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Título da Obra: Joana Christiano de Almeida Scheiner

Título da Obra: Joana - Dramaturgia Catarinense · pavorosa, ainda mais depois de tudo pelo que passei. ... Auto-ilusão, sei que muitos dirão isso. Mas de repente me perguntei

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Título da Obra: Joana

Christiano de Almeida Scheiner

Joana, Marcos, Patrícia

Black-out.

Marcos entra no palco e acende a luz da casa de Joana que o espera com uma

pequena torta nas mãos e um presente embaixo do braço. Ao acender a luz ela

começa a cantar parabéns.

Joana – “ Parabéns pra você, nesta data querida. Muitas felicidades, muitos

anos de vida. Parabéns pra você nesta data querida. Muitas felicidades, muitos a-

nos de vi-daaaaaa!” Viva! Viva! Feliz aniversário! (Joana coloca a torta na mesa e

entrega o presente a Marcos) Tome, aqui está seu presente! Espero que goste.

Marcos – (Abre o presente: uma caixa de madeira contendo uma arma) : Mas...

o que é isso? Uma arma!

Joana – Para se defender. (Irônica) Não gostou?

Marcos – É que... normalmente não se dá armas de presente. Sei lá, é um

pouco estranho, não acha?!

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Joana – Tudo é estranho, meu amigo. Tudo nessa vida é estranho. Sinto muito

se não gostou. Mas comprei com a melhor das intenções.

Marcos – ( Colocando a arma em cima da mesa) : É que não sou a favor da

violência. Eu não acho muito interessante ter uma arma comigo. Essa idéia é meio

pavorosa, ainda mais depois de tudo pelo que passei.

Joana – Eu já disse a você. Esqueça o passado! Agora você está aqui, não

está? Tudo mudou. De qualquer modo, me desculpe se não lhe dei o presente

esperado.

Marcos – Não, não é nada disso. Eu gostei, claro. Quer dizer, foi bem

intencionado, eu sei. Aliás eu nem esperava por nada. Nem sabia que ainda se

lembrava do meu aniversário. ( Pegando nas mãos de Joana) : Eu só tenho a lhe

agradecer. Pode ter certeza que não vou me desfazer do presente. Vou guardar

com carinho, apesar de saber que nunca vou usá-lo.

Joana – Nunca se sabe! ( Pausa) : Armas são feitas para se usar. Ainda mais...

agora.

Marcos – É... talvez você tenha razão. Ultimamente a violência está muito

grande.

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Joana – Não, não, não, não. Eu digo, agora, não na nossa época. Mas agora!

agora agora. entendeu? Você usará esta arma, agora.

Marcos – Não, não estou entendo. Como assim “agora”?!

Joana – Agora, já, neste exato momento. Vamos, pegue a arma!

Marcos – Hei, você deve estar maluca! Eu não quero usar essa arma agora.

Joana – Ah, vai sim! Pegue!

Marcos – Eu não estou entendendo. Que jogo é esse? Eu não vou pegar e

pronto. Pare com isso.

Joana – Não, não, o jogo é esse, sim senhor. Agora pegue.

Marcos – Eu não vou pegar. Vamos, pára com essa brincadeira. Não estou me

sentindo bem. Não sabia que você era adepta de joguinhos mórbidos.

Joana – É, já faz um tempo que entrei para o clube. ( Ela pega a arma e

oferece a Marcos) : Pegue.

Marcos – Pare, Joana. Largue essa arma.

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Joana – Não. Não vou largá-la. Quero que pegue. Já está engatilhada e tudo.

Pegue! ( Ela não está apontando a arma, apenas tentando entregá-la).

Marcos – Eu já disse, não vou pegar. Deixa isso na mesa. Vamos nos divertir. É

meu aniversário, lembra-se?

Joana – Sei muito bem que dia é hoje. Não foi a toa que esperei por esse dia.

Marcos – Pare com isso. Não estou entendendo. Por falar nisso, onde está

Patrícia?

Joana – Não está. Pegue!

Marcos – Chega de insistência. Que tal primeiro cortarmos a torta, hein? E

depois a gente... aí, eu pego... ok?

Joana – Realmente você não me entendeu. Não era pra ser assim.

Marcos – E era para ser como? ( Vai em direção da torta. Mas Joana pega a

torta primeiro, nesse momento ela aponta a arma para Marcos).

Joana – O plano era que você me matasse. ( Joga a torta no chão).

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Marcos – ( Fica assustado e começa a rir de nervoso) : Como assim? De

brincadeira, você quer dizer?!

Joana – Não! eu quero dizer que está tudo acabado Marcos.

Marcos – Você está ficando louca. Acho que tua brincadeira já passou dos

limites. Vamos, me entregue a arma. ( Ela ainda aponta a arma para Marcos).

Joana – Acho que mudei meus planos. Quem sabe você não deveria morrer?

Marcos – Pare com isso, Joana? Me entregue a arma. Não aponte desse jeito

para mim. Estou começando a me irritar. Me entrega essa porra!

Joana – ( Aproxima-se dele com a arma apontada, quase encosta a arma em

seu peito e entrega calmamente, dá as costas) : Aproveita que só tem uma bala. (

Marcos faz que vai colocar a arma na mesa novamente, quando Joana fala) : E

essa é para mim. Lembra-se do teu último aniversário que passamos juntos? Faz

quanto tempo? Seis anos?

Marcos – Não.

Joana – Claro, não passamos juntos. Você me deixou esperando... lembra-se?

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Marcos – Não quero falar do passado, Joana. Achei que já tivesse esquecido e

perdoado.

Joana – É óbvio que não perdoei. Naquele dia, você veio me ver de manhã e

me disse que me amava. Que passaríamos uma noite inesquecível! Lembra? (

Primeiro flash-back: ela corre para os braços de Marcos romântica.) : Então, eu te

espero essa noite? Só eu e você?

Marcos/passado – Sim, esta noite será inesquecível!

Joana/passado – Mas... e sua família?

Marcos/passado – Eu já comuniquei a todos que passarei meu aniversário com

a mulher que eu amo. De qualquer modo já comemorei meu aniversário com eles

no final de semana. Só faltava você.

Joana/passado – Marcos, me diz uma coisa, você acredita no amor?

Marcos/passado – Claro que sim. Se não acreditasse não estaria aqui contigo.

Por quê?

Joana/passado – Porque eu te amo. Sei que nunca te disse isso. Mas na

verdade eu esperava que você fosse como todos, uma aventura, noites de sexo.

Eu achava até então, que não amaria ninguém. Sei que sempre me disseram que

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eu brincava com os sentimentos dos outros. Mas na verdade isso nunca

aconteceu, eu apenas curtia os prazeres, entende? Eu nunca acreditei no amor.

Sei lá, agora, contigo, é diferente. No começo não. Era só prazer, eu confesso. E

pra falar bem a verdade, me sinto constrangida de tocar nesse assunto. Sempre

achei que fosse assunto para letras de pagode e sertanejo, coisas do tipo. Novela

mexicana e até brasileira! Mas, agora, mesmo sendo a pessoa mais brega e

patética do mundo, eu confesso que você foi o único que eu posso considerar que

amo e amei. Acho que o amor é isso, é um sentimento a mais, quer dizer, não é

apenas uma sensação, entende? A sensação é física. É algo mais interno, eu

sinto como se fosse no intestino, uma cócegas. Acho que é isso. É uma sensação,

um toque não metafórico que pega a gente por dentro. Comigo nunca foi assim.

Você está me entendendo?

Marcos/passado – Sim, estou. Mas...

Joana/passado – E então, de repente, no meio do nosso sexo eu notei que

estava ficando diferente. Fiquei menos arredia, mais carinhosa, coisa que nunca

fui. E acho, agora, que é amor. O que você acha que é?

Marcos/passado – É talvez seja...

Joana/passado – E comecei a me lembrar daquelas premissas de eternidade.

Sabe? Eternidade pra mim tem a ver com Deus, coisa que não acredito.

Eternidade, essa palavra ficou muito tempo na minha cabeça. Fiquei imaginando o

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que era um amor eterno. Deve ser isso, disse para mim mesma. Sei lá, nós nos

empolgamos com cada termo, não é? Auto-ilusão, sei que muitos dirão isso. Mas

de repente me perguntei se eu gostaria de ter você, se não eternamente, pois não

acredito nisso, para o resto da vida. O eterno é paro resto da vida?

Marcos/passado – Deve ser... eu acho que...

Joana/passado – Não, não precisa responder. É como se eu tivesse todas as

respostas dentro de mim. As respostas abstratas, para termos abstratos. O amor é

abstrato. Quando eu era criança, no primário, me falavam em substantivo abstrato,

eu nunca soube imaginar o abstrato. Você consegue? Então nossas respostas

também são abstratas. A gente sente, apenas isso. E depois vêm nos dizer que só

existe matéria atômica. Isso é ridículo, agora eu sei. Porque respondo pra mim

mesma que apenas sei. ( voltando ao presente sem interrupção): Mas acho que

você não prestou atenção no que eu lhe disse, não é? Você nem sequer deu

ouvidos. Me beijou na boca como se eu estivesse morta, e saiu. Quando fechei a

porta tive a mesma sensação, você não precisou me dizer nada para que fosse

assim. Meu novo discurso morria ali, eu mal dera o ponto final e você saia. E a

porta? A porta era uma enorme reticências em eco. De repente, minha nova

maneira de ver as coisas morriam. O beijo da morte, que tal? Eu morri, meu novo

eu morria, e o antigo? O antigo já havia sido substituído. Mas não tem jeito, agora

eu estava morta tendo a leve sensação de que você não voltaria a noite para

festejar comigo o “ i-nes-que-cí-vel”! realmente essas coisas são difíceis de se

esquecer. O primeiro amor? Que amor? Não houve amor. O abstrato é uma

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alucinação que eufemicamente colocaram em termo. No final, o que existe mesmo

é uma porta. A porta da casa, a porta do caixão. A boca é a porta de entrada e

saída de bactérias e micróbios. Apensas isso. E o abraço mais uma convenção

social. É isso, as alucinações, isto é, todos os substantivos abstratos não passam

de convenções. Talvez, há muito tempo atrás um senhor muito inteligente, para

convencer sua filha arredia a se casar, disse para ela que o casamento era a base

do amor. Mas a garota, que nunca havia ouvido tal expressão e não deixando seu

gênio curioso de lado perguntou: Papai, mas o que é o amor?

Marcos/Pai – O amor, minha filha, é uma coisa que está dentro da gente que a

gente só pode descobrir com outra pessoa. A pessoa que se casar conosco. E se

a gente encontra isto que é amor, podemos viver felizes para sempre!

Joana/Filha – Mas, eu não quero descobrir dentro de mim o que é amor, teria

de me cortar... e nem sei o que é isso de sermos felizes para sempre!

Marcos/Pai – Não minha filha, estou falando, de dentro, algo que está dentro

que a gente não vê. E ser feliz?! É uma coisa que explode, a gente tem vontade

de sorrir o tempo inteiro. Não gostas de sorrir?

Joana/Filha – Gostaria de sorrir todas as horas!

Marcos/Pai – Então, essas “ todas as horas” significa para sempre, eternidade!

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Joana/Filha – Quer dizer que se eu me casar eu vou sorrir todos os dias?!

Marcos/Pai – Se você encontrar o amor dentro de si, sim.

Joana/Filha – Então... mas, como farei para encontrar o amor dentro de mim?

Marcos/Pai – Só casando para saber.

Joana – Só que ele não contou para filha que o casamento lhe renderia mais de

dez mil hectares de terra, junto à milhares de cabeça de gado e escravos e

dinheiro. Final da história! Ela passou o casamento inteiro tentando descobrir esse

amor, mas o que lhe veio foi traição, violência e mais mentiras. As convenções,

meu amigo, são metáforas dos sentimentos.

Marcos – Realmente achei que fôssemos amigos, Joana. E acho que você

passou dos limites!

Joana – Calma, acho que você não entendeu. Amizade? Me responde: o que é

isso? Mais uma convenção, não é? Claro, eu tenho as respostas abstratas, não

precisa me responder. É mais um desses maravilhosos termos para que as

pessoas auto se iludam e vivam pacificamente, ou satisfaçam a vontade dos pais

e da nação. Até que de repente, veja! A máscara cai.

Marcos – Eu vou embora. Não tenho que ouvir de suas loucuras.

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Joana – Ah, é? E vai para onde? Não esqueça que você não tem lugar para

ficar.

Marcos – Vou recomeçar a minha vida! E dessa vez, sem você!

Joana – Ah, pobre Marcos, sem dinheiro não se recomeça nada. Talvez você

queira voltar para o manicômio?!

Marcos – Não! eu não vou voltar pra lá! (Pega aponta a arma para Joana) : Eu

vou fazer... eu vou...

Joana – Achei que você tivesse senso de justiça. Afinal, só porque eu toquei

num assunto tão delicado, vai me matar?

Marcos – (Desaponta a arma) : Tem razão, claro que não, mas...

Joana – Mas agora você tem que ouvir o resto da história. Que tal?

Marcos – Eu não quero ouvir mais nada, por favor, vamos ser amigos como há

poucas horas?

Joana – E qual lei vai reger essa nova amizade? Eu vou lhe dizer qual lei.

Nenhuma. Você ficará com tanta raiva que vai acabar me matando.

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Marcos – Olha, eu não tenho ninguém. Agora só me resta você. Por favor,

vamos parar com isso.

Joana – Claro, seus pais morreram num incêndio, não foi isso? Isso é que dar

ser filho único.

Marcos – Como você sabe? Quero dizer, eu nunca lhe contei sobre o incêndio!

Você me acolheu aqui com essa condição, de que eu não precisasse falar do meu

passado.

Joana/passado ( dia em que Marcos chegou em sua casa) – Entre. Fique a

vontade. Agora você tem onde ficar! Deus do céu, você não acha muita

coincidência eu ter uma amiga que trabalhasse naquele lugar?! Eu nunca

imaginaria que você pudesse estar num lugar como aquele!

Marcos/passado – É, e se não fosse você eu ficaria lá pra sempre.

Joana/passado – E os seus pais, sua família? Eles não fizeram nada por você?

Marcos/passado – Olha, Joana, eu sei que você está me ajudando com a maior

sinceridade e eu só tenho que lhe agradecer, mas eu preferiria não falar no meu

passado. Se você não se importa, eu quero esquecer tudo isso. Talvez um dia eu

lhe conte tudo. Já acho vergonhoso que tenhas me encontrado em tal situação.

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Joana/passado – Pode ficar despreocupado que em relação ao seu passado

serei discreta, e não deixarei que minha curiosidade te remeta a fatos dolorosos.

Na verdade, eu até insisti para que Patrícia me contasse em que circunstância

você chegou naquele manicômio, mas ela não sabia nada. A ficha dos pacientes,

no que se refere ao passado, só pode ser vista pelos diretores e psicólogos. Mas

bem, isso não me interessa, não é? O importante é que eu te encontrei, graças a

Deus. E que agora você tem um lar. De resto, vou providenciar ainda algumas

coisas para que você se sinta cada vez mais em casa.

Marcos/passado – Joana, eu nem sei como lhe agradeço. Mas... bem, deixa pra

lá.

Joana/passado – O que é? Pode confiar em mim?

Marcos/passado – Eu sei que há muito tempo atrás eu não fui legal contigo

tendo desaparecido e...

Joana/passado – Esquece! Passado é passado, como você mesmo disse,

vamos esquecê-lo. Isso já foi perdoado, resolvido, sei lá. E, afinal, assim como

você tem motivos para não se lembrar do que lhe foi trágico, eu também não

tenho para me lembrar do que aconteceu entre a gente. Mas posso te garantir que

não foi, absolutamente não foi uma tragédia.

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Black-out.

Luz e foco em Joana.

Joana – ( Como se falasse com ele em seu imaginário e não diretamente para

ele) Naquele dia eu havia esperado por você. Onde você está? Onde você está?

Você não vem? Eu espero por ti. Eu te amo, falava sozinha. Eu nem tive tempo de

lhe dizer... o resto... Você me beijou e saiu. Eu te amo! Já são sete horas da noite

e nada. Você disse que viria. Calma, garota, sete horas ainda é cedo. Ele tem

compromissos como todas as pessoas do mundo. Mas seu único compromisso

hoje deveria ser comigo! Entendeu! Comigo! Comigo! Comigo! Eu te espero assim

que chegar. Por que você saiu aquela hora sem dizer que me amava? Nem se

quer prestou atenção no que eu dizia. Você me matou! Você matou as palavras

que eu disse! Eu demorei tanto a ter essa coragem. Demorei tanto a sentir esse

abstrato. Merda! Por que você não chega logo? Você demora de propósito para

que eu me sinta insegura, não é? Sei o que você pensa? Você quer que eu me

derreta e me derreta mais, assim, como as mulheres costumam fazer, não é! E pra

quê? Será que você não me ouviu? Eu te amo! que horas são agora? Quase oito

e meia. É apenas quase e oito e meia. As minhas novas elucubrações, meus

argumentos sobre o amor... Pensei até em me tornar poeta! O que você acha?

Você não acha nada, não deixou que eu te dissesse, não é? Mas sabe, me

envergonho disso, não deveria ter-lhe dito nada, nada mesmo! Eu sou uma anta.

É sempre assim, nossa força acaba com um abraço mais generoso. O afável é a

premonição do fel. ( começa a movimentar-se. Uma música toca. Enquanto a

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música toca, Joana dá gritos, pulos, se descabela, Joana-neurose se acaba. Já

louca de tanto esperar ): Meia- noite! Meia-noite Cinderela! Meia-noite Cinderela! (

irônica, baixinho) : Cin-de-re-laa. Onde está a sua fada madrinha, meu bem? (

ainda baixinho) Hein, onde está aquela ( aumentando o tom até gritar) :

VAGABUNDA! ( stroble, no music. Em seguida black-out, stroble novamente e

Joana já está batendo violentamente em Marcos, o fundo musical é alguma

música americana romântica com distorções, pulos, saltos, arranhões, repetições

– a sensação de um sonho. E que sonho!)

Ao acabar a sessão porrada os dois recomeçam o diálogo.

Joana – ( calma): Tudo o que eu esperava de ti era amor. Porque eu descobrira

que você era o único homem para mim. Então, depois daquela longa espera e

raiva eu decidi acabar contigo da maneira mais desprezível. Você não sabe, não

é? Nunca te passou pela cabeça que sua tragédia não poderia ser obra do teu

destino? Oh, pobre Marcos, infeliz destino... infeliz destino...

Marcos – O que você quer dizer com isso tudo?!

Joana – Realmente, eu não teria como saber que seus pais morreram num

incêndio se não tivesse sido eu a causadora do fogo.

Marcos – O que você está falando é impossível. Não vou cair nesse teu jogo.

Você quer que eu faça o quê? Que acredite nessa ladainha. Olha, sinto te

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decepcionar mas você é uma pessoa normal como todas as outras. Acha mesmo

que vou acreditar que você causou minha derrota? Depois daquele dia em que

você confessou seu amor eu nunca mais a vi! Isso é loucura. Onde você estava,

hein? Você que me deixou te abandonar! Poderia ter corrido atrás de mim, mas

não! Fez seu schowzinho existencial como toda mulher o faz e colocou seu

orgulho em cima de tudo. Por que você não me ligou no outro dia? Poderia ter

pelo menos ligado para saber como eu estava, se tinha acontecido alguma coisa,

para saber por que eu não fui, qualquer coisa assim. Se eu tivesse morrido

naquele dia você nunca saberia, não é?

Joana – Tanto não morreu que agora está aqui. E não comece a se fazer de

vítima. Mas se tanto te apraz eu lhe pergunto agora. Não por que ainda te ame,

mas pela tua curiosidade de saber da minha preocupação por você. O que

aconteceu aquela noite? Você se esqueceu? Teve algum assunto urgente pra

tratar? Não, deixe-me adivinhar, você ficou doente de uma hora pra outra. Foi

isso? Talvez você tenha uma desculpa melhor pra me dar. Por que não

desmascara logo esse teu ego masculino e diz que realmente você tava pouco se

fudendo pra mim?!!

Marcos – É verdade. Eu não queria nada contigo. Eu estava te usando, eu não

queria teu amor, não estava preparado pra isso. Eu só queria a minha vida livre.

Joana – Viu? Eu estava certa, não estava?

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Marcos – Mas não é bem assim, depois, no outro dia que você nem me

procurou, nem no próximo, nem na semana seguinte eu fiquei pensando que suas

últimas palavras foram fruto de uma loucura da tua cabeça, que você até já tinha

mudado de idéia. Que na verdade não tinha muita certeza do que tinha me dito e

portanto resolveu não me procurar mais. Quando essas coisas vieram à tona

sobre mim, eu comecei a sentir tua falta. Comecei a desejar que aquilo fosse

verdade, comecei a desejar que você tinha me dito a verdade! Entende! Mas o

tempo me provava que você havia tentado me enganar, então, eu me felicitava por

ter deixado-te me esperando.

Joana – Você vai me dizer agora que sentiu amor por mim?

Marcos – Verdadeiramente eu passei a te amar. E também, por vários instantes

eu te odiei por que eu achava que tudo o que você tinha me dito era a mais pura

mentira. Achava que você só queria me enganar num golpe romântico. A menina

dura e individualista de repente conquista seu amor dizendo que eu fui o primeiro

que a fez sentir isso, amor.

Joana – Sabe, acho que de tudo o que você acabou de me dizer há uma

verdade sobre o amor, a única verdade. Você sabe o que é o amor? Eu lhe direi, o

amor é o preço do abandono! É só isso, meu amigo. E por favor, quando eu lhe

referir como amigo, remeta-se ao seu próprio cinismo .

Marcos – Mesmo assim, eu acho que ainda te amo.

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Joana – Ah, você não quer ver sua vida pior do que já está, não é? Pois eu lhe

digo que você ainda não viu nada. Ou melhor, não ouviu nada. Eu sei que você

não vai acreditar em uma só palavra do que eu lhe disser, mas sente-se e

aproveite esses últimos instantes comigo. O final da história? Não sei ainda quem

morre no final.

Marcos – Esquece isso, Joana. Vamos tentar reconstruir tudo. Eu sei o que

você sente, eu sei! ( Marcos aponta a arma para Joana) : Eu sei, porra! Eu sei o

que você sente! Eu quero você, agora! Senta aí e me escuta você! Eu estava

desesperançado! Eu já não tinha mais ninguém, e você me ajudou se lembra?

Naquele manicômio sujo eu já nem sabia se era eu ou se era louco! E você veio.

Como um anjo, você veio e me tirou dali. E pra quê? Pra me dizer isso tudo agora!

Pra me dar uma arma de presente de aniversário?! Eu até parei de beber. Você

não sabia disso, viu? Que eu...

Joana – ( interrompendo) : Que você tornou-se alcoólatra após a casa de seus

pais ter pegado fogo? Que você tornou-se alcoólatra devido a vida miserável que

passou a ter, já que ainda era um pobre estudante sustentado pelos pais, que por

te amarem tanto não fizeram um seguro de vida? Pobre coitado! E seus tios! Os

únicos que você tinha rejeitaram você. E você não faz nem idéia, não é? ( Calma):

Eu liguei para casa deles assim que a casa pegou fogo. Eu disse a eles que era

tua amiga, e que sem querer você tinha colocado fogo na casa. Não, ele não fez

de propósito! Mas eu havia lhe avisado que um dia esse negócio de ficar se

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drogando iria acabar mal. Ele decaiu, sabe? Vocês têm que ajudá-lo! Com certeza

depois dessa ele aprendeu a lição e vai parar com a seringuinha! Não, mas isso

não é problema, um tratamento não é tão caro assim. quer dizer, um tratamento

bom, não é tão caro assim!

Marcos – Foi por isso que eles não quiseram me receber? Eu não estou

acreditando em você. Isso só pode ser loucura!

Joana – E quer saber mais?! Eu lhe digo. ( Ela levanta-se).

Marcos – Não! senta aí! Fica sentada! Depois dessa história eu estou

começando a achar que você é realmente louca.

Joana – Tudo bem. Mas me disseram uma vez que a loucura é simplesmente a

antecipação da morte. E cá estamos nós, um ao lado do outro, e entre nós?!

Adivinhe? Uma arma. Só esta cena daria um bom filme, não acha? Mas deixa eu

terminar o nosso filme. Aquele em que você era o ator principal e eu, a bruxa má,

a psicopata. A injustiçada e vingativa mulher que vai terminar seus dias como uma

santa. Que é óbvio, depois que você me matar, ninguém acreditará em você.

Ninguém! Você voltará ao teu manicômio sujo dizendo: eu não sou louco. ( ri)

Marcos – Pára com isso! Pára! Talvez eu devesse ir embora mesmo. Voltar as

ruas, voltar ao álcool, com certeza não é uma viagem pior do que ter que encarar

você.

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Joana – Me desculpe, mas há poucos minutos atrás eu ouvi você dizendo que

me amava.

Marcos – Eu não tenho sangue frio nem seria capaz de amar alguém assim,

transtornada e infeliz!

Joana – Mais uma vez o amor e seu fator de correção. Para uma falha técnica

um ponto negativo. Dos sentimentos humanos o amor é o mais delicioso porque

não é compreensivo, e por ser assim, admite qualquer outra atitude humana!

Marcos – Isso é mentira! O amor compreende! O amor é bom! Tem que ser.

Joana – Você ainda está no mundo do faz de conta ou é pura hipocrisia? Eu

ainda não te contei que te perseguia através dos maravilhosos olhos de um

detetive. Não te contei que ele pesquisou para mim, sua conta bancária, as

apólices de seguro de seus pais. Ah, surpresa! Eles não tinham seguro para nada.

Como você conseguiu nascer numa família tão pão-dura? Ou você acha que eu

teria posto fogo no teu lar se houvesse seguro?! Não, estava indo tudo tão bem.

As idéias ajudadas por pequenos detalhes. Mas obviamente, não fui eu quem

colocou o fogo propriamente dito, foi o detetive. Pobre detetive. Eu paguei ele com

juras de amor. E o que ele teve em troca? Um tiro na cabeça. Que aliás, também

não foi eu quem deu. Por falar nisso, Patrícia está para chegar.

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Marcos – Vai me dizer que ela também está nessa história?

Joana – E como não poderia estar? É minha melhor amiga, você sabe, a

amizade ainda é uma das poucas coisas que realmente podem fazer par com a

cumplicidade. Mas, sim, ela deu o tiro por mim.

Marcos – Eu não sei como estou tão calmo! Essa história toda e... eu aqui, sem

lhe dar logo um tiro na testa! Sua puta desgraçada.

Joana – Xingue, xingue. É o máximo que você vai conseguir até agora. Porque

ainda tenho mais algumas coisas, pequenos fatos, coisas do destino, não se

esqueça disso! para lhe contar.

Marcos – Eu estou indo embora. Vou acabar com isso por aqui. Você não vai

me ver cometendo nenhuma loucura! Você quer que eu me acabe mais, é isso, e

vai inventar mais mentiras e mentiras. Você deve ter desconfiado que meus pais e

nem a casa não tinham seguro pelo estado em que fiquei. E não pense você que

vou acreditar na história dos meus tios, eles já não eram amigos dos meus pais há

muito tempo, nunca se deram bem. Eu não acredito em nenhuma palavra tua!

Satisfeita! Eu não acredito, sua puta!

Marcos está saindo quando entra Patrícia com uma arma na mão. Apontando

para ele.

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Patrícia – Ô, ô, acho que perdi a melhor parte da festa. Já cantaram o

parabéns? Hei, onde você pensa que vai? Vamos ficar os três aqui. Juntinhos até

que a festa acabe. Eu só não sei que horas a festa pode acabar. Por falar nisso,

alguém tem horas? ( Marcos afasta-se da saída e senta-se também com a arma

abaixada. Patrícia caminha até Joana e lhe dá um selo na boca).

Marcos – Eu só quero ir embora.

Patrícia – Você vai. Quando tiver escolhido uma das duas para matar.

Marcos – Eu não vou escolher ninguém. Vocês são loucas! Por falar nisso eu

achei que você estivesse...

Patrícia – Apaixonada por você? ( Risos) ( Flashback de Patrícia e Marcos):

Meu caro Marcos, eu estou completamente apaixonada por você. Quando você

estabelecer sua vida a gente vai poder ficar juntos. Eu só não te trago pra minha

casa porque é muito importante para Joana que você fique com ela. De certa

forma ela sente-se culpada pelas coisas que aconteceram em tua vida, e quer

recompensar de alguma forma.

Marcos/passado – Mas ela não tem por que se sentir assim. Joana não me fez

absolutamente nada. Pelo contrário eu que me desliguei da sua vida sem dar

satisfação.

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Patrícia/passado – Mas você sabe que Joana é muito supersticiosa e...

Marcos/passado – Na minha época, isto é, na época em que estávamos juntos

ela não era. Aliás, era completamente cética!

Patrícia/passado – Mas agora é. De repente ela te pragueja todo o mal do

mundo e puf! Você aparece num manicômio por alcoolismo. Você acha que essas

coisas não fazem um ser humano normal pensar em certas coisas? Não, eu não

posso levá-lo pra minha casa agora. Somos muito amigas, sabe. Eu prefiro que

ela decida por nós, apesar de ela não saber que estamos juntos.

Marcos/passado – Você acha que ela ficaria chateada? Já faz tanto tempo o

que aconteceu entre mim e ela. Tenho certeza que ela compreenderá que eu te

amo e que você me ama. Ela é tua amiga, não é?

Patrícia/passado – É, minha melhor amiga. ( Volta ao presente imediatamente):

E como você pode ver, estamos juntas até mesmo na loucura! Você é um tolo se

acha que eu acreditei nessa história de que ( ironizando) : “ eu te amo e você me

ama”. Eu nunca te amei. Mas aprendi com Joana o que é isso de fingir amor.

Joana - ( bate palmas) : Quer dizer que além de ficar comigo você também

queria ficar com minha melhor amiga? Seu trouxa! Eu tenho todas as suas

conversas gravadas. A maneira como você faz amor ainda é a mesma. ( Joana

tira da bolsa um gravador e... play! A voz do casal Marcos-Patrícia fazendo sexo,

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na fita ele diz pra ela entre ofegância e descanso: “Patrícia, eu te amo...”. A fita

repete-se várias vezes, por fim acelerando cada vez mais. Nesse ponto da história

Marcos encosta sua arma na cabeça de Joana e engatilha. Black-out. Marcos

atira! Silêncio. Patrícia e Joana começam a rir. A luz acende.)

Patrícia – Acho que você errou o tiro! Não, não, não, a arma que era de

mentira! ( sem ênfase, apenas) : Surprise.

Joana – Então você realmente iria me matar? Eu achei que você não fosse

violento. Oh, no, mais uma vez, litlle heart, você se enganou.

Marcos – ( tremendo de raiva pega Joana pelos cabelos) : Sua puta! Sua

vagabunda! Quem você pensa que é? Hein? Acha que eu sou um palhaço! (

controla sua raiva e joga sua cabeça pro lado. Sai irado) : Eu não vou mais ficar

aqui participando dessa... ( vira-se): A minha vontade realmente é de matar! Vocês

duas! Suas putas! Suas lésbicas! Ah, agora eu é que vou me vingar de vocês (

Ambas estão rindo): Vocês vão me pagar por essa palhaçada! ( Ele está saindo e

Patrícia mira em sua perna, é tudo muito rápido e frio e ela atira. Marcos cai

urrando de dor.)

Patrícia – Você não achou que essa aqui fosse de brinquedo, ou achou? Vamos

Joana, a festa começa agora. ( Enquanto ele grita de dor, Joana pega um lenço e

embebeda de formol).

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Joana – ( Coloca o lenço no rosto de Marcos até que ele desmaia, enquanto ele

se debate ela diz... ela “tenta” acalmá-lo, como se acalmasse uma criancinha) :

Calma amorzinho, vai passar, vai passar. Ó, ó, passô... Passô... o sono já vem! O

sono já vem...

Patrícia – Nana neném que a cuca vai pegar, papai foi pra roça, mamãe vai te (

extravasa e começa a pular de alegria) : maTAR! Matar! Matar! Matar! ( Enquanto

isso Marcos já desmaiou. Então uma música para alegrar. Joana e Patrícia

dançam como duas pessoas que não sabem dançar, tentam dublar a música, elas

são perfeitamente autênticas! No momento em que a música vai acabando a luz

também vai-se apagando.)

INTERMEZZO

O intermezzo é feito pela mesma atriz que faz Joana. Mas aqui há uma

personagem tragicômica beirando o ridículo de uma espera. O ambiente é um

manicômio, um sonho, um pesadelo do amor.

Tiram-se todos os móveis, resta uma cadeira. A luz é azul-penumbra. O cabelo

é neurótico. A louca sobre o palco é sua própria camisa-de-força. Nada mais a

amarra a não ser a espera e suas doces ilusões.

A louca – (está cantarolando qualquer música e dançando ) : Toc-Toc! Toc-

Toc! ( silêncio) : Espere! ( Ajeita o cabelo, arruma a roupa, ou pelo menos tenta,

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tira a sujeira dos dentes e finge abrir a porta) : Josafá! ( surpresa) : Esperava por

você. Mas... não sabia que hoje chegavas. ( Pega uma cadeira para seu amado

sentar): Sente-se. Como foi de viagem? Eu? Bem... estive só esse tempo todo.

Feliz! Sabe?! Nesses quatro meses sem você eu inventei umas coreografias para

dançar para você. Foi tão legal. Fui descobrindo cada ponto do meu corpo, sua

flexibilidade, seu desempenho musical. Tive momentos maravilhosos de prazer, e

fiz isso tudo pensando em você. Sei, sei, sei, que está curioso para ver-me

dançar. E o mais legal de todas as coisas é a sensualidade com que eu

desenvolvo minha criatividade. Estou tão feliz. Feliz que tenhas voltado. Não, não

tive tempo de chorar. Por mais que meu coração sofresse de saudade eu repetia

comigo mesma: “ O amor não é sofrimento. O amor é alegria! O amor? É luz! O

amor é sorriso!”. Então eu imaginava você vestido de Elba Ramalho cantando ( e

ela canta) : “ Estou de volta pro meu aconchego, trazendo na mala bastante

saudade...” ( não tudo!). Ah, meu Josafá, você não sabe, não é? Ainda não te

disse tudo. Eu ( tímida): eu ( com o dedo indicador na boca, braços encolhidos) :

não, não falarei.... ( olhando de lado): você sabe... Nós nunca ficamos juntos

porque eu nunca tive necessidade e porque minha mãe sempre me disse para que

eu analisasse todos os sentimentos ( com a mão no peito) : of my heart! Hoje sei...

nestes quatro meses pude pensar não só na minha vida, como descobri também

que os gatos, os cachorros, as plantinhas também necessitam de carinho, amor,

compreensão e fé. Todas as manhãs de sol eu acordava, abria a janela e

colocava aquela música ( ela recita) : “ quando o sol bater na janela do seu quarto

lembra e vê ( repete): vê. Que o caminho é um só. [ até aqui ]”. Além disso,

também ajudei velhinhas a subir no ônibus e deixei mulheres grávidas passarem

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na minha frente. Percebe?! Agora, agora, agora, agora. Agora posso dizer... sei,

eu hesito. Mas quem, quem nesse mundo não poderia hesitar sentindo no peito

essa palavra batendo, batendo, modificando a vida, a maneira de ver a vida, a

pele, e até mesmo o céu e as estrelas, essa palavra chamada: Amor?! Oh, amor,

e às vezes penso que seria redundante, pleonástico, oh amor! Dizer-te, enfim: Eu

te amo, Josafá! ( Pausa. “Ele” está indo embora) : Não. Não. Não, não vá.

Espere...

Não é o fim do intermezzo!

A louca – ( cai em si) : Não. Tenho que treinar mais um pouco. ( Para platéia) :

Josafá voltará, eu sei, e será minha chance de lhe dizer tudo. Tenho medo que ele

volte e que eu tenha medo de dizer. Oh! Tantas coisas entaladas, tantos desejos,

às vezes incompreendidos por mim mesma. Quero sentir eternamente cada pulsar

desse amor, amor bandido, pois rouba de mim os sentidos, os termos, as frases

semiológicas, entre tantas outras coisas. Agora veio-me na cabeça a cena, talvez

a mais cinematográfica de todas. Será assim: quando ele voltar alugarei seu filme

preferido, pulp fiction e então, na cena em que tocar aquela música... ( suspira e

canta só a frase título) : “ Girl, you´ll be a woman soon.” Sim, vai ser a hora da

revelação e ele cantará junto: “ Girl, you´ll be a woman soon.” E eu lhe direi: Oh,

Josafá! Você notou? Venha, dance comigo, dance comigo forever. Entremos no

mundo dos corações felizes, dos corações amados. E ele dirá: Sim, sim, sim (

puxa o m no final): sim!m!m!m!m! Seremos como pássaros a voar pelos jardins

elevados da Babilônia! Pelas galerias de arte do universo. Eu direi: Oh, Josafá! I´m

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a woman! Ele responderá: I know, I know, baby. I want you forever. Seremos dois

corpos numa única alma cavalgando pelos confins da vida. ( Cai desanimada):

Não, não será assim, é preciso ser mais sutil, mais... sei lá, mais. ( Pausa).

A louca: Toc-toc!

A louca ( grita entusiasmada) : Josafá! Josáfa! ( Ela troca a acentuação do

nome do cara!) : Josáfa?! ( se atrapalha para abrir a porta e ao abri-la): JOSAFÁ!!

A louca ( voz de moleque): É aqui que mora o pedrinho?

A louca ( desapontada) : Quem és tu? És o filho de Josáfa?

A louca ( voz de moleque): Ah, desculpa, foi engano.

A louca ( fecha a porta desolada): Veja o que você me faz. Esse amor acaba

comigo. “ Sabe, tchururu, estou louca por você, ô yé! E quero te encontrar ou-ou,

yé!”. (A louca ainda fica murmurando e dançando essa música, a luz vai

apagando-se lentamente, voltando ao estado de escuridão total.)

O intermezzo acaba! Ufa!

Marcos está amarrado na cadeira, acordado.

Patrícia – E a louca ficou esperando, esperando, esperando. Até que um dia... (

Pausa. Começa a rir). História triste essa, não é? Josafá ( começa a rir): nunca

apareceu, nem sabe-se se ele realmente existiu ou não. Mas a pobre mulher não

cansou-se de esperar. Acontece que ela não tinha objetivos. Talvez seu único

objetivo, aquilo que a mantinha viva, era a espera! Não é o que acontece com a

Joana e tão pouco não é o que acontece comigo.

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Joana – O meu único objetivo é ver-te assim, completamente corroído pela

minha maldade, pelo escárnio. E não pense que me sinto culpada por isso. Eu

sinto prazer. Eu sinto prazer em vê-lo sofrer dessa maneira. Eu sinto prazer cada

vez que me lembro da tua casa incendiada. Não foi a toa que você foi para no

manicômio também.

Patrícia/passado ( dia em que Marcos vai para o Manicômio em que Patrícia

trabalha) – ( pega uma garrafa de vinho e duas taças) : Joana, nosso plano está

dando certo! Adivinhe?

Joana/passado – Eu não acredito! Ele está lá, no manicômio? Eu sabia! A gente

iria ganhar a causa.

Patrícia/passado – Ele foi julgado e condenado a permanecer num casa de

restituição até que voltasse a ter um comportamento normal. Me parece que o fato

de ele ter matado um mendigo não foi tão prejudicial para a polícia. Coitadinho,

aquele velho beberrão nos serviu direitinho.

Joana/passado – Pelo menos agora eu não vou ter que pagar por sua cachaça.

( irônica) : Sabe, eu já estava me sentindo culpada por incentivá-lo cada vez mais

em seu vício, mas o pobrezinho gostava tanto daquilo. Quando eu lhe dava

míseras notas de dez reais para que comprasse sua cachaça e corrompesse

nosso querido Marquinhos, eu me sentia tão mal, tão mal, ( em êxtase) : que era

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capaz de dar pulos de felicidade! ( elas brindam felizes!): É uma pena que ele

partiu, vou sentir tanta falta daquele bafo alcóolico.

Patrícia/passado – Érgh! Realmente a sociedade não sabe o quanto esses

beberrões tem a fazer por ela. E por um preço acessível. Sabe, eu fico imaginando

quantos drogados e bêbados poderiam ter concorrido comigo no meu concurso

público e infelizmente estavam mais preocupados com suas misérias! Eu amo os

degenerados! Viva a degeneração! Viva a doença capitalista!!

Joana/passado – Você sabe que quando eu dei o tiro na cabeça daquele pobre

velho a única frase que me veio na cabeça foi: “ Menos um número nas

estatísticas!”. Garanto que muitas senhoras hipócritas nem perceberam que no

outro dia o ar estava menos pesado, não porque tiveram uma ótima noite de sono,

mas porque aquele senhor simplesmente jazia no IML. É menos um signo no

sintagma urbano. As pessoas não notam nunca aquela vírgula alcoólatra jogada

na calçada, mas quando ela desaparece, sentem-se mais aliviadas, menos

culpada com alguma coisa que não sabem explicar.

Marcos/passado ( está na delegacia enlouquecido) – Eu não matei o velho, não

fui eu que matei. Eu juro! Eu juro! Mas não me lembro de nada. Eu não sei como

essa arma foi parar na minha mão! Como... como... a gente dormiu. Sim,

estávamos bêbados, mas eu não faria uma coisa dessas. Ele era meu amigo, meu

único amigo. Ele era como um irmão. Dormíamos sempre lado a lado, porque

você sabe, na rua sempre tem uns engraçadinhos... principalmente a noite que

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vem atormentar pobres mendigos. A gente era uma família. Se brigamos por

causa de bebida? Não, aliás ele sempre tinha pra nós dois. Eu não sei onde ele

arranjava tanta bebida. Não, eu passei a beber quando o conheci. Ora, qual infeliz

não bebe para aliviar a dor?! Me dá um gole, só um golinho de álcool. Eu não

quero ser preso. Eu não quero ficar aqui trancafiado. Eu não fiz nada! Eu não fiz

nada! Vocês estão vendo! Vocês sabem que eu não fiz nada! O destino, ele me

pois nessa... foi ele. Doutor destino, porque me abandonaste?! Eu bebo, eu tenho

que beber! Por favor. Ok, eu não vou mais pedir. Tira as mãos de mim! Eu não

sou louco, eu não sou. O que eu faço aqui? Hei, me ajuda. Olha, eu posso viver

normalmente nas ruas. Eu prometo não beber mais, eu prometo, só me tirem

daqui... hei, vocês não vão tirar?! O que vocês ganham comigo aqui, hein?

Calmante não, eu não quero calmantes, eu só quero sair. Calmante não! não! eu

não quero calmantes! Eu só queria sair. Só isso... só... só...

Joana ( Presente) – Quatro anos esperando por esse dia. Quatro anos, meu

caro amigo, para ter ver preso num manicômio! Você sabe o que meu psicólogo

disse quando eu lhe contei que me vingaria de ti: que EU estava louca! Que eu

deveria esquecer, que isso iria acabar com minha vida. Acabar? Eu já não tinha

muitos objetivos, estava empregada, já havia me formado. O que eu queria mais?

Nunca pretendi ter filhos, nem mesmo com você! Mas agora eu tinha um motivo

maior para viver. E estamos aqui, chegando ao ponto final. Fim da linha pra mim e

fim da linha pra você! É óbvio que sem a ajuda de Patrícia não estaríamos aqui

nesse momento. Você tem que agradecer a ela, pois sem ela eu te garanto que

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você sofreria muito mais, seria mais tempo nas ruas, quem sabe mais tempo

naquela morada de loucos alcoólatras assassinos!

Marcos – Eu nunca imaginaria que você fosse capaz de matar alguém?

Joana – Não só fui como me diverti. Principalmente quando deixei a prova

principal do crime junto as suas coisas. Você estava tão bêbado que nem viu e

nem ouviu nada, nem mesmo quando apertei a arma em seus dedos você

acordou. Você estava imundo!

Patrícia – Depois, meu querido, não foi difícil que você largasse o álcool. Eu

mesma lhe apliquei uma daquelas injeções que causam repulsa alcoólica. Quem

pagou? Não, não pense que foi o governo. Foi sua fada madrinha aqui ( aponta

para Joana). Enquanto isso um advogado cuidava do seu caso. Você estava tão

perturbado quando seu amigo de rua morreu, que nem notou a rapidez que a

justiça levou para julgá-lo e condená-lo, e tão perturbado que nem notou que sua

perturbação era uma prova óbvia de que você havia realmente assassinado

aquele homem. Me diz uma coisa, só pra matar minha curiosidade, não houve

momentos em que você realmente achou tê-lo matado? Você estava tão bêbado

quando te encontraram. Os pés inchados próprios de quem bebeu a noite inteira,

e um cadáver suando sangue ao lado. Sabe que o promotor queria anexar

comportamento mórbido à sua ficha?

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Marcos – Eu não quero ouvir mais isso. Chega. Por favor, chega. Eu não quero

ouvir. Por que vocês não acabam logo com essa história e com minha vida. Eu já

não suporto mais. Eu tenho tanto ódio dentro de mim. Eu tenho vontade de

estraçalhar as duas com as próprias mãos. Eu tenho...

Joana – Tsc, tsc, tsc, tsc, tsc. Violência não meu querido. Estratégia. A violência

deve ser apenas um detalhe, uma conseqüência óbvia. Um aperitivo.

Marcos – ( começa a sorrir) : Sabe, se o destino me entregou à duas

vagabundas, a única coisa que me passa pela cabeça agora são os momentos em

que passei trepando com vocês. Pelo menos eu tive esse prazer de ter gozado,

gozado, gozado, gozado. Vocês não passam de duas piranhas lésbicas.

Patrícia – Quando um homem perde sua força só lhe resta a loucura e um resto

másculo de lembranças carnais. Eu acho que a gente chegou ao fim. ( Joana

aproxima-se de Patrícia e juntas apontam a arma para o coração de Marcos. ):

Goodbye, haney, goodbye.

Black-out. No mesmo momento a música “Girl, you´ll be a woman soon”. Ainda

quando todos pensam que a peça acabou...

Texto em off por cima da música:

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Patrícia – Joana, agora que tudo isso acabou que acabamos de vez com essa

loucura. Agora que Marcos finalmente está a sete palmos do chão. Eu posso lhe

confessar que te amo.

Silêncio. Um barulho de tiro, três tiros. Silêncio. Mais dois tiros. Silêncio.

Joana – Ô-ôu, acho que você não aprendeu a lição.

FIM