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1 “Todas as portas que eu encontrei fechadas”: a política do sofrimento na „ausência‟ e no desaparecimento‟ de pessoas no Brasil 1 . Eduardo Martinelli Leal PPGAS/UFRGS RESUMO Este trabalho tem como objetivo contextualizar a experiência do sofrimento a partir dos sujeitos que procuram seus parentes, dos mediadores e das categorias criadas na produção do “desaparecimento” como um problema social. Para tanto, utilizo da observação participante em redes sociais e eventos relacionados à causa, bem como de entrevistas semiestruturadas com familiares, policiais, voluntários e outros agentes ligados ao tema. Argumento que o sofrimento decorrente da perda e da busca ao desaparecido passa a incorporar e transformar a própria história de vida dos sujeitos. O sofrimento está presente não apenas na experiência da dor, que se expressa no adoecimento do corpo, mas também se refere a como os processos que deveriam servir para amenizar o sofrimento tornam-se potencializadores deste. Mesmo que muitas vezes desintegrada, a política do desaparecimento traz consigo novas formas de fazer política, de dar visibilidade e legitimidade ao desaparecimento como problema social. Essas mães em suas formas não institucionalizadas de mobilização trazem para a cena pública imagens do universo privado que reforçam a ruptura em modelos tradicionais de relações familiares, sobretudo do laço entre mães e filhos. Esses repertórios narrativos e modelos de mobilização produzem justificações morais que dão legitimidade à produção do desaparecimento como um problema social e são tecidos na tensão com discursos de culpabilização e invisibilidade (Ferreira, 2013; Oliveira, 2012). Palavras-chave: sofrimento, desaparecimento, ausência. 1 Introdução Este trabalho tem como objetivo contextualizar a experiência do sofrimento a partir dos sujeitos que procuram seus parentes, dos mediadores e das categorias criadas na produção do “desaparecimento” como um problema social. Como reconhecer o sofrimento das famílias destas pessoas sem reduzi-las a um problema individual de “incompetência psicológica” ou vê-las apenas como algozes deste? Como compreender essa política das emoções e todos os agentes que vão se convertendo à militância, produzindo o fenômeno, mas também o próprio desaparecido? Por fim, cabe indagar, 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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“Todas as portas que eu encontrei fechadas”: a política do sofrimento na „ausência‟ e

no „desaparecimento‟ de pessoas no Brasil1.

Eduardo Martinelli Leal

PPGAS/UFRGS

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo contextualizar a experiência do sofrimento a partir dos

sujeitos que procuram seus parentes, dos mediadores e das categorias criadas na

produção do “desaparecimento” como um problema social. Para tanto, utilizo da

observação participante em redes sociais e eventos relacionados à causa, bem como de

entrevistas semiestruturadas com familiares, policiais, voluntários e outros agentes

ligados ao tema. Argumento que o sofrimento decorrente da perda e da busca ao

desaparecido passa a incorporar e transformar a própria história de vida dos sujeitos. O

sofrimento está presente não apenas na experiência da dor, que se expressa no

adoecimento do corpo, mas também se refere a como os processos que deveriam servir

para amenizar o sofrimento tornam-se potencializadores deste. Mesmo que muitas vezes

desintegrada, a política do desaparecimento traz consigo novas formas de fazer política,

de dar visibilidade e legitimidade ao desaparecimento como problema social. Essas

mães em suas formas não institucionalizadas de mobilização trazem para a cena pública

imagens do universo privado que reforçam a ruptura em modelos tradicionais de

relações familiares, sobretudo do laço entre mães e filhos. Esses repertórios narrativos e

modelos de mobilização produzem justificações morais que dão legitimidade à

produção do desaparecimento como um problema social e são tecidos na tensão com

discursos de culpabilização e invisibilidade (Ferreira, 2013; Oliveira, 2012).

Palavras-chave: sofrimento, desaparecimento, ausência.

1 Introdução

Este trabalho tem como objetivo contextualizar a experiência do sofrimento a

partir dos sujeitos que procuram seus parentes, dos mediadores e das categorias criadas

na produção do “desaparecimento” como um problema social. Como reconhecer o

sofrimento das famílias destas pessoas sem reduzi-las a um problema individual de

“incompetência psicológica” ou vê-las apenas como algozes deste? Como compreender

essa política das emoções e todos os agentes que vão se convertendo à militância,

produzindo o fenômeno, mas também o próprio desaparecido? Por fim, cabe indagar,

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

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conforme proposição de Victora (2011) como o sofrimento é produzido e reconhecido e

quais as implicações éticas e políticas destas formas de reconhecimento?

Penso que a distinção proposta por Oliveira (2012) ao cunhar o termo

“desaparecidos civis” é relevante, uma vez que se supõe que nestes casos não haja

evidências de que o desaparecimento tenha sido “forçado2” pelo Estado. Portanto, o

desaparecimento civil não foi produzido pela repressão política do Estado no período

ditatorial, nem tampouco pelos seus agentes durante o período democrático, como nas

chacinas e mortes de cidadãos (Araújo, 2009).

Analiso aqui mais especificamente a militância de mães3 que perderam seus

filhos há muito tempo, “os desaparecimentos de longa duração” (Oliveira, 2012), e que

praticam a ação política como uma forma de ajudar outras pessoas, mas também

indiretamente a si mesmas na medida em que se valem de rituais de elaboração do

sofrimento que amenizam sua dor e lutam por superar os obstáculos que cercam a busca

de seus filhos. Para tanto, utilizo da observação participante em redes sociais e eventos

relacionados à causa, bem como de entrevistas semiestruturadas com familiares,

policiais, voluntários e outros agentes ligados ao tema. Trabalhei especificamente com

grupos de São Paulo, Curitiba e Santa Catarina, sendo que as reflexões elaboradas neste

trabalho expressam a realidade do problema nestes estados, mas também iluminam o

panorama nacional.

Apesar de se constituírem em uma minoria diante do número elevado de famílias

que vivenciam o desaparecimento, os familiares que inscrevem o sofrimento decorrente

do desaparecimento como um problema político expressam a experiência de muitos

destes na interlocução com a sociedade como um todo. Cabe ressaltar que a inscrição do

sofrimento na esfera pública demanda um aprendizado compartilhado acerca das formas

legítimas e reconhecidas de levantar a questão. Mesmo que o sofrimento e a sua

politização sejam dimensões diferentes do mesmo problema (e que uma experiência não

leve necessariamente à outra), utilizo a experiência destas mães como representativos do

tratamento ao problema no Brasil.

2 Entretanto, é necessário admitir que estas distinções não excluem a possibilidade de que um

desaparecimento “civil” seja mais tarde entendido como desaparecimento “forçado”, como em alguns

casos se supõe. A delimitação é importante na medida em que o termo desaparecimento está associado na

literatura acadêmica à discussão sobre os desaparecimentos políticos. Apenas por um recorte

metodológico reduzo a discussão aos casos de desaparecidos civis. 3 Embora seja possível encontrar alguns casos de pais no espaço público, como veremos estes são menos

comuns e, por outro lado, menos legítimos para representar uma ideia de família.

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Neste trabalho, utilizo diferentes categorias como o “desaparecimento de

pessoas”, “desaparecimento civil” e “ausência” como mote para questionar como a

mediação entre agentes, políticas e problemas sociais são forjados em sua interlocução

na cena pública. O modo como a produção do desaparecido está relacionada a

determinadas causas e critérios sociais destas também implica em uma maior

visibilidade e mobilização social na resolução destes casos. Entretanto, entendo que, do

ponto de vista das famílias dos “ausentes”/”desaparecidos” não é possível saber as

causas sobre o desaparecimento antes do encontro com a pessoa desaparecida. Ou seja,

a especulação sobre os fatores ou causas do problema contribui para que os agentes

públicos tomem apenas algumas causas como fatores de resolução ao problema. Mais

do que levantar causas ou perfis, concentro-me em apresentar a experiência da produção

do desaparecido. Se o fenômeno do desaparecimento é multicausal, não podemos

admitir a prioridade da suspeita sobre determinadas causas, e é isso que veremos mais

adiante na fala de mães como Sandra4.

Minha entrada em campo se deu inicialmente via redes sociais, um contato

inicial com uma rede de trocas entre parentes, voluntários e profissionais que entrevistei

posteriormente. A rede também é um universo de atualização sobre novos casos de

desaparecimento, reportagens e posicionamentos sobre o problema no país5. Boa parte

dos perfis tem como objetivo a divulgação de casos, congregando familiares,

profissionais e apoiadores da causa.

Outra questão que a mobilização em torno do desaparecimento suscita nas

narrativas dos familiares é que o sofrimento das famílias é parte integrante, senão

central, do problema do desaparecimento6. Do mesmo modo, a suposição de causas para

os desaparecimentos e a definição de prioridades de investigação também fazem parte

do sofrimento das famílias, uma vez que essas suposições acabem sendo entraves à

investigação. É o que acontece quando se supõe que o desaparecimento é uma fuga, ou

seja, que ele foi produzido por escolha do desaparecido (Oliveira, 2012).

4 Optei por manter os nomes dos meus interlocutores em função de sua visibilidade pública.

5 Durante o ano de 2013 essa rede passou a se intitular como “movimento em prol das pessoas

desaparecidas”. 6 Ferreira (2011) argumenta que é justamente pelo modo como o “problema social” do desaparecimento é

gerido ou construído como irrelevante no Brasil que as práticas policiais sustentam o caráter enigmático

dos casos. A ausência e a imprecisão dos dados e o modo como a maioria dos casos são tratados

perpetuam a imagem da impossibilidade da resolução de alguns desaparecimentos.

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Do ponto de vista da prática policial, não há um reconhecimento de que a fuga

ou qualquer desaparecimento que tenha sido realizado por iniciativa própria seja

realmente um caso de desaparecimento. Cabe perguntar o que significa ter consciência

quando o desaparecido está exposto a riscos (como crimes, no caso de crianças e

adolescentes) ou deixa responsabilidades com relações sociais (como pais, filhos,

cônjuges)? Nesse sentido, independente da consciência do desaparecido sobre sua ação,

a busca familiar reivindica o encontro com a pessoa desaparecida ou mesmo o

esclarecimento sobre o desaparecimento7. Entretanto, observando a experiência dos

familiares é possível supor que essa ingerência ao problema é um dos motes que suscita

o ingresso das mães no espaço público.

Neste trabalho não tento distinguir a experiência de famílias mais ou menos

envolvidas no cenário público, mas tento apontar que o sofrimento decorrente da perda

e da busca do desaparecido passa a incorporar e transformar a própria história de vida

dos sujeitos, independente do modo como o elaboram. Tampouco me preocupo com o

alcance das estratégias de mobilização, mas sim com a experiência dos familiares a

partir do evento do desaparecimento. Mesmo que muitas vezes desintegrada, a política

do desaparecimento traz consigo novas formas de fazer política, de tornar visível e

legítimo o desaparecimento como problema social. Essas mães em suas formas

informais ou não institucionalizadas de mobilização8 vão trazendo para a cena pública

imagens do universo privado que chocam pela empatia causada com seus interlocutores.

Essas imagens reforçam a imagem de ruptura em modelos tradicionais de relações

familiares, sobretudo do laço entre mães e filhos.

O desaparecimento é, portanto, um fenômeno relacional, pois só existe dentro

da configuração familiar que é base para a politização do desaparecimento. A perda só

pode ser entendida dentro dessa configuração, pois um indivíduo que não é reclamado

em seu lugar ou posição social não é um desaparecido (Neumann, 2010). A despeito da

menção recorrente ao termo “desaparecido” neste trabalho, em decorrência do seu uso

na esfera pública, argumento adiante que essa categoria nem sempre contempla a

7 Na prática do serviço do “SOS desaparecidos” de Santa Catarina (coordenadoria da Polícia Militar), os

policiais costumam mediar situações de encontro envolvendo desaparecidos adultos, o que implica

algumas vezes em respeitar o desejo deste de não reencontrar a família, sempre esclarecendo a esta acerca

das condições em que se encontra o mesmo. 8 Não há um consenso de que a participação na política institucional seja o melhor caminho para a

condução da causa, como o exemplo de Arlete Caramês (“a mãe do Guilherme”- seu filho desaparecido),

do Paraná, que se elegeu como deputada estadual e vereadora.

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experiência do sofrimento familiar, por ser uma categoria forjada na relação com a

cultura policial, ou seja, pensada nos termos de um crime ou de uma situação concreta e

recorrente9. Nesse sentido, o desaparecimento passa a ser pensado em termos de suas

causas e não como uma experiência subjetiva no tempo, na qual a vida social daquele

que está ausente é produzida como uma continuidade, mais do que uma interrupção.

2 Modelos de mobilização

É possível perceber que muitas famílias ao ingressarem no espaço público vão

inscrevendo ou moldando seu sofrimento em modelos reconhecidos, pois nem sempre a

crítica visceral da urgência de sua dor é bem interpretada e estas muitas vezes são

constrangidas a formular seu sofrimento sobre uma base de expressão distinta.

Pensando nas formas coletivas de expressão da dor e do sofrimento, percebe-se que a

via mais comum de inteligibilidade para esses processos é a formação, mesmo que

frágil, de comunidades imaginadas ou da atuação política institucional propriamente

dita10

.

Na América Latina, essa politização tem sido pautada pela mobilização em torno

dos desaparecidos políticos. A organização “Mães da Praça de Maio” durante a ditadura

e no período recente representa essa politização da família através do gênero e se coloca

como um ator legítimo na politização do desaparecimento praticado pelo Estado.

Interpelando o Estado como mães e avós elas buscam respostas sobre o

9 Atualmente tenho concentrado especial atenção à compreensão da experiência de familiares

desvinculados da esfera pública. 10

Jimeno (2010) argumenta que as categorias emocionais são culturais e históricas, mas também são

juízos morais sobre o mundo, e nesse sentido, impulsionadores das ações sociais. A autora analisa a

construção cultural de comunidades morais na Colômbia interpelando a sociedade a partir da categoria

vítima, constituindo-se em produtor de identidade e reconhecimento. A autora argumenta que a expressão

do sofrimento por meio do testemunho pessoal une distintas pessoas a partir das experiências de violência

praticadas pelo Estado ou por grupos paramilitares. A natureza emocional da categoria vítima serviria

como um mote de identificação entre os que sofreram a violência e a sociedade civil, constituindo um

vínculo público expresso em encenações, mobilizações e imagens. Jimeno analisa três contextos: a ação

pública de uma comunidade indígena Kitek Kiwe, manifestações massivas e a luta pela promulgação da

Lei de Vítimas. Como vítimas, criam um comprometimento social em torno de sua causa. Toda a

confluência de interesses sobre o mesmo tema indica que a vítima atingiu a generalização social a partir

da experiência subjetiva, que ela se tornou uma categoria política na Colômbia. Para a autora o motivo

dessa generalização se deve mais à força de uma comunidade emocional do que a princípios abstratos. No

Brasil, boa parte das políticas públicas relacionadas ao desaparecimento se deve à militância desses

grupos.

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desaparecimento forçado de seus filhos e netos, sendo que sobre os primeiros pesa a

suposta oposição ao regime ditatorial.

No Brasil, Araújo (2008) argumenta que a mobilização das “Mães de Acari”

tornou o desaparecimento forçado de onze jovens da favela de Acari-RJ, em 1990, em

uma denúncia pública ao interpelar o Estado na busca por justiça e reparação, uma vez

que os responsáveis pelos desaparecimentos teriam sido representantes das forças

policiais. Utilizando-se da imagem de uma “maternidade partida” a luta das “Mães de

Acari” teve uma grande repercussão (nacional e internacional) na mídia e na política.

A denúncia foi se transformando progressivamente e o caso exemplar dos

desaparecidos de Acari foi se generalizando em casos exemplares de violência policial,

a exemplo da repercussão dos acontecimentos posteriores como a Chacina de Vigário

Geral e da Candelária11

. As estratégias utilizadas pelas mães de Acari iniciam com os

depoimentos-testemunhos das mães, passam por práticas de luto e reivindicação de

justiça, depois a denúncia internacional à Anistia Internacional a partir das redes locais e

posteriormente a denúncia nos meios de comunicação e o registro em livros. As mães de

Acari realizaram cerimônias, missas, passeatas, homenagens, seminários e protestos,

agregando cada vez mais outras vítimas da violência no Rio de Janeiro. Nesse sentido, a

luta se tornou legítima independente das suspeitas que pesavam sobre a identidade delas

e dos seus filhos.

Se o “desaparecimento forçado” tem um alvo prioritário, o Estado, no caso do

“desaparecimento civil” essa denúncia não se refere apenas ao reconhecimento da culpa,

mas sim da falta de apoio do mesmo na busca dos filhos, dada a multiplicidade de

causas envolvidas. Além disso, essa denúncia não se restringe ao Estado, mas interpela

toda a sociedade a se engajar na busca dos desaparecidos. Boa parte das estratégias de

mobilização coloca o interlocutor no lugar da vítima, ao fazê-lo se reconhecer naquele

sofrimento como mães, pais, irmãos etc.

Nos anos de 1995 e 1996, cenas da novela da Rede Globo “Explode Coração”

apresentavam depoimentos de mães com cartazes de seus filhos, destacando o seu

sofrimento e as circunstâncias do desaparecimento dos mesmos. Esse tipo de

11

Minha escolha por tratar apenas da mobilização das “Mães de Acari” se deve ao fato de que ela se

aproxima da mobilização pelos desaparecidos civis. Isso não quer dizer que o modelo de mobilização

dessas organizações civis não se referencie mutuamente. É preciso lembrar que trata-se do mesmo

fenômeno de violência cometida pelo Estado contra determinados grupos sociais, mas que em alguns

casos a dor e o sofrimento das famílias é aumentado pela ausência do corpo das vítimas, como na chacina

de Acari.

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mobilização de relacionar a perda ao sofrimento das mães mobilizou o encontro de mais

de 60 pessoas desaparecidas no Brasil, segundo dados da emissora. O encontro foi

promovido em parceria com uma organização não governamental do Rio de Janeiro, o

Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente-CBDDCA.

Para Ivanise, fundadora da ONG Mães da Sé, esse é um momento crucial para o

início de sua luta. Ivanise conta que à época do desaparecimento da filha (23/12/1993)

de 13 anos, “não se falava em desaparecido”. Ainda antes de a novela ir ao ar, Ivanise já

havia entrado em contato com a ONG, através de uma amiga. Três semanas depois a

ONG a chamaria para participar da novela. Até então ela não imaginava a quantidade de

mães que passavam por este drama, pois havia 70 mães na gravação, nas escadarias da

Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Ivanise acreditava que através da repercussão

da novela ela conseguiria encontrar a filha. Ela gravou em um sábado e o episódio foi

ao ar em uma quarta-feira, mas ela não recebeu nenhuma informação sobre a filha.

Entretanto, duas jornalistas entraram em contato para fazer uma reportagem. Nessa

entrevista ela disse “eu gostaria que outras mães [que passassem pelo mesmo drama] me

procurassem”. Ivanise diz que não sabe se não foi a pior coisa que ela já fez, pois no dia

seguinte “eu acordei com o telefone tocando e até hoje ele não para de tocar”. Não

apenas as mães, mas a própria imprensa passou a procurá-la seguidamente, ao contrário

do que acontecia antes da novela.

Entendendo a Praça da Sé como um espaço central nas ações de mobilização da

sociedade civil e um espaço com bastante fluxo de pessoas, elas escolheram as

escadarias da Catedral da Sé para se reunir. Quando chegou nas escadarias a mesma

estava “repleta de mães [...] era uma coisa bonita, mas muito triste”. Esse primeiro

encontro teve uma ampla repercussão em canais de grande audiência, “aí não paramos

mais”, conta ela. As empresas começaram a entrar em contato com elas para colocar

fotos de desaparecidos em seus produtos. Ela diz que foi a própria sociedade que

nomeou o movimento como “Mães da Sé”. As mães passaram a ir todos os domingos às

escadarias da Catedral da Sé e, em oito meses de mobilização 48 das 250 crianças

cadastradas foram encontradas.

Sônia, envolvida há muitos anos na causa, narra sua entrada na luta a partir de

um caminho religioso. Um dia ela comentou que em um momento de desespero já havia

ido a um centro espírita para saber informações sobre a filha. Quando chegou lá, a

palestrante teria dito: “a pessoa que a gente estava esperando chegou”. Ela queria saber

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sobre a causa do desaparecimento da mesma. Sônia narra o que teria sido uma

mensagem da filha, dizendo que havia sido raptada por um carro branco que já a vinha

seguindo há alguns dias. A filha teria sido violentada, mas depois não lembrava o que

aconteceu, pois sua avó –já falecida- a resgatou. A médium, segundo Sônia, teria dito

coisas que ninguém sabia sobre sua vida familiar e recomendou que a mesma parasse de

chorar porque ela tinha muito trabalho para encontrar os filhos dos outros. Naquele

momento Sônia teria ficado muito irritada, pois não acreditou no que ouviu. Tempos

depois soube que a diretora Glória Perez estava fazendo uma novela sobre o tema e que

faziam chamadas a parentes que viviam o mesmo problema para participar. A partir

desse episódio ela participou do início do trabalho das Mães da Sé, “daí disseram que a

gente tinha uma ONG”, comenta ela.

As falas de Ivanise e Sônia são relevantes porque elas observam que, a despeito

do número de famílias atingidas pelo drama do desaparecimento, o fenômeno ainda não

havia sido produzido/reconhecido publicamente. Suas falas também deixam explícito o

papel de organizações não governamentais, da cobertura jornalística e televisiva na

produção ou reconhecimento do fenômeno. Entretanto, mesmo antes da novela, Ivanise

já havia se reportado diretamente às emissoras, mas sem sucesso. A organização existe

até hoje e se coloca como um ator político importante na busca por pessoas

desaparecidos, no atendimento às famílias e na pressão por políticas públicas na área.

Cabe destacar que a militância na causa também abrange a própria busca de

desaparecidos e é muito comum que esta auxilie no reencontro com muitas pessoas, por

vezes de modo muito simples. Amanda, responsável pelo site “Desaparecidos do

Brasil”, alega que já conseguiu encontrar muitas pessoas fazendo uso apenas da internet

e de ligações telefônicas. Os próprios bancos de dados civis – como os de informação

de crédito- muitas vezes são mais eficazes que os meios disponíveis pela própria

investigação policial, fato pelo qual esse recurso pode ser utilizado por pessoas ligadas à

causa na localização de pessoas. Por isso é comum ouvir dos meus interlocutores que

seria mais fácil encontrar um carro ou uma pessoa inadimplente no país do que uma

pessoa desaparecida.

Além da apresentação de fotografias no espaço público, muitas mães se utilizam

das redes sociais para estreitar laços com outras pessoas que atuam na causa, divulgar

casos de desaparecimento e expor seu sofrimento. Analisando a exposição do

desaparecimento nas redes sociais, percebe-se que para além da busca do desaparecido

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tecem-se juízos morais sobre as formas de sofrimento, atentando, sobretudo, para a

violência que, direta ou indiretamente são causadores de desaparecimentos. Esses juízos

são direcionados basicamente às figuras que perpetram violência contra “vítimas”,

sobretudo crianças.

Nesse caso, por exemplo, é comum que se questione a legitimidade dos direitos

concedidos aos algozes, o que incide em uma clara distinção entre mais e menos

humanos (Fonseca, 1999), ou coloca a categoria “vítima” como condição para o acesso

aos direitos, mas também como forma de reconhecimento entre os cidadãos mais

“legítimos”. A legitimidade do movimento está basicamente centrada na comparação

entre as formas de sofrimento, de modo a agregar exclusividade e urgência ao problema.

Outra questão que a exposição do sofrimento suscita é que ocorre um efeito de

intensificação do sofrimento nas redes sociais, pois há um efeito perverso da exposição

do sofrimento: a própria rede pode se prestar à avaliação moral dos familiares, à

propagação de pistas falsas e à produção de rumores sobre causas de desaparecimentos,

o que pode aprofundar ainda mais as aflições destas pessoas12

.

As mães produzem, em sua atuação e exposição do sofrimento, uma noção de

Estado como uma entidade que prioriza determinados problemas e os políticos como

responsáveis diretos pela resolução destes. A política institucional ou formal nem

sempre é bem vista em decorrência da experiência de apropriação desses movimentos.

Não há consenso sobre como visualizam o movimento, as formas de lidar ou resolver o

problema e tampouco as afinidades do movimento com outras causas (desde a proteção

das crianças até a redução da maioridade penal, da garantia de direitos até a eliminação

dos direitos daqueles que cometem crimes). Isso evidentemente é um dos focos de

disputa, bem como a própria imagem agregada à causa por diferentes atores sociais. A

despeito das críticas, a avaliação sobre os efeitos dessa política muitas vezes são

medidos pela repercussão do caso na mídia ou pelo reconhecimento do caso pelo poder

público (em audiências, comissões, reuniões). Nesse sentido, penso que a noção de

reconhecimento é imprescindível para compreender a politização do sofrimento.

Nas redes sociais, além das pessoas que vivenciam o drama há muito tempo, há

também o pronunciamento de pessoas que recentemente tem seus parentes ou

conhecidos desaparecidos. Nestes casos a família mobiliza a opinião pública através da

12

Com o passar do tempo elas alegam que aprendem a ter cautela em relação a qualquer nova informação

sobre o caso.

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descrição/exposição do caso e da vida privada do desaparecido e da família. Entretanto,

quando o desaparecido é reencontrado ou retorna, nem sempre aqueles que

acompanham as buscas ou mobilizam suas redes na divulgação de perfis ficam sabendo

sobre a motivação para esses desaparecimentos, o que coloca o desaparecimento em um

limite muito tênue entre a exposição pública e a privacidade da família. Sobretudo em

casos de grande repercussão, a privacidade da família acaba sendo totalmente exposta, e

a reação do público vai desde a compaixão até as críticas ao modo como esta

desempenha seus papéis tradicionais de pai/mãe.

3 O repertório das narrativas da ausência e do sofrimento

Compreender o sofrimento das famílias que vivenciam a ausência e a busca de

seus parentes é uma difícil tarefa, tanto quanto o é “fotografar o silêncio”, como dizia o

poeta Manoel de Barros13

. Nem todas as mães conseguem transpor seu sofrimento para

a esfera pública, o que contribui com a invisibilidade deste14

. Além disso, embora

corporificado este não é palpável através do corpo15

, o que limita sua compreensão.

Ivanise certa vez disse: “tristeza também mata”, alegando que já havia “perdido” pelo

menos nove mães com problemas cardíacos. A associação entre o sofrimento e o órgão

do corpo humano (coração) não é gratuita. A depressão também é uma constante entre

13

“O fotógrafo”. In.: Barros (2007: p.11). 14

Ross (2001) alude à relação entre o discurso e o silêncio a partir de testemunhos de mulheres nos

tribunais da verdade e reconciliação na África do Sul a partir de 1995. A autora defende que há uma

dificuldade de ouvir e dar atenção a histórias de dor e perda, pois seria necessário reconhecer o

significado do silêncio para comunicar certos tipos de experiência. Ross alega que, nas audiências, a

comissão responsável em ouvir os testemunhos se amparava em leis que davam ênfase às experiências

corporificadas e visíveis de sofrimento, tais como o sequestro, a tortura e o assassinato. Ela alega que as

narrativas das mulheres são feitas em termos das rupturas da domesticidade, entendida como metáfora da

vida familiar, demonstrando as dificuldades de manutenção de suas famílias diante da atuação do Estado

contra os seus membros masculinos. 15

Coker (2004) analisa como a experiência do trauma e do deslocamento entre refugiados sudaneses no

Cairo são expressas através de descrições, narrativas e metáforas de doença. Os refugiados sobrevivem

em um contexto de diferenças religiosas, raciais, costumes e linguagem, em um limbo cultural e

econômico, uma vez que o Egito é um país de trânsito para refugiados enquanto aguardam a transferência

para um terceiro país. O modo como narram ou como o corpo narra a doença por meio de metáforas

assinalam como os sudaneses articulam seu sentimento de perda e ruptura – econômica, social, física e

política. Na experiência dos refugiados todas as dimensões temporais devem ser reaprendidas, pois o

repertório cultural tem de ser recriado a partir do caos. O corpo e suas doenças são partes inseparáveis do

ambiente, por isso a experiência de fragmentação social e geográfica é experimentada a partir de males

corporais e dores físicas.

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essas mães, que muitas vezes se utilizam de medicação controlada para tratar os

sintomas de suas doenças “invisíveis”16

.

Kleinman & Kleinman (1997) argumentam que a abordagem ao sofrimento não

pode ter como objetivo a sua naturalização ou essencialização, uma vez que este se

inscreve em uma relação complexa entre o indivíduo e a sociedade. Para os autores a

contribuição da Antropologia tem sido a de situar a experiência dos sujeitos que sofrem

e especificar de maneira mais abrangente possível as situações que produzem o mesmo.

Nesse sentido, evita-se a armadilha da apropriação profissional do sofrimento, no qual

ou se ignoram as vozes dos sujeitos, descontextualizando sua experiência; ou foca-se

em sua subjetividade, exotizando e despolitizando este sofrimento. Na politização do

desaparecimento, trata-se de chamar a atenção para o fato de que o sofrimento

individual e coletivo é produzido por um problema político complexo, ou como alude

Victora (2011) por políticas e economias da vida17

.

Kleinman (1997) alerta para a apropriação autorizada do sofrimento coletivo, ou

a redução do sofrimento pela análise profissional. A transformação do problema em

casos policiais reduz a compreensão do sofrimento familiar em hipóteses e pré-

julgamentos morais sobre as vítimas. O sofrimento está presente não apenas na

experiência da dor, que se expressa no adoecimento do corpo, mas também se refere a

como os próprios processos que deveriam servir para amenizar o sofrimento, conforme

Kleinman (1997) se tornam eles mesmos potencializadores deste, sobretudo em relação

ao tratamento dado ao problema pelo Estado, com destaque para a ausência de

normatização jurídica acerca do fenômeno e de políticas públicas integradas e eficazes

que atuem na busca de pessoas desaparecidas.

A principal queixa dos familiares diz respeito à cultural policial tradicional como

entrave para a família na busca pelo desaparecido, pois estes profissionais encaram o

16

Segundo Oliveira (2012), quando ocorre o desaparecimento a família se vê diante de um esgotamento

financeiro e psíquico. Do evento decorrem transformações econômicas, como gastos na busca ou o

desamparo pela ausência da renda do desaparecido, quando este era o provedor da família; socioculturais

(preocupação com a segurança e vigilância dos espaços) e psicológicas (convivência com a situação do

desaparecimento). Ele argumenta que do evento podem decorrer a ruptura das relações como os

casamentos, desagregação familiar e que o fenômeno atinge a vizinhança e a comunidade. A falta de

recursos torna as pessoas impotentes, dificulta a militância (viagens) e a divulgação dos casos. 17 Não se trata de um sofrimento individual, embora na maioria das vezes se faça visível como tal, ou de

um sofrimento corporal, embora se manifeste, como argumentado ao longo desse artigo, de forma

corporificada. Como uma experiência sociocultural, existe como uma condensação corporificada do

tempo histórico, ou seja, o sofrimento social é social não somente porque é gerado por condições sociais,

mas porque é, como um todo, um processo social corporificado nos sujeitos históricos (Victora, 2011: p.

3-4).

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12

desaparecimento como uma questão menor por não ser tipificado como crime (Oliveira,

2012). Na visão destes policiais, os desaparecimentos são causados por conflitos

familiares, são, portanto, responsabilidade da família18

(Ferreira, 2013). Não é a toa que

nesse cenário parentes e organizações ligadas à causa devem lidar cotidianamente com o

assédio e a promessa de detetives particulares.

Oliveira (2012) argumenta que do ponto de vista jurídico o desaparecido civil19

não existe, pois as categorias jurídicas existentes no Código Civil até 1991 são as

figuras do “ausente” e do “desaparecido”. O “ausente” é uma categoria utilizada quando

não se tem certeza da morte ou informação alguma sobre a pessoa; esta se destina a

resolver basicamente a gerência dos bens da pessoa desaparecida, minimizando as

situações de risco que a pessoa possa estar envolvida. Já o “desaparecido” atesta uma

presunção de morte e está relacionada não só a gerência como a transferência dos bens

da pessoa. Entretanto, esta categoria fere as expectativas familiares, pois presume a

morte do desaparecido. Isso significa que o problema se situa em um “limbo” jurídico,

que também prejudica o andamento da vida dos familiares, como veremos adiante.

Outra dimensão do problema está associada à política das estatísticas sobre

desaparecidos, que embora ajudem a divulgar ainda mais o fenômeno diante da opinião

pública, também se prestam a mensurar o sofrimento. É possível supor que os números

divulgados não correspondam à realidade do fenômeno, já que a subnotificação é uma

constante em relação ao desaparecimento. Como as delegacias não possuem sistemas

integrados, não há garantia que uma pessoa desaparecida em uma cidade faça parte de

um cadastro estadual ou, menos ainda, nacional, já que o cadastro existente no Brasil

não é atualizado pela maioria das delegacias.

A ausência de dados específicos sobre o fenômeno do desaparecimento no país

também limita nossa compreensão sobre o problema. Mas cabe indagar: definidos os

18

Oliveira (2012) destaca que a cultura da espera das 24/48 horas ainda é muito comum nas delegacias,

mesmo no caso de crianças e adolescentes, a despeito da lei de busca imediata e da constatação de

agências nacionais e internacionais que, nos casos de homicídio contra crianças subtraídas, eles ocorrem

nas três primeiras horas e meia do desaparecimento. Segundo o autor, a recusa em investigar está na

lógica da própria segurança em priorizar provas de “crimes”. Os desaparecimentos recebem registro, mas

não investigação. 19

Oliveira (2012) argumenta que no direito internacional os desaparecidos políticos têm um estatuto

jurídico (Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra os Desaparecimentos Forçados ou

Involuntários, promulgada pela ONU em 1952) e a nível nacional uma lei que regula as reparações às

violações, além de organizações e instrumentos legais. No caso das catástrofes ou acidentes existem

organizações de ajuda humanitárias. No caso do ausente, existem soluções para a transmissão dos bens.

Mas no caso do desaparecido, quando não há provas sobre a existência de um crime não há como lidar

com a situação, não há nada a fazer.

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13

números20

, no que eles acrescentam ao problema da métrica do sofrimento? (Fassin,

2009). Dado o número alarmante de desaparecidos, porque eles não produzem o efeito

desejado de uma política integrada sobre o problema? Qual é o efeito dos números na

mobilização e resolução das causas de desaparecimentos?

A discussão sobre a relevância dos números restringe a compreensão do

problema, pois se atém apenas à dimensão quantitativa do desaparecimento, que pode

aumentar ou diminuir de acordo com as circunstâncias, mas transforma o sofrimento em

uma medida abstrata quantificável e comparável. Estes dados também servem como

argumento político de secretarias de segurança. Dado que uma parte representativa dos

desaparecidos retorne por conta própria, nem sempre os índices de resolução das

delegacias estão intimamente relacionados à prioridade dada às investigações.

3.1 “Todas as portas que eu encontrei fechadas”

Poucas histórias resumem tanto o drama das famílias de pessoas desaparecidas

como o de Sandra. Na primeira vez que conversamos pessoalmente sua história me

deixou muito comovido. O modo como ela articulava sua dor e a simplicidade artesanal

de suas estratégias de mobilização corroborava a construção da narrativa do

desaparecimento de sua filha. As datas21

, os acontecimentos, hipóteses sobre as causas,

informações sobre o caso fazem parte da complexa construção da memória de sua filha

e das rupturas e transformações do laço familiar decorrentes deste evento. Sua forma de

atuação é basicamente um projeto de lei que sintetiza todas as instâncias do poder

público pelos quais ela passou e que não recebeu a devida resposta, ou “todas as portas

que eu encontrei fechadas”.

A narrativa de Sandra suscita a reflexão de como os pesquisadores conseguem

efetivamente compreender a dimensão do sofrimento dessas pessoas. Embora elas

próprias verbalizem de maneira reiterada e durante muitos anos o seu sofrimento há

uma dificuldade de apreensão deste, entretanto, conforme proposição de Kleinman &

20

Segundo estimativa da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, no Brasil,

aproximadamente 200 mil pessoas desaparecem por ano (Oliveira, 2007). Não me proponho aqui a

discutir a probabilidade desta estatística representar a realidade do problema no país. 21

A data, as circunstâncias e as hipóteses sobre a causa do desaparecimento são requisitos básicos na

narrativa do desaparecimento.

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Kleinman (1991), trata-se de entender o sofrimento a partir da experiência dos próprios

sujeitos.

Sandra mora em um bairro de classe baixa, próximo do centro da cidade de

Carapicuíba, interior de São Paulo, em uma casa alugada. O discurso de Sandra tem

uma lógica concatenada e a sua performance vai sendo reiterada nos contínuos

programas de televisão, entrevistas, relatos e depoimentos em redes sociais que

participa e na interlocução com políticos, órgãos e servidores públicos. É uma narrativa

consistente e objetiva em seus exemplos, que conta a sua história a partir do

desaparecimento da filha.

Ana Paula, sua filha, tinha 23 anos. Ela diz que a pessoa que a “pegou” fez isso

no portão de sua casa, ao sair para o trabalho, em um sábado às 5:30h da manhã, pois

ela tinha sempre a mesma rotina há um ano. Por iniciativa própria, Sandra teve acesso

às imagens das câmeras de segurança da região. Pelas câmeras é possível saber que “ela

não desceu do ônibus” que pegava todos os dias, e que ela não usou o transporte público

naquele dia. Chegando na delegacia o policial lhe disse: “noventa por cento do trabalho

da polícia a senhora já fez”. Ela complementa: “todos os lugares que você vai eles não

sabem te responder [...] um bando de gente entra no IML [Instituto Médico Legal] como

indigente”.

Sandra alega que fez uma queixa no DHPP22

no domingo e na segunda-feira foi

a uma delegacia em Barueri e o investigador teria perguntado “do que que a senhora tá

falando? [...] tem que ver lá [onde fez a queixa]”. Portanto, não havia nenhuma forma de

saber sobre um caso que estivesse registrado em outra delegacia, muito menos o DHPP

tinha informação de outros estados. O investigador disse: “o Paraná nem sabe do

desaparecimento de sua filha, nem a cidade ao lado”. Ela se refere às mães como

“órfãos de pai e mãe [do Estado]”, mencionando o tratamento nas delegacias, ela

complementa: “você senta na calçada e chora”, “quem tá fora se recusa a entender”.

Ela descreve o seu projeto como um apanhado “das portas que eu encontrei

fechadas”, pois seria um conjunto de ações que ela tomou a partir do desaparecimento

da filha e que lhe foram negadas. Ela diz que seu projeto tem legitimidade porque “você

não passou [pela dor], eu sou vítima, eu sou a pessoa mais indicada”. Além disso, o

projeto não teria “interesse político”, pois serviria para “sarar ou amenizar a dor” dos

familiares.

22

Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa- DHPP de São Paulo.

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15

Sandra elenca o seu itinerário institucional, a dificuldade para fazer o boletim de

ocorrência, a negativa para a quebra de sigilo telefônico23

da filha e para o exame de

material genético, pois o banco disponível é somente para desaparecidos até 13 anos24

.

Além disso, nem o acesso à movimentação financeira da conta bancária da filha foi

possível pelos meios disponíveis. Sandra diz que a filha acabou sendo “dispensada por

justa causa” em decorrência do suposto “abandono do emprego”.

Uma das iniciativas de Sandra era tentar comprovar que o caso de Ana Paula

fosse considerado um acidente de trabalho, pois ocorreu durante o deslocamento ao

mesmo. Entretanto, ela não conseguiu esse direito porque a declaração de “ausente”

leva dois anos e a de morte presumida (“desaparecimento”) leva três anos, enquanto que

o direito ao acidente de trabalho perde a validade em dois anos. Uma de suas críticas

dela também se refere à priorização ou politização do caso de desaparecimentos de

crianças e adolescentes em detrimento do esquecimento sobre os casos de adultos.

Sandra narra seu interesse pela internet quando a filha desapareceu, pois via o

apelo das redes sociais como o “Orkut”: “eu comecei por desespero”, mas “não sabia

nem ligar o computador”. Ela disse que passava as madrugadas no computador, depois

participou de programas de televisão e também estudou leis e projetos durante dois

anos, além do itinerário recorrente das mães pelos espaços públicos e lugares inóspitos

da cidade25

. Depois que a filha desapareceu, ela se desligou do emprego para procurá-la.

Sandra conta hoje com muitos voluntários que ela mobiliza e que aderem à causa

confeccionando materiais de divulgação para conscientizar as pessoas, coletando

assinaturas para o seu abaixo-assinado, promovendo caminhadas e pressionando os

órgãos públicos a dar respostas sobre o tema.

Sandra se diz muito decepcionada com os inúmeros documentos e proposições,

promessas políticas advindas de reuniões e encontros sobre o tema, pois boa parte

destas diretrizes nunca havia sido implementada de fato. Ela alega que o único caminho

seria a lei de iniciativa popular proposta por ela, uma vez que “é o povo que tá pedindo”

e que “só existe uma chance”. Ao se referir ao modo como a população adere às causas

23

Como não havia indícios de crime, não seria possível ter acesso à quebra de sigilo telefônico. 24

Isso significa que “toda vez que encontram um corpo, faz o DNA de novo [...] não tem banco para

acondicionar [o material genético]”. 25

As narrativas de mães incluem praças, viadutos, regiões violentas da cidade, matas fechadas nos mais

diversos horários do dia. Muitas dessas iniciativas são suscitadas por informações ou pistas falsas sobre o

paradeiro dos filhos. A frustração diante dessas situações acaba sendo aos poucos naturalizada no

cotidiano das buscas.

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16

sociais ela resume com uma frase “a gente vai conseguir lutar, vai vender pelo rótulo e

não pelo conteúdo”, ou seja, a imagem é mais importante do que a causa em si, dando

como exemplo a repercussão da novela “Salve Jorge” em torno do tema do tráfico de

pessoas. Sandra sempre deixou claro que para os casos como o dela, nos quais se

poderia apenas cogitar causas, a única coisa que restava fazer é buscar o

reconhecimento da dor dos que permanecem. E por isso a política pública deveria ser

pensada para os desaparecidos e não para as causas de desaparecimentos.

Ela conta que um dia deu uma entrevista a um repórter e quando terminou ele

fez uma pergunta a ela: “o que te leva a não desistir?”. O repórter teria feito a pergunta

porque geralmente “as outras [mães] se calam...choram” diante dessa situação. Ele

explicou que ela não morre de “ruindade”, pois como já havia me dito, era uma pessoa

muito ruim, no sentido de ser combativa. Ela prossegue: “eu vivi até 2009”, e comenta

que quando alguém liga de um telefone diferente “antes de atender você gela”. Sandra

diz que sempre espera que a filha chegue pelo portão de casa, mas não sabe como

reagiria.

Quando Ana Paula for encontrada não é apenas a vida da filha que é nova, mas

também as transformações decorrentes da mlitância: a busca incessante a partir de uma

investigação própria, o desemprego, o aprendizado dos recursos da internet, a busca

pela exposição do desaparecimento da filha, as viagens e participações em

universidades, eventos públicos e o contato com delegacias e gestores públicos.

Duas imagens ficaram presentes em sua narrativa. A primeira diz respeito a

minha indagação sobre o quarto da filha desaparecida, uma vez que percebia que a

abordagem midiática aos casos de desaparecimento comumente destacava a imagem do

quarto intacto dos filhos mantido pelos pais, evidência da continuidade da vida dos

filhos na memória da família. Entretanto, ela contou que o filho teria cadeado o quarto,

uma vez que as lembranças de alguém que estava tão próximo eram difíceis de lidar.

Não foi apenas a resposta, mas sua imobilização e silêncio diante da pergunta que talvez

tenha mostrado que a imagem da filha estava tão viva quanto aquele dia 3 de outubro de

2009. A segunda imagem diz respeito ao modo como a filha caçula de 26 anos encarava

a ausência da irmã: ela queria acreditar que o fato das duas irmãs não se ver mais estava

relacionado ao desencontro de horários.

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E por fim, a imagem daquela mulher forte em seus argumentos, mas muito

fragilizada26

diante das circunstâncias me deixou bastante comovido. O que me chocou

talvez tenha sido a dose de lucidez de Sandra e a forma como ela sintetizava o

sofrimento de milhares de famílias no Brasil. É a partir dessa narrativa que Sandra

consegue mobilizar sua legião de amigos e colaboradores, por meio dessas imagens

familiares rompidas.

A militância é por si mesma a criação do desaparecimento como fenômeno

social, como realidade objetiva, a construção da dor como legítima, a readequação da

política de direitos a partir desta realidade - a criação do desaparecimento como

categoria jurídica. Nesse sentido, cabe indagar por que este problema social tem maior

visibilidade quando destaca suas causas27

? (como o tráfico de pessoas).

Não nos cabe indagar sobre o próprio ponto de vista do desaparecido, sobre sua

autonomia ou sua escolha, pois faríamos também o mesmo tipo de especulação que

pauta a abordagem do problema como caso policial, mas sim como ele vai sendo

produzido, reproduzido e transformado na experiência temporal das famílias.

Sandra se refere à situação das mães “a gente não tem a certeza”, “não tem a

mãe que espera encontrar [os filhos] sem vida”, “eu tenho a certeza de que ela está viva

e que eu vou encontrá-la”. É certo que mesmo depois que políticas eficientes possam ser

implementadas pelo Estado não podemos esquecer que a luta de Sandra é pelo

reencontro com a filha, como muitas vezes as mães avaliam as iniciativas públicas na

área, ou seja, nos termos da resolução de seus casos.

3.2 Tempo e sofrimento

A noção de parentesco e gênero se torna relevante para pensar quem deve e

quem tem legitimidade para denunciar e tornar público esse sofrimento que, ao mesmo

26

Das (2008a) empreende uma relação entre viuvez e vulnerabilidade na Índia depois do período da

partição em 1947. A autora conta a história de Aisha, uma viúva no universo do parentesco dos hindus de

castas superiores. Ela argumenta que Aisha não era vítima, mas expressava a condição das mulheres neste

contexto de ter que conciliar obrigações para com o parentesco em uma situação de disputa por recursos

econômicos escassos. Aisha se vê diante de uma situação na qual as regras sociais a impedem de se

colocar como sujeito dentro do parentesco. Das observa que o tempo acaba sendo um destruidor das

relações, pois o parentesco é pensado como projetivo, o sujeito se pensa no presente a partir de seu lugar

social no futuro. 27

Paradigmático é o fato de que dois dos casos de maior repercussão no Brasil não se tratam de um

desaparecimento. O caso do menino Carlinhos de 10 anos (sequestrado em sua casa no Rio de Janeiro em

1973) e de Pedrinho (subtraído na maternidade em Brasília, em 1986 e encontrado em 2002) se tratam

respectivamente de crimes de sequestro e subtração de incapaz (Oliveira, 2012).

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tempo em que expressa a dor de se encontrar em uma posição socialmente instituída (a

de mãe) é também a dor de atualizar a memória do desaparecido. Isso não significa que

a família como um todo não sofra com o desaparecimento, mas que existem formas

sociais instituídas de reconhecimento deste.

Entre essas mães é constante a queixa sobre amigos, conhecidos, por vezes

parentes, que as incitam a esquecer o desaparecimento ou mudar o tom de sua luta. É

como se a elas fosse negado o direito de se prender à memória dos filhos, uma afronta

ao modo como essas habitam o mundo (Das, 2008a28

), no qual a presença dos filhos se

faz viva na memória e na ação política. A mobilização pela busca do desaparecido é por

si mesma a demonstração de que o vínculo permanece, que não se desfaz com o

desaparecimento e que essa ruptura deve ser marcada através do que significa: um não-

lugar simbólico. A luta é uma forma de simbolizar esse não-lugar, mas também de

reconhecê-lo.

Das (2008b) argumenta que momentos de ruptura afetam a segurança ontológica

dos sujeitos. O desaparecimento afeta diretamente a vida dos familiares dos

desaparecidos, pois o fenômeno é imprevisível. Através da análise de narrativas de

familiares pode-se perceber que eles definem esse momento a partir da ideia de que eles

“perderam o chão” ou foram levados a uma situação de vazio ou incompletude, como se

a vida estivesse paralisada. Nas palavras de Sandra: “é uma parte da gente que tá

anestesiada”, ou “o desaparecimento tem um começo, mas não tem um fim”.

Cabe indagar, portanto, sobre o sentido de temporalidade presente nesse

discurso, pois embora o tempo do sujeito que sofre tenha se transformado, o lugar que o

sujeito desaparecido ocupa se coloca em suspenso. Na experiência dos familiares o

fenômeno do desaparecimento parece menos aleatório do que é, pois ele se torna um

aspecto central do cotidiano das famílias, o que pode gerar queixas de outros filhos, por

exemplo.

A relação entre a busca/memória e o esquecimento do desaparecido obedece a

critérios de legitimidade que se constituem, ao mesmo tempo, como individuais e

sociais. Se para as mães lembrar causa dor, esquecer causa culpa. Não cabe aqui

28

Se, conforme Vena Das (2008a), o sofrimento é uma condição implícita ao habitar o mundo, a ausência

do filho é descrito como a interrupção da vida ou fala/denuncia a morte das relações. A narrativa mais

comum é a da mãe que deixou de viver a partir do desaparecimento do filho. De fato, como mãe ela

deixou de existir, pois sem um dos lados da relação ela mesma deixa de existir, senão inteiramente pelo

menos como “um pedaço”, como elas comentam.

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distinguir entre a dimensão consciente ou inconsciente da representação desse

sofrimento, mas que ela é tanto uma justificativa moral para com o desaparecido, quanto

o é para a sociedade como um todo. O sofrimento das mães já estava inscrito

socialmente mesmo antes existir como experiência individual. Isso significa que separar

o indivíduo de sua dor é o mesmo que cindi-lo como sujeito, pois não se trata de uma

competência psicológica, mas sim do modo como essas pessoas passam a habitar o

mundo a partir destas rupturas no laço familiar.

Cabe ressaltar que a ausência paterna da busca dos filhos desaparecidos é mote

para avaliações morais, uma vez que a busca é um critério de demonstração social de

afeto e que a suposta desistência paterna assinalaria sua negligência. A crença comum,

na fala das mães, é que o pai esqueceria mais facilmente o filho desaparecido, o que

indicaria na visão delas uma falta de consideração para com os mesmos. Penso que este

dado implica menos em desmazelo paterno, mas indica que a busca é também uma

justificativa social, mesmo que inconsciente, de que o filho ainda é alvo de investimento

no tempo.

4 Considerações finais

Kleinman & Kleinman (1991) tratam da transformação profissional da

experiência do sofrimento que consiste em uma operação de distorção do mundo moral

daquele que sofre (o paciente no caso da medicina) a partir de um comentário que não

deixa de ser moral e político, pois despolitiza os processos nos quais a doença está

inserida. Os autores propõem uma Antropologia do sofrimento para resgatar a qualidade

existencial da doença a partir de uma etnografia da experiência. Eles alertam para o fato

de que a própria Antropologia não está imune a esta transformação quando não

privilegia a experiência das pessoas que sofrem ou reduzem sua explicação a diferenças

culturais. Em relação aos familiares de desaparecidos, o discurso profissional calcado

nos perfis de familiares ou de casos tende a despolitizar o sofrimento dos familiares.

Motivado por vezes pelo discurso policial de tentar compreender a realidade do

desaparecido ou da sua família (como responsável), muitas vezes o desaparecimento

não é encarado como um problema para os que ficam. Na experiência de sofrimento das

famílias estas se colocam como vítimas, ao contrário do que se supõe no discurso

policial, de que a vítima é apenas o desaparecido. Até que ponto eu posso, como

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20

pesquisador, deslegitimar o sofrimento de pessoas como Sandra na busca pela

compreensão das causas genéricas do desaparecimento? Não só porque não há dados

confiáveis para a compreensão do fenômeno, mas também porque esses dados muitas

vezes são produzidos pelas práticas policiais, que incidem antes em filtros da realidade

social. Tomar o discurso dela como exceção ou ver apenas uma causalidade, o tráfico de

pessoas, seria o mesmo que despolitizar sua luta.

O desaparecimento se confunde com as causas do desaparecimento, é muito fácil

tomar o todo pela parte, ou como diz Sandra ficar com a forma e não com o conteúdo.

Até que as circunstâncias do desaparecimento tenham sido descobertas nós temos

apenas o desaparecimento, a menos que haja provas, todo o resto trata-se de

especulação. A falta de sensibilidade e compreensão sobre o tema no país alimenta

suposições de como um fenômeno multicausal, complexo e ao mesmo tempo específico

pode ser resolvido a partir de imagens simplificadas da realidade social. A própria

constituição de conhecimento sobre o tema no país impede que se elabore um

diagnóstico mais apropriado sobre como compreender e lidar com ele. Nesse sentido, as

narrativas familiares colocam em xeque o modo como o desaparecimento é construído

como problema social, o que nos faz refletir sobre as categorias que utilizamos para

compreender a experiência do outro.

Esse sofrimento como uma condição existencial atesta uma ruptura imposta ao

modo como estes sujeitos habitam o mundo e convida, nos mesmos termos do

sofrimento individual (as relações familiares), a sociedade como um todo a dele

partilhar, transformando-o em uma busca.

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