Tolstoi-A-Fuga-do-Paraiso-Pavel-Bassinski.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • Todos nos fazemos de valentes um perante o outro e esquecemos que ns todos, a no ser queestejamos amando, somos lastimveis, muito lastimveis. Mas fazemo-nos de valentes,fingimos ser to bravos e confiantes em ns, que apanhamos com isso, tomando frangosdoentes por terrveis lees...

    Da carta de Tolsti a V. G. Tchertkov

  • Sumrio

    1 | Partida ou fuga?2 | O paraso perdido3 | Snietchka e o diabo4 | Com a touca na cabea5 | Um novo russo6 | Querido amigo7 | De quem a culpa?8 | O belo dolo9 | Excomunho e testamento10 | Chuva de gelo

    EplogoLista de fontes

  • Prefcio

    Um relato pleno de tenso, suspense e emooElena Vssina

    Lanado na Rssia em 2010, quando todo o mundo celebrava o centenrio da morte do grandeautor russo, o livro de Pvel Bassnski, intitulado Tolsti A fuga do paraso, logo se tornouum best-seller, surpreendendo todos com grandes tiragens que se esgotaram em poucassemanas. De acordo com a crtica, que no poupou elogios, tratava-se de um livroarrebatador, cativante, estupendo, emocionante... um livro que responde a muitas questespalpitantes. E, em seguida, o sucesso o consagrou, sendo-lhe conferido o prmio GrandeLivro, a mais importante honraria literria russa. Durante a cerimnia de entrega do prmio,Pvel Bassnski confessou que estava feliz por poder compartilhar o prmio com Tolsti. Eno podia ser diferente, pois o protagonista do livro de Bassnski o prprio Lev Tolsti autor de Guerra e paz, o romance que sempre lidera a lista de dez melhores obras da literaturauniversal.

    O conde Lev Nikolievitch Tolsti nasceu em 28 de agosto (9 de setembro) de 1828, emIssnaia Poliana, propriedade familiar de sua me, princesa Maria Volknskaia, e foi criado nomeio da alta sociedade russa. Sua primeira novela autobiogrfica, Infncia, foi publicada em1852, e logo, com 24 anos de idade, Tolsti foi consagrado como um dos jovens escritoresmais promissores e talentosos. Em 1862, o conde casa-se com a jovem, bonita e admiradaSfia Bers e comea a desfrutar da mais completa felicidade conjugal na paradisaca IssnaiaPoliana. Os filhos nasciam, um atrs do outro (Sfia deu luz treze filhos), e a condessaajudava Tolsti em sua criao literria passando a limpo milhares e milhares de pginas demanuscritos. Ainda jovem, o autor de Guerra e paz (1869) e de Anna Karnina (1877)conheceu extraordinria fama internacional. Suas obras foram amplamente traduzidas eeditadas no mundo inteiro. Tolsti mantinha correspondncia e recebia em sua casa (que, nofinal do sculo XIX e incio do sculo XX, tornou-se uma espcie de Meca artstica eespiritual) escritores, msicos, filsofos e artistas, dentre os quais figuravam aspersonalidades mais conhecidas da poca. Parecia que o conde Tolsti j tinha alcanado tudocom que se pode sonhar: o reconhecimento unnime de seu talento literrio e o amor da

    1

  • esposa, dos filhos, de seus camponeses e dos leitores... E, de repente, o escritor fica abaladopor uma profunda crise espiritual: confessa que s pensava em suicdio. Em 1879, Tolstiescreve uma obra autobiogrfica, Confisso, que relata com impressionante sinceridade a via-crcis das tormentas e dvidas existenciais que tinha experimentado e como, no fim,conseguiu encontrar o caminho da iluminao espiritual, o que o fez mudar sua vidadrasticamente. Primeiro, o escritor quer se livrar de toda a propriedade e, principalmente, dosdireitos autorais que eram estimados em uma fortuna verdadeiramente fabulosa por volta de10 milhes de rublos de ouro. A condessa nunca conseguiu entender esse desejo to excntricode seu marido de abrir mo de todos os bens, nem chegou a compartilhar o anseio de Tolstide levar uma vida o mais simples possvel, igual de um campons russo, e tampouco quisaceitar os novos amigos do marido, seus seguidores os tolstostas. A partir da, comeou a seaprofundar o conflito familiar que instigaria Tolsti a fugir da casa onde viveu praticamentetoda a vida e do casamento com a mulher com quem fora casado por 48 anos...

    exatamente esse episdio que se torna o ponto de partida para o livro de Bassnski: Nanoite de 27 a 28 de outubro de 1910, no pequeno municpio de Krapvenski, provncia de Tula,aconteceu um fato extraordinrio at mesmo para um lugar to incomum, como IssnaiaPoliana, propriedade do mundialmente famoso escritor e pensador conde Lev NikolievitchTolsti. O conde, de 82 anos de idade, fugiu s escondidas de sua casa, tomando rumodesconhecido, acompanhado de Makovtski, seu mdico particular. A fuga de Tolsti deIssnaia Poliana terminou dez dias depois, com a morte do escritor na manh de 7 (20) denovembro, na estao de trem de Astpovo. Foram esses dez ltimos dias de Tolsti que, sob apena de Bassnski, resultaram em um relato pleno de tenso, suspense e emoo.

    Apesar de conhecermos vrios detalhes sobre os ltimos anos da vida de Tolsti, existeum enigma no que se refere sua fuga. Como disse Bassnski em uma de suas entrevistas, athoje, o fato de, aos 82 anos de idade, Tolsti ter fugido de casa continua um mistrio... como aconstruo das pirmides do Egito.

    Alm de Tolsti, os principais personagens do livro so: sua esposa, sua filha mais nova,Aleksandra, ou Sacha (uma incondicional protetora do pai nas brigas familiares), e seu fiel emais prximo seguidor, Vladmir Tchertkov, que se tornou um inimigo mortal de Sfia,causando inmeros conflitos entre o casal Tolsti. Contudo, no a busca por culpados o quedirige a narrativa de Bassnski; ao contrrio, uma tentativa de entender as razes humanas detodos os participantes desse drama, das pessoas que amavam, embora cada um sua maneira,Tolsti com sinceridade e paixo. Para Bassnski, foi exatamente o encadeamento dascircunstncias familiares o que levou Tolsti a fugir de casa. Ele sabia que no deveria partir,que seria um ato muito cruel em relao esposa. Mas no pde no fugir... A tragdiaocorrida em 1910 a tragdia de um homem excessivamente doce, meigo, de idade bem

  • avanada, que cedia a todos. Porque ele realmente amava a todos e cuidava de todos.O livro de Bassnski pertence ao gnero da literatura documental, ou seja, no admite

    fico e se baseia na investigao de documentos e fatos reais: antes de tudo, dos dirios deTolsti, que, escritos desde seus dezoito anos at sua morte, representam um grandiosodocumento de autoconhecimento humano. Igualmente importantes para Bassnski so acorrespondncia do escritor e os dirios de seus familiares e das pessoas prximas: da esposa,de sua filha Aleksandra, do secretrio Bulgkov e do mdico Makovtski. A vida de Tolsti foidocumentada escrupulosamente. Calcula-se que, entre os contemporneos do escritor, cerca devinte pessoas que o acompanharam durante seus ltimos anos mantinham dirios e anotavamcada palavra e cada gesto dele. Alm disso, Tolsti era uma figura visada por toda a imprensada poca. Sua filha Aleksandra testemunha: Os Tolsti no tinham aquilo que tovalorizado por qualquer famlia, no tinham vida privada. Eles viveram sob observao detodos, numa redoma.

    E a fuga de Tolsti de Issnaia Poliana e seus ltimos dias em Astpovo agitaram nosomente a imprensa russa, mas tambm a internacional, que registrava cada passo do escritor.Parecia que todos (incluindo o czar, os ministros, a polcia secreta, a Igreja...) acompanhavamTolsti em seus ltimos dias.

    No por acaso que vrios artigos e reportagens publicados em jornais da poca tambmserviram de material precioso para a composio do livro de Bassnski.

    Imenso corpus documental de e sobre Tolsti, o livro integra diferentes e, s vezes,opostos pontos de vista, compondo uma polifonia de vozes. E todas as vozes relatam nosomente a fuga de Tolsti de Issnaia Poliana, mas tambm o desejo desesperado deabandonar o mundo mundano.

    Bassnski constri sua narrativa com uma maestria mpar. Apesar de insistir no termoreconstruo dos acontecimentos, vemos que o escritor nos prope a sua prpria viso, seuolhar subjetivo. O mais importante a escolha dos fatos e sua composio, ou, se quiserem, amontagem dos fatos que serve para expressar sua ideia autoral. A construo do livro, apoiadanuma montagem quase cinematogrfica, permite vrios flashbacks da vida de Tolsti, desde asua juventude, e, ao mesmo tempo, ajuda-nos a interligar os fatos biogrficos aos principaismotivos literrios do escritor, pois a sua prpria vida, s vezes, parece mais intensa e maisimprevisvel em suas crises e inesperadas mudanas do que os enredos de seus romances.

    O livro de Bassnski poderia ser compreendido como uma biografia conceitual: a palavra-chave da biografia a fuga, e exatamente pelo prisma da ltima fuga rumo morte naestao de Astpovo que Bassnski tenta entender a vida de Tolsti. Por isso, ao comear acontar a histria dele pelo fim, a narrativa, muitas vezes, volta ao incio da vida do escritor,tentando encontrar nela as provas da ideia, ou melhor, do sonho de fuga que, na viso de

  • Bassnski, sempre existira no imaginrio de Tolsti e ficou personificada em vriospersonagens e motivos de suas obras.

    Tolsti A fuga do paraso cria uma imagem do escritor que, de maneira implcita,dialoga com os prprios personagens tolstoianos que passam pela crise espiritual, pelaaspirao a uma nova vida pura e consciente. Sabe-se que os personagens das obras tardias deTolsti ganham a oportunidade de romper radicalmente com o que h de material e deingressar em um mundo de liberdade (Bassnski introduz em seu livro vrias citaes dasobras de fico de Tolsti). A conquista de liberdade est ligada a um enorme esforo devontade, negao de condicionamentos sociais e, em geral, de tudo o que imposto aoindivduo pelas formas externas sua existncia. E a fuga de Tolsti que terminou na estaode trem de Astpovo se baseia tambm nessa ideia de afastamento do mundo material, deliberdade espiritual em forma de renncia a tudo o que morto e imvel, na busca de umcaminho que conduza imortalidade.

    Enfim, em cada pgina deste livro podemos perceber a imensa dimenso dapersonalidade genial de Tolsti, que , realmente, inesgotvel. Se, depois de lerem Tolsti Afuga do paraso, os leitores sentirem o desejo de conhecer mais a vida e a obra do escritor,acredito que um dos objetivos do livro de Bassnski ter sido alcanado.

    As notas da tradutora esto identificadas por (N. da T.), e as notas do autor, por (N. do A.). A transliterao dos nomes depersonagens russos foi feita com a preocupao de guardar a maior proximidade possvel com sua pronncia original.Quando da meno de ttulos ou personagens de obras literrias russas, buscou-se levar em considerao as ediesexistentes em portugus, sem com isso, no entanto, reproduzir grafias ou verses que, no julgamento da tradutora,constituem equvoco. Sempre que houve tal avaliao, a opo foi por apresentar ao leitor brasileiro uma retraduo dooriginal.

    1 Como a Rssia adotou o calendrio gregoriano somente em 1918, de praxe que todas as datas histricas russasanteriores a 1918 sejam informadas em dois formatos: primeiro, como no calendrio juliano (antigo), e depois, entreparnteses, segundo o calendrio gregoriano (atual), sendo que a diferena entre esses dois calendrios de treze dias.

  • 1Partida ou fuga?

    Na noite de 27 para 28 de outubro de 1910, no pequeno municpio de Krapvenski, daprovncia de Tula, aconteceu um fato incrvel, extraordinrio, mesmo para um lugar toincomum, como Issnaia Poliana, propriedade do mundialmente famoso escritor e pensadorconde Lev Nikolievitch Tolsti. O conde, de 82 anos de idade, fugiu s escondidas de suacasa, tomando rumo desconhecido, acompanhado de Makovtski, seu mdico particular.

    OS OLHOS DOS JORNAIS

    O meio informativo daquela poca no se diferenciava muito do de hoje. A notcia sobre oescandaloso acontecimento espalhou-se instantaneamente na Rssia e no mundo inteiro. Nodia 29 de outubro comearam a chegar telegramas urgentes da cidade de Tula AgnciaTelegrfica de Petersburgo (ATP) e, no dia seguinte, as notcias saam publicadas nos jornais.Foi recebida a notcia que surpreendeu a todos, dizendo que L. N. Tolsti, acompanhado dodoutor Makovtski, abandonou inesperadamente Issnaia Poliana e partiu. L. N. Tolsti deixouuma carta, comunicando que abandona Issnaia Poliana para sempre.

    Nem Makovtski, seu companheiro de viagem, sabia sobre essa carta, escrita por Tolsti esposa, que estava dormindo, e que foi entregue a ela pela filha caula, Sacha. Ele tomouconhecimento disso pelos jornais.

    O jornal de Moscou Rsskoie Slovo foi o mais expedito de todos. No dia 30 de outubropublicou a reportagem do correspondente do jornal com informaes detalhadas sobre o quehavia acontecido em Issnaia Poliana:

    Tula. 29.10.1910. (urgente). Voltando de Issnaia Poliana, comunico os pormenores dapartida de Lev Nikolievitch Tolsti.Lev Nikolievitch partiu ontem, s 5 horas da manh, quando ainda estava escuro.Lev Nikolievitch entrou no quarto dos cocheiros e mandou atrelar os cavalos.O cocheiro Adrian cumpriu a ordem.Quando os cavalos estavam prontos, Lev Nikolievitch e o doutor Makovtski, com asmalas, feitas ainda de madrugada, dirigiram-se estao de Schkino.Na frente ia o carteiro Filka, iluminando o caminho com uma tocha.Na estao de Schkino, Lev Nikolievitch comprou a passagem at uma das estaes da

    2

    3

    4

  • ferrovia Moscou-Kursk e partiu no primeiro trem que passou.De manh, quando em Issnaia Poliana ficaram sabendo da sbita partida de LevNikolievitch, houve uma confuso terrvel. O desespero de Sfia Andrievna, esposa deLev Nikolievitch, indescritvel.

    Essa notcia, da qual o mundo inteiro falava no dia seguinte, foi impressa na terceira eno na primeira pgina. A primeira pgina, de acordo com o costume da poca, continhapropaganda de mercadorias de toda a sorte:

    Vinho So Rafael o melhor amigo do estmago, Esturjo, tamanho mdio, 20copeques a libra. Ao receber o telegrama noturno de Tula, o Rsskoie Slovo, no mesmoinstante, enviou o seu correspondente para a casa dos Tolsti em Khamvniki (hoje Casa-Museu L. N. Tolsti, entre as estaes de metr Park Kultury e Frnzenskaia). O pessoal dojornal esperava que, talvez, o conde tivesse fugido de Issnaia Poliana para sua propriedadeem Moscou. Porm, escreveu o jornal, na velha casa senhorial dos Tolsti reinava o silncioe a tranquilidade. Nada indicava que Lev Nikolievitch tivesse voltado casa paterna. Osportes estavam trancados. Dentro da casa todos estavam dormindo.

    No encalo de Tolsti, pelo rumo suposto da fuga, foi enviado um jovem jornalista,Konstantin Orlov, crtico teatral, filho do adepto da filosofia de Tolsti, professor enarodovlets, Vladmir Fidorovitch Orlov, retratado no conto O sonho e na novela No hculpados no mundo. Ele alcanou o fugitivo j na cidade de Kozelsk e secretamenteacompanhou-o at a povoao de Astpovo. De l, por telegrama, comunicou a SfiaAndrievna e seus filhos que Tolsti estava gravemente enfermo e encontrava-se noentroncamento ferrovirio, na casa do chefe da estao, I. I. Ozlin.

    No fosse a iniciativa de Orlov, os parentes teriam sabido do paradeiro do desenganadoTolsti somente depois que a notcia tivesse sado em todos os jornais. preciso dizer o quodoloroso teria sido isso para a famlia? Por essa razo, diferentemente de Makovtski, quejulgou a atuao do jornal Rsskoie Slovo como a dos tiras, a filha mais velha de Tolsti,Tatiana Lvovna Sukhtina, ficou grata at a morte ao jornalista Orlov, segundo consta emsuas memrias.

    Meu pai est morrendo em algum lugar e eu no sei onde ele se encontra. No possocuidar dele. Talvez nunca mais o veja. Ser que vo me permitir ao menos dar uma olhadanele no leito de morte? Uma noite em claro, uma verdadeira tortura, recordava depois TatianaLvovna o seu estado emocional e de toda a famlia aps a fuga (expresso dela) de Tolsti.Mas encontrou-se um homem, por ns desconhecido, que entendeu e se apiedou da famliaTolsti. Mandou-nos o telegrama: Lev Nikolievitch est em Astpovo, na casa do chefe daestao. Temperatura 40 C.

    Em geral, deve-se reconhecer que, em relao famlia e, sobretudo, a Sfia Andrievna,

    5

  • os jornais tinham o comportamento mais comedido e delicado do que em relao ao fugitivode Issnaia Poliana, cujos passos eram seguidos impiedosamente, embora soubessem que nobilhetinho de despedida Tolsti havia pedido: no procur-lo! Por favor, no venha mebuscar, se descobrir onde estou, escreveu ele esposa.

    Em Belev, Lev Nikolievitch foi ao buf e comeu uma fritada de ovos, saboreavam osjornalistas um ato modesto do vegetariano Tolsti.

    Eles interrogavam o seu cocheiro, Filka, lacaios e camponeses de Issnaia Poliana, oscaixas e os copeiros das estaes, o cocheiro que levou Tolsti de Kozelsk ao mosteiro deptina e todos que poderiam comunicar alguma coisa sobre o roteiro do ancio de 82 anos,cujo nico desejo foi fugir, desaparecer, tornar-se invisvel para o mundo.

    No o procurem!, exclamava cinicamente o jornal Odsskie Nvosti, dirigindo-se famlia. Ele no seu, ele de todos!

    Certamente, seu novo paradeiro logo ser descoberto, declarava friamentePeterbrgskaia Gazeta.

    Tolsti no gostava de jornais (embora os acompanhasse) e no escondia isso. Outracoisa Sfia Andrievna, a esposa do escritor, compreendia perfeitamente que, quisesse ouno, o renome do marido e dela prpria era formado pelas publicaes jornalsticas. Por issoela se comunicava com os jornalistas com boa vontade, dava entrevistas, explicando umas eoutras esquisitices da conduta de Tolsti, ou de suas declaraes, no esquecendo tambm (eesse foi o seu ponto fraco) de assinalar o seu papel ao lado do grande homem.

    Por isso, o relacionamento dos jornalistas com Sfia Andrievna era, pode-se dizer,cordial. O tom geral foi dado pelo jornal Rsskoie Slovo de 31 de outubro, ao publicar o artigoSfia Andrievna, de Vlas Dorochvitch. O velho leo foi morrer na solido, escreviaDorochvitch. A guia voou para to longe de ns; quem somos ns para seguir o seu voo?!

    (Seguiam, e como seguiam!)Ele comparava Sfia Andrievna com Iasodara, a jovem mulher de Buda. Foi, sem

    dvida, um cumprimento, porque Iasodara era impecvel nos cuidados com seu marido. Noentanto, as ms lnguas comparavam a mulher de Tolsti no com Iasodara, mas com Xantipa,esposa do filsofo grego Scrates, a qual, supostamente, aborrecia o marido com a suarabugice e falta de compreenso da concepo de mundo dele.

    Com justia, Dorochvitch afirmava que, sem a mulher, Tolsti no teria tido a vida tolonga nem escrito as obras do ltimo perodo.

    (Alis, o que isso tem a ver com Iasodara?)Do folhetim tira-se a seguinte concluso: Tolsti um super-homem e seu

    comportamento no pode ser julgado pelas normas comuns. Sfia Andrievna uma mulhersimples, mundana, que fazia tudo o que podia para seu marido enquanto ele era simplesmente

    6

    7

    8

  • homem. Mas a rea super-humana inacessvel para ela e nisso que est a sua tragdia.Sfia Andrievna est sozinha. Ela no tem mais a sua criana, o seu ancio criana, o

    seu tit criana, de quem precisa cuidar e pensar a cada minuto: ser que est bem agasalhado,no sente fome, est bem de sade? No h para quem dar sua vida gota a gota.

    Sfia Andrievna leu o folhetim. E gostou. Ela ficou grata ao jornal Rsskoie Slovo peloartigo de Dorochvitch e pelo telegrama de Orlov. Por isso podia no dar ateno a pequenascoisas, como a descrio desagradvel de sua aparncia dada pelo mesmo Orlov: O olharvago de Sfia Andrievna expressava seu tormento interno. Sua cabea tremia. Trajava umroupo, vestido com negligncia. Podia perdoar a vigilncia da casa de Moscou, a publicaomuito indecente do valor que a famlia pagou pelo aluguel do trem especial de Tula atAstpovo 492 rublos e 27 copeques e a aluso transparente de Vassli Rsanov fuga dafamlia que, de qualquer maneira, Tolsti conseguiu realizar: O prisioneiro escapou docalabouo fino.

    Correndo os olhos pelas manchetes dos jornais, que lanavam luz sobre a partida deTolsti, constatamos que as palavras foi embora apareciam raramente.

    PARTIU SUBITAMENTE..., DESAPARECEU..., FUGIU..., TOLSTI QUITS HOME... E no porque osjornalistas queriam atiar os leitores, em absoluto. O acontecimento em si j era escandaloso. que as circunstncias do desaparecimento de Issnaia Poliana realmente faziam pensarmuito mais numa fuga do que numa partida solene.

    O PESADELO NOTURNO

    Em primeiro lugar, isso ocorreu durante a madrugada, quando a condessa estava dormindoprofundamente.

    Em segundo, o roteiro de Tolsti era to secreto que ela soube da localizao do maridosomente no dia 2 de novembro, pelo telegrama de Orlov.

    Em terceiro (o que no sabiam nem os jornalistas nem Sfia Andrievna), esse roteiro ou, ao menos, o seu destino final era desconhecido do prprio fugitivo. Tolsti sabia de ondee do que ele fugia, mas, para onde se dirigia e onde estaria seu ltimo abrigo, ele no s nosabia como procurava nem pensar a respeito.

    Nas primeiras horas da partida, somente Sacha, filha de Tolsti, e sua amiga Feokrtovasabiam que ele pretendia visitar a irm, freira Maria Nikolievna Tolstaia, no convento deChamrdino. Mas mesmo isso era duvidoso na madrugada da fuga.

    Voc fica, Sacha, disse-me ele. Eu a chamarei dentro de alguns dias, depois quedecidir para onde vou. E o mais provvel que irei ver a Mchenka, em Chamrdino,recordava A. L. Tolstaia.

    De madrugada, ao acordar primeiro o doutor Makovtski, Tolsti nem lhe deu essa

    9

    10

  • informao.Mas o principal que ele no disse ao mdico que deixava Issnaia Poliana para sempre,

    e sim Sacha.Nas primeiras horas, Makovtski acreditava que eles iriam a Ktcheti, na fronteira das

    provncias de Tula e de Oriol, para a propriedade de M. S. Sukhtin, genro de Tolsti. Nosltimos dois anos Tolsti havia ido para l vrias vezes, sozinho e com a mulher, salvando-seda afluncia de visitantes a Issnaia Poliana. L entrava em frias, como ele mesmo dizia.

    Em Ktcheti morava sua filha mais velha, Tatiana Lvovna. Diferentemente de Sacha, elano aprovava a vontade do pai de se separar da me, embora estivesse do lado do pai noconflito entre eles. Em todo caso, no seria possvel se esconder de Sfia Andrievna emKtcheti. J o refgio em Chamrdino seria menos previsvel. Embora o aparecimento deTolsti excomungado num convento ortodoxo no fosse menos escandaloso do que a prpriafuga.

    E, finalmente, l Tolsti podia contar inteiramente com o apoio e o silncio da irm.O pobre Makovtski no entendeu logo de cara que Tolsti estava decidido a ir embora de

    casa para sempre. Pensando que eles iam a Ktcheti por um ms, Makovtski no levouconsigo todo o seu dinheiro. E no sabia que a soma de que dispunha Tolsti no momento dafuga atingia apenas cinquenta rublos em sua agenda e uns trocados no porta-moedas. S nomomento da despedida de Sacha que Makovtski ouviu Tolsti falar em Chamrdino. E,somente quando os dois estavam na caleche, Tolsti comeou a se aconselhar com ele: aondepoderiam ir para ficar mais longe?

    Tolsti sabia quem levar consigo como companheiro. Precisava ter a ndole impassvel ea devoo de Makovtski para no se desnortear nessa situao. No mesmo instante,Makovtski props ir Bessarbia, para a casa do operrio Gussrov, que morava l com afamlia em seu prprio terreno. Lev Nikolievitch no me respondeu.

    Foram estao de Schkino. Em vinte minutos, passaria o trem para Tula, e dentro deuma hora e meia, para Gorbatchevo. De Gorbatchevo o caminho a Chamrdino seria maiscurto, mas Tolsti, receando que Sfia Andrievna acordasse e o alcanasse, props ir a Tulapara despist-la. Makovtski dissuadiu-o: em Tula os dois seriam reconhecidos na hora! Forama Gorbatchevo...

    Convenhamos que isso pouco parecido com uma partida. Alis, ao pequeno-burgus,no se sabe por que, agrada mais pensar que Tolsti simplesmente pegou e foi embora:obrigatoriamente a p, numa noite escura, com a mochila nas costas e o bordo na mo. E,tratando-se de um velho de 82 anos, embora forte, mas muito doente, sofrendo de desmaios,perda de memria, arritmia cardaca e dilatao de veias nas pernas! O que pode haver de belonisso? No entanto, justamente essa imagem da partida de Tolsti que aquece at hoje os

  • coraes pequeno-burgueses.No livro de Ivan Bnin A libertao de Tolsti , so citadas com admirao as palavras

    escritas por Tolsti em sua carta de despedida: Fao aquilo que habitualmente fazem osvelhos de minha idade: vo embora da vida da comunidade para viver seus derradeiros dias norecolhimento e no silncio.

    Habitualmente fazem os velhos?Sfia Andrievna tambm reparou nessas palavras. Mal se refazendo do primeiro choque,

    causado pela fuga do marido, ela comeou a lhe escrever cartas com splicas para quevoltasse, contando com a intermediao de terceiros na entrega da correspondncia. E, nasegunda carta que Tolsti no chegou a ler, ela lhe objetou: Voc escreve que os velhos voembora da comunidade. Mas onde voc viu isso? Os velhos camponeses vivem seusderradeiros dias no leito da lareira, no seio da famlia, com os netos, e o mesmo acontecenas famlias nobres e outras. Ser que natural um velho fraco se afastar dos cuidados e doamor dos filhos e netos que o cercam?.

    Ela no tinha razo. A partida dos velhos e at das velhas era comum nas famliascamponesas. Iam embora em peregrinao ou simplesmente para morar numa casinhaseparada. Iam embora para no incomodar os jovens, no serem reprovados por comer umpedao de po a mais, quando a participao nos trabalhos domsticos e de campo tornava-sej impossvel. Iam embora quando na casa alojavam-se pecados: bebedeiras, discrdias,relaes sexuais no convencionais. Iam embora sim. Mas no fugiam de madrugada daesposa velha com a concordncia e o apoio da filha.

    Voltemos quela noite fatal de 28 de outubro e acompanhemos passo a passo a partida deTolsti.

    Anotaes de Duchan Makovtski:

    De madrugada, s 3 horas, L. N., de chinelos e sem meias, com uma vela, acordou-me; orosto com expresso de sofrimento, emocionado e resoluto:Resolvi partir. O senhor vai comigo. Vou subir, venha tambm, mas no acorde SfiaAndrievna. No vamos levar muita coisa, somente o mais necessrio. Dentro de trs dias,Sacha vai se encontrar conosco e levar o que for preciso.

    O rosto resoluto no significava sangue-frio. Era a resoluo antes do pulo de umdespenhadeiro. Como mdico, Makovtski assinala: Estava nervoso. Tomei seu pulso: 100.O que era o mais necessrio para a partida de um velho de 82 anos? Nisso Tolsti pensavamenos do que em qualquer outra coisa. O que o preocupava eram os seus dirios, que Sachadevia esconder de Sfia. Ele levou consigo uma caneta-tinteiro e agendas. Das roupas e dasprovises estavam cuidando Makovtski, Sacha e sua amiga Varvara Feokrtova. Verificou-se

    11

    12

  • que juntaram muitas coisas mais necessrias. Precisaram de mais uma mala, uma malagrande, a qual seria difcil de pegar sem fazer barulho e no acordar Sfia Andrievna.

    Entre o dormitrio de Tolsti e o de sua mulher havia trs portas. De noite, Sfiadeixava-as abertas para poder acordar com qualquer sinal alarmante do quarto do marido. Elaexplicava isso, dizendo que, se de madrugada ele precisasse de ajuda, com as portas abertasela ouviria. Mas a causa principal era outra. A mulher temia a fuga noturna de Tolsti. Haviaalgum tempo, a ameaa tornara-se real. Pode-se at mencionar a data, quando ela pairou no arde Issnaia Poliana. Isso aconteceu no dia 15 de julho de 1910. Aps uma discussotempestuosa com o marido, Sfia passou a noite em claro e, pela manh, escreveu-lhe estacarta:

    Livotchka, querido, escrevo porque, depois de uma noite sem sono, difcil falar,estou agitada demais e por isso posso novamente afligir todos vocs, mas eu quero, queromuitssimo ficar tranquila e sensata. Nessa madrugada ponderei tudo e eis o que ficoupenosamente claro: com uma mo voc me acariciou e com a outra mostrou-me a faca. Aindaontem senti vagamente que essa faca j tinha ferido meu corao. Essa faca uma ameaa, emuito resoluta, de quebrar sua promessa e partir s escondidas, deixando-me, se eu continuarassim como sou agora... Significa que todas as noites, como a de ontem, eu vou me pr escuta: ser que voc foi embora? Toda vez que sua ausncia for mais prolongada, eu vou meatormentar, pensando que voc me deixou para sempre. Pense, querido Livotchka, pois suapartida e sua ameaa so iguais a uma ameaa de assassinato.

    Enquanto Sacha, Varvara e Makovtski faziam as malas (agamos como conspiradores,recordava Feokrtova, apagvamos as velas ao ouvir qualquer rudo do lado do quarto deSfia Andrievna), Tolsti fechou bem todas as trs portas que levavam ao dormitrio de suamulher e conseguiu tirar a mala sem fazer barulho. Mas, mesmo nela, no houve espaosuficiente, e ento da manta e do casaco foi feita uma trouxa, e ainda havia uma cesta comprovises. Tolsti no esperou o fim dos preparativos. Ele tinha pressa de ir acordar ococheiro Adrian e ajud-lo a atrelar os cavalos.

    Partida? Ou fuga...Do dirio de Tolsti:... estou indo estrebaria para mandar atrelar; Duchan, Sacha e Vria esto terminando

    a embalagem. Escurido, no se enxerga nada, extravio-me da vereda que leva casa dosfundos, caio no matagal, espeto-me, choco-me contra as rvores, levo uma queda, perco ogorro, no o encontro, a muito custo consigo sair, volto para a casa, pego um gorro, a lanterna,chego at a estrebaria, mando atrelar. Vm Sacha, Duchan e Vria. Estou tremendo espera daperseguio.

    Aquilo que, 24 horas depois, quando essas linhas eram escritas, parecia-lhe ser um

    13

    14

  • matagal, do qual ele tinha sado a muito custo, era o jardim de macieiras, percorrido porTolsti em todos os sentidos.

    Os velhos costumam fazer isso?Ficamos arrumando as coisas por cerca de meia hora, recordava Aleksandra Lvovna.

    Meu pai j comeava a se agitar, apressava-nos, mas as nossas mos tremiam, noconseguamos apertar as correias das malas e fech-las.

    Aleksandra Lvovna tambm notou a resoluo no rosto do pai. Eu j esperava a partidadele, esperava todos os dias e a qualquer hora, e no obstante, quando ele disse vou-meembora, isso me surpreendeu como algo novo, inesperado. Nunca vou esquecer a sua figurano vo da porta, de camisa, com uma vela na mo, e o seu rosto iluminado e belo, cheio deresoluo.

    O rosto resoluto e iluminado, escrevia Feokrtova.Mas no nos deixemos seduzir. Era uma noite alta de outubro, quando nas casas do

    interior, sejam camponesas ou senhoriais, no se enxerga a prpria mo levada aos olhos. Eum velho de roupa clara, com uma vela junto ao rosto, aparece de repente no limiar da porta isso impressionaria qualquer um!

    Certamente, a fora do esprito de Tolsti era fenomenal. Mas isso diz mais sobre a suacapacidade de no se perder em situao alguma. O amigo da casa, o msico AleksandrGoldenweiser, lembrou-se de um caso: num dia de inverno, ele e Tolsti foram de tren a umaaldeia, a nove verstas de Issnaia Poliana, para entregar mantimentos a uma famliacamponesa que passava necessidades.

    Quando estvamos nos aproximando da estao Zasseka, comeou uma pequena nevasca,que se tornava cada vez mais forte, e ns acabamos nos extraviando do caminho. Ao vagarum pouco, vimos, no longe, uma guarita, e nos dirigimos a ela. Quando chegamos, trs ouquatro pastores alemes enormes saram correndo com um latido raivoso e cercaram oscavalos. Confesso que senti um pavor... L. N. passou-me as rdeas com um gesto resolutoe disse-me: Segure. Levantou-se, desceu do tren, ululou alto e, valentemente, sem ternada nas mos, foi direto contra os ces. E, de repente, os terrveis ces se aquietaram devez e abriram-lhe caminho, como a um potentado. L. N. passou por entre elestranquilamente e entrou na guarita. Naquele minuto, ele, com sua barba esvoaada, pareciaser um heri de contos da carochinha mais do que um velho fraco de 82 anos...

    E tambm na madrugada de 28 de outubro, o autocontrole no o abandonou. Eleencontrou os ajudantes que vinham com as malas no meio do caminho. Havia muita lama, osps escorregavam, e ns caminhvamos com dificuldade naquela escurido, recordavaAleksandra Lvovna. Perto da casinha dos fundos, apareceu uma luzinha azul. Meu pai vinha

    15

  • ao nosso encontro.

    Ah, so vocs, disse ele, desta vez cheguei bem. J esto atrelando. Irei na frente,iluminando o caminho para vocs. Oh, por que deram a Sacha as coisas mais pesadas?,dirigiu-se ele em tom de censura a Varvara Mikhilovna. Pegou a cesta de minha mo, foicarregando-a, e Varvara Mikhilovna ajudou-me a carregar a mala. Meu pai ia na frente,apertando e soltando o boto da lanterna, e tudo ficava ainda mais escuro. Meu pai eraeconmico e, como sempre, teve pena de gastar energia eltrica.

    Foi Sacha quem o convenceu a levar a lanterna depois da vagueao do pai no pomar.Porm, quando Tolsti estava ajudando o cocheiro a atrelar o cavalo, suas mos

    tremiam, no lhe obedeciam, e ele no conseguia fechar uma fivela do arreio. Depois,sentou-se num canto da cocheira, em cima de uma mala, e perdeu o nimo.

    As mudanas bruscas de seu estado de nimo acompanhariam Tolsti por todo o percursode Issnaia Poliana at Astpovo, onde ele viria a falecer na madrugada de 7 de novembro de1910. A resoluo e a conscincia (convico) de que agia da nica maneira correta eramsucedidas pela falta de fora de vontade e o agudssimo sentimento de culpa. Por mais que eletivesse se preparado para a partida (e ele se preparava havia 25 anos!), compreensvel queno estivesse pronto para ela espiritual ou fisicamente. Podia, quantas vezes quisesse,imaginar essa partida em sua cabea, mas j nos primeiros passos concretos, como durante avagueao em seu prprio pomar, acabava encontrando surpresas para as quais nem ele nemseus companheiros estavam preparados.

    Mas por que seu estado resoluto dentro de casa transformou-se em desnimo na cocheira?As malas estavam feitas (em duas horas simplesmente surpreendente!) e os cavalos, quaseprontos, e at a libertao faltavam apenas alguns minutos. Mas ele perdeu o nimo.

    Alm das causas fisiolgicas (dormiu pouco, estava agitado, perdeu-se no pomar, ajudoua carregar coisas no caminho escuro e escorregadio), existe mais uma circunstncia, que spode ser entendida a partir de uma ideia clara da situao por inteiro. Se Sfia Andrievnativesse acordado enquanto eles faziam as malas, seria um escndalo ensurdecedor. Mas umescndalo entre quatro paredes. Uma cena na presena dos confidentes. Essas cenas eramcostumeiras e, nos ltimos tempos, j haviam se tornado constantes em Issnaia Poliana. Mas, medida que Tolsti afastava-se do lar, em sua partida envolviam-se cada vez mais novaspessoas. Acontecia exatamente aquilo que menos desejava Tolsti. Ele tinha virado umabolinha de neve que crescia e se transformava numa bola enorme, e isso acontecia a cadaminuto de seu deslocamento no espao.

    Seria impossvel partir sem acordar o cocheiro Adrian Blokhin. E ainda precisavam docavalario Filhka (Fillip Borssov, de 33 anos), para que ele, a cavalo, iluminasse com uma

  • tocha o caminho frente da caleche. Quando Tolsti estava na cocheira, a bola de nevecomeou a crescer e crescer, e a cada minuto a impossibilidade de parar esse crescimentotornava-se maior. Ainda dormiam tranquilamente os gendarmes, jornalistas, governadores,eclesisticos... Nesse momento, o prprio Tolsti no podia imaginar quantas pessoas,voluntria ou involuntariamente, se tornariam cmplices de sua fuga, at mesmo ministros,bispos, Stolpin e Nikolai II.

    Certamente ele no podia deixar de entender que desaparecer de Issnaia Polianaimperceptivelmente no daria certo. At Fidor Protssov, de O cadver vivo, que simulousuicdio e acabou desmascarado, no conseguiu desaparecer imperceptivelmente. Mas no nosesqueamos de que, alm de O cadver vivo, Tolsti escreveu Padre Srgio e Memriaspstumas do ancio Fidor Kuzmitch. E se no momento de sua partida alguma ideia o aquecia,era esta: uma pessoa famosa, desaparecendo, dilui-se no espao humano, torna-se um dessesmenores, imperceptvel a todos. Existe a lenda sobre ele, e existe ele separadamente. E noimporta o que se tenha sido no passado: czar russo, milagreiro famoso ou grande escritor. Oimportante que nesse instante voc se torna uma pessoa simples e comum.

    Quando Tolsti estava na cocheira sentado na mala, de caft e colete acolchoado porbaixo e um gorro velho de malha de l, ele parecia bem munido para realizar seu antigo sonho.Mas... Essa hora, 5 horas da manh, a hora entre o lobo e o co. Esse mido e frio fim deoutubro o pior tempo na Rssia entre as estaes. Essa insuportvel aflio da espera,quando o incio da partida foi dado, as paredes familiares foram abandonadas e j no hcaminho de volta, mas... Os cavalos ainda no esto prontos, Issnaia Poliana ainda no foiabandonada. A mulher que lhe deu treze filhos, dos quais sete esto vivos e deram luz vinte etrs netos; e nas costas dessa mulher ele colocou toda a sua gigantesca economia, todos osseus negcios editoriais referentes s obras literrias; a mulher que vrias vezes copiou porpartes seus dois principais romances e uma enorme quantidade de outros trabalhos, quepassava noites sem dormir na Crimeia, quando nove anos antes ele estava morrendo, porqueningum alm dela poderia fazer os tratamentos mais ntimos essa pessoa, a mais prxima,podia acordar a qualquer momento, ver as portas fechadas e a desordem no quarto dele ecompreender que aquilo que ela temia mais do que qualquer outra coisa no mundo haviaacontecido.

    E havia acontecido? No precisa ser grande fantasiador para imaginar o aparecimento deSfia Andrievna na cocheira no momento em que o marido, com as mos trmulas, fechava afivela do arreio no cavalo. Isso j no seria uma situao tolstoiana, mas puramente gogoliana.No era toa que Tolsti gostava e no gostava do conto de Ggol A caleche, no qual oterra-tenente provinciano Pifagor Pifagrovitch Tchertoktski esconde-se dos convidados nacocheira e descoberto da maneira mais constrangedora. Para ele, o conto foi escrito

    16

    17

  • magnificamente, mas a brincadeira absurda. Porm, o conto no nada engraado. A visitado general cocheira, onde o franzino Tchertoktski est encolhido sob uma capa de couro, a visita do prprio Destino que apanha o homem no momento em que ele est menospreparado. Como o homem deplorvel e impotente perante o Destino!

    Memrias de Sacha:De incio, meu pai apressava o cocheiro, depois se sentou num canto da cocheira, em

    cima de uma mala, e perdeu o nimo: Eu sinto que a qualquer momento ns seremos apanhados e, ento, tudo estar perdido.

    No vai dar para escapar do escndalo.

    A FRAQUEZA DE TOLSTI

    Muitas coisas no estado de nimo de Tolsti, tanto no momento da fuga como antes e depoisdela, explicam-se tambm por uma coisa to simples como a delicadeza. Criador, filsofo,colosso de sabedoria, por seu feitio continuava sendo um fidalgo russo, no mais elogiososentido da palavra. Nesse complexo espiritual, infelizmente perdido h muito tempo, entravamconceitos tais como a limpidez moral e fsica, a impossibilidade de mentir descaradamente, defalar mal de uma pessoa em sua ausncia, o receio de ferir os sentimentos de algum com umapalavra imprudente ou de simplesmente ser desagradvel s pessoas. Na juventude, por causada inteligncia e do temperamento indmitos, Tolsti pecava contra essas qualidades inatas ouensinadas pela famlia, e ele mesmo sofria com isso. Mas, com a idade avanada, alm dosprincpios de amor e compaixo pelas pessoas, manifestava-se nele cada vez mais a averso atudo que vil, sujo, escandaloso.

    Durante todo o seu conflito com a mulher, Tolsti foi quase impecvel. Ele se condoapor ela, cortava todas as maledicncias a seu respeito, mesmo quando sabia da justeza dessaspalavras. Na medida do possvel, e at do impossvel, obedecia s suas exigncias, s vezes asmais absurdas, suportava seus desatinos, alguns at monstruosos, como chantagem envolvendosuicdio. Mas no mago do comportamento dele, que surpreendia e at irritava seuspartidrios, no estavam princpios abstratos, mas o feitio do velho fidalgo e de um admirvelvelho que doentiamente sofre por qualquer briga, discrdia ou escndalo.

    E esse velho, secretamente, de madrugada, empreende aquilo que seria o mais terrvel mulher. Isso no a faca, sobre a qual escreveu Sfia Andrievna. Isso um machado!

    Portanto, o sentimento mais forte que Tolsti experimentava na cocheira era o medo.Medo de que sua mulher acordasse, sasse correndo de casa e o apanhasse sentado na mala,perto da equipagem que ainda no estava pronta... E no seria possvel evitar um escndalo,uma cena pungente, dilacerante e que se tornaria o crescendo daquilo que estava acontecendoem Issnaia Poliana nos ltimos tempos.

    18

  • Ele nunca fugiu das dificuldades... Nos ltimos anos, ao contrrio, dava graas a Deusquando era submetido a provaes. Humildemente, aceitava qualquer aborrecimento, ficavacontente quando o censuravam, mas agora ansiava que esse clice fosse afastado dele.

    Isso estaria acima de suas foras.Sim, a partida de Tolsti no foi somente a manifestao de sua fora, mas tambm de

    sua fraqueza. Ele reconheceu isso com sinceridade velhinha Maria Aleksndrovna Schmidt,amiga antiga e confidente, preceptora de escola, a mais sincera e consequente seguidoratolstosta, que acreditava em Tolsti como em um novo Cristo. Ela morava a seis verstas,numa isb em Ovsinniki, e Tolsti a visitava quando fazia passeios a cavalo. Essas visitasno s davam alegria a Maria Aleksndrovna, como eram o sentido de sua vida. Com elaTolsti se aconselhava em questes espirituais e, em 26 de outubro, dois dias antes da partida,contou-lhe a deciso, ainda no definitiva. Maria Aleksndrovna ergueu os braos:

    Lev Nikolievich, querido!, disse ela. Isso fraqueza, vai passar.Sim, respondeu ele, fraqueza.Essa conversa, baseada em palavras de Maria Aleksndrovna, foi reproduzida por Tatiana

    Lvovna Sukhtina. Porm, do dirio de Makovtski, que acompanhou Tolsti nos passeios de26 de outubro, esse dilogo no consta. A prpria Maria Aleksndrovna, em entrevista a umcorrespondente do Rsskoie Slovo, afirmou que, naquele dia, Tolsti no lhe disse nenhumapalavra sobre a partida. Mas trata-se, evidentemente, de uma inverdade, o que justificvel,pois roupa suja lava-se em casa, no na dos outros, e ela no queria abrir para o mundo inteiroo conflito familiar dos Tolsti. No secreto Dirio s para mim, de Tolsti, h uma anotao:Essa vida para mim um fardo cada vez maior. Maria Aleksndrovna contra a minhapartida, e a minha conscincia tambm no a permite.

    Nesse 26 de outubro, Makovtski notou que L. N. estava fraco e distrado. A caminhoda casa de Schmidt, Tolsti cometeu um ato mau, como ele mesmo disse: atravessou acavalo a sementeira de outono. Isso no se faz na poca da lama porque o cavalo deixapegadas fundas, o que prejudica a sementeira tenra.

    A vontade que nos d de questionar: ento voc teve pena da sementeira, mas, de suavelha mulher, no?! Infelizmente, o caminho tpico da censura a Tolsti. Assim raciocinamas pessoas que veem na fuga de Tolsti o ato do colosso de sabedoria e o correlacionam comsuas prprias ideias humanas, demasiado humanas sobre a famlia. O forte Tolstiabandonou a mulher fraca que no o acompanhou em seu desenvolvimento espiritual. Estclaro, ele um gnio, mas d pena de Sfia Andrievna, sem dvidas! Como perigoso casarcom gnios!

    Esse ponto de vista, muito difundido, quase coincide, por estranho que parea, com oponto de vista cultivado no meio intelectual, e entrou em voga graas a Bnin.

  • Tolsti foi-se embora para morrer. Foi um ato de libertao do tit espiritual de seucativeiro material. Libertao de Tolsti... Como soa bonito! Uma variante atenuada: assimcomo um animal bravio abandona o grupo, sentindo a aproximao da morte, Tolsti, ao sentira aproximao do fim inevitvel, fugiu de Issnaia Poliana. Essa tambm uma bonita versopag, publicada por Aleksandr Kuprin nos primeiros dias aps a partida.

    Mas o comportamento de Tolsti no foi o de um tit que resolveu fazer um grandiosogesto simblico. E muito menos o retiro de uma fera velha, porm forte. Foi o ato de um velhofraco e doente, que sonhou ir embora durante 25 anos. No se havia permitido, contudo,enquanto ainda tinha foras, porque considerava isso cruel em relao mulher. Mas, quandoas foras se esgotaram e as discrdias familiares chegaram ao ponto mais alto deefervescncia, ele no viu outra sada nem para si nem para os que o cercavam. Foi-se emborano momento em que, fisicamente, no estava nem um pouco preparado para isso. Quando lfora era fim de outubro. Quando nada estava pronto e at mesmo os mais fervorosos adeptosde sua partida, como Sacha, no se davam conta do que significava um velho ficar perdidonesse mundo. Justamente ento, quando sua partida quase inevitavelmente significava mortecerta, Tolsti j no tinha mais foras para permanecer em Issnaia Poliana.

    Foi-se embora para morrer? Essa explicao foi lanada pelo professor V. F. Sneguiriov,obstetra famoso, que tratava de Sfia Andrievna e inclusive havia feito uma cirurgia urgentena prpria Issnaia Poliana. No era s um excelente mdico, como tambm um homemdiscreto e de inteligncia extraordinria. Querendo alentar e consolar sua paciente, sobre aqual choviam acusaes de que fora ela a responsvel por levar o marido fuga e ao tmulo,Sneguiriov escreveu a ela uma carta extensa, na qual tentou apontar as causas objetivas dapartida de Tolsti, no ligadas famlia. A seu ver, havia duas causas.

    A primeira: a partida de Tolsti foi uma forma complexa de suicdio.Em todo caso, uma acelerao inconsciente do processo da morte.

    Durante quase toda a sua vida, ele tratou e educou seu esprito e seu corpo na mesmamedida e, com sua energia incrvel, acabou tornando-os igualmente fortes e ligou os dois,fundiu-os: no era possvel dizer onde terminava o corpo e comeava o esprito. Quemolhava atentamente para sua maneira de andar, de se sentar, de virar a cabea, sempre via aconscincia nos movimentos, isto , cada movimento era elaborado, treinado, ponderado eexpressava uma ideia... Com a morte dessa combinao to unida do esprito com o corpo,a ruptura, a separao do esprito em relao ao corpo no podia e no pode acontecertranquilamente, como ocorre com pessoas nas quais essa separao se realiza bem maiscedo... E para realizar essa separao preciso fazer um esforo desmesurado sobre ocorpo...

  • A outra explicao de Sneguiriov era puramente mdica. Tolsti morreu de pneumonia.s vezes, essa infeco acompanhada at de ataques manacos, escrevia Sneguiriov. Essasua fuga noturna no teria acontecido num desses ataques? Porque, s vezes, a infecomanifesta-se alguns dias antes da doena, i. e., antes do processo local o organismo j estinfectado. Essa pressa e a vagueao durante a viagem ajustam-se a isso...

    Em outras palavras, Tolsti estava doente na noite da partida, e a infeco j lhe afetara ocrebro.

    No o caso de tentarmos adivinhar at que ponto Sneguiriov escrevia como mdico eat que ponto ele queria simplesmente consolar a pobre Sfia Andrievna. Uma coisa evidente: na vspera e na noite da fuga, Tolsti estava fraco fsica e espiritualmente. Isso confirmado pelas anotaes de Makovtski e pelo dirio do prprio Tolsti. Ele teve sonhosperversos e confusos... Num deles, teve uma luta com a mulher, num outro, ospersonagens do romance Os irmos Karamzov, de Dostoivski, que ele estava lendo naqueletempo, misturavam-se com pessoas reais, mas j falecidas, como N. N. Strkhov.

    Menos de um ms antes da partida, Tolsti no morreu por pouco. O que aconteceu foimuito parecido com o verdadeiro fim, at as convulses agnicas e os movimentoscaractersticos das mos antes da morte. Eis como Valentin Bulgkov, o ltimo secretrio deTolsti, descreveu o episdio:

    Lev Nikolievitch ficou dormindo durante toda a tarde e, depois de o termos esperadoat sete horas, sentamos para almoar sem ele. Ao servir a sopa, Sfia Andrievna foi maisuma vez ver se Lev Nikolievitch no tinha levantado. Voltando, ela contou que, no momentoem que se aproximou da porta, ouviu um riscar de fsforo na caixinha e entrou no quarto deLev Nikolievitch. Ele estava sentado na cama. Perguntou que horas eram e se estavamalmoando. Mas Sfia Andrievna sentiu algo ruim: seus olhos pareceram-lhe estranhos:

    Um olhar inexpressivo... Isso acontece antes do ataque... Est a ponto de ter umdesmaio... Eu j sei. Seus olhos sempre ficam assim antes do ataque.

    No quarto de Tolsti, logo se reuniram Serguei Lvvitch, o filho, Ili Vasslievitch, ocriado, Makovtski, Bulgkov e P. I. Biriukov, o primeiro bigrafo de Tolsti.

    Deitado de costas, apertando os dedos da mo direita como se estivesse segurando umapena, Lev Nikolievitch passava de leve a mo pelo cobertor. Seus olhos estavamfechados, o cenho franzido, os lbios se mexiam, como se estivesse mastigando algo... Edepois... depois comearam os ataques estranhos de convulso, um atrs do outro, quefaziam todo o corpo do homem impotente, deitado na cama, tremer e se debater, jogar aspernas com tanta fora que mal dava para segur-las. Duchan segurava Lev Nikolievitchpelos ombros, Biriukov e eu massagevamos suas pernas. No total foram cinco ataques. Omais forte foi o quarto, quando o corpo de Lev Nikolievitch quase foi jogado de travs da

    19

  • cama, a cabea deslizou do travesseiro, as pernas penderam do lado da cama.Sfia Andrievna caiu de joelhos, abraou essas pernas, encostou sua cabea nelas epermaneceu nessa posio enquanto acomodvamos Lev Nikolievitch na cama.Em geral, a impresso que Sfia Andrievna causava era terrivelmente lamentvel. Elalevantava os olhos, persignava-se apressadamente e sussurrava: Meu Deus! Que no sejadesta vez, que no seja desta vez!. E fazia isso fora da presena dos outros tambm: aoentrar, por acaso, no quarto da Remington, surpreendi-a fazendo essa prece.

    Depois das convulses, Tolsti comeou a delirar, da mesma maneira como viria a delirarem Astpovo antes de morrer, pronunciando um conjunto de nmeros sem sentido:

    Quatro, sessenta, trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove...O comportamento de S. A. durante o ataque foi comovente, recordava Biriukov. Dava

    pena ver seu medo e sua humilhao. Enquanto ns, os homens, segurvamos L. N. para que asconvulses no o jogassem para fora da cama, ela caa de joelhos ao p da cama e fazia umasplica com o seguinte contedo, aproximadamente: Meu Deus, salve-me, perdoe-me, no odeixe morrer; fui eu que o levei a esse estado! Que no seja desta vez, Senhor, no o tire demim.

    O fato de Sfia Andrievna se sentir culpada durante esse ataque ela mesma reconheceem seu dirio:

    Quando, ao abraar as pernas de meu marido, ca em desespero extremo com a ideia deperd-lo, o arrependimento, o remorso, o amor louco e a splica tomaram conta de todo omeu ser, com uma fora tremenda: tudo, tudo por ele, contanto que sobreviva, ao menosdessa vez, e que melhore, para que em minha alma no restem os remorsos por ter-lhecausado todas essas aflies e perturbaes com meu nervosismo e desassossego doentios.

    Pouco antes disso, ela havia armado uma briga terrvel com Sacha e Feokrtova epraticamente expulsara a filha de casa. Sacha mudou-se ento para sua prpria casa emTelitnikovo, perto de Issnaia Poliana. Tolsti sofria muito com a separao de Sacha, aquem amava muito e em quem confiava mais do que em todos os outros familiares. Ela haviasido sua inestimvel ajudante e secretria, em p de igualdade com Bulgkov. A ruptura derelaes entre a me e a filha fora uma das causas do ataque. Elas compreenderam isso efizeram as pazes logo no dia seguinte.

    Memrias de Sacha:

    Quando desci para a antessala, soube que mame tinha vindo minha procura.Onde ela est?Na soleira.

    20

  • Eu saio e vejo minha me s de vestido.Quer falar comigo?Sim, quero dar mais um passo para a reconciliao. Perdoe-me!E ela comeou a me beijar, repetindo: perdoe, perdoe! Eu tambm lhe dei um beijo, e pedique se acalmasse.Ns continuvamos conversando no ptio. Um transeunte olhou para ns com surpresa. Eupedi para minha me entrar em casa.

    Pensemos: a verso de que Tolsti saiu de casa para morrer no seria um mito no apenassem base como tambm muito cruel? Por que no colocar as pupilas dos olhos na posionormal e ver essa questo assim como a via Tolsti? Ele saiu para no morrer. E, se morresse,no seria ao menos de mais um ataque.

    O medo de que Sfia Andrievna pudesse alcan-lo no era somente um sofrimentomoral, mas medo tambm. Esse medo passava medida que ele se afastava de IssnaiaPoliana, apesar de a voz da conscincia no se calar dentro dele.

    Quando ele e Makovtski finalmente saram da fazenda e da aldeia para a estrada,segundo escreveu o mdico, L. N., calado, triste e agitado at este momento, disse com umavoz entrecortada, como que se queixando e se desculpando, que ele no suportou e que estavapartindo s escondidas de Sfia Andrievna. E no mesmo instante perguntou:

    Aonde poderamos ir para ficarmos mais longe?Quando eles entraram no compartimento do vago de segunda classe e o trem partiu, ele

    se sentiu mais seguro, provavelmente porque Sfia Andrievna j no poderia alcan-lo, edisse em tom alegre que se sentia bem.

    Mas, ao se aquecer e tomar uma xcara de caf, disse:Como deve estar Sfia Andrievna agora? Tenho pena dela.Essa questo o torturaria at seus derradeiros momentos conscientes. E os que imaginam

    a figura moral de Tolsti dos ltimos anos entendem muito bem que ele no tinha nenhumajustificativa para a partida. Do ponto de vista dele, moral seria carregar sua cruz at o fim, aopasso que sua partida foi a libertao da cruz. Todas as conversas sobre Tolsti ter ido emborapara morrer, para se integrar ao povo, para libertar sua alma imortal, so justas para seu sonhode 25 anos e no para uma prtica moral concreta. Essa prtica exclua a perseguio egosticado sonho em prejuzo de pessoas vivas.

    Isso o torturou durante todo o caminho de Issnaia Poliana at Chamrdino, quando aindaera possvel mudar de deciso e voltar. Mas ele no mudou de deciso nem voltou, aocontrrio, fugia para cada vez mais longe e apressava seus companheiros de viagem. E esseseu comportamento o mistrio principal.

    Algumas respostas ns encontraremos nas primeiras trs cartas de Tolsti mulher,

  • escritas durante a partida. Na primeira, a de despedida, ele d nfase aos motivos morais eespirituais: ... no posso mais continuar vivendo nas condies de luxo em que tenho vivido,e fao aquilo que habitualmente fazem os velhos de minha idade: vo embora da vida dacomunidade para viver seus derradeiros dias no recolhimento e no silncio.

    Essa a explicao que poupa sua mulher. Na mesma carta, ele escreveu: Agradeo avoc por sua vida honesta nesses 48 anos comigo e peo que me perdoe por tudo aquilo de quefui culpado perante voc, assim como eu, de todo o corao, perdoo tudo de que voc possa tersido culpada perante mim.

    Alm de essa carta ser tocante no plano pessoal, cada palavra dela foi ponderada, para ocaso de vir a pblico. No foi por acaso que, antes de deix-la, Tolsti, na vspera, fez doisrascunhos, duas variantes dela. A carta serviria como um salvo-conduto para a mulher. Elapoderia sem medo mostr-la aos correspondentes (e de fato mostrava). O sentido da carta,grosso modo, foi o seguinte: Tolsti abandona no a esposa, mas Issnaia Poliana. Ele nopode mais viver em condies senhoriais, isso no coincide com sua ideologia.

    Provavelmente, Tolsti acreditava que Sfia Andrievna estaria satisfeita com essaexplicao, e no o perseguiria nem cometeria loucuras. Mas, quando soube que ela tentara seafogar no aude de Issnaia Poliana e recebeu sua carta de resposta com as palavras:Livotchka, querido, volte para casa, salve-me do segundo suicdio, ele viu que as ameaasda parte dela continuavam e decidiu se explicar, dizendo diretamente aquilo que omitira nacarta de despedida.

    A primeira variante da segunda carta, escrita em Chamrdino, ele no enviou. Era rspidademais. O nosso encontro, como j lhe escrevi, s pode piorar nossa situao; a sua, comotodos dizem e como eu tambm penso, e quanto a mim esse encontro impossvel e seriaequivalente ao suicdio, e isso sem falar da volta a Issnaia Poliana.

    O tom da carta enviada mais suave: Eu sei, sua carta foi escrita com sinceridade, masno tem o poder para cumprir aquilo que voc gostaria. E no se trata do cumprimento demeus desejos e exigncias, mas de seu equilbrio, de sua atitude serena e sensata perante avida. Enquanto no houver isso, para mim, a vida ao seu lado inconcebvel. Voltar a voc,nesse estado, significaria me recusar a viver. E eu no me considero no direito de fazer isso.Adeus, querida Snia, que Deus a ajude. A vida no brincadeira, no temos o direto dedeix-la por nossa prpria vontade, e medi-la pela durao do tempo tambm insensato.Talvez os meses de vida que nos restam sejam mais importantes do que todos os anos vividos,e preciso viv-los bem.

    Foi-se embora para morrer? Sim, caso isso seja entendido como medo de ficar para teruma morte absurda, inconsciente; aceit-la, no conceito dele, seria o mesmo que cometer osuicdio.

    21

  • Quando, em Chamrdino, Sacha lhe perguntou se ele lamentava ter agido assim commam, ele respondeu com outra pergunta: Ser que uma pessoa pode lamentar, se ela no tevecomo agir de outra maneira?.

    A explicao mais precisa de seu comportamento Tolsti deu em conversa com a irm,freira do convento de Chamrdino, ouvida pela filha dela, sobrinha e, por estranho que parea,sua consogra, Elizaveta Valerinovna Obolnskaia (Macha, a filha de Tolsti, foi casadacom Nikolai Leondovitch Obolnski, filho de E. V. Obolnskaia). E. V. Obolnskaia deixoumemrias interessantssimas sobre a me, e um dos trechos mais importantes sobre oencontro de Tolsti com Maria Nikolievna em sua cela de mosteiro, no dia 29 de outubro de1910:

    Bastava uma olhada para ver o quanto esse homem estava extenuado fsica eespiritualmente... Contando-nos sobre seu ltimo ataque, ele disse:Mais um assim e ser o fim; a morte agradvel porque um estado plenamenteinconsciente. Mas eu gostaria de morrer consciente. E chorou...A minha me fez a suposio de que Sfia Andrievna doente; ele pensou um pouco edisse:Sim, sim, evidente. E como eu deveria agir? Era preciso fazer uso da fora, mas eu nopodia, ento fui embora. E agora quero me aproveitar disso e comear uma vida nova.

    Em relao s palavras de Tolsti, transmitidas em memrias e dirios por outraspessoas, preciso ter uma atitude cautelosa e crtica. Muito crtica at, quando essas pessoasso prximas, interessadas. Somente comparando documentos diferentes que se tornapossvel encontrar o ponto de interseco e supor que a est a verdade. Mas preciso lembrarque nem o prprio Tolsti sabia dessa verdade. Eis uma anotao de seu dirio, feita em 29 deoutubro, depois da conversa com Maria Nikolievna:

    ... fiquei pensando sobre a sada para minha situao e para a situao dela e no pudeimaginar nenhuma, mas, queira ou no, haver uma outra sada e no aquela que se prev.

    A INTEGRAO AO POVO

    Desde os primeiros dias aps a partida de Tolsti, os jornais comearam a publicar suasverses do acontecimento, entre as quais havia tambm esta: Tolsti saiu para se integrar aopovo. Numa palavra, isso soava assim: oproschnie. Essa verso predominou no perodosovitico. Foi inculcada nos estudantes: Tolsti revoltou-se contra as condies sociais nasquais ele e toda a nobreza viviam, porm, no compartilhando da ideologia marxista, procedeucomo anarquista-populista foi-se ao povo no sentido literal.

    Mas o fato de essa verso ter sido legitimada pela ideologia comunista, que fazia

    22

    23

    24

  • reverncias ao heri do artigo de V. I. Lnin Lev Tolsti como espelho da Revoluo Russa,no significa necessariamente que ela seja errnea. Em todo caso, h nela muito mais verdadedo que em qualquer mito romntico, semelhante ao que afirma que Tolsti correu ao encontroda morte. A vontade de se integrar ao povo, de ser indistinguvel no meio dele, realmente era osonho de Tolsti. Como ele se sentia feliz quando, em seus passeios, saa para a estrada deKev, que passava perto de Issnaia Poliana, e deixava de ser conde, dissolvia-se na multidode peregrinos que o tomavam por um vov campons. Quantos minutos preciosos passouconversando com os camponeses de Issnaia Poliana, Ktchetov, Pirogovo, Niklski e dequalquer outro lugar onde ele tenha tido a oportunidade de estar e onde, antes de tudo,conversava com os velhos do local.

    Infelizmente, em meio aos intelectuais do sculo XX, tornou-se norma rir-se dooproschnie de Tolsti. A piada Senhor conde, o arado j est na porta, queira arar! jcausava enfado.

    Na verdade, a participao nos trabalhos de campo (lavoura, ceifa do feno, colheita), comos quais ele procurava acostumar seus filhos e no sem xito (as filhas foram as maisreceptivas), tinha para ele um sentido profundo. Isso fazia parte do complexo de autoeducao,sem o qual no haveria o fenmeno de Tolsti dos ltimos anos. Nessa imagem do grandesbio e artista genial que, de roupa camponesa, caminha humildemente com as mos no aradoh algo extraordinariamente importante para entender a essncia da vida, no menosimportante que a imagem das pirmides egpcias ou de um simples cemitrio de aldeia. No por acaso que essa imagem no precisa de traduo, ela compreensvel para qualquercultura nacional, porque expressa no o capricho de um fidalgo russo, mas a coparticipao dohomem da terra, e literalmente a encarnao da proposio bblica: Com o suor do rosto,ganhar o po de cada dia.

    ... escritor de grande pureza e santidade vive entre ns..., escreveu Aleksandr Blok noartigo O sol sobre a Rssia, para o octogsimo aniversrio de Tolsti.

    Frequentemente vem cabea: tudo est razovel, tudo ainda simples e no temvelrelativamente enquanto Lev Nikolievitch Tolsti est vivo. Pois um gnio, apenas comsua vida, parece que nos indica para que existem baluartes, pilares de granito, como quesegura em seus ombros, alimenta e d de beber a seu pas e a seu povo com sua alegria...Enquanto Tolsti vive, caminha pelo sulco com as mos no arado, atrs de sua pequenagua branca, a madrugada orvalhada, fresca, no h medo, os vampiros dormem, graas aDeus. Tolsti caminha pois o sol que caminha. E se o sol se puser, se Tolsti morrer, sefor embora o ltimo gnio, e ento?

    Essas palavras foram escritas dois anos antes da partida e da morte de Tolsti, mas nelas

  • j h esse pressentimento. O pr do sol a partida a morte. Era assim que via Blok o fim davida de Tolsti. Ele ainda no tinha como saber que tanto partida como morte aconteceriam noite, quando os vampiros no dormem. Mas significativo que, meditando sobre a mortede Tolsti, Blok no tenha podido imaginar Tolsti de outro modo que no com o arado, comona pintura de Rpin Tolsti com o arado.

    Muito menos Blok tinha como saber que, inicialmente, Tolsti no pretendia sair comrumo desconhecido, a primeira variante da partida tinha um destino bem definido: uma isbcamponesa.

    De 20 a 21 de outubro de 1910, em Issnaia Poliana, esteve hospedado um conhecido deTolsti, campons da provncia de Tula, Mikhail Petrvitch Nvikov. Os dois haviam seconhecido em 1885, em Moscou, quando Nvikov, de 26 anos, trabalhava como escrivo numestado-maior. Seu caminho de entusiasmo revolucionrio com as ideias de Tolsti no foraoriginal naquela poca. Mas Tolsti reparou nele e fez uma anotao em seu dirio sobre avisita do jovem ardoroso, sincero e temerrio. Nvikov levara a Tolsti um processo secretodo estado-maior sobre o fuzilamento de operrios na fbrica de Korznkin, em Iaroslavl.Tolsti pediu-lhe persuasivamente que levasse o processo de volta e o colocasse no mesmolugar. No obstante, um ms depois, Nvikov foi preso, no pelo extravio do processo secretodo estado-maior, mas sim pelo mesmo motivo que, exatamente meio sculo depois, levariaSolzhentsin priso: a discusso livre demais na correspondncia particular sobre a primeirapessoa do Estado, que era ento Nikolai II. Posteriormente, Nvikov dedicou-se lavouranum pedacinho de terra, escreveu prosa e artigos e vrias vezes encontrou-se com Tolsti.Depois da Revoluo, enviou cartas ousadas a Stlin e a Grki sobre a situao penosa doscamponeses e foi preso vrias vezes, at ser fuzilado, em 1937. Com toda a sua ousadiadesmedida, era um campons de surpreendente sensatez e incomum laboriosidade, um dessesque souberam tirar proveito da reforma agrria de Stolpin. Aumentou seu lote de terra esustentou a famlia com seu trabalho.

    Tolsti resolveu contar justamente com esse homem.Nessa visita de 20 de outubro, depois de ter conversado com Tolsti (na conversa,

    Nvikov lamentou que ele no o visitava), o campons pediu licena para pernoitar, porquereceava se deparar com bbados vagabundos no caminho. Foi feita para ele uma cama noquarto de Makovtski. Ele j estava pronto para se deitar, quando, de repente, entrou Tolsti.Num primeiro momento, Nvikov tomou-o por um fantasma, to leves e silenciosos eramseus movimentos. Em geral, nessa visita a Issnaia Poliana, o aspecto de Tolsti deixou-opasmo: ... estava to extenuado e magro que eu me perguntava como pode um homem viver,pensar e se movimentar nesse estado?. Tolsti sentou-se na beirada da cama e comeou umaconversa com Nvikov que foi citada nas memrias de Mikhail Petrvitch, reeditadas

    25

  • recentemente na Rssia. Ao leitor que no est a par, tal conversa pode parecer estranha, masno nos esqueamos de que Tolsti procurava conversar com os camponeses na linguagemdeles, como sempre fazia tambm com mujiques e at com Grki, no primeiro encontro quetiveram, em Khamvniki, pensando que ele era um verdadeiro homem do povo.

    claro, dizia Tolsti, se ainda na juventude, ao menos uma vez, eu tivesse gritadocom minha mulher ou tivesse batido os ps, talvez ela tivesse se submetido como sesubmetem as mulheres de vocs; mas eu, pela minha fraqueza, no suportava escndalos emfamlia e, quando eles aconteciam, sempre pensava que o nico culpado era eu e que eu notinha o direito de fazer sofrer uma pessoa que me ama. E sempre cedia.

    Toda vez ele me falava, recordava Nvikov, referindo-se a suas visitas a IssnaiaPoliana, como era penoso para ele viver em casa senhorial, onde era considerado umcomensal, um parasita, porque o seu trabalho no dava renda famlia.

    preciso dizer que ningum da famlia considerava-o um parasita ou um comensal?Seria ridculo, sem falar que, embora tivesse renunciado a receber direitos autorais sobreedies de suas obras, Tolsti passou a Sfia Andrievna uma procurao para que elarecebesse os direitos autorais referentes s edies das obras escritas at 1881 (Infncia,Adolescncia, Juventude, Contos de Sebastpol, Guerra e paz, Anna Karnina; na realidade,tudo o que h de melhor das belas-letras escritas por ele), e isso dava uma renda real famlia. pouco provvel que Nvikov tenha inventado essas palavras. O mais provvel que Tolstitenha buscado explicar as causas de sua partida da fazenda de uma maneira simples e atgrosseira, fazendo o jogo, buscando as simpatias de um mujique que trabalhava num pedaode terra quase improdutivo at ficar esgotado.

    Nesta casa sinto-me como se estivesse sendo cozido no inferno, queixava-se ele, e souinvejado, dizem que vivo fidalga. Mas ningum v nem entende como eu sofro aqui.

    Naquela noite, Tolsti exps a Nvikov o seu intento.No vou morrer nesta casa, decidi ir-me embora para um lugar desconhecido e onde

    ningum me conhea. E, quem sabe, realmente irei sua isb para morrer. S que j sei deantemo que vai ralhar comigo, pois em lugar algum gostam de peregrinos. Vi isso nasfamlias camponesas... Agora eu tambm me tornei impotente e intil... S vou incomodarvocs e resmungar, como todos os velhos.

    Tive que fazer um grande esforo para no chorar ouvindo essas palavras..., recordavaNvikov. Sentia vergonha por t-lo, perante mim, como que obrigado a se confessar, e aomesmo tempo fiquei feliz por ele como pessoa que, esquecendo as nossas diferenas, noescondia de mim suas fraquezas e os pesares de sua alma. Por isso sempre o amei e afeioei-me a ele de corao... Querido e adorado vov, poderia eu imaginar naquele minuto que vocestava vivendo seus derradeiros dias nessa casa e nessa vida?

  • Se admitirmos que Nvikov cita as palavras de Tolsti com relativa preciso, no hcomo no suspeitar de haver nelas uma ironia oculta (um pobre peregrino com quem oscamponeses vo ralhar) e outra vez um jogo inocente, fazendo-se de um simples mujique. significativo o fato de que, quando estava contando a conversa com Nvikov a Sacha, Tolstidava umas leves risadinhas:

    Quando entrei em sua sala para buscar as cartas, ele, com um sorriso alegre e um poucomalicioso, levou-me ao gabinete e, do gabinete, ao dormitrio.Vamos, vamos, vou te revelar um grande segredo! Um grande segredo!Eu o segui e, olhando para ele, sentia-me um tanto aliviada.Eis o que eu inventei. Contei a Nvikov um pouco sobre a nossa situao e sobre como penoso para mim este lugar. Irei casa dele. L no vo me encontrar mesmo. E, sabe,Nvikov contou-me que a mulher de seu irmo era alcolatra. Pois ento, quando elacomeava a armar uma confuso, o irmo dava-lhe nas costas e ela melhorava. Isso ajuda.E o meu pai riu com bonomia... Eu tambm ri e contei-lhe como um dia o cocheiro Ivanlevava Olga e ela lhe perguntou como iam as coisas em Issnaia Poliana. Ele respondeuque iam mal, depois virou-se para ela e disse:Sabe, vossa senhoria, desculpe, mas vou lhe dizer. Ns fazemos maneira camponesa:quando a mulher desatina, o marido d-lhe com as rdeas! Vira uma seda!

    Certamente, no se pode levar isso a srio. Mas o clima na casa de Issnaia Poliana eratal que brincadeiras desse tipo tornaram-se possveis.

    Sobre o encontro com Nvikov Tolsti escreveu secamente: Veio Mikhail Nvikov.Conversamos muito. Um mujique srio, inteligente.

    Havia algum tempo, Tolsti tinha medo de escrever em seu dirio toda a verdade,sabendo que Sfia Andrievna, ao encontrar a chave conveniente para a sua mesa, lia asanotaes dirias. Ele at arranjou um caderninho pequeno, que intitulou Dirio s para mim,e o escondia no cano da bota. No dia 24 de setembro, ele escreveu: Perdi meu pequenodirio. No perdeu, sua mulher achou-o no cano da bota e levou-o para seu quarto. Segundo averso de Sfia Andrievna, ela casualmente deixou cair a roupa de cama sobre a bota e... Masneste caso isso no importa. Importa que o clima na casa dos Tolsti era tal que a criadagem eos camponeses de Issnaia Poliana ficavam espantados e, nas conversas, Tolsti tinha deprocurar sair, de alguma maneira, das situaes constrangedoras, inclusive com a ajuda dessasbrincadeiras.

    Mas, como se verificou, a deciso de ir casa de Nvikov no foi brincadeira, emabsoluto. Em 24 de outubro, ele enviou uma carta:

    Mikhail Petrvitch,

    26

  • Por aquele motivo que lhe contei antes de sua partida, dirijo-me a voc com o seguintepedido: se eu realmente fosse sua casa, poderia encontrar em sua aldeia uma casinha paramim, mesmo que minscula, mas separada e quente?Assim eu incomodaria voc e suafamlia por um tempo bem curto. Comunico-lhe tambm que, se eu tiver de lhe enviar umtelegrama, ele no seria com meu nome, mas com o de T. Nikoliev.Aguardo sua resposta, aperto amigvel de mo.Lev Tolsti.Tenha em vista que s voc pode saber disso.

    Brincadeira coisa nenhuma! Nessa carta, pela primeira vez, foi indicado o cdigo secretoque Tolsti, Sacha e Tchertkov usariam durante a fuga dele de Issnaia Poliana para enganarSfia Andrievna e os jornalistas. Grande Tolsti, que desprezava pseudnimos, que no tinhamedo de assinar com seu nome as cartas ousadas aos czares, a Stolpin e a Pobedonstsev,escondeu-se atrs da sombra de T. Nikoliev.

    Ao receber a carta, Nvikov ficou desnorteado. Uma coisa um se abrir para o outro,como dois mujiques, numa casa confortvel de Issnaia Poliana, e completamente outra assumir a responsabilidade, perante o mundo inteiro, de esconder o fugitivo Tolsti. EscreveuNvikov em suas memrias:

    Eu no me perdoo aquela demora que eu me permiti em lhe responder a carta que, como eusoube mais tarde, Lev Nikolievitch ficou esperando dois dias. S quando viu que nopodia ir minha casa, pois eu no respondia, rumou para o Sul, em direo casa depessoas conhecidas, e recebeu a minha resposta em Astpovo, j enfermo. Quem sabe eletivesse vivido mais alguns anos, j que a viagem de duas horas de Issnaia Poliana atnossa estao no o prejudicaria, fora que a isb que ele tinha pedido, quente e limpa,estava vaga, como se esperasse por moradores. E na minha isb tambm havia umquartinho confortvel, onde ele poderia se abrigar por algum tempo sem ser notado porningum.Jamais me perdoarei essa falha!

    Nvikov se culpava em vo. Tolsti no era uma agulha, e a aldeia de Tula no era umpalheiro. Com a aparncia mundialmente famosa e frente rede de correspondentes e defiscais estatais e particulares que existia na poca, Tolsti estava destinado a ser encontrado, emuito em breve.

    O curioso outra coisa. Essa isb quente e limpa surgiu nas memrias de Nvikov maistarde, aps a morte de Tolsti. Em sua carta resposta, no apenas no existia isb nenhumacomo a prpria carta, pelo contedo, era uma forma polida de recusa. Por isso, se essa carta

    27

  • no tivesse chegado atrasada e Tolsti a tivesse recebido em Issnaia Poliana e no emAstpovo, j desenganado, nada mudaria. Tolsti no tinha para onde fugir e Nvikov tratoude lhe explicar isso.

    Querido Lev Nikolievitch, recebi sua carta e fiquei muito tocado com sua intimidade esinceridade para comigo. No pude responder em seguida, para no agir precipitadamente.Sempre fui sincero com o senhor e disse aquilo que sentia meu corao e agora resolvi lhedizer o que sinto a respeito de seu pedido, exposto na carta, sem a inteno de agradar oudesagradar o senhor.Aquele tempo, em que o senhor deveria, para o bem geral e por fora da conscincia,mudar as condies externas de sua vida, j passou para o senhor, e mud-las agora porlongo tempo no faz sentido nenhum...Por mais que eu queira ver o senhor livre das barreiras e junto com todo o povo, mas emprol da preservao de sua vida num corpo to velho, para o relacionamento com o senhor,precioso a todos ns, no posso desejar isso seriamente. Desejo apenas que o resto de suavida aqui no seja constrangido pelas condies externas para que possa ter contato com aspessoas que o amam. Mas para as visitas temporrias de seus amigos por um dia, umasemana, duas ou um ms, minha casa no nada confortvel. Temos um quarto claro, quetodos os meus familiares cederiam com prazer e com amor cuidariam do senhor, tantomais que no tenho filhos muito pequenos que poderiam fazer barulho fora de hora, o maisnovo tem cinco anos. Assim penso eu. Mas se o senhor pensa diferente, que seja segundo oseu desejo, e pode dispor do quarto o tempo que quiser. E principalmente de abril atoutubro possvel viver na minha casa sem incomodar um ao outro. O nosso receio no que o senhor nos incomode, mas o inverso...

    Afetuosamente,campons Mikhail Nvikov

    Post scriptum (havia uma explicao a respeito de uma casa separada):

    Quanto a morar numa casa separada, considero isso impossvel por causa da fraqueza dosenhor. E os camponeses no tm casas separadas. Costumam ter segundas casas que sofrias, se bem que fcil adapt-las moradia, fazendo uma reforma, porm no seroseparadas, mas ligadas outra por um saguo. Uma dessas, de seis archins, possui o meuvizinho, que no se recusaria a alug-la ao senhor. Ou a minha velha tia, que na primaveravai construir uma igual, de seis archins, mora sozinha e, como uma velha inteligente,tambm ficaria feliz em abrigar e cuidar do senhor.

    Entende-se que Tolsti, com sua extrema independncia e ao mesmo tempo delicadeza,

    28

  • no aceitaria essas condies. Nvikov sabia disso... E sabia tambm que um velho doentemudar de moradia em pleno outono era uma loucura total! Era preciso esperar at a primavera.

    Mas Tolsti no podia esperar.Somente no dia 3 de novembro Tchertkov, que chegou a Astpovo, leu em voz alta a carta

    de Nvikov. Tolsti escutou atentamente e pediu para que fosse escrito no envelope:Agradeo. Parti em direo contrria.

    ABORRECIMENTO FERROVIRIO...

    De Schkino a Gorbatchevo eles viajaram no compartimento de vago de segunda classe.Ficaram para trs a fazenda e a aldeia Issnaia Poliana, pela qual, duas horas antes, haviapassado um estranho cortejo: numa caleche, puxada por uma parelha de cavalos, estava oconde velhinho, trajando colete acolchoado, caft por cima e dois gorros (sentia muito frio nacabea); ao lado dele, o mdico Duchan Petrvitch, impassvel, com expresso inaltervel norosto, de sobretudo de peles gasto e um gorrinho amarelo de feltro; na frente, montado noterceiro cavalo, ia Filhka, com uma tocha acesa na mo (segundo Sacha) ou uma lanterna(segundo Makovtski). Os aldees acordam cedo. Em algumas casas, j havia luz nas janelas efogo nos fornos. Na extremidade da aldeia, a rdea desamarrou-se. Makovtski desceu dacaleche para achar a ponta do freio e, aproveitando a ocasio, verificou se os ps de Tolstiestavam cobertos. Este tinha tanta pressa que gritou com Makovtski. Ao ouvir o grito, osmujiques das casas mais prximas saram para a rua. Uma cena muda.

    Quando, em Schkino, pedia as passagens, Makovtski no queria dar o nome de

    Gorbatchevo, mas de alguma outra estao para despistar. Mas julgou que mentir fica mal eno tem sentido.

    Em Astpovo, Sfia Andrievna viria a interrogar Makovtski:Mas para onde vocs iam?Para longe.Mas para onde exatamente?Primeiro, para Rostov. L pretendamos pegar os passaportes estrangeiros.E depois?A Odessa.E depois?A Constantinopla.E aonde depois? Bulgria.E vocs tm dinheiro?

  • Sim, o suficiente.Quanto, por exemplo?...Essa conversa foi citada pelo Dr. A. P. Semenvski, mdico-chefe do hospital de

    zemstvo que, no dia 1 de outubro, foi chamado por telegrama da cidade de Dankovo,prxima a Astpovo. Ele descreveu em suas memrias a conversa curiosa com Makovtski, naqual este lhe confessou que, quando pedia as passagens nas estaes, em lugar de dinheirodeclarava no caixa que as passagens eram para Tolsti. Depois acertamos. E lhe davam aspassagens.

    Verificou-se que Tolsti era um pssimo conspirador. Em Schkino, foi o primeiro aentrar no prdio da estao e ainda perguntou ao barman se havia uma linha direta deGorbatchevo a Kozelsk. Depois verificou o mesmo com o plantonista da estao. (No diaseguinte, por meio do caixa, Sfia j sabia aproximadamente em que direo havia partido omarido.) Enquanto Makovtski cuidava das malas, despachando de volta o desnecessrio,Tolsti, a quatrocentos passos, passeava com um menino que ia escola. Chegou o trem.

    Ns iremos junto com esse menino, disse ele.No trem, Tolsti acalmou-se, dormitou uma hora e meia, depois pediu a Makovtski para

    procurar pelas revistas Crculo de leitura ou Para cada dia, coletneas de pensamentos sbiosque ele editava. Mas verificou-se que no havia nenhuma delas.

    Os momentos mais amargos da derradeira viagem de Tolsti aconteciam quando seushbitos arraigados entravam em contradio com as novas condies, inslitas para o velho.Parecia que no precisava de quase nada, tamanha a simplificao de seu modo de vida emIssnaia Poliana... Mas que coisa! Justamente essas ninharias que lhe faziam falta a cadainstante...

    Por causa disso, j no parece mais ridcula a exclamao de Sfia Andrievna, quandosoube da fuga do marido:

    Coitado de Livotchka! Quem que l vai lhe servir a manteiguinha?!E j se v como muito comovente o fato de que, indo a Astpovo, Sfia Andrievna no

    se tenha esquecido de levar consigo o travesseirinho, feito com suas prprias mos, com oqual o marido costumava dormir. Esse travesseirinho ele reconheceu. Mas sobre issofalaremos depois.

    A comear pela perda do gorro no jardim, pequenas e lamentveis contrariedades nopararam de aborrecer o fugitivo de Issnaia Poliana e, nos primeiros dias, tudo isso, como umgrande fardo, caiu sobre Makovtski.

    De Gorbatchevo a Kozelsk ele desejava impreterivelmente viajar no vago de terceiraclasse, com o povo simples. No vago, ao se sentar no banco de madeira, disse:

    29

  • Como bom, espaoso!Mas Makovtski foi o primeiro a dar o alerta. O trem Sukhnitchi-Kozelsk era de carga,

    com um vago de passageiros de terceira classe repleto de gente e impregnado de fumo. Porcausa do aperto, os passageiros passavam para os vages adaptados para transportar pessoas.Sem esperar pela partida do trem e sem dizer nada a Tolsti, Makovtski foi depressa at ochefe da estao e exigiu um vago a reboque. Este o encaminhou a outro funcionrio, que porsua vez lhe indicou o plantonista. Nesse mesmo tempo, um plantonista estava no vago eolhava embasbacado para Tolsti, que os passageiros j tinham reconhecido. E ele ficaria felizem ajudar, mas no era ele quem respondia pelos vages. O plantonista tambm estava ali eobservava atentamente Tolsti. Makovtski repetiu o seu pedido.

    Escreveu Makovtski:

    Ele, como que a contragosto e indeciso, disse ao operrio ferrovirio que passasse aocondutor-chefe a ordem de rebocar mais um vago de terceira classe. Seis minutos depois,a locomotiva passou do lado do nosso trem, trazendo o vago. O condutor-chefe, queentrou para controlar as passagens, anunciou ao pblico que seria rebocado mais um vagoe todos poderiam se acomodar, pois muitos dos passageiros estavam em p no vago e naplataforma. Mas soou o segundo sinal de partida e, meio minuto depois, o terceiro, e ovago no foi rebocado. Eu fui correndo at o plantonista. Ele respondeu que no haviavago de reserva. O trem partiu. Soube pelo condutor que o vago que passou pelo nossotrem era necessrio para o transporte dos escolares na estao.

    Recorda Makovtski:

    O nosso vago era o pior e o mais apertado de todos, e foi num desses que eu tive de viajaroutrora pela Rssia. A entrada estava colocada assimetricamente em relao passagem.Entrando no vago no momento da partida do trem, a pessoa corria o risco de bater com orosto no canto superior do encosto do banco, que ficava justamente na metade da largurada porta; ele tinha de ser contornado. As sees de bancos eram estreitas e o espao entreeles era pequeno. A bagagem tambm no cabia. Estava abafado.

    Makovtski ofereceu colocar uma manta debaixo de Tolsti. Ele recusou. Especialmentedurante essa viagem, ele aceitava muito a contragosto os favores dos quais se servia antes.

    Logo ele comeou a ficar sufocado por causa do abafamento e da fumaa, porque ametade dos passageiros fumava. Vestiu o casaco e ps o gorro, ambos de pele, e foi para aplataforma traseira. Mas os fumantes estavam l tambm. Ento ele passou para a plataformadianteira, onde batia o vento, mas em compensao ningum fumava, havia l somente umamulher com uma criana e um campons...

  • Os trs quartos de hora passados nessa plataforma Makovtski vai chamar posteriormentede fatais para Tolsti.

    Ao voltar para o vago, Tolsti rapidamente travou amizades, como de costume.Conversou com um mujique de cinquenta anos sobre a famlia dele, economia domstica,fretes, quebra de tijolos. Todos os detalhes interessavam a Tolsti. Ein typischer Bauer,disse Tolsti a Makovtski em alemo. O mujique era conversador. Discutia livremente sobreo trfico de vodca, queixou-se do senhor de terras B., com quem a comunidade brigou porcausa da floresta e depois disso, por ordem das autoridades locais, todos foram submetidos acastigo corporal.

    O agrimensor, sentado ao lado, intercedeu em favor do senhor de terras e acusou oscamponeses. O mujique persistiu.

    Ns trabalhamos mais que vocs, os mujiques, disse o agrimensor.Isso no pode ser comparado, objetou Tolsti.O mujique fazia coro, o agrimensor discutia. No o embaraava nem um pouco o fato de

    que ele discutia com o prprio Tolsti. Conheci Serguei Nikolievitch, seu irmo, disse oagrimensor. Na opinio de Makovtski, ele era capaz de discutir sem parar e no a fim deaveriguar a verdade, mas para demonstrar, custasse o que custasse, que ele tinha razo. Adiscusso passou para outras questes mais amplas: o sistema de imposto nico de HenriGeorge, Darwin, cincia e educao. Tolsti ficou agitado, soergueu-se e ficou falando maisde uma hora. Juntou-se um pblico de ambas as extremidades do vago: camponeses,pequeno-burgueses, operrios, intelectuais e dois judeus, observa Makovtski, que tinha umdesamor doentio pelos judeus desde a sua juventude austro-hngara. Uma ginasiana anotava odiscurso de Tolsti. Depois desistiu e comeou tambm a discutir com ele...

    O homem j sabe voar!, disse ela.Conceda os voos aos pssaros, respondeu Tolsti, os homens precisam se locomover

    na terra.A formanda do ginsio de Belev T. Tamnskaia foi a nica das testemunhas da viagem de

    Tolsti a Kozelsk que deixou a recordao escrita, publicada no jornal Voz de Moscou . Elaescreveu que Tolsti estava ... de camisa preta, que chegava at os joelhos, e de botas de canoalto. Na cabea, em lugar do chapu de feltro, ele tinha um solidu de seda.

    Makovtski, que endeusava Tolsti e j seriamente se preocupava com sua sade, ficouaborrecido com esse tratamento de igual para igual para com o escritor. Quando Tolstideixou cair sua luva e ligou a lanterna para procur-la no cho, a ginasiana no deixou deobservar:

    Est vendo, Lev Nikolievitch, a cincia serviu!Quando Tolsti, exausto pela discusso e pela fumaa do tabaco, outra vez foi

    30

  • plataforma para respirar ar puro, o agrimensor e a moa seguiram-no com novas objees.Antes de descer em Belev, a ginasiana pediu-lhe um autgrafo. Ele escreveu: Lev Tolsti.

    O campons soube pelo prprio Tolsti que ele pretendia ir ao convento de Chamrdinoe, antes disso, desejava visitar o mosteiro de ptina.

    Olhe, pai, retire-se ao mosteiro, aconselhou o campons. Voc deve largar os negciosmundanos e procurar salvar sua alma. Fique no mosteiro.

    L. N. respondeu-lhe com um sorriso.No fim do vago comearam a tocar harmnica e cantar. Tolsti escutava e elogiava.O trem ia devagar, em seis horas e meia fez pouco mais de cem verstas. Tolsti acabou se

    cansando de ficar sentado. Essa locomoo lenta pelas ferrovias da Rssia ajudava a matarL. N., escrevia Makovtski.

    Por volta das 17 horas, desceram em Kozelsk. Adiante estava o mosteiro de ptina eChamrdino. A essa altura Tolsti no sabia ainda o que havia acontecido na fazenda depoisde sua fuga noturna. Sfia Andrievna duas vezes tentara suicdio. Na primeira, foi tirada doaude e, na segunda, apanhada em direo a ele. Depois disso, batia no peito com o peso depapel, o machado, gritando: Estoura, corao!. Espetava seu corpo com facas, tesouras,alfinetes. Quando os tiravam de suas mos, ameaava se jogar pela janela ou se afogar nopoo. E, ao mesmo tempo, mandava o pessoal ir at a estao para averiguar o destino daspassagens compradas. Quando soube que Tolsti e Makovtski haviam ido a Gorbatchevo,mandou um criado enviar para l o telegrama: Volte imediatamente. Sacha. O criadocomunicou isso a Sacha, e ela enviou um telegrama neutralizante: No se preocupe, valemsomente os telegramas assinados por Aleksandra.

    A me procurava ser mais astuta que a filha, e a filha, mais astuta que a me.Vou encontr-lo!, gritava Sfia. Como vo me impedir? Pulo pela janela e vou

    estao. O que podero fazer comigo? s eu saber onde ele est! A eu no o solto mais, vouvigi-lo dia e noite, dormir sua porta!

    No dia 28 de outubro, noite, Tchertkov recebeu o telegrama: Pernoitamos ptina.Amanh Chamrdino. Endereo Podbirki. Estou bem. T. Nikoliev.

    2 Na literatura russa sobre Tolsti, o acontecimento de 28 de outubro de 1910, em Issnaia Poliana, costuma-se chamarde ukhod. A palavra ukhod [partida a p] na lngua russa tem vrios sentidos: sair de algum lugar, deixar estelugar para sempre e at, no sentido figurado, morrer, deixar este mundo. Portanto, no caso de Tolsti, a palavraukhod pressupe algo maior que simplesmente abandono do lar. (N. do A.)

    3 Todas as datas so do calendrio juliano. (N. do A.)4 Em russo, A Palavra Russa (N. da T.)

  • 5 Membro da organizao populista Nardnaia Vlia (em russo, Vontade do Povo). (N. da T.)6 ptina Pstinh em russo significa Ermida de Opta, um bandoleiro arrependido que, ao tomar o hbito, adotou o

    nome Makri. No sculo XIV ou XV (a data certa desconhecida), Opta fundou um mosteiro masculino nesse localdeserto, que se tornou lugar de retiro espiritual famoso na Rssia e no exterior. (N. da T.)

    7 Em russo, Boletim de Odessa. (N. da T.)8 Em russo, Gazeta de Petersburgo. (N. da T.)9 V. V. Rsanov (1856-1919), escritor, articulista e filsofo russo. (N. da T.)10 Em ingls, Tolsti abandona o lar. (N. da T.)11 I. A. Bnin (1879-1953), escritor russo, Nobel de Literatura em 1933. (N. da T.)12 Nas isbs russas, o vo entre o teto e uma parte superior do forno de tijolos, que conservam o calor por muito tempo.

    Esse vo serve de leito, principalmente no inverno, para no mnimo duas pessoas. (N. da T.)13 Forma carinhosa para Liova, o diminutivo deLev. (N. da T.)14 Diminutivo de Varvara. (N. da T.)15 Antiga medida russa igual a 1,067 km. (N. da T.)16 Piotr Arkdievich Stolpin (1862-1911), primeiro-ministro e ministro do Interior da Rssia (1906-1911). (N. da T.)17 Expresso de origem francesa, que se refere ao horrio antes do amanhecer, quando o pastor no pode distinguir o co

    do lobo. (N. da T.)18 Palavras de Vladmir Ilitch Lnin citadas por Maksim Grki no ensaio V. I. Lnin, de 1924. (N. da T.)1 9 Nikolai Nikolievitch Strkhov (1826-1896), filsofo, articulista e crtico literrio russo, foi autor de artigos sobre

    Tolsti e o primeiro bigrafo de Dostoivski. (N. da T.)20 Marca da mquina de escrever. (N. A.)21 Diminutivo de Sfia. (N. da T.)22 Diminutivo de Maria. (N. da T.)23 De Sfia Andrievna. (N. do A.)2 4 Provm da palavra russa prosti (simples). Assimilao do modo de vida, hbitos e roupa do povo