º do cc, respetivamente. em sentido diverso, não se podem titularizar obrigações de “(…) natureza não monetária ainda que de valor económico ou patrimonial (…)”31.

4.1.3. não se encontrarem sujeitos a condição

este requisito de elegibilidade dos créditos pretende evitar que sejam titulari-zados créditos que não gerem fluxos financeiros suficientemente certos para asse-gurar o cumprimento das obrigações decorrentes da titularização. evitando -se, deste modo, a existência de factos exógenos ao próprio crédito (e.g. a vontade do locatário de exercer a opção de compra sobre o bem) que aumentem a incerteza sobre os créditos titularizados.

30 http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd27675.pdf.31 João calvão da silva, Titul[ariz]ação de Créditos. Securitization, almedina, 77.

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importa, nesta fase, delimitar o conceito de condição. deste modo, uma vez que este conceito não está definido no RJtc importa analisar o cc. assim, de acordo com o artigo 270.º do cc, o termo condição é definido do seguinte modo: “as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz ‑se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva.”. desta definição resulta a acessoridade da condição enquanto elemento do negócio jurídico.

estabelecido o ponto de partida para a análise de condição, suscita -se agora a questão de se saber se se pode (e deve) interpretar a não sujeição do crédito a condição à luz do artigo 270.º do cc. entendemos que não há qualquer razão de índole histórica, sistemática ou teleológica para considerar que a condição referida no preceito em análise seja diversa da regulada no cc. nesta medida, conclui -se que a condição prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º do RJtc terá o mesmo sentido da prevista no artigo 270.º do cc, ou seja, crédito sujeito a condição é aquele cujos efeitos (produção ou a sua manutenção) estão na dependência de um evento futuro e incerto32.

a existência de condições gera incertezas que não se coadunam com a opção legislativa portuguesa de que os créditos titularizados devem apresentar um padrão mínimo de qualidade. esta opção limita os créditos suscetíveis de titularização, todavia previne -se que existam perturbações de maior num instrumento finan-ceiro por natureza complexo.

Por fim, importa referir que quando o cedente seja o estado ou a segurança social o requisito em análise não tem que ser cumprido, conforme n.º 2 do artigo. esta opção suscita questões relativamente à igualdade entre cedentes, uma vez que não parecem existir razões que justifiquem esta descriminação positiva.

32 em caso de aposição de uma condição suspensiva a um negócio jurídico este só produz efeitos após a eventual verificação de determinado evento, neste sentido Menezes cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, 509 a 513. assim, relativamente à parte que dependa de condição suspensiva não estamos perante um direito mas, somente, perante uma expetativa. não obstante, no âmbito de contatos de locação financeira, por exemplo, caso o risco de não exercício da opção seja transferido para terceira entidade, n.º 7 do artigo 4.º, ficando este terceiro responsável pelo pagamento do montante não exercido, entendemos que a parte residual do crédito pode também ser titularizada, uma vez que, neste caso, existirá sempre um direito de crédito (ainda que sobre este terceiro).a existência de uma condição resolutiva resulta na cessação de produção de efeitos do negócio quando se verificar o evento em causa, Menezes cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, 509 a 513. desta situação, resulta que o direito de crédito pode deixar de existir caso se verifique um facto futuro e incerto.

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4.1.4. não serem litigiosos e não se encontrarem dados em garantia nem judi-cialmente penhorados ou apreendidos

a) Créditos não litigiosos

À semelhança da alínea anterior, o que se pretende com o requisito da não litigiosidade dos créditos e de os mesmos não se encontrarem dados em garantia, nem judicialmente penhorados ou apreendidos, é procurar mitigar o risco que os créditos titularizados possuam incertezas que aumentem o risco de incumpri-mento de um modo que descaracteriza a qualidade do próprio crédito.

Relativamente ao conceito de litigioso uma vez que este não se encontra defi-nido no RJtc devemos procurar o conceito de litigioso no cc. assim, “diz‑se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qual‑quer interessado”, conforme n.º 3 do artigo 579.º do cc.

esta definição de litigioso não esclarece cabalmente os moldes em que a contestação se processa, e consequentemente, qual o alcance do conceito de liti-gioso. a doutrina33 e a jurisprudência34 associam a existência de crédito litigioso com o facto de o mesmo ter sido contestado no âmbito dos processos judiciais.

neste sentido devemos entender a contestação em sentido lato, ou seja, quer a contestação em processos declarativos, quer a oposição em processos executivos

33 no entendimento de Pires de Lima e antunes varela, in código civil anotado, vol. i, coimbra editora, 596 e 597, não se exige que “(…) contestação incida sobre a substância do direito, embora não se exija que o direito tenha sido contestado (o que afasta as hipóteses de apenas se ter contestado a competência do tribunal ou a forma do processo usada, por exemplo). Mas continua a exigir ‑se que haja um processo em que o direito seja contestado, não bastando a eventualidade da contestação. Se o processo findar, deixa, consequentemente, o crédito de ser litigioso (…)”. os referidos autores parecem relacionar a litigiosidade de um crédito com a existência da contestação de um direito. isto é, na eventualidade de não existir uma contestação então considera -se que o crédito não é litigioso.34 a jurisprudência parece seguir a posição apresentada por Pires de Lima e antunes varela:a) tribunal da Relação do Porto – no âmbito de um processo de inventário é dito que: “No dizer de Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, I/3.ª ed./pg. 565, o Código Civil de 66 quis afastar ‑se da noção proveniente do Código de Seabra, não exigindo, como este último Código exigia, que a contestação incida sobre a substância do direito, embora se exija que o direito tenha sido contestado num processo determinado (não basta uma contestação eventual); igualmente não integram a noção litigiosa os créditos relativamente aos quais apenas se haja contestado, v.g., a forma do processo ou a competência do tribunal”, conforme Processo especial de inventário n.º 1117/06.3tJPRt, do 2.º Juízo cível da comarca do Porto (3.ª secção). b) tribunal da Relação de Lisboa – no decurso de um processo de insolvência foi suscitada a questão relativa ao conceito de crédito litigioso, tendo o referido tribunal entendido que “Um crédito é litigioso quando tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado (art.º 579.º, n.º 3 do Cód. Civil). Exige ‑se que haja um processo em que o direito seja contestado, não bastando a eventualidade dessa contestação. Se o processo findar, deixa, consequentemente, o crédito de ser litigioso”, conforme Processo 2526/2008 -7, Relator arnaldo silva.

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devem ser considerados, se se verificar a contestação ou oposição como fator de impedimento da consideração dos créditos como elegíveis.

Face ao exposto, considera -se que o simples facto de existir um processo judicial que envolva um crédito suscetível de ser titularizado não esclarece sobre a litigiosidade de um crédito, sendo necessário averiguar se existiu ou não uma contestação que incida sobre a existência ou não desse crédito e do montante do mesmo. apenas na eventualidade de existir qualquer contestação, sobre o direito do autor, é que o crédito deve ser considerado como litigioso e nessa medida não poder ser titularizado.

b) Créditos que não se encontrarem dados em garantia nem judicialmente penhorados ou apreendidos

o facto de não se permitir a titularização de créditos que sejam dados em garantia resulta do facto de se pretender evitar que créditos que possam ter uma responsabilidade perante terceiros sejam objeto de titularização. a ideia subjacente é a mesma que serve de fundamento aos restantes critérios de elegibilidade, ou seja, não permitir a titularização de créditos que gerem dúvidas quanto à exis-tência do crédito em si ou a alocação dos fluxos financeiros provenientes desses créditos a qualquer outra finalidade que não o pagamento aos obrigacionistas35.

À semelhança do critério sobre a condicionalidade do crédito, também neste requisito não existe obrigatoriedade de cumprimento quando o cedente seja o estado ou a segurança social, conforme n.º 2 do artigo 4.º. esta opção suscita questões relativamente à igualdade entre cedentes, na medida em que não parecem existir razões que justifiquem esta descriminação positiva.

4.2. créditos futuros

de modo a dirimir dúvidas que eventualmente poderiam surgir o RJtc expressamente prevê a possibilidade de serem “(…) cedidos para titularização créditos futuros desde que emergentes de relações constituídas e de montante conhecido ou estimável”, conforme n.º 3 do artigo 4.º.

o conceito de crédito futuro é concretizado no artigo 211.º do cc como créditos “(…) que não estão em poder do disponente, ou a que este não tem direito, ao

35 a título exemplificativo na eventualidade de termos um crédito que se encontra penhorado, artigo 679.º do cc, este constituiria uma garantia de um terceiro à titularização. deste modo, em caso de cobrança do crédito empenhado a alocação dos fluxos financeiros deste poderia gerar dúvidas, o que constituiria um facto perturbador da figura da titularização de créditos.

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tempo da declaração negocial”. isto é, são créditos que ainda não existem no momento em que são titularizados mas cuja previsibilidade que venham a existir é elevada.

Relativamente a esta matéria salienta -se o facto de apenas poderem ser cedidos créditos de relações constituídas e cujo montante seja conhecido ou estimável. Uma vez mais, a opção por circunscrever os créditos futuros suscetíveis de titulari-zação resulta do objetivo de assegurar alguma qualidade ao crédito, mitigando -se o risco de incerteza quanto ao nascimento do crédito. neste caso, a qualidade do crédito advém do facto de se exigir que exista relação já constituída, ou seja, que exista alguma previsibilidade da relação se manter no futuro (e.g. créditos futuros relativos ao consumo de água, eletricidade e gás) e do montante ser estimável, de modo a que os fluxos financeiros provenientes desse crédito sejam minimamente expectáveis para o investidor.

salientamos que a cessão de créditos futuros tem apenas eficácia obrigacional. a produção de efeitos reais somente acontece a partir do momento do nascimento do crédito, conforme n.º 2 do artigo 408.º do cc.

4.3. Plenitude da cessão

no âmbito dos créditos que podem ser titularizados entendemos como requisito essencial deste instrumento financeiro a plenitude da cessão. isto é, pretende -se transferir a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso dos créditos para os investidores, os que subscrevem os valores mobiliários emitidos, de outro modo, como poderiam ser concretizados algumas das vantagens da titularização como por exemplo o off ‑balance sheet? o princípio da true sale é estruturante da titularização, sem uma venda efetiva e verdadeira dos créditos o risco não é trans-ferido para terceiros36.

salienta -se que os créditos podem ser garantidos por terceiro, ou o risco de não cumprimento pode ser transferido para empresa de seguros, conforme n.º 7 do artigo 4.º. esta possibilidade permite mitigar o risco de cumprimento dos créditos todavia o custo associado à mesma torna este mecanismo pouco viável.

o conceito de terceiro é no entanto genérico, o que permite que qualquer entidade possa, por exemplo, garantir (em termos formais) o cumprimento do montante residual de um contrato de locação financeira (ainda que não tenha capa-

36 assim se compreende o facto de o n.º 4 do artigo 6.º estatuir que a “(…) cessão deve ser plena, não pode ficar sujeita a condição nem a termo (…) não podendo o cedente, ou entidade que com este se encontre constituída em relação de grupo ou de domínio, conceder quaisquer garantias ou assumir responsabilidades pelo cumprimento, sem prejuízo, em relação aos créditos presentes, (…)”. a tónica na não assunção de riscos garantias ou responsabilidade pelo cedente ou entidade em relação de grupo ou de domínio é o que permite assegurar a efetiva transferência de risco.

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cidade financeira para o efeito), permitindo assim a sua titularização. esta hipótese subverte o requisito da condicionalidade dos créditos, algo que não é desejável. Para o efeito, pensamos que seria importante a concretização de quais os crité-rios que devem existir para que um terceiro possa garantir créditos titularizados.

5. Gestor de créditos

considerando que Ftc e stc são veículos, a função de gestão de créditos assume especial relevância. esta função circunscreve -se todavia à cobrança de créditos e à prestação de informação sobre a evolução do cumprimento dos mesmos. o gestor dos créditos não tem propriamente à sua disposição mecanismos que permitam administrar os créditos, não os pode vender ou onerar, nem tão pouco utilizar instrumentos de cobertura de risco. assim, o “gestor” é a entidade que recebe os fluxos financeiros dos créditos e realiza diligências no sentido da cobrança dos mesmos.

o n.º 1 do artigo 5.º estabelece que quando a entidade cedente seja “(…) insti‑tuição de crédito, sociedade financeira, empresa de seguros, fundo de pensões ou sociedade gestora de fundos de pensões, deve ser sempre celebrado simultaneamente com a cessão, contrato pelo qual a entidade cedente fique obrigada a praticar, em nome e em representação da enti‑dade cessionária, todos os atos que se revelem adequados à boa gestão dos créditos (…)” e das garantias associadas. esta opção legislativa procura minimizar riscos opera-cionais que pudessem resultar da alteração de gestor e assegurar a “(…)neutralidade da operação em relação aos devedores cedidos (…)”37. Parece inequívoco que tendo o cedente um historial do devedor, conheça -o, e seja uma entidade habilitada para cobrar créditos, faz sentido que permaneça na função de gestor dos créditos.

não obstante, é possível que em determinadas circunstâncias e caso haja motivo atendível, a cMvM possa autorizar que, nas situações referidas no n.º 1 do artigo 5.º, a gestão dos créditos seja assegurada por entidade diferente do cedente, conforme n.º 4 do artigo 5.º.

nas situações que não são abrangidas pelo n.º 1 do artigo 5.º a gestão de créditos pode ser realizada pelo cessionário, pelo cedente ou por terceira enti-dade idónea, conforme n.º 2 do artigo 5.º. a inexistência de concretização do conceito de idoneidade pode suscitar dúvidas quanto ao critério utilizado pela cMvM para aferir o que são ou não entidades idóneas. assim, deveria a referida entidade, através de Regulamento, concretizar este conceito de modo a assegurar transparência sobre esta matéria.

37 cf. Pedro cassiano santos e andré Figueiredo, Direito dos Valores Mobiliários, Separata do Volume VI, o Mercado Português da titularização de créditos: diversificação e Maturidade, 380.

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6. Forma

a forma exigida para operações de titularização é que o “(…) contrato de cessão de créditos para titularização pode ser celebrado por documento particular, ainda que tenha por objeto créditos hipotecários”, conforme n.º 1 do artigo 7.º.

da análise deste artigo resultam duas características que constituem especifi-cidades face às exigências de forma que o cc estabelece. a primeira diferença é que a cessão de bens móveis tem uma forma mais solene que o definido no n.º 1 do artigo 578.º do cc, na medida em que este artigo prevê a liberdade de forma. em sentido diametralmente oposto, no que respeita a créditos hipotecários, a lei basta -se com a exigência de documento escrito o que constitui uma formalidade menos solene que a celebração de escritura pública, conforme previsto n.º 2 do artigo 578.º do cc.

7. Efeitos da cessão e insolvência do cedente

a eficácia da cessão deve ser analisada, atendendo ao objeto deste trabalho, numa dupla perspetiva, entre partes e em relação ao devedor.

no que concerne à eficácia entre partes a cessão de créditos existentes não depende de qualquer consentimento pelo devedor e produz efeitos pelo contrato de cessão, de acordo com o n.º 1 do artigo 408.º do cc. Relativamente aos créditos futuros, o contrato celebrado tem apenas efeitos obrigacionais, materializando -se a sua transferência para a esfera do cessionário quando os créditos nasçam, conforme n.º 2 do artigo 408.º do cc.

no que respeita à segunda perspetiva a regra geral é que a “(…) eficácia da cessão para titularização em relação aos devedores fica dependente de notificação. (…)”, n.º 1 do artigo 6.º. esta regra acompanha aliás a regra estabelecido no n.º 1 do artigo 583.º do cc.

não obstante, considerando que em Portugal a maioria dos cedentes são uma das entidades referidas n.º 4 do artigo 6.º (e.g. bancos), em termos práticos, a não notificação dos devedores constitui a “regra”. Pensamos que o objetivo deste artigo é o de procurar minimizar, ou mesmo neutralizar, alterações junto dos devedores que possam suscitar perturbações sociais e inquietações que poder -se--iam gerar junto das pessoas38.

38 salienta -se a possibilidade da cMvM poder autorizar que o disposto no n.º 4 do artigo 6.º, seja aplicado a outras entidades, que mantenham “(…) relações com os devedores, ainda que [uma terceira entidade] distinta do cedente, assegure a gestão dos créditos”, conforme n.º 5 do artigo 6.º.

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como observa Manuel Monteiro39, a “(…) Lei da Titularização procurou garantir uma adequada tutela dos interesses dos investidores em operações de titularização sem colocar em causa a proteção devida aos credores do falido (…)”. sem prejuízo deste facto, numa determinada situação, entendemos que a não notificação dos devedores poderá ser lesiva dos devedores dos créditos.

antes de abordarmos esta situação importa realizar um breve enquadra-mento das proteções que resultam para o devedor numa situação de insolvência do cedente, de modo a compreendermos como o sistema está estruturado.

assim, estabelece o n.º 1 do artigo 8.º que a cessão de créditos apenas pode ser resolvida em benefício da massa falida (do cedente) caso o cedente e o cessio-nário tenham atuado de má -fé, ou seja, com intenção de lesar os devedores dos créditos/ credores do cedente. adicionalmente prevê -se a separação dos montantes referentes a operações de titularização, detidos pelos gestores de créditos ou cedentes, da massa falida de uma destas entidades, caso ela se torne insolvente, conforme n.º 6 do artigo 5.º e n.º 2 do artigo 8.º, respetivamente.

Uma vez identificadas algumas das normas que tutelam devedores e asse-guram o princípio da segregação patrimonial, importa analisar uma questão que é suscetível de lesar os devedores. assim, pensemos no exemplo em que a tem um crédito bancário no banco B, no valor de 200.000 euros, relativo a um imóvel que adquiriu, e que simultaneamente tem no mesmo banco um depósito bancário a prazo no montante de 150.000 euros. entretanto B entrou em insolvência.

na primeira hipótese, o Banco B não titularizou o crédito de a. nesta situação, uma vez que a e B são ambos reciprocamente credores e devedores de dinheiro (coisa fungível da mesma espécie e qualidade), a exerce o direito de compensação, previsto no n.º 1 do artigo 847.º do cc, ficando com uma dívida final de 50.000 euros.

numa segunda hipótese, o Banco B titularizou o crédito de a, considerando que o n.º 6 do artigo 6.º prevê que os “(…) devedores dos créditos objeto de cessão só podem opor ao cessionário aqueles [meios de defesa] que provenham de facto anterior ao momento em que a cessão se torne eficaz entre o cedente e o cessionário.”. nesta medida, uma vez que era lícito invocar o direito de compensação contra o cedente, o devedor do crédito pode utilizar o mesmo direito contra o cessionário. Pelo que, materialmente, a ficaria com uma dívida final de 50.000 euros.

numa terceira hipótese, o Banco B titularizou o crédito de a, mas o depósito foi constituído após a cessão do crédito para titularização. neste caso, o titular do crédito de a já não é B, mas c (stc), e o n.º 6 do artigo 6.º não prevê o exercício de meios de defesa pelo devedor do crédito objeto de titularização, por facto que se verificou após a cessão e.g. a constituição de um depósito junto da entidade

39 Manuel Monteiro, Titularização de Créditos, instituto de direito Bancário, 211.

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cedente. assim, na eventualidade de a massa insolvente não ser suficiente para fazer face aos pagamentos dos depósitos, a receberá 100.000 euros, do Fundo de Garantia e depósitos, n.º 1 do artigo 166.º do RGicsF, mas considerando a sua dívida de 200.000 euros, o montante final em dívida será de 100.000 euros.

deste modo, conclui -se que na terceira hipótese a sai lesado quando teria uma expectativa legítima do exercício do direito de compensação. Face ao exposto, deveria ser tutelada a confiança de a?40

na situação em apreço, entendemos que existe uma situação de confiança porque a está de boa fé subjetiva e ética; existe uma justificação para essa confiança porque sendo a e B, reciprocamente devedor e credor que opere a compen-sação (a não sabe que o B cedeu o seu crédito a c); existe um investimento de confiança uma vez que a realizou um depósito a prazo; e existe a imputação de uma situação de confiança porque B recebeu um depósito e não informou a que tinha cedido o seu crédito à habitação, facto que impossibilita o exercício do direito de compensação por a. concluímos, deste modo, pela existência de uma situação em que a confiança de a deveria ser tutelada.

chegados a este ponto, como se pode conciliar a não exigência de conheci-mento, aceitação ou notificação aos devedores, n.º 4 do artigo 6.º com a tutela de confiança de a?

importa, antes de mais, esclarecer que o exercício do direito de compensação não constitui em si uma garantia, é antes uma forma de extinção das obrigações. no entanto, em termos sociais a relação que cada pessoa tem com o seu banco é uma relação de confiança. considerando que a atividade bancária é uma peça basilar do nosso sistema económico e financeiro devem -se preservar os meca-nismos que fortalecem essa relação de confiança, como por exemplo o direito de compensação.

nesta medida, a ponderação dos diferentes objetivos em causa torna -se funda-mental. entendemos que a inexistência de obrigatoriedade de notificação, ou conhecimento dos devedores deverá ser mantida de modo a evitar -se inquietações ou perturbações sociais. do mesmo modo, entendemos que a tutela da confiança tem que ser salvaguardada. assim, pensamos que o modo de conciliar estes inte-resses que aparentemente, em termos práticos, são antagónicos é a exigência de notificação do cedente ao devedor quando este constitua e.g. um depósito a prazo (ou vários) num valor superior a 100.000 euros. deste modo, assegura -se que a paz social manter -se -á porque a maioria das pessoas não tem depósitos a prazo

40 os requisitos para aferir da tutela da confiança traduzem -se na existência de: i) uma situação de confiança; ii) uma justificação para essa confiança; iii) um investimento de confiança e iv) uma imputação a situação de confiança Menezes cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, almedina, 2000, 233 a 238.

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de montantes na ordem referida e assegura -se a tutela da confiança destas pessoas porque passam a ter conhecimento da impossibilidade do exercício do direito de compensação.

Secção II – Fundos de Titularização de Créditos

tendo em conta a complexidade destes fundos entendemos iniciar o tema dos Ftc pela apresentação de um fluxograma que descreve as principais partes e relações que estão presentes numa operação de um Ftc. este fluxograma resulta da análise de várias operações. sem prejuízo de poderem existir especificidades nalguns Ftc, a estrutura típica é a que se apresenta infra.

Uma vez realizado o desenho de uma operação em que participa um Ftc, importa nesta fase compreender qual a documentação jurídica que está subja-cente a esta operação, e, de que modo o risco é transferido. salientamos que os contratos que suportam este tipo de operações são escritos em inglês, motivo pelo qual iremos apresentá -los pela sua nomenclatura tradicional, ou seja, em inglês.

assim, o crédito que será titularizado nasce na relação entre originador e devedor. assumindo que originador e cedente são a mesma pessoa (situação típica), o crédito é cedido ao Ftc, passando este a deter o risco de cumprimento dos créditos, através do Asset Purchase Agreement. o princípio da true sale é especial-mente relevante neste ponto, uma vez que a cessão do crédito tem que ser plena, não pode estar sujeita a condição ou a termo, e o cedente ou entidade que com ele esteja em relação de grupo ou de domínio não podem assumir responsabili-dades pelo cumprimento dos créditos, conforme n.º 6 do artigo 4.º41.

a estruturação deste tipo de operação exige a participação de entidades que prestam um conjunto de serviços imprescindíveis para o funcionamento da mesma, ainda que não assumam qualquer risco pelo sucesso do cumprimento dos créditos. deste modo, destacamos as funções de gestor dos créditos e de depositário, cujos contratos de suporte são designados por Servicing e Custodian Agreement, respeti-vamente. Relativamente à diferença entre sociedade gestora dos créditos e socie-dade gestora do Ftc, refira -se que a primeira procede à gestão dos créditos que

41 este princípio em nada é contrariado com o aviso do Banco de Portugal n.º 9/2010 que estatui, no n.º 1 do artigo 3.º, que uma entidade que não seja cedente ou patrocinadora de uma operação de titularização só pode estar exposta ao risco de uma posição titularizada se o cedente ou o patrocinador da mesma manter um “(…) interesse económico líquido substancial de, pelo menos, 5%. (…)”. este entendimento resulta do facto de a transferência plena dos créditos nada ter a ver com a subscrição de valores mobiliários que são emitidos para compra desses mesmos créditos.

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constituem o património autónomo, enquanto a segunda exerce funções admi-nistrativas relativas à vida do Ftc.

o Ftc de modo a pagar os créditos que adquiriu emite, concomitantemente à aquisição, unidades de titularização que são, em regra, subscritas (por via do Subcription Agreement) por uma empresa veículo sediada num país cujo regime tributário seja mais favorável (e.g. irlanda). em virtude desta subscrição a trans-ferência do risco de cumprimento dos créditos está agora nesta sociedade.

Uma vez que esta sociedade é também ela um veículo, vai emitir obriga-ções de diversas classes para pagar as unidades de titularização que subscreveu. estas obrigações serão subscritas pelos investidores “finais” destas operações de titularização. Por esta via, são estes investidores que ficam expostos ao cumpri-mento ou incumprimento dos créditos. as classes de obrigações emitidas pela sociedade veículo são muitas vezes objeto de notação de risco, de modo a que os investidores possam escolher as obrigações que pretendem, em função do risco que pretendam assumir.

Por fim, é prática habitual nestas operações a celebração de swap agreement que visa eliminar na íntegra o risco de taxa de juro ou de moeda diferente da moeda do cumprimento dos créditos. assim, consegue -se que os resultados líquidos do investidor final resultem em exclusivo da qualidade dos créditos da operação, e não de variáveis exógenas ao crédito, como sejam as flutuações das taxas de juro e de moedas.

8. Noção, modalidades e constituição

os Ftc constituem um património autónomo, pertencente, no regime especial de comunhão, a uma pluralidade de pessoas, singulares ou coletivas, não respondendo, em caso algum, pelas dívidas destas pessoas, das entidades que nos termos da lei, asseguram a sua gestão e das entidades às quais hajam sido adqui-ridos os créditos que os integrem, conforme n.º 1 do artigo 9.º42. a estrutura de património autónomo assegura também aos detentores das unidades titularizadas que, caso o Ftc entre em insolvência, estes não serão responsáveis em nenhuma medida pelas obrigações que o fundo possa ter assumido.

os Ftc podem ser um património variável ou fixo. na eventualidade de o regulamento de gestão do fundo prever cumulativa ou exclusivamente: i) a aqui-sição de novos créditos quer quando o fundo detenha créditos de prazo inferior ao da sua duração, por substituição destes na data do respetivo vencimento, quer em adição aos créditos adquiridos no momento da constituição do fundo; ou ii) a reali-zação de novas emissões de unidades de titularização, os fundos consideram -se de

42 Paulo câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 327.

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património variável, de acordo com o n.º 2 do artigo 10.º. nas demais situações os fundos são de património fixo, conforme n.º 3 do artigo 10.º.

a constituição de um Ftc depende de autorização da cMvM, conforme n.º 1 do artigo 27.º. na eventualidade de a entidade cedente ser supervisionada pelo Banco de Portugal ou pelo instituto de seguros de Portugal, depende de parecer favorável de uma destas entidades, conforme casos identificados no n.º 5 do artigo 27.º.

dada a complexidade da titularização de créditos, quando estas operações se destinem ao público é exigido, nomeadamente, um relatório de notação de risco, conforme alínea c) n.º 3 do artigo 27.º. salientamos que o referido relatório deve, inter alia, fazer uma apreciação da qualidade dos créditos e do risco de insolvência das unidades de titularização, conforme alíneas a) e e) do n.º 4 do artigo 27.º.

9. Empréstimos e cobertura de riscos

o regime da titularização de créditos restringe fortemente a contração de empréstimos e a utilização de instrumentos financeiros derivados. esta caracterís-tica decorre do facto de não se pretender expor o património autónomo a riscos que não os dos créditos que o formam.

assim, a contração de empréstimos por um Ftc encontra -se circunscrita à dotação do fundo de necessárias reservas de liquidez, caso o regulamento de gestão do fundo o permita, conforme n.º 1 do artigo 13.º. salientamos que o n.º 2 deste artigo prevê que a cMvM possa estabelecer por regulamento sobre outros fins em que a contração de empréstimos seja admissível. a cMvM nunca o fez, e no nosso entendimento, bem. a titularização de créditos, por natureza, encerra elevados riscos não devendo por isso permitir que esteja exposta a riscos exógenos aos seus créditos.

Relativamente à utilização de instrumentos financeiros derivados estes apenas podem ser utilizados para fins de cobertura de risco do património do Ftc, conforme n.º 1 do artigo 14.º do RJtc e n.º 1 do artigo 2 do Regulamento da cMvM n.º 2/2002. Para o efeito, podem utilizar, nomeadamente, futuros padronizados, forwards, FRa’s, opções padronizadas, swaps, swaptions e warrants, conforme n.º 2 do artigo 2 do referido regulamento43. salienta -se que são admis-síveis outros instrumentos financeiros, desde que negociados em mercado ou bolsa de valores da União europeia, ou cuja contraparte esteja sediada na União euro-peia ou em país terceiro, desde que, sujeita a regime de supervisão prudencial, conforme nos n.º 4, 5 e 6 do artigo 2.º do referido Regulamento.

43 no âmbito dos Ftc, os referidos derivados não podem ser utilizados para fins especulativos ou de arbitragem, engrácia antunes, os instrumentos Financeiros, 123 a 126.

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10. Sociedades gestoras

as sociedades gestoras de Ftc (“sGFtc”)44 têm a natureza de sociedades financeiras, artigo 17.º n.º 1 do RJtc e artigo 6.º n.º 1 alínea j) do Regime Geral das instituições de crédito e sociedades Financeiras. desta situação resulta que a competência de supervisão destas sociedades pertence ao Banco de Portugal e não à cMvM, cuja competência, nesta matéria, se circunscreve aos Ftc geridos por estas sociedades.

atendendo ao facto que existe uma segregação patrimonial entre o património dos Ftc e da sociedade que o gere, parece não fazer sentido a exigência de um capital social mínimo de 250.000 euros para as sGFtc. contudo, entendemos que o Legislador pretendeu com a definição de montantes mínimos para a cons-tituição de uma sGFtc dificultar o acesso a este mercado, procurando por esta via assegurar que só entidades especializadas entrariam neste mercado, e assegurar que a administração e gestão do fundo seriam realizadas de modo competente e profissional, uma vez que em situações de dolo e de lesão do património do fundo poderia o património da sGFtc responder perante os investidores dos Ftc.

Por fim, importa perceber no que consiste a atividade das sGFtc, tendo em conta que a gestão dos créditos adquiridos é realizada, em regra, por entidades que não a sGFtc. assim, as principais funções destas sociedades compreendem, nomeadamente, a prática de todos os atos e contratos necessários ou convenientes para a emissão das unidades de titularização, a manutenção em ordem da escrita do fundo, e nas relações com a cMvM e com o mercado, conforme alíneas b), g) e h) do artigo 18.º, respetivamente.

11. Depositário

as entidades depositárias, de acordo com o n.º 2 do artigo 23.º do RJtc, são as instituições de crédito “referidas nas alíneas a) a f) do artigo 13.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto ‑Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro”. considerando que o RGicsF foi sucessivamente alterado as alíneas aí identificadas neste momento circunscrevem -se às alíneas a), b), c) e f ) do seu artigo 3.º. contudo, acompanhando calvão da silva45, entendemos que as instituições financeiras de crédito, atualmente alínea d) do artigo 3.º do RGicsF46, também são entidades suscetíveis de exercer a função de depositário atendendo à

44 de acordo com a Portaria n.º 676/2002, de 19 de junho, sendo que este montante pode ser aumentado em função valor líquido global dos fundos que administrem, conforme artigo 19.º.45 João calvão da silva, Titul[ariz]ação de Créditos. Securitization, almedina, 63.46 Redação introduzida pelo decreto -Lei n.º 201/2002.

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sua natureza e à similitude destas com as restantes entidades que podem desem-penhar esta função47.

as funções desempenhadas pelo depositário são, inter alia, a receção, em depó-sito, dos valores do fundo, o pagamento aos detentores das unidades de titulari-zação e a assunção de uma função de vigilância do cumprimento do regulamento de gestão, conforme alíneas a), e) e j) do n.º 1 do artigo 24.º.

assim, dado que a alínea a) do n.º 1 do artigo do 23.º estabelece que “(…) devem ser confiados a um único depositário os valores que integram o fundo, designadamente: os montantes recebidos a título de pagamento de juros ou de reembolso de capital respeitantes aos créditos que integram o fundo (…)” não se compreende como o fundo Lusitano Mortgage n.º 648, no seu Regulamento de Gestão, estabelece que é aberta no banco domiciliário, citibank, n.a., uma conta “(…) para a qual as receitas são transferidas pelo Gestor dos Créditos (…)”, quando o depositário é o Banco espírito santo, s.a. encontramos situação similar no fundo Lusitano Mortgage n.º 449.

esta questão assume especial relevância uma vez que se o depositário não é a entidade que recebe os fluxos financeiros da operação, como procede ao controlo do pagamento as unidades de titularização? nos dois fundos identificados suscitam -se dúvidas quanto às funções que efetivamente o depositário exerce. devemos referir que existe responsabilidade solidária entre sociedade gestora e depositário relativamente ao cumprimento das obrigações que resultem da lei e do Regulamento de Gestão, conforme n.º 1 do artigo 25.º

Secção III – Sociedades de Titularização de Créditos

À semelhança do realizado para os Ftc, importa iniciar a análise das stc por um fluxograma que identifique as diferentes partes de uma operação de titu-larização, e as relações que existem entre as mesmas. este é mais simples, uma vez que neste não temos uma sociedade veículo que funcione como intermedi-ário entre o veículo de titularização e os investidores. não obstante, em termos jurídicos existem mais questões para analisar no âmbito das stc na medida em que um prospeto (stc) é muito mais extenso e complexo que um Regulamento de Gestão (Ftc). a existência de prospeto apenas é obrigatória quando existem obrigações titularizadas que são admitidas à negociação.

47 no que concerne às instituições de crédito hipotecário dada a especificidade do seu objeto e às funções que o depositário deve desempenhar, consideramos que esta não é elegível para exercer as funções de depositário no âmbito da titularização de créditos, conforme redação introduzida pelo decreto -Lei n.º 357 -a/2007.48 http://web3.cmvm.pt/sdi2004/fundos/docs/1023RG08022012.pdf, 3.49 http://web3.cmvm.pt/sdi2004/fundos/docs/810RG08022012.pdf, 3.

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as observações que realizámos no âmbito do fluxograma das Ftc, referente ao devedor, originador, cedente, veículo de titularização (neste caso stc), gestor de crédito50 e agências de rating51 são aplicáveis a este caso.

o Transaction Manager e o Paying Agent, por via do Transaction Manager Agre‑ement e do Paying Agent Agreement, são as entidades que realizam os diferentes pagamentos que são definidos no Prospeto.

estas operações estão estruturadas, em regra, por diferentes classes, e.g. a, B, c e assim sucessivamente. sendo a classe a a mais sénior, é esta que é objeto de notação de risco52-53. as demais classes visam mitigar o risco de set ‑off (exer-cício do direito de compensação), fornecer liquidez à operação ou tão simples-mente existem para que a classe a consiga ter um melhor rating, em virtude de na cascata de pagamento54 a classe a ser paga preferencialmente face às demais. nesta medida, o risco assumido pelos investidores das classes juniores é maior, e por conseguinte, são melhor remunerados.

12. Princípios fundamentais na emissão de obrigações titularizadas

existem dois princípios nucleares no âmbito da emissão de obrigações titu-larizadas, sem os quais a titularização de créditos recorrendo à figura das stc não teria interesse.

o primeiro destes princípios é o da segregação patrimonial55. este princípio também denominado por “limited recourse” existe numa dupla perspetiva.

na primeira perspetiva o reembolso, a remuneração e quaisquer encargos com a emissão das obrigações titularizadas são garantidos única e exclusivamente pelos créditos que foram objeto de titularização. isto é, o restante património da stc que emitiu as obrigações titularizadas não responde para satisfazer qual-quer obrigação que tenha nascido no âmbito dessa emissão, conforme artigo 61.º.

na segunda perspetiva, os créditos afetos ao reembolso de uma emissão de obrigações titularizadas, bem como o produto do reembolso daqueles e os respe-tivos rendimentos, constituem um património autónomo, não respondendo por quaisquer dívidas da stc até ao pagamento integral dos montantes devidos aos

50 o gestor de créditos poderá ser substituído pelo back up servicer, na eventualidade de ser acionada alguma das cláusulas do prospeto mediante aprovação da cMvM, conforme n.º 4 do artigo 5.º. a previsão desta figura é típica nas operações realizadas por stc.51 neste caso é aplicável o n.º 4 do artigo 60.º, mas apenas se for realizada uma oferta pública.52 Pelican Mortgage n.º 6, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd23249.pdf, 2.53 volta electrecity Receivables http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd27675.pdf, 1 e 2.54 Pelican Mortgage n.º 6, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd23249.pdf, 45 a 48.55 Paulo câmara, Manual de direito dos valores Mobiliários, 329 e 330.

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titulares das obrigações titularizadas, que constituem aquela emissão e das despesas e encargos com esta relacionados, conforme n.º 1 do artigo 62.º. assim, as stc apenas poderão receber o remanescente do património autónomo caso essa cláu-sula esteja expressa, ou não existindo outra parte com esse direito, conforme n.º 3 do artigo 62.º56.

através da segregação patrimonial consegue -se uma imunização total entre o património autónomo dos créditos e o património da stc, à semelhança dos Ftc. em abstrato, caso não existisse segregação patrimonial, os créditos de uma operação de titularização de créditos poderiam responder por outra operação de titularização de créditos da mesma stc, situação não desejada.

o segundo princípio nuclear nas stc é o princípio do privilégio creditório. este princípio consiste no facto dos titulares de obrigações titularizadas e as entidades que prestem serviços relacionados com a sua emissão gozarem de um privilégio creditório especial sobre os bens que em cada momento integrem o património autónomo afecto à respectiva emissão, com precedência sobre quais-quer outros credores, conforme n.º 1 do artigo 63. salienta -se que a atribuição de privilégio creditório por este artigo é essencial uma vez que não podem ser atribuídos privilégios creditórios por negócios jurídico, mas somente, por fonte legal, conforme artigo 733.º do cc57.

13. Objeto

o objeto da stc está circunscrito, conforme artigo 39.º, à “(…)realização de operações de titularização de créditos, mediante as suas aquisição, gestão e transmissão e a emissão de obrigações titularizadas para pagamento dos créditos adquiridos.”

Relativamente à definição legal do objeto das stc devemos retirar duas ilações. a primeira é que uma definição tão restrita relativamente ao objeto das stc apenas corrobora o carácter instrumental destas sociedades. a segunda ilação é que o conceito de “gestão” que integre a definição do objeto das stc

56 da análise das operações volta electricity Receivables, volta ii electricity Receivables e Lusitano Finance n.º 3, nomeadamente das cláusulas relativas aos pagamentos a realizar (pre ‑enforcement e post ‑enforcement payment priorities) retira -se a ilação que é frequente existirem cláusulas que estipulem que o remanescente do património autónomo seja entregue à classe mais júnior da obrigação e não à stc, conforme http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd27675.pdf, pág. 40 a 42, e http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd22251.pdf, 35 a 37, respetivamente.57 Refira -se que este privilégio não está sujeito à sua inscrição em registo, conforme n.º 2 do artigo 63.º, ao contrário, por exemplo, do instituto da hipoteca que apresenta algumas similitudes com o privilégio creditório, ainda que constitua garantia mais fraca e apenas incida sobre imóveis, de acordo com almeida costa, Direito das Obrigações, almedina, 9.ª edição, pág 896 a 898.

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parece-nos uma reminiscência indesejada da versão original do RJtc58. este nosso entendimento resulta do facto de i) as stc serem um veículo, como tal a ideia de gerirem os créditos que adquirem parece -nos em total dissonância com a sua natureza; ii) o artigo 5.º (Gestão de créditos) parece afastar qualquer tipo de gestão por parte das stc uma vez que a gestão dos créditos será realizada pelo cedente, artigo 5.º n.º 1, ou nas “nas demais situações, [a gestão deve] ser asse‑gurada pelo cessionário, pelo cedente ou por terceira entidade idónea” artigo 5.º n.º 2; e iii) a existência de uma eventual gestão por parte das stc estar ligada ao facto de o artigo 40.º n.º 2 alínea a), da versão original do RJtc, prever que as stc pudessem “prestar serviços às entidades cedentes dos créditos em matéria de estudo dos riscos de crédito e de gestão dos créditos objeto da transmissão, incluindo apoio comercial e contabilístico (…)” o qual foi suprimido pelo decreto -Lei n.º 82/2002. isto é, o âmbito de funções que inicialmente estava previsto que as stc desempenhassem foi restringido sem que, contudo, tivessem sido eliminados todos os seus resquí-cios. (negrito nosso)

assim, compreende -se que a diminuição das funções da stc tenha sido acompanhada pelo facto de estas terem deixado de ser sociedades financeiras consi-derando que estas “serve[m] de mero veículo idóneo a realizar o património autónomo, a separação patrimonial, em consequência da sua personalidade jurídica”59.

14. Recursos financeiros

o financiamento das stc está circunscrito aos fundos próprios de cada socie-dade e à emissão de obrigações titularizadas, conforme n.º 1 do artigo 44.º. este princípio apenas é derrogado para satisfazer necessidades de liquidez referentes ao reembolso e à remuneração das obrigações titularizadas. nesta situação a stc pode recorrer por conta dos patrimónios do fundo a financiamento de terceiros, n.º 2 do artigo 44.º. esta opção legislativa que restringe a forma de financiamento das stc entende -se por razões de índole teórica e prática.

58 o diploma original do RJtc, decreto -Lei n.º 453/99, de 5 de novembro, estipulava no artigo 39.º que as “sociedades de titularização de créditos são sociedades financeiras (…)”. contudo, o decreto -Lei n.º 82/2002, de 5 de abril, alterou a redação do artigo 39.º passando o mesmo a dispor que as “sociedades de titularização de créditos adoptam o tipo de sociedade anónima (…)”. a principal consequência desta alteração foi a alteração da entidade supervisora, deixou de ser o Banco de Portugal e passou a ser a cMvM. esta alteração, de acordo com o preâmbulo do referido diploma, resultou do facto as stc serem um “(…) mero veículo de titularização de créditos [consequentemente] deveriam deixar de ser qualificadas como sociedades financeiras (…)” mas “(…) dada a forte probabilidade de colocação das obrigações titularizadas junto do público (…) devem permanecer sob supervisão (…)”.59 João calvão da silva, Titul[ariz]ação de Créditos. Securitization, almedina, 71.

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na perspetiva teórica esta opção aceita -se por se pretender imunizar o risco de um instrumento financeiro complexo. o recurso a financiamento junto de terceiro ou qualquer outra forma que onerasse o património autónomo iria aumentar o risco deste tipo de produto. a inexistência de outros riscos que não os referentes aos créditos, facilita a compreensão do produto, e eventualmente, a obtenção de um melhor rating.

Por fim, numa perspetiva prática, o recurso a financiamento junto de terceiros faz sentido para assegurar o cumprimento das obrigações existentes para com os obrigacionistas, em cenários de pouca liquidez60. de outro modo existiria um incumprimento das obrigações, situação não desejada, e que de acordo com as operações analisadas poderia terminar com a operação de titularização em causa, atendendo à existência de um enforcemente notice61. adicionalmente, as stc só podem aplicar o produto do reembolso dos créditos titularizados e respetivos rendimentos em ativos de elevada liquidez62.

15. Transmissão de créditos

a transmissão de créditos pode ser realizada enquanto operação regular no âmbito da gestão dos créditos que compõe uma operação de titularização ou com o objetivo de terminar essa mesma operação. isto é, a finalidade que subjaz à transmissão de créditos pode divergir, mas existe uma matriz comum que é o artigo 45.º, onde se definem quais as entidades/situações em que essa transmissão é admissível.

o n.º 1 do artigo 45.º prevê que em regra, só poderão ser cedidos créditos a fundos de titularização de crédito e outras sociedades de titularização de créditos.

60 a existência de pouca liquidez resulta fundamentalmente de imperfeições de mercado. a iliquidez é comumente relacionada com a expetativa dos fluxos financeiros gerados pelos ativos em questão. contudo, essa relação parece muito mais complexa, sendo necessário ter em consideração a forma de mensurar a iliquidez, na causa da iliquidez, e perceber como as empresas com falta de liquidez estão face à concorrência, e à indústria onde se inserem. neste sentido, dimitri vayanos e Jiang Wang, Market Liquidity Theory and Empirical Evidence, 2 a 7 e 63 a 67.61 Um enforcemente notice consiste numa cláusula que estipula que em caso de não cumprimento dos pagamentos previstos as obrigações tornam -se automaticamente vencidas, tendo que ser pagos todos os montantes de juro e capital em dívida. http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd27675.pdf, 117 e 118.62 depósitos bancários em euros; fundos de tesouraria e fundos do mercado monetário com regulamento de gestão aprovado pela cMvM; e em ativos elegíveis como garantia de operações de crédito do sistema europeu de Bancos centrais, conforme artigo 3.º n.º 1 do Regulamento da cMvM n.º 12/2002.

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as exceções ao referido artigo encontram -se no seu n.º 2, no qual estão previstas situações63 nas quais existe a suscetibilidade de transmitir os créditos.

a primeira questão que se suscita é como conciliar estes dois números. isto é, no n.º 1 do artigo 45.º podem -se ceder créditos a stc e a Ftc em qualquer circunstância? no n.º 2 do artigo 45.º, quando não é indicado, quais as entidades às quais se podem ceder os créditos? os n.os 1 e 2 do artigo 45.º estão interligados e devem ser interpretados em conjunto?

considerando que o n.º 1 do artigo 45.º refere que “sem prejuízo do disposto nos números seguintes (…)” pensamos que o n.º 1 é autónomo dos restantes números, e portanto, independentemente da situação podem ser sempre cedidos créditos a stc e a Ftc. enquadramos neste número as situações em que a operação de titularização prevê que possa existir o reembolso antecipado das obrigações por motivos relacionados com alterações fiscais. não obstante, entendemos que estas cláusulas podem ser de difícil exequibilidade prática, uma vez que por vezes é necessário que o produto da cessão de créditos assegure o pagamento da classe de obrigações mais sénior e não será fácil encontrar stc ou Ftc com capacidade, ou interesse em pagar um montante próximo dos valores nominais dos créditos64.

Relativamente ao n.º 2 entendemos que nas alíneas b) e c) os créditos tem que ser necessariamente transmitidos ao cedente quer pela natureza das situações (substituição de créditos em caso de renegociação do mesmo entre devedor e cedente e existência de vícios ocultos), quer porque a lei assim o exige. no que respeita às alíneas a) e d) do n.º 2 uma vez que não está identificada qual a enti-dade à qual se pode ceder o crédito entende -se que este é, teoricamente, passível de ser alienado a qualquer entidade. não obstante, em termos práticos parece--nos de difícil exequibilidade que essa cessão seja realizada a entidades que não o cedente. este entendimento resulta do modo como se processa a notificação de devedores. isto é, a cessão de créditos para que seja eficaz perante devedores fica

63 “a) Não cumprimento das obrigações correspondentes aos créditos;b) Retransmissão ao cedente e aquisição de novos créditos em substituição, em caso de alteração das características dos créditos no âmbito da renegociação das respectivas condições entre o devedor e a entidade cedente;c) Retransmissão ao cedente em caso de revelação de vícios ocultos;d) Quando a alienação abranger todos os créditos que ainda integram o património autónomo afecto ao reembolso de uma emissão de obrigações titularizadas, não podendo esses créditos representar mais de 10% do valor inicial do mesmo património autónomo.”64 Por exemplo na operação volta electrecity, considerando que a venda das obrigações foi feita ao par, representando a classe a aproximadamente 99% do conjunto de créditos, que uma das cláusulas para exercício do reembolso exige que o mesmo só possa ser realizado se se assegurar o reembolso de todo o montante de capital e o juro da classe a à data, parece -nos difícil nas atuais condições de mercado encontrar um stc/ Ftc disposto a comprar estes créditos, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd27675.pdf, 31.

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dependente de notificação a estes, conforme n.º 1 do artigo 583.º do código civil e n.º 1 do artigo 6.º65. não obstante, no regime da titularização verificamos que ao contrário do código civil, existe um conjunto de exceções que subvertem em termos práticos a regra geral66.

estas exceções parecem -nos justificáveis, como observa Paulo câmara “no ambiente macro ‑jurídico da titularização não seria exequível fazer justificações em massa aos devedores cedidos”67. nesta medida, dado que entidades terceiras que não stc ou Ftc têm necessariamente que ser notificadas uma vez que já não estamos no âmbito da cessão de créditos para efeitos de titularização. a exceção à exigência de notificação circunscreve -se ao cedente (original) dos créditos uma vez que a noti-ficação neste caso apenas causaria inquietação e incompreensão pelos devedores pois estes não souberam que os seus créditos haviam sido cedidos pelo cedente à stc e que aquando da notificação se estava a “reverter” essa cessão.

Capítulo III – Titularização no mundo

Secção I – Espanha

1. Ativos titularizáveis

em espanha não existe uma lei única a regular todos os ativos suscetíveis de titularização. a opção tomada foi ter uma lei específica para cada tipo de ativo. contudo, o Real Decreto 926/1998 alterou esta opção ao incidir sobre todos os ativos que não tinham legislação específica.

a primeira matéria a ser regulada para efeitos de titularização foi o crédito hipotecário, através da Ley 19/92, de 7 de julio. o conjunto de créditos objeto de titularização irá constituir os denominados Fondos de Titulización Hipotecaria, conforme n.º 1 do artigo 5.º da referida Lei. no momento da constituição destes fundos é realizada uma escritura na qual são identificados quais os créditos que irão constituir o património e quais os que os irão substituir em caso da amortização

65 cf. Pedro cassiano santos e andré Figueiredo, Direito dos Valores Mobiliários, Separata do Volume VI, coimbra editora, 2006, 377 e 378.66 isto é, o n.º 4 do artigo 6.º prevê que “quando a entidade seja o Estado, a segurança social, instituição de crédito, sociedade financeira, empresa de seguros, fundo de pensões ou sociedade gestora de fundos de pensões, a cessão de créditos para titularização produz efeitos em relação aos respectivos devedores no momento em que se tornar eficaz entre o cedente e o cessionário, não dependendo do conhecimento, aceitação ou notificação desses devedores.”67 Paulo câmara, Titularização de Créditos, instituto de direito Bancário, Gráfica de coimbra, 2000, 84.

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antecipada dos créditos iniciais, ponto 1.º do n.º 2 do artigo 5.º da Ley 19/92. os fundos de crédito hipotecário extinguem -se na maturidade dos mesmos, ou se a escritura de constituição do fundo prever a sua extinção quando os créditos titularizados tenham um montante inferior 10% da carteira inicial.

a Ley 40/94, de 30 de diciembre, estabeleceu a possibilidade de se titularizarem créditos que resultavam do direito de compensação do estado espanhol às compa-nhias elétricas, em resultado da paralisação de centrais nucleares no ano de 1982. esta titularização ficou conhecida como moratoria nuclear68. Relativamente ao regime jurídico deste diploma refira -se que o mesmo incide, na sua essência, no modo de determinação da compensação que deverá ser paga, e que subsidiaria-mente é aplicada a Ley 19/92, de 7 de julio, em tudo o que não for incompatível com a Lei da moratoria nuclear.

o Real Decreto 926/1998, de 14 de mayo69, regulou sobre a titularização de outros ativos além dos que já eram possíveis. este decreto Real adotou uma meto-dologia inovadora face aos anteriores ao definir normas abstratas sobre os ativos que podiam ser titularizados, não tipificando o crédito a titularizar.

nesta medida, foi definido que os ativos suscetíveis de serem titularizados são direitos de crédito que se encontrem no ativo do cedente. a possibilidade titulari-zação de créditos futuros ficou prevista com a condicionante de os mesmos terem um montante conhecido ou estimado, conforme n.º 1 do artigo 2.º.

o conjunto dos ativos mencionados, à semelhança das leis anteriores, forma um património autónomo, segregado e sem personalidade jurídica, de acordo com o n.º 1 do artigo 1.º. Uma alteração introduzida por este diploma é a possi-bilidade de os fundos serem abertos, ou seja, “activo, pasivo o ambos puedan modifi‑carse después de la constitución del fondo”, n.º 1 do artigo 4.º do diploma em análise.

considerando a relevância deste diploma para a titularização em espanha, importa também considerar aqueles que são os principais requisitos que resultam desta lei. atendendo à lei entendemos que os requisitos definidos são enquadrá-veis em subjetivos, objetivos e formais.

deste modo, relativamente aos requisitos subjetivos importa referir que o cedente e o cessionário dos créditos tem que ter contas auditadas nos últimos três anos, salvo se forem entidades constituídas num período inferior a estes três anos. no âmbito destas auditorias salienta -se que os créditos titularizados não podem ter qualquer opinião negativa a seu respeito, conforme alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º da lei em análise.

no que concerne aos requisitos objetivos é obrigatório que a cessão dos créditos seja plena e incondicional durante todo o período de existência destes.

68 iñigo Gómez -Jordana, Titularização de Créditos, instituto de direito Bancário, 145.69 alterado pelo Real Decreto 749/2010, de 7 de junio.

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sem prejuízo de o cedente dever ser o gestor dos créditos, salvo acordo em contrário, não poderá este prestar qualquer tipo de garantia ou assegurar o sucesso da operação, de acordo com a alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º.

no que respeita aos requisitos formais salientamos que aquando da consti-tuição do fundo tem que ser celebrada uma escritura pública para a cessão dos créditos e a necessidade de comunicação à Comisión Nacional del Mercado de Valores70 (doravante “cnMv”) de um documento que identifique as características dos créditos e de uma declaração do cedente que comprove que os créditos cedidos cumprem com os requisitos estabelecidos na escritura pública de constituição do fundo, conforme alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º e artigo 6.º.

2. Estruturas de titularização

em espanha, ao contrário de eUa e RU, a titularização não ocorre por via societária mas por via de fundos. os fundos de titularização são geridos por socie-dades gestoras de titularização de créditos. atendendo às similitudes entre Portugal e espanha nesta temática pensamos que a figura dos Ftc em Portugal terá sido, em parte inspirada no método espanhol de titularização, uma vez que em espanha os principais diplomas são de 1992 e 1998, enquanto em Portugal o RJtc é de 1999.

considerando que em espanha existem dois diplomas principais, e que são estes que regulam a constituição e funcionamento das Sociedades Gestoras de Fondos de Titulización (doravante “sGFt”), a nossa análise irá incidir sobre ambos autonomamente.

assim, relativamente à Ley 19/92 prevê no n.º 1 do artigo 6.º deste diploma que as Sociedades Gestoras de Fondos de Titulización Hipotecaria tenham como objeto exclusivo a gestão de crédito hipotecário titularizado. salienta -se a necessidade de estas sociedades necessitarem da aprovação do Ministro da economia e da Fazenda e de se registarem junto da Comisión Nacional del Mercado de Valores, a qual ficará responsável pela supervisão destas sociedades, conforme n.º 2 e 3 do artigo 6.º. estas sociedades transformaram -se em sGFt por via do Real Decreto 926/1998.

o Real Decreto 926/1998 desenvolve um pouco mais os requisitos relativos às sGFt. assim, estatui o n.º 1 do artigo 12.º que as sGFt“(…) tendrán por objeto exclusivo la constitución, administración y representación legal tanto de los fondos de tituli‑zación de activos como de los fondos de titulización hipotecaria (…)”.

adicionalmente é previsto que as sGFt devem contratar pessoas com elevada qualificação profissional, que devem atuar com diligência extrema e rigor na defesa dos titulares dos valores mobiliários e a nível contabilístico, conforme n.º 2 do artigo 12.º.

70 entidade supervisora pelo mercado dos valores mobiliários em espanha.

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este diploma também prevê, n.º 1 do artigo 13.º, que seja o Ministro da economia e Fazenda a autorizar a constituição destas sociedades. Por fim, importa referir que estas sociedades têm que revestir a forma de sociedade anónima, tem um capital inicial mínimo de “150 millones de pesetas” e que os acionistas com participações significativas têm que tem que ser idóneos, de acordo com o artigo 14.º. segundo Minguez Prieto71 o aumento dos requisitos em matérias de sociedades gestoras está relacionado com a preocupação do legislador em garantir a idoneidade do gestor.

3. Questões jurídicas

seguindo Gómez -Jordana72, as principais questões que se suscitam em espanha estão relacionadas com a possibilidade de retroação de atos jurídicos realizados por uma entidade insolvente, a questão da segregação patrimonial e a realização de operações de titularização fora de espanha.

Relativamente à questão referente à possibilidade de um juiz poder determinar que uma sociedade tornou -se insolvente não no momento em que foi requerida, mas em momento anterior, retroagindo alguns atos jurídicos é uma questão que suscita preocupação. não obstante, a cessão de créditos para efeitos de titularização não é passível de ser anulada, salvo no caso de existir má -fé entre as partes da cessão.

no que respeita à questão da segregação patrimonial destacamos que na even-tualidade de um devedor pagar o seu crédito a uma entidade, e esta entrar em insolvência antes de transferir o montante para o Ftc, o montante pago não faz parte da massa insolvente. o fundo é o titular desse montante.

Por fim, na eventualidade de uma empresa espanhola realizar a venda dos créditos fora de espanha, e.g. em país com regime fiscal mais favorável, os privi-légios concedidos pela legislação espanhola não são aplicáveis a essa cessão.

Secção II – França

4. Ativos titularizáveis

os cedentes dos créditos para efeitos de titularização podem ser bancos ou empresas73. estas entidades podem, sem prejuízo de cederem os créditos, conti-nuar a desempenhar a função de gestores dos mesmos.

71 Rafael Minguez Prieto, Titularização de Créditos, instituto de direito Bancário, pág 34.72 iñigo Gómez -Jordana, Titularização de Créditos, instituto de direito Bancário, 148 e 149.73 omar Birouk, e cassan Laetitia, in http://www.banque -france.fr/fileadmin/user_upload/banque_de_france/publications/BdF190_7_titrisation.pdf, 111.

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no que respeita aos ativos suscetíveis de serem titularizados, um dos requi-sitos principais, é a impossibilidade destes estarem sujeitos a processos de execução civil, de acordo com o artigo L214 -43 do Code monétaire et financier (doravante “cMF”). salienta -se que em França, à semelhança de outros países e.g. Portugal, é possível realizar operações de titularização de créditos futuros.

considerando que o Banco de França disponibilizou, em 30 de junho de 2012, alguns dados relativamente aos créditos que foram titularizados importa fazer uma apresentação daqueles que entendemos como mais relevantes74. assim, em França, na data referida, existiam 219,8 mil milhões de euros de créditos titularizados, dos quais 176,3 mil milhões nasceram de créditos cuja contraparte era uma pessoa (singular ou coletiva) francesa. deste montante, 123 mil milhões provêm de crédito hipote-cário e 30,9 mil milhões resultam de crédito ao consumo, automóvel ou comercial.

Relativamente à compra e venda de créditos para titularização estes dependem da existência de uma fatura (documento comprovativo da existência do crédito) a qual é eficaz entre as partes e é oponível a terceiros a partir da data da cessão, independentemente da data de nascimento do crédito, da sua maturidade ou do pagamento dos mesmos. salienta -se que não são necessárias formalidades adicio-nais para que a cessão seja efetiva, ou seja, a venda de créditos para efeitos de titularização tem um procedimento simplificado, não tendo que ser observados os procedimentos previstos no artigo 1.690 do código civil Francês. na even-tualidade da lei do país do devedor ser diferente, caso a cessão dos créditos para efeitos de titularização prevalece a lei francesa, conforme artigo L214 -43 do cMF.

importa realçar que no âmbito da cessão de créditos são também transferidos todas as garantias conexas com o crédito, incluindo a garantia hipotecária, não sendo necessário o registo da hipoteca ou outro tipo de formalidades para que a mesma produza efeitos e seja oponível perante terceiros.

Quando as unidades de titularização, ações ou títulos de dívida sejam admi-tidos à negociação num mercado regulamentado ou são objeto de uma oferta pública, é necessária a realização de um relatório que avalia as características destes títulos, a existência de contratos celebrados que transfiram o risco para terceira entidade e a avaliação da capacidade de cumprimento dessa entidade, conforme artigo L214 -44 do cMF.

5. Estruturas de titularização

a Lei n.º 88 -1201, de 23 de dezembro de 1988 estabeleceu em França o primeiro tipo de veículo de titularização, os fonds communs de créances (doravante

74 omar Birouk, e cassan Laetitia, in http://www.banque -france.fr/fileadmin/user_upload/banque_de_france/publications/BdF190_7_titrisation.pdf, 104.

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“Fcc”)75. atendendo à inexistência de personalidade jurídica dos fundos estes tinham que ter uma sociedade gestora e um depositário.

a Autorité des Marchés Financiers76 através da ordem n.º 2008 -55677 de 13 junho em 2008, complementada pelo decreto n.º 2008 -711 de 17 julho 2008 criou os fundos de titularização que substituíram os Fcc. estes fundos podem assumir a forma de sociedades de titularização e de fundos de titularização propriamente ditos ( fonds communs de titrisation).

as sociedades de titularização constituem uma inovação no ordenamento jurí-dico francês e a previsão deste tipo de entidade veículo de titularização deveu -se ao facto de se pretender internacionalizar este tipo de operações. considerando que nos países anglo -saxónicos existe uma grande familiaridade com a figura socie-tária em detrimento da dos fundos no que respeita à titularização, compreende -se, deste modo, a inclusão desta figura. Relativamente a esta figura importa referir que esta assume a forma de uma sociedade de responsabilidade limitada ou uma sociedade anónima simplificada e que o capital social mínimo para a sua consti-tuição é de 37.000 euros, conforme artigo L224 -2 do código comercial Francês.

atualmente a estrutura típica de titularização de acordo com o Banco de França78 é a seguinte:

6. Questões jurídicas

da panóplia de questões jurídicas que suscitam maior interesse entendemos selecionar as questões relativas à aquisição por um veículo de titularização de créditos suscetíveis de se transformarem em partes representativas de capital e qual

75 Philippe sarrailhé, Securitization, Kluwer Law international, 67.76 entidade reguladora do mercado financeiro em França.77 transpôs a diretiva 2005/68/ce de 16 de novembro de 2005 que visava reformar o quadro legal de fundos de titularização de créditos.78 omar Birouk, e cassan Laetitia, in http://www.banque -france.fr/fileadmin/user_upload/banque_de_france/publications/BdF190_7_titrisation.pdf

Montant descréances cédées

société de gestion dépositaire

véhicule de titrisation(Émetteur)

cédant investisseurs

Prix de souscription

intérêts et principalcession des créances

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a função de um depositário em França. a seleção desta última questão resulta do facto de os Ftc Portugueses terem inspiração francófona, e de em Portugal parecer existir uma diferença entre as funções do depositário que estão previstas na lei e o exercício efetivo das mesmas79. assim, através da análise da função de depositário em França poderemos perceber se esta é similar à Portuguesa, ou se existe alguma especificidade nesta legislação que nos permita compreender a dissonância entre o exercício da função de depositário em Portugal e o que está estabelecido.

no que respeita à questão referente à possibilidade de um veículo de titulari-zação poder investir em créditos que se podem transformar durante a sua vida e dar acesso a capital e.g. obrigações convertíveis em ações, estatui a o artigo L214-43 do cMF que: “(…) Pour la réalisation de son objet, un organisme de titrisation peut détenir, à titre accessoire, des titres de capital reçus par conversion, échange ou remboursement de titres de créances ou de titres donnant accès au capital (…)”. isto é, na prossecução da sua atividade uma stc ou um Fct podem recorrer a título acessório a créditos suscetíveis de se transformarem em capital.

Relativamente às funções do depositário estabelece o artigo L214 -49 -7 do cMF que “(…) chargé de la conservation de la trésorerie et des créances acquises ainsi que du contrôle de la régularité des décisions prises par la société de gestion (…)”, ou seja, o depositário fica encarregue de receber os fluxos financeiros e os créditos adqui-ridos assim como de supervisionar as decisões tomadas pela sociedade gestora.

adicionalmente estatui o artigo 323 -2 do Regulamento Geral da Autorité des Marchés Financiers que o depositário tem a função de manutenção dos valores mobi-liários referidos na secção ii do artigo L. 211 -1 do cMF, salvo as devidas exceções.

Face ao exposto, entende -se que não existem diferenças materialmente rele-vantes relativamente à função de depositário entre França e Portugal.

Secção III – Reino Unido

7. Ativos titularizáveis

considerando que não existe uma legislação específica que regule a titula-rização no Reino Unido (doravante “RU”), devemos procurar legislação geral que seja passível de ser aplicada às matérias de titularização e se existe algum tipo de limitações aos ativos que são objeto de titularização.

assim, da análise do Sale of Goods Act1979 resulta que não existem quaisquer limitações aos bens que podem ser alienados. esta ausência de limitação é inclusive

79 Ponto 11 supra.

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aplicável à titularização de ativos futuros, atendendo ao disposto no artigo 5.º do diploma supramencionado.

no âmbito da venda de ativos que serão titularizados, importa referir que não existe qualquer necessidade de informar ou obter o consentimento do devedor para que essa venda produza efeitos. todavia é relativamente usual que aquando da celebração de contratos de mútuo, o mutuante não possa ceder o direito que tem sobre o mutuário sem a concordância deste. nestas situações a cessão dos créditos para efeito de titularização é proibida.

À semelhança do que se passa noutros países e sem prejuízo de situações espe-cíficas no RU, o tipo de ativo que começou por ser titularizado em maior escala foi o crédito hipotecário, seguido pelo crédito ao consumo.

8. Estruturas de titularização

no RU a titularização é realizada normalmente através de uma sociedade veículo e não de um trust como é comum nos eUa80. este facto decorre de ques-tões de índole fiscal. isto é, enquanto nos eUa as pass ‑through trust encontram -se isentas de imposto, no RU esta situação suscita dúvidas uma vez que os juros pagos podem não ser dedutíveis para efeitos do cálculo do rendimento do trust. adicionalmente, as sociedades podem deduzir as despesas que têm de gestão se forem qualificadas como sociedades de comércio, o que constitui mais um argu-mento na escolha de sociedades veículo.

no âmbito das estruturas existentes no RU importa ainda identificar de que modo estas estruturas se financiam. assim, existem dois métodos preferências de financiamento de um sPv, um empréstimo estruturado sindicado ou a emissão de títulos de dívida. no que respeita ao primeiro, menos comum, para que o empréstimo sindicado seja aceite deve -se adotar uma estrutura pass ‑through, neste esquema os ativos são transferidos para uma entidade (trustee) que faz a sua gestão, esta opção é utilizada em situações em que o ativo titularizado é o crédito hipo-tecário. no que respeita ao método da emissão de dívida devemos referir que a comercialização destes títulos de dívida junto do público só é admitida caso o Financial Services Act o preveja, salvo exceções previstas nesta legislação.

atendendo à sua excecionalidade importa fazer uma referência às black box securitization structures. neste tipo de estrutura o importante não é a qualidade dos ativos que são objeto de titularização mas apenas as garantias que são prestadas à operação. aliás, a notação de risco sobre estas estruturas não considera os ativos incidindo apenas sobre as garantias.

80 simon Gleeson, Securitization, Kluwer Law international, 198.

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9. Questões jurídicas

no domínio das questões que devem ser objeto de análise do ponto de vista jurídico entendemos que as mais importantes estão relacionadas com a recompra de créditos pelo cedente, o direito de compensação por parte dos devedores e com a insolvência81.

Relativamente à recompra de ativos pelo cedente importa perceber qual a posição do regulador do Reino Unido sobre esta matéria uma vez que essa recompra é suscetível de traduzir -se num apoio implícito à operação e, por conse-guinte, a transferência do risco para o SPV pode estar em causa. a Financial Services Authority82 (“Fsa”) esclareceu algumas dúvidas que subsistiam relativamente a esta matéria83. assim, a Fsa informou que a referida recompra não implicava um suporte implícito à operação uma vez que uma proibição inequívoca de recompra correspondia a uma restrição relativamente às entidades com as quais o SPV poderia manter relações comerciais. numa situação mais específica, entendeu a Fsa que era admissível a inclusão de uma cláusula contratual, clean ‑up call, que permitisse a recompra dos créditos pelo cedente quando o conjunto dos ativos titularizados se encontrasse de tal modo reduzido que não era economicamente viável manter a operação atendendo aos custos inerentes da mesma.

no que se refere ao direito de compensação pelos devedores esta reveste de extrema importante a nível social. de modo a entendermos a relevância desta situação importa ilustrar a situação que em termos hipotéticos é suscetível de acontecer. Para o efeito, iremos ignorar as regras que asseguram um montante mínimo de reembolso aos depositantes em caso de insolvência da entidade mutuante. assim, se o individuo a tiver no banco B um crédito hipotecário no valor £ 170.000 e um depósito de £ 110.000, seria expectável que em caso de insolvência do banco o individuo a apenas tivesse que pagar a diferença entre o crédito e o depósito que tinha, no nosso caso £ 60.000. contudo, se estivermos no âmbito de uma true sale em que o crédito foi alienado para uma entidade terceira dever -se -á refletir sobre se o devedor mantém ou não a possibilidade de exercício do direito de compensação contra uma entidade (SPV ) que nada tem a ver com o depósito que foi estabelecido.

sobre esta tema estabelece a lei inglesa que o cedente não pode ficar numa melhor posição com a cessão do que estaria sem a mesma. deste modo, o cedente não ficaria exonerado do direito de reembolsar o montante do depósito.

81 simon Gleeson, Securitization, Kluwer Law international 192 a 195.82 esta entidade era responsável pela regulação do mercado f inanceiro no Reino Unido. atualmente esta entidade encontra -se dividida em duas. a Financial Conduct Authority e a Prudential Regulation Authority.83 http://www.fsa.gov.uk/pages/about/what/international/basel/pdf/ssg_faqs.pdf

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na  eventualidade do cedente do crédito entrar em insolvência o devedor pode exercer os direitos que tinha contra o cedente, contra o SPV. este facto cons-titui um risco acrescido para os SPV. sem prejuízo desta situação devemos salientar que, após a cessão do crédito, caso o devedor aumente o seu depósito para £ 120.000 apenas pode exercer o direito de compensação contra o SPV no montante de £ 110.000.

no que respeita à possibilidade da insolvência do cedente existe a possibili-dade deste ou do administrador de insolvência requerem que os ativos transferidos para um SPV integrem a massa falida do cedente insolvente. este cenário existe mas é remoto, considerando que o princípio da true sale deve estar subjacente a cessão dos créditos. apenas na eventualidade de estarmos perante uma cessão fraudulenta, que só pode ser arguida até dois anos antes da cessão, seria equacio-nável que os ativos “cedidos” integrassem a massa falida da entidade insolvente.

Secção IV – EUA

10. Tipos de ativos titularizáveis

nos eUa não há nenhuma tipificação dos ativos suscetíveis de serem titula-rizados, ou seja, todos os ativos que tenham fluxos financeiros previsíveis podem ser objeto de titularização. assim, nos eUa já foram realizadas operações de titularização, inter alia, de crédito hipotecário, empréstimos para a aquisição de aviões, barcos, carros, equipamento municipal e de crédito em incumprimento84.

11. Estruturas de titularização

considerando que existe uma parafernália de estruturas de titularização que podem ser criadas, vamos incidir a nossa análise naquelas que são mais comuns85.

• SPVCorporation – esta estrutura tem como grande vantagem a previsibilidade do tratamento que lhe será dado em caso de insolvência uma vez que estamos perante uma sociedade. atendendo à sua natureza societária é -lhe possível emitir diferentes tipos de valores mobiliários o que facilita a sua gestão. não existem quaisquer restrições quanto à titularidade desta sociedade, ou seja, o próprio cedente dos ativos pode deter esta sociedade. sem prejuízo deste facto, a sociedade é sujeita passiva dos impostos do rendimento de modo autónomo face à sociedade que a detém.

84 Randall d. Luke e Louis F. Burke, Securitization, Kluwer Law international, 205.85 Randall d. Luke e Louis F. Burke, Securitization, Kluwer Law international, 206 a 209.

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• SPVgrantortrust – esta estrutura quando criada tem como fim a otimização fiscal da operação de titularização. isto é, a estrutura em si não é sujeita de imposto sobre os rendimentos pelos eUa. os detentores do sPv é que a título individual são sujeitos passivos de imposto. assim, dependendo da residência fiscal dos detentores do veículo poder -se -ão pagar menos impos-tos do que se fosse o veículo a ser tributado.não obstante, esta estrutura, comparativamente com a sPv Corporation, tem uma menor gama de valores mobiliários que pode emitir o que limita o seu modo de gestão.• SPVownertrust – esta estrutura visa, também, a otimização fiscal mas pretende corrigir algumas das deficiências que a sPv grantor trust possui. assim, no que respeita à questão fiscal esta estrutura assume a figura de uma partnership o que assegura que os partners serão os sujeitos passivos de imposto e não a estrutura. contudo, a responsabilidade dos partners pelas dívidas desta estrutura é ilimitada, situação que constitui o maior óbice desta figura.no âmbito das vantagens desta estrutura devemos salientar a possibilidade de emissão de diversos valores mobiliários, nomeadamente títulos de dívida, o que aumenta a variedade de instrumentos que poderão ser utilizados no âmbito da sua gestão.

• TheMasterTrust – esta é a estrutura mais escolhida nos eUa. este facto decorre da possibilidade dos últimos beneficiários desta estrutura poderem ser as pessoas singulares enquanto investidores destes “super fundos”. nesta estrutura o cedente vende os seus ativos a um SPV Corporation que os revende a um SPV master trust. o conjunto destes ativos constitui um património autónomo sobre o qual são emitidos certificados representativos de quotas desse património.enquanto quotas de um património constituído por ativos titularizados é permitido que os referidos certificados sirvam de colateral de emissões de papel comercial junto do público. este é o motivo pelo qual os principais adquirentes destes certificados são instituições financeiras.Por razões de índole fiscal as partes desta estrutura optam, normalmente, por tratar os referidos certificados como emissão de dívida pelo trust.

12. Principais questões legais na titularização nos EUA

sem prejuízo de existir uma multiplicidade de questões legais que se suscitam nos eUa, no âmbito da titularização, selecionamos aquelas que suscitam mais dúvidas e, por essa via, melhor caracterizam o regime norte -americano86.

86 Randall d. Luke e Louis F. Burke, Securitization, Kluwer Law international, 212 a 224.

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12.1. consolidação

nos eUa, num processo de insolvência, um tribunal pode consolidar os ativos e responsabilidades do cedente e do sPv. considerando que num processo de titularização um dos objetivos é a segregação patrimonial entre cedente e ativo titularizado esta eventual consolidação suscita riscos que devem ser devidamente equacionados.

assim, atendendo ao facto de que os tribunais dos eUa analisam, inter alia, se o sPv é detido pelo cedente, se existe uma efetiva separação entre sPv e cedente, se essa separação é pública e se existe um risco de confusão (commingling) entre o património do sPv e do cedente, deverão estas questões ser tidas em consideração aquando da estruturação da operação.

Um fator que mitiga o risco de consolidação é a detenção do sPv por uma terceira entidade independente. contudo, nestes casos os tribunais analisam também se o cedente exerce, ainda assim, controlo sobre o sPv.

12.2. cessão plena e efetiva versus mútuo

Uma das ideias nucleares da titularização é a cessão plena e efetiva dos ativos (true sale). independentemente de determinados ativos serem qualificados como tendo sido objeto de titularização poder -se -á verificar uma requalificação da operação. isto é, poder -se -á estar perante um mútuo seguro por um conjunto de ativos e não perante ativos titularizados.

Para o efeito, dever -se -á verificar se nas condições contratuais ficou inequivo-camente estabelecido que os riscos associados à perda de capital e de juros passou efetivamente para o sPv, se os benefícios pela detenção dos ativos se encontram no cedente e se é o cedente que exerce o controlo sobre os ativos titularizados.

Relativamente ao risco de perda de capital e juros dever -se -á ter em consi-deração se não existem instrumentos que mitigam a existência deste risco pelos investidores, através da sua transferência para o cedente. independentemente da dificuldade de mensurar o que é admissível ou não, entende -se que a cessão de ativos ao valor de mercado é um bom indicador sobre se se está ou não perante uma true sale87.

no que concerne à retenção dos benefícios pelo cedente cumpre analisar se o cedente pode a qualquer momento recomprar os ativos que cedeu. a metodo-logia utilizada para essa recompra poderá ser por via de compra, substituição ou outro qualquer instrumento que as partes definam.

87 Randall d. Luke e Louis F. Burke, Securitization, Kluwer Law international, 214.

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importa verificar se o cedente não pode exercer algum tipo de controlo sobre o sPv em benefício próprio. esta situação é incompatível com a true sale mas não implica a possibilidade de gestão dos créditos pelo cedente.

em suma, de modo a dirimir a questão sobre se se está perante uma true sale ou um empréstimo encapotado, dever -se -á realizar uma análise cuidada dos contratos que subjazem à operação na medida em que por vezes poderá haver uma instrumentalização da figura da titularização.

12.3. inovações do Dodd ‑Frank Act

o Dodd ‑Frank Act, assinado em 21 de julho de 2011, foi uma resposta à crise financeira que eclodiu nos eUa em 2007. esta legislação constitui a mais impor-tante reforma financeira nos eUa desde a Grande depressão e originou mudanças profundas no setor financeiro americano. deste modo, e uma vez que também incidiu sobre a titularização, importa salientar quais as principais alterações que foram realizadas relativamente a esta temática.

em relação à detenção de risco foi estabelecido que, como regra geral, um securitizer88 deve deter um mínimo de 5% dos ativos salvo se o crédito objeto de titularização for um “qualified residential mortgage”89. no que se refere à posição detida pelo securitizer este não pode realizar qualquer operação financeira na qual transfira ou mitigue o risco associado à sua posição.

no que respeita à detenção de risco importa referir que podem existir isen-ções, totais ou parciais90, quando estejamos perante entidades públicas e caso se justifique a proteção dos investidores, ou os ativos titularizados sejam garantidos pelo governo dos eUa ou por agências governamentais dos eUa. salienta -se que para este efeito a Fannie Mae e a Freddie Mac não são consideradas agências governamentais dos eUa.

no âmbito da qualidade de informação que é prestada aos investidores desta-camos algumas das principais alterações que foram realizadas relativamente à qualidade do crédito e a informação sobre o mesmo. assim, qualquer entidade que titularize ativos deve promover uma análise aos créditos que serão objeto de

88 “(…) an issuer of an asset ‑backed security; or a person who organizes and initiates an asset ‑backed securities by selling or transferring assets (…) to the issuer”, conforme sec. 15G. credit Risk Retention, 516 do dodd -Frank act. isto é, um securitizer é uma entidade que titulariza ativos (issuer), ou uma pessoa que organiza/ promove uma operação e cede os créditos a titularizar (person who organizes and initiates an asset ‑backed securities).89 termo que será objeto de concretização pelos reguladores americanos atendendo ao disposto no dodd -Frank act. 90 sec. 15G. credit Risk Retention, 517 e 518 do dodd -Frank act.

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titularização (due diligence)91 e realizar uma nota (disclosure)92 relativamente a cada classe do valor mobiliário que é emitido no âmbito de uma operação de titu-larização. esta nota deve incluir informação que caracteriza os originadores, a natureza e a extensão do montante do crédito e qual a percentagem de risco que o securitizer e o originador assumem nesta operação93.

no que concerne às ofertas de valores mobiliários conexos com operações de titularização foram estabelecidos dois requisitos que visam atestar a qualidade dos créditos e tornar estas operações mais transparentes relativamente aos principais agentes envolvidos. nesta medida, foi estabelecido que as agências de notação de risco (rating) devem realizar um relatório que acompanhe a notação por elas dada, e que o mercado seja informado sobre todos os pedidos de recompra de ativos que recebam pelo securitizer, ou entidades relacionadas, de modo a que se perceba quais os ativos com deficiências nestas operações.

o Dodd ‑Frank Act teve mudanças profundas relativamente à titularização. este facto não surpreende atendendo à preponderância que a titularização teve na crise financeira de 2007.

Capítulo IV – Crise Subprime

nos capítulos ii e iii deste trabalho procurou -se explicar juridicamente como funcionava a titularização em Portugal, e ter uma ideia de quais eram as principais características da titularização em países como espanha, França, eUa e também no Reino Unido.

agora, iremos procurar explicar as causas e consequências económicas da titu-larização na crise económica e financeira a nível mundial. Para o efeito, iremos analisar única e exclusivamente o que se passou nos eUa, na medida em que foi neste país que a crise eclodiu, tendo -se posteriormente propagado para o resto do mundo.

o crédito hipotecário subprime (ou non prime) foi uma inovação financeira que visou assegurar que pessoas com um perfil de risco mais elevado podiam, também elas, adquirir casas. o aumento da procura de casas conduziu, naturalmente, a uma subida do valor destas94.

91 sec. 945. due diligence analysis and disclosure in asset -Backed securities issues, 523 do dodd -Frank act.92 sec. 945. due diligence analysis and disclosure in asset -Backed securities issues, 523 do dodd -Frank act.93 Morrinson & Foerster, Dodd Frank Act Securitization Reform, new sec aBs office, http://www.mofo.com/files/Uploads/images/100721secaBs.pdf94 Gary Gorton, The Subprime Panic, 1

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Secção I – O processo de desregulação

1. Shadow Banking

o processo que levou à desregulação nos eUa é fascinante não só porque nos permite compreender a origem da crise mas, também, porque numa pers-petiva sociológica conseguimos acompanhar a evolução duma sociedade que é o principal ícone da globalização.

esta análise não se pretende exaustiva, até porque ainda que o nosso trabalho incidisse em exclusivo sobre este tema ele seria manifestamente incompleto. Pretendemos identificar alguns aspetos que no nosso entender foram centrais e que ajudam a ter uma visão panorâmica sobre a evolução do movimento que ficou conhecido como shadow banking.

a nossa viagem começa no dia 23 de dezembro de 1913 quando Woodrow Wilson, então Presidente dos eUa, assinou o Federal Reserve Act. esta legislação pretendeu estabilizar o sistema financeiro através da criação de uma instituição Federal Reserve System (doravante “Fed”) que iria servir como financiador de último recurso dos bancos95. deste modo, pretendia -se evitar as situações que se veri-ficaram em 1873, 1884, 1890, 1893, 1896 e 190796 nas quais houve uma corrida aos depósitos e em que os bancos não tiveram dinheiro suficiente para entregar.

contudo, a constituição do Fed não foi suficiente para evitar a corrida aos depósitos que se verificou nos anos 2097. assim, em 1933 o congresso aprovou o Glass ‑Steagall Act que, inter alia, instituiu a Federal Deposit Insurance Corporation (doravante Fdic) que assegurava o reembolso dos depósitos até um montante de 2.500 dólares (doravante “Usd”) (cobria a maioria dos montantes na altura). esse montante subiu até os 100.00 Usd em 1980 e até aos 250.000 Usd em outubro de 200898.

95 Milton Friedman e anna Jacobson schwartz, A Monetary History of the United States (1867‑1960), 189 a 196.96 esta época foi designada por Milton Friedman como “o pânico de 1907”. em outubro de 1907, os bancos deixaram de realizar os pagamentos que lhes eram solicitados pelos seus clientes. nas duas últimas semanas de outubro ocorreu uma corrida aos bancos, uma vez que os depositantes pretendiam resgatar os seus depósitos. esta situação conduziu à suspensão de atividade por alguns dos maiores bancos de nova iorque, que depois se generalizou a outros estados. de modo a garantir a evitar uma perda de valor do dólar, J. P. Morgan emprestou dinheiro a alguns bancos e sociedade financeiras. Milton Friedman e anna Jacobson schwartz, A Monetary History of the United States (1867 -1960), 157 a 162.97 todas as referências realizadas a décadas neste capítulo são relativas ao século XX, salvo indicação em contrário.98 the Financial crisis inquiry Report, 58 do pdf.

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adicionalmente o congresso restringiu a atividade bancária ao estabelecer medidas que desencorajavam o risco excessivo procurando -se, desta forma, evitar falências que iriam consumir o dinheiro dos contribuintes. no âmbito desta legislação foi criada a Regulation Q, que autorizava a Fed a estabelecer taxas de juro máximas relativamente a depósitos realizados junto de bancos e das Saving & Loans (doravante “s&L”) evitando -se uma competição desmesu-rada nos depósitos.

o sistema atravessou a ii Guerra Mundial e permaneceu sólido até aos anos 60. a partir deste momento iniciou -se um processo de subida da inflação que conduziu a uma subida das taxas de juro. não obstante, em virtude da Regulation Q os bancos e s&L não podiam oferecer mais do que 6% de taxa de juro nos depósitos.

nos anos 70, identificando uma oportunidade de negócio as sociedades financeiras como a Merrill Lynch, Fidelity e vanguard iniciam um processo de persuasão junto dos consumidores para que estes investissem as suas poupanças nos seus fundos em vez de realizarem depósitos junto de bancos e das s&L. estes fundos apresentavam taxas bem mais elevadas que os depósitos mas não eram protegidos pelo Fdic.

em 1975, a Securities and Exchange Commission (doravante “sec”) eliminou as comissões fixas na compra e venda de valores mobiliários. os fundos tornam -se ainda mais apelativos, o que agrada aos consumidores e as sociedades financeiras iniciam uma fase de crescimento sem precedentes na sua história. a título exem-plificativo o mercado de fundos monetários passou de 3 mil milhões de Usd em 1977, para 740 mil milhões de Usd em 1995, tendo alcançado os 1,8 biliões de Usd em 200099.

em 1980 e 1982, o congresso aprovou legislação que removeu a existência de juros usurários, e desregulou o processo de concessão de empréstimos100.

os fundos monetários funcionavam como contas bancárias. o âmbito do seu investimento rapidamente foi alargado em virtude da crescente procura que tinham. assim, além das obrigações do tesouro americano passaram a investir nos mercado de papel comercial101 e repo102 ou Repurchase Agreement.

99 the Financial crisis inquiry Report, 59 do pdf.100 Patricia a. Mccoy, andrey d. Pavlov, e susan M. Wachter, Systemic Risk Through Securitization: The Result of Deregulation and Regulatory Failure, 509.101 Relativamente ao primeiro, papel comercial, o investimento consistia na aquisição de obrigações de curto prazo de empresas sem qualquer garantia específica associada. isto é, a única garantia existente era o património da empresa.102 o segundo mercado repo traduzia -se na obrigação de uma empresa vender e.g. obrigações do tesouro e de as recomprar num curto espaço de tempo por um montante mais elevado, constituindo -se a diferença no prémio que era pago às empresas que forneciam liquidez. este

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estes dois mercados eram designados por “hot money”, ou seja, quem investia neles ganhava muito dinheiro. sem prejuízo disso ocorreram dois episódios que poderiam ter tido efeitos nefastos nestes mercados. em ambos os acontecimentos, o relevante não foi o porquê, o que falhou mas a solução.

a primeira situação ocorreu em 1970, foi pedida a insolvência da sexta maior empresa não financeira dos eUa, a Penn Central Transportation Company (doravante “Penn”), que tinha 200 milhões de Usd de papel comercial em dívida103.

ainda o papel comercial estava a conquistar adeptos juntos dos fundos refe-ridos e já se deparava com um enorme problema. a imagem do papel comercial pareceria estar irremediavelmente afetada. Perante este cenário e com situações similares de menor expressão a verificarem -se, o Fed decide intervir e injeta 600 milhões de Usd nos bancos comerciais, a taxas de juro mais reduzidas, para que estes canalizassem este montante para as sociedades que não conseguiam cumprir com os compromissos que assumiram no âmbito do papel comercial. a confiança dos investidores havia sido restaurada e a imagem do papel comercial como um investimento seguro saía reforçada desta situação.

a segunda situação, verificada no mercado repo, ocorreu em 1982. dois importantes agentes do mercado, as firmas Drysdale and Lombard ‑Wall, entraram em insolvência por incumprimento de contratos repo que assinaram104.

a solução, uma vez mais, veio da Fed que atuou como financiador de último recurso neste mercado. a Fed apoiava agora, de forma inequívoca, o mercado do shadow banking. na sequência desta crise, o mercado repo alterou -se e passaram a existir três contrapartes neste negócio e não apenas duas. esta pequena alteração iria ter consequências severas em 2007 e 2008.

o sistema do shadow banking caracterizava -se por ser um mercado paralelo à atividade bancária, que prestava serviços similares a esta atividade, e que não era regulado pela entidade supervisora do mercado bancário. este sistema crescia a um ritmo sem precedentes. os bancos de investimento, fundos de investimento montetário, hedge funds, instituições financeiras não bancárias e empresas patro-cinadas pelo governo assumiam um papel de relevo, e eram alguns dos protago-nistas deste sistema. ao nível dos instrumentos utilizados destaque para os aBs, cdo, derivados e repo105.

mercado tornou -se muito popular em Wall street uma vez que as empresas aqui sediadas conseguiam ganhar muito dinheiro com a liquidez que lhes era fornecida, viviam no denominado shadow banking.103 the Financial crisis inquiry Report, 59 do pdf.104 the Financial crisis inquiry Report, 60 do pdf.105 Gary Gorton, e andrew Metrick, Regulating the Shadow Banking System, 1.

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Por paradoxal que pareça, ou talvez não, os bancos comerciais entendiam que o problema não estava na falta de regulação sobre os bancos de investimento, mas na sua (bancos comerciais) excessiva regulação106.

o Glass ‑Steagall Act era visto como constrangedor da atividade bancária comercial e era visto como a causa da perda de competitividade pelos bancos comerciais.

a legislação aprovada pelo congresso em 1956 que impôs às holdings, que controlavam os bancos comerciais, um conjunto de limitações, a fim de mitigar o risco de insolvência dos bancos, era entendida como um entrave. no mesmo sentido, os bancos comerciais entendiam que a decisão adotada em 1981 pelo regulador bancário, em que se definia pela primeira vez requisitos mínimos de capital, no caso 5%, constituía mais um óbice à sua atividade uma vez que os bancos de investimento podiam alavancar -se muito mais. assim, podemos afirmar que os requisitos de capital e de liquidez exigidos aos bancos constituíram um forte dinamizador do sistema bancário paralelo107.

o mercado dos fundos monetários e das sociedades que atuavam neste mercado era regulado pela Securities and Exchange Commission (doravante “sec”), criada em 1934. esta entidade realizava a sua supervisão mas numa perspetiva de proteção do investidor, ou seja, o importante era a informação que era prestada. a sec no âmbito da sua supervisão não se focava na robustez e segurança das suas supervisionadas108.

2. a crise das Saving & Loans

na sequência da forte contestação de bancos e das s&L o congresso aprovou, em 1980, o Depository Institutions Deregulation and Monetary Control Act. esta legis-lação revogava o limite máximo de juro que aquelas instituições podiam pagar pelos depósitos que recebiam. surgia um problema, como competir com as socie-dades de Wall Street quando as receitas dos bancos e das s&L comerciais vinha predominantemente de hipotecas e empréstimos de longo prazo cujas taxas eram fixas? era necessário fazer face às exigências do mercado no curto prazo.

106 no dia 17 de setembro de 2010, alan Blinder, vice Presidente da Fed, entre 1994 e 1996 disse: “We were concerned as bank regulators with the eroding competitive position of banks, which of course would threaten ultimately their safety and soundness, due to the competition they were getting from a variety of nonbanks—and these were mainly Wall Street firms, that were taking deposits from them (…) So, yeah, it was a concern”, conforme the Financial crisis inquiry Report, 61 do pdf.107 zoltan Pozsar, tobias adrian, adam ashcraft, e Hayley Boesky, Shadow Banking, Federal Reserve Bank of new York staff Reports, 45 e 46.108 the Financial crisis inquiry Report, 62 do pdf.

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em 1982, a solução apareceu por via do Garn ‑St. Germain Act. através desta legislação os bancos comerciais e as s&L passaram a poder conceder outro tipo de mútuos. a título exemplificativo, estas entidades passaram a poder conceder mútuos nos quais havia uma parte do crédito que seria paga após o termo do mesmo, na maioria das situações havia um refinanciamento. a possibilidade de diferir uma parte do mútuo tinha como consequência prestações mais baixas no curto prazo, ou seja, as pessoas passavam a poder comprar casas que anterior-mente não podiam.

os adjustable ‑rate mortgages (doravante “aRM”) foram outra inovação desta lei. neste mecanismo os montantes a pagar pelo mutuário eram ajustados periodica-mente em função do custo do dinheiro para o banco ou para as s&L. os aRM permitiam que a prestação de cada mutuário flutuasse em função das taxas de juro, ou seja, em momentos em que o juro estivesse baixo as prestações eram mais baixas, o problema para os mutuários apenas se colocava com a subida das taxas de juro.

em 1987, a Fed estabeleceu regras que permitiram o exercício de algumas atividades que se encontravam proibidas pelo Glass ‑Steagall ou pelas modifica-ções que lhe sucederam, as quais partilhavam a mesma matriz ideológica. essas regras permitiam que as holdings dos bancos tivessem subsidiárias não bancárias que detivessem instrumentos financeiros que eram proibidos a instituições bancá-rias. inicialmente a percentagem desses instrumentos financeiros não poderia ser superior a 5% dos ativos dessa subsidiária, mas em 1997 o Fed permitiu que esse montante fosse de 25%.

de modo a compreendermos as mudanças que se estavam a verificar refira -se que entre 1935 e 1980 entraram em insolvência 243 bancos, e entre 1980 e o início dos anos 90 faliram 3.000 bancos comerciais e s&L. nascia a crise das s&L109.

sem prejuízo destes dados, em 1991, o departamento do tesouro dos eUa realizou um estudo no qual sugeria a eliminação da legislação antiga relativa-mente aos bancos, inclusive o Glass ‑Steagall Act, que consideravam estar obsoletas e constituíam entraves à atividade bancária.

3. Duas visões, dois caminhos opostos: A expansão da atividade bancária e o fim do Glass--steagall act

nos finais dos anos 80 chegou -se a uma convergência sobre quais os princí-pios que devem nortear o crescimento económico. a esses princípios foi dado o nome de Consenso de Washington. na sua versão original existiam dez princípios dos quais destacamos a liberalização do comércio, a abertura ao investimento

109 the Financial crisis inquiry Report, 65 do pdf.

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estrangeiro e a desregulamentação110. sabemos que estes princípios são essencial-mente indicados para estados, mas o raciocínio, as ideias que lhe estão subjacentes são também aplicáveis a determinados setores da economia, como a titularização.

a dimensão do crescimento bancário americano só é possível ser compreen-dida na sua plenitude através de números, de outro modo parecerá que escrevemos sobre fenómenos abstratos. assim, em 1998 os ativos sob gestão dos cinco maiores bancos comerciais americanos: Bank of America, Citigroup, JP Morgan, Wachovia e Wells Fargo era de 2,2 biliões de Usd. em 2007, esse valor mais do que triplicou, estava agora nos 3,2 biliões de Usd111. o que esteve na génese desse crescimento tão acentuado é o que nos propomos agora a descobrir.

arthur Levitt, antigo Presidente da sec, disse que sempre que pretendiam regular sobre uma nova matéria os lobbys existentes apareciam e inundavam o congresso de questões extremamente complexas com o objetivo de os fazer desistir da nova legislação. acrescentou ainda que o que se verificava era a “kind of a blood sport to make the particular agency look stupid or inept or venal”112.

em 1999 o setor financeiro gastou 187 milhões de Usd em loobying. deste ano até 2008 foram gastos 2,7 mil milhões de Usd em loobying e um bilião de Usd em doações para campanhas políticas113.

as diferenças que existiam entre banca comercial e de investimentos eram agora bastante reduzidas, faltava contudo eliminar o grande ícone da regulação, o Glass ‑Steagall Act.

a 12 de novembro de 1999, aprovado pelo congresso e assinado pelo então presidente Bill clinton, entra em vigor o Gramm ‑ Leach ‑Bliley Act, também conhe-cido por Financial services Modernization act of 1999. esta legislação eliminava algumas das principais medidas Glass ‑Steagall Act que ainda subsistiam114.

o corolário de todo o processo de desregulação fora alcançado e as holdings do Citigroup, JP Morgan, e Bank of America passavam a concorrer com os cinco grandes bancos de investimento: Goldman Sachs, Morgan Stanley, Merrill Lynch, Lehman Brothers e Bear Stearns em áreas como empréstimos sindicados, derivados otc e na titularização.

110 dani Rodrik, Uma Economia, Muitas Soluções, verbo, 38 a 41.111 the Financial crisis inquiry Report, 82 do pdf.112 the Financial crisis inquiry Report, 82 do pdf. em sentido divergente, alan Greenspan disse em 1997 que “The self ‑interest of market participants generates private market regulation. Thus, the real question is not whether a market should be regulated. Rather, the real question is whether government intervention strengthens or weakens private regulation”. a conceção de um mercado auto -regulado, sem a intervenção do governo, marcou uma era na Fed.113 the Financial crisis inquiry Report, 84 do pdf.114 destacamos o facto de ter passado a ser possível às holdings venderem e possuírem serviços bancários, seguradores e instrumentos financeiros, sem qualquer tipo de limitação.

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Secção II – A titularização

Uma vez explicado, sucintamente, os fatores e os principais acontecimentos em matéria de regulação bancária e do mercado financeiro que conduziram à desregulação do mercado importa, nesta fase, conhecer os fatores que esti-veram na origem da explosão da titularização, especialmente a de crédito hipotecário115.

4. A explosão no crédito à habitação

a Federal National Mortgage Association (doravante “Fannie Mae”) foi criada em 1938 para comprar crédito hipotecário segurado pela Federal Housing Admi‑nistration (doravante “FHa”). em 1968, o portfolio da Fannie Mae era de 7,2 mil milhões de Usd, sendo que o seu passivo entrava nas contas do governo federal.

o modelo existente viria a ser posto em causa em virtude da concorrência no mercado da habitação que então se verificou116. em 1968, a Fannie Mae cindiu -se em duas: a Fannie Mae que se manteve igual e a Government National Mortgage Association (doravante “Ginnie Mae”). esta empresa comprava créditos que perten-ciam à Fannie Mae e à FHa, e garantia os créditos que estavam na titularidade da FHa e pela veteran administration (doravante “va”).

em 1970, a legislação que criou a Federal Home Loan Mortgage Corporation (dora-vante “Freddie Mac”) autorizou esta e a Fannie Mae a comprar crédito conven-cional que não era garantido pela FHa. salienta -se que o crédito convencional era mais barato do que o fornecido pela FHa e era também mais acessível, uma vez que não era necessário o cumprimento dos exigentes requisitos estabelecidos pela FHa.

em 1970, a Fannie Mae e a Freddie Mac são pioneiras na titularização de créditos hipotecários. nas décadas de 80 e 90, os bancos de investimentos entram neste mercado e passam a dominá -lo117.

115 importa referir que o efeito da globalização nos mercados, nomeadamente a existência de grupos financeiros espalhados e com atividade pelo mundo, dificulta a regulação e supervisão desses mesmos grupos. esta questão foi suscitada em 1995 por Robert Merton, Financial Innovation and the Management and Regulation of Financial Institutions, 466. a Fannie Mae e a Fredie Mac tinham dois objetivos primordiais, um de caráter privado e outro de caráter público: maximizar a remuneração dos acionistas e ajudar o mercado hipotecário, respetivamente. estes objetivos pareciam poder conflituar no futuro uma vez que em cenário de crise um ir -se -ia, necessariamente, sobrepor ao outro.116 João calvão da silva, Titul[ariz]ação de Créditos. Securitization, 17.117 Jan Kregel, Changes in the U.S. Financial System and the Subprime Crisis, 9.

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o setor político contribui também para esta explosão no crédito à habitação. o Presidente dos eUa em 1995, Bill clinton, fez inclusive um discurso que cons-titui um incentivo para a aquisição de casas pelos norte -americanos118.

nesse ano, 65,1% dos americanos eram proprietários de casa, Bill clinton estabeleceu uma meta de 67,5% para o ano 2000. essa percentagem aparentemente pequena num universo de 280 milhões de pessoas no ano 2000 representava mil milhões de Usd.

estabelecida a política, parece também claro quem iria desempenhar um papel importante nesta fase de explosão de novos proprietários americanos, a Fannie Mae e a Freddie Mac. em 1990, estas empresas governamentais tinham em circu-lação obrigações de dívida e titularizadas no montante de 759 mil milhões de Usd. em 1995, esse montante crescera para 1,4 biliões de Usd e em 2000 esse montante atingira os 2,4 biliões de Usd119.

na opinião de John taylor o facto de a Fed, entre junho de 2003 e junho de 2004, ter mantido as taxas de juros federais muito baixas, 1%, com o objetivo de estimular a economia, na sequência da recessão de 2001, teve o efeito de esti-mular ainda mais a aquisição de casa. até 2006, o valor das taxas de juro subiria para 5,25%120.

a política monetária da Fed foi bastante criticada, especialmente pelo facto de ter promovido o “dinheiro fácil”. atendendo à bolha imobiliária que se veri-ficava nos eUa, deveria a Fed ter subido as taxas de juro de modo a controlar este problema? Ben Bernanke e Mark Gertler, defenderam que a política monetária não deve ser definida com base em bolhas, mas com fundamentos macroeco-nómicos121. de outro modo, poder -se -á destabilizar o sistema. salientamos que a opinião dos referidos autores reporta -se ao ano de 1999, e compreendemos o

118 “This is the new way home for the American middle class. We have got to raise incomes in this country. We have got to increase security for people who are doing the right thing, and we have got to make people believe that they can have some permanence and stability in their lives even as they deal with all the changing forces that are out there in this global economy.”, conforme the Financial crisis inquiry Report, 70 do pdf.119 the Financial crisis inquiry Report, 69 do pdf.120 the Financial crisis inquiry Report, 132 do pdf. Relativamente a esta matéria salienta -se que quando as taxas de juro iniciaram um movimento ascendente, meados de 2004, aumentou o número de rejeições de pedidos de crédito prime, paradoxalmente, este movimento não teve uma correspondência no crédito subprime. Giovanni dell’ariccia, deniz igan, e Luc Laeven, Credit Booms and Lending Standards: Evidence from the Subprime Mortgage Market, 17. esta circunstância, na nossa opinião, resulta do facto de as instituições que concedem crédito prime, e.g. bancos, são mais exigentes dos que as que concedem crédito subprime, e.g. entidades do shadow banking. este nosso entendimento é corroborado em parte pelos autores anteriormente referidos, quando concluem que a expansão do crédito subprime se deveu aos baixos padrões exigidos no âmbito da concessão de crédito, 26 do livro mencionado.121 Ben Bernanke e Mark Gertler, Monetary Policy and Asset Price Volatility, 28.

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alcance da mesma, no entanto, pensamos que se uma bolha tem a capacidade de influenciar negativamente os agregados macroeconómicos, então a utilização da política monetária como forma de combate a essa bolha poderá, na nossa opinião, ser uma possibilidade.

5. A estruturação de operações de titularização

a partir dos anos 80 deixou de se titularizar os melhores ativos, nomeadamente o crédito hipotecário de taxas fixas, e passou -se a titularizar, inter alia, crédito ao consumo, automóvel, e os créditos hipotecários aRM.

a titularização iniciava a sua fase de expansão ininterrupta até à crise de 2007. os motivos subjacentes ao sucesso da titularização eram evidentes, os cedentes tiravam do balanço os seus créditos, transmitindo deste modo o risco inerente aos mesmos, conseguiam liquidez para voltarem a conceder ou adquirir novos mútuos, os investidores estavam satisfeitos com os resultados, parecia um jogo em que todos ganhavam122.

a complexidade das operações de titularização como já se demonstrou nos capítulos ii e iii deste trabalho é imensa. contudo, a receita era relativamente simples. originavam -se créditos, ou adquiriam -se, agregavam -se esses créditos e os mesmos eram vendidos. as operações de titularização eram de tal modo complexas que quem comprava não sabia se estava a realizar um bom ou mau investimento, tal era a dificuldade dos cálculos. a título exemplificativo numa operação constituída por 4.999 créditos, o citigroup estabeleceu 19 classes de obrigações titularizadas, todas as classes tinham diferentes prioridades, juros e riscos123. assim, os investidores passaram a confiar no rating que era atribuído pelas agências de rating.

a concessão de crédito tinha disparado, e com esta as operações de titula-rização. ao fim de algum tempo o melhor (prime) crédito começava a dimi-nuir. Perante este cenário, em termos hipotéticos, existiam duas possibilidades. a primeira era terminar com o esquema existente. a segunda possibilidade era conceder crédito a pessoas com um maior risco de incumprimento, as conse-quências desta escolha eram a perda de qualidade do crédito que era titularizado,

122 a titularização era bem vista pelos reguladores, atendendo às palavras de Lawrence Lindsey, uma vez que “If you had a regional… real estate downturn it took down the banks in that region along with it, which exacerbated the downturn (…) So we said to ourselves, ‘How on earth do we get around this problem?’ And the answer was, ‘Let’s have a national securities market so we don’t have regional concentration.’… It was intentional.”, conforme the Financial crisis inquiry Report, 72 e 100 do pdf, respetivamente. isto é, de modo a mitigar problemas regionais preferiu -se criar um mercado nacional de titularização e, consequentemente, internacional.123 the Financial crisis inquiry Report, 100 do pdf.

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mas em compensação, havia a perspetiva de maior remuneração. Face às opções que tinham sido tomadas no passado é com naturalidade que se percebe que a segunda possibilidade foi a escolhida.

assim, verificou -se um aumento bastante considerável do crédito de má quali-dade, ou subprime124. em 2003 este tipo de crédito representava 8% dos créditos, em 2005, 20%125. a originação de crédito subprime triplicou entre 2000 e 2006, alcançando nesta data os 600 mil milhões de Usd126.

o quadro127 infra demonstra a correlação que se verificou entre crédito hipo-tecário prime e non prime, no período pré -crise, e quando esta eclodiu:

num estudo realizado a originadores de créditos subprime, verificou -se que 31% deste tipo de empréstimos estavam em incumprimento há 30 dias ou mais, ainda no período em que a prestação de crédito era menor128.

de 1990 até 2007, apenas no período entre 2002 e 2005, verificou -se uma correlação negativa entre o aumento da concessão de créditos hipotecários e o aumento do rendimento. atif Mian e amir sufi concluíram ainda que existiu

124 Benjamin J. Keys, tanmoy Mukherjee, amit seru, vikrant vig, in Did Securitization Lead to Lax Screening? Evidence From Subprime Loans, 28, demonstraram que associado à duplicação do volume de créditos titularizados está um aumento em média entre 10% a 25% do crédito em incumprimento.125 the Financial crisis inquiry Report, 133 do pdf. Michael simkovic, in Competition and Crisis in Mortgage Securitization, 225 a 227.126 Giovanni dell’ariccia, deniz igan, e Luc Laeven, Credit Booms and Lending Standards: Evidence from the Subprime Mortgage Market, 10.127 adam J. Levitin, andrey d. Pavlov, e susan M. Wachter, Securitization: Cause or Remedy of the Financial Crisis?, 7.128 Jan Kregel, Changes in the U.S. Financial System and the Subprime Crisis, 13 a 15.

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um forte nexo causal entre um aumento da conceção de crédito, 2002 a 2005, e um elevado aumento do incumprimento, 2005 a 2007129.

a Fannie Mae e a Freddie Mac tinham requisitos mais exigentes no que respeita à compra de crédito, e neste medida facilmente se compreende a perda de mercado que tiveram nesta área130. em 2003, tinham 57% do mercado de compra de créditos à habitação, no ano seguinte 42%, e em 2006 37%131. em sentido oposto, Wall Sreet nos anos de 2005 e 2006 titularizou um terço mais de créditos que a Fannie Mae e a Freddie Mac, tendo alcançado 1,15 biliões de Usd em 2006, dos quais 71% eram crédito subprime132.

a melhor forma de caracterizar o que se passava com a titularização é recor-rendo a uma frase de um antigo CEO do Citigroup, Charles Prince, “Securitization could be seen as a factory line.133.

6. Interesses e incentivos à titularização

a existência de interesses comuns entre quem constrói uma operação de titu-larização (Arranger) e as agências de rating, era um fator promotor da titularização, na medida em que as comissões de ambas aumentavam em função do aumento das operações de titularização134.

adicionalmente, na situação em que cedente e gestor de créditos são a mesma pessoa e o investidor é um terceiro, verifica -se uma diminuição do interesse ou, pelo menos, da pressão sobre o gestor de créditos para maximizar a cobrança de créditos. esta circunstância resulta do facto de tendo o cedente/gestor transferido o seu risco para um terceiro, o seu incentivo à cobrança circunscreve -se aos diversos prémios que podem existir pela sua boa cobrança ou pela prestação do serviço135.

129 atif Mian e amir sufi, The Consequences of Mortgage Credit Expansion: Evidence from the U.S. Mortgage Default Crisis, 4 a 7, e 33 a 35. no período 2005 a 2007, verificou -se um aumento de 50% dos créditos em incumprimento no mercado do subprime, Benjamin J. Keys, tanmoy Mukherjee, amit seru, e vikrat vig, Did Securitization Lead to Lax Screening? Evidence From Subprime Loans, 1.130 Michael simkovic, in Competition and Crisis in Mortgage Securitization, 240 e 241.131 the Financial crisis inquiry Report, 134 do pdf.132 the Financial crisis inquiry Report, 131 do pdf.133 the Financial crisis inquiry Report, 102 do pdf.134 adam B. ashcraft and til schuermann, Understanding the Securitization of Subprime Mortgage Credit, 10 e 11. 135 adam J. Levitin, e tara twomey, Mortgage Servicing, 81 a 83. esse incentivo poderá nem existir se o cedente não assumir as funções de gestão. essa parece ter sido a regra no período de expansão da titularização nos eUa, o que poderá ter constituído uma forma adicional de incentivar a concessão de mútuos sem qualquer tipo de diligência. neste sentido, Kathleen c. engel, e Patricia a. Mccoy, in Turning a Blind Eye: Wall Street Finance of Predatory Lending, 137.

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independentemente das partes que participavam na titularização o denomi-nador comum aos incentivos a todas elas parece ser apenas um, o dinheiro, aliás muito dinheiro136.

em 2006, a Moody’s atribui 30 ratings de triplo a, em cada dia de trabalho, a operações de titularização de crédito hipotecário. a pressão do setor financeiro era imensa, os recursos humanos não eram suficientes e a consequência sobre os rating triplo a atribuídos em 2006 foi a sua diminuição em 83%137. não obstante, as agências de rating conseguiam os melhores resultados financeiros de sempre. entre 2002 e 2006 o volume de negócios da Moody’s passou de 65 milhões de Usd para 129 milhões de Usd138. num mercado dominado pelos resultados do curto prazo nem tudo parecia estar mal.

aliás, existia um acrónimo que sintetizava o pensamento da época iBGYBG, “I’ll be gone, you’ll be gone”. os prémios eram muito elevados por cada operação que se realizava, o pensamento estava no curto prazo, no momento, as consequências (nefastas) que as mesmas poderiam ter no futuro seriam resolvidas por terceiros.

na sequência de estudos realizados verificou -se que o salário dos CEO nos trinta anos a seguir à ii Guerra Mundial cresceu 0,8%, com inflação ajustada. desde os anos 70 que esse montante subiu de modo bastante assinalável no período entre 1995 e 2000 os salários subiram 10% por ano139. a título exemplificativo Stanley O’Neal, CEO da Merrill Lynch, recebeu em 2006, 91 milhões de Usd; Lloyd Blankfein, CEO da Goldman Sachs, recebeu em 2007, 68,5 milhões de Usd; e Richard Fuld, CEO da Lehman Brothers, recebeu em 2007, 34 milhões de Usd. em 2007, Wall street distribui 33 bilhões de Usd em bónus140.

136 no ano de 2003, o Lehman Brothers foi condenada ao pagamento à First alliance Mortgage corp. (“FaMco”), de 50,9 milhões de Usd, pelo facto da primeira empresa ter sido cúmplice numa fraude praticada pela segunda. neste caso o Lehaman Brothers não atuou diligentemente na validação dos créditos que a FaMco cedeu para efeitos de titularização, in First Alliance Mortgage Company vs Lehman Commercial Paper, Inc., a New York corporation; Lehman Brothers, Inc., a Delaware corporation, 471 F.3d 977, 2003.137 the Financial crisis inquiry Report, 26 do pdf.138 the Financial crisis inquiry Report, 235 do pdf.139 the Financial crisis inquiry Report, 92 do pdf.140 the Financial crisis inquiry Report, 92 do pdf. o modo de contabilizar os ativos referentes a posições de titularização de créditos é dúbio, uma vez que, em regra, se usa o justo valor para contabilizar ativos que não têm mercado e não existe qualquer garantia que esse mercado venha a existir, ou seja, os investidores poderão ter que ficar com os valores mobiliários até à maturidade. aproveitando a subjetividade que existe na utilização do justo valor de uma posição que não tem mercado, verificou -se que as empresas que detinham estes ativos têm uma maior probabilidade de empolar os seus resultados, casos a receita proveniente de posições de titularização seja reduzida, ou inferior face ao período homólogo. neste sentido, Patricia M. dechow, Linda a. Myers, e catherine shakespeare, in Fair Value Accounting and Gains from Asset Securitizations: A Convenient

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os extraordinários prémios que eram pagos resultavam dos excelentes resul-tados que estas sociedades conseguiam. contudo, para sistematicamente melho-rarem os resultados tornava -se necessário assumir cada vez mais riscos, esta opção percebe -se do aumento constante dos rácios de alavancagem. a título exem-plificativo, o rácio de alavancagem do Bank of America subiu de 18:1, em 2000, para 27: 1, em 2007. no Citigroup, no mesmo período, o rácio subiu de 18:1 para 27:1. a Morgan Stanley e o Lehman tinham rácios de 40:1 em 2007. se juntarmos as posições da Fannie Mae e da Freddie Mac, relativamente a ativos conexos com hipotecas, estas sociedades garantiam 5,3 biliões de Usd no fim de 2007, quando tinham, apenas, 70,7 mil milhões de capital, ou seja, tinham um rácio de 75:1, o maior de todos141.

Secção III – O fim da alquimia financeira

7. A Loucura

esta expressão a locura (madness) foi utilizada, pelo pioneiro da titularização de crédito hipotecário subprime, Lewis Ranieri, relativamente à suspensão dos meca-nismos que não permitiam a continuação deste tipo de operações porque o seu risco era demasiado elevado142.

entre 2001 e 2006, foram emitidos valores mobiliários referentes a crédito hipotecário no montante de 13,7 biliões de Usd143. o endividamento de crédito hipotecário nos eUa subiu de 5,3 biliões de Usd, em 2001, para 10,5 biliões de Usd, em 2007. este endividamento cresceu quase tanto em seis anos, como nos duzentos anos anteriores. a dívida por proprietário nos eUa passou de 91.500 Usd, em 2001, para 149.500 Usd, em 2007144. a questão que se coloca é quem eram os verdadeiros mutuantes destes créditos? considerando que os créditos uma vez concedidos eram logo titularizados, então o risco associado a esses créditos

Earnings Management Tool with Compensation Side ‑Benefits, 36 a 38. as referidas autoras constataram ainda que existia uma correlação positiva entre os ganhos da empresa, e a remuneração dos seus presidentes executivos, sendo que esta remuneração assumia um caráter regular.141 the Financial crisis inquiry Report, 94 do pdf142 the Financial crisis inquiry Report, 217 e 218 do pdf. a pressão para a concessão e, subsequente titularização dos créditos era tal, que em 2002 foi notado um aumento considerável de “reports of abusive, unethical and in some cases, illegal, lending practices.”, conforme the Financial crisis inquiry Report, 40 do pdf.143 the Financial crisis inquiry Report, 51 do pdf144 the Financial crisis inquiry Report, 36 do pdf

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não estava nos originadores145 mas nos adquirentes dos valores mobiliários titu-larizados146.

entre 2001 e 2005, o valor das casas subiu 54,4%147. em 2006 o preço das casas atingiu o seu máximo148, o mercado começa a dar sinais de que o fim pode estar próximo, mas eis que surge um dado novo, que fará prolongar este mercado até 2007. algumas seguradoras, bancos de investimento, bancos comerciais e outras sociedades envolvidas na titularização, começam eles próprios, a expor -se aos riscos da titularização por via de Collateralized Debt Obligation (doravante “cdo”). este instrumento financeiro é um tipo de derivado que se caracteriza por permitir uma exposição, inter alia, a crédito hipotecário titularizado através da transferência do risco associado a obrigações titularizadas para terceiros. É entendido como uma forma de diversificação do risco149.

o presidente executivo da Goldman sachs, Lloyd Blankfein, referiu que em janeiro de 2008 existiam no mundo 12 empresas com um rating de triplo a e 64.000 produtos estruturados financeiros com essa notação de risco, entre os quais cdo. no entendimento do mesmo, a responsabilidade não deveria ser atribuída exclusivamente a essas agências de rating, mas também a todas as insti-tuições financeiras que participaram no processo150.

145 Quando os originadores assumiam a função de cedentes, maioria das vezes, existia um conflito de interesses, uma vez que eram os cedentes que pagavam pelo rating e não os investidores. assim, havia um interesse comum entre cedentes e agências de rating na titularização. neste sentido, Joshua d. coval, Jakub Jurek, e erik stafford, The Economics of Structured Finance, 25.146 adicionalmente, neste período, os originadores/ cedentes ficavam com a classe mais subordinada das operações de titularização. sendo esta a que apresentava maior risco, era, concomitantemente, a que tinha um juro mais elevado. atendendo à procura que exista, os cedentes/ originadores vendiam, em uitas ocasiões, estas classes em mercado secundário, o que lhes assegurava a inexistência de exposição ao risco aos mútuos que concediam. neste sentido, Kathleen c. engel e Patricia a. Mccoy, in Turning a Blind Eye: Wall Street Finance of Predatory Lending, pág 127 e 128. Micheal simkovic classificou este período como uma: “(…) competition between mortgage securitizers for loans led to deteriorating mortgage underwriting standards and a race to the bottom (…)”, conforme http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1924831, 3 do pdf.147 Gary Gorton, the subprime Panic, 20.148 o esquema do subprime só era sustentável enquanto existisse uma subida constante do valor das casas. este facto resulta da circunstância de existir uma necessidade permanente de refinanciamento. Por exemplo, se um indivíduo não consegue pagar as prestações referentes à aquisição de uma casa, pode procurar vende -la, se o preço das causas aumenta com o decurso do tempo, como aconteceu nesta época. então ele consegue não só pagar a sua dívida como ainda gera uma mais -valia. Gary Gorton, the subprime Panic, 21.149 Jan Job de vries Robbé, Securitization Law and Practise – In Face of the Credit Crunch, Wolters Kluwer Law & Business, 197 e 276.150 Lloyd Blankfein, Do not destroy the essential catalyst of risk, Financial times, 8 de fevereiro de 2009.

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8. Consequências

8.1. os factos

À medida que o ano de 2007 avança os preços das casas nos eUa diminuía151, o número de pessoas cujo crédito era classificado como subprime e que não conse-guem cumprir com as suas prestações era cada vez maior, as agências de rating iniciam um processo de donwgrade dos ratings, os bancos iniciam um processo de reconhecimento de mil milhões de euros de perda, está -se, portanto, perante o início do fim da era de ouro de todo este processo.

de modo a compreendermos a verdadeira magnitude do que se passava importa analisar alguns números. assim, no segundo trimestre de 2007 foram emitidos valores mobiliários relativos a titularização de créditos hipotecário subprime no montante de 75 mil milhões de Usd, no semestre seguinte esse montante passou para 27 mil milhões de Usd e no último trimestre do ano 12 mil milhões de Usd. os cdo que tinham crédito hipotecário como cola-teral passaram de 90 mil milhões de Usd no primeiro trimestre de 2007 para 5 mil milhões de Usd no último trimestre152.

Relativamente ao preço de venda das casas verificou -se uma diminuição do valor destas de 9% em 2007. no final de 2008 a percentagem tinha diminuído 29% face ao pico de 2006153.

Face a estes acontecimentos, o que se passou com as principais entidades que patrocinaram, promoveram e ganharam mil milhões de Usd com este processo?

Uma vez que 45% das receitas da Bear Stearns provinham de titularização de crédito hipotecário não surpreende os gravíssimos problemas de liquidez e de capitais próprios em que este banco de investimento mergulhara. no dia 16 de março de 2008 a JP Morgan comprou a Bear Stearns, o preço foi fixado em 10 Usd por acção no dia 24 desse mês. em janeiro de 2007 esta mesma acção chegou a valar 175 Usd.

no dia 15 de setembro de 2008, o conceito de “too big to fail” deixou de fazer sentido, o Lehman Brothers pediu a insolvência. nesse mesmo dia o Dow Jones perdeu 700 mil milhões de Usd. em setembro de 2010 tinham sido instau-rados 66.000 processos de indeminização contra o Lehman, no valor de 873 mil milhões de Usd154.

151 este facto constitui o elemento que iria espoletar o início da crise. neste sentido, Gary Gorton, e andrew Metrick, Regulating the Shadow Banking System, 15.152 the Financial crisis inquiry Report, 243 do pdf.153 the Financial crisis inquiry Report, 244 do pdf. 154 the Financial crisis inquiry Report, 369 do pdf.

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a Merrill Lynch no outono de 2007 apresentou prejuízos de 23,8 mil milhões de Usd155. no dia 15 de setembro de 2008 foi adquirida pelo Bank of America em virtude do descrédito que o mercado tinha quanto à sua capacidade de cumprir com as suas obrigações e de se financiar no curto prazo.

no dia 14 de outubro de 2008, o maior banco japonês, o Mitsubishi UFJ Financial Group, comprou 21% das ações da Morgan Stanley evitando a insolvência desta sociedade.

a Goldman Sachs, na primeira semana de setembro de 2008 passou de 120 bilhões de Usd de liquidez para 57 mil milhões de Usd, na sequência de as pessoas terem retirado o seu dinheiro deste banco de investimento. sem prejuízo de ter apresentado mil milhões de prejuízos foi o banco de investimento que melhor sobreviveu.

no que respeita à Fannie Mae e à Freddie Mac a história não foi melhor. até setembro de 2010 tinham perdido 229 mil milhões de Usd. de modo a evitar a sua falência o governo americano tem injetado dinheiro que permita a sua sani-dade. o congresso americano prevê que estes resgates atinjam os 389 mil milhões de Usd até 2019 (montante ao valor de 2010)156.

no que concerne aos bancos comerciais destaque para o Citigroup que foi salvo pelo governo americano no dia 24 de novembro de 2008 através da garantia de uma garantia de 306 mil milhões de Usd sobre produtos tóxicos e de uma injeção de 20 mil milhões de Usd nos capitais próprios do banco157.

o Bank of America para salvar a Merrill Lynch precisou de receber do governo americano 138 mil milhões de Usd158.

no final de 2005 a aiG tinha 18 mil milhões de Usd expostos a swaps rela-tivos ao mercado dos CDO, em junho de 2007 esse montante subira para 79 mil milhões de Usd159. no dia 16 de setembro de 2008 o governo americano abriu uma linha crédito no valor de 85 mil milhões de Usd para a aiG160.

8.2. a crise era evitável?

alan Greenspan entende que não. a fundamentação para esta posição resulta do facto de na história os reguladores não terem sido capazes de identificar quando uma crise vai acontecer, o seu local, ou qual a magnitude da mesma161.

155 the Financial crisis inquiry Report, 285 do pdf.156 the Financial crisis inquiry Report, 351 do pdf.157 http://www.theguardian.com/business/2008/nov/25/citigroup -credit -crunch -us -economy158 http://www.bloomberg.com/apps/news?pid=newsarchive&sid=aezm19v4gaxY159 the Financial crisis inquiry Report, 230 do pdf.160 http://www.economist.com/node/12274070161 the Financial crisis inquiry Report, 32 do pdf

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não podemos dissociar alan Greenspan da era da desregulação162, ele teve um contributo ímpar neste processo. Foi o presidente da Fed entre 1987 e 2006, neste período os eUa tiveram quatro presidentes. estes factos suscitam -nos a questão de saber se caso Greenspan não partilhasse de uma ideologia de autorregulação dos mercados se teria sido presidente da Fed durante tanto tempo. não sabemos, mas pensamos que a sua permanência da Fed, sem prejuízo dos seus méritos indi-viduais, está, ainda que em parte, relacionada com a sua visão.

em sentido divergente da visão de Greenspan, corroboramos com a opinião de Dani Rodrik163 relativamente à circunstância de que na prática todas as econo-mias de mercado são bem -sucedidas quando existe uma panóplia de instituições regulatórias que fazem um trabalho exigente e adequado, de modo a dirimir as falhas de mercado existentes.

curioso o facto de Dani Rodrik relacionar as crises financeira que a coreia do sul e a tailândia enfrentaram, durante a crise financeira asiática, com uma regulação e supervisão inadequadas.

Richard Breeden, antigo Presidente da sec, disse que “Everybody in the whole world knew that the mortgage bubble was there, (…) I mean, it wasn’t hidden. . . . You cannot look at any of this and say that the regulators did their job. This was not some hidden problem. It wasn’t out on Mars or Pluto or somewhere. It was right here. . . . You can’t make trillions of dollars’ worth of mortgages and not have people notice”164.

se toda a gente sabia porque ninguém atuou de modo a prevenir esta tragédia? Qualquer resposta será especulativa. aliás, o Financial Crisis Inquiry Report,

principal relatório do governo americano sobre esta crise não se pronuncia sobre esta questão. Reconhece todavia que a falta de proatividade dos reguladores esteve no cerne da crise.

outro aspeto que entendemos como nuclear da crise está relacionado com a “gestão” que foi realizada nas principais instituições financeiras. a este respeito, um antigo CEO do Citigroup disse que uma posição de 40 mil milhões de Usd em obrigações titularizadas com um bom rating não lhe chamava à atenção165. a questão que fica é qual seria o montante a partir do qual ele prestaria atenção. Parece -nos que gestores mais diligentes e atentos poderiam ter compreendido mais cedo a dimensão do que se passava.

162 em 22 de maio de 1997, Greenspan disse que “(…) remove outdated restrictions that serve no useful purpose, that decrease economic efficiency, and that… limit choices and options for the consumer of financial services.(…)” a eliminação dessas barreiras “(…) would permit banking organizations to compete more effectively in their natural markets. The result would be a more efficient financial system providing better services to the public. (…)”, conforme the Financial crisis inquiry Report, 64 do pdf.163 dani Rodrik, Uma Economia, Muitas Soluções, verbo, 221 e 222.164 the Financial crisis inquiry Report, 33 do pdf.165 the Financial crisis inquiry Report, 20 do pdf

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os sucessivos governos e o congresso não podem também passar incólumes desta crise. Foram eles que definiram as políticas, aprovaram as leis e não atuaram oportunamente, talvez o pudessem ter feito166.

chegados a este ponto e face às observações que foram realizadas cumpre -nos responder à questão que é o título desta secção, era esta crise evitável? entendemos, sem qualquer tipo de dúvida, que sim, a crise poderia e deveria ter sido evitada.

Um tesoureiro de um condado do ohio, James Rokakis, tem uma frase que nos parece fazer todo sentido: “Securitization was one of the most brilliant financial innovations of the 20th century (…) It freed up a lot of capital. If it had been done respon‑sibly, it would have been a wondrous thing because nothing is more stable, there’s nothing safer, than the American mortgage market… It worked for years. But then people realized they could scam it.167.

Ben Bernanke, atual presidente da Fed, disse que: “As a scholar of the Great Depression, I honestly believe that September and October of 2008 was the worst financial crisis in global history, including the Great Depression. If you look at the firms that came under pressure in that period . . . only one . . . was not at serious risk of failure. . . . So out of maybe the 13, 13 of the most important financial institutions in the United States, 12 were at risk of failure within a period of a week or two”168.

considerando a viagem que fizemos pelo século XX americano até 2008, toda a filosofia que esteve subjacente à desregulação que permitiu a obtenção de lucros recorde de bancos comerciais, de investimento e de todas as sociedades que participaram no mercado da titularização de créditos hipotecários e as conse-quências que daí resultaram, é caso para dizer Game Over.

Capítulo V – Conclusões

o contexto de crise social, económica e financeira em que Portugal vive é no mínimo preocupante. existem, inequivocamente, fatores endógenos que justi-ficam esta situação, mas é também inegável que a crise do subprime teve consequên-cias severas para o nosso país. eventualmente, se não fossem os fatores exógenos talvez os fatores endógenos tivessem permanecido na penumbra mais um tempo.

166 Joshua d. coval, Jakub Jurek, e erik stafford entendem que a não compreensão do tipo de produtos estruturados que estavam em causa, em função da sua extrema complexidade, e a crença na eficiência de mercado conduziram a uma combinação explosiva, in The Economics of Structured Finance, 24 e 25.167 the Financial crisis inquiry Report, 39 do pdf.168 the Financial crisis inquiry Report, 354 do pdf.

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assim, o nosso interesse pela titularização nasce da busca pelo conhecimento dos fatores que levaram à crise do subprime. Foram inequivocamente vários os fatores, mas a titularização assumiu um protagonismo sem paralelo, não pelo instrumento financeiro per si, mas pelo modo como foi utilizado.

a titularização constitui assim o ponto de partida para o conhecimento desta crise.

deste modo, iniciámos este trabalho pelo modo como a titularização está estruturada, e sobre o que pode ser titularizado. chegamos à conclusão que todos os ativos são suscetíveis de serem titularizados.

Uma vez estabelecido o caminho sobre o qual a titularização se pode movi-mentar, chegámos a Portugal. evidentemente que o quadro normativo do nosso país iria ser um dos elementos centrais do nosso trabalho. concluímos que juridi-camente Portugal tem à sua disposição os veículos que os países anglo -saxónicos e os de natureza romano -germânica dispõem. Paradoxalmente, ou talvez não, a titularização constitui hoje uma fonte fundamental para alguns dos bancos nacio-nais obterem liquidez.

considerando que o nosso quadro legal foi inspirado noutros existentes cami-nhámos em direção às fontes. assim, rumámos à nossa vizinha espanha e a França para percebermos o que serviu de inspiração aos fundos de titularização de crédito. atravessámos o canal da Mancha e chegámos ao Reino Unido, daqui partimos rumo aos estados Unidos da américa. Por esta altura, já analisámos os veículos de titula-rização que serviram de inspiração às nossas sociedades de titularização de crédito.

a nossa epopeia chegou ao destino final, estados Unidos da américa. contudo, era preciso viajar no tempo para termos uma visão panorâmica sobre tudo o que aconteceu. viajámos até 1913, ano em que nasceu a Reserva Federal americana. depois, seguimos até à era da regulação cujo marco foi o Glass ‑Steagall Act de 1933 que visou resolver os problemas decorrentes da crise de 1929. À medida que os anos passavam, as memórias da crise de 1929 ficavam nos livros de história.

assim, a partir dos anos 70 do século XX assistimos ao início da era desregu-lação que culminou com o Gramm ‑ Leach ‑Bliley Act, de 1999. neste momento, o Glass ‑Steagall Act vira história, não foi revogado, mas a sua exequibilidade prática era ínfima.

nesta altura, já o crédito hipotecário nos estado Unidos da américa tinha disparado e com ele as operações de titularização. Wall Street transformara o crédito à habitação dos americanos numa fábrica em que os créditos à habitação eram embalados e vendidos.

os lucros aumentavam de ano para ano, todas as partes ganhavam. os bancos comerciais, os bancos de investimento, as agências de rating, as Saving & Loans, todos batiam recordes. os prémios dos que trabalhavam neste setor também conheciam aumentos sem precedentes.

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a titularização de créditos era a alquimia financeira do século XXi.contudo, à medida que os anos passavam o melhor crédito (prime) deixava

de existir. a solução encontrada foi substitui -lo por crédito de menor qualidade (subprime), ou seja, crédito em que os mutuários apresentavam um maior risco de incumprimento.

em 2006, os preços das casas nos estados Unidos da américa atingem o seu máximo, a partir daí inicia -se uma queda vertiginosa, a nossa viagem começa a ter os primeiros sobressaltos, em 2007 o incumprimento ao crédito à habitação aumenta, os bancos perdem liquidez, apresentam perdas de biliões de Usd, é o princípio do fim da alquimia financeira.

em 2008, temos o maior embate da nossa viagem. as falências e a injeção de dinheiro por parte do governo americano tornam -se quase diárias. as grandes estrelas de Wall Street encontram, muitas delas, o seu fim.

afinal, não existia alquimia financeira, o que existiu foi um enorme desejo de lucro de curto prazo, sem qualquer tipo preocupação com o futuro e com as consequências devastadoras que a titularização teve.

chegados a 2013, é caso para perguntar onde estão os que proclamavam o “I will be gone, you will be gone”. considerando que muitos países ainda são afetados por essa crise, inclusive os estados Unidos da américa, terão esses sábios apanhado o nosso comboio da crise do subprime e ido para Marte?

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Portuguesaacórdão do tribunal da Relação do Porto, de 6.7.2010, processo n.º 1117/06.3tJPRtacórdão do tribunal da Relação de Lisboa, de 5.6.2008, processo 2526/2008 -7

Norte ‑americanaFirst alliance Mortgage company vs Lehman commercial Paper, inc., a new York corpo-

ration; Lehman Brothers, inc., a delaware corporation, 471 F.3d 977, 2003

Operações de titularização

Regulamentos de GestãoLusitano Mortgage n.º 4, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/fundos/docs/810RG08022012.pdfLusitano Mortgage n.º 6, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/fundos/docs/1023RG08022012.pdf

ProspetoLusitano Finance n.º 3, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd22251.pdfPelican Finance n.º 1, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd30014.pdfPelican Mortgage n.º 6, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd23249.pdfvolta electrecity Receivables http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd27675.pdfvolta ii electricity Receivables, http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd29801.pdf