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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA TOLSTOI COM WITTGENSTEIN MORAL E ARTE ANA MATOSO DOUTORAMENTO EM ESTUDOS DA LITERATURA E DA CULTURA TEORIA DA LITERATURA 2012

TOLSTOI COM WITTGENSTEIN MORAL E ARTE · Tolstoi a qualquer pessoa que atravessasse uma crise”1. A importância desta obra, nem ficção, nem ensaio, onde Tolstoi apresenta a doutrina

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Page 1: TOLSTOI COM WITTGENSTEIN MORAL E ARTE · Tolstoi a qualquer pessoa que atravessasse uma crise”1. A importância desta obra, nem ficção, nem ensaio, onde Tolstoi apresenta a doutrina

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA

TOLSTOI COM WITTGENSTEIN MORAL E ARTE

ANA MATOSO

DOUTORAMENTO

EM ESTUDOS DA LITERATURA E DA CULTURA

TEORIA DA LITERATURA

2012

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TOLSTOI COM WITTGENSTEIN MORAL E ARTE

ANA MATOSO

DISSERTAÇÃO ORIENTADA POR

PROFESSOR DOUTOR MIGUEL TAMEN

APOIO FINANCEIRO

DOUTORAMENTO

EM ESTUDOS DA LITERATURA E DA CULTURA

TEORIA DA LITERATURA

2012

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Para os meus pais, para o Rui,

para a minha filha.

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ÍNDICE AGRADECIMENTOS 5

RESUMO/ ABSTRACT 7

INTRODUÇÃO 8

NOTA SOBRE A TRANSLITERAÇÃO E SOBRE AS DATAS 16

TRANSLITERAÇÃO DO ALFABETO RUSSO 17

LISTA DE ABREVIATURAS 18

1. A FOX WANTING TO BE A HEDGEHOG: LIXO, FICÇÃO OU FILOSOFIA? 20

2. A VIDA SECRETA DAS PESSOAS 62

3. PORQUE DEVEREMOS SUSPEITAR DOS ENCOMIASTAS DE SHAKESPEARE? 98

4. VER O MUNDO A DIREITO: HADJI-MURAT 178

BIBLIOGRAFIA 245

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, quero agradecer ao meu orientador, o Professor

Doutor Miguel Tamen, sem o qual esta tese não teria existido e o meu percurso

teria sido diverso. Aos seus seminários a que tive o privilégio de assistir devo o

que de melhor e mais rigoroso possa existir nos meus argumentos.

Ao Professor Doutor António M. Feijó, pelas inspiradoras lições sobre

literatura e pela amabilidade de me ter emprestado o primeiro livro importante

sobre Tolstoi que li.

Aos professores e alunos do Programa de Teoria da Literatura que

contribuíram para que a minha passagem por este Programa fosse uma verdadeira

aprendizagem intelectual – a todos agradeço a oportunidade.

Gostaria ainda de agradecer à Professora Maria Teresa Ferreira e à Ana

Prokopyshyn a gentileza de me terem disponibilizado a tabela de transcrição do

alfabeto cirílico. À Professora Maria Teresa Ferreira agradeço ainda ter-me

introduzido com o rigor do seu saber à gramática russa. À Professora Jayanti Dutta

agradeço a dedicação com que ensina a língua russa e a sempre pronta

disponibilidade para clarificar quaisquer dúvidas de tradução que surgissem.

Estou ainda reconhecida ao Vladislav Nekliaev pelos esclarecimentos

oferecidos relativos à tradução de certos termos.

À minha família, em particular aos meus pais, os meus primeiros leitores,

à Maria da Conceição Matoso e à Maria Emília Pinto Pereira, pela enorme

generosidade com que me acompanharam ao longo dos anos, à Leonor, Joana e

Luísa, pelas alegrias; ao Luís R., por me ter ajudado a persistir, ao Richard Zenith

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e à Madalena Alfaia, pelas conversas e pelas leituras. Às minhas amigas, pela

amizade. Ao meu marido, por tudo.

Este trabalho, bem como as consultas bibliográficas em bibliotecas

estrangeiras, foram possíveis graças ao apoio financeiro da Fundação para a

Ciência e a Tecnologia.

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Este trabalho propõe-se explorar os pontos de contacto entre as respostas

oferecidas por Tolstoi e por Wittgenstein nas suas respectivas obras às questões

que os dois tópicos sob discussão – arte e moral – colocam. Tal aproximação foi

feita através, fundamentalmente, de uma leitura wittgensteiniana da obra de

Tolstoi. Ao colocar um conjunto de textos de Tolstoi em diálogo, de uma forma

mais ou menos explícita, com a obra de Wittgenstein, pretende-se evidenciar as

linhas de continuidade da produção literária de Tolstoi, sem descurar as

modificações evidentes. Simultaneamente, pretende-se mostrar como esta

configura, ainda que de um modo não sistemático ou rigoroso, alguns dos tópicos,

imagens e formulações esparsas um pouco por toda a obra filosófica de

Wittgenstein, pré e pós-Tractatus.

Palavras-chave: Tolstoi – Wittgenstein – Moral – Arte

*

This study explores the points of contact found in the works of Tolstoy

and Wittgenstein with regard to two topics – art and morals – and the relationship

between them. The juxtaposition is achieved, for the most part, through a

Wittgensteinian reading of Tolstoy. A group of Tolstoy texts is placed in more or

less explicit dialogue with the work of Wittgenstein so as to emphasize certain

lines of continuity in the Russian writer’s literary output, and also to point out

some of the changes. Another aim is to show how that output sets out – though not

in a rigorous or systematic fashion – some of the topics, images and formulations

scattered throughout Wittgenstein’s work, both pre- and post-Tractatus.

Keywords: Tolstoy – Wittgenstein – Morals – Art

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INTRODUÇÃO

Em L. Tolstoi, o procedimento de representação singular consiste no facto de o autor, em vez de chamar o objecto pelo seu nome, o descrever como se o visse pela primeira vez ou, no

caso de um acontecimento, como se este ocorresse pela primeira vez. Viktor Chklovski

Ele [Wittgenstein] tem o talento maravilhoso de ver tudo sempre como se fosse pela

primeira vez. Friedrich Waismann

Nós reconduzimos as palavras do seu emprego metafísico ao seu emprego quotidiano.

Ludwig Wittgenstein A influência da obra de Tolstoi no percurso de Wittgenstein pode ser

corroborada pela evidência biográfica. No seu aturado estudo, Ludwig

Wittgenstein: The Duty of Genius (1991), Ray Monk chama a atenção para o

impacto que os escritos religiosos e éticos de Tolstoi tiveram em Wittgenstein. No

período em que combatia na Frente Russa, na I Guerra Mundial, em que

atravessava uma profunda crise existencial e se preparava para imprimir um novo

curso ao livro que iria revolucionar o modo como a Filosofia era feita nas

academias, Wittgenstein descobria, numa pequena livraria de Tarnov, na Polónia,

o “único livro” disponível – a versão ‘purificada’ dos Evangelhos de Tolstoi.

A transformação pessoal, ou a conversão religiosa, que o jovem filósofo

buscava ao alistar-se como voluntário no exército austríaco, consuma-se quando

encontra, através d’Os Meus Evangelhos, a “palavra salvadora” e se torna

conhecido entre os seus companheiros de armas pelo epíteto de “o homem com os

evangelhos”. Pelo menos durante aquele período crítico da sua vida, Wittgenstein

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“torna-se não só um crente, como um evangélico, recomendando o Evangelho de

Tolstoi a qualquer pessoa que atravessasse uma crise”1.

A importância desta obra, nem ficção, nem ensaio, onde Tolstoi apresenta

a doutrina cristã depurada das suas conotações metafísicas, teológicas ou

históricas, para Wittgenstein é atestada pelo próprio, nos cadernos e diários de

guerra, onde recita as palavras do Jesus de Tolstoi como se se tratassem de

orações. Mas é também corroborada pela carta que Wittgenstein envia em 1915 a

Ludwig von Ficker, onde aconselha ao amigo e editor a sua leitura, sublinhando

que “numa dada altura, esta obra manteve-me praticamente vivo” e “você não

pode imaginar o efeito que este livro pode ter numa pessoa”2.

Outras evidências poderiam ser citadas e outros episódios

‘psicobiográficos’ poderiam ser recriados para aproximar os itinerários, tão

diversos que se julgaria insusceptíveis de serem comparados, de Tolstoi e de

Wittgenstein: a controvérsia em redor das suas conversões, invariavelmente

grafadas com aspas (mesmo no caso da conversão menos ‘privada’ de Tolstoi); a

subsequente renúncia às fortunas a favor das respectivas famílias; a adopção de

um estilo de vida ascético; a aversão à profissionalização das actividades onde se

notabilizaram; as experiências como mestres-escola em comunidades rurais e o

recurso à Bíblia como livro de instrução por excelência. Ou ainda, e mais

relevante, porque todos estes aspectos nela convergem, a cisão das suas carreiras

em dois períodos distintos: tal como há um “primeiro” e um “segundo” Tolstoi

também há um “primeiro e um “segundo” Wittgenstein. Esta cisão resulta numa

recepção crítica que se divide igualmente entre duas tendências gerais: a que

propõe uma leitura que enfatiza as continuidades entre os dois períodos, e entre os

1 Ray Monk, Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, London: Vintage Books, 1991, p. 116. 2 Carta de 24. 07.1915, citada em Monk, op. cit., p. 132.

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estilos a que tais balizas temporais correspondem, e a que propõe uma leitura que

enfatiza as rupturas, quer de conteúdo, quer de forma.

Todavia, este trabalho não se pretende constituir como uma investigação

histórica. Antes, pretende traçar um percurso que Wittgenstein, como diz no seu

prefácio ao Tractatus, não estava notoriamente interessado em traçar por si

mesmo: avaliar se os seus esforços em delimitar, na linguagem, a linha que separa

o sentido do não-sentido coincidem com os de outros, e se os pensamentos

expressos na parte dizível do seu livro foram pensados por outros antes dele.

Este trabalho propõe-se assim explorar os pontos de contacto entre as

respostas oferecidas por Tolstoi e por Wittgenstein nas suas respectivas obras às

questões que os dois tópicos sob discussão – arte e moral – colocam. Tal

aproximação foi feita da única forma exequível à sua autora: através,

fundamentalmente, de uma leitura wittgensteiniana da obra de Tolstoi. Com isto

quer-se dizer que o modo encontrado para evidenciar as semelhanças entre as

investigações dos dois autores foi recortar a obra de Tolstoi a partir de uma série

de problemas que podem ser entendidos como decorrentes da distinção enunciada

no célebre aforismo do Tractatus Logico-Philosophicus: “O que pode ser

mostrado não pode ser dito”3.

Através desta distinção, com a qual Wittgenstein visa delimitar o que

pode ser dito com sentido (as proposições da ciência) do que, no âmbito da teoria

da linguagem do Tractatus, não pode ser dito com sentido (as pseudo-proposições

da Lógica, Ética e Estética), pretende-se oferecer um novo enquadramento para a

obra de Tolstoi e, em particular, para a produção literária composta no que se

convencionou chamar a sua “segunda fase”. As obras ensaísticas e religiosas, mas

3 Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico / Investigações Filosóficas, M. S. Lourenço

(trad. e pref.), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, TLP, §4.1212.

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também ficcionais, deste período tardio foram acusadas de serem “deploráveis

incursões na filosofia”, “tentativas miseráveis” de dizer o que não pode ser dito4 e,

enquanto tal, transgressões do método “estritamente filosófico mas ao mesmo

tempo literário”5, proposto e empregue por Wittgenstein. Em contraste com tais

apreciações, acredita-se que elas configuram, ainda que de um modo não

sistemático ou rigoroso, alguns dos tópicos, imagens e formulações esparsas um

pouco por toda a obra filosófica de Wittgenstein, pré e pós-Tractatus. Ademais,

verifica-se que, se hoje obras como Os Meus Evangelhos, O Que é a Arte?,

Shakespeare e o Teatro começam a ser lidas, discutidas ou estudadas, após

décadas de esquecimento (como é o caso da primeira) e de referências pouco

abonatórias (como é o caso dos dois últimos ensaios), este renovado interesse

deve-se parcialmente à influência indirecta de Wittgenstein, leitor do Tolstoi

tardio, estudioso do cristianismo e escritor de contos morais.

Deve ser sublinhado que este trabalho não resulta de uma tese sobre “a

literatura como filosofia” ou “a filosofia como literatura”. Não parte de uma teoria

epistemológica para argumentar a favor ou contra o valor cognitivo das obras

literárias e propor uma concepção da ética centrada em termos da “boa vida”. Tão

pouco visa oferecer uma interpretação da distinção tractariana que permita

perceber uma linha contínua do pensamento e estilo de Wittgenstein, através da

sua advertência de que a filosofia deveria ser escrita “apenas como se escreve um

poema”6.

O fio condutor da leitura que aqui se faz de um conjunto de textos de

Tolstoi, colocados em diálogo, de uma forma mais ou menos explícita, com a obra 4 G. E. M. Anscombe, “‘Mysticism and Solipsim”, An Introduction to Wittgenstein’s Tractatus,

South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 1971, p. 170. 5 Carta de Wittgenstein a Ludwig von Ficker, citada em Monk, op. cit., p. 177. 6 Ludwig Wittgenstein, Vermischte Bemerkungen, G. H. von Wright (ed.), Alois Pichler (rev.),

Peter Winch (trad.), Culture and Value, Oxford: Blackwell Publishing, 1998, p. 28e.

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de Wittgenstein, não é o princípio que afirma a relevância da inteligibilidade de

temas filosóficos na obra literária de Tolstoi7, nem a caracterização da filosofia

wittgensteiniana como uma forma de poesia, na medida em que ela se ocupa mais

com o funcionamento da própria linguagem do que com a realidade ou com os

fenómenos que refere8.

Se se parte de um princípio próximo daquele que afirma a relevância de

determinadas obras literárias (sejam elas Hadji-Murat, Os Meus Evangelhos ou o

Tractatus) para a discussão sobre a natureza do valor (moral), não se pretende,

contudo, defender uma tese sobre a prioridade do romance, ou de determinadas

formas narrativas, na formação das nossas percepções morais (ou sistemas de

crenças) em relação à “linguagem informativa” da Filosofia moral tradicional, na

linha de Martha Nussbaum9.

Todavia, como Cora Diamond faz notar, ao repensar o modo como

literatura e filosofia moral se articulam10, a receptividade em aceitar que obras

literárias possam ensinar algo essencial sobre aquilo em que a filosofia moral

consiste aponta para uma possibilidade que será relevante na discussão da

concepção da arte defendida por Tolstoi: a possibilidade de que, se, à semelhança

da filosofia moral, a arte tem alguma coisa para ensinar, tal decorre em larga

medida da sua capacidade de tornar as “qualidades dos objectos e factos da vida

que descreve imperceptíveis à atenção dos outros”11.

7 Cf. Morris Weitz, Philosophy in Literature, Detroit: Wayne State UP, 1963. 8 O ponto é explorado por Marjorie Perloff e David Schalkwk em The Literary Wittgenstein, John

Gibson e Wolfgang Huemer (eds.), London: Routledge, 2004, pp. 34-54, pp. 55-74, respectivamente.

9 Martha Nussbaum, “Finely Aware and Richly Responsible”, Love’s Knowledge: Essays on Philosophy and Literature, New York, Oxford: Oxford UP, 1990, pp. 148-65.

10 Cora Diamond, “Having a Rough Story About What Moral Philosophy Is”, The Literary Wittgenstein, pp. 133-145.

11 Tolstoi, “Guy de Maupassant” [“Predislovie k sotchineniiam Giui de Mopassana”], Shakespeare, The Christian Teaching, Letters and Introductions, Aylmer Maude (trad.), Honolulu: UP of the Pacific, 2002, p. 162, meus itálicos.

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Adiando a problematização deste modo de articular filosofia moral (ética)

e literatura (estética), e da noção de um discurso sobre ética (e, para todos os

efeitos, sobre estética), importa agora oferecer uma breve descrição dos capítulos

que se seguem.

O primeiro capítulo – cujo título remete para a analogia clássica

empregue por Isaiah Berlin para designar o conflito que constitui a obra literária

de Tolstoi e, em particular, a concepção da história encapsulada em Guerra e Paz

– apresenta o contexto a partir do qual surgem os argumentos discutidos ao longo

desta tese. Funciona, portanto, como um capítulo introdutório. Ao traçar as

vicissitudes da recepção crítica de Tolstoi, revisitando as querelas em torno do

défice de ‘pureza artística’ dos seus romances e artigos anómalos, pretende-se não

tanto reintroduzir a antiga querela entre filosofia e poesia, possivelmente endémica

à cultura literária ocidental, como problematizar os contornos em que se constitui

a narrativa dicotómica sobre os dois Tolstoi. Que estes contornos possam ser

apenas entendidos através da antinomia moderna veementemente repudiada por

Tolstoi – a de que a arte é uma categoria distinta da moral, ou de que os nossos

juízos sobre objectos artísticos são, ou deverão ser, independentes do seu conteúdo

moral – é uma questão que será particularmente relevante na discussão da teoria

da arte de Tolstoi.

O segundo capítulo começa com o confronto entre as posições de críticos

“formalistas” (o termo é usado aqui em sentido amplo), como Henry James e

Percy Lubbock, e a de E. M. Forster, para depois discutir duas concepções

distintas de romance, isto é, modos de descrever pessoas. O objectivo é identificar

eventuais pontos comuns entre as ‘arquitecturas literárias’ sob discussão e as

ideias que Tolstoi foi aprofundando e explorando ao longo de toda a sua carreira,

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de modo a consumar o propósito de oferecer uma “expressão artística verdadeira

de um objecto”. Isto passará por equacionar a possibilidade de, num segundo

momento, ler a crítica de Tolstoi à arte dramática de Shakespeare à luz dos

argumentos dos críticos da ausência de “unidade literária” de Guerra e Paz, para

os quais a forma mais acabada que a ficção pode assumir é a representação

dramática. Com isto, pretende-se avaliar se a simetria que deste confronto

eventualmente decorra pode ser perspectivada como uma capitulação por parte de

Tolstoi às exigências de uma “arte da ficção”, transgredida até ao momento em

que resolve submeter a sua arte a uma nova concepção de literatura que sacrifica o

individual para exprimir o universal.

Esta possibilidade será testada à medida que se revisitarem os insólitos

argumentos de Tolstoi contra Shakespeare e, em especial, contra a “bardolatria”

(capítulo 3). Ao abordar Shakespeare e o Teatro pretende-se, em primeiro lugar,

chamar a atenção para um ensaio que tem sido ignorado pelos críticos, ocidentais e

russos, e demonstrar por que razão os seus escassos leitores estão errados quando

o consideram mais uma extravagância do Tolstoi converso, ou uma tentativa de

um escritor em declínio de afirmar a sua superioridade diante do seu único rival na

história da literatura. No curso deste capítulo, avaliar-se-ão igualmente as

hipóteses de aproximar os argumentos de Tolstoi contra Rei Lear aos comentários

ambíguos tecidos por Wittgenstein sobre a impossibilidade de se “usar” ou de falar

do “grande coração” de Shakespeare, como poderá falar-se de outros artistas que,

não sendo “criadores de linguagem” como o dramaturgo inglês, têm, contudo,

alguma coisa para ensinar. Ao propor-se que o ensaio de Tolstoi sobre a hipnose

shakespeareana seja entendido como uma auto-crítica – uma peça fundamental do

estudo da “fisiologia das ilusões” empreendido pelo seu autor sob diversas formas

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– abre-se o caminho para a discussão do método de composição unificado que

Tolstoi contrapõe às ficções de Shakespeare (capítulo 4). Um dos tópicos em

análise no último capítulo será o que se poderá aprender, na acepção de

Wittgenstein, com os métodos através dos quais Hadji-Murat “torna estranho o

familiar” e “familiar o estranho”. Para tal, começar-se-á por referir as leituras

paradoxais a que esta novela deu origem, ora sendo apodada de uma “parábola

sem sentido”, esvaziada de linguagem; ora entendida como um regresso à “pura

arte” praticada antes de Tolstoi sacrificar a arte à moral; ora caracterizada como

um texto filosófico, cuja intenção (ética) só pode ser compreendida através da

aceitação da regra do make-believe: ler o não-sentido como provido de sentido.

Por fim, discutir-se-ão os possíveis significados do que Cora Diamond refere

como a “estranha lacuna do ético” de textos literários como Hadji-Murat ou o

Tractatus. Com isto, espera-se clarificar as muitas referências, nos escritos de

Tolstoi, às dificuldades que se colocam quando se pretende tornar a arte universal.

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NOTA SOBRE A TRANSLITERAÇÃO E SOBRE AS DATAS Não sendo esta uma tese de linguística, nem a sua autora uma especialista

em língua russa, optou-se por uma simplificação do sistema de transliteração do

alfabeto cirílico para o latino, proposto por Maria Teresa Ferreira e Ana

Prokopyshyn, que, em casos pontuais, foi adaptado de acordo com o sistema da

American Library Association e da Library of Congress (ALA-LC).

Na transliteração dos nomes próprios, procurou seguir-se uma variante do

sistema mais familiar ao leitor português, que omite os sinais brandos e, em final

de palavra, translitera ий por i.

Por uma questão de uniformização, optou-se por omitir a acentuação

gráfica dos termos russos transliterados, presente nas traduções portuguesas

utilizadas. Na Bibliografia, os títulos das obras de Tolstoi surgem tal qual foram

publicados.

As datas dos diários e da correspondência de Tolstoi seguem o calendário

Juliano, utilizado na Rússia até 1917. No século XIX, estava doze dias atrasado

em relação ao calendário Gregoriano e, no século XX, treze dias.

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TRANSLITERAÇÃO DO ALFABETO RUSSO *

RUSSO – LATINO RUSSO – LATINO

А a - a

П п - p

Б б - b

Р р - r

В в - v

С c - s

Г г - g

Т т - t

Д д - d

У у - u

Е е – e

Ф ф - f

Ё e - ë

Х х - kh

Ж ж - j

Ц ц - ts

З з - z

Ч ч - tch

И и - i

Ш ш - ch

Й й - i

Щ щ - Shch

К к - k

Ы ы - y

Л л - l

Ь ь - ’ (Sinal brando)

М м – m

Э э - e

Н н – n

Ю ю – iu

О о – o

Я я – ia

* Versão modificada e adaptada do sistema proposto por Maria Teresa Ferreira e Ana Prokopyshyn em: Os Yeres no sistema nominal do ucraniano e do russo. Breve descrição e análise. (Trabalho realizado para o Seminário de Fonologia Eslava, sob tutoria de Gueorgui Hristovsky, no âmbito do Mestrado em Linguística Geral, FLUL, 2007 [não publicado]).

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LISTA DE ABREVIATURAS

OQA? O Que é a Arte?

ST Shakespeare e o Teatro

HM

Hadji-Murat

AEQA Aquilo em Que Acredito

OME

Os Meus Evangelhos

TLP

Tratado Lógico-Filosófico

IF

Investigações Filosóficas

CV

Cultura e Valor

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É mais fácil escrever dez volumes de filosofia do que pôr um único princípio em prática.

Lev Tolstoi, 17 de Março de 1847

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CAPÍTULO 1

A FOX WANTING TO BE A HEDGEHOG: LIXO, FICÇÃO OU FILOSOFIA?

That is the impressive thing about the remarks of nineteenth-century Russian writers – they mean what they say.

John Bayley

It is difficult in every case to reconcile Tolstoy the great artist with Tolstoy the almost venomous reformer.

G. K. Chesterton Lev Nikolaevitch Tolstoi não era um filósofo profissional nem um

teólogo treinado. Contudo, a dada altura, no que se convencionou chamar a sua

“segunda fase”, e no seguimento de uma autoproclamada “revolução espiritual”,

do seu vigiado atelier deixaram de sair os tão aguardados romances e novelas

seriados para começarem a sair inusitados tratados morais e de exegese bíblica.

Para mortificação dos seus pares, público, mulher e editora, o ‘gigante’

incontestado da literatura russa do século XIX anunciava o fim da sua carreira de

ficcionista para se devotar ao estudo das escrituras e do Cristianismo.

A famosa conversão de Tolstoi, ou o que tem sido também analisado

como um “ataque de melancolia agudo”12, surge descrita em Confissão (1879-82).

Nesta narrativa autobiográfica, inicialmente concebida como um prefácio, tal

12 Cf. William James, The Varieties of Religious Experiences (1902) e Daniel Rancour-Laferriere,

“Does God Exist? A Clinical Study of the Religious Attitudes Expressed in Tolstoy’s ‘Confession’”, The Slavic and East European Journal, vol. 49, Fall, 2005, pp. 445-473. Rancour-Laferriere caracteriza a conversão descrita em Confissão com a mesma expressão que William James emprega na sua análise sobre um dos representantes da “alma doente” ou do “divided self” (James, op. cit., p. 149): “uma maravilhosa descrição de ataque agudo de melancolia.” (Laferriere, op. cit., p. 447).

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como o título original sublinhava13, Tolstoi relata a sua busca pelo sentido da vida.

Embora não exclua o passado do seu relato e aluda, nos primeiros capítulos, à

erosão da fé da infância e à adesão ao “culto da arte”, à dissipação da juventude ou

ainda ao período dedicado à família e à consolidação da fama e fortuna, Tolstoi

centra a sua narrativa na terrível crise que no auge da sua carreira e faculdades

subitamente o acomete, retirando todo o valor à vida e levando-o à beira do

suicídio: “‘Está bem, vais ser mais famoso do que Gogol, Puchkin, Shakespeare,

Molière, do que todos os escritores do mundo – e depois?’ E não sabia nada,

absolutamente nada. As perguntas não querem esperar, precisam de uma resposta

imediata; se não responder, não posso viver. Mas não há resposta”14.

Nos treze capítulos seguintes, Tolstoi descreve, numa narrativa repleta de

metáforas, alegorias e extraordinárias descrições de sonhos, as etapas da sua busca

de uma resposta a esta questão: “Como viver?” Assim, conta-nos as suas

deambulações pela “floresta da ciência humana” e pelas “trevas dos

conhecimentos especulativos” (Confissão, 57); o repúdio da ‘sabedoria negativa’

de Salomão, Sócrates ou Shopenhauer, a qual apenas confirma que “a morte é

melhor do que a vida” (idem, 70); a descoberta de que, em contraste com os

“pseudocrentes” do seu círculo social, as crenças do povo russo eram

inextrincáveis das suas vidas, “uma condição imprescindível” para aquelas (idem,

101); a submissão, tão fervorosa quanto fugaz, à tradição religiosa ortodoxa; a

aceitação de que somente o conhecimento dado pela fé (que introduz a relação

entre o finito e o infinito) pode solucionar o problema da vida, não contudo por

13 Ispoved’ – Vstuplenie k nenapetchatannomu sotchineniiu [Confissão – Introdução a uma Obra

por Publicar]. A obra por publicar aludida no título é Crítica da Teologia Dogmática [Issledovanie dogmatitcheskogo bogoslaviia, 1879-82], onde o autor consuma a intenção expressa no final abrupto de Confissão de estudar o dogma cristão.

14 Confissão, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad., coment., notas), s.l.: Edições Alfabeto, 2010, p. 42.  

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dizer o sentido da vida, expresso em alguma teoria, argumento ou conjunto de

regras, mas por mostrar o caminho para o evanescimento do problema. Se, nas

suas investigações filosóficas, Tolstoi veio a reconhecer que os seus raciocínios

“giravam em torno de um círculo vicioso, como uma roda que não agarrava a roda

dentada” (idem, 96), e que as respostas do conhecimento à questão da vida nada

clarificavam, sendo antes uma mera “indicação de que a resposta podia ser obtida

caso a pergunta fosse colocada de outra maneira”, também nos diz que foi levado

a aceitar a particularidade das respostas obtidas pela via da fé:

Por mais louca que pareça ao meu velho e duro intelecto, esta doutrina

[cristã] é a única esperança de salvação. É preciso estudá-la com cuidado e atenção para a compreender, e não se trata de compreendê-la como compreendo os conceitos da ciência. Não é isto que procuro, nem posso procurar, pois conheço a particularidade da sabedoria da fé. Não vou procurar explicação para tudo. Sei que a explicação de tudo tem de esconder-se, como o princípio de tudo, no infinito. Mas quero perceber de modo a ser levado ao inevitavelmente inexplicável: quero que tudo o que é inexplicável não o seja pelo motivo de as exigências da minha razão serem incorrectas (não, são correctas e, fora delas, nada posso compreender), mas porque tenho consciência das limitações da minha mente.

É indubitável para mim que há verdade na doutrina; mas também é indubitável que há nela uma mentira, e tenho de encontrar a verdade e a mentira e separá-las. (idem, 146-47, itálicos meus)

Para consternação dos seus leitores, a intenção de Tolstoi de encontrar a

verdade, encoberta por séculos de tradição, da doutrina cristã, expressa nas últimas

linhas acima citadas, iria absorvê-lo quase exclusivamente nas últimas décadas da

sua carreira. Com um radicalismo inédito, até para o escritor que durante o período

mais intenso das suas experiências pedagógicas, no início da década de 60, já

argumentava, contra os literati, que os versos dos seus alunos camponeses eram

superiores aos de Puchkin, Tolstoi proclamava, em Confissão, a inutilidade de

“mirar a vida no espelhinho da arte” e renegava a “fé na arte e na poesia” (idem,

42) que até então sustentava a sua vida e lhe conferia valor.

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A nova renúncia à literatura, dos finais da década de 70, não surge,

porém, desta vez como um pretexto para se dedicar, aliás com um entusiasmo

intermitente, à gestão agrícola ou à instrução primária em Iasnaia Poliana,

enquanto maturava num novo manifesto literário e se iniciava em Homero e Esopo

na língua original. O estudo das fontes orais europeias e da linguagem do

quotidiano dava agora lugar a um outro projecto: encontrar a forma adequada para

escrever, na primeira pessoa, a história da “ardente e apaixonada procura de um

sentido para a vida”, a história da sua “busca pela fé”15.

Podemos ver a ideia para este projecto – que Confissão inaugura –

amadurecer ao longo da década de 70, quando ainda imerso na escrita de Anna

Karenina (1873-1878) Tolstoi inicia uma intensa discussão filosófica sob forma

epistolar com o amigo, crítico literário e filósofo Nikolai N. Strakhov. A

importante troca epistolar entre os dois escritores, além de antecipar algumas das

questões centrais abordadas em Confissão e nas obras sobre religião que se lhe

seguiriam, revela a gradual transformação dos interesses de Tolstoi à medida que

testa novos meios para falar sobre a “revolução espiritual” em curso. As reflexões

sobre tópicos literários e as tentativas de redefinir, sob a égide do amigo filósofo, o

método através do qual a “verdadeira filosofia” deverá responder às três questões

de Kant16, sem visar “corrigir os conceitos primitivos mais simples do ouvinte”17,

15 Tolstoi constata, a dada altura, que apenas a filosofia, a “verdadeira filosofia”, poderá constituir

uma “espécie de profession de foi”. Carta a Strakhov, Tolstoy’s Letters, vol. I, R. F. Christian (ed. e trad.), New York: Charles Scribner’s Sons, 1978, p. 280.

16 Das três perguntas de Kant – “O que posso saber?”, “O que devo fazer?” e “O que posso esperar?”, Tolstoi elege a segunda como a mais importante para a filosofia (idem, pp. 312-315).

17 Numa importante carta, Tolstoi tenta redefinir o método da filosofia, ou melhor, o seu método para falar sobre o sentido da vida, e explicar a Strakhov porque é que a “Filosofia deve deixar tudo como é”. Em contraste com o método das ciências positivas, cujas explicações dependem da redefinição de certos conceitos, “os conceitos básicos da filosofia, os elementos que a compõem, nunca se alteraram no curso da história da humanidade – nem para um homem primitivo nem para um homem Sábio. O meu corpo, a minha alma, a minha vida, a minha morte, o meu desejo, o meu pensamento, Eu sinto dor, eu sinto-me mal, eu sinto-me bem, eu sinto-me feliz, são sempre o mesmo e não podem ser nem mais evidentes nem mais obscuros

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dão lugar às cogitações em torno do que é definido a dada altura como “as

questões do coração”. As questões às quais,

[d]esde que a humanidade existe, as pessoas têm respondido, não através

das palavras, o instrumento da razão, parte da manifestação da vida, mas através das suas vidas, através de acções, das quais as palavras são apenas uma parte. Todas estas crenças que eu e você temos, que todas as pessoas têm, estão assentes, não em palavras e argumentos, mas numa série de acções humanas e formas de vida que influenciam directamente os outros (como um bocejo), começando pelas vidas de Abraão, Moisés, Cristo, e os Santos – mesmo através das suas acções exteriores: genuflexões, jejum, cumprir os dias de jejum, e por aí adiante. Em toda a incontável cadeia de acções destas pessoas, certas acções, por algum motivo, destacaram-se e constituíram toda uma tradição, servindo como a única resposta às questões do coração. E, por isso, para mim, nesta tradição nada há de absurdo, como não entendo sequer como pode alguém aplicar o teste do sentido e do não sentido a estes fenómenos”18.

Enquanto centrava os derradeiros capítulos de Anna Karenina na luta de

Levin para não cair na “armadilha das palavras que lhe colocavam os filósofos”,

até aceitar a impossibilidade de exprimir por palavras o novo sentimento do bem

que se alojara na sua alma, sem o modificar ou iluminar repentinamente, “como

sonhava”19, Tolstoi mergulhava no estudo da tradição e da ‘gramática da fé’,

preparando-se para aquele que viria a considerar “o melhor trabalho do [seu]

pensamento”20: a análise da teologia dogmática e a tradução dos evangelhos.

Nas suas investigações, que o conduzem à busca da “forma do

Cristianismo mais puro”21, Tolstoi rodeia-se de traduções da Bíblia em diversas

línguas; discute com Strakhov os problemas conceptuais da “abordagem

materialista” às escrituras e insta o seu “único amigo espiritual” a renunciar ao

para um selvagem ou um Sábio”. A verdadeira filosofia (religiosa) não deve por isso tentar “corrigir os conceitos primitivos mais simples do ouvinte, mas procurar o sentido da vida sem dividir em partes constituintes os elementos essenciais da vida de qualquer homem”. Cf. Tolstoy’s Letters, vol. I, pp. 283-291.

18 Carta a Strakhov, idem, p. 314. 19 Lev Tolstoi, Anna Karenina, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.). Lisboa: Relógio d’Água,

2008, pp. 794, 822. 20 “lutchchee proizvedenie moei mycli”. Cf. Carta a Vladimir G. Tchertkov (19.3.1884), citada em:

http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_1906_perepiska_s_yagnom.shtml. 21 Carta a Strakhov, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 309.

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“logro do conhecimento”, inerente às buscas do Jesus histórico22; consulta rabis e

latinistas para confirmar as suas descobertas filológicas e decide que, ao contrário

do amigo, pode e deve começar a “escrever a sua vida”23.

Se até aqui a ficção, e o romance em particular, serviam para falar sobre

as questões “verdadeiramente filosóficas”, isto é, sobre a busca de um sentido para

a vida, no momento em que Tolstoi começa a escrever Confissão tem um novo

arsenal de recursos para descrever aquilo que Levin resolve manter em segredo,

até mesmo da sua “família feliz”, por ser intraduzível para a linguagem: o

processo de “transferência do seu centro de gravidade para o mundo espiritual”24.

Por outras palavras, o seu percurso através das clareiras e trevas dos

conhecimentos especulativos até se libertar da ilusão do conhecimento absoluto e

conseguir ver “o mundo a direito”25. Ou ainda, na imagem emprestada do

misterioso sonho sobre o abismo que Tolstoi insere no final de Confissão – para

refrescar o entendimento dos leitores que o compreenderam ao longo do seu relato

–, o modo como veio a convencer-se de que, embora a vida esteja assente num

“fino pilar” e este “não se apoie em nada”, ele está absolutamente seguro26.

Os protestos contra o que parecia ser a renúncia final à literatura em prol

22 Tolstoi era tão céptico quanto Wittgenstein em relação à inteligibilidade de argumentos

históricos para discutir temas relacionados com religião. Além da crítica à escola historicista de Renan e Strauss, tecida nos prefácios a Os Meus Evangelhos e Os Quatro Evangelhos Harmonizados e Traduzidos, Tolstoi, nas suas discussões epistolares, repreende Strakhov por nutrir admiração pela obra de Renan, reivindicando que esta resulta de erros metodológicos grosseiros, tais como os de confundir “a expressão absoluta da doutrina [cristã] com a sua expressão na história, reduzindo-a a uma manifestação temporal, para a discutir. Se a verdade cristã é elevada e profunda, isto apenas acontece porque ela é subjectivamente absoluta. Mas se a olharmos na sua manifestação objectiva, estará então logicamente no mesmo nível do Código de Napoleão, etc.” Cf. Carta a Strakhov, Tolstoy’s Letters, vol. I, pp. 321-23.

23 No final de 1879, Tolstoi escreve uma carta a Strakhov onde, desiludido com a professa incapacidade do seu interlocutor em pôr em prática a doutrina cristã, retira o seu apoio ao projecto de Strakhov de escrever uma obra da natureza de uma “confissão”, e afirma que ele não “deve escrever a sua vida” porque “não sabe o que nela tem sido bom e mau”. Carta a Strakhov, idem, pp. 326, 335-36.

24 Carta a Strakhov, idem, p. 336. 25 Wittgenstein, TLP, §6. 54. 26 Confissão, p. 151.

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da filosofia e do ascetismo religioso não demorariam a fazer-se ouvir. Ivan

Turguenev, após regressar à Rússia e reatar as relações com o antigo protegido,

interrompidas desde o violento desentendimento entre ambos, em 186127, mostra-

se inconsolável com o novo Tolstoi que encontra aquando da sua visita, no final de

1880, a Iasnaia Poliana: “É um pecado imperdoável Tolstoi ter parado de escrever

[...] Um artista assim, um talento de primeira ordem assim – nunca tivemos, nem

nunca teremos, entre nós. Na literatura europeia contemporânea ele não tem

igual”28.

Rodeado de “Bíblias e Evangelhos em quase todas as línguas”, Tolstoi

dedica-se agora à escrita de “pseudo-interpretações” bíblicas, que guarda numa

arca repleta de outros textos éticos incompreensíveis. Em suma, “mergulhou no

misticismo” e aparentemente “não dará nada mais à literatura ou, se reaparecer,

será com aquela arca”, conclui Turguenev, tão perplexo quanto desiludido por

Tolstoi recusar-se a aceitar a evidência de que aqueles escritos éticos “não são a

coisa mais importante”29. (É curioso notar que a reacção céptica de Turguenev não

é muito distinta da de Bertrand Russell, quando se depara com o ‘novo’

Wittgenstein, acabado de regressar da guerra e do cativeiro: “Já tinha sentido no

seu livro um travo de misticismo, mas fiquei atónito quando descobri que ele se

tornara num completo místico. Anda a ler pessoas como Kierkegaard e Angelus

Silesius e considera seriamente tornar-se monge.”30)

Dois anos mais tarde, Turguenev faz uma nova, e derradeira, tentativa de

27 O corte de relações entre os escritores prolongar-se-ia durante 17 anos. Foi motivado por uma

discussão trivial, em torno da educação da filha natural de Turguenev, que terminou com insultos de ambas as partes e com Tolstoi a desafiar Turguenev para um duelo, o qual não teria lugar.

28 Citado em Aylmer Maude, The Life of Tolstoy, Later Years, Kessinger Publishing, s.l., s.d., p. 19.

29 Idem, pp. 19-20. 30 Carta de Bertrand Russell a OM (20.12.19), citada em Brian McGuinness, Wittgenstein, A Life.

Young Ludwig 1889-1921, London: Penguin Books, 1990, p. 279.

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persuadir o converso. No seu leito de morte, escreve a Tolstoi, implorando-lhe que

satisfaça o último desejo de um homem moribundo, abandone o anunciado estudo

da teologia e regresse à literatura – à actividade que o consagrara como “o grande

escritor da Rússia”31. Quer o comovido apelo de Turguenev, quer o de muitos

outros que vieram juntar-se-lhe, incluindo o da sua mulher e editora, não

demoveram Tolstoi da intenção, expressa no último capítulo de Confissão, de

colocar a sua actividade literária ao serviço da divulgação dos princípios morais

redescobertos durante a grande crise que se seguira à conclusão de Anna

Karenina. Ao invés de compor mosaicos monumentais a partir do estudo da

história privada e pública da Rússia, a missão de Tolstoi era agora outra: pôr por

escrito o resultado das suas investigações teológicas (o seu trabalho exterior sobre

o Evangelho) e descrever o modo como veio a compreender o sentido da doutrina

cristã (o seu trabalho interno sobre o Evangelho). Recorrendo à imagem que

Tolstoi usa, em Aquilo em Que Acredito, para falar sobre a face interna deste

trabalho de arqueologia linguística, trata-se de perceber a figura da estátua

completa, por baixo de um amontoado de pedaços partidos32.

Numa carta dirigida à mulher, Sofia A. Tolstaia, onde discorre sobre as

consequências práticas da experiência de conversão descrita em Confissão, Tolstoi

pede para que o que tanto ela como o seu público insistem em ver como um ataque

de loucura e de apostasia literária semelhantes às de Gogol seja percepcionado

como o que na realidade é: uma “revolução espiritual” que, catapultando-o da

“região dos sonhos e das sombras para a vida verdadeira”, o impossibilita de

continuar a viver na ilusão como até então e a escrever as obras literárias 31 Carta de Turguenev de 27 Junho 1883, citada em Maude, op. cit., pp. 182-188. Cf. Paul Birukov

(ed. e trad.) e Lev Tolstoi (rev.), Leo Tolstoy, His Life and Work, vol. I, New York: Charles Scribner’s Sons, 1906, p. 207.

32 What I Believe [V tchem moia vera?, 1884], Constantine Popov (trad.), Kessinger Publishing, s.l., s.d., pp. 4-5.

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insignificantes que escrevia antes de aplicar os seus talentos discursivos aos novos

“artigos” religiosos que exprimem “todo o seu ser”33.

Com efeito, não obstante as pressões por parte da família, do público,

amigos e pares, Tolstoi não abandonaria o estudo aturado das sagradas escrituras,

ocidentais e orientais, nem o firme propósito de orientar a sua vida de acordo com

a doutrina evangélica. Mas também, ao contrário do que Turguenev previra, não

voltaria a fazer a sua aparição apenas com “aquela arca” repleta de escritos

místicos incompreensíveis. Além da tradução e reescrita dos Evangelhos, dos

tratados sobre religião, moral, economia, vegetarianismo ou arte, que se lhe

seguiriam, circulando na maior parte dos casos em edições ou cópias clandestinas,

Tolstoi produziria ainda, a partir de meados da década de 80, inúmeros contos e

lendas, obras dramáticas, um último terceiro grande romance, Ressurreição, e

ainda Hadji-Murat, “a melhor história do mundo”, na influente descrição que dela

faz Harold Bloom34.

Não pretendo discutir os aspectos psicológicos ou históricos que resultam

da perspectivação da carreira de Tolstoi em dois momentos radicalmente distintos,

nem tão pouco aplicar-me, pelo menos de modo directo, na refutação da imagem

antagónica que esta pressupõe: a de autor de ficção e a de autor de tratados

filosófico-religiosos. Muitos argumentos poderiam ser aduzidos para, se não

invalidar, pelo menos questionar o carácter inequívoco da narrativa dicotómica

dos dois Tolstoi, bem como os seus benefícios para a discussão da obra, anterior e

posterior a Confissão.

Esta questão é hoje consideravelmente mais consensual do que à época

33 Cf. Tolstoy’s Letters, vol. I, pp. 393-99. A metáfora socrática do despertar recorre em toda a

obra de Tolstoi, pré-anos 70 e pós-anos 70. 34 Harold Bloom, “Tolstoy and Heroism”, The Western Canon, New York: Riverhead Books,

1995, p. 335.

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em que Boris Eikhenbaum se insurgia contra esta visão predominante, enfatizando

o papel das crises morais recorrentes de Tolstoi para a criação de novas formas

literárias35. Ou do que quando o crítico português João Gaspar Simões denunciava

a “apostasia artística” do Tolstoi pós-Anna Karenina e o declarava um “caso

concludente” que confirmava a tese de que o “artista nunca poderá ser, enquanto

artista, um verdadeiro homem moral”36. Contra o diagnóstico deste crítico parece-

me suficiente afirmar que O Que é a Arte? (OQA?)37, cuja publicação provocara

previsivelmente um “ataque de histeria” nos círculos literários europeus38, é mais

do que o resultado de um complexo de ciúme e de humilhação pessoal resultante

de um malogrado episódio familiar39.. Embora Tolstoi rasure, numas escassas

páginas, não só dois séculos de reflexão sobre arte como praticamente todo o

cânone artístico ocidental, verifica-se que OQA?, após décadas de esquecimento e

de referências pouco abonatórias da parte de críticos e filósofos, começa a integrar

antologias sobre Estética. A “pacificação” da “estranheza” com que OQA? é

recebido poderá revelar, como G. S. Morson refere, uma profunda ironia (tão

profunda quanto a canonização de Guerra e Paz como um romance exemplar),

35 O crítico russo Boris Eikhenbaum foi o primeiro crítico a rejeitar a visão predominante de que,

após Confissão, Tolstoi se tornara num moralista: “Isto não é verdade. As crises acompanham toda a obra de Tolstoi.” (Boris Eikhenbaum, “On Tolstoy’s Crises”, Tolstoy: A Collection of Critical Essays, Ralph E. Matlaw (ed. e trad.), Englewood Cliffs: Prentice-Hall, Inc., 1967, p. 53) Eikhenbaum articula os argumentos no seu seminal Molodoi Tolstoi [O Jovem Tolstoi], onde analisa a retórica dos “sermões” a partir da qual o jovem Tolstoi constrói as narrativas de Sevastopol.

36 João Gaspar Simões, “Tolstoi, Apóstata da Arte”, Novos Temas: Ensaios de Literatura e Estética, Lisboa: Inquérito, 1938, pp. 27-33.

37 What is Art? [Tchto takoe iskusstvo?, 1897], Richard Pevear e Larissa Volokhonsky (trad.), London: Penguin, 1995.

38 O biógrafo e tradutor oficial de Tolstoi para língua inglesa, Aylmer Maude, refere que o “verdadeiro ataque de histeria” gerado aquando da publicação de OQA? se deveu parcialmente ao facto de esta obra ter sido primeiramente publicada truncada, o que distorceu o teoria de OQA? e promoveu os subsequentes ataques a Tolstoi. A imprensa francesa publicou apenas um capítulo de OQA?, ainda inédito na Rússia e Inglaterra, e não surpreendentemente o capítulo escolhido foi aquele onde Tolstoi ridiculariza a poesia decadente dos simbolistas franceses (cf. Lev Tolstoi, “Editor’s Note”, Recollections and Essays, Aylmer Maude (ed. e trad.), Centenary Edition, Oxford: OUP, 1937, p. xv).

39 O enamoramento de Sofia Tolstaia pelo músico virtuoso Taniev.

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dada a radicalidade com que Tolstoi nele disputa a legitimidade de uma “ciência

do Belo” e dirime as bases do discurso crítico sobre as quais assentara até então a

disciplina que agora o antologiza40. O lento processo de integração de OQA? no

discurso sobre arte poderá, por outro lado, parecer menos insólito se tivermos em

mente as transformações metodológicas e teóricas que, a partir da década de 50,

imprimiram um novo curso à reflexão filosófica e ao discurso crítico sobre arte,

particularmente no universo anglófono. Muitos autores e críticos de arte a

trabalhar na tradição da filosofia analítica rejeitaram a abordagem da estética

tradicional e a sua busca de propriedades intrínsecas em obras de arte. Importando

para o domínio da estética as ideias sobre a linguagem do ‘segundo Wittgenstein’

– e o princípio tão glosado de que “o sentido de uma palavra é o seu uso”41 –

autores como Morris Weitz inauguraram formas de pensar, caracterizar e definir a

arte que permitiram simultaneamente acomodar as novas formas artísticas que

desafiavam as definições tradicionais de arte (readymades, objets trouvés, arte

pop, etc.). Tolstoi, na sua revisão do domínio, repudia todas as abordagens teóricas

ao fenómeno artístico (seja a tentativa de reduzir a arte à manifestação da Ideia, à

imitação da natureza, à catarse fisiológica, ao prazer interessado ou

desinteressado). De acordo com a leitura de Tolstoi, todas partem de uma mesma

premissa falsa: a de que a arte deve ser definida em termos de uma teoria

metafísica, qualificada depreciativamente como a “ciência do belo”, ou do que “é

simplesmente agradável aos sentidos”, i.e., a Estética. Se o cepticismo de Tolstoi

em relação à capacidade explicativa das teorias da arte desenvolvidas pelos

filósofos britânicos e continentais ali citados o leva a concluir laconicamente que 40 Gary Saul Morson, Hidden in Plain View: Narrative and Creative Potentials in ‘War and

Peace’, Aldershot: Scolar Press, 1988. 41 “Para uma grande classe de casos – embora não para todos – do emprego da palavra ‘sentido’

pode dar-se a seguinte explicação: o sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem.” Wittgenstein, IF, I, §43.

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“não existe uma definição objectiva da arte” (OQA?, 33), Morris Weitz, num dos

textos seminais da estética analítica, parte de uma posição compatível com a de

Tolstoi e disputa mesmo a possibilidade lógica de definir o conceito de “arte”.

Invocando os conceitos de “semelhanças de família” e de “jogo”, com os quais

Wittgenstein disputa, nas Investigações Filosóficas, as teses essencialistas sobre a

linguagem, Weitz argumenta que, não existindo uma propriedade comum a todos

os objectos aos quais se aplica o termo “arte”, este é um conceito aberto e, como

tal, impossível de ser definido. Weitz conclui que: “a teoria estética é uma

tentativa fútil de definir aquilo que não pode ser definido, de estabelecer as

condições necessárias e suficientes daquilo que não tem propriedades necessárias e

suficientes, de conceber o conceito de arte como fechado quando o seu uso revela

e exige a sua abertura”42.

Uma vez que o tópico deste ensaio não é a teoria de Weitz, não pretendo

objectar à sua conclusão, contrapondo que do facto de não ser possível identificar

uma propriedade (observável) comum a todos os objectos de arte não se segue a

impossibilidade de se construir uma definição de arte ou fazer generalizações

sobre ela. Aproveito, porém, este parêntesis para fazer ainda notar que, como se

espera vir a tornar claro, a teoria de arte de Tolstoi não se centra nas propriedades

observáveis exibidas por determinadas obras artísticas.

Retomando o tópico sob discussão – o conflito entre arte e moral,

subjacente à narrativa dicotómica sobre os dois Tolstoi –, poder-se-ia igualmente

acrescentar que outros contos tardios que não apenas A Morte de Ivan Ilitch (1886)

poderiam ser citados para tornar problemático o argumento de João Gaspar

42 Morris Weitz, “The Role of Aesthetics”, Aesthetics and the Philosophy of Art. The Analytic

Tradition, Peter Lamarque e Stein H. Olsen (eds.), Oxford: Blackwell Publishing, 2004, p. 14. Mais adiante, no capítulo 3, regressaremos a OQA?.

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Simões que afirma que um homem bom não produzirá um bom romance,

porquanto “o papel fundamental da arte consiste na revelação do homem tal como

é e não tal como desejaria poder ser”43. Com efeito, após o suposto “esgotamento

da sensibilidade artística”, Tolstoi, o profeta da não-violência, não produziria

apenas um “romance falhado” (i.e. Ressurreição) como produziria, malgré lui

même, ou malgré a teoria ‘psicologista’ do biógrafo e editor de Fernando Pessoa,

muitos outros contos e parábolas “sem par na literatura secular”44, pesem embora

os veredictos menos favoráveis, recorrentes na história da recepção crítica da obra

de Tolstoi pós-Confissão.

Sobre estes comentários, desfavoráveis à intromissão da moral (e não é

claro ainda o que deveremos entender por isto) na obra tardia do autor, constata-se

que é tão ou mais difícil isolar o artista do filósofo, destilando a literatura da

doutrina, os enunciados ficcionais dos enunciados não-ficcionais (ou das

“afirmações absolutas”45), nas obras tardias como nas obras anteriores. Tolstoi, o

“apóstata da arte”, munido de uma inusitada autoridade moral – mesmo no

contexto da tradição literária russa, historicamente pouco propensa a respeitar

convenções ou categorias estéticas –, está presente desde os primórdios. A

“retórica dos sermões”, através da qual Tolstoi parodia a ética do “comme il faut”

na sua trilogia autobiográfica46, bem como as estratégias didácticas que visam

implicar o leitor na narrativa, instando-o a aceitar a tese de que a experiência

43 João Gaspar Simões, op. cit., p. 39. 44 H. O. Mounce. Tolstoy On Aesthetics: What is Art?, Aldershot: Ashgate, 2001, p. 2. 45 Gary Saul Morson analisa instâncias da “linguagem absoluta” de Tolstoi e insere-as numa

estratégia do romance anti-convencional ou da narrativa didáctica. A análise incide em particular nas afirmações “categóricas”, que evadem a interpretação porque, tal como um mandamento bíblico, não podem ser interpretáveis ou falsificáveis (e.g. provérbios, epígrafes e citações bíblicas, silogismos, deduções matemáticas). Cf. Morson, “Tolstoy’s Absolut Language”, op. cit., pp. 9-35.

46 Cf. Tolstoi, Infância, Adolescência e Juventude [Detstvo, Otrotchestvo, Iunost’, 1852, 1854, 1856], Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Lisboa: Relógio d’Água, 2012.

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estética é imoral47, ou ainda as citações bíblicas com as quais indica que as suas

obras podem ser interpretadas, não como romances realistas, mas como textos

religiosos, com uma mensagem moral48, não emergem no seguimento de uma crise

de meia-idade, disfarçada de crise religiosa.

Poder-se-á igualmente acrescentar, por exemplo, que as reflexões do

narrador ‘precoce’ de Adolescência em torno do ponto de vista solipsista e do

cepticismo resultante do idealismo associado à filosofia de Schelling culminam, à

semelhança das narrativas de outros protagonistas que se lhe seguiriam, com a

apologia, não exactamente de um sistema filosófico, mas de uma forma de vida,

cuja essência reside na “adoração do ideal da virtude e na convicção de que a

finalidade da vida do homem é a de se aperfeiçoar continuamente”49. Esta

convicção, não obstante o autoproclamado fracasso do narrador na sua

concretização50 e os diferentes enquadramentos teleológicos que receberá,

atravessa toda a obra do autor, ficcional ou ensaística.

Aos leitores de Confissão não passarão despercebidos os pontos de

contacto entre, por exemplo, as demandas filosóficas de Olenin, Pierre ou Levin,

com os seus encontros com as ‘almas naturais’, integradas no seu contexto

(Erochka, Platon Karataev e Theodore), e as deambulações do narrador de

Confissão pelas “florestas” e “clareiras” dos saberes humanos, até descobrir, no

meio dos mujiques, dos peregrinos ou iletrados, um novo modo de vida autêntico,

religioso. Tais pontos de contacto, ou contiguidades temáticas, demonstram que

47 Cf. Gary Saul Morson, “The Reader as Voyeur: Tolstoy and the Poetics of Didactic Fiction”,

Leo Tolstoy (Modern Critical Views), Harold Bloom (ed. e intro.), Philadelphia: Chelsea House Publishers, 1986, pp. 175-190.

48 Andrew Wachtel, “Death and Resurrection in Anna Karenina”, In the Shade of the Giant: Essays on Tolstoy, Hugh McLean (ed.), Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1989, p. 111.

49 Tolstoi, Infância, Adolescência e Juventude, p. 206. 50 “Aliás, Deus é que sabe se esses sonhos nobres da juventude eram ridículos, e também quem

será culpado de não terem chegado a realizar-se” (idem, loc. cit.).

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Confissão, uma obra-prima da literatura religiosa, como bem sublinha H. O.

Mounce, assinala mais uma nova articulação ou um novo ponto de vista do que

uma ruptura radical com um passado de “esteta”, devotado ao cultivo de um estilo

literário isento do didactismo que enforma as obras tardias. Na realidade, esta

descontinuidade é reforçada pelo próprio autor em Confissão, bem como nas obras

que se lhe seguiriam. Embora faça a ressalva de que transportara sempre os

germes da “reviravolta” que se produziria na sua vida por volta dos seus cinquenta

anos51, Tolstoi acentua-a naquela obra porventura mais para efeitos dramáticos do

que de fidelidade biográfica, um vez que os problemas morais com os quais se

debate durante a sua grande crise são, pesem embora as diferentes conclusões e os

contextos distintos, da espécie dos dos seus protagonistas ficcionais: “qual o

sentido da vida?”, “o que é a felicidade?”, “o que é o bem e o que é o mal?” e,

fundamentalmente, “como agir?”.

Sobre o desenvolvimento do que foi denominado de “tolstoismo”, ou a

vertente do “cristianismo espiritual”, criticada por pensadores religiosos como

Berdiaev ou Soloviov pela sua iconoclastia radical e pendor panteísta, e parodiada

por G. K Chesterton num curto texto sobre o “culto da simplicidade” de Tolstoi e

dos seus seguidores52, poder-se-á igualmente referir um trecho eloquente dos

diários da juventude de Tolstoi. Numa entrada de 1855, em plena campanha da

Crimeia, e muito antes da renúncia do suposto niilismo da juventude53, e da

convicção de que o Cristianismo não é uma religião mística mas um

51 Confissão, pp. 103-104. 52 Cf. G. K. Chesterton, “The Cult of Simplicity” (1903), Varied Types. Chesterton também não

poupa a tentativa de Tolstoi de purificar a tradição cristã dos seus elementos mais genuínos, isto é, do paradoxo e da poesia em Orthodoxy (1908).

53 Na Introdução a AEQA, Tolstoi começa por confessar que durante grande parte da sua vida fora um “niilista”, no sentido próprio da palavra, i.e., inteiramente desprovido de fé.

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“conhecimento da vida”54, o futuro tradutor dos evangelhos formula

explicitamente o desejo de devotar a sua vida à realização de uma “ideia

grandiosa”, que surgira no seguimento de uma conversa sobre religião:

[...] fundar uma nova religião que corresponda ao estado em que a

humanidade se encontra no presente – a religião de Cristo, mas purgada de superstições e misticismo, uma religião prática, não prometendo felicidade futura, mas oferecendo felicidade na terra [...]. Trabalhar conscientemente para a união da humanidade através da religião é a base da ideia que espero venha a absorver-me55.

Estas palavras revelar-se-iam estranhamente certeiras se tivermos em

vista que Tolstoi, décadas mais tarde, se iria dedicar – com a temeridade de um

“oficial de artilharia que resolveu traduzir por si mesmo um livro em grego”56 – a

purgar os Evangelhos das suas conotações metafísicas e teológicas e a glosar em

diferentes escritos a ideia de que a essência da “religião de Cristo” não é um

manual de regras divinas, utópicas, mas a “mais completa doutrina de vida, a

partir da qual todas as actividades mais nobres da humanidade em matéria de

política, ciência, poesia e filosofia instintivamente derivam.”57 Tais palavras

revelar-se-iam ainda proféticas se recordarmos um aspecto que as vicissitudes da

recepção da obra de Tolstoi, quer no Ocidente, quer na União Soviética,

relegariam para uma nota de rodapé sobre as excentricidades da história da

literatura, i.e., o estatuto messiânico que Tolstoi, o “Santo Lev”, adquirira nos 54 [razumeniem jizni]: termo usado em Os Meus Evangelhos, com o qual Tolstoi traduz o “Verbo”

de João. 55 Entrada de Março de 1855, Tolstoy’s Diaries, vol I, R. F. Christian (ed. e trad.), London:

Athlone Press, 1985, p. 101. Cinco anos mais tarde, uma outra entrada de Outubro de 1860, depois da morte do irmão favorito Nikolai, e antes da publicação de La vie de Jesus, de Renan (1863), Tolstoi revisita a ideia e acrescenta o seguinte: “Estou a tentar escrever, motivar-me, mas sem sucesso, pelo único motivo que não consigo atribuir ao meu trabalho a importância que é necessária para ter o poder e a paciência para escrever. Durante o funeral, ocorreu-me a ideia de escrever um evangelho materialista, a vida de Cristo – um Materialista.” (cf. Birukov, op. cit., p. 287).

56 Tolstoi refere-se à sua tradução dos Evangelhos desta forma. 57 Tolstoi, The Gospel in Brief [Kratkoe izlojenie Evangeliia, 1881], Isabel Hapgood (trad.),

Lincoln e London: University of Nebraska Press, 1997, p. 32, itálicos meus. Original disponível em versão electrónica em: http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_1380.shtml  

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finais do século XIX. Os frutos do seu labor, simultaneamente teológico e

linguístico, em torno dos Evangelhos, bem como o activismo em prol da causa da

não-violência, tinham-lhe granjeado o epíteto de “O Profeta da Rússia”, e os seus

escritos religiosos eram lidos por esse mundo fora como verdadeiras “encíclicas de

uma grandiosa igreja – a igreja da humanidade”58. Embora Tolstoi repudiasse a

existência de uma “doutrina tolstoiana”59, a versão do cristianismo que emerge das

suas investigações seria, com efeito, erigida numa nova religião por um séquito de

fiéis seguidores – esses “puritanos histriónicos”, os “novos Quakers” do século

XX, na síntese que G. K. Chesterton faz do movimento tolstoiano60. Sob a égide

de Vladimir Tchertkov, o divulgador mais fervoroso do “tolstoismo” no Ocidente,

e com o beneplácito de Tolstoi, este movimento, que não sobreviveria muito

tempo à morte do seu mentor, em 1910, nem à revolução soviética, resultaria no

estabelecimento de inúmeras colónias e comunas clandestinas, não apenas na

Rússia, mas também na Bulgária, em Inglaterra ou no Canadá61.

As sucessivas crises existenciais que surgem da demanda pelo sentido da

vida, que todos os heróis ficcionais de Tolstoi empreendem, de um modo mais ou

menos biográfico, não são assim radicalmente abandonadas nas obras pós-

conversão. Passam antes a ser relatadas predominantemente na primeira pessoa, no

contexto do ensaio e do conto, e através já não de uma galeria infindável de

58 É assim que Hamlin Gardner descreve a sua leitura dos artigos e ensaios religiosos de Tolstoi.

“The Reformer Tolstóy”, Recollections and Essays, Aylmer Maude (trad. e ed.), Oxford: OUP, 1937, pp. vii-viii.

59 “[N]ão existe nenhum tolstoismo ou uma doutrina minha, e nunca existiu; existe apenas um ensinamento universal da verdade tal como expresso de um modo particularmente claro para mim e para todos nós nos Evangelhos”. (Tolstoy’s Diaries, vol. I, p. 255)

60 G. K. Chesterton, “The Cult of Simplicity”, Varied Types, Teddington: The Echo Library, 2006, p. 40.

61 O segundo ashram fundado por Gandhi na África do Sul, no Transvaal, em 1910, seria baptizado com o nome de Tolstoi em homenagem ao defensor da doutrina da não-violência, que tanto influenciaria o método de protesto do herói da independência indiana.

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personagens que revelam através do “monólogo interior”62 a sua corrente de

consciência.

No período em que compunha Guerra e Paz (1863-69), Tolstoi insurgia-

se contra as propostas dos “críticos radicais” de que a arte deveria ter um uso

imediato, social e político, e afirmava antes os “interesses humanos eternos” com

que a literatura deveria ocupar-se, sendo que estes “interesses” não poderiam ser

dissociados da busca da verdade e do bem. Contrariamente ao que se poderia

esperar, esta posição não é incompatível com a proposta mais tardia de OQA?.

Muito antes das formulações que o tópico da condenação da arte moderna

viria a receber nos seus escritos tardios sobre arte, e que serão revisitados nesta

tese, Tolstoi, em resposta a uma carta de Fet, onde o amigo e poeta criticava

Polikuchka (1861) pela sordidez da sua caracterização realista e desapiedada,

ostenta já a atitude deflacionista relativamente à arte, que viria a agudizar-se até

culminar nas afirmações polémicas, distribuídas pelos seus diários e cartas, com as

quais questionará os fundamentos de toda a estética ocidental em OQA? e em

Shakespeare e o Teatro (1903):

Vivo agora num mundo tão remoto da literatura e dos seus críticos que ao

receber uma carta como a sua o meu primeiro sentimento foi de inteira perplexidade. Quem é esta pessoa que escreveu Cossacos e Polikuchka? E o que há a discutir sobre eles? O papel faz com que qualquer coisa perdure e os editores pagam e imprimem seja o que for [...] mas quando se alcança o sentido daquilo que você diz, quando vasculhamos na nossa própria mente e encontramos, algures num recanto, entre outros há muito olvidados disparates, alguma coisa indefinida rotulada de arte. [...] Evidentemente, tem toda a razão. Mas também não há muitos leitores como você. Polikuchka é uma bagatela sobre a primeira coisa que vem à cabeça de um homem que “brande uma boa caneta” nas mãos [...]63.

A concepção da literatura como a afirmação de disparates, como o 62 [vnutrennego monologa], expressão primeiro empregue por Nikolai G. Tchernychevski na sua

análise dos contos de Sevastopol, para designar a qualidade única da caracterização psicológica das personagens de Tolstoi.

63 Carta a A. A. Fet de Maio de 1963, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 180.

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tagarelar inconsequente de alguém que não sabe o que está a dizer, confundindo

aparências com realidade64,, ilusões com impressões verdadeiras da vida, ou como

os malabarismos sonoros de alguém que tenta entreter o seu público a todo o

custo, não surge na sequência de um suposto esgotamento criativo, após o qual

Tolstoi se refugia na escrita de ensaios didácticos e de virulentos ataques contra o

cânone ocidental. Antes, vai sendo testada à medida que se experimentam modos

literários, ou géneros, que permitam continuar a reivindicar-se que o herói, o

protagonista da literatura, é e deverá ser sempre a Verdade65,, seja este não

despiciendo feito realizado através da transcrição do mundo dos sonhos e da

consciência, do tratamento dickensiano das memórias de infância, da reportagem

de guerra, do ensaio ou epílogo filosófico, do registo confessional ou das

adaptações de contos e lendas populares, de Esopo e dos Quatro Evangelistas.

A imagem ainda persistente de um Tolstoi literário, defensor da liberdade

artística contra os chamados “críticos cívicos” (ou críticos radicais) que defendiam

a subordinação da literatura à política (fase 1), e de um Tolstoi filosófico que,

desinspirado, se vira para o fanatismo panfletário, tornando-se no profeta de um

Evangelho literalista (fase 2), contraria a evidência de que ao escritor – mesmo ao

mais comprometido com as poéticas românticas do inefável ou com os rigores da

teologia apofática –, será difícil manter o voto de silêncio sem sacrificar por

completo a literatura. A visão segundo a qual Tolstoi, à época da publicação de

Anna Karenina, continuava a ser considerado – correctamente – pela crítica

64 Nos capítulos 3 e 4, no âmbito da discussão de alguns aspectos da teoria de arte de Tolstoi,

procurar-se-á analisar esta ideia recorrente, não como uma caracterização estável da literatura, facto este refutável a partir dos argumentos avançados em OQA?, mas como tendo uma função propedêutica: a de preparar, quer autor, quer público, para a necessidade de reavaliar o papel e estatuto da arte em geral e da literatura em particular.

65 A célebre frase que encerra “Sevastopol em Maio”: “Geroi je moei povesti, kotorogo ia liubliu vsemi silami duchi, kotorogo staralsia vosproizvesti vo vsei krasote ego i kotoryi vsegda byl, est’ i budet prekrasen, - Pravda.” Cf. Tolstoi, “Sevastopol v mae” (1855), disponível em: http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0270.shtml.

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contemporânea como um dos “paladinos mais ardentes” da “pura arte”66, “o

protagonista da posição da arte pela arte, o representante da pura criatividade,

liberta de toda a tendenciosidade ou doutrina”67 que a corromperiam na fase

posterior, quando a fé religiosa destrona a fé na literatura, não se coaduna com o

corpus tolstoiano nem com as vicissitudes da sua recepção crítica. Como já

referido, o conflito entre dois tipos de fé, ou entre dois objectos de fé68, sobre o

qual assenta a narrativa dicotómica dos dois Tolstoi, surge corroborado pela

terminologia religiosa empregue por Tolstoi em Confissão para falar da inabalável

“fé [vera] na importância da poesia”, que será repudiada pela fé [vera] verdadeira,

a fé em Deus da sua infância, redescoberta após a grande crise espiritual e

existencial69. Porém, verifica-se que a crítica contemporânea, à semelhança do

próprio autor em momentos diferentes da sua carreira, estava longe deste consenso

relativamente aos méritos artísticos das obras pré-conversão e aos deméritos das

obras pós-conversão. Os comentários, a correspondência, os artigos e as recensões

coligidas por Boris Eikhenbaum, Alymer Maude e pelos editores de Tolstoy: The

Critical Heritage (1978) permitem constatar que os sucessos literários de Tolstoi,

particularmente dos seus dois grandes romances, fizeram-se acompanhar de

polémicas acesas em torno do seu défice de “pureza artística” e das características

que deveriam presidir à escrita nos moldes do romance realista. O facto de estas

obras estarem hoje “pacificadas”, e integrarem majestosamente o cânone da

66 Henri Troyat, Tolstoy [Tolstoï], New York: Grove Press, 1967, p. 191. 67 Citado em Don Geiger, “Tolstoy as Defender of a ‘Pure Art’ That Unwraps Something”, The

Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 20, no. 1, Autumn, 1961, p. 81. 68 Este conflito surge sob uma outra formulação numa das primeiras entradas do diário de Tolstoi

de 1852, quando, no seu habitual exercício de auto-escrutínio, compara diferentes objectos de fé e conclui que se o “homem que tem por objecto a felicidade dos outros é virtuoso; aquele que tem por objecto Deus é grandioso”. Citado em Birukov, op. cit., p. 148.

69 Na análise de William James sobre os representantes do “divided self, esta rejeição resulta de um processo exemplar de unificação de uma representação dicotómica do mundo ou “de uma personalidade heterogénea encontrando tardia e lentamente a sua unidade e equilíbrio.” (James, op. cit., p. 186), isto é, de conversão religiosa.

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literatura ocidental, definindo mesmo o género romanesco, permite facilmente

esquecer que foram inicialmente recebidas pelos seus primeiros leitores,

particularmente Guerra e Paz, com inteira perplexidade e estranhamento: “O

próprio autor aparentemente não sabe como definir a sua obra; o título diz

simplesmente que é 1805, pelo Conde Tolstoi”70.

À ambiguidade do título sob o qual Guerra e Paz foi inicialmente

publicado, e que em nada contribuía para esclarecer o género a que pertenceria –

tanto mais que Tolstoi proibira ao editor d’O Mensageiro Russo acrescentar o

subtítulo “romance” –, muitos outros elementos conspiravam para tornar aquela

obra inclassificável e até ilegível para os seus leitores, russos e ocidentais: desde a

incorporação, num eventual “romance de família”, de materiais biográficos e não-

ficcionais (crónicas familiares, dissertações filosóficas, documentos históricos,

ilustrações de mapas ou descrições de operações militares), até à tão lamentada

ausência de unidade temática e de estrutura. Ou, facto não menos perturbador para

os seus primeiros leitores, mesmo no contexto de uma obra cuja primeira cena se

desenrola numa amálgama interlinguística, e cuja frase inaugural exigia uma nota

de rodapé do autor com a tradução para a língua russa, “por algum capricho

inexplicável, metade das personagens fala em francês e toda a sua correspondência

é feita em francês, de modo que praticamente um terço do livro está escrito em

francês”71. A recepção crítica de 1805, mais tarde publicado em forma de livro sob

um título tão ou mais enigmático quanto o seu estatuto ficcional (Guerra e Paz),

estava portanto longe de reunir consenso: “Não conseguimos situar esta obra em

70 Citado em Eikhenbaum, Tolstoy in the Sixties [Lev Tolstoi: chestidesiatye gody, 1931], Duffield

White (trad.), Ann Arbor: Ardis Publishers, 1982, p. 169. 71 Eikhenbaum, loc. cit. Embora exagerada, a estimativa deste recenseador revela o estranhamento

com que o bililinguismo de Guerra e Paz foi recebido. Ou, melhor, o seu multilinguismo, dado que o russo e o alfabeto cirílico alternam não só com o alfabeto latino do francês, mas com o do inglês, alemão, italiano e ainda, como Eikhenbaum faz notar, com uma língua macarrónica, um russo galicizado. (idem, p. 241)

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qualquer dos géneros literários familiares. Não é uma crónica nem um romance

histórico. Embora na forma se aproxime razoavelmente do último, em conteúdo

está desprovido de qualquer unidade dramática; a acção não tem qualquer

direcção; não existe um início, uma intriga e um desenlace”72.

Neste contexto, as referidas caracterizações de Tolstoi como proponente,

no seu período áureo, da teoria da “arte pela arte”, que se apoiam no auto-retrato

dicotómico delineado em Confissão e no discurso de Tolstoi proferido aquando da

sua admissão na Sociedade Moscovita dos Amigos da Literatura Russa, em 1859,

parecem pouco ajustadas. Este discurso, intitulado “A Supremacia do Elemento

Artístico na Literatura”, aproxima de facto Tolstoi da facção representada pelo

“seu precioso triunvirato”73 de críticos esteticistas, que defendiam, contra a teoria

da “arte pela política” dos críticos sociais emergentes, uma concepção de literatura

liberta da necessidade de qualquer justificação ou finalidade exteriores a si mesma.

Embora na biografia autorizada de Paul Birukov, um dos discípulos do

“tolstoismo” e amigo de Tolstoi, nos ser dito que nenhuma cópia integral deste

discurso sobreviveu74, a reacção de A. S. Khomiakov ao discurso de Tolstoi

oferece dados importantes relativamente às ideias por este avançadas.

Ao contra-argumentar a favor da matização da posição idealista

defendida por Tolstoi, na esteira dos estetas alemães, alertando para o facto de que

“nas letras o eterno e o artístico absorvem inevitavelmente o temporário e

transitório [...] e que as diversas correntes do domínio das letras humanas

72 N. D. Akhcharumov em Tolstoy: The Critical Heritage, A. V. Knowles (ed.), London:

Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 91. 73 É desta forma que Tolstoi se refere a Botkin, Annenkov e Drujinin, os “críticos estéticos” que

gravitavam em redor de Turguenev, num movimento de defesa da arte pela arte contra Tchernychevski. Cf. Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 91.

74 Birukov, op. cit., p. 264.

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constantemente fluem juntas e formam uma corrente harmoniosa”75, a reacção de

Khomiakov parece confirmar o esteticismo defendido por Tolstoi na fase inicial da

sua carreira literária, pelo menos em teoria.

Ao questionar o isolamento de Tolstoi face à tendência a que este

depreciativamente chama no seu discurso “literatura denunciadora”76, a resposta

de Khomiakov sublinha as qualidades inovadoras da sua escrita, ideia esta já antes

expressa pelo poeta e editor da revista que publica os seus primeiros “artigos”,

associando o carácter inédito das narrativas de Sevastopol ao facto de que a

verdade na forma apresentada pelo seu autor “é uma coisa bastante nova para

nós”77. Permite-nos também inferir que a recusa de Tolstoi em subscrever os

ditames da “literatura denunciadora” se deve mais à rejeição da apologia da

realidade em detrimento da sua reprodução através da arte do que a uma putativa

defesa da supremacia da arte e da beleza, a qual estaria, para mais, na origem de

obras “inferiores” como “Albert” (1857) ou “Três Mortes” (1858)78.

Tolstoi poderá confessar ao romancista e crítico literário A. V. Druzhinin

que “a vida é curta, e desperdiçá-la na minha idade adulta a escrever o tipo de

histórias que costumava escrever faz-me sentir envergonhado [...]. Não consigo

realmente levantar um dedo que seja para escrever histórias que sejam muito

agradáveis de ler, agora que tenho 31 anos”79. Afirmações como esta estão,

contudo, longe de serem lidas correctamente como a renúncia ao movimento da

“arte pela arte”, nos moldes subscritos por Drujinin e pelos outros ‘críticos 75 Idem, p. 266. 76 Assim um escritor, um servidor da pura arte torna-se por vezes num acutilante crítico social [...]

Permita-me, Conde, que o tome como exemplo [...] Agora, com o retrato do cocheiro tuberculoso que morre sobre o fogão no meio dos seus companheiros, claramente indiferentes aos seus padecimentos, não é possível que tenha revelado alguma doença social, alguma espécie de vício?”. (O “retrato” aludido é a morte do cocheiro em “Três Mortes”) Birukov, op. cit., p. 266.

77 Carta de N. A. Nekrasov a Tolstoi, citada em Birukov, op. cit., p. 184, meus itálicos. 78 Rejeitadas pelo editor d’O Contemporâneo, Nekrasov. 79 Carta de 9 de Outubro de 1859, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 129.

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estéticos’ russos, muito menos nos de Théophile Gautier ou Oscar Wilde.

Em resposta a um dos simpatizantes do “utilitarismo social”, o escritor e

jornalista P. D. Boborykin, que submetera dois dos seus romances à sua

apreciação, Tolstoi rejeita o credo dos escritores “progressistas”, que aspira

reformar a sociedade através de uma arte comprometida, e diz:

[M]as estes problemas [do zemstvo, da literatura e da emancipação das

mulheres, etc.] não só não são interessantes no mundo da arte; eles não têm ali qualquer lugar. [...] Os fins da arte são incomensuráveis (como os matemáticos dizem) com fins sociais. A finalidade de um artista não é resolver irrefutavelmente um problema, mas fazer com que as pessoas amem a vida em todas as suas infinitas e inesgotáveis manifestações. Se me viessem dizer que eu era capaz de escrever um romance em que poderia estabelecer de modo irrefutável o que me parecia ser o ponto de vista correcto em relação a todos os problemas sociais, eu nem sequer dedicaria duas horas a tal romance; mas se viessem a dizer-me que o que deveria escrever seria lido daqui a vinte anos por aqueles que agora são crianças e que eles ririam e chorariam ao lê-lo, e amariam a vida, eu dedicar-lhe-ia toda a minha vida e todas as minhas energias80.

Se, por um lado, antes de publicar os romances que consolidariam a sua

posição de “o grande escritor da Rússia”, Tolstoi, no credo artístico acima

transcrito, afirma a sua relutância em equiparar o romance a uma qualquer função

social ou didáctica, por outro, reivindica que a literatura, a grande literatura, deve

“reflectir os interesses humanos eternos”81.

Esta visão sobre os interesses eternos que determinada literatura

forçosamente reflecte, e que curiosamente se harmoniza com o que Tolstoi

defenderá em OQA?, quando estipula os critérios para a avaliação da arte, perdura

através de um dos temas perenes da sua obra (ficcional e ensaística): o conflito

entre arte verdadeira e arte contrafeita. Tal conflito, possivelmente subjacente à

80 Carta a P. D. Boborykin , Julho-Agosto de 1865, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 197. 81 “A maior parte do público crê agora que o problema de toda a literatura consiste apenas na

denúncia do mal, no seu debate e na sua correcção, em suma, na estimulação do sentimento cívico na sociedade [...] Há uma outra espécie de literatura, reflectindo os interesses eternos e universais [...] uma literatura acessível a todas as pessoas e a todas as épocas”. (Tolstoi citado em Ernest J. Simmons, Tolstoy, London e Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973, p. 53)

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criação artística, resultaria, após uma longa reflexão sobre as questões da arte, na

crítica feroz de OQA?, e dos seus escritos autobiográficos, dirigida aos

proponentes da “arte pela arte”: “Nada contribui mais para uma vida tranquila e

egoísta do que a ocupação da arte pela arte. Os déspotas e os vilões devem

certamente adorar a arte”82.

Por este mesmo motivo, depois da publicação de “Sevastopol em Maio”,

cujo retrato pouco idealizado da guerra, da vida militar e do “patriotismo” não

poderia por motivos evidentes obter o mesmo sucesso junto do czar que a primeira

sequela obtivera, Tolstoi exprime a sua indignação face aos cortes impostos pelo

omnipresente censor do governo aos seus “artigos”, acrescentando: “Mas é o meu

desejo que a Rússia possa sempre ter estes escritores morais. Eu não posso,

contudo, ser um escritor delicodoce, e não posso escrever bagatelas vazias, sem

ideias, e acima de tudo sem qualquer finalidade”83.

O facto de Tolstoi vir a incluir-se retrospectivamente, e à semelhança de

outro autor de confissões, na categoria dos altos representantes do culto da poesia,

daqueles que exercitam e se comprazem com ficções poéticas, com “o que agrada

por si mesmo”, na definição de Santo Agostinho, grafando a Beleza com

maiúscula para a erigir numa nova religião, transformando deste modo idólatra a

arte num objecto de contemplação religiosa, deverá ser encarado com cautela.

Resulta mais de um exercício dramático de autocrítica, característico de Confissão

e, provavelmente, de qualquer relato na primeira pessoa, do que de uma suposta

sanção de uma arte sem outro propósito a não ser o de servir em regime de

exclusividade a Beleza, o símbolo perceptível ou sensível da moralidade.

Verifica-se que os mesmos críticos que receberam os romances da “fase

82 Tolstoy’s Diaries, vol II, p. 447. 83 Entrada de 17 Setembro de 1855, Tolstoy’s Diaries, vol. I, p. 107.

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pré-conversão” de Tolstoi com reservas quanto à sua integridade artística,

comprometida por neles serem formuladas, com uma prodigalidade excessiva, até

mesmo para um autor russo – tanto mais herdeiro de Puckhin, Herzen ou Gogol –,

teses ou asserções literais, juízos morais e filosóficos, parecem subitamente

legitimados a partir do momento em que o próprio autor anuncia a presumível

vitória da ética sobre a estética e a firme intenção de dedicar o seu tempo a

actividades mais sérias do que a escrita de ficções.

Desde a exclamação horrorizada de Flaubert diante das digressões de

Guerra e Paz – “ah, mas ele filosofa!” –, e o “monstro de aborrecimento” que,

segundo André Gide, elas representam, passando pelos “enormes monstros, soltos

e descosidos” com que Henry James baptiza os romances “sem sentido” de

Tolstoi, os quais, por seu turno, Dostoevski baptiza de “poemas claros e

luminosos”, ou ainda à entusiástica injunção de Matthew Arnold para que não se

leia Anna Karenina, esse “longo sermão travestido de ficção” na apreciação de

Lev Chestov, como uma obra de arte, mas como um pedaço de vida, a recepção

crítica da obra de Tolstoi tece-se não apenas em redor da questão do género, mas

fundamentalmente em redor do conflito entre arte e moral, entre ficção e filosofia.

Se Guerra e Paz não pode ser catalogado “em qualquer outro dos géneros

literários vulgares”84, e os seus contos ou “artigos” são esvaziados de conteúdo por

uma análise psicológica que se transforma numa bizarria, numa “análise da

análise”85, esta ambiguidade não parece constituir um problema para Tolstoi. Na

84 Akhcharumov, em Tolstoy: The Critical Heritage, p. 91.

85 Grigorev, em Tolstoy: The Critical Heritage, p. 69. Além de alertar Tolstoi para a necessidade de cultivar um estilo mais elegante e uma sintaxe mais cuidada, Drujinin também já o tinha aconselhado a refrear os poderes da sua mente analítica. A famosa subtileza com que o autor de Infância analisa os estados de consciência das suas personagens não deveria tornar-se num defeito estético: “Algumas vezes você está inclinado a dizer ‘A coxa deste ou daquele indivíduo indicava que ele desejava viajar para a Índia’.” Carta de A. Drujinin a Tolstoi (1856), citada em Birukov, op. cit., p. 212.

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defesa do seu primeiro grande romance, publicada em 1868, Tolstoi nega

seraficamente a necessidade de recorrer a quaisquer convenções literárias,

incluindo a forma do romance (europeu), e afirma aquilo que ele não é: “nem um

romance, nem um poema nem ainda menos uma crónica histórica [...] é o que o

autor quis, e conseguiu exprimir, na forma em que o exprimiu. Tal declaração de

desrespeito, por parte do autor, pelas formas convencionais da prosa ficcional

poderia ter parecido presunçosa, não fora ela deliberada”86.

Mesmo o romancista Ivan Bunin, não obstante a proclamada dívida para

com o seu mestre, confessaria que empreenderia com entusiasmo a tarefa que só

um grande artista poderia ousar: reescrever Anna Karenina de modo a purgá-lo de

todo o desperdício, de todos os insensatos sacrifícios da integridade estética, ou

seja, de toda a filosofia que o autor não se abstivera de destilar para os seus

grandes romances, Ressurreição incluído87.

Contudo, não obstante a indiferença de Tolstoi diante das críticas ao que

é a deliberada contaminação dos géneros, ou ainda o que também foi

perspectivado, na esteira de Boris Eikhenbaum, como uma tentativa de purificar as

formas literárias românticas, particularmente as herdadas de Puchkin, das suas

lacunas éticas88, é inegável que Confissão assinala uma viragem na obra (e vida)

do seu autor. Mesmo no caso de se optar por abordar determinados tópicos a partir

de uma visão de conjunto da obra de Tolstoi, postulando uma linha de

continuidade (o que não equivale a ler a sua produção literária como uma instância

de uma teoria ou a ignorar as rupturas que a acompanham), tal abordagem não

86 Tolstoi, “Neskol’ko slov po povodu knigi ‘Voina i mir’” [“Algumas Palavras sobre o livro

‘Guerra e Paz’”], Tolstoy: The Critical Heritage, p. 125. 87 Cf. Ivan Bunin, “Editor’s Introduction”, The Liberation of Tolstoy, A Tale of Two Writers

[Osvobojdenie Tolstogo, 1937], Thomas Gaiton Marullo e Vladimir T. Khmelkov (ed., trad., intro. e notas), Evanston: Northwestern UP, 2001, p. xxi.

88 É esta a leitura de David Herman em “Stricken by Infection: Art and Adultery in Anna Karenina and Kreutzer Sonata”, Slavic Review, no. 56, Spring, 1997, pp. 15-36.

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implica ignorar as alterações evidentes que ocorrem nas últimas décadas da sua

carreira.

Poderemos até dizer, como G. S. Morson, que será preciso ser-se um

verdadeiro entusiasta para não detectar o “declínio novelesco” e que, enquanto no

período inicial, os ensaios didácticos e a ficção moralista menor ocupam o pano de

fundo, no período tardio, “obras de ficção grandiosas emergem como ilhas num

oceano de dogmatismo”89.

As dissertações filosóficas, apensas escandalosamente aos seus “quase-

romances”, ou inesperadamente inseridas no meio da narrativa, passam a surgir no

seu contexto próprio: o ensaio ou o relato confessional. Simultaneamente, o conto

tradicional torna-se no modelo a ser cultivado. Salvo raras excepções90, Tolstoi

abandona a visão sinóptica que congrega os diferentes pontos de vista e a anotação

obsessivamente precisa dos conteúdos privados das personagens de forma a

caracterizar os problemas morais insolúveis quando se procura o bem através da

razão iluminista (filosofia), ou da arte romântica (beleza). Das ideias sobre

comunicação artística exploradas no “intervalo italiano” em Anna Karenina91,

onde se delineia uma espécie de sociologia da arte em miniatura e se reflecte

acerca dos debates sobre pintura religiosa em curso entre a intelligentsia russa,

passa-se para o OQA?. Aqui, as divagações sobre a natureza da arte esparsas pelos

romances anteriores passam a integrar uma visão unificada sobre a natureza, o

valor e o papel que a arte ocupa, ou deverá ocupar, na vida humana.

Se as obras que o tinham consagrado são rejeitadas – à semelhança de

89 Gary Saul Morson, “The Tolstoy Questions: Reflections on the Silbajoris Theses” (Review

Article), Tolstoy Studies Journal, vol. IV, 1991, p.116. 90 Tal como Ressurreição, as novelas Sonata a Kreutzer, e mesmo A Morte de Ivan Ilitch não são

propriamente exemplos de economia narrativa. É de referir que estas excepções eram inseridas pelo seu autor na lista de ‘recaídas conscientes’ na “literatura decadente” – obras destinadas para o seu “círculo de almas perdidas”.

91 Cf. Anna Karenina, parte V, caps. VII-X.

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todas as suas antigas paixões musicais e literárias, exceptuando-se pouco mais do

que as narrativas bíblicas ou A Cabana do Pai Tomás – como prolixas, retóricas,

cerebrais, ininteligíveis, ou meros disparates, para passar a explorar outros géneros

(ficcionais ou não) mais modestos em tamanho, estrutura e estilo, esta transição

não deve ser, porém, equacionada com o que muitos críticos qualificavam, e

continuam a qualificar, apoiados nas muitas entradas dos diários que mencionam

projectos artísticos nunca concretizados, de tentativas malogradas de regressar aos

tempos áureos da “arte pela arte”, ao período em que Tolstoi não tinha ainda

abdicado dos prazeres artísticos para os subordinar a um credo ou ideário moral,

incompatíveis com a arte da ficção. Tal análise, além de pressupor a antinomia que

tem vindo a ser questionada, pressupõe também que ao autor de Confissão, Os

Meus Evangelhos, OQA?, A Morte de Ivan Ilitch, Sonata a Kreutzer ou Hadji-

Murat nunca teria sido dada atenção, não fosse o caso de ter assinado obras como

Guerra e Paz ou Anna Karenina.

Poder-se-á ainda acrescentar que muitos dos contos populares, os mais

emblemáticos reunidos sob o título de Vinte e Três Narrativas, escritos na suposta

fase de esgotamento criativo, não só se tornariam modelos para escritores como

James Joyce, Ernest Hemingway ou ainda Wittgenstein, como podem, não

obstante a sua simplicidade estilística e o intuito edificante, ser avaliados

paradoxalmente como mais ambiciosos em termos artísticos. Verifica-se que, à

semelhança de Hadji-Murat, contos como “Ivan, o Tolo” (1885), “De quanta terra

precisa um homem” (1886) ou o póstumo “Aliocha” (1905), resultam

precisamente daquilo que os primeiros críticos dos romances realistas atípicos de

Tolstoi, incluindo o próprio autor, em OQA?, defendiam como indispensável para

poderem aceder à categoria de “pura arte” (embora tal expressão denote coisas

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diferentes para uns e outro): a eliminação do desperdício, seja este a intromissão

da filosofia e moral (e do autor empírico), ou a particularidade das personagens.

**

Com este preâmbulo sobre as vicissitudes da recepção da obra de Tolstoi,

sem pretensões de exaurir os problemas recorrentes que a obra de Tolstoi suscita, e

dado o escopo e o objectivo desta tese, pretende-se abrir caminho para a discussão

que se segue. Estarão os críticos que, apoiando-se numa concepção de “literatura

pura”, associam as “infelicidades artísticas” dos ‘quase-romances’ de Tolstoi à

interferência da filosofia e da moral, a falar da mesma coisa do que Tolstoi,

quando este rejeita toda a sua produção literária como lixo ou disparate para se

dedicar – quase exclusivamente – à filosofia moral?

A possibilidade de que estes autores possam estar certos, mas pelas

razões erradas, será abordada à medida que se forem identificando os motivos

pelos quais um certo tipo de ficção passa a ser considerado por Tolstoi uma

“ocupação fútil”, nada mais do que uma “ilusão induzida por um processo de

hipnose que consiste em atribuir um significado virtuoso a diligências egotistas”92.

Neste contexto, não me parece necessário disputar os argumentos que

caracterizam o “ângulo novo e útil” a partir do qual Tolstoi projecta escrever

novas obras literárias, incluindo romances93, como a trágica vitória do fanático

religioso sobre o humanista enamorado pela totalidade da vida, ou, usando a

célebre analogia clássica de Isaiah Berlin da vitória do ouriço, que “sabe uma só

grande coisa”, sobre a raposa, “que sabe muitas coisas”, do triunfo, em suma, do

92 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 422. 93 Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 441.

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ponto de vista unificado sobre o plural, da filosofia sobre a poesia, da moral sobre

a ficção94. (Sublinhe-se que Tolstoi reflecte sobre esta relação em termos

semelhantes aos de Berlin: “O artista, ou poeta, e o matemático, ou académico. O

poeta não pode fazer o trabalho do académico, porque não consegue ver uma coisa

só e deixar de ver todas as coisas. O académico não pode fazer o trabalho do poeta

porque vê sempre uma coisa só, e não consegue ver tudo”.)95

Porque o meu objecto de estudo não é a filosofia da história (ou, melhor,

a sua negação), discutida nos epílogos de Guerra e Paz, nem a existência ou não

de “leis históricas” que descrevam os destinos individuais e colectivos das nações,

parece-me mais profícuo começar por tentar perceber em que é que, segundo o

próprio autor, consistirá esse novo ângulo a partir do qual planeia escrever um

romance, vasto e livre como Ana Karenina.

Importa agora referir as importantes pistas deixadas por Tolstoi nos

escritos em que alude, à semelhança da tipologia de leitores estabelecida no

prefácio de Os Meus Evangelhos, a uma tipologia de escrita. Esta alusão a

espécies de escrita distintas poderá lançar alguma luz sobre os motivos ínvios por

detrás da aparente declaração de guerra do fanático iconoclasta à literatura, ou

melhor, a uma certa literatura escrita a partir de um ângulo considerado incorrecto

de acordo com as novas exigências a que o autor submete a sua escrita e a arte em

geral.

Depois de constatar, na mesma carta em que menciona o “ângulo novo e

útil” que procura para poder escrever com liberdade, o estranho facto de que os

livros que mais lê e admira são os livros que não foram escritos, dando como

94 Cf. Isaiah Berlin, “The Hedgehog and the Fox”, Russian Thinkers, Henry Hardy and Aileen

Kelly (eds.), Aileen Kelly (intro.), London: Penguin Books, 2008, pp. 24-92. 95 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 514.

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exemplo os Profetas, os Evangelhos, Confúcio, Lao Tzu, Sócrates, e incluindo

Marco Aurélio e Pascal na lista dos seus “não-escritores” predilectos, Tolstoi

parafraseia um dos adágios de Karamzin e corrobora a justeza da ideia de que “o

importante não é escrever mas viver bem” com a afirmação paradoxal de que está

“plenamente convencido pela própria experiência da importância de não se

escrever” e de que esta verdade nunca será suficientemente repetida àqueles que

pretendem fazer da escrita uma profissão96.

A injunção, recorrente nas suas cartas mas também, de um modo

indirecto, em muitas das suas obras, para que os jovens escritores nada escrevam

faz-se acompanhar de uma conclusão que, se não esclarece inteiramente as

lucubrações iniciais sobre o novo método de composição projectado, oferece o

contexto a partir do qual ele poderá ser entendido. Apenas quem aspirar ao bem e

modelar a sua vida de acordo com essa aspiração poderá, através do seu exemplo,

e através da palavra, oral ou escrita, influenciar os outros ou, no vocabulário de

OQA?, contagiá-los, “na medida em que esta palavra integre e seja consequência

das nossas vidas, e na medida em que a boca exprima com sinceridade aquilo que

sintamos” (OQA?, 442).

Alcançar a excelência na escrita de poemas ou narrativas, históricas ou

ficcionais, não significa alcançar a excelência nas nossas vidas enquanto agentes

morais. Consciente de que o deleite catártico experimentado diante do espectáculo

da dor das personagens não resulta causalmente na “compaixão pura” pela dor dos

outros e que, como Santo Agostinho contra-si falando, a paixão pelos “vãos

espectáculos” pode obstar à aquisição da verdadeira sabedoria sobre a qual se

funda a palavra dos evangelhos, Tolstoi repetidamente coloca em cena esta tensão

96 Cf. Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 442.

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tão antiga quanto as proibições veterotestamentárias (das imagens e dos nomes de

Deus). Quer seja ou não no contexto ficcional, Tolstoi ora afirma a prioridade da

ética (ou da busca pelo bem) sobre a estética (busca pelos prazeres), ora reivindica

a importância da segunda na compreensão da natureza da primeira, ora reivindica

ainda a indissociabilidade dos dois domínios, ao fazer corresponder a atitude do

homem virtuoso à atitude do homem interessado pela vida das personagens que

cria (i.e. o artista) ou à atitude de quem as conhece amorosamente (i.e.

desinteressadamente) através da leitura (i.e. o leitor-crítico).

Ao longo dos diários e da correspondência da década de 80/90, a ideia de

que a “estética é a expressão da ética”97 vai sendo reformulada de modo mais ou

menos claro para benefício de aspirantes a escritores, mas, segundo o que acaba

por transparecer, fundamentalmente do próprio diarista, que confessa oscilar entre

duas disposições dificilmente harmonizáveis: o desejo irreprimível de escrever

obras de ficção e a convicção de que a literatura resulta quase fatalmente de

diligências pouco virtuosas, tais como a vaidade e o egotismo do seu criador, que

conferem uma importância desmesurada a uma prática que, pelo tempo, paciência

e perseverança a que obriga, não poderá ser levada a cabo com outro estado de

espírito, sob o risco de se tornar um projecto falhado ou injustificável. Mesmo

quando encarada como uma actividade geradora de sentido que permite ultrapassar

a barreira entre duas pessoas, como uma actividade de inspiração divina, no

espírito romântico, ou como uma reflexão genuína da vida, e não como um

processo inconsciente de “hipnotização”, que apela e se nutre das paixões mais

baixas, a escrita é uma actividade suspeita e imprevisível, tão imprevisível como a

Sonata a Kreutzer (o conto) prova vir a ser quando Tolstoi acaba por publicar um

97 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 434.

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epílogo a esta obra, que tanta controvérsia suscitara, justificando-a com base nos

seus ideais ascéticos de higiene sexual, ou de purificação do eros. Na realidade, o

epílogo da Sonata a Kreutzer pode ser encarado como a resposta desconfortável

do seu autor ao carácter imprevisível, não apenas do diálogo entre um violino e

um piano (a Sonata a Kreutzer de Beethoven) e, para todos os efeitos, de qualquer

peça musical, mas de qualquer “comunicação artística”, de qualquer forma que

comunique através do “contágio dos sentimentos e das emoções”.

Longe de esta ser, contudo, a última palavra do autor sobre comunicação

artística, a questão será retomada ao longo dos capítulos que se seguem e, em

particular, nas secções que se centram na discussão dos tópicos de OQA?. Antes

de prosseguir, gostaria ainda de acrescentar alguns comentários sobre uma

afirmação paradoxal de Tolstoi, acima aludida: a de que os maiores escritores são

os que se libertam da tentação de escrever. O sentido desta afirmação é

aparentemente incompatível com a actividade literária, justificando a imagem que

desde o início se negou poder coadunar-se com a evidência do corpus tolstoiano.

Pressupõe também a antiga querela entre poetas e filósofos, para a qual Platão

tanto contribuiu, apesar de, ou precisamente por causa de, ser um filósofo-poeta,

um criador de imagens poderosas, bem como uma segunda incompatibilidade, não

tão antiga, entre representação e religião98. Tal afirmação poderá ser entendida,

porém, no contexto da desconfiança platónica, irónica ou não, em relação à

palavra escrita e na ênfase que, em Fedro, Sócrates coloca na distinção entre o

“discurso vivo e animado” e o seu simulacro através da palavra escrita. À

semelhança das diligências de Sócrates para estabelecer os critérios que

diferenciam usos sérios e usos não sérios da palavra, a tipologia de escritores, que

98 Nem mesmo a proibição bíblica das imagens (Lev 21,1; Ex 20,4; Dt 5,8) é formulada como um

proibição da imagem, mas de a fazer.

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inclui a categoria de não-escritores, invocada por Tolstoi resulta de uma mesma

ansiedade relativa a um aspecto “estranho” da palavra escrita aludido por Sócrates:

a de que os livros, apesar de se apresentarem como seres vivos, de parecerem

“seres vivos”, são apenas marcas no papel, ou seja, não são na verdade seres

animados pelo pensamento. Como a pintura, a arte da ilusão por excelência para

Platão, os livros criam uma estranha ilusão de eloquência, quando na realidade

apenas devolvem uma mudez “cheia de gravidade” às interrogações dos leitores

que os tomam por objectos eloquentes, facto este que, além de exasperante, pode

vir a revelar-se perigoso: “E uma vez escrito, cada discurso rola por todos os

lugares, apresentando-se do mesmo modo, tanto a quem o desejar ouvir como

ainda a quem não mostra interesse algum. Não sabe, por outro lado, a quem deve

falar e a quem não deve.” (Fedro, 275d-e). É este silêncio com que o discurso

escrito, à semelhança das estátuas, responde às nossas perguntas, deixando-nos,

por um lado, em suspenso e, por outro, permitindo que os leitores errados a si

acedam, maltratando-o e insultando-o injustamente porque ele “necessita sempre

da ajuda do seu autor, uma vez que não é capaz de se defender e socorrer a si

mesmo” (Fedro, 275e) que Sócrates invoca para demonstrar a Fedro as vantagens

da arte da dialéctica no ensino da verdade sobre a arte retórica com que Lísias

compõe os seus discursos, semeando-os com mentiras. A analogia entre o

agricultor sério, que semeia diligentemente no terreno apropriado e usa as técnicas

agrícolas adequadas com vista a obter boas colheitas, e o orador sério, “possuidor

da ciência do justo, belo e bom”, e que não escreve “palavras na areia” para

divertimento seu ou dos outros, mas usa a palavra com a intenção de instruir,

ilustra a diferença entre modos correctos (filosofia) e modos incorrectos (retórica)

de manejar com arte a palavra, oral ou escrita, como os diálogos platónicos

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exemplificam, e ensinar a verdade99. Esta distinção preside tanto à injunção

platónica contra o discurso escrito como à afirmação paradoxal de Tolstoi de que

os maiores (melhores) escritores são aqueles que se libertam da tentação de

escrever. Preside também à sua constatação nostálgica de que é a viva voce que as

“verdades eternas” (o que Sócrates chama o “discurso escrito na alma”100) são

apreendidas de modo mais imediato:

Quão mais valioso e importante do que escrever é o ofício de viver –

relações imediatas com as pessoas. Neste caso, tem-se um efeito directo nas pessoas, podemos testemunhar o nosso sucesso ou insucesso, os nossos erros e corrigi-los, mas com a escrita estamos às escuras, talvez consigamos obter um efeito, talvez não; talvez não tivéssemos sido compreendidos, talvez tivéssemos dito a coisa errada – não é de todo possível sabê-lo101.

É de referir que, do mesmo modo que a condenação de Sócrates do

discurso escrito termina com a estipulação, por exclusão de partes, das

circunstâncias em que proferir e escrever discursos é uma actividade justa, bela e

boa (ética) e que espécies de discursos nela se enquadram – os filosóficos – (277d-

278e), também a condenação do literato profissional proferida por Tolstoi é

retomada e reformulada com outros termos. Numa outra carta, Tolstoi baseia-se

numa máxima popular e recorre a uma comparação entre metais para ilustrar a

ideia, familiar aos leitores de Wittgenstein, subjacente ao conselho habitual para

que o seu receptor se esforce por não escrever, de que as coisas mais importantes

devem ser silenciadas, ou não podem ser faladas sem que com isso se perca

alguma coisa: “Tal como no discurso a palavra falada é de prata e a silenciada é de

ouro, também na escrita eu diria que a palavra escrita é de estanho e a não-escrita

99 As condições para usar com arte o género retórico são enunciadas em 277b-c. 100 Os “discursos capazes de vir em socorro de si mesmos e de quem os plantou, não improdutivos

mas possuidores de gérmen” (Fedro, 276e-277). 101 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 556, meus itálicos.

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é de ouro”102. Esta ideia surge ligada a outras ideias importantes, àquelas verdades

inefáveis que Pierre, num estado de intermitência cognitiva, entre o sonho e a

vigília, julga não lhe pertencerem, mas terem-lhe sido antes ditadas por alguém

externo à sua mente (ou ao seu sonho): “A guerra é a mais difícil submissão da

liberdade humana às leis de Deus, dizia a voz. – A simplicidade é obediência a

Deus, não se foge d’Ele. E eles são simples. Eles não falam mas agem. Palavra

dita é prata, palavra calada é ouro. O homem nada pode alcançar enquanto tiver

medo da morte”103.

Por outras palavras, a rejeição da profissão de escritor, à semelhança da

rejeição wittgensteiniana da filosofia tradicional ou profissional, circunscrita aos

departamentos das universidades e às publicações académicas, prende-se não com

a rejeição de toda a palavra escrita, mas com a espécie aqui caracterizada como

fraudulenta. A espécie que visa satisfazer a vaidade e, mimetizando a espécie

“legítima e divina, escrita por uma pessoa de modo a clarificar os seus próprios

pensamentos [...] rejeitando sem quaisquer concessões tudo aquilo que obscurece

ou confunde a ideia, sejam palavras, expressões ou trocadilhos, é escrita para

obscurecer e confundir a verdade, para nós e para os outros, e nesse caso quanto

mais arte, brilhantismo, adornos, erudição, estrangeirismos, citações e provérbios,

tanto melhor”104.

O ataque do artista-filósofo à arte, perceptível na distinção acima

delineada entre modos de escrever, mas também na parábola sobre o mundo-da-

arte que o já mencionado episódio em Itália de Ana Karenina oferece ao contrastar

percepções artísticas verdadeiras com técnicas vazias, não acontece assim

102 Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 526. 103 Tolstoi, Guerra e Paz [Voina i mir], Livro III, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Lisboa:

Editorial Presença, 2005, p. 326. 104 Idem, p. 527.  

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subitamente no polémico OQA?, nem no epílogo a esta obra, Shakespeare e o

Teatro. Desenvolve-se antes a partir da crescente desconfiança do autor

relativamente às correntes estéticas modernas que caracterizam a arte como uma

categoria autónoma, distinta das demais actividades humanas.

Esta desconfiança diante da autonomização do domínio do estético,

partilhada também por Wittgenstein, da exaltação da inspiração divina do génio

criador que situa paradoxalmente o artista acima da moralidade ou acima da

necessária teleologia da comunicação artística, como o virtuoso do violino

alienado pelo culto da beleza e do amor, das fantasmagorias e do álcool de Albert

(1857) exemplifica, não deve ser encarada como sintoma da exaltação do

camponês russo e da cultura popular, nem necessariamente como manifestação do

que foi cunhado de “dogma da relevância”105. Ela não resultará na radical negação,

à semelhança dos niilistas d’O Contemporâneo, da arte e da linguagem como

formas corruptas ou triviais, muitas vezes associada aos escritos tardios de Tolstoi.

A procura de uma resolução para a antinomia que resultava na subjugação da arte

ora ao “espírito do tempo”, ora ao culto do que é meramente agradável aos

sentidos, começa na década de 60, quando, depois de investigar os principais

métodos das instituições de ensino público de Inglaterra, da França e da

Alemanha, Tolstoi mergulha nas experiências pedagógicas que dirigiria

intermitentemente nas escolas por si criadas para os camponeses da região de

Iasnaia Poliana.

Nos relatos destas experiências, publicadas nos doze números da revista

da escola de Iasnaia Poliana, e mais tarde recordadas como tentativas fracassadas

105 M. S. Lourenço identifica o dogma da relevância, isto é, a atitude que faz equivaler o valor de

uma obra literária com o valor da ideia nela representada, independentemente da sua forma, como um dos factores endógenos responsáveis pela morte da Literatura enquanto produto da Alta Cultura. (cf. Os Degraus do Parnaso, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 67)

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de encontrar um método de ensino, Tolstoi questiona a exclusividade do gosto ao

lançar as provocações impenitentemente rousseauistas contra as elites culturais,

reivindicando, ao jeito dos niilistas radicais, que as baladas e os versos que os seus

alunos produzem são tão bons ou melhores do que as sinfonias de Beethoven ou os

versos de Puchkin. Estas provocações serão, duas décadas mais tarde, em O Que

Fazer? (1886), novamente dirigidas contra as elites que pretendem monopolizar as

artes e o conhecimento, reduzindo estas actividades a redundâncias, a trivialidades

ou a bens de luxo.

Argumentar que as obras de Beethoven ou de Puchkin são fruto da

doença civilizacional de que as elites culturais padecem, encerradas nos ambientes

artificiais e pouco sadios dos salões e das salas de espectáculo urbanos, poderá ser

excessivo mesmo numa década que viu nascer o movimento populista106, e tendo

em vista que o objectivo destes escritos didácticos não é tanto atacar a cultura

europeia em defesa de um qualquer vitalismo eslavo ou da pureza primitiva

popular, nem demonstrar a existência de um insanável fosso entre cultura e

natureza, como as orientações dos curricula das escolas nacionais que recusam o

direito universal ao “sentimento e desejo da arte” e, com isso, a máxima que o

autor erigiu como axioma da sua nova escola: a de que “a necessidade dos

prazeres simples da arte e a adoração da arte existem em cada ser humano, não

importa a raça ou esfera a que pertençam, e que esta necessidade é legítima e deve

106 Na definição de Berdiaev, o movimento populista (narodnichestvo), ou o elemento conspícuo

na ideologia humanista russa, “é acima de tudo a crença no povo da Rússia [...]. Narodoniks russos de todos os quadrantes acreditavam que era entre o povo que se encontrava preservado o segredo da vida verdadeira, segredo este ocultado das classes culturais governantes [...] Os Narodoniks religiosos (os eslavófilos, Dostoevski, Tolstoi) acreditavam que no povo se ocultava a verdade religiosa; aqueles que não eram religiosos, e eram muitas vezes anti-religiosos (Hertzen, Bakunin, os narodoniks socialistas da década de setenta), acreditavam que no povo se ocultava a verdade social.” (Nikolai A. Berdiaev, “Russian Narodnichestvo and Anarchism”, The Origin of Russian Communism, R. M. French (trad.), Ann Arbour: The University of Michigan Press, 1960, pp. 58.

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ser satisfeita”107. Esta definição afasta inesperadamente o princípio orientador das

experiências didácticas de Tolstoi da apologia da cultura camponesa do populismo

radical.

O espírito revolucionário com que o pedagogo disputa, nestes e noutros

escritos, a atitude reverencial em relação a uma actividade exaltada num certo

espírito romântico como um fim em si mesmo, ou como apanágio dos instruídos

em matérias especiais, e a impaciência com que desmascara simultaneamente os

princípios utilitaristas do realismo social talvez sejam apenas igualados pelo tom

iconoclasta com o qual as vanguardas artísticas ominosamente anunciariam nas

primeiras décadas do século XX a dissolução da arte na práxis da vida, pelo tom

com o qual um Álvaro de Campos formularia, no seu manifesto contra a ideia de

que a beleza é o fim da arte, uma “nova estética não-aristotélica”.

São os aspectos teóricos que decorrem desta crítica, por vezes

deliberadamente provocatória, à arte, ou a um determinado entendimento acerca

daquilo em que consiste a actividade artística, que seria articulada de modo mais

sistemático nas obras escritas na fase tardia, e da distinção, neste momento ainda

demasiado misteriosa, entre as duas espécies de escrita já referidas – a legítima e a

fraudulenta ou artística – o que interessa explorar. A sua clarificação permitirá

contextualizar muitos dos problemas que dizem respeito não necessariamente a

uma ruptura entre o autor de ficção (o autor-raposa) e o de ensaios morais (o

autor-ouriço), mas a uma interrogação que percorre toda a carreira literária de

Tolstoi, desde que reivindica que o herói da sua história é a Verdade até ao

momento em que reclama que o objecto do romancista, ao contrário do

historiador, são pessoas, passando pelo uso do ponto de vista equestre de História

107 Tolstoi, La Escuela de Yásnaia Poliana, Alejandro Sanvicens Marfull (intro. e. trad.), Palma

de Maiorca: José J. de Olañeta, Editor, 2003, p. 133.

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de Um Cavalo para criticar a dicotomia entre palavra e acção, entre conteúdos

privados e espaço público: como pode a arte dizer alguma coisa de verdadeiro?

Na incessante procura de uma resposta a esta questão, muito

provavelmente sem qualquer solução final pacificadora, Tolstoi foi

experimentando, como Wittgenstein faria ao inaugurar um novo modo de fazer e

compor filosofia, diferentes modos de “transmitir um sentimento” ou de

“manifestar e expressar a verdade sobre o homem, de expressar esses segredos que

não podem ser expressos através de simples palavras [...] e que são comuns a

todos os homens”108.

Quer este objectivo tenha sido alcançado por Tolstoi através da técnica de

“deslocação”, da linguagem absoluta, da psicologia literária, da representação

atomizada, do processo de infecção ou da rescrita das metáforas e parábolas

bíblicas; quer tenha sido alcançado por Wittgenstein através dos aforismos com

que o Tractatus silencia o que não pode ser dito, ou do estilo caleidoscópico com

que as Investigações Filosóficas pretendem “limpar o terreno da linguagem” para

a reconduzir ao seu uso corrente, duas coisas são claras. Desde as primeiras

incursões na escrita de Tolstoi fica patente que o estilo metafórico da escola

romântica e a descrição nos moldes do romance realista europeu não serviriam

para alcançar os seus propósitos de fazer da literatura o “microscópio que fixe e

mostre os segredos do homem”, mostrando o caminho do bem. Do mesmo modo,

poder-se-á dizer que desde o Tractatus, e para o desconforto intelectual de Russell,

fica patente que para Wittgenstein só um novo método de fazer filosofia poderia

simultaneamente comunicar a verdade e “mostrar quão pouco se consegue com a

solução destes problemas” (“Prólogo” a TLP).

108 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 427.

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Que propósitos de Tolstoi são estes, e como se relacionam com o “novo

ângulo útil” mencionado nos escritos tardios, a partir do qual se pretende silenciar

tudo o que possa obscurecer a verdade, é o que começará a ser explorado de

seguida, a partir do confronto entre duas visões distintas sobre a natureza do

romance. Debruço-me, pois, sobre o tópico que serve a E. M. Forster para

questionar abordagens “formalistas” à literatura, tal como implícitas na crítica

jamesiana de Percy Lubbock à falta de unidade dos romances de Tolstoi: “A vida

secreta das pessoas”.

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CAPÍTULO 2

A VIDA SECRETA DAS PESSOAS

As figuras de romance são – como todos sabem – tão reais como qualquer de nós. Fernando Pessoa

Para o historiador [...] há heróis; mas para o artista, no sentido da adequação dessa

pessoa a todos os aspectos da vida, não pode e não deve haver heróis, mas sim pessoas. Lev Tolstoi

Truth can never be told so as to be understood, and not be believ’d.

William Blake George Orwell, na sua análise sobre a “mensagem” e os méritos literários

da obra de Charles Dickens (1940), faz uma curta digressão para comparar os

universos romanescos do escritor britânico e de Tolstoi e afirma que um dos

aspectos que mais os diferencia é o de que, ao contrário do que sucede com

Tolstoi, “a não ser de um modo bastante indirecto, não podemos aprender muito

com Dickens”109. O ponto torna-se mais curioso a partir do momento em que

Orwell experimenta oferecer uma razão para o aparente défice didáctico do

romance dickensiano quando comparado com o do mestre russo: as suas

personagens não têm vidas mentais porque são estáticas; são precisamente aquilo

que dizem e aquilo que fazem, e não podem ser concebidas a dizer outra coisa

diferente daquilo que dizem ou a fazer outra coisa diferente daquilo que fazem.

Por outras palavras, as personagens de Dickens são um todo acabado e, nesta

109 George Orwell, “Charles Dickens”, Decline of the English Murder and Other Essays,

Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books in association with Secker and Warburg, 1980, p. 135.

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perspectiva, demasiado perfeitas e integradas para provocar nos seus leitores o

efeito estranho que outras personagens mais imperfeitas provocam: o de nos

projectarmos nelas, entabulando diálogo e, com este exercício de imaginação

empática, aprendermos alguma coisa sobre nós mesmos, sobre as nossas demandas

e percursos existenciais. As personagens de Tolstoi cabem, assim, nesta última

categoria de seres inacabados, que se mostram directamente ao leitor através das

suas vidas mentais, um modo de existência interior que as personagens de Dickens

não têm, o que permitirá explicar, alvitra Orwell, a paroquialidade deste último, ou

seja, a sua ininteligibilidade fora do seu contexto de produção, da cultura e língua

britânicas. Não pretendo discutir a ininteligibilidade de Dickens, ou melhor, das

personagens dos seus romances, fora do contexto do leitor de romances britânicos,

nem tão pouco a tese, umas linhas acima condensada, de que “toda a literatura é

propaganda”, pese embora a ressalva de que “nem toda a propaganda é

literatura”110. Interessa-me, sim, explorar os problemas que se reúnem em torno da

questão que Orwell levanta ao comparar os dois mestres: o carácter especulativo

da vida mental das personagens de Tolstoi qualificam-no mais facilmente como

autor universal, capaz de exercer o seu fascínio sobre gerações futuras de leitores,

dentro e fora das fronteiras linguísticas e culturais do seu país de origem, do que o

paroquial e familiar Dickens.

Seja a principal distinção entre o romance dickensiano e o romance

tolstoiano devedora, como parece ser, da popular distinção de E. M. Forster, entre

personagens redondas, “que nos surpreendem”, e planas, que não nos

surpreendem111, seja a distinção invocada apenas pertinente quando aplicada a

110 Orwell, op. cit., pp. 125-26. 111 Cf. E. M. Forster, “People (Continued)”, Aspects of The Novel, Oliver Stallybrass (ed.), Frank

Kermode (intro.), London, New York: Penguin Books, 2005, pp. 71-84.

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certas obras de Tolstoi (e.g. Guerra e Paz), mas não a outras (e.g. Hadji-Murat),

Orwell, ao opor o paroquialismo das personagens estáticas de Dickens à

universalidade das “personagens em crescimento” de Tolstoi e à sua ênfase, como

diria um crítico mais tarde, “não no que elas [as personagens] se tornam, mas no

processo de se tornarem”112, sugere também que esta caracterização – mais

filosófica do que literária – implica a hipótese de que o romance de Tolstoi é mais

difícil de ser compreendido pela generalidade das pessoas, i.e., pelas “simple

people”.

Na realidade, esta questão estaria no centro de todas as reflexões de

Tolstoi sobre arte, e das suas experiências literárias, especialmente a partir da

década de 70, quando se empenha em novos métodos para tornar a sua arte

universal, ou seja, acessível a todos. Estaria também no centro da discussão perene

que se seguiria à publicação de Guerra e Paz e Anna Karenina, e que oporia

críticos mais preocupados com questões de género, composição e coerência a

críticos menos preocupados com a eventual falta de unidade temática e formal das

digressões filosóficas e análises psicológicas destes romances.

É neste ponto que a discussão sobre duas concepções distintas do

romance e de unidade da obra literária se mostra útil para contextualizar as buscas

de Tolstoi de um novo método para criar obras mais importantes.

** No ciclo de conferências proferidas em Cambridge, e publicadas no

mesmo ano sob o título Aspects of the Novel (1927), o romancista e crítico

britânico E. M. Forster começa por recordar alguns dos aspectos mais óbvios do

112 R. F. Christian, Tolstoy: A Critical Introduction, Cambridge: Cambridge UP, 1969, p. 195.

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romance, muitas vezes ignorados pelos aparatos críticos mais sofisticados dos

especialistas e professores de literatura: ao contrário do que acontece com outras

expressões artísticas, o objecto de imitação do romancista é necessariamente seres

humanos, estejam estes disfarçados, ou não, sob outras formas, e.g.

antropomórficas. Este primeiro aspecto tão trivial quanto necessário é também

referido por Tolstoi na sua defesa de Guerra e Paz, embora com um intuito

distinto do de Forster: em contraste com o historiador, o artista “tenta apenas

compreender e mostrar, não uma determinada figura, mas um homem”113. Da

constatação deste aspecto decorre uma outra que, para Forster, distanciando

embora o romance das outras artes suas semelhantes, o aproxima da narrativa

histórica: a constatação de que, salvo raras excepções, mal-sucedidas114, tanto

romancista como historiador pertencem à mesma espécie animal dos objectos que

imitam, o que não se verifica necessariamente nas outras expressões artísticas.

Esta afinidade biológica traz consigo uma afinidade psicológica, mais evidente no

caso do romancista, que tem sobre o narrador da História a vantagem de ser

simultaneamente criador e narrador, o que se traduz num conhecimento absoluto

das “vidas secretas” das suas personagens (Aspects of the Novel, 58).

Ao contrário do método do historiador, que “representa as acções dos

homens e os seus caracteres apenas na medida em que estes podem ser deduzidos

das próprias acções” (idem, 55), o romancista não está obrigado a conjecturar

sobre a “vida privada” das suas personagens: ele representa os caracteres

113 [tol’ko poniat’ i pokazat’ ne izvestnogo deiatelia, a tcheloveka]. Cf. Tolstoi, “A Few Words

About the Book ‘War and Peace’”, Tolstoy: The Critical Heritage, p. 125. 114 E. M. Forster não teria provavelmente lido um dos primeiros contos de Tolstoi, “Kholstomer,

A História de Um Cavalo” (1863), cujo narrador omnisciente é um cavalo, e que entraria para a história da teoria da literatura como um dos exemplos que Chklovski oferece do processo de “tornar estranho”. O argumento seria, contudo, o mesmo porque na realidade o ponto que Forster pretende evidenciar aqui é o princípio wittgensteiniano de que mesmo “se um leão falasse, nós não o compreenderíamos”.

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directamente a partir da sua fonte, ou seja, das suas mentes.

Se estas duas espécies aliadas se distinguem, não é pelo facto trivial,

muitas vezes invocado pelos especialistas da literatura nas suas considerações

sobre a natureza da ficção, de terem constituições distintas – uma tem um corpo, a

outra é um aglomerado de manchas escuras no papel – ou porque os generais dos

romances se comportem de modo muito diferente do dos seus homólogos

históricos. Tal acontece porque, enquanto os primeiros “são pessoas cujas vidas

secretas são visíveis, ou podem ser visíveis; nós somos pessoas cujas vidas

secretas são invisíveis” (idem, 70).

Por este motivo, ao mostrar aquilo que é invisível, ou meramente

deduzível, no relato histórico – as mentes das pessoas –, dando-nos a ilusão da

perspicácia e do poder clarividente da omnisciência, do conhecimento absoluto

dos conteúdos mentais dos outros, Forster afirma que o romance é, neste sentido

não-aristotélico, mais verdadeiro do que a História: permite ir para além da

evidência dos factos (ou acontecimentos) e aceder aos estados privados de pessoas

com uma confiança que raras vezes, ou mesmo nunca, encontram paralelo nas

nossas vidas quotidianas, em que esta relação de intimidade ou de conhecimento é

inevitavelmente intermitente. Ao acentuar esta assimetria entre as duas espécies,

esta diferença de grau de conhecimento das outras mentes, Forster pretende

mostrar as limitações da arte da ficção de Henry James, tal como apresentada pelo

seu discípulo, o crítico literário Percy Lubbock, em The Craft of Fiction (1921)115.

Se, para Henry James e o seu discípulo, o valor do ‘facto da arte’ é uma coisa tão

dificilmente mensurável, avaliada ou mesmo tornada pública como a visão do seu

autor (isto é, uma impressão, ou experiência, pessoal e directa da vida), que regras

115 Percy Lubbock, The Craft of Fiction, T. Nagar: Tutis Digital Publishing, 2007.

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poderão ser aplicadas, com precisão, na construção ou na interpretação de

romances, cujo conteúdo é tão pouco manejável ou apreensível como a vida

mental do seu criador, essa “gigantesca teia de aranha suspensa... na câmara da

consciência”, na famosa metáfora do mestre116? A resposta avisada de James é

que, ao contrário do que críticos literários como Walter Besant pressupõem, não

há regras “exactas e precisas” nem para escrever nem para avaliar romances,

porque a única responsabilidade que pode ser imputada a um romance e, por

conseguinte, à mente do seu criador, é a de que seja interessante. Não importa o

quão sofisticada seja, ou se venha a tornar, a crítica literária, não conseguirá abolir

o único teste que segundo James permite aferir do valor intrinsecamente

subjectivo das obras literárias e mostrar simultaneamente o modo rarefeito como

arte e moral se cruzam: o teste primitivo do gosto. Este teste assenta no axioma de

que:

Nenhum bom romance pode resultar de uma mente superficial; isto

afigura-se-me um axioma que, para o artista de ficção, é suficiente para cobrir todo o campo moral. O único dever que à partida devemos imputar a um romance, sem incorrer na acusação de estarmos a ser arbitrários, é o de que seja interessante. Essa responsabilidade genérica está-lhe inerente, mas é a única que me ocorre (“The Art of Fiction”, 49).

A resposta de Lubbock enfatiza, por outro lado, o processo criativo do

leitor de romances, que só tem início quando este começa a tratar o objecto que

tem pela frente, não como um pedaço de vida, composto de factos arbitrários, mas

como um candidato a obra de arte, cujo estatuto depende essencialmente da

unidade de composição, isto é, da unidade entre forma e conteúdo (The Craft of

Fiction, 23-24). O tema de um romance, a sua intenção, deverá ser de tal modo

laboriosamente condensado que possa ser “expresso em dez palavras que revelam 116 Henry James, “The Art of Fiction” (1884), Literary Criticism. Essays on Literature, American

Writers, English Writers, New York: Literary Classics of the United States, 1984, p. 52.

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a sua unidade” (idem, 24), e fica claro que esta unidade ideal só se alcança

mediante o respeito pela prescrição antiga que o seu mestre James elege como

divisa da arte de compor romances: a de que o autor deverá falar o “menos

possível por conta própria”117. Por outras palavras, o autor deverá desaparecer por

detrás de um centro de visão (preferencialmente a mente de uma única

personagem118) que o substitua e comande inequivocamente a narrativa ao oferecer

a sua interpretação das acções que de outro modo seriam arbitrárias, ou

ininteligíveis, porque desprovidas de intenção (idem, 42). Acentuando a necessária

unidade temática e formal que possibilita a reconstrução da intenção autoral por

parte do leitor-criador, isto é, do sentido encriptado pelo autor invisível e inaudível

na obra literária, Lubbock corrobora assim a justeza do veredicto do seu mestre

quando este afirma, num dos seus prefácios à edição de Nova Iorque, que Paz e

Guerra [sic] é um “monstro sem forma nem estrutura”.

De acordo com James, só libertando Guerra e Paz dos seus “bizarros

elementos do acidental e do arbitrário” é que aquela massa disforme – demasiado

parecida com o caos da vida, i.e. com a natureza – poderia convidar à

contemplação estética. De acordo com Lubbock, segundo o qual Tolstoi escrevera

dois romances num só, sem disso se aperceber (a Ilíada e a Eneida condensadas

num mesmo livro, e ainda por cima sem um final), apenas uma mudança de atitude

e método por parte do autor poderia fazer jus ao seu colossal génio inventivo e

produzir uma obra com uma inequívoca intenção estética. Assim, só abandonando

o panfletarismo, as teses sobre a guerra, as “exasperantes digressões” e

interferências autorais que constituem, numa típica afirmação do ideal de

117 Aristóteles, Poética, Eudoro de Sousa (trad.), Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,

1994, 1460a5. 118 Strether, de The Embassadors, será o narrador-modelo para Lubbock.

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‘impessoalidade’ modernista, um “terrível crime que trai o sagrado ofício do

romancista”119, bem como a inconsistência composicional dos diferentes pontos de

vista através dos quais a narrativa aparentemente progride sem nunca mostrar o

seu sentido, só assim é que Guerra e Paz viria a tornar-se uma instância da “arte

da ficção”. Pelo contrário, ainda segundo Lubbock, o livro acaba por ser um

projecto equívoco, sem forma, nem ficção, nem crónica histórica, e que pela

ausência de uma intenção clara inviabiliza o processo emersoniano de “creative

reading”, ou de reconstrução da intenção do autor.

O ideal consumado nas obras de romancistas como Henry James e

Gustave Flaubert – as quais, pelo facto de nelas o tema se encontrar

“absolutamente fixo e determinado”, não permitindo “encontrar mais do que um

único sentido” (The Craft of Fiction, 34), não deixam o leitor na dúvida exegética

que assinala o fracasso da ficção, da arte de construir imagens acabadas – é tanto

mais paradoxal e surpreendente quanto se conclui que o método de representação

que distingue a mera narrativa de factos da ficção é a dramatização da vida mental

do seu autor. Tal existência mental nunca deverá ser descrita de modo directo, mas

mostrada indirectamente através de dois modos de narração: o dramático (ou

cénico) e o pictórico (ou panorâmico) (idem, 39). É na alternância entre estes dois

modos de narração, que permite mostrar os caracteres através da acção, mas

também através da narração indirecta, que se constitui o que Lubbock apenas pode

descrever – e aqui já não surpreendentemente – através de metáforas pictóricas: a

arte de fazer de um romance um espelho no qual o leitor possa contemplar as

imagens que o autor laboriosamente construiu a partir de algo tão inefável quanto

a sua experiência pessoal da vida (idem, 155).

119 James, “The Art of Fiction”, p. 46.

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Não importa que todo o vocabulário crítico de Lubbock seja

assumidamente inadequado para designar o modo como a imagem (ou a ilusão) da

vida que o romance mostra depende das noções de estrutura, unidade e forma, ou

que os romances de Henry James sejam o modelo de todos os romances. Tão

pouco interessa explorar a hipótese de que a discussão em torno de modos de

apresentação – o directo e o indirecto – possa ser entendida como procedente da

célebre, e ainda influente, distinção de Bertrand Russell entre descrição e

conhecimento por acquaintance120, particularmente se atentarmos na seguinte

justificação de Lubbock:

O livro não é uma sucessão de factos, é uma imagem única; os factos não

têm qualquer validade por si, não são nada até serem usados. Não é à simples arte da narrativa, mas à englobalizante arte da ficção a que eu me estou a referir; e na ficção não pode haver qualquer apelo a uma autoridade exterior ao próprio livro [...] Ele não é feito de tal forma para parecer verdadeiro através da simples afirmação. (The Craft of Fiction, 12-13)

No contexto desta discussão sobre modos distintos de falar sobre pessoas,

importa salientar que a lição jamesiana estabelece para Lubbock o modo correcto

de transformar o particular (a experiência pessoal) na imagem universal (a arte), o

acidental (a natureza) no necessário (a forma): a autodramatização. Este método,

através do qual o romancista exemplar (i.e. Henry James) mostra o impacto da

experiência na mente de uma personagem, exige por parte do autor a discrição, ou

o bom gosto, de não se intrometer no seu teatro, a não ser nas raras ocasiões em

que a necessidade assim o obriga – para transformar, por exemplo, um gesto

potencialmente arbitrário e sem sentido num gesto potencialmente artístico e com

sentido –, sendo que, mesmo nestes casos de intromissão nas mentes das suas

criaturas, o autor deverá fazê-lo no espírito – e com a técnica – jamesiano:

120 Cf. Bertrand Russell, “Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Description” (1910).

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indirectamente, para não estragar a ilusão de verdade.

É, pois, a partir deste modo de dramatizar a experiência de uma

consciência que Lubbock avalia a técnica com que todos os romances são

modelados, e não surpreende que, apesar de reconhecer os méritos de projectos tão

grandiosos como os romances de Tolstoi, o veredicto final sobre o gigante russo

seja negativo: Guerra e Paz não tem estrutura nem forma. Ao contrário do livro

bem urdido, do “well-made book”, que exibe a sua unidade e faz coincidir forma e

conteúdo num todo inextricável, o romance de Tolstoi não resulta do laborioso

trabalho de estruturação de um único tema, “idealmente condensável em dez

palavras” (idem, 24). E é esta arte da ficção que permite ao leitor recriar a

“impressão da experiência” na mente do autor e ter a ilusão de a vislumbrar, por

um instante que seja, à sua frente.

Por privilegiar a intromissão apologética de propósitos morais121 em

detrimento do modo de narração indirecto – a essência da arte de atribuir sentido

às ‘fantasmagorias’, ou impressões pessoais da vida, de que os romances são

compostos –, pela profusão dos elementos arbitrários que confundem arte e vida,

ficção e autobiografia, poesia e história, mito e filosofia, Lubbock, aplicando as

regras da sua arte da ficção, é obrigado a concluir que Guerra e Paz, não obstante

ter sido rescrito várias vezes, não é um bom romance porque “[n]ão tem um

centro, e Tolstoi está tão pouco preocupado com esta ausência que temos de

concluir que nunca chegou sequer a vislumbrar qualquer centro […]. É da imagem

que estamos a falar; a sua moral reside na sua configuração, e sem configuração as

cenas dispersas não chegarão a compor qualquer imagem” (The Craf of Fiction,

22, 30).

121 Segundo James, propósitos morais são apologias, crimes de lesa-majestade à arte (Cf. “The Art

of Fiction”).

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Em contraste com a pontuação negativa atribuída a Tolstoi pelos críticos

mais sensíveis às inconsistências formais dos seus romances, E. M. Forster

defende que é precisamente neste “método de representação equívoco”, explorado

exemplarmente em Guerra e Paz, na utilização de vários pontos de vista em

detrimento de um foco de consciência central, que reside uma das grandes

qualidades deste romance, e dos romances em geral.

Pese embora a sua relutância em afirmar a relevância da crítica literária

para o conhecimento da literatura, uma vez que apenas podemos avaliar romances

como avaliamos os nossos amigos, isto é, pelo grau de afecto que sentimos por

eles, e pese embora não se aplicar na refutação do argumento de Lubbock sobre a

falta de unidade dos romances de Tolstoi (implicitamente aceita-o), Forster tenta

ainda assim oferecer algumas boas razões para a sua predilecção por obras

imperfeitas como Guerra e Paz e para a sua indiferença pelas criações perfeitas de

Henry James. Se toda a perícia que James coloca ao serviço da busca pelo efeito

estético apenas resulta na criação de personagens encantadoras, mas fatalmente

mutiladas e artificiais – “deformidades artísticas” –, o ‘anti-formalismo’ de

Tolstoi, pelo contrário, tem a vantagem de esbater a única diferença relevante

entre personagens e pessoas, i.e., uma diferença entre tipos de justificação para o

conhecimento das outras mentes.

A mudança de ponto de vista e de estilos com que Tolstoi, por exemplo,

transforma as campanhas napoleónicas na Rússia num romance, imperadores e

generais históricos em caracteres umas vezes menos secretos, outras vezes mais

imperscrutáveis, é sintoma da expansão e contracção da percepção humana, que

encontra eco na percepção da vida quotidiana, em que umas vezes somos mais

ineptos na compreensão das “vidas secretas” dos outros e, outras vezes,

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demonstramos maior argúcia e poder de clarividência. É nesta oscilação que se

aproximam as duas espécies primas que Forster jocosamente baptiza de Homo

Fictus e Homo Sapiens. É aqui também que o romancista revela que está a entrar

no terreno do romance e a sair do terreno da História, a qual, apesar de se

interessar pelos caracteres do seu objecto de representação tanto quanto o

romancista, tem uma limitação (e aqui Forster concorda momentaneamente com

Aristóteles): apenas pode deduzi-los a partir da evidência, isto é, das suas acções,

gestos ou expressões faciais (“aquilo que aconteceu”), e não directamente, a partir

das suas mentes, como o romancista. É nesta oscilação da percepção que o

romancista revela, por outro lado, que não está a imitar imagens, ideias, tipos ou a

esculpir delicados simulacros de pessoas (as criaturas mutiladas que povoam as

moradas estéticas de Henry James), mas a imitar pessoas, a tentar, como Tolstoi

reitera, “mostrar, não uma determinada figura, mas um homem”. As mesmas

pessoas que conhecemos no quotidiano e cujas “vidas secretas”, apesar de o

espectro do solipsismo assombrar as relações humanas – “porque o conhecimento

absoluto é uma ilusão” (Aspects of the Novel, 69) –, nos esforçamos por

compreender sem duvidar da sua existência nem da possibilidade de as

compreender ou de falar sobre elas, tal como acontece quando falamos sobre

personagens, poemas, estátuas ou quadros.

É ao diluir, e não ao acentuar, diferenças entre modos de conhecer ou de

descrever pessoas e personagens que o romancista demonstra assim estar a fazer

aquilo que lhe compete: não sacrificar o homem à “forma autónoma”, ou à

inefável “imagem do tapete”, de Henry James e de Percy Lubbock, ou a qualquer

outra forma que a “arte da ficção” assuma.

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A interpelação de Forster em favor do não-sacrifício do homem no altar

da Beleza evoca a de Iris Murdoch, quando esta, recordando o ponto jamesiano

que diferencia a arte da vida – a necessidade da forma –, recorda igualmente um

aspecto importante, inerente à sua noção de arte como “imitação da natureza”: a

liberdade absoluta do romancista para com os indivíduos que cria acarreta também

o dever de resistir à tentação de capturar na unidade da forma algo tão contingente

e indomesticável como a experiência humana, e “combinar forma com respeito

pela particularidade da vida é o modo mais elevado da arte da prosa”122. Este dever

de que Murdoch fala ao longo da sua obra filosófica – o de proteger a contingência

das personagens, a essência da personalidade –, e que aponta para a natureza

moral da disciplina exigida ao romancista na sua arte de “deixar os seus indivíduos

ser”, é também referido por Tolstoi. Numa carta a um jovem aspirante a escritor,

Tishchenko, e após tecer uma crítica à descrição estática e fria das pulsões internas

das suas personagens, Tolstoi oferece o seguinte conselho: “[V]ive as vidas das

pessoas descritas, descreve em imagens as suas experiências internas e as próprias

personagens farão o que devem fazer de acordo com as suas naturezas, i.e. um

desenlace resultando da natureza e da situação das personagens inventar-se-á a si

mesmo e materializar-se-á naturalmente”123.

Negligenciar a particularidade de cada personagem em prol da

necessidade, ou da busca pelo efeito da forma acabada, produz descrições

artificiais de pessoas (e.g. seres unos e autónomos) ou, nas palavras de Tolstoi,

meras “imagens com uma legenda a dizer: ‘isto é um homem’”124. Tal resultado

não é apenas um fracasso artístico – é também um fracasso moral. A advertência

122 Iris Murdoch, Existentialism and Mystics: Writings on Philosophy and Literature, Peter

Conradi (ed. e intro.), London: Chatto & Windus, 1997, p. 286. 123 Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 408. 124 Idem, loc. cit.

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de Tolstoi ao jovem escritor para que viva “as vidas das pessoas descritas”,

revelando com isto “o mesmo amor e atenção” que estão na génese das pessoas na

ficção – as quais não são nem imagens legendadas, nem avatares do seu criador –,

é a advertência, tipicamente murdochiana, de que o feito de inventividade (e de

amor) que consiste em criar personagens livres é do domínio da disciplina moral.

Ele exige não só o esvaziamento da personalidade do autor (uma ideia próxima da

“capacidade negativa” de que Keats fala numa carta célebre), como o dever de

resistir à adoração da necessidade, à tentação da forma autocontida e de fantasias e

“ilusões egotistas”, como as de um ego todo-poderoso. Por motivos similares,

Tolstoi chama igualmente a atenção ao jovem escritor, numa outra carta, para a

importância de revelar, no que concerne a “expressão” ou “reprodução” dos

pensamentos das suas personagens, o que é único e característico da cada pessoa,

os lapsos da linguagem comum, o incorrecto: “Gosto do que é chamado

incorrecção, ou seja, do que é característico”125.

É neste modo de Tolstoi de criar o que para uns constitui imperfeições, ou

de não as ocultar, de alargar o âmbito do estético, com “desdém absoluto pela

arquitectura proporcionada”126, e tornar a ideia de um padrão de gosto baseado na

percepção da beleza da forma (unidade) irrelevante para a compreensão dos seus

“artigos” ou romances, que consiste tanto para Forster como para Murdoch a mais

elevada arte da prosa – a arte que, contra os princípios que orientam mesmo

críticos tão subtis como Lubbock, os romances de Tolstoi exemplificam.

A ênfase que Forster coloca, à semelhança de Murdoch, neste aspecto,

particularmente nos dois capítulos dedicados ao objecto de imitação do romancista

125 Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 417. 126 Boris Eikhenbaum, The Young Tolstoi [Molodoi Tolstoi, 1922], Gary Kern (trad. e ed.), Ardis:

Ann Arbor, 1972, p. 32.

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(“People”) está longe, por isso, de resultar, como pretenderam alguns académicos,

provavelmente irritados com a sátira que o autor faz à figura do pseudo-

académico, de um deliberado “processo de mistificação”, que consiste em

confundir o seu público com afirmações paradoxais ou triviais que nada dizem de

relevante sobre a literatura e obedecem, não a critérios críticos rigorosos, mas a

gostos pessoais arbitrários127. Não me parece adequado fazer corresponder o

cepticismo professo de Forster na teoria e crítica literárias nestas conferências –

que curiosamente viriam a tornar-se, apesar das acusações de leviandade

intelectual de que seriam alvo, numa das mais populares obras de teoria literária

em língua inglesa da primeira metade do século XX128 – a uma mera provocação

de um romancista a tentar justificar-se diante de um grupo de eminentes

académicos de Cambridge.

Não se poderá entender tão pouco a ênfase que Forster curiosamente

coloca nas limitações da resposta ou da atitude estética, que obriga a olhar educada

e distanciadamente para o romance como uma obra de arte, com outras leis que

não as que regem o quotidiano, e para as personagens como seres ‘reais’, não

apenas porque são como nós e nós como eles, mas porque são convincentes ou

bem construídas, se não a virmos motivada por outras razões que não sejam uma

mascarada apologia dos seus romances, como pretende, no mesmo espírito jocoso

do autor de Aspects of the Novel, Somerset Maugham. Ou melhor, como pretende

uma das suas personagens, quando afirma nada mais ter aprendido com a leitura

127 Cf. E. F. Benson, “A Literary mystification”, E. M. Forster: The Critical Heritage, Philip

Gardner (ed.), London, Boston: Routledge & Kegan Paul, 1984, pp. 329-331. 128 S. P. Rosenbaum, “Aspects of the Novel and Literary Theory”, E. M. Forster: Centenary

Revaluations, Judith Scherer Herz e Robert K. Martin (eds.), London: MacMillan Press, 1983, p. 55-83.

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desta obra a não ser que o único modo de escrever romances é escrever como E.

M. Forster129.

A resistência de Aspects of the Novel em subordinar a literatura a uma

teoria ou a uma leitura especializada e a determinação do seu autor em convocar

uma “resposta menos estética e mais psicológica” (idem, 69) para a pergunta

porque é que “sugerir que Moll Flanders está em Cambridge nesta tarde, ou

nalgum outro lugar em Inglaterra, ou que esteve em algum lugar em Inglaterra, é

desprovido de sentido [idiotic]?” (idem, 68) resultam de um pressuposto que nada

tem de trivial ou arbitrário. Tal pressuposto, que orienta também as discussões –

filosoficamente mais articuladas, é certo – de autores como Iris Murdoch sobre

arte e particularmente sobre a arte que também é por ela praticada, diz que a coisa

mais importante que o romance revela, ou pode revelar, é que as outras pessoas

existem130. É a esta mesma revelação, cuja natureza moral poderá estar oculta pela

familiaridade com que percebemos “o outro”, seja este a realidade, o mundo ou as

outras pessoas, que podemos assistir com Pierre Bezukhov, em Guerra e Paz.

Após proferir diante da fraternidade maçónica o seu polémico discurso sobre a

necessidade da acção na conquista da virtude e do aperfeiçoamento moral do

indivíduo e da sociedade, Pierre é confrontado nesse instante, e pela primeira vez

na sua vida, com a infinita variedade de mentes à sua volta, mas também com a

inevitabilidade – tanto mais dolorosa quanto “a sua principal necessidade

necessidade consistia precisamente em transmitir os outros a sua ideia com rigor,

129 Li The Craft of Fiction, do Mr. Percy Lubbock, do qual aprendi que a única forma de escrever

romances era escrever como Henry James; depois disso, li Aspects of the Novel, do Mr. E. M. Forster, do qual aprendi que a única forma de escrever romances era escrever como Mr. E. M. Forster”. S. Maugham, Cakes and Ale, citado “Introduction”, Aspects of the Novel, p. xxv.

130 Murdoch, op. cit., p. 283.

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tal como ele a compreendia” – de que cada uma apreende a verdade ao seu

modo131.

O pressuposto implícito na concepção do romance como a forma artística

cujo grau de sucesso se encontra mais intimamente relacionado com a qualidade

(moral) da atenção disciplinada e amorosa do seu autor (e do seu leitor) à

existência das outras pessoas pretende situá-lo fora da falácia romântica, que

estipula que a “literatura tem de ser jogo desinteressado (a produção de coisas

autocontidas) ou ser didáctica e contribuir para a educação (a afirmação discursiva

de verdades)132. Chama também a atenção para a vexata quaestio das teorias da

ficção e em particular das teorias do “make-believe”: como podemos sentir temor

ou piedade por objectos não existentes como personagens ficcionais sem que tal

seja irracional? Ao lermos um romance ou ao assistirmos a uma tragédia,

sabemos que aquelas personagens não são realmente pessoas históricas, que

nasceram na data estipulada por romancistas ou dramaturgos – elas são, afinal de

contas, meras ficções criadas ao correr da pena caprichosa de certos indivíduos.

Então por que que motivo nós, leitores ou espectadores, nos interessamos ou até

sofremos com os seus destinos?

Argumentar que respostas tipicamente trágicas como o temor ou a

piedade não dependem da crença na existência do objecto das respostas133, porque,

131 Tolstoi, Guerra e Paz, Livro II, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Lisboa: Editorial

Presença, 2005, p. 204. 132 Cf. Murdoch, op. cit., p. 281. 133 Muitas reflexões sobre o papel que a imaginação tem na compreensão estética partem do

princípio de que pode ser também descrita como o fenómeno de “ver como” em oposição a “ver que”. Roger Scruton contrasta experiências ‘normais’ de percepção – em que ver x é indistinguível de acreditar em x – como acontece quando alguém abre a janela e não vê apenas o campo como verde, mas acredita que o campo é verde, – com ver x sem acreditar em x – como acontece quando se abre a mesma janela e, em vez de se ver o campo verde, vê-se a dança das bruxas nos padrões bruxuleantes que os jogos de luz projectam no limite distante do campo. Esta segunda experiência é, segundo Scruton, a espécie de ver que “distingue os homens dos animais, e aquela onde a imaginação é o elemento operativo [operative factor]. (Roger Scruton, “Imagination”, Modern Philosophy: An Introduction and Survey, London:

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na linha de Lamarque e Olsen, descrições ficcionais produzem objectos

meramente intensionais (sem extensão física), sendo que não existem stricto sensu

respostas trágicas, mas certas descrições ou pensamentos que provocam certas

reacções134, não explicará, por um lado, em que sentido descrições ficcionais são

descrições de objectos não-existentes. Por outro lado, tal argumentação tão pouco

explicará como ou em quê descrições ficcionais se diferenciam de outras

descrições (e.g. objectos matemáticos ou conteúdos mentais), cujo estatuto

ontológico e valor de verdade se encontram tão dependentes do ponto de vista

lógico do modo como são descritos como os de personagens ficcionais. Tal se

passa, aliás, com muitas outras coisas às quais atribuímos existência no tempo e no

espaço, ou seja, na natureza135.

Da mesma forma que descrever tragédias como adereços que funcionam

de modo similar aos jogos de faz-de-conta das crianças, e em que se finge que se

acredita na existência do objecto da resposta que, por seu lado, não é uma emoção

trágica verdadeira, mas uma quase-emoção136, não explicará o motivo pelo qual o

leitor, para compreender correctamente uma obra de ficção, tem de fingir que se

emociona com os destinos das personagens em cuja existência pretende

momentaneamente acreditar. Por outras palavras, os proponentes das diferentes

Pimlico, 2004, p. 343)

134 Uma das possibilidades desenvolvidas por Lamarque e Olsen de modo a justificar que respostas emocionais a ficções podem ser apenas descritas em termos de pensamentos que temos sobre personagens ficcionais, isto é, pensamentos sobre as descrições que produziram personagens. Cf. Peter Lamarque & Stein Haugom Olsen, “Content and Characters”, Truth, Fiction, and Literature, Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 104.

135 “Objectos, acontecimentos e situações são, em muitos casos, ontologicamente distintos [distinct] do modo como os compreendemos. Todavia, em muitos casos, uma coisa existe de tal forma dependente do modo como o compreendemos ou descrevemos que a sua existência não é logicamente distinta [separable] das suas descrições. Isto aplica-se muitos dos nossos putativos estados psicológicos, bem como às nossas acções.” (Brett Bourbon, Finding a Replacement for the Soul. Mind and Meaning in Literature. Cambridge: Harvard UP, 2004, p. 69.

136 Cf. Kendall Walton, Mimesis as Make-Believe. On The Foundations of the Representational Arts. Cambridge: Harvard UP, 1990.

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variantes da tese que afirma que só podemos compreender obras de ficção como

tragédias ou romances, incluindo as nossas reacções psico-fisiológicas com os

destinos trágicos de nomes ou descrições vazias como Anna Karenina ou o Rei

Lear, têm um problema prévio para resolver, criado pelos termos com que

formulam a pergunta à qual pretendem responder: o da natureza da ficção. Trata-

se aqui do problema lógico que Brett Bourbon identifica na descrição que

Lamarque e Olsen fazem do modo como operadores intensionais funcionam e que

pode ser resumido do seguinte modo: “O problema de se utilizar um operador

intensional para descrever a forma lógica de ficções consiste em não conseguir

descrever tanto a diferença entre ficções e não-ficções como entre coisas ficcionais

e coisas reais sem assumir a ficcionalidade que se pretende assinalar”137.

Antes de defender que respostas emocionais a personagens ficcionais não

são respostas irracionais, em que se tomam descrições de objectos ficcionais como

personagens por descrições de facto, enunciados ficcionais por actos-de-fala,

contextos intensionais por contextos extensionais, mas são antes uma condição

necessária para compreender correctamente ficções, os proponentes das teorias da

ficção como “make-believe” teriam de demonstrar que os seus argumentos não

dependem logicamente de dicotomias ‘artificiais’, tais como descrições ficcionais

de objectos existentes e de objectos não existentes, acções sob descrição/acções

sem descrição ou, na terminologia de Tolstoi, entre aparições e pessoas138. Para

circunscrever o problema, teriam de demonstrar que os generais na ficção têm um

modo de existência diferente do de generais na realidade e que descrições

137 Bourbon, op. cit., p. 77. 138 Na realidade, o argumento “anti-intensionalista” de Tolstoi talvez fosse melhor expresso

através do par aparições/autor empírico: “Preferiria que os discursos de Don Juan não fossem os discursos de uma aparição, mas os discursos de Bernard Shaw e, do mesmo modo, que The Revolutionist’s Handbook fosse atribuído não a um não-existente Tanner, mas ao Bernard Shaw existente, responsável pelas suas próprias palavras.” Carta a George Bernard Shaw, 1908, Tolstoy’s Letters, II, p. 678.

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ficcionais de batalhas são diferentes de descrições não ficcionais de batalhas, pelo

menos do modo que pretendem. Por outro lado, teriam também de justificar uma

premissa implícita do seu argumento: a de que existe uma linguagem neutra,

impessoal, extirpada de valor. Esta visão “purificada” e abstracta do sistema

simbólico por excelência através do qual nos exprimimos e construímos como

seres racionais e espirituais139, é apenas concebível, como Iris Murdoch realça em

diversos momentos da sua obra, quando discute (e disputa) a distinção facto/valor,

através de meios artificiais. Por este motivo, é uma possibilidade não só remota

mas que apela provavelmente apenas à ciência.

Na sua abordagem ao aspecto principal do romance, o objecto de

imitação do romancista (as pessoas), Forster consegue, consciente e

deliberadamente ou não, evitar criar o problema inerente às teorias da ficção

mencionadas. O escritor sugere que para falar de rainhas inglesas, generais russos,

Moll Flanders e de outras pessoas dos romances que podem bem ser, apesar do

“erro de lógica” ou da “falta de gosto” (Aspects of Novel, 68), confundidas com

pessoas de carne e osso, não é desejável dar a resposta que se aprende nos manuais

de literatura: a resposta estética. Apesar de correcta, porque Moll Flanders não está

de facto naquele momento em Cambridge, nenhum argumento estético ou, para

todos os efeitos, nenhum argumento intensional, mesmo se mais sofisticado do

que aquele que Forster invoca, poderia ser deduzido para demonstrar a alguém que

pensou reconhecer Moll Flanders no meio dos professores de Cambridge que ela

não tinha compreendido Moll Flanders, isto é, que não tinha compreendido que a

existência de Moll Flanders só pode ser inferida a partir de Moll Flanders, de

Daniel Defoe. Forster, como já aludido, oferece outra espécie de razões, de

139 “As palavras são o lugar onde vivemos como seres humanos e como agentes morais e

espirituais.” (Murdoch, op. cit., p. 242)

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natureza psicológica, embora não necessariamente psicológicas. Contudo, o que

me interessa neste momento retirar da lição de Forster é que esta vem relembrar –

contra a lição jamesiana de Lubbock – que, para entender um pouco melhor os

motivos por que conseguimos genuinamente interessar-nos pelas personagens dos

romances, revestindo-as de valor e preocupando-nos com os seus destinos de uma

forma que normalmente reservamos apenas para outras pessoas, não adianta

afirmar que Moll Flanders não pode estar em Cambridge nem que o general

Kutuzov da História não é o general Kutuzov de Guerra e Paz. Tal como não

adianta afirmar que os estados psicológicos do Homo Sapiens diferem em espécie

dos estados psicológicos do Homo Fictus e que só assim, dissociando-os do

mundo dos factos e da verdade, poderemos correctamente compreendê-los, isto é,

esteticamente. Por outras palavras, a sátira de Forster ao profissional de literatura

resulta da intuição de que, no que diz respeito ao nosso convívio com personagens

literárias, ser “sofisticado”, “suspendendo crenças ou descrenças”, preservando a

neutralidade do leitor educado, não ajuda muito à compreensão da natureza das

ficções. Tal como postular que os percursos de pessoas ficcionais são diferentes

dos percursos de pessoas reais, ou que as suas motivações obedecem a outras

regras que não as das pessoas reais, não esclarece a razão por que as descrições

dos conteúdos mentais do Homo Fictus e as do Homo Sapiens estranhamente não

diferem em espécie (uma impossibilidade lógica), mas antes no grau de

conhecimento que deles podemos ter. Apesar de não possuírem glândulas, e de

não serem por isso passíveis de uma definição estritamente científica, os agentes

dos romances tendem a comportar-se nas mesmas linhas que os seus homólogos

reais, cujos conteúdos mentais são, aliás, curiosamente tão resistentes a definições

científicas quanto os seus ‘primos’ mais transparentes ou eloquentes. Obras como

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Guerra e Paz, ostensivamente indiferentes aos imperativos de não-contaminação

entre os dois mundos, entre questões de crença e descrença, asserções e pseudo-

asserções, e fazendo uso de um método de análise psicológica que

necessariamente implica, como Boris Eikhenbaum sugere, a arte na vida uma vez

que não respeita as distinções da estética tradicional (isto é, romântica)140,

demonstram assim para Forster por que razão “nenhum romancista inglês chega

aos calcanhares de Tolstoi” (idem, 26).

Transformar, por outro lado, romances ou tragédias em adereços de jogos

de faz-de-conta, em ocasiões para activar a imaginação e fingir que se está a sentir

emoções por objectos meramente ficcionais, como propõe Kendall Walton, não

explicará ou, quando muito, apenas descreverá, por que motivo as lágrimas que

vertemos pelos destinos trágicos de personagens fictícias são necessariamente tão

amargas quanto as lágrimas que vertemos por personagens de carne e osso141. Do

mesmo modo que celebrar o “faz-de-conta” como uma “experiência mágica”, que

nos poupa às consequências desagradáveis de passar pela experiência na “vida

real”142 (e.g. sentir terror por um monstro real), poderá não esclarecer a razão pela

qual – sem ser necessário recorrer a dados da psicologia – quando estamos a

assistir a uma partida de xadrez jogada por duas personagens no palco do teatro, a

partida que Adelheid e o Bispo jogam, por exemplo, estarmos para todos os efeitos

a ver alguém a jogar realmente uma partida de xadrez, e não a fingir que está a

jogar uma partida de xadrez, como também poderia de resto acontecer. A mesma 140 Cf. Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 45. 141 Diferenças entre reacções a ficções e a acontecimentos reais poderão, certamente, ser

estabelecidas, especialmente no que diz respeito a reacções a posteriori. Por exemplo, os efeitos da morte de uma personagem que nos é cara não se prolongarão do mesmo modo do que a notícia da morte de alguém que conheçamos. Caso contrário, não poderíamos falar de catarses artísticas, mas de pesadelos artísticos.

142 “O faz-de-conta oferece a experiência – pelo menos, alguma coisa parecida – de forma grátis. Catástrofes não acontecem realmente (normalmente) quando acontecem ficcionalmente. A divergência entre ficcionalidade e verdade poupa-nos à dor e ao sofrimento que teríamos de esperar no mundo real”. Walton, op. cit., p. 68.

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partida de xadrez, frisa Wittgenstein, com princípio, meio e fim, e dois jogadores,

a que já assistimos, ou não, na vida real. Este argumento elíptico com o qual

Wittgenstein chama a atenção para o modo como reconhecemos, ou

compreendemos, jogos ficcionais como a partida de xadrez da obra dramática de

Goethe143, recebe uma outra formulação, menos condensada, e centrada no aspecto

que, segundo Forster (mas também Brett Bourbon), mostra de uma forma

importante que descrições de Homo Sapiens e descrições de Homo Fictus são

necessariamente semelhantes:

As personagens de um drama suscitam a nossa simpatia, são como as

pessoas que conhecemos, muitas vezes como as pessoas que amamos ou odiamos: as personagens da segunda parte do Fausto não suscitam de todo a nossa simpatia! Não nos sentimos como se as conhecêssemos. Desfilam perante nós como pensamentos, não como seres humanos. (CV, 47e)

Neste contexto, ser leitor-crítico, empenhado em manter a devida

distância estética, criando aparatos críticos cada vez mais refinados de modo a

justificar respostas emocionais a ficções como respostas a pensamentos relativos a

descrições144, ou leitor-criança, entretido a imaginar que está a experimentar

pseudo-emoções (ou pseudo-pensamentos) por pseudo-pessoas, ou a projectar-se

nas vidas dessas pseudo-pessoas, com o intuito de aprender a planificar a vida e

não cometer, por exemplo, os mesmos erros (ou pseudo-erros) do que elas145,

significa provavelmente ignorar a única regra do jogo da ficção que realmente

conta: a de que, num certo sentido, é necessário confundir arte e vida, amontoados

de palavras no papel e pessoas providas de organismos, descrições do que é o caso

e descrições do que não é o caso. E sem esta atitude (“erro de lógica”, para alguns,

143 Cf. Wittgenstein, IF, I, §365. 144 Cf. Lamarque & Olsen, “Content and Characters”. 145 Cf. Gregory Currie, “Realism of Character and the Value of Fiction”, Jerrold Levinson (ed.),

Aesthetics and Ethics. Essays at the Intersection, Cambridge: Cambridge UP, 1998.

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posição filosófica, para outros), que consiste em atribuir um sentido e valor a

objectos que não se limitam a suscitar o nosso interesse e curiosidade, ou a

absorver-nos, mas também a emocionar-nos de um modo que outros objectos –

e.g. um lenço amarrotado ou um alfinete – dificilmente emocionarão sem que com

isso não se levante a suspeita de que poderemos estar a comportar-nos de um

modo irracional, talvez não conseguíssemos entender o que estes objectos são.

Não conseguiríamos provavelmente entender porque, como Stanley Cavell reitera,

tais objectos ficcionais não significam apenas do modo como frases ou textos

significam [mean], mas do modo como as outras pessoas significam [mean]146.

As personagens dos romances, como escreveu Pessoa, são tão reais como

nós. Esta conclusão (ou premissa?), que não é nem um dado da estética, nem um

dado da psicologia, talvez seja o único modo de explicar a razão pela qual, como

Tolstoi constata, à medida que o objecto das ciências se vai aproximando da vida

humana, elas se tornam cada vez menos exactas, até que a inexactidão alcança os

limites e a própria ciência é destruída147.

Será adiante discutido se esta inexactidão significa que o que fica depois

de os limites desaparecerem são meras ficções, filosóficas ou não, descrições das

vidas secretas das pessoas ou outro tipo de descrições, ou se nem sequer chegam a

ser descrições. Por agora, limito-me a recordar que, contra a “estética da

impessoalidade” preconizada pela arte da ficção de Lubbock, Tolstoi modifica o

princípio de Foster (e também o de Murdoch) de que “as pessoas têm a sua

oportunidade no romance”, ao acrescentar a medida do valor para qualquer

expressão que tenha o homem por objecto:

146 Stanley Cavell, Must We Mean What We Say?, A Book of Essays, Cambridge: Cambridge UP,

2002, p. 198. 147 Tolstoy’s Diaries, vol II, p. 412.

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Um autor tem para nós valor e utilidade na medida em que nos revela os

processos internos da sua alma. O que quer que ele escreva, seja um drama, uma tese erudita, uma discussão filosófica, uma crítica, ou uma sátira, é a revelação do labor da sua alma que é valioso, e não a forma arquitectónica por meio da qual ele a revela, ou frequentemente a tenta ocultar148.

Esta caracterização da escrita como uma actividade que pouco parece

dever a noções estéticas ou a convenções literárias está longe, todavia, de resumir

os problemas de descrição com que Tolstoi se confronta desde as primeiras

páginas dos seus diários juvenis. Tais problemas começam como uma espécie de

diário de Franklin, com a intenção de “escrever um diário das minhas fraquezas”,

com a minuciosa anotação de “regras de conduta em sociedade”, “regras para

desenvolver o físico ou a vontade emocional”, “regras para desenvolver a

faculdade de tirar conclusões”, e tantas outras que Tolstoi vai inventando num

incessante e, por vezes, delirante (e hilariante) exercício de auto-análise e

autodescrição.

Durante este processo de inventariação de regras, descrito a dada altura, e

em francês, como a irreprimível vocação de uma profissão149, Tolstoi verifica que

o estilo com que passa do “diário das suas fraquezas” para a tentativa de

“descrever o que vê”, quando parte para o Cáucaso e começa a sua aprendizagem

literária, oscila entre duas tendências opostas: a tendência sterneana para a

digressão (o retardamento) e a descrição pormenorizada da percepção dos objectos

(paisagens e pessoas). Tolstoi oferece a sua própria terminologia para designar a

148 Tolstoi citado em Edward A. Steiner, Tolstoy the Man, A. N. Wilson (intro.), Lincoln and

London: University of Nebraska Press, 2005, p. 265. 149 “Et puis cette horrible nécessité de traduire par des mots et aligner en pattes de mouches des

pensées ardentes, vives, mobiles, comme des rayons de soleil teignant des nuages de l'air. Où fuir le métier, Grand Dieu!”. Entrada 2 Junho, 1851, Tolstoy’s Diaries, vol. I, p. 29.

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oscilação que identifica nas suas primeiras descrições do Cáucaso e experiências

literárias: a tendência simultânea para a generalização e para a pormenorização150.

Este confronto de Tolstoi com os limites da descrição resulta de mais do

que uma simples tentativa de transmitir, com o máximo de rigor e fidelidade, “os

processos internos da sua alma”, ou todas as suas impressões, pensamentos ou

sentimentos, como o excerto acima citado poderá levar a crer. A busca pelo meio-

termo nos anos formativos, pelo equilíbrio entre digressão lírica ou filosófica e

atenção ao pormenor (descrição atomizada), seria abandonada em obras como

Guerra e Paz. Esta obra exibe, como Eikhenbaum refere, impúdica e

paradoxalmente estas duas tendências, sem qualquer preocupação com a busca do

“meio-termo” ou com as noções, tão centrais na “arte da ficção” de Lubbock e de

outros críticos mais aristotélicos, de equilíbrio ou forma.

Não pretendo com isto concluir que Guerra e Paz, enquanto anti-

narrativa ou paródia de todos os possíveis modelos de narrativa histórica e, para

todos os efeitos, de qualquer narrativa, quer sobre a vida das nações, quer sobre a

dos indivíduos151, seja a resposta final para os problemas com que Tolstoi se

debate quando começa a utilizar o seu diário, não apenas para anotar as suas

150 “Escrevi a Carta do Cáucaso – não muito, mas bem… Primeiro, deixei-me levar pela

generalização (generalizatsiya), em seguida, pela pormenorização (melochnost), e agora, se não encontrei ainda o equilíbrio, pelo menos compreendo a sua necessidade e pretendo encontrá-lo.” (Citado em Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 31).

151 Este é o argumento de Gary Saul Morson, em Hidden in Plain Sight, que caracteriza Guerra e Paz como a afirmação de uma tese negativa sobre a narrativa: narrar, ou descrever, isto é, criar nexos causais, disciplinando e ordenando o particular, é falsificar a experiência. Não existem relatos históricos verdadeiros porque não existe um ponto de vista exterior, fora do fluxo dos acontecimentos (só Deus está fora da experiência, do tempo, da causação, do contingente), e nada na história se assemelha a um “mito” no sentido aristotélico. Nesta perspectiva, o uso paradoxal da linguagem absoluta, no contexto da ficção e não da história, para afirmar apenas princípios negativos resulta da convicção na incompreensibilidade das ‘vidas secretas’ das nações e dos homens, e provavelmente do “feixe de percepções” humeano: “Como um feixe de acidentes, os seres, como a história, não se adequam a regras gerais e jamais poderão ser cabalmente compreendidos.” (Morson, op. cit., p. 213)

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fraquezas e regras de conduta externas e internas, mas para desenvolver um estilo

literário, e quando constata a assimetria entre a descrição de certas actividades:

Pensei: Vou descrever o que vejo. Mas como posso escrevê-lo com

palavras? Terei de sentar-me a uma mesa manchada de tinta, arranjar algum papel pardacento e tinta, sujar os dedos e desenhar letras no papel. As letras formarão palavras e as palavras – frases; mas podemos nós, efectivamente, comunicar sentimentos? Será possível algum dia transmitir a outra pessoa as nossas próprias visões quando contemplamos a natureza? A descrição não é suficiente. Por que motivo é que a poesia está tão estreitamente aliada à prosa, a felicidade à infelicidade? Como é que se deve viver? Dever-se-ia fundir a poesia na prosa, ou apreciar aquela e aceitar viver à mercê da outra?152

Antes de identificar os eventuais pontos em comum entre as ideias que

Tolstoi foi explorando a partir do momento em que descobre que, para os seus

propósitos, “a descrição não é suficiente” e as posições críticas aqui representadas

por Forster, por um lado, e Percy Lubbock, por outro, com as quais se iniciou esta

discussão, importa referir dois problemas que se levantam deste confronto entre

duas concepções distintas do romance.

O primeiro problema surge não tanto da conclusão de Forster acerca da

superioridade da verdade do romance sobre a verdade do relato histórico quando

se trata da vida mental das pessoas, como da premissa subjacente ao contraste que

o autor apresenta entre o método de representação do romancista e o método de

representação do historiador.

O argumento de Forster sugere, como já aludido, que se o romancista

representa os caracteres directamente, a partir da “descrição psicológica”, o

historiador representa os caracteres indirectamente, e a tragédia imita agentes

(sendo que na poesia trágica a infelicidade ou felicidade não são uma qualidade,

mas a finalidade da vida153), a felicidade ou infelicidade são, pelo contrário,

152 Entrada 3 Julho 1851, Tolstoy's Diaries, vol. I, p. 33, meus itálicos. 153 Cf. Aristóteles, Poética, 1450a16.

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estados sem causas exteriores. Não se revelam portanto na acção, mas na descrição

dos conteúdos privados, dos quais não há qualquer evidência a não ser quando

saímos do domínio da acção e entramos no domínio da ficção, ou melhor, do

romance.

Esta concepção do método do romancista, compatível com a ideia acerca

da natureza da arte defendida por Iris Murdoch, surge, com efeito, corroborada nas

primeiras experiências artísticas de Tolstoi, onde as preocupações com a

composição literária parecem incidir fundamentalmente na imitação das paixões

humanas, ou daquilo que Forster descreve, à semelhança de Iris Murdoch, como

“a vida secreta das pessoas”.

Em 1850, sob a influência da Viagem Sentimental de Sterne, do qual

traduzira uma grande parte para russo, Tolstoi regista a ideia para escrever um

primeiro romance, Da Janela (Iz okna):

Sentado certo dia à janela, reflectia e absorvia tudo o que se passava na

rua. Ali vai um polícia. Quem é ele e o que é a sua vida? E aquela carruagem

que acabou de passar, quem transporta? – e onde é vai e em que é que está a pensar? E quem vive nesta casa? Como são as suas vidas interiores?... Como seria interessante descrever tudo isto! Que livro interessante poderia ser escrito a partir disso?154

Tal como o projecto juvenil de escrever um romance sobre a vida dos

ciganos seria abandonado, a primeira incursão de Tolstoi na escrita ficcional não

viria a ser, contudo, este romance sobre a vida interior das pessoas que observa e

imagina da sua janela (embora se possa detectar traços desta ideia, ou método, em

Adolescência). Sem desvalorizar a importância dos diários que, como realça

Eikhenbaum, são o laboratório onde Tolstoi testa não apenas ideias mas estilos

literários, a sua primeira incursão na escrita seria Uma História de Ontem, datada 154 Paul Birukov (ed. e trad.) e Lev Tolstoi (rev.), Leo Tolstoy, His Life and Work. vol. I, p. 115.

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de 1851. Neste fragmento póstumo, o narrador discorre sobre as possibilidades e

as vantagens de um método de composição que lhe permita relatar todos os

processos da sua consciência, sem deixar de parte os ocorridos durante um sonho,

ao longo de vinte e quatro horas:

Estou a escrever uma história sobre o dia de ontem, não porque o dia de

ontem tenha sido notável sob qualquer aspecto, pois será melhor descrito como um dia em nada notável sob aspecto algum, mas porque há muito desejo registar o lado íntimo da vida ao longo de um dia inteiro. Sabe Deus quantas diversas e interessantes impressões, juntamente com os pensamentos por estas despertados, ocorrem num único dia155.

Este método de composição, bastante familiar para os escritores

modernistas, não obstante a recusa de A. N. Wilson em o associar aos modernistas

pelos mesmos motivos invocados por Eikhenbaum para o dissociar da história da

literatura russa156, seria alvo de críticas pelos contemporâneos de Tolstoi. Tais

críticas centravam-se no que era visto como o elemento artificial do estilo do autor

de Infância: um excesso de análise que, “ao ampliar com total veracidade as

minudências do mundo do espírito ao microscópio, apresenta-as sob uma

perspectiva falsa, com uma magnitude desproporcionada”157.

Seja este método uma “descrição microscópica”, que esvazia de conteúdo

a mente humana, seja uma “nova estética psicológica que não exige uma particular

consistência interna ou a circularidade própria da obra de arte” e visa “oferecer 155 “A History of Yesterday” [“Istoriia vtcherachnego dnia”], Tolstoy’s Short Fiction, Michael R.

Katz (ed. e rev.), New York, London: W. W. Norton & Company, 1991, p. 279. 156 A influência de Sterne e de Toepffer nas primeiras “ideias literárias” de Tolstoi é corroborada

pelo próprio: “Na altura em que escrevia isto (Infância), estava longe de usar formas de expressão próprias e encontrava-me sob a influência de dois escritores que tiveram um enorme efeito sobre mim: Sterne (a sua Viagem Sentimental) e Toepffer (Bibliothèque de mon oncle)”. A. N. Wilson, no seu estudo biográfico sobre Tolstoi, segue aparentemente a tese de Eikhenbaum de que Tolstoi deve mais aos escritores do século XVIII do que à geração dos românticos russos que o precedem: “Assim, não nos surpreende que Tolstoi, como estabelecido acima, se incline para a literatura do século XVIII e desdenhe dos românticos. [...] De qualquer forma, todas as suas leituras estão relacionadas com as tradições do século anterior, a tradição dos seus avós, e não dos seus pais. Com efeito, ele está pouco preocupado com a literatura russa” (Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 29).

157 K. S. Aksakov, citado em Eikhenbaum, op. cit., p. 63.

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uma impressão de verdade em vez de fantasia”158, ele é referido frequentemente

por Tolstoi. Em muitas entradas dos diários do período inicial da sua carreira

literária, a reflexão incide sobre o solipsismo, a consciência da consciência, as

limitações da análise descritiva na transmissão dos sentimentos, a qual, afirma,

deverá a partir de agora predominar sobre o interesse na intriga: “Li A Filha do

Capitão e, hèlas, tenho de reconhecer que a prosa de Puchkin parece agora

antiquada – não pela sua linguagem, mas pela forma de exposição. Agora,

justamente, na nova escola da literatura, o interesse nos pormenores do sentimento

está a ganhar terreno sobre o interesse nos próprios acontecimentos.”159

O método de composição em causa é também um dos que mais será

explorado, não apenas nos primeiros contos sobre as suas experiências na guerra

do Cáucaso e da Crimeia, como também nos grandes romances, onde as

personagens se mostram tanto através da acção como da análise do próprio

processo psicológico (monólogo interior) – da descrição das “manifestações

evanescentes desta vida interior que alternam com uma extraordinária rapidez e

variedade inesgotável”160. Isto é, daquilo que muitos críticos viam então, e muitos

ainda vêem, como transgressões das prescrições da poética aristotélica, um

acumular de personagens e incidentes desnecessários, “minúcias que constituem a

‘observação pela observação’, a contingência casual por si mesma”

[happenstance’s sake]”161, numa construção episódica que visa mostrar a

ininteligibilidade das causas dos acontecimentos162.

158 Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 46. 159 Entrada de 31 Outubro 1853, Tolstoy’s Diaries, vol. I, p. 75. 160 N. G. Tchernyshevski, “Tolstoy’s Military Tales”, Tolstoy’s Short Fiction, p. 369. 161 G. S. Morson, op. cit., p. 149. 162 É o que Morson chama de acontecimentos “escondidos diante dos olhos” [hidden in plain

view], em larga medida incausados e, tal como o extraordinário episódio da caça ao lobo de Nikolai Rostov – o qual Tolstoi qualifica d o “momento mais feliz da sua vida” – apenas inteligíveis para Deus e para o autor (op. cit., p. 157). Tais acontecimentos são ainda, na

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Em suma, o ponto onde a filosofia da história e a filosofia da psicologia

de Tolstoi mostram a sua perfeita coincidência (e, poder-se-ia acrescentar, a sua

afinidade com o projecto das Investigações Filosóficas) é na insistência de que não

há significados ocultos na realidade, nem “chaves hermenêuticas” que a decifrem.

O acidental “não pode revelar o conflito central, oculto do ser, porque a ideia

tolstoiana de ser exclui a possibilidade de um centro”. Tal como não pode haver

nenhuma chave para a história, assim também não poder haver nenhuma chave

para o ser.163

No entanto, se o principal aspecto que, segundo Forster, assinala a ténue

fronteira entre ficção e realidade, ou entre as constituições do Homo Fictus e do

Homo Sapiens, parece ser corroborado pelas primeiras experiências artísticas de

Tolstoi e por contos tardios póstumos, como o fragmento História de Um Louco

(1883) – no qual o narrador descreve com minúcia, na primeira pessoa, o despertar

da sua “mania divina”, isto é, o despertar da sua consciência religiosa –, o mesmo

princípio não parece orientar, todavia, a maior parte da produção literária do

período subsequente a Confissão. Tão pouco parece esta “transferência do foco de

atenção da personalidade para os próprios estados psíquicos, para a sua

composição”164, coadunar-se com o novo método que Tolstoi ambiciona inventar

enquanto declara a sua primeira renúncia estratégica à literatura para se dedicar à

agricultura e à instrução primária. Na mesma altura em que começa a modelar a

sua biografia de acordo com um obscuro romance de Berthold Auerbach – ao qual

se apresenta com a insólita afirmação “Eu sou Eugen Baumann”165 – e,

leitura de Morson de Guerra e Paz, a marca do que é apodado da poética “prosaica”, um modo de pensar (e representar) que privilegia o quotidiano, o familiar, o “prosaico”.

163 Morson, idem, p. 201. 164 Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 60. 165 Eugen Baumann é o nome do protagonista de Neues Leben, o romance de Auerbach sobre um

príncipe revolucionário, Eugen Falkenberg, que se torna, através de uma troca de identidade,

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embrenhado nas experiências pedagógicas da sua escola, confessa que, “entre

muitos outros sonhos inatingíveis, penso constantemente numa série de Obras,

nem ficções, nem descrições, baseadas em provérbios”166.

A esta ambição de descobrir um modo de escrever obras, nem puramente

ficcionais, nem puramente filosóficas (ou históricas), fazendo a transição de um

estilo literário, ou elevado, para um estilo mais heteróclito, não serão alheias

algumas conclusões que Tolstoi retira do seu trabalho na sala de aulas. Entre elas,

conta-se a importante descoberta de que todo o ensino deve começar com a Bíblia.

Nenhum outro livro corresponde melhor ao entendimento das crianças ou vai ao

encontro das suas necessidades do que as narrativas bíblicas, com a sua poesia e

linguagem condensada, com as suas personagens e lendas: “O melhor livro da

infância do homem é o melhor livro da nossa infância.” Após três anos a

experimentar formas de inculcar nos seus alunos o amor pelo estudo, Tolstoi relata

num professor primário nos EUA. O biógrafo do romancista alemão, A. Bettelheim, descreve do seguinte modo a insólita visita de Tolstoi a Auerbach, em 1861, aquando da sua viagem de pesquisa aos estabelecimentos de ensino europeus: “O estranho visitante revelou-se vir a ser um príncipe russo com um nome naquela altura praticamente desconhecido na Europa – Lev Tolstoi. Lev Tolstoi chamava-se a si mesmo um duplo de Eugen Baumann porque, inspirado pelo romance didáctico de Auerbach, tinha criado uma escola pública na sua propriedade e, como Eugen Baumann, ou melhor, como o Príncipe Eugen Falkenberg, trabalhava agora com as crianças camponesas em Iasnaia Poliana.” (Bettelheim, citado em Eikhenbaum, Tolstoy in the Sixties, p. 24). Como Eikhenbaum refere, Tolstoi interpretou as descrições novelescas das lições de Baumann como instruções práticas e, assim, o “romance tornou-se num guia do professor.” (Eikhenbaum, idem, p. 26). Será este testemunho a prova de que Tolstoi era imune à lógica de que a premissa “isto é só uma história” assegura a priori a não-promiscuidade entre mundos ficcionais e mundos reais e, por conseguinte, à impossibilidade lógica de respostas reais a descrições ficcionais? Por outro lado, verifica-se que se é possível que o romance edificante de Auerbach tenha influído na carreira de instrutor primário de Tolstoi, também é possível que esta experiência (e os relatos sobre ela, directos e indirectos) tenham influído no “episódio inteiramente rural” da carreira de Wittgenstein. Depois de a leitura d’Os Meus Evangelhos, como diz em carta, o ter praticamente salvado, Wittgenstein regressa da guerra para trocar a carreira promissora em Cambridge pela de instrutor primário em escolas rurais no interior da Áustria (1920-26). O episódio poderá não ter acabado da melhor forma (Wittgenstein não era Tolstoi nem tinha a sua vocação), mas interessa ainda sublinhar que os métodos dos dois pedagogos, por muito distintos que fossem, como o eram os seus contextos, tinham em comum um importante aspecto: o recurso pródigo à leitura da Bíblia como forma de instrução moral. (Para uma descrição detalhada deste período na vida de Wittgenstein cf. Ray Monk, “An Entirely Rural Affair”, Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, pp. 192-233)

166 Citado em Boris Eikhenbaum, Tolstoy: A Collection of Critical Essays, Ralph E. Matlaw (ed. e trad.), Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall, Inc., 1967, p. 54.

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que apenas quando começou a ensinar a história sagrada através da leitura das

narrativas do Antigo Testamento conseguiu, como é mister do educador, “levantar

a ponta do véu” que até então lhes ocultava os prazeres do conhecimento que o

estudo encerra. Dissipando a incredulidade e resistência dos seus alunos,

conquistou a sua confiança e conseguiu “apoderar-se completamente deles”. À

leitura do Antigo Testamento seguiu-se a do Novo Testamento, o que uniu mais os

alunos ao estudo e ao seu instrutor, que pôde então prosseguir para a exposição

das matérias anteriormente rejeitadas. Depois da Bíblia, os alunos (crianças ou

adultos) “entendiam tudo, acreditavam em tudo, desejavam ir mais longe, sempre

mais longe, abrindo-se perante eles as perspectivas do pensamento, da ciência e da

poesia”167. Esta descoberta resultou na convicção de que “sem a Bíblia na nossa

sociedade, como sem Homero na sociedade grega, é impossível o

desenvolvimento da criança e do homem. A Bíblia é o único livro de leitura

elementar e infantil. A Bíblia, tanto pela forma como pelo conteúdo, deve servir de

modelo a todos os manuais infantis e livros de leitura”168.

A ambição de Tolstoi, acima mencionada, de escrever um Livro, nem

ficção nem história, não desaparece com a descoberta do papel fulcral das

narrativas bíblicas para o ensino, desde que apresentadas aos alunos na sua forma

primitiva, i.e. sem ser na versão purgada do sublime pelas mãos (e pela

inteligência) dos pedagogos e redactores dos manuais escolares em uso. Pouco

depois, inicia o longo processo de escrita de Guerra e Paz, findo o qual regressa

novamente à pedagogia, para se dedicar ao projecto através do qual pretende

revolucionar o ensino público na Rússia: a escrita do livro que até Confissão

consideraria a sua obra mais importante, o compêndio escolar Azbuca (1872).

167 Tolstoi, La Escuela de Yásnaia Poliana, pp. 96-97. 168 Idem, p. 98.

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Embora não tenha obtido o sucesso esperado (foi atacado pelos representantes das

várias correntes pedagógicas), e não tenha sido, como pretendido, aprovado para

uso nas escolas públicas, Tolstoi cita uma das histórias nele incluídas, na secção

de leitura (“O Prisioneiro no Cáucaso”) como “um exemplo dos métodos e da

linguagem em que agora estou a escrever, e continuarei a escrever, para

adultos”169. Pouco após se congratular, numa carta a A. A. Fet, por “Deus lhe ter

infligido esta loucura”, a de não desistir até conseguir ler Esopo, Xenofonte ou

Homero no grego original, “na língua humana [que] produziu o que é

verdadeiramente e simplesmente belo”170, Tolstoi lamentava-se a Strakhov das

limitações que a língua literária russa impunha aos escritores: “A nossa língua

literária não tem espinha dorsal; é tão mimada, podemos dizer não importa que

disparate – tudo parecerá literatura”171. Todavia, na sala de aulas, na imersão na

linguagem do quotidiano – “o melhor regulador poético” –, e no estudo das

tradições orais russas europeias (orientais, judaicas ou árabes) e das narrativas

bíblicas, Tolstoi dizia também ter encontrado um novo método para “trazer [a

linguagem literária] a um nível mais baixo”. Este nível “mais baixo” não é,

sublinha ao seu interlocutor, o nível das ficções da “fraternidade eslava” e dos seus

pretensiosos “princípios hínicos”. É um espaço onde “seremos livres” porque nada

ali é supérfluo172. Elegendo a linguagem viva e expressiva das pessoas como o seu

“regulador poético”, Tolstoi prepara-se para produzir um primeiro romance do

qual “provavelmente mais ninguém irá gostar [para além do seu autor] porque é

demasiado simples”173 (i.e. Anna Karenina). Prepara-se também para o trabalho

que viria a afirmar ser a “obra da sua vida”: a tradução e reescrita dos Evangelhos. 169 Cf. Carta a Strakhov, 1872, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 243. 170 Carta a Fet, idem, p. 231. 171 Carta a Strakhov, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 244. 172 Loc. cit. 173 Idem, p. 268.

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A sua busca pelo nível chã da linguagem ganha uma nova direcção, que poderá ser

expressa na imagem através da qual Wittgenstein resume o seu projecto de ‘terapia

conceptual’: “Nós reconduzimos as palavras do seu emprego metafísico ao seu

emprego quotidiano” (IF, I, §116).

**

Antes de esclarecer algumas das questões que nascem da problematização

da noção de “psicologia literária”, pelo menos quando aplicada às obras de Tolstoi

escritas no seguimento das experiências pedagógicas e literárias da década de 70,

gostaria de tentar uma aproximação ao que foi atrás designado como o segundo

problema que surge do confronto entre as concepções do romance de Forster e de

Lubbock. Com efeito, a crítica deste último, à luz da “arte de ficção” jamesiana, à

ausência de unidade na arte literária de Tolstoi parece aproximar-se dos princípios

defendidos pelo Tolstoi tardio, nomeadamente em Shakespeare e o Teatro.

Os termos com que Tolstoi pretende demonstrar que Rei Lear não é o

exemplo do que uma obra dramática deverá ser apresentam uma curiosa simetria

com os argumentos invocadas por críticos como Percy Lubbock para demonstrar

que Guerra e Paz não pode ser considerado um romance, mas antes um projecto

não-artístico. Da constatação desta simetria nasce a possibilidade de, partindo do

desacordo entre as posições críticas sobre o valor de obras como Guerra e Paz,

mas também de Ana Karenina, avançadas no capítulo precedente, a noção de

unidade literária invocada por Lubbock (mas também pelos primeiros leitores de

Guerra e Paz, perplexos quanto ao objectivo e ao género a que poderia pertencer

aquela obra) poder coadunar-se melhor com aquilo que foi defendido e adoptado

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por Tolstoi, pelo menos numa fase tardia da carreira, em oposição à ideia – anti-

dramática – de E. M. Forster, segundo a qual a felicidade ou infelicidade são

conteúdos mentais privados, acessíveis unicamente quando entramos no domínio

da ficção, isto é, do “romance psicológico”. É esta possibilidade que iremos

explorar de seguida.

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CAPÍTULO 3

PORQUE DEVEREMOS SUSPEITAR DOS ENCOMIASTAS DE SHAKESPEARE?

Who is that can tell who I am? Rei Lear

[...] it’s a tale

told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing.

Macbeth

E o Bobo continua a pronunciar mais palavras sem-sentido. Shakespeare e o Teatro

Everywhere we see that men do not go mad by dreaming. Critics are much madder than

poets. Homer is complete and calm enough; it is his critics who tear him into extravagant tatters. Shakespeare is quite himself; it is only some of his critics who have discovered that he was

somebody else. And though St. John the Evangelist saw many strange monsters in his vision, he saw no creature so wild as one of his own commentators. The general fact is simple. Poetry is sane

because it floats easily in an infinite sea; reason seeks to cross the infinite sea, and so make it finite.

G. K. Chesterton Em 1906 é publicado Shakespeare e o Teatro (ST), um dos derradeiros

escritos de Tolstoi, onde o autor articula os argumentos que o tinham levado

anteriormente, em OQA?, a recusar a entrada de Shakespeare para o radicalmente

novo domínio da arte aí estabelecido. Se naquela obra as referências a

Shakespeare se resumem a menções a Hamlet, ou às incarnações do protagonista

epónimo por actores como E. Rossi, e ao conteúdo imoral de Romeu e Julieta, os

esforços de Tolstoi em ST para justificar a tese de que Shakespeare não é nem um

artista nem um filósofo excelente, ou sequer mediano, são notórios, tanto ou mais

quanto contrastam com o seu procedimento em OQA?. Aqui, Shakespeare é, como

aliás praticamente todo o cânone ocidental, excluído sem que se procure justificar

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por que motivo obras como Hamlet não obtêm o efeito que qualquer obra de arte,

no sentido mais elevado da palavra, deverá suscitar: a união entre artista (ou obra)

e público (ou leitor) numa mesma percepção (religiosa) da vida.

Inicialmente concebido como introdução a uma obra sobre Shakespeare,

da autoria do amigo e discípulo tolstoiano Ernest Crosby174, a diatribe contra o

dramaturgo acabaria por ganhar as proporções de um longo ensaio autónomo, ou

não tivesse o planeado prefácio evoluído para um projecto tão ambicioso e

insólito, mesmo para o leitor familiarizado com a iconoclastia constitutiva das

obras de Tolstoi, como o de justificar por que razão é que “Shakespeare não pode

ser sequer considerado um escritor mediano” (ST, 376).

O ataque é inusitado por variados motivos: pelo formidável adversário

que se propõe combater, pelos argumentos de natureza ‘formal’ que ocupam a

maior parte deste ensaio, pese embora a intenção inicial de condenar a “concepção

moral estreita” de Shakespeare175; pela minúcia da análise; e, não menos

significativo, por ter sido engendrado pelo autor de OQA?, cuja descrição da arte,

para além de excluir o papel do crítico através do conceito de infecção, pretende

impugnar a ideia de que a arte seja interpretável, pelo menos no sentido habitual

da palavra:

“Os críticos explicam.” Mas o que é que explicam? Um artista, se é um verdadeiro artista, transmitiu aos outros com a sua

obra o sentimento [tchustvo] que experimentou: o que há aqui para explicar? [...] As obras artísticas não podem ser interpretadas. Se tivesse sido possível

ao artista explicar por palavras aquilo que pretendia dizer, tê-lo-ia dito por palavras. Mas disse-o com a sua arte, porque não havia outro modo de transmitir o sentimento que experimentara. A interpretação de uma obra de arte

174 Uma análise tão pouco interessante quanto o seu tópico: o défice de consciência democrática

de Shakespeare. 175 Cf. Andrew Donskov, Essays on L. N. Tolstoj’s Dramatic Art, Otto Harrassowitz, Wiesbaden,

1988, p. 26. Se esta era a intenção inicial, verifica-se que ST acaba por ser, quase na sua totalidade, uma discussão sobre os aspectos “estéticos” que, por si só, deverão, do ponto de vista do autor, demonstrar a tese de que a fama literária de Shakespeare é imerecida.

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através das palavras apenas prova que o intérprete é incapaz de ser infectado pela arte. (OQA?, 94-95, itálicos meus)

Tolstoi vai enunciando com o radicalismo que lhe é característico as

muitas teses negativas de OQA?, incluindo a acima citada de que as obras de arte

“não podem ser interpretadas”. No entanto, a descrição de arte, no sentido lato do

termo, como uma actividade expressiva que inclui actividades e objectos tão

díspares como poemas, sermões, serviços religiosos, canções de embalar, anedotas

ou marchas militares, não implica, na realidade, a conclusão de que “toda a

interpretação [seja] supérflua” (OQA?, 94, itálicos meus). Pelo menos, não

significa que esta posição aqui extremada não tenha um valor propedêutico: o de

realçar que a experiência da arte não é conhecimento em segunda mão, mas sim na

primeira pessoa, resultado de um processo intersubjectivo (ou, na terminologia de

Tolstoi, de “contágio” emotivo) que nem a acção de um crítico mais sofisticado

poderá suprir.

Não irei alongar-me neste momento sobre o radicalismo da crítica de

Tolstoi à Estética tradicional, mesmo quando comparada com a de

Tchernychevski176 e de outros críticos radicais. Importa, contudo, realçar dois

aspectos com ela relacionados. Em primeiro lugar, Tolstoi não se limita a afirmar,

numa veia tipicamente socrática, a insuficiência das definições de certos conceitos,

e.g. “beleza” ou “arte”, propostas pelos filósofos que o precederam; antes

questiona a validade do próprio discurso sobre a arte, filosófico e crítico,

176 Na sua polémica tese de mestrado, Estetitcheskie otnocheniia iskusstva k deistvitelnosti [A

relação estética entre arte e realidade], publicada em 1855, Tchernychevski pretende fundar uma nova estética materialista, inspirada na filosofia de Feurbach e assente no princípio de que a beleza é uma qualidade da vida, e não da arte. A essência do ensaio de Tchernychevski é, nas suas palavras, defender “a realidade contra a fantasia, a tentativa de provar que as obras de arte são inferiores à realidade”. N. G. Tchernychevski, “Aesthetic Relation of Art to Reality”, Selected Philosophical Essays, Moscow: Foreign Languages Publishing House, 1953.

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incluindo, aliás, o seu. Se o seu procedimento ao basicamente ignorar dois séculos

de discussão sobre estética, resumindo, por exemplo, a Terceira Crítica de Kant

num parágrafo, poderá ser infeliz, esta abordagem foi posteriormente adoptada por

vários filósofos influenciados em larga medida pelo método filosófico de

Wittgenstein177. Em segundo lugar, interessa sublinhar sobretudo a ideia de que a

crítica a Shakespeare em ST surge como uma inesperada concessão por parte de

um autor tão desfavorável a uma actividade – a da crítica de arte – sobre a qual

afirmara, poucos anos antes, ser tão inútil quanto a de apenas patentear a

incapacidade do pseudo-intérprete em entender o que é uma obra de arte; por

outras palavras, a sua incapacidade em participar na actividade artística.

A atitude pouco complacente de Tolstoi com a crítica literária pode, por

outro lado, ser perspectivada, como insinua Maxim Gorki, nas suas reminiscências

sobre as conversas que manteve com o mestre, quando este convalescia na

Crimeia, nos seguintes termos: “Os temas sobre os quais [Tolstoi] mais conversa

são Deus, o camponês e a mulher. Sobre a literatura, fala raramente e com

relutância, como se a literatura lhe fosse estranha”178. Com efeito, à excepção de

OQA? (e mesmo aqui é preciso ler-se esta obra como um livro de estética, que não

é certo que seja), raras foram as ocasiões em que Tolstoi se alongou sobre o tópico

que, como talvez se esperasse do “grande escritor da Rússia”, poderia ocupar um

lugar de destaque na sua carreira paralela, e tão prolífera, de escritor de ensaios.

Mesmo antes de se ter tornado no “profeta do evangelho da simplicidade” e se

177 Embora Tolstoi não desenvolva obviamente a sua argumentação em termos de condições

necessárias e suficientes, podemos identificar, como afirmámos no capítulo 1, na sua abordagem à arte uma linha congruente com a de autores anti-essencialistas como Morris Weitz, mas também como Artur Danto ou George Dickie. Por outro lado, poderíamos ainda sugerir que, quando perspectivado na sua vertente mais radical, i.e. como a afirmação da impossibilidade da filosofia responder às questões mais importantes da vida, incluindo as estéticas, OQA? antecipa-se ao Tractatus e a “Conferência sobre Ética”.

178 M. Gorki, Tolstoy and Other Reminiscences: Key Writings by and about Maxim Gorky, Donald Fanger (trad. e ed.), New Haven and London: Yale UP, 2008, p. 35 (itálicos meus).

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dedicar à “negação de todas as afirmações” ou à paixão aniquiladora de conhecer a

verdade, indo “para além dos limites estabelecidos pela sabedoria da sua

geração”179, Tolstoi já deixava transparecer a sua aversão por “livros sobre livros”

e defendia que “de todas as coisas mais entediantes do mundo, a crítica é a mais

entediante”180. Não é, por isso, despiciendo que uma dessas raras ocasiões ocorra

no final da sua longa carreira, quando, a pretexto do convite de Crosby, resolve

reler toda a obra de Shakespeare, no original e em traduções, e consultar as

principais fontes e crítica, e escreve um dos mais demolidores ensaios sobre o

dramaturgo inglês e, consequentemente, sobre o teatro moderno. A este género,

Tolstoi, pesem embora as várias peças que deixou escritas e o sucesso das

179 Depois de criticar severamente as doutrinas da “passividade” do “Santo Lev”, Gorki tece um

dos comentários mais perspicazes das suas reminiscências, que vale a pena citar: “Sim, ele é grande! Estou absolutamente convencido de que no meio de tudo sobre o qual ele fala, mantém o silêncio sobre outro tanto, mesmo no seu diário – mantém o silêncio e provavelmente nunca irá abordá-lo com ninguém. Este ‘algo’ transparecia apenas ocasionalmente em certos momentos [...] Vejo-o como alguma coisa próxima de ‘a negação de todas as afirmações’ – um niilismo fundo que brotou do solo de um desespero e solidão infindáveis e irredutíveis, de uma espécie que provavelmente ninguém antes de si experimentou com tamanha lucidez aterradora [...] Ele afastou-se demasiado, em direcção a algum ermo onde, concentrando ao máximo todos os poderes do seu espírito, fita na solidão ‘a coisa mais importante’ – a morte”. Gorki, op. cit., pp. 52-54. O ponto de Gorki sobre o niilismo de Tolstoi não é novo. Além de ter sido feito por muitos contemporâneos de Tolstoi, incluindo o próprio, está na mesma linha do de Lev Chestov, o qual no seu polémico estudo comparativo sobre Tolstoi e Nietzsche, defende que: “Lá, onde Nietzsche não crê, Tolstoi tão pouco crê. Mas Nietzsche não se esconde (ele esconde outra coisa), enquanto Tolstoi julga que é possível não falar aos seus discípulos do vazio, deste vazio do coração sobre o qual ele erigiu o edifício tão brilhante da sua prédica.” (Lev Chestov, L’Idée de Bien Chez Tolstoï et Nietzsche, Philosophie et Prédication [Dobro v utchenii gr. Tolstogo i Fr. Nitsche. Filosofiia i propoved’, 1900], T. Beresovski-Chestov e G. Bataille, trad., Paris: Éditions du Siècle, 1925, p. 165) Por seu turno, Isaiah Berlin, referindo-se à reputação de niilista que as teses negativas de Tolstoi cedo lhe granjearam, associa-a à sua “visão directa”, ao talento subversivo em fazer as perguntas mais simples e cardinais para as quais não tinha resposta, pelo menos até à sua “conversão”, e sublinha um aspecto essencial, muitas vezes descurado pelos leitores cépticos das narrativas de Tolstoi sobre a sua busca pela fé: “Todavia, ele não tinha certamente qualquer desejo de destruir por destruir. O que desejava, mais do que qualquer outra coisa no mundo, era conhecer a verdade. O quão aniquiladora esta paixão poderá ser é mostrado por outros que optaram por ir para além dos limites estabelecidos pela sabedoria da sua geração: Machiavelli, Pascal, Rousseau; o autor do Livro de Job.” Isaiah Berlin, “Tolstoy and Enlightenment”, Russian Thinkers, p. 274.

180 Tolstoy’s Letters, vol. I, p. vi.

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encenações de O Poder das Trevas ou Os Frutos da Instrução181, não era

comummente associado, pelo menos no Ocidente.

O inesperado empenho pode em parte explicar-se pelo facto de o seu

autor estar consciente de que, por mais informada que a sua crítica pudesse ser (e

era possivelmente mais do que a maioria dos “bardólatras” russos), poderia não ser

suficiente para demonstrar ao “mundo culto” que a severidade dos seus juízos se

justificava e recomendava. E não seria: mesmo do alto da sua autoridade, o

manifesto de Tolstoi não chegaria a beliscar a fama de Shakespeare na Rússia182,

muito menos no resto da Europa. Nem mesmo George Bernard Shaw,

previsivelmente entusiasmado com as notícias avançadas pelo divulgador do

tolstoismo em Inglaterra, Vladimir Tchertkov, de que Tolstoi estaria a preparar um

ataque demolidor ao seu conterrâneo, viria a aceitar os termos radicais em que a

crítica, uma vez traduzida e publicada em Inglaterra, era feita: se Shakespeare não

era o grande reformador social ou o filósofo moral que certa tradição crítica

postulava, era indubitavelmente o grande poeta da língua inglesa183.

Poderemos duvidar, como tem sido prática corrente desde, pelo menos, a

181 É de referir que a primeira produção moscovita desta peça data de 1891, pela mão de

Stanislavski. 182 N. Ge (Gays), o célebre pintor e discípulo tolstoiano, seria talvez a única excepção e viria a

renegar, sob a influência de Tolstoi, a sua admiração por Shakespeare. Cf. George Gibian, Tolstoj and Shakespeare, ‘s-Gravenhage: Mouton & Co., 1957, p. 25.

183 Depois de ler o ensaio de Tolstoi traduzido por Tchertkov, Bernard Shaw apressa-se a demarcar-se da posição de Tolstoi em relação a Shakespeare. Numa carta a Tchertkov, Shaw esclarece que se esforçara na sua actividade de crítico “por abrir os olhos dos leitores ingleses para o vazio da filosofia de Shakespeare, para a superficialidade e falta de originalidade das suas posições morais, para a sua debilidade e falta de clareza enquanto pensador, para o seu elitismo [snobbery], para os seus preconceitos vulgares, para a sua ignorância, para todos os aspectos decorrentes da sua imerecida reputação de grande filósofo”. Contudo, Shaw acrescenta que não lhe passaria pela cabeça, nem os seus leitores lhe teriam prestado qualquer atenção se “tivesse negado o seu humor, a sua alegria, a capacidade de criar personagens mais reais do que as pessoas […] mas sobretudo o seu extraordinário poder de músico das palavras”. Shaw resume a sua dissidência com os termos da crítica de Tolstoi nas seguintes palavras: “A vida não é lógica e não cabe a Tolstoi, que escreve as suas produções como poeta, condenar Shakespeare por este não escrever como um jurista”. (Carta a Tchertkov, apud Simmons, op. cit., pp. 690-691)

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célebre resposta de George Orwell ao libelo de Tolstoi184, da boa-fé do autor

quando professa, nos primeiros parágrafos de ST, que a sua crítica feroz não deriva

de “um estado de espírito momentâneo ou de uma atitude frívola em relação ao

seu objecto de estudo, mas é o resultado de uma série de tentativas sinceras de, ao

longo de muitos anos, harmonizar as suas opiniões sobre Shakespeare com as de

todo o mundo cristão cultivado” (ST, 375). E, todavia, o percurso de Tolstoi, desde

os primórdios, não primou pela busca de consenso nem mesmo por um

alinhamento inequívoco com qualquer corrente crítico-literária (incluindo a dos

philosophes franceses), política, filosófica ou teológica. Pelo contrário, gostava de

questionar os pontos de vista aceites, fazer perguntas insólitas e discordar dos

críticos, particularmente quando as suas construções teóricas eram “indisputáveis”.

E, quando o fazia, era por regra, “in keeping with his character”, violentamente185.

Em 1857, muito antes portanto de ser consagrado o “Sócrates russo”, um dos

editores da revista O Contemporâneo (Sovremennik), I. I. Panaiev, sugeria que o

escandaloso epíteto com que já nessa altura Tolstoi teimava em caracterizar

Shakespeare “um vulgar escrevinhador” poderia ser explicado como um sintoma

da habitual rejeição das opiniões gerais do autor de Juventude e não como um

juízo para ser levado à letra186.

Não obstante as flutuações com que se irá pronunciar sobre Shakespeare

em diferentes momentos da sua carreira, incluindo a referência de Sevastopol em

Maio (1855), onde Shakespeare é citado a par de Homero como representante dos

valores universais da literatura, o cepticismo de Tolstoi relativamente à recepção

184 George Orwell, “Lear, Tolstoy and The Fool” (1947), King Lear, Critical Essays, Kenneth

Muir (ed.), New York & London: Garland Publishing, 1984, pp. 119-136. 185 George Gibian, op. cit. p. 47. 186 George Gibian, op. cit., p. 16.

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do dramaturgo – que era na Rússia, pelo menos desde Karamzin187, e em contraste

com a tradição crítica francesa, tão ou mais entusiástica do que na Alemanha de

Goethe ou de Schlegel –, não parece ter-se modificado substancialmente até 1903,

quando resolve consolidar o seu veredicto e começa a escrever ST.

As episódicas referências laudatórias a Shakespeare, seja no contexto

diarístico ou no contexto ficcional, como as de Sevastopol, parecem resultar

apenas de um uso convencional do nome, dado que as evidências, como George

Gibian aponta num dos poucos estudos existentes sobre ST, sugerem que, à época

da publicação da segunda ‘crónica’ de Sevastopol, Tolstoi não poderia ter mais do

que um conhecimento vago e em segunda mão da obra do dramaturgo inglês188.

Seja este o caso, como parece, ou não, a realidade é que, mesmo depois de ter

aprofundado o conhecimento da obra de Shakespeare, escrita e encenada189, Tolstoi

não apenas se manteria impermeável às sucessivas tentativas por parte dos

escritores e críticos d’O Contemporâneo de o converterem ao “culto de

Shakespeare”, como também aos esforços de fazerem esmorecer o que desde a sua

estreia literária era já considerada a “famosa antipatia” de Tolstoi pelo Bardo

inglês190. Entre os indefectíveis paladinos de Shakespeare, destaca-se a figura

tutelar do grupo reunido em redor d’O Contemporâneo, Turguenev, que em 1860

publica o seu célebre e influente estudo tipológico, Hamlet e Dom Quixote. Com o

187 Cf. R. A. Stacy, Russian Literary Critisicm, A Short History, New York: Syracuse UP, 1974,

p. 26. 188 Gibian, op. cit., p. 14. 189 Nos anos seguintes à publicação de Guerra e Paz, Tolstoi mergulha na leitura intensa de obras

dramáticas e lê Molière, Goethe, Shakespeare e os dramaturgos clássicos russos (cf. Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 223). E regressará à leitura de Shakespeare. Em 1884, Tolstoi escreve: “Esta manhã li Macbeth com toda a atenção – uma peça fársica escrita por um actor astuto com uma boa memória que leu muitos livros inteligentes” (Carta a Sofia, Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 366). Numa outra carta, datada de 1895, Tolstoi regista a sua ida ao teatro, para assistir a encenações de Rei Lear e Hamlet, e esclarece que as dúvidas que poderiam ainda subsistir relativamente à justiça da sua antipatia por Shakespeare se desvaneceram: “Que obra grosseira, imoral, vulgar e disparatada que é Hamlet. A coisa toda é baseada na vingança pagã; o único fito é congregar tantos efeitos quanto for possível” (Carta a Strakhov, idem, p. 533).

190 Gibian, op. cit., p. 15.

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poeta A. A. Fet, Turguenev será citado em ST como um dos representantes mais

sofisticados do “culto shakespeareano”, quando Tolstoi evoca as suas primeiras

tentativas de deixar-se persuadir pela perfeição estética de obras como Hamlet,

Lear ou Macbeth. No contexto de ST, a evocação de Turguenev acaba, contudo,

por exemplificar não a presumível sofisticação intelectual das faculdades críticas

dos mestres literati (embora Tolstoi reconhecesse os méritos do estudo tipológico

de Turguenev191), mas a incapacidade argumentativa do juízo de gosto, fundado

não em razões, mas numa “sugestão epidémica” que opera do mesmo modo que as

verdades da fé dogmática: “[N]as minhas tentativas de obter dos panegíricos de

Shakespeare uma explicação da sua grandeza, confrontei-me precisamente com a

mesma reacção com a qual já me tinha deparado e que é geralmente encontrada

nos defensores de quaisquer dogmas, sempre que estes são aceites não através da

razão, mas através da fé” (ST, 428).

Com efeito, Turguenev, a figura cimeira do círculo literário que acolheu e

publicou os primeiros “artigos” de Tolstoi, seria um dos notáveis que mais se

esforçaria por debelar a “famosa antipatia”, pelo menos até ao desentendimento

que, em 1861, interrompeu a correspondência entre ambos. Apelou sucessivas

vezes à necessidade de Tolstoi se assumir como un vrai homme de lettres e educar

o seu gosto através da leitura da obra do poeta eleito dos escritores e críticos d’O

Contemporâneo, antes de Tchernychevski transformar aquela revista no órgão de 191 Numa entrada do diário de 1905, Tolstoi aprova, num gesto raro, o estudo de Turguenev sobre

Hamlet e Dom Quixote, onde as duas personagens epónimas são analisadas como encarnando duas tendências antagónicas da natureza humana (a egoísta e céptica; a altruísta e crédula). O comentário que Tolstoi acrescenta mostra bem o seu desconforto (ou reprovação) diante de representações (e pessoas) do primeiro tipo, hamletiano, o qual Tolstoi ignora em favor do “subtipo” que Turguenev acrescenta no final do seu estudo (Horatio), como exemplo do carácter abnegado e honesto (se bem que limitado): “Todavia, penso que as personagens principais são – Don Quixote e Horatio, Sancho Panza e a A Querida [a heroína do conto de Anton Tchekhov]. As primeiras são na maioria homens; as últimas na maioria mulheres. Os meus filhos são todos Don Quixotes, mas sem o auto-sacrifício; as minhas filhas são todas Horatios, prontas para o auto-sacrifício”. Tolstoy’s Diaries, vol. II, Entrada de 18 Março, 1905, pp. 535-36.

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divulgação dos críticos radicais.

Os relatos entusiasmados de que as diligências de Turguenev, aliadas à

recente tradução de Rei Lear de Alexander V. Drujinin, teriam vencido por fim a

resistência de Tolstoi, o qual já conseguia admirar Lear e brindava mesmo à saúde

de Shakespeare192, baseiam-se numa troca de correspondência entre Turguenev e

Tolstoi. Esta atesta que a anunciada conversão de Tolstoi ao culto de Shakespeare,

bem como às doutrinas esteticistas defendidas pelos principais críticos d’O

Contemporâneo era, no mínimo, exagerada:

Congratulo-me com o seu conhecimento de Shakespeare ou, para ser mais

exacto, com sua aproximação a ele. Ele é como a Natureza; por vezes, que fisionomia repelente ela nos apresenta (basta recordar algum Outubro lacrimoso e lamacento nas nossas estepes) – mas mesmo então há nela inevitabilidade, verdade, e (prepare-se: vai ficar com os cabelos em pé) – propósito. Familiarize-se também com Hamlet, Julius Caeser, Coriolanus, Henry IV, Macbeth, e Othello. Não permita que incongruências externas o antagonizem; abra caminho até ao centro, até ao coração da obra – e ficará maravilhado diante da harmonia e verdade profunda desta mente grandiosa. Consigo vê-lo agora daqui a sorrir enquanto lê estas linhas; mas pense que talvez T. [urguenev] possa estar certo. Já aconteceram coisas mais estranhas193.

Descrições de Shakespeare da espécie de “Ele é como a Natureza”

(comparação que seria provavelmente aplicada com tamanha prodigalidade apenas

ao autor de Guerra e Paz) equivaleriam para Tolstoi a juízos subjectivos,

expressão de opiniões que, como o próprio Turguenev pressente, não teriam força

argumentativa para granjear do seu interlocutor mais do que um sorriso céptico. A

correcção das intuições de Turguenev é uma questão que permanece no domínio

192 “E que sucesso o seu Lear teve!... E a famosa antipatia de Tolstoi por Shakespeare, contra a

qual Turguenev tanto lutou! Não posso deixar de me felicitar por ter-me mantido inabalável na certeza de que essa antipatia iria desvanecer-se à primeira oportunidade; mas congratulo-me que a sua excelente tradução tenha sido essa oportunidade” (Carta de V. P. Botkin a Drujinin, citado em Gibian, op. cit., p. 15). Drujinin, por seu turno, escreve uma carta igualmente entusiástica a Turguenev, relatando que Tolstoi “se tornara entretanto num excelente homem de letras, [...] já entende Lear e brindou à saúde de Shakespeare, lê a Ilíada e, para compreender o nosso movimento literário, prepara-se para ler todos os artigos de Belinski” (Carta de Drujinin a Turguenev, citado em Gibian, loc. cit.).

193 Carta de Turguenev a Tolstoi, citada em Gibian, op. cit., p. 16.

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da especulação, apesar de não ser difícil imaginar quer o sorriso céptico, quer o

arrepio de horror de Tolstoi ao ler o panegírico de Turguenev e a reivindicação de

que tudo em Shakespeare “tem um propósito”. O que sabemos é que, décadas mais

tarde, no seu panfleto contra Shakespeare, Tolstoi integra descrições como as de

Turguenev numa lista abrangente de fantasias (sejam literárias, religiosas,

filosóficas, científicas, políticas ou económicas), propagadas através de

mecanismos tão imprevisíveis e irracionais quanto os de “sugestões epidémicas”:

[E]sta atitude da parte dos encomiastas de Shakespeare em relação ao seu

objecto de adoração, atitude que pode ser encontrada em todos os obscuros e imprecisos [neopredelenno-tymannykh vostorjennykh] artigos extasiados sobre Shakespeare, tal como em todas as conversas sobre ele, deu-me a chave para a compreensão da causa da fama de Shakespeare.

Há apenas uma explicação para esta fama surpreendente: ela é uma daquelas sugestões epidémicas às quais os homens têm sido sempre, e continuam a ser, sujeitos. Estas sugestões irracionais têm existido sempre, e continuam a existir, em todas as esferas da vida (ST, 428)194.

Não há qualquer evidência de que os esforços dos críticos associados ao

Contemporâneo, e particularmente os de Turguenev, para vencerem a resistência

de Tolstoi em relação a Shakespeare tenham atingido o efeito desejado (Tolstoi

nunca daria razão a Turguenev, nem parece ter seguido, à época, os seus conselhos

de leitura em relação ao dramaturgo inglês195). Estas diligências comprovam,

contudo, o que eminentes críticos não têm inferido: que os argumentos do ensaio

publicado em 1906 têm na verdade uma génese mais antiga do que o período pós-

Confissão, remontando, pelo menos, à sua estreia literária. Tal génese bastaria por

si para contrariar a infalibilidade das leituras que, de modo mais ou menos

194 As traduções inglesas de Shakespeare e o Teatro [O Chekspire i o Drame] consultadas foram

cotejadas, quando assim nos pareceu necessário, com o original, disponível em versão digital em http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_1280.shtml. Salvo indicação em contrário, dada entre parêntesis, imediatamente a seguir à indicação do número de página, todas as citações são de Shakespeare, The Christian Teaching, Letters and Introductions.

195 Em 1861, Turguenev escreve outra carta a Tolstoi, onde diz: “Então gostou de Fausto – e Homero; quem sabe se Shakespeare não possa mesmo vir a ser o próximo.” Carta de Turgenev, citada em Gibian, op. cit., p. 16.

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explícito, recorrem à teoria dos ‘dois Tolstoi’, psicológica e literariamente

distintos, para explicar a incapacidade do autor em apreciar a tragédia

shakespeareana. Por outras palavras, contraria a tese de que o libelo contra

Shakespeare apenas pode ser entendido como consequência (lamentável) da

conversão do seu autor, a partir da qual o moralista resolve pregar a abstinência de

todos os prazeres, incluindo os dos espectáculos.

Esta é a premissa da ainda hoje influente resposta de George Orwell ao

ataque de Tolstoi em “Lear, Tolstoy, and the Fool” (1947). Apesar dos pontos

certeiros da sua análise de ST, Orwell parte do princípio de que argumentos contra

as tragédias de Shakespeare e, para todos os efeitos, contra o cânone que a tradição

consagrou não são sequer inteligíveis qua argumentos, mas apenas enquanto

expressões de preconceito religioso ou de uma simples antipatia pessoal. Esta

posição contribuiu para precaver sucessivas gerações de leitores contra um ensaio

que, não obstante as acusações de ininteligibilidade e de preconceito religioso

lançadas por Orwell, obedece a princípios menos arbitrários do que a resposta de

Orwell dá a entender196. Não partilho da opinião de Orwell segundo a qual o único

interesse deste ensaio reside naquilo que revela sobre os estados mentais do seu

autor (i.e. sobre a projecção de Tolstoi em Lear) e, prolepticamente, sobre os

motivos ínvios da sua fuga a coberto da noite para a morte trágica numa qualquer

estação de caminhos-de-ferro perdida, na companhia da única filha fiel197. Tão

196 H. O. Mounce sublinha este ponto e reitera que o ensaio de Orwell foi decisivo para a recepção

de ST, particularmente no universo de língua inglesa. Cf. Mounce, Tolstoy’s Aesthetics, p. 4 et passim.

197 Apesar da ressalva de que “não se deve assumir que Tolstoi estivesse consciente desta semelhança, ou que a admitisse se alguém lha tivesse apontado”, Orwell diz que “embora Tolstoi não o pudesse adivinhar, quando escreveu o seu ensaio sobre Shakespeare, até mesmo o final da sua vida – a repentina fuga não planeada através do país, acompanhado apenas por uma filha leal, a morte numa casa numa aldeia estranha – parece conter uma espécie de reminiscência fantasmagórica de Lear” (Orwell, “Lear, Tolstoy, and the Fool”, p. 130). No âmbito da identificação de paralelismos entre Tolstoi e Lear (ou de sintomas de “angústia da influência”) gostaria de sugerir que a analogia de Orwell poderia ser expressa através de duas

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pouco dou por adquirido que a forma trágica seja incompatível com crenças

religiosas – não me parece portanto que o modo mais profícuo de ler ST seja

através da sua contextualização numa inimizade de longa data entre duas atitudes

inconciliáveis, a do religioso e a do humanista. Além de a referida

incompatibilidade me suscitar dúvidas de vária ordem, perseguir esta linha de

leitura significaria reintroduzir a tão atraente quanto equivocada narrativa

dicotómica que, como já afirmámos, necessita de fazer proliferar entidades –

Tolstoi, o escritor, e Tolstoi, o profeta – para chegar à conclusão (ou premissa?)

de que obras assinadas pela segunda entidade, como ST, só podem ser ou fruto de

uma birra intelectual própria da idade ou da vocação de um pseudo-profeta para

“tiranizar espiritualmente” os outros. Significaria também contribuir para o que H.

O. Mounce diz ser “a tendência para imputar maus motivos ao nosso

adversário”198.. Isto é tanto ou mais lamentável quando não são apresentadas

provas que corroborem as acusações, como no caso de Orwell, cuja resposta a

Tolstoi se articula em redor da ideia de que o seu veredicto contra Shakespeare

não é o culminar de uma argumentação ou sequer fruto de uma actividade crítica,

racional. Ele é tão-só fruto do preconceito puritano e, por este motivo, “[e]m rigor

personagens: Lear e o velho príncipe Bolkonski, em Guerra e Paz. A cena em que o irascível e tirânico Bolkonski discute interiormente uma “questão irresolúvel”, quando surge um pretendente à mão da filha, não conterá uma curiosa “reminiscência fantasmagórica de Lear”?: “Irritava-o o facto de a chegada destas visitas lhe levantar na alma uma questão irresolúvel e permanentemente abafada – uma questão a respeito da qual o velho príncipe sempre se enganava a si mesmo. O problema consistia no seguinte: se algum dia o príncipe se decidiria a separar-se da princesa Maria e a entregá-la a um marido. O velho nunca ousara colocar tão directamente a si próprio esta questão, sabendo de antemão que a resposta para ela seria uma resposta de acordo com a justiça; ora, a justiça contradizia não só o seu sentimento mas também toda a possibilidade de vida.” Não conterá a convocação de Maria ao gabinete do pai uma curiosa reminiscência da cena que tanto revolta Tolstoi em ST, a do teste do amor de Lear? Ao contrário deste, a resposta de Maria não provoca a ira do velho patriarca: “– O meu desejo, mon père, é nunca o abandonar, nunca separar a minha vida da sua. Não quero casar-me – disse ela resolutamente, dirigindo o seu maravilhoso olhar para o príncipe Vassíli e para o pai.” Guerra e Paz, Livro I, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Lisboa: Editorial Presença, 2005, pp. 303 e 314.

198 H. O. Mounce, op. cit., p. 97.

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não é possível responder ao ataque de Tolstoi. A questão interessante é: por que

motivo é que ele o fez?”199.

A resposta de A. N. Wilson, pese embora a sua divergência com os

termos da leitura proposta por Orwell (i.e. ‘Tolstoi-como-Lear’), acaba por

perseguir esta mesma linha derrogatória relativamente a ST200. Wilson não propõe

uma análise de ST como a revelação do final trágico que aguarda aqueles que

renunciaram ao poder de forma gratuita, abdicando dos seus direitos (incluindo os

intelectuais) e das suas terras. Sugere antes que este ensaio seja lido como um dos

sintomas mais flagrantes da “morte da imaginação artística” que ameaçava

acometer Tolstoi desde o colapso emocional e espiritual subsequente à conclusão

de Anna Karenina. É nas referências a ST, condensadas numas poucas páginas do

seu aturado estudo, que mais se nota a impaciência de Wilson relativamente aos

frutos do trabalho exclusivo da famosa “mão esquerda” de Tolstoi. Se, entre 1903

e 1906, Tolstoi relê a obra completa de Shakespeare, anota profusamente as

margens e os versos dos exemplares da sua biblioteca, e consulta as fontes de

Lear, Hamlet ou Otelo, tal não acontece por ST constituir o culminar de uma

reflexão sobre as razões da incapacidade do seu autor em ver Shakespeare do

mesmo modo que os seus admiradores o apresentavam e, por outro lado, sobre o

género dramático e a arte. Na verdade, tal acontece porque Tolstoi resolve fazer ao

drama shakespeareano o que tinha feito à liturgia, na célebre cena de

Ressurreição: ridicularizá-lo e distorcê-lo de modo que conseguisse convencer o

mundo, e a si mesmo, “de que a arte era um acessório desnecessário à vida boa.”

199 Orwel, “Lear, Tolstoy, and the Fool”, p. 123. 200 “A força dramática do ensaio de Orwell nunca poderá ser esquecida, mesmo que nenhum dos

pormenores esteja inteiramente correcto [...] Tendemos a lembrar-nos da imagem de Orwell de Tolstoi-como-Lear e esquecemo-nos do resto do ensaio de Tolstoi, onde está a pista verdadeira para o motivo da sua composição. A. N. Wilson, Tolstoy: A Biography, New York: W. W. Norton & Company, 1988, p. 478.

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Do ponto de vista de Wilson, o intuito é tão pouco respeitável quanto o resultado:

este “ridículo ensaio” é uma das produções mais confrangedoras do período de

declínio novelesco, a partir do qual Tolstoi passa a defender “a visão deprimente e

redutora de que a função do artista é dizer ao mundo como se deve comportar”201.

Não importa que as razões que Tolstoi oferece (e oferece algumas) para disputar o

‘senso comum’ – juntamente com as suas incursões pela escrita dramática, no

período pré ou pós-crise, e com as observações sobre as diferenças entre tragédias

e romances202 – possam ter o interesse de, se não esclarecer a concepção dramática

de Tolstoi203, mostrar pelo menos que a sua crítica à imitação dramática,

exemplificada por obras como Lear, poderá ser menos arbitrária do que o

pressuposto. Isto para não mencionar que uma leitura atenta dos argumentos de ST

poderá servir também para iluminar as diferenças entre métodos de composição

diversos: entre as descrições das “vidas secretas das pessoas”, em obras como

Guerra e Paz ou Anna Karenina, e o método do peepshow através do qual Tolstoi

planeia mostrar o carácter do herói epónimo de Hadji-Murat; entre contos escritos

201 Wilson, op. cit., pp. 477- 478. 202 “Adaptar um romance, ou uma história, e reorganizá-lo como uma peça de teatro é o mesmo

que as crianças fazem quando recortam a figura de uma imagem, colam-na num cartão, colocam-na em pé, e ficam encantados como o resultado. Ela está de pé, portanto, é uma estátua! Um romance ou uma história é um trabalho pictórico: nele, o artesão trabalha com o seu pincel, aplicando pinceladas de tinta, produzindo panos de fundo, sombras, meias-tonalidades. Uma peça dramática é o trabalho de um escultor. É preciso trabalhar com um cinzel: não para aplicar pinceladas de tinta, mas para esculpir relevos.

Apercebi-me pela primeira vez da grande diferença entre um romance e uma peça dramática quando me sentei para começar a escrever o meu O Poder das Trevas. No início, comecei a trabalhar utilizando os métodos habituais de um romancista, aos quais estava acostumado. Mas depois das primeiras páginas, percebi que estes não eram adequados. Por exemplo, aqui não se deve preparar o caminho para as experiências emocionais dos heróis, não se deve colocá-los a pensar e a recordar coisas em palco, ou elucidar os seus caracteres através de digressões pelo seu passado. Tudo isto é aborrecido, entediante e artificial.” Tolstoi citado em Christian, Tolstoy: A Critical Introduction, p. 257.

203 Andrew Donskov persegue esta linha de leitura para descrever a concepção dramática defendida por Tolstoi em ST, cujo fundamento será o princípio (aristotélico) de que o carácter se revela na acção. Apesar da validade desta abordagem e do seu interesse para o estudo da obra dramática de Tolstoi, não estou segura de que ST subscreva inequivocamente uma “concepção da tragédia” em detrimento de outra. Parece-me que Tolstoi está mais interessado em demonstrar que a concepção dramática dos críticos alemães, emprestada dos clássicos, não é o modelo dramático de Lear. Cf. Donskov, “Tolstoj and Drama”, pp. 14-26.

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para leitores hipnotizados ou letrados (e.g. A Morte de Ivan Ilitch ou Sonata a

Kreutzer) e contos escritos para todos, incluindo crianças (e.g. “Deus Vê a

Verdade Mas Espera” ou “O Prisioneiro do Cáucaso”). Do ponto de vista de

Wilson, ST não é, contudo, um ensaio intrigante no contexto da obra do seu autor:

é, simplesmente, uma ocasião que “diminui Tolstoi, tanto ou mais por parecer

motivado por uma inveja inconsciente, como por ser tão inacreditavelmente

ridículo”204.

Para além da interpretação estreita que faz da descrição teleológica da

arte de OQA?, implícita em ST, Wilson sugere, assim, que a antipatia de Tolstoi

por Shakespeare pode ser melhor entendida pelo facto de este, o criador de ilusões

por excelência, confrontar aquele, o apóstata da literatura, com tudo aquilo a que

renuncia quando assume o papel de profeta e se concentra na escrita de “obras

religiosas atabalhoadas” [of half-baked religious thought], em detrimento das

grandiosas criações da imaginação que nunca mais iriam repetir-se, apesar de

alguns ameaços esporádicos. Na verdade, a análise de Wilson não diverge assim

tanto da leitura ‘psicologista’ de Orwell: o impulso iconoclasta do libelo de Tolstoi

deriva de um “desejo vandalístico”, que leva o seu autor a “negar radicalmente a

relevância da ideia de personagem na literatura”, e de uma “inveja inconsciente”,

que o leva a insinuar veladamente que, se o que se está à procura é de grandes

personagens, tão reais como os seres humanos, então o melhor será olhar para os

seus próprios romances do passado, e não para as obras de Shakespeare205. O

distanciamento crítico com que Wilson traça ao longo da sua obra monumental o

percurso tortuoso do ‘Santo Lev’, um “belligerent bore” que, na imagem

memorável de Wilson, desde o início espreita sobre o ombro do romancista genial,

204 A. N. Wilson, op. cit, p. 480. 205 Idem, pp. 479-480.

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aguardando a sua vez para se apoderar da caneta de Tolstoi, o artista206,

transforma-se, no momento em que o tópico de análise é ST, numa reacção hostil

que tem a consequência de levar um crítico tão perspicaz como Wilson a tirar

conclusões porventura precipitadas. A tentativa de Tolstoi de retirar Shakespeare

do pedestal em que a “bardolatria” o tinha colocado surge, na leitura de Wilson,

como uma tentativa tão patética quanto fracassada de amesquinhar aquele que o

romancista via como o seu único rival na história da literatura. Poderíamos sugerir

aqui que, se o objectivo era identificar uma variante da “angústia da influência” na

origem do “impulso vandalístico” que conduzira Tolstoi à escrita de ST, Wilson

poderia ter dirigido a atenção para um momento essencial, sob este e outros

aspectos, deste ensaio: quando Tolstoi confronta Shakespeare com Homero. Nesta

passagem, Tolstoi aproveita o argumento dos “bardólatras” (entenda-se, de

Gervinus) sobre o valor eterno da beleza que as obras de Homero e Shakespeare

encarnam para reivindicar que nada melhor do que a comparação com Homero

para ilustrar a sua tese de que a Shakespeare falta o sentido de proporção e

unidade. E acrescenta uma importante qualificação sobre o que do seu ponto de

vista separa os dois poetas: apesar das suas “formas de vida” [form jizni] mais

distantes, a poesia verdadeira [istinnuiu poeziiu] de Homero consegue, porque este

“acredita naquilo que está a dizer, e fá-lo de um modo sério”, transportar-nos para

as vidas dos heróis e deuses que descreve. Shakespeare, por seu lado, porque “não

acredita naquilo que está a dizer”, porque é indiferente às suas personagens e

considera que “os motivos cénicos são a causa para as acções e os discursos”

daquelas, é incapaz de fazer com que o leitor ou o espectador “acredite nos

acontecimentos ou nas acções ou na infelicidade das suas personagens” (ST, 418-

206 Idem, p. 228.

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419, itálicos meus)207. Por outras palavras, do ponto de vista de Tolstoi, os poemas

criados pelo autor (ou autores) da Ilíada e, sobretudo, da Odisseia, são genuínos

porque estão assentes em “formas de vida” discerníveis no modo sério com que

descrevem a sua experiência do valor da vida e mostram “aquilo em que

acreditam”. O contrário sucede com as obras de Shakespeare, as quais estão

desligadas de uma concepção pessoal do valor da vida, de um vocabulário assente

numa rede de crenças estruturante: são “compostas como mosaicos, artificialmente

construídas a partir de fragmentos” (ST, 419). Por este motivo, Tolstoi julga que as

obras de Shakespeare falham num requisito essencial à arte e, fundamentalmente,

à arte dramática: não permitem ao seu público identificar o que é digno de atenção

e simpatia, ou seja, se os sofrimentos de Lear, de Cordelia, mas também de Hamlet

ou Otelo, são genuínos e devem suscitar a simpatia ou não na sua audiência.

A escolha de Tolstoi por Homero em detrimento de Shakespeare, para

além de ser iluminadora enquanto afirmação de uma afinidade208 e de uma noção

de originalidade artística (ou de sinceridade, no sentido que Tolstoi dá ao 207 Sobre este tópico, gostaria de acrescentar que a descrição da diferença entre Homero e

Shakespeare como a diferença entre “acreditar, ou não, naquilo que se diz” é interessante, não como a putativa violação do carácter não-prescritivo da crítica literária, i.e. como uma instância da “falácia intencional”, mas como um aspecto integrante do problema que Stanley Cavell descreve na sua leitura filosófica de Rei Lear: o de não se saber o que se sabe – o problema de transformar o sentido da vida numa questão de conhecimento (Cf. Cavell, “The Avoidance of Love”, pp. 267-353). Por outro lado, esta descrição chama a atenção para a discussão que nos ocupou no capítulo precedente, e que Cavell condensa do seguinte modo: objectos ficcionais como personagens significam do modo como as outras pessoas significam. Cf. Cavell, op. cit., p. 198.

208 George Steiner, no seu impressionista mas clarividente estudo comparativo sobre Tolstoi e Dostoevski, e a propósito da afirmação desta afinidade, diz que ela é um dos muitos elementos que transformam este ambíguo manifesto contra Shakespeare numa reflexão sobre aquela que é “a tentativa mais subtil e abrangente alguma vez experimentada de introduzir na prosa ficcional elementos da épica”: a carreira literária de Tolstoi (cf. George Steiner, Tolstoy or Dostoevsky: An Essay in Contrast, London and Boston: Faber and Faber, 1980, p. 132). O aspecto mais interessante a reter da leitura de Steiner não é, contudo, a caracterização do romance épico e anti-dramático de Tolstoi, nem mesmo a sugestão de que a Poética aristotélica não prescreve uma diferença de espécie entre “mente do poeta épico” e “mente do dramaturgo” (op. cit., p. 124), mas o problema que ela coloca: como conciliar o cepticismo rousseauniano de Tolstoi, leitor de Lettre à d’Alembert, em relação à catarse da sala de espectáculo, a sua condenação de Shakespeare, e ainda a sua afinidade com o mundo panteísta de Homero, com a sua actividade de dramaturgo (e Steiner é um leitor entusiasta da obra dramática de Tolstoi)?

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termo209), serviria para retirar a força retórica da descrição de Wilson de que ST

resulta da “arrogância quase mefistofélica” com a qual Tolstoi, cujas criações

fictícias maiores parecem ser apenas superadas pelas do dramaturgo, pretende

afirmar a sua superioridade sobre Shakespeare (e depreende-se que Wilson dá por

certo de que este sentimento “mefistofélico” só poderia ser derivado de criações

como Guerra e Paz, mas não de Hadji-Murat ou de “Deus Vê a Verdade Mas

Espera”, por exemplo).

A atribuição a Tolstoi da tese que diz que a função da arte é “dizer como

o homem se deve comportar” parece-me ser outra das conclusões precipitadas de

Wilson. A atribuição do modal não é inocente quando se pretende reduzir uma

descrição da dimensão moral da tragédia (a qual, é certo, não está isenta de

contradições) a uma “visão restritiva e deprimente” sobre a arte, estipulando que a

única função do artista é a prescrição de regras de conduta. Para além de esta

análise não fazer justiça à teoria da arte formulada em OQA?, e aos argumentos

articulados em ST, ela não se adequa à concepção de moral e religião, nem à

crítica de Tolstoi à redução da doutrina cristã a uma colecção de artigos, de regras

de conduta externas, expressa em diferentes obras, ensaísticas, mas também

209 No âmbito da teoria da arte de Tolstoi, deve fazer-se notar que “sinceridade” não é uma

técnica ou convenção artística: recorde-se Mikhailov, o artista verdadeiro de Anna Karenina, que não pinta de acordo com uma qualquer teoria, mas por necessidade e por atenção amorosa ao objecto (pessoa) que pretende desvendar. “Sinceridade” não denota necessariamente uma qualidade psicológica (e.g. um sentimento do artista), mas o modo como uma obra de arte mostra, muitas vezes de modo involuntário, sublinha Tolstoi, quer em OQA?, quer no seu texto sobre Maupassant, a sua visão ou atitude, o “amor em relação àquilo que descreve” (cf. “Guy de Maupassant”, p. 165). Por outro lado, esta condição da comunicação através da arte não exclui o papel da imaginação: recorde-se a primeira ilustração que Tolstoi oferece em OQA? da comunicação através da arte, a narrativa do rapaz sobre o seu encontro com o lobo. Tolstoi explicita que o grau de infecciosidade desta narrativa, a medida do seu valor artístico, não resulta de ela ser sobre um encontro real com o lobo: o rapaz pode bem tê-lo imaginado (OQA?, pp. 38-39). A noção de “sinceridade artística” de Tolstoi não deve por isso ser equacionada com o argumento simplista que suscita a objecção colocada e.g. por John Hospers de que “Shakespeare dificilmente poderia ter passado, numa só vida, pelas experiências de Hamlet, Macbeth, Iago, Cleopatra, Lear, Goneril, Prospero e Coriolanus, mas que diferença pode isto fazer se ele conseguiu apresentar-nos uma série de caracterizações vibrantes, poderosas e convincentes?”. Cf. John Hospers, “The concept of artistic expression”, Introductory Readings in Aesthetics, p. 149.

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ficcionais210. Embora negue a possibilidade de se definir conceitos fundamentais

como “religião” (ou o que Wittgenstein chama as “traves-mestras” do mundo211),

Tolstoi experimenta em diferentes escritos uma aproximação a este conceito. Nas

notas esparsas coligidas e publicadas sob o título inglês “Religion and Morality”,

caracteriza-o como um posicionamento, a relação particular que o homem

estabelece com o todo ilimitado, de modo a entender, como animal dotado de

razão que é, o seu lugar no mundo: “Por muito que se explique ou sugira que tudo

o que existe nada mais é do que uma ideia, ou que tudo é feito de átomos, ou que a

essência da vida é a substância ou vontade, ou que o calor, a luz, o movimento e a

electricidade são manifestações de uma e a mesma energia […] tal não explicará o

lugar do homem no universo”212.

Apesar das contradições que estão representadas em ST, deve-se referir

que em lado nenhum do seu manifesto anti-Shakespeare atribui Tolstoi uma tal

função prescritiva à arte ou à tragédia. Nem mesmo nos últimos capítulos, onde se

lamenta o nascimento da arte secular durante o Renascimento, o fracasso na

invenção de uma forma trágica adequada à nova concepção do cristianismo como

uma “filosofia de vida” que então surgia, e a subsequente entronização da obra de

Shakespeare como modelo de imitação trágico, reivindica Tolstoi esta ideia. Muito

menos isto se verifica na obra à qual ST serve de, certa forma, de epílogo – OQA?.

Aqui, em contraste com a comunicação através da linguagem (por meio da qual se

transmite pensamentos), a arte é descrita como um processo de comunicação

[obshchenie] não proposicional, através do qual uma vasta gama de experiências,

210 “Onde está a verdade na arte?”, um texto breve que Tolstoi escreveu para prefaciar uma

colecção infantil de contos de fadas, poderia talvez corroborar a crítica de Wilson. 211 Wittgenstein, TLP, §6.124. Refira-se que a expressão se aplica neste trecho às “proposições da

Lógica”. 212 Cf. “Religion and Morality” [“Religiia i Nravstvennost”, 1894], Shakespeare, The Christian

Teaching, Letters and Introductions, p. 139.

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desde emoções simples, como o medo ou a alegria, a sentimentos, sensações,

atitudes, crenças ou disposições mais complexas, como o sentimento de submissão

ao destino ou a Deus, são comunicadas pelo artista e assimiladas pela audiência213.

Julgo que seria difícil ver na descrição, oferecida em OQA?, da comunicação (ou

interacção) artística como um processo análogo, mas não idêntico214, àquele

através do qual se exprime sentimentos ou sensações por meio de expressões

faciais ou exclamações, a atribuição de uma inequívoca função apologética à arte

ou de afirmação de verdades discursivas:

Se um homem infecta [zarajaet] o outro ou os outros directamente pela

sua expressão ou pelos sons que produz no momento em que experimenta um sentimento, se ele faz alguém bocejar quando ele próprio sente vontade de bocejar, ou rir ou chorar, quando ele próprio ri ou chora por alguma coisa, ou sofre quando ele próprio está a sofrer, isto ainda não é arte.

A arte começa quando um homem, com a finalidade de comunicar às outras pessoas um sentimento que experimentou, o evoca novamente dentro de si e o expressa [vyrajaet] através de certos signos exteriores.

[...] Se tivesse sido possível ao artista explicar por palavras aquilo que

pretendia dizer, tê-lo-ia dito por palavras. Mas disse-o com a sua arte, porque não havia outro modo de transmitir o sentimento que experimentara. (OQA?, 38 e 95, itálicos meus)

É verdade que nas alegações finais do seu manifesto contra Shakespeare

Tolstoi apela à criação de um novo modelo dramático – religioso – e que está

213 Cf. OQA?, pp. 38-39. 214 Ao reiterar que o sentido de uma obra de arte não é apriorístico ou extrínseco à experiência da

arte através da comunhão [obshchenie] entre artista (ou obra) e comunidade (ou leitor), Tolstoi reitera também várias vezes que o processo de infecção não denota qualquer atitude estética nem um “estado psico-fisiológico”, como pressuposto nas únicas teorias da arte, as de Véron e Sully, que não são rejeitadas in totto. Tolstoi é muito claro na distinção que estabelece entre tipos de infecção: i) infecção através da arte; ii) infecção através do “mimetismo” (à falta de um termo exacto para as situações de infecção espontânea que Tolstoi descreve), processo este muitas vezes erradamente interpretado como infecção artística; iii) indução de estados psicológicos. Se o primeiro termo denota simultaneamente a condição necessária e suficiente da arte e é, quando avaliada independentemente do seu conteúdo, “a única medida do valor artístico” (OQA?, p. 121); o segundo denota o contágio automático através de expressões corporais ou interjeições; e o terceiro refere o efeito de “afectação dos nervos” suscitado por pseudo-obras de arte e estados psíquicos cognatos, induzidos pela ingestão de drogas ou de certos alimentos, mas também ao assistir a execuções públicas ou aos circos Romanos: “[N]ada há de artístico nesta excitação [volnenii], porquanto não é um homem infectando o outro, mas apenas um sentimento misto de compaixão pelo sofrimento do outro e de contentamento por si mesmo, por não ser eu que estou a sofrer” (idem, p. 89).

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próximo de defender a tal visão “enfadonha” da literatura como um manual de

instrução moral quando prescreve que “apenas a pessoa que tem alguma coisa a

dizer aos outros, e alguma coisa de extrema importância – sobre a relação do

homem com Deus, com o mundo, com o eterno e o infinito” deverá escrever uma

peça dramática (ST, 437). É também verdade que Tolstoi atribui à arte, e

particularmente à tragédia, a função de esclarecer a compreensão que em cada

época se tem do valor e do sentido da vida e que reivindica que “[a] arte

dramática, para merecer a importância que lhe é atribuída, tem de servir para

elucidar a consciência religiosa” (ST, 439). Contudo, não nos devemos esquecer

que estas prescrições surgem no contexto de uma crítica dirigida à concepção da

arte como entretenimento (i.e. uma concepção não religiosa da arte), tornada

apanágio das elites decadentes – crítica dirigida, fundamentalmente, ao

Shakespeare criado, do ponto de vista de Tolstoi, pelos excessos da recepção

romântica, tipificados por Goethe e os seus correligionários. Estes críticos não se

limitam à tarefa sensata de defender o dramaturgo das acusações dos seus

contemporâneos de que não eram cumpridas as leis clássicas de Horácio ou do

teatro francês pseudo-clássico, na linha do Dr. Johnson, citado no início do

ensaio215. Pretendem ainda que “O Papa não é meramente ‘Santo’, é ‘Sua

Santidade’, e por aí adiante. Shakespeare não é apenas um bom escritor, mas o

maior génio de sempre, o educador imortal da humanidade” (ST, 459, itálicos

meus).

Não devemos também esquecer outros momentos do ensaio em que

215 Refira-se que Johnson aponta, ao contrário de Tolstoi, que opta por o omitir quando cita o

elogio de Johnson a Rei Lear, para certas falhas das tragédias de Shakespeare (e.g. defende o “final feliz” de Lear de Nahum Tate) e de acusar o dramaturgo de sacrificar “a virtude à conveniência e está tão mais empenhado em agradar do que em instruir que parece escrever sem qualquer propósito moral”. Samuel Johnson, citado em R. A. Foakes, “The critical reception of Shakespeare tragedies”, The Cambridge Companion to Shakespearean Tragedy, Claire McEachern (ed.), Cambridge: Cambridge UP, 2002, p. 227.

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Tolstoi manifesta uma atitude contrária à teoria da arte didáctica, pelo menos no

sentido restrito que críticos como Wilson e Orwell lhe imputam, pese embora este

último fazer a ressalva justa de que o ataque de Tolstoi a Shakespeare não deve ser

resumido ao típico ataque do moralista à arte216. Um destes momentos acontece

quando Tolstoi – no que também pode ser entendido como uma surpreendente

correcção da “poética” (ou anti-poética) que lhe permitira criar Guerra e Paz –

parece dar razão aos seus primeiros críticos, que o tinham acusado anteriormente

de desrespeito pelas leis aristotélicas de unidade de composição, misturando ficção

e história, “suspensão da descrença” e afirmações de facto, acusações que se

prolongariam até à “pacificação” da estranheza com que o anti-romance era

recebido, quando a história literária do século XX, e com ela as experiências dos

modernistas, o integrou como um romance realista convencional e o classificou de

“obra-prima”. Nesta inesperada correcção da sua anti-poética, Tolstoi esgrime

argumentos contra os defensores da “concepção do mundo” profunda que os

solilóquios de Hamlet ou de Lear expressam (i.e. contra Gervinus217) e afirma que,

não sendo a finalidade da tragédia, ou da arte, a mesma da de um texto edificante:

216 “As parábolas – é aqui que Tolstoi difere do puritano vulgar habitual – devem ser em si obras

de arte, mas o prazer e a curiosidade devem ser delas excluídos.” George Orwell, “Lear, Tolstoy and The Fool”, p. 126.

217 O argumento de Tolstoi parece ser aqui dirigido, na verdade, contra Gervinus, cuja obra sobre a recepção crítica de Shakespeare pretende “levantar os véus” da obra do dramaturgo para demonstrar o que Goethe já sugerira no seu estudo de Hamlet: que dela se pode deduzir uma filosofia moral – “até então parcialmente oculta pelos aspectos exteriores da forma e do estilo” –, e tão grandiosa quanto a dimensão poética e filosófica do corpus shakespeareano (cf. Georg Gottfried Gervinus, “Introduction”, Shakespeare Commentaries, vol. I, F. E. Bunnet (trad.), London: Smith, Elder & Co, 1875). Segundo Tolstoi, a “sábia filosofia de vida humanista” que os críticos alemães, com Goethe na dianteira, conseguiram extrair das obras dramáticas de Shakespeare foi o “princípio de acção razoável”, o qual, defendem Brandes e Gervinus, terá permitido ao dramaturgo dispensar as restrições artísticas impostas pelos princípios morais da religião cristã e atribuir deste modo a personagens como Fortinbras, Bolinbroke, ou Octavius, a felicidade ou o sucesso conforme a sua natureza activa, saudavelmente moderada, mas não necessariamente virtuosa. Esta filosofia humanista denota, para Tolstoi, o princípio utilitarista de “que os fins justificam os meios”, princípio ético pelo qual não nutria, como seria de esperar, qualquer simpatia.

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“Os pensamentos e apotegmas podem ter o seu valor”, retorquirei, “numa produção em prosa, num tratado, numa colecção de aforismos, mas não num trabalho de arte dramática, cuja finalidade é suscitar simpatia por aquilo que está representado. E por isso os discursos e apotegmas de Shakespeare, mesmo que contivessem muitos pensamentos muito profundos e originais – o que não é o caso – não podem ser vistos como cumprindo as condições de uma produção artística poética. Pelo contrário, estes discursos, proferidos num contexto que não lhes é apropriado, podem apenas destruir produções artísticas” (ST, 417, itálicos meus).

Deixarei de parte por agora a discussão sobre a finalidade da tragédia

expressa nesta resposta, e as importantes distinções entre a “vida tal como é” ou a

“vida como deverá ser”, entre poesia e filosofia, entre mostrar e dizer, nela

subentendidas. Neste momento, interessa sublinhar que a inusitada estipulação de

contextos apropriados para a afirmação de “pensamentos e apotegmas” (ensaios,

tratados, aforismos, mas nada que se assemelhe a tragédias ou, para todos os

efeitos, a qualquer “produção artística”) coloca dificuldades aos críticos que

resumem os argumentos de ST a uma teoria da arte como propaganda, a qual

explicaria automaticamente o erro por detrás do virulento ataque à poesia

dramática e a Shakespeare. Tal estipulação é tão ou mais inesperada quanto vinda

da parte do autor de “romances filosóficos” como Guerra e Paz ou mesmo Anna

Karenina, mas também de contos tardios como Sonata a Kreutzer. Em todos estes

casos, Tolstoi viola deliberadamente a prescrição acima transcrita e não se exime a

inserir os “sermões” que Eikhenbaum viria a analisar para contestar a narrativa

dicotómica dos dois Tolstoi, nem a incorporar as teses filosóficas, os provérbios

ou as afirmações absolutas, resistentes à interpretação, que Morson viria a inserir

numa “estratégia de narração negativa”, cuja finalidade seria mostrar que nada na

natureza se assemelha a um “bom enredo”218. Do mesmo modo, como se observou

no capítulo precedente, Tolstoi não evita representar os caracteres das suas

218 Cf. G. S. Morson, Hidden in Plain Sight.

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personagens directamente, a partir da descrição anti-dramática que E. M. Forster

enalteceria como a marca distintiva do romance.

Para reforçar o carácter inusitado desta prescrição anti-filosófica, no

âmbito da prática de Tolstoi, poderíamos ainda referir uma das suas ‘narrativas de

conversão’ tardias, A Morte de Ivan Ilitch. Aqui, Tolstoi chega mesmo a tentar

descrever o que está fora da experiência (a morte) e regista os processos mentais

que decorrem entre a rejeição, por parte do protagonista, do silogismo de que

“Caio é um homem, os homens são mortais, Caio é por isso mortal” e a aceitação

final da (sua) morte quando aceita também que a sua vida tinha sido uma vida mal

vivida: “Nesse instante, Ivan Ilitch caiu no buraco e viu a luz, e foi-lhe revelado

que, embora a sua vida não tivesse sido o que deveria ter sido, ela ainda poderia

ser rectificada. [...] Não existia medo porque não existia morte. Em vez da morte,

havia luz. ‘Então é isso!’, exclamou em voz alta. ‘Que alegria!’”219.

É possível que a estipulação de contextos apropriados para a afirmação de

pensamentos e apotegmas derive de um novo movimento estratégico de Tolstoi

para retirar espaço de manobra aos seus oponentes (i.e. aos bardólatras), forçando-

os a encontrar outros argumentos para enaltecer o Bardo que não os da “sábia

filosofia de vida profunda”, expressa através dos pensamentos e solilóquios de

Lear ou Hamlet. É possível que este não seja, na verdade, um argumento contra

‘imitações de acções filosóficas’. Contudo, importa reiterar que a rectificação de

Tolstoi acima citada coloca dificuldades aos leitores de ST que identificam a

querela representada em ST como a querela entre a visão didáctica e a visão

humanista da literatura, provavelmente tão motivados pela antipatia pelas

doutrinas que o “ouriço” martela sem cessar nos últimos anos, quanto pela

219 Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch, Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Relógio d’Água, p. 167.

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predilecção pelos romances escritos pela “raposa” dos anos áureos. A estipulação

inesperada de Tolstoi poderá servir para demonstrar que talvez seja precipitado, no

que diz respeito ao seu ataque a Shakespeare, invocar o princípio sugerido por

Hume no âmbito da exposição da sua teoria do gosto: o princípio de que a ataques

ao “senso comum”, isto é, a juízos de gosto que invertem a hierarquia das obras de

arte, elevando autores menores a autores maiores, não deve ser simplesmente

prestada qualquer atenção220. Poderá, em suma, mostrar, contra Orwell, que talvez

seja não só possível como desejável responder a ST e explicar a virulenta disputa

de Tolstoi com séculos de tradição como motivada por outra coisa que não apenas

o “preconceito tolstoiano”221.

Declarar que a finalidade da tragédia é incomensurável com a elocução

de “discursos profundos” para em seguida se argumentar contra os benefícios, ou

mesmo a exequibilidade, de se deduzir de Hamlet ou de Rei Lear uma “sábia

filosofia de vida”, seja esta isabelina, maquiavélica ou goetheana, como os críticos

literários alemães fazem, poderá até resultar de uma concepção rígida de imitação

trágica, da linguagem, da moral, ou de modos de descrever pessoas. Contudo, se

220 Embora David Hume diga que a beleza é uma qualidade (ou sentimento), não das coisas, mas

que apenas existe na mente de quem as percebe, não deixa de dizer que a este axioma vem acrescentar-se uma modificação ou restrição, ditada por “uma espécie de senso comum”: no caso de um crítico equiparar, contra o senso comum, um autor menor a um autor maior, atribuindo-lhes a mesma medida de elegância ou génio (e.g. Ogilby e Milton), suspende-se o princípio da igualdade natural dos gostos e proclama-se “sem escrúpulos” que o “sentimento daqueles pretensos críticos é absurdo e ridículo”. Cf. David Hume, Of the Standard of Taste, §8.

221 É curioso verificar que teria de ser o crítico shakespeareano Gilbert Wilson Knight a convocar a necessidade de se contrapor ao “ataque de uma mente tão poderosa e incisiva como a de Tolstoi” uma descrição da experiência de ler ou ver Shakespeare com efeitos tão revigorantes ou “tónicos” quanto os que atribui a ST. (Poderíamos citar o ensaio de Stanley Cavell, “The Avoidance of Love”, como o melhor exemplo de uma tal contra-proposta). Podemos discordar da finalidade com que Knight convoca tal necessidade (i.e. a defesa de uma leitura simbólica do corpus shakespeareano), e da conclusão de que o excesso de “clarividência” [clear thinking] de Tolstoi não lhe permitia ver o verdadeiro Shakespeare, obscurecido pelos excessos da crítica romântica, i.e., pela ênfase na “absorção na personagem.” Mas importa sublinhar que Wilson Knight chama a atenção para o facto de que o ataque de Tolstoi é “uma tentativa saudável de libertação da ‘hipnose’, como ele lhe chama, da crítica romântica.” G. Wilson Knight, “Tolstoy’s Attack on Shakespeare”, The Wheel of Fire. Interpretations of Shakespearian Tragedy with Three New Essays, London: Methuen, 1970, p. 276.

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esta correcção reforça a distinção entre conhecimento racional e percepção moral

(ou religiosa), implícita na descrição da arte como um processo de infecção

através dos sentimentos e emoções cujo êxito depende da indução de uma

“comunhão de valores”, e na caracterização do bem como “o que é insusceptível

de ser definido, mas que define tudo o mais” (OQA?, 52)222, reforça também outra

coisa. Reforça o que T. S. Eliot acaba por acentuar na sua leitura céptica sobre a

dedução de um sistema filosófico de Shakespeare: mesmo que se aceite a premissa

de que o grande poeta, ao escrever-se a si próprio, escreve o seu tempo, isto não

significa que a poesia seja um substituto para a filosofia e que a sua função seja

idêntica à da filosofia, teologia ou religião223. A correcção de Tolstoi às propostas

de um Shakespeare sob a influência de Séneca, Bacon ou de Aristóteles (ao

Shakespeare de Gervinus e Brandes, pelo menos na leitura que Tolstoi faz de

Gervinus e Brandes) assinala que é precipitado reduzir ST à defesa de uma noção

de literatura como a asserção de um conjunto de crenças ou dogmas, incompatível

com a arte e derivada, para empregar os termos de Orwell, da “tendência para o

bullying espiritual” de alguém que julga ter nascido duas vezes224.

Esta parece-me ser de facto uma leitura demasiado simplista das

dificuldades da teoria da arte exposta em OQA?, implícita no libelo contra a

“hipnose de Shakespeare”, que se encontra ancorada numa premissa mais subtil,

também operativa na distinção expressa no paradoxo de Wittgenstein: “O que

pode ser mostrado não pode ser dito”225. É tão ou mais simplista quanto não

esclarece os argumentos de ST sobre a relação inextrincável entre arte e valor,

222 Se a avaliação da arte depende da compreensão das pessoas do sentido da vida (isto é, do bem

e do mal), estes “são determinados por aquilo a que chamamos de religiões” (OQA?, p. 42). 223 T. S. Eliot, “Shakespeare e o Estoicismo de Séneca” (1927), Ensaios Escolhidos, Maria

Adelaide Ramos (selec., trad., notas), Lisboa: Cotovia, 1992, pp. 42-43. 224 Orwell, “Lear, Tolstoy and The Fool”, p. 127. 225 Wittgenstein, TLP, §4.1212.

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entre formas artísticas e sentimento religioso, nem a reivindicação de que a arte

reflecte necessariamente o espírito religioso da época – o que Iris Murdoch chama

de o “pano de fundo metafísico” sobre o qual o artista opera (daí a recorrente

necessidade da autora de situar as personagens dos seus romances sob um pano de

fundo pós-nietzscheano de morte de um Deus pessoal). A reivindicação de Tolstoi

de um conteúdo religioso da tragédia é menos arbitrária que aquilo que as leituras

de ST pressupõem. Insere-se pelo contrário no argumento geral do ensaio sobre a

decadência da arte ou do gosto, a partir da Renascença, quando se passa de uma

concepção religiosa da tragédia (i.e. clássica), que sobrevivera nos serviços

litúrgicos das igrejas cristãs primitivas e, mais tarde, na sua forma inferior, nas

alegorias e nos Mistérios, para uma concepção em que a representação dos

“sofrimentos e conflitos dos heróis trágicos deixam de ter um significado

religioso.” A tragédia transformou-se, assim, segundo Tolstoi, na imitação de

personagens históricas, em particular, e das paixões humanas, em geral. Com este

novo objecto de imitação, independente da compreensão religiosa do mundo que

unia o escritor trágico e a sua audiência numa mesma percepção do valor e da

finalidade da vida, numa forma de vida, a obediência à lei clássica das três

unidades deixou de ser desejável (ST, 434).

O facto de Tolstoi, nos capítulos onde delineia esta breve história da

emancipação da expressão artística de um contexto religioso226 (e já vimos que

226 É curioso verificar a existência de pontos de contacto entre a abordagem de Tolstoi e do

historiador da arte austríaco Hans Sedlmayr, embora as análises dos dois autores ao processo de decadência da arte divirjam num aspecto crucial (a possibilidade de a arte ser um princípio mediador entre o homem e Deus, ou não). Sedlmayr, na sua idiossincrática história sobre os sintomas da progressiva “perda do centro” das formas artísticas, analisa a gradual transformação da expressão do sentimento religioso, ou mítico, na expressão puramente estética, ou poética, do Iluminismo. A partir das primeiras cintilações desta crise espiritual, já discernível na “fisiologia do inferno” de Hieronymus Bosch e na “paisagem da desolação” da pintura holandesa, as artes polarizam-se (a arquitectura deixa de ser a arte agregadora) e transformam-se na expressão privada do puramente subjectivo (e.g. os Sonhos de Goya, a poesia romântica, The Waste Land ou o surrealismo), no culto panteísta da natureza (e.g.

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este termo é usado em sentido lato), oscilar na terminologia que usa para descrever

“a concepção religiosa da tragédia”, e de não oferecer, pelo menos aqui, mais do

que um sentido vago de “religião”, não será certamente alheio às acusações de

didactismo e fanatismo religioso227. É, todavia, significativo que Tolstoi, ciente de

que o Teatro – quer siga as leis aristotélicas invocadas para deflacionar as

inovações artísticas de Shakespeare, quer encontre novas formas para exprimir o

mito – “é uma das formas artísticas mais importantes, se não a mais importante”

(ST, 439), antecipe as acusações que lhe seriam colocadas, mesmo pelos críticos

radicais que proclamavam que “um par de botas é melhor do que Puchkin ou

Shakespeare”228.

Neste ensaio, Tolstoi dramatiza um curto diálogo com o seu oponente

imaginário e responde às objecções dos críticos, isto é, de todos os leitores

hipnotizados por Shakespeare. Para estes, qualquer ênfase na importância de um

“conteúdo religioso para a tragédia” deriva da tentativa de intrometer uma

categoria estranha no domínio puro e desinteressado da apreciação estética. Esta

apreciação da arte, pretensamente “objectiva”, isto é, “independente de qualquer

avaliação do bem e do mal” [dobrogo i zlogo] (ST, 456, Maude), foi, segundo

Tolstoi, inventada e teorizada pelos críticos alemães no final do século XVIII. O

objectivo desta escola crítica era justificar os méritos artísticos da obra

shakespeareana e os da filosofia humanista nelas implicada. Com isto, pretendia-se

simultaneamente reivindicar que a arte e, em particular, a tragédia dispensavam

arquitectura paisagística ) ou no culto da abstracção e da geometria (e.g. Le Corbusier ou Tatlin). O culminar deste progresso, ou degenerescência espiritual, é a rejeição radical de uma concepção do “homem feito à imagem de Deus” e, por conseguinte, a secularização total da arte moderna. Cf. Art In Crisis: The Lost Center [Verlust der Mitte: Die bildende Kunst des 19. Und 20. Jahrhunderts als Symptom und Symbol der Zeit, 1948], Roger Kimball (intro.), Brian Battershaw (trad.), New Brunswick and London: Transaction Publishers, 2007.

227 Mesmo Gibian conclui que ST é o resultado do fanatismo de Tolstoi. Cf. Gibian, op. cit., p. 45. 228 Isaiah Berlin esclarece que este princípio, comummente atribuído a Pisarev, é na realidade um

pastiche de Dostoevski e da sua sátira aos críticos radicais. Cf. Berlin, op. cit., p. 237, n.r.

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outro conteúdo para além da representação das paixões humanas,

independentemente de uma “concepção de vida religiosa”:

“Mas”, perguntar-me-ão, “o que se deve entender pelas palavras ‘um

conteúdo religioso para o drama’ [religioznoe soderjanie dramy]? Não significa isso estar a exigir para o teatro ensinamentos religiosos e didácticos e, ainda por cima, uma coisa incompatível com a verdadeira arte, uma finalidade?” Responderei que, com a expressão “conteúdo religioso da arte”, estou a referir-me não à inculcação exterior de quaisquer verdades religiosas sob a forma artística, não a uma representação alegórica destas mesmas verdades, mas a uma concepção do mundo [mirovozzrenie] inteligível que corresponda à mais elevada compreensão religiosa de um dado período: um pano de fundo, o qual, servindo de motivo propulsionador para a composição do drama, permeie toda a obra sem que disso o seu autor esteja consciente (ST, 436).

A resposta deste passo, invariavelmente ignorado pelos leitores de ST229,

poderá não ser suficientemente clara para moderar as suspeitas dos críticos

impacientes com os ataques à “ausência de convicções religiosas” da obra de

Shakespeare, mesmo se provenientes de uma mente tão “poderosa e incisiva como

a de Tolstoi”, na expressão do eminente crítico shakespeareano G. Wilson Knight.

Quando o ataque se estende ainda, como no caso de ST, à ideia da autonomia da

arte, à sabedoria salomónica da aniquilação230, ao lamento trágico de se ter nascido

neste “grande teatro de loucos”, à atitude humanista (ou epicurista) de quem

proclama que “ripeness is all”, ou ao pathos de quem profere discursos até ao

fim231, não bastará certamente assegurar que não se pretende reduzir a tragédia à

229 H. O. Mounce e G. Wilson Knight são duas notáveis excepções. Este último cita-a como

exemplo de uma “ênfase excelente [fine] na importância da religião para a tragédia”, mas também para propor que Shakespeare “é um exemplo perfeito da espécie de escritor que Tolstoi admirava em teoria” (G. Wilson Knight, “Tolstoy’s Attack on Shakespeare”, pp. 294-295). A reivindicação de Knight teria certamente horrorizado Tolstoi (e todos os críticos do puritanismo fanático exibido por Tolstoi em ST), mas é uma interpretação curiosa do conceito de “consciência religiosa” de Tolstoi.

230 Harold Bloom, em Onde Está a Sabedoria?, em particular, no capítulo 2 da I Parte, disputa o ataque platónico a Homero e o ataque dos filósofos “puritanos” a Shakespeare, e examina os herdeiros da escrita sapiencial: Shakespeare é o herdeiro do livro da Sabedoria de Salomão. Cf. Onde Está a Sabedoria?, “Os Gregos: a Disputa entre Platão e Homero”, Miguel Serras Pereira (trad.), Lisboa: Relógio d’Água, 2008, pp. 39-75.

231 Otelo é um dos raros momentos em que Tolstoi mitiga a violência com que critica a caracterização de Shakespeare. Contudo, apesar de considerar o suicídio de Otelo uma cena “poderosa” e original (porque não é emprestada do “Ur-Otelo”, a fonte italiana), Tolstoi diz

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afirmação dos princípios éticos cristãos. E, quando o ataque abarca a própria

natureza humana, sujeita que está, como sempre estará, afirma Tolstoi, a sugestões

epidémicas como as da “hipnose de Shakespeare” (ST, 428), é difícil não suspeitar

que o que está em causa é muito mais do que uma crítica às formas artísticas

vazias, criadas pela cultura secular, sem outra finalidade que não a satisfação

individual do artista, independentemente de uma comunidade alargada, unida

numa mesma percepção dos valores que enformam a vida232.

Com efeito, a resposta de Tolstoi aos seus adversários na passagem acima

transcrita ficaria muito aquém do mero objectivo de aquietar os espíritos dos seus

leitores, em particular daqueles que já tivessem aprendido com as suas leituras de

Platão que, quando se adverte aos encomiastas do Poeta – que o tomam pelo

educador da Cidade – que “só hinos aos deuses e encómios aos varões honestos”

serão permitidos ao Poeta, o que se está a propor na verdade é a sua expulsão.

Quando o ataque ao criador do teatro moderno e, na expressão de alguns, da

consciência do mundo, ou do humano, culmina com o anúncio de uma forma

trágica nova (ou primitiva?), que “corresponda à mais elevada compreensão

religiosa de um dado período”, este desfecho não parece ser mais do que um

“impulso mefistofélico”, ou iconoclasta, para mandar encerrar os teatros e proibir

a fruição de toda a arte precursora. (Refira-se, aliás, que o ataque ao culto da

beleza em OQA? culmina do mesmo modo profético que ST, apesar do elogio

inicial a uma arte colorida pelos gestos e pela linguagem do quotidiano, como a

que os discursos de Otelo (e o deítico com que acompanha o acto do suicídio) retiram força à cena e emprestam-lhe um falso pathos (i.e. tornam-na psicológica e esteticamente falsa).

232 Esta mesma concepção da arte, que resulta da distinção moderna entre alta cultura e cultura popular, é criticada ao longo de todo OQA?. Aqui, Tolstoi dirige a sua crítica aos poetas contemporâneos simbolistas, os que melhor exemplificam a decadência que assolou a cultura ocidental a partir do Renascimento. Apesar de o empenho em justificar os motivos pelos quais os poemas de Baudelaire, Mallarmé ou Verlaine são aberrações produzidas por e para uma elite decadente estar longe de igualar o que é colocado na demonstração de que Shakespeare “não pode sequer ser considerado um escritor mediano”, o espaço que Tolstoi dedica em OQA? aos representantes da poesia moderna é ainda assim bastante significativo.

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narrativa do rapaz sobre o encontro com o lobo, citada no capítulo V,

exemplifica). Este impulso é tão ou mais destrutivo quanto é simultaneamente

dirigido contra as produções teatrais do próprio autor, rejeitadas, como os seus

romances e “artigos” em OQA?, por “serem como todas as outras, privadas

daquela substância religiosa que deve ser a base do teatro do futuro” (ST, 440). E

que a condenação, ou expulsão, do poeta seja na verdade um exercício teórico nos

dois casos (Tolstoi continuou a escrever ficção até ao fim, apesar de para alguns

isto não ter possivelmente constituído motivo de júbilo, e nunca propôs banir

Shakespeare das salas de teatro moscovitas) não apazigua a irritação de tais

leitores.

Afirmar que pela expressão “conteúdo religioso da arte” se deve entender

“uma concepção do mundo inteligível que corresponda à mais elevada

compreensão religiosa de um dado período” pode não ser uma perífrase

particularmente elucidativa para enfraquecer o argumento dos críticos menos

complacentes com as afirmações paradoxais de ST e que vêem nesta obra o

exemplo mais deplorável de apostasia artística: “No final, ele [Tolstoi] acabou por

considerar cada obra de arte como um facto exclusivamente moral e social,

existindo não privadamente mas através do seu público e dos seus efeitos – ao fim

e ao cabo, nem mais nem menos do que ‘propaganda’”233.

A rectificação de Tolstoi poderá também não servir para esclarecer o

mistério em redor dessa nova forma trágica que se anuncia, prenhe de significado

e capaz de reunir artista e comunidade numa mesma concepção e percepção do

sentido da vida (i.e. dos valores espirituais da vida). Sobretudo quando se verifica

233 Se a primeira parte da frase contém ideias interessantes para a discussão da teoria de OQA?, a

conclusão parece-me desnecessária. E. Lampert, “The Body and Pressure of Time”, citado em Andrew Donskov, “The Living Corpse: An Anomaly Among Tolstoj’s Later Works”, p. 88.

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que ao apelar, ou melhor, ao imaginar o renascimento de uma cultura comum,

purificada e unida pela religião, não se chega a oferecer qualquer definição formal

dos termos-chave desta descrição – e.g. “religião” e “percepção”, pelo menos, se

se partir do princípio de que tal é indispensável ou sequer possível. Tolstoi em

nossa opinião não parte de tal princípio, aliás por motivos similares aos de

Wittgenstein quando este discorre sobre a tendência – inteiramente desesperada –

do espírito humano em ir contra os limites da linguagem significante, e afirma a

impossibilidade lógica de um livro com teses éticas, de uma ciência do valor

absoluto: “[S]e alguém pudesse escrever um livro sobre Ética que fosse

verdadeiramente um livro sobre Ética, este livro iria, com uma explosão, destruir

todos os outros livros do mundo”234.

Por outras palavras, a importante ideia de que a arte é, num certo sentido,

necessariamente religiosa (i.e. está enformada pelos valores da época) não surge,

como Iris Murdoch observa, filosoficamente apresentada e, por conseguinte, sob

uma forma mais apelativa ou digerível235. Todavia, quando Tolstoi aponta em ST

para aquilo que a arte não é, e realça que essa forma trágica religiosa, a arte da

234 Wittgenstein, “A Lecture on Ethics”, Philosophical Occasions, 1912-1951, James Klagge e

Alfred Nordmann (eds.), Indianapolis & Cambridge: Hackett Publishing Company, 1993, p. 40. A posição de Tolstoi sobre este assunto é relativamente consistente e perpassa em diferentes obras, em diferentes registos. Podemos destacar a resposta que é oferecida no ensaio epistolar sobre religião: “Em que consiste, então, a essência deste conhecimento não científico e não filosófico? Como pode ser definido? A estas questões apenas posso responder que como o conhecimento religioso é aquilo que precede, e sobre o qual está assente todo o outro conhecimento, ele não pode ser definido [...] Na linguagem teológica, a este conhecimento chama-se revelação. E esta palavra, se não lhe atribuirmos um significado místico, é bastante apropriada” (a adequação do uso do termo “revelação” poderá ser discutida, uma vez que Tolstoi recusa o que na doutrina cristã se chama de “revelação”). Cf. Tolstoi, “Religion and Morality”, p. 85.

235 O ponto de Murdoch é feito em relação a OQA?, mas poderia também ser feito em relação a ST: “Claro que os artistas, quando escrevem como críticos ou quando teorizam sobre a sua própria arte, podem não ser muito “filosóficos”, mas podem ser mais interessantes do que os filósofos! O livro de Tolstoi O Que é a Arte? está repleto de extravagâncias, mas exprime uma ideia central profunda, a de que a boa arte é religiosa e incorpora as percepções religiosas mais elevadas da época. Poderíamos dizer que a melhor arte consegue de algum modo explicar o conceito de religião para cada geração. Nutro uma grande simpatia por esta ideia, embora não esteja filosoficamente apresentada.” Iris Murdoch, Existentialism and Mystics: Writings on Philosophy and Literature, p. 9.

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comunhão por excelência, não é “o inculcar exterior de verdades religiosas” ou a

“representação alegórica de verdades religiosas” está a mostrar, pelo menos, duas

coisas importantes. Em primeiro lugar, que sabia que o seu combate à hipnose

shakespeareana estava destinado, se não ao fracasso (daí, porventura, a relutância

em publicá-lo), pelo menos a ser mal entendido, não só pelos defensores das duas

correntes literárias, à época antagónicas – o realismo social e as “poéticas da

alusão” emergentes –, mas na realidade por todos os seus leitores. Estes estão

enformados, como Tolstoi reconhece, com bastante realismo, pelos valores

expressos na obra do autor que melhor representa a concepção do mundo

[mirovozzrenie] contemporânea: Nietzsche (ST, 451, Maude). Se Tolstoi encerra o

seu manifesto com a constatação de que “no presente não existe teatro religioso”

(ST, 442), tal decorre de um facto inescapável referido na sua narrativa sobre a

consagração da tragédia shakespeareana, pela acção dos poetas românticos, como

modelo superior à tragédia de Sófocles ou de Ésquilo: o destino dos livros

depende da compreensão dos seus leitores ou, na expressão latina que é citada,

“Pro captu lectoris habent sua fata libelli” (ST, 451, Maude)236. Ao realçar, e para

usar a formulação de Wittgenstein, que a concordância na linguagem não é “de

236 Refira-se ainda que, em resposta a uma carta de Eugen Reichel, autor de uma obra que disputa

a autoria das peças e dos sonetos de Shakespeare e a do Novum Organum, de Bacon, Tolstoi frisa que, ao contrário do seu interlocutor, não tem ilusões quanto ao efeito do seu panfleto: ele não servirá para destruir a reputação de Shakespeare nem para travar o aparecimento de novos Shakespeares. Tolstoi termina a sua resposta ao escritor alemão com uma nota de profundo pessimismo, pouco frequente em si, ao contrário, por exemplo, de Wittgenstein: “Prevejo igualmente que o declínio no nível geral de bom senso se venha a tornar cada vez mais pronunciado, não apenas na arte mas em todas as outras esferas; na ciência e na politica e especialmente na filosofia (ninguém hoje conhece Kant, mas todos conhecem Nietzsche), e culminará num colapso geral, a queda da civilização em que vivemos, uma queda da mesma espécie que sobreveio às civilizações egípcia, babilónica, grega e romana.” Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 665. Compare-se este pessimismo com uma entrada do seu diário de 1900, onde depois de referir a leitura, no original, de Assim Falava Zaratustra e de um artigo sobre a génese desta obra, assinado pela irmã do filósofo E. Förster-Nietzsche, Tolstoi conclui que está absolutamente convicto da loucura, no sentido literal do termo, de Nietzsche e pergunta: “Como será uma sociedade que reconhece um tal louco, um tal louco imoral, como um dos seus mestres?”. Idem, p. 489.

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opiniões, mas de formas de vida”237, Tolstoi admite momentaneamente o seu

isolamento em relação à cultura dominante.

Em segundo lugar, ao ressalvar que por conteúdo moral da tragédia não

se deve entender a representação discursiva de verdades religiosas, Tolstoi mostra

que compreendia melhor as dificuldades do seu argumento sobre o valor moral da

tragédia, apresentado nos capítulos finais do manifesto, o qual culmina com a

sugestão de que o consumo das obras de Shakespeare corrompe moralmente a sua

audiência: “tendo assimilado aquela visão da vida imoral que permeia toda a obra

de Shakespeare, ele [o consumidor jovem] perde a capacidade de distinguir entre o

bem e o mal” (ST, 463, Maude).

As afirmações contraditórias sobre a “ausência de convicções morais” e o

poder corruptível, i.e., a qualidade imoral das peças de Shakespeare, aliadas à

deplorada “impessoalidade” ou falta de compaixão do dramaturgo pelos

sofrimentos das suas personagens, transformadas em “fonógrafos” – como Hamlet

– de pensamentos já expressos sob a forma de sonetos238, não esclarecem em que

sentido é que respostas emocionais ou afectivas a tragédias podem ser morais ou

imorais. Do mesmo modo, não esclarecem como pode a tragédia, ou qualquer

produção artística, “elucidar a religião” e estimular a capacidade “de distinguir

entre o bem e o mal”, ou seja, refinar a consciência moral de uma audiência

enformada por outros valores, sem se tornar alegórica, apologética, propaganda ou

uma “secção da farmacopeia”239. Tolstoi não mostra de facto como “suscitar a

simpatia pelas pessoas representadas” é um efeito de “se acreditar naquilo que se

237 Wittgenstein, IF, I, §241-242. 238 Os solilóquios de Hamlet sobre a vida e a morte (“ser ou não ser”), já expressos no soneto

LXVI, fazem dele o “fonógrafo de Shakespeare” (ST, pp. 411-413). 239 Contra a premissa instrumentalista de que a arte tem valor quando tem uma função F,

Collingwood declara: “As obras de arte não são uma secção da Farmacopeia.” R. G. Collingwood, Principles of Art, Oxford: OUP, 1938, p. 4.

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está a descrever”, nem de que modo pode esta experiência elucidar conceitos

morais, ou refinar a consciência religiosa da sua audiência. Afirmar de uma obra

artística que ela é uma “descrição verdadeira de formas de vida” (como o “poema”

de Homero) não implicará também avaliar a arte, e em particular uma obra

literária, pelo conhecimento que esta possa transmitir, contribuindo desta forma

para o “bem comum”? Não significará isto, em suma, que se está demasiado

próximo de esquecer a advertência de Wittgenstein de que, mesmo se “composta

na linguagem de informação, ela não se usa no jogo de linguagem de dar

informação”240?

Por outro lado – e para regressar à sugestão de que dificuldades como

estas resultam da defesa de uma concepção de literatura como a afirmação de

princípios éticos, isto é, contrária à “visão de que a literatura nos deverá presentear

com a ilusão de pessoas reais”241 –, parece-me importante começar por esclarecer

este ponto, uma vez que tais dificuldades resultam do modo como Tolstoi

argumenta que Lear não cumpre as condições da obra dramática estipuladas pelos

próprios críticos que a elegeram como modelo de imitação: “que as pessoas

representadas, como resultado dos seus caracteres, das acções e do curso natural

de eventos, sejam colocadas em situações nas quais, entrando em conflito com o

mundo, revelem as suas qualidades internas” (ST, 420, Maude). Um dos

argumentos mais paradoxais deste ensaio para afirmar uma outra ‘lei negativa’

(i.e. Rei Lear não é a obra que a crítica consagrou), e com ela impugnar o cânone,

é a asserção sobre a falta de unidade dramática de Rei Lear, particularmente se

tivermos em mente a reputada rejeição tolstoiana de quaisquer prescrições das

240 Wittgenstein, Fichas (Zettel), Ana Berhan da Costa (trad.), Artur Morão (rev.), Lisboa:

Edições 70, 1989, §160. 241 A. N. Wilson, op. cit., p. 478.

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poéticas clássicas. Por este motivo, importa agora identificar os aspectos principais

da crítica de Tolstoi ao deficiente valor estético do corpus shakespeareano.

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Da minuciosa crítica de Tolstoi à tragédia seleccionada como

paradigmática do método de Shakespeare, um dos aspectos que mais suscita as

objecções do autor é o de que, ao contrário das leis dramáticas invocadas pelos

encomiastas nos seus panegíricos de Shakespeare, os conflitos das personagens de

Rei Lear são conflitos “externos”, e não internos: não resultam nem das situações

em que são colocadas nem dos caracteres que lhes foram atribuídos, mas da

vontade arbitrária do autor (ST, 400). Daí que se constate que esta arbitrariedade

não permite aos protagonistas da tragédia de Lear revelarem as suas qualidades

“no processo de desatar o nó trágico”242.

Num estranho sumário de Rei Lear, flagrantemente menos incontroverso

do que o pretendido, e que lembra aquilo a que a teoria da literatura consagraria

como uma técnica literária243, Tolstoi começa por descrever a acção da peça de um

modo semelhante ao que utiliza em OQA? para descrever as suas idas à ópera244: a

242 “O teatro, em vez de descrever a vida inteira de um homem, deve colocá-lo numa tal posição e

atar um tal nó que o homem revele as suas qualidade durante o seu processo de desatar o nó.” (Tolstoi citado em Christian, Tolstoy: A Critical Introduction, p. 258).

243 A célebre definição de Viktor Chklovski da arte como um processo, ou conjunto de procedimentos para “tornar estranho o familiar”, ao intensificar a dificuldade e duração da percepção, e fazendo-nos “sentir os objectos, sentir que a pedra é pedra”, é ilustrada através de vários exemplos da obra ficcional e diarística de Tolstoi. A técnica da “representação singular” de Tolstoi consiste: “em vez de chamar o objecto pelo seu nome, o descrever como se o visse pela primeira vez, ou, no caso de um acontecimento, como se este ocorresse pela primeira vez.” “L’art comme procedé” [“Iskusstvo kak priem”], Sur la théorie de la prose [O teorii prozy, 1929], Guy Verret (trad.), Lausanne: Editions L’Age d’Homme, 1973, p. 17, itálicos meus.

244 A ópera anónima sobre um rei Indiano (possivelmente Feramors, de Anton Rubinstein?), do capítulo I, e o Anel do Nibelungo, do capítulo XIII. Tolstoi remete ainda para um dos apêndices o sumário, da sua autoria, dos quatro libretos do ciclo de Nibelungen, aconselhando o seu leitor, no caso (desejável) de não ter lido as obras originais, a consultá-lo, “de modo a

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adopção de um ponto de vista estranho, que transforma a sala de espectáculo

nalguma coisa absurda (mas também cómica). No caso do resumo de Lear, é

descrita uma sucessão de cenas arbitrárias onde desfilam personagens sem

carácter, numa versão grotesca do “modelo perfeito da arte dramática” que,

segundo Shelley, Rei Lear exemplificaria (ST, 377). Um exemplo condensado do

modo como Tolstoi, ao longo da sua paráfrase do “conteúdo de Lear”, vai

transgredindo o que proclama ser o princípio de uma apresentação “tão imparcial

quanto possível” é a descrição de uma das cenas na floresta, terceiro acto:

A cena IV passa-se novamente na floresta, diante da cabana. Kent convida

Lear para entrar na cabana, mas Lear responde que não tem qualquer motivo para se abrigar da tempestade, que não a sente porque a tempestade da sua mente, provocada pela ingratidão das suas filhas, subjuga tudo o mais. Este sentimento genuíno, se fosse expresso em palavras simples, poderia suscitar compaixão, mas torna-se imperceptível e perde o seu significado no meio das infindas tiradas delirantes e grandiloquentes de Lear.

A cabana para onde Lear é conduzido acaba por ser a mesma onde Edgar se tinha anteriormente abrigado, disfarçado de louco, ou seja, nu. Edgar sai da cabana e, apesar de todos os que ali estão o conhecerem, ninguém o reconhece, da mesma forma que ninguém tinha antes reconhecido Kent; e Edgar, Lear e o Bobo dão início à sua conversa sem sentido [bessmyslennye retchi], que se prolonga, com interrupções, durante seis páginas. (ST, 406, Maude]

Além da putativa violação da regra das unidades clássica (ou do teatro

“pseudo-clássico”) e das proezas técnicas que Shakespeare exibe de modo a agitar

momentaneamente as emoções do seu público245, a acusação mais grave que recai

sobre Rei Lear é, contudo, a de as suas personagens não agirem nem falarem de

acordo com as suas naturezas, mas de acordo com a vontade arbitrária do seu

formar uma ideia sobre esta extraordinária obra.” Imediatamente, o sentido da adjectivação é clarificado: “É um exemplo de uma contrafacção poética, grotesca ao ponto de ser ridícula” (OQA?, pp. 103-104).

245 As proezas de Shakespeare são essencialmente, segundo Tolstoi, as proezas de um actor e de um homem do espectáculo experiente. As acrobacias oratórias; as oscilações na expressão das emoções e sentimentos das personagens principais – em contraste com as secundárias, mais comedidas e conformes à natureza –; a preferência pela imitação de tipos, gestos, expressões e acções descomedidas, que se adaptam melhor à produção de espectáculo e permitem aos actores exibir os seus dotes expressivos, são expedientes que servem para agitar – momentaneamente – as reacções emotivas dos seus espectadores. Porém, não são estes truques que permitem “revelar o carácter de uma personagem.” (cf. ST, p. 416)

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autor. Para Tolstoi, Shakespeare está mais interessado na busca de efeitos do que

em atribuir carácter às suas criações; “o leitor ou o espectador não só não

consegue simpatizar com os seus sofrimentos como também não consegue sequer

sentir qualquer interesse naquilo que está a ler ou a ver” (ST, 401). Gloucester, por

exemplo, reconhece o filho ilegítimo num discurso que não pretende imitar o

desprezo de que Edmund é alvo pela sua condição de bastardo, como defendem os

críticos consultados por Tolstoi. Serve simplesmente para comunicar ao público,

de um modo burlesco, “incongruente com a sua posição”, que tem um filho

legítimo e outro ilegítimo (I, i). Na cena da divisão do reino (I, ii), a resposta de

Cordelia, a qual deverá exibir, por oposição às irmãs, todas as virtudes dos

caracteres superiores, é formulada “como que para deliberadamente exasperar o

pai” (ST, 380). Quando comparada com a Cordelia da crónica original anónima,

que “se limita a afirmar que não consegue exprimir o seu amor por palavras, mas

espera que as suas acções o demonstrem”, a Cordelia de Shakespeare distingue-se

pela resposta “leviana” e “inteiramente despropositada” [soverchenno neumestno]

(ST, 406). Esta resposta, crucial para o desenvolvimento da acção de Lear, não é

motivada, na leitura de Tolstoi, a não ser por um aparente e inexplicável “capricho

momentâneo”, o que tem ainda a consequência nefasta de transformar a reacção de

Lear numa resposta desajustada: a sua ira diante da “resposta leviana” de Cordelia

e o exílio a que vota a filha predilecta aparecem como desprovidos de motivo. O

mesmo não se verifica na crónica original, onde a reacção de Lear tem um motivo

claro, pelo menos do ponto de vista de Tolstoi: a resposta “sincera” de Cordelia

frustra o “plano astuto” de Lear para manter a filha favorita na ilha246. Outro

246 Em contraste com o Lear de Shakespeare, o Leire da crónica anónima tem, na leitura de

Tolstoi, um motivo claro para resignar ao trono: manter a filha predilecta junto a si. O “plano arguto” é revelado a Perillus (Kent no Lear de Shakespeare), antes da cena do “teste do amor” e da divisão do reino. Ao contrário de Goneril e de Regan, que estão prometidas em

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exemplo desta caracterização “artificial” é a similaridade absoluta entre Lear e

Gloucester247, patente desde o início, quando, ainda na mesma cena, Lear reage às

respostas falsas das outras filhas. Além de idêntica à de Gloucester, o qual, diante

da improvável carta que o filho bastardo faz surgir, “acredita instantaneamente que

o seu filho Edgar, a quem ama extremosamente, o quer matar!” (ST, 381), é tão

pouco verosímil quanto a daquele: “[N]enhum leitor ou espectador consegue

acreditar que um rei, por muito idoso e senil que possa estar, fosse capaz de

acreditar nas palavras de filhas malvadas com quem tinha vivido toda a sua vida e

não confiasse na filha amada, mas antes a amaldiçoasse e a exilasse” (ST, 381).

Se, de acordo com os critérios de unidade invocados, os conflitos das

personagens da tragédia shakespeareana “não resulta[m] do curso natural dos

acontecimentos nem dos caracteres que lhes são atribuídos” (ST, 400), também os

discursos servem para acentuar ainda mais a desadequação entre caracteres e

acções, por um lado, e caracteres e palavras, por outro. Todos os protagonistas não

só sofrem de “incontinência linguística”, como se exprimem numa linguagem

artificial e impessoal, sem carácter [beskharakternom] – a linguagem “que

nenhum ser vivo alguma vez falou ou possa vir a falar” e que não permite revelar

as particularidades da natureza de cada um:

casamento, Cordelia recusa-se a casar com os pretendentes sugeridos pelo pai, por não os amar. Com receio de que a filha predilecta acabe por casar com algum rei distante, Lear resolve forjar o teste. Na expectativa de que Cordelia, que não está prometida a ninguém, responda como seria de esperar – isto é, que o ama mais do que qualquer outra pessoa ou então que o ama tanto quanto as suas irmãs prometidas afirmam amá-lo – Lear planeia pedir-lhe, como prova do amor filial que professa, para que se case com um príncipe designado por si. (ST, 405-406) Pelo menos, este é o sumário que Tolstoi faz do”esquema arguto” do rei da única fonte que cita, e que é o antecessor mais óbvio do Lear de Shakespeare, The True Chronicle Hystorie of Leire, King of England, and His Three Daughters, Gonerill, Ragan, and Cordella, publicado em 1605. É de referir que, ao contrário de outras versões da lenda de Lear, a fonte citada por Tolstoi oferece um motivo explícito para a resposta de Cordelia e para a sua afronta ao pai: ela não quer casar-se a não ser por amor.

247 “A similaridade absoluta entre a relação de Lear e as suas filhas e a de Gloucester e os seus filhos faz-nos sentir ainda mais agudamente que os dois casos são concebidos artificialmente e não resultam dos próprios caracteres ou do curso natural dos acontecimentos.” (ST, p. 401)

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Aqueles que estão enamorados, aqueles que estão diante da morte,

aqueles que estão a lutar, aqueles que estão a morrer, todos se alongam extraordinária e surpreendentemente sobre assuntos inteiramente desligados da acção, naquilo que são discursos mais sugeridos por rimas, trocadilhos, do que por pensamentos.

E todos falam do mesmo modo. Lear delira exactamente como Edgar delira na sua loucura simulada. Kent e o Bobo exprimem-se da mesma maneira. Os discursos de qualquer uma das personagens podem ser colocados na boca de outra qualquer e pela natureza do discurso é impossível distinguir quem está a falar. (ST, 404)

Embora as personagens se exprimam em discursos cujo sentido é

engendrado essencialmente “pela harmonia ou dissonância das palavras” (ST,

390), e não por pensamentos, sendo esta a linguagem característica de

Shakespeare, Tolstoi concede que nem tudo é artifício na tragédia de Rei Lear. Há

momentos em que as personagens parecem animadas de espírito genuíno: por

exemplo, quando Lear amaldiçoa as filhas no momento em que negoceiam o seu

séquito (II, iv). Contudo, “estas palavras”, acrescenta Tolstoi, “ficam perdidas no

meio dos longos discursos bombásticos que Lear profere ininterruptamente, sem

qualquer rima ou sentido” (ST, 383). Os seus discursos incoerentes, esteja ou não

louco, sejam as pragas que roga às filhas ingratas, ou os jogos de palavras e rimas

que troca com o Bobo ou com Edgar, acabam apenas por conseguir, no primeiro

caso, anular “qualquer sentimento genuíno de terror e dor que a ingratidão de uma

filha possa suscitar num pai comedido” e, no segundo caso, provocar no “leitor e

no espectador um estranho desconforto semelhante ao que se experimenta ao ouvir

uma piada sem graça” (ST, 382)248.

Ao sacrifício da “naturalidade” dos discursos em benefício da produção

de efeitos cénicos (e.g. a troca frenética de disparates entre Edgar, Lear e o Bobo,

248 Recorde-se que o domínio da actividade artística é, na descrição de Tolstoi, um conjunto

heteróclito, nele incluindo-se os sentimentos de comicidade suscitados por uma “boa anedota”. Cf. OQA?, p. 39.

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na floresta, cenas às quais Tolstoi regressa continuamente249), acrescenta-se uma

construção desleixada. Esta é tanto ou mais grave quanto não sucederem os

reconhecimentos que deveriam suceder, de acordo com o princípio da necessidade

e da verosimilhança: os pais não reconhecem os filhos fiéis, os monarcas não

reconhecem os súbditos fiéis, todos se disfarçam e ninguém reconhece ninguém,

de acordo, fundamentalmente, com a lógica de Tolstoi, que objecta com igual

intensidade ao facto de Edgar adiar dar-se a conhecer ao pai cego e ao de este não

reconhecer o filho pela voz250.

A qualidade episódica da construção é também evidenciada pela

proliferação de acções gratuitas, tão pouco inteligíveis quanto os longos discursos,

cujo sentido é apenas causado por “sons harmónicos ou contrastantes”. Assim,

Edgar é persuadido, sem motivo aparente, a simular um duelo com Edmund, para

em seguida fugir inexplicavelmente do pai; Kent ataca gratuitamente Oswald, num

acto tão pouco conforme à sua natureza quanto os continuados impropérios que

lança inexplicavelmente ao lacaio; a súbita partida de Gloucester para Dover, cuja

única finalidade é a representação do salto imaginário que desafia qualquer lógica

(e moral), e cujo único resultado é um novo disfarce para que Edgar continue a

ocultar a sua identidade do pai cego e arrependido, convencendo-o da existência

do diabo.

Muitos outros exemplos são oferecidos para se mostrar que Lear não

cumpre os requisitos da tragédia, de acordo com as leis clássicas invocadas pelos

249 Contraste-se a qualidade “extraordinária” destas cenas com a da viagem ao “centro da floresta”

de Olenin , quando a sua epifania sobre a felicidade pagã (i.e. comunhão com a natureza) se transforma num momento uncanny, de inesperada dissonância, que culmina com uma prece a Deus: “queria muito viver, viver para realizar um acto de abnegação.” Cf. Tolstoi, Cossacos, Novela do Cáucaso [, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad., notas), Lisboa: Relógio d’Água, 2010, cap. 20.

250 Mais uma vez, a análise de Stanley Cavell a Lear poderia servir para mostrar as limitações desta leitura lógica. Cf. “The Avoidance of Love”.

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seus encomiastas, e que Shakespeare não é o grande criador de personagens “tão

reais como as pessoas” que, “ao exprimirem a particularidade de um indivíduo,

exprimem as particularidades do homem em geral” (ST, 403).

É ainda curioso verificar que aquele que é para Platão um dos valores

negativos da imitação trágica e épica – o facto de os poetas imitarem as falas dos

outros, “distraindo o nosso pensamento” – é invocado por Tolstoi, neste ensaio,

como uma das qualidades positivas de qualquer produção artística verdadeira, e

não exclusiva, como estipula Platão, da narrativa do poeta ou do orador moderado

que imita homens superiores. A ausência desta mesma qualidade, particularmente

relevante quando se trata da imitação trágica, é o aspecto que, de acordo com

Tolstoi, contribui para a sensação de que “em Shakespeare não se fala a linguagem

dos seres vivos, a linguagem que na tragédia é o principal meio para diferenciar os

caracteres” (ST, 404).

Esta acusação não se aplica apenas a Rei Lear, mas estende-se a todo o

corpus shakespeareano. À excepção de umas escassas personagens secundárias,

como Polonius, em Hamlet, ou Portia, em O Mercador de Veneza, e de Falstaff, o

qual, numa concessão rara, e significativa, ao talento de Shakespeare, Tolstoi diz

ser a sua “única personagem inteiramente natural e coerente” (ST, 412)251, todos os

protagonistas de Shakespeare são desprovidos da qualidade que distingue

personagens “multifacetadas como os caracteres de pessoas vivas [kak kharaktery

jivykh liudei] de aglomerados de palavras ou de adereços: individualidade ou

251 Num outro passo, Tolstoi condescende a respeito de Otelo, a tragédia “menos má, menos

sobrecarregada com prolixidades pomposas”. Apesar de a comparação com o “romance italiano” que lhe deu origem ser, inevitavelmente, pouco abonatória para a versão de Shakespeare, as “transformações infelizes” por que passou o protagonista epónimo não lhe retiraram por inteiro a “unidade de carácter”: Otelo permanece “uma pessoa com carácter” [litso eto vse-taki ostaetsia kharakterom] (ST, p. 411).

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carácter [kharakternosti] (ST, 402)252.

E, sem caracteres, as personagens de Shakespeare não agem conforme as

suas naturezas, superiores ou inferiores (que, à excepção de Falstaff, não

possuem), mas conforme a vontade arbitrária do seu criador. Daqui decorre, para

Tolstoi, que os conflitos externos (ou sofrimentos) das personagens de Lear não

suscitem o efeito trágico – terror ou piedade –, mas, ao invés, um “sentido de

absurdo”, o que não permite, em suma, produzir o que se diz ser a principal

condição da arte: a criação de uma ilusão (ST, 400-401).

A estipulação de que a condição principal da arte é a criação de uma

ilusão é em si surpreendente, e não apenas por presumivelmente denotar tudo

aquilo que Rei Lear não é. Em OQA?, o termo “ilusão” ocorre escassas vezes e o

seu sentido é sempre derrogatório. Por um lado, é predicativo de “beleza”

[krasota], a qualidade do que é simplesmente agradável à vista ou do que

proporciona um certo tipo de prazer, tipicamente desinteressado. O que torna

qualquer definição da arte fundada na ideia de beleza tão pouco informativa

quanto uma teoria da alimentação que defina o valor nutricional de certos

alimentos através das reacções subjectivas de quem come exclusivamente por

prazer (Tolstoi reitera ainda que, ao contrário de outras línguas, onde se pode

exprimir o belo e bom através de um mesmo vocábulo, em russo correcto

“krasota” só pode ser aplicado a objectos como caras, paisagens ou estátuas, mas

252 E o caso mais flagrante disto é a personagem mais citada pelos encomiastas para designar a

qualidade extraordinária da caracterização de Shakespeare, Hamlet, “ao qual é impossível sequer atribuir qualquer espécie de carácter” (ST, p. 414). Esta é uma das afirmações de Tolstoi que, segundo Wilson Knight, chamam a atenção para os aspectos mais óbvios e por isso os mais importantes: “Exactamente. Tolstoi vê a verdade.” Hamlet não é um mero protagonista, ele é a peça inteira [...] A sua mente poderosa penetra até ao âmago do seu objecto de estudo: as suas conclusões podem ser erradas, mas o seu erro vale mais do que a ‘verdade’ da maioria dos críticos.” (G. Wilson Knight, “Tolstoy’s Attack on Shakespeare”, pp. 285, 291).

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não a acções, pensamentos, caracteres, poemas, romances ou melodias253). Por

outro lado, o termo “ilusão” denota também a qualidade decadente das poéticas

simbolistas, assentes em jogos de linguagem ininteligíveis, a partir das quais se

tornou impossível escrever poesia a não ser “apenas para duas pessoas, ou mesmo

uma – o meu melhor amigo, ou eu mesmo” (OQA?, 79).

Por este motivo, é surpreendente que Tolstoi recupere este termo, com o

qual em OQA? pretende demolir dois séculos de abordagem filosófica à arte (ou

ao que é agradável a uns, mas não a outros), para a sua crítica a Shakespeare (o

criador por excelência de ilusões) e faça dele o conceito-chave da sua descrição da

tragédia:

Qualquer produção artística poética, em particular uma obra dramática,

deve antes de tudo evocar no leitor ou no espectador a ilusão de que aquilo que as pessoas representadas estão a viver e a experimentar está a ser vivido e experimentado por ele mesmo. E, para este efeito, não é tão importante para o dramaturgo saber precisamente o que deve pôr as suas personagens a dizer ou a fazer, quanto saber o que não deve pô-las a dizer ou a fazer a fim de não estragar a ilusão ao leitor ou espectador. Não importa quão eloquentes e profundos sejam, colocar discursos nas bocas das suas personagens, quando estes são supérfluos e incongruentes com a sua situação e com os seus caracteres, é algo que vicia a condição principal da criação dramática – a ilusão, através da qual o leitor ou espectador experimenta os sentimentos das pessoas representadas. É possível deixar muito por dizer sem destruir a ilusão: o próprio leitor ou espectador fornecerá o que é preciso e, por vezes, em resultado disto a sua ilusão será ainda intensificada; mas dizer o que é supérfluo é o mesmo que puxar e estilhaçar uma estátua constituída de pequenas peças ou o mesmo que tirar a lâmpada da lanterna mágica. A atenção do leitor ou do espectador dispersa-se; o leitor vê o autor, o espectador vê o actor, a ilusão perde-se, e recriá-la é por vezes impossível. E, consequentemente, a nenhum artista, e muito menos a um dramaturgo, poderá faltar o sentido de proporção. E Shakespeare é inteiramente desprovido deste sentido. [...] Não importa o que as pessoas possam dizer, não importa o quão deslumbradas possam ficar pelas obras de Shakespeare, não importa quais os méritos que lhes atribuam, é indubitável que ele não era um artista e que as suas obras não são produções artísticas. Nunca existiu, nem nunca poderia existir, um artista sem sentido de proporção, tal como não pode existir um músico sem noção de ritmo. E Shakespeare pode ser tudo o que quiserem, mas não é um artista. (ST, 417, Maude)

253 Cf. OQA?, pp. 14-15.

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A esta descrição tão radical com a qual se pretende excluir do domínio da

arte as tragédias de Shakespeare poder-se-ia responder que Tolstoi deveria ter feito

com Lear aquilo que, após constatar a impossibilidade de explicar o conteúdo de

Anna Karenina a não ser através da escrita do mesmo romance, propunha como

única alternativa à ‘heresia da paráfrase’ e da impossibilidade de a crítica literária

traduzir o sentido de uma obra literária: “[Q]ualquer ideia expressa separadamente

por palavras perde o seu significado; torna-se terrivelmente corrompida quando é

retirada da conexão onde ocorre. Esta conexão não é em si fundada numa ideia,

creio, mas numa outra coisa qualquer, e é impossível exprimir directamente a base

dessa conexão por palavras. Apenas pode ser expressa indirectamente, com

palavras a descrever as imagens, as acções, as situações [...] [P]ara a crítica de arte

precisávamos de pessoas que mostrassem o quão absurdo é procurar ideias numa

obra de arte e que guiassem sem fraquejar os leitores através desse infinito

labirinto de conexões que é a essência da arte, na direcção daquelas leis que

servem de base para estas conexões”254.

No âmbito desta proposta, é tentador imaginar que a aplicação de um tal

método crítico, assente num princípio dinâmico de perseguir as ideias no seu

contexto próprio, no terreno das conexões da arte, “cruzando-o em todas as

direcções”, numa abordagem de representação perspícua, possivelmente

coincidente com a adoptada por Wittgenstein nas suas descrições gramaticais255,

254 Carta a Strakhov, 1879, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 297, itálicos meus. 255 “– A representação panorâmica facilita a compreensão, a qual de facto consiste em ‘vermos as

conexões’. Daí a importância de se encontrar e de se inventar termos intermédios” (IF, I, §122). Recorde-se também a abordagem de Wittgenstein, em “Observações sobre o Golden Bough de Frazer”, às expressões do homem no seu “modo ritual” e a ênfase, contra o método científico de Frazer, na mesma ideia central de “representação das conexões”: “O conceito de representação panorâmica é de fundamental importância para nós. [...] Esta representação panorâmica facilita a compreensão que consiste precisamente no facto de ‘ver as conexões’. Dai a importância de encontrar elos de ligação”. (“Bemerkungen über Frazers Golden Bough”, Philosophical Occasions, 1912-1951 p. 133). O método caleidoscópico de “ver as conexões” é para Wittgenstein indissociável da forma assistemática que as suas investigações

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tenha conduzido Tolstoi a outras conclusões sobre a linguagem impessoal e

amoral de Shakespeare. Ao percorrer o “infinito labirinto de conexões” de Rei

Lear, o labirinto de caminhos que constituem a morada das ideias e das

palavras256, sem tentar parafrasear e exprimir directamente o “conteúdo” de Lear,

Tolstoi talvez tivesse constatado a pertinência daquela importante lição que Pierre,

em Guerra e Paz, aprende com as histórias irrepetíveis e imparafraseáveis de

Platon Karataev, a lição de que as palavras, que parecem contraditórias ou

insignificantes quando isoladas, “no seu contexto, eram justas” e adquiriam “o

significado de uma sabedoria profunda”257. Poderemos até supor que, considerados

no seu contexto, os discursos e diálogos de Lear ou do Bobo surgissem aos olhos

de Tolstoi, não como sons sem sentido, “somente sugeridos por rimas e

trocadilhos”, mas providos de sentido e animados pelo pensamento,

particularmente se levasse também em conta um outro princípio, por si

anteriormente invocado para abordar obras classificadas de “puramente literárias”.

Se é verdade que “o maior interesse que a leitura proporciona é o carácter do autor

como expresso nessa obra”, outros casos há “em que o autor mascara o seu ponto

de vista ou o altera inúmeras vezes”258. (E recorde-se que, na mesma época em que

escrevia Anna Karenina, orgulhando-se, momentaneamente, da sua simplicidade e

das abóbadas invisíveis da sua arquitectura259, e constatava a futilidade de tentar

singularizar uma qualquer ideia fora do “labirinto de conexões da arte”, Tolstoi

assumem: “As observações filosóficas deste livro são comparáveis a um conjunto de esboços paisagísticos surgidos ao longo destas enredas e longas viagens.” (Prefácio a IF, p. 166)

256 Wittgenstein usa as metáforas espaciais do “labirinto”, da “cidade”, da “casa”, da “paisagem”, do “terreno” para designar a linguagem, mas também a natureza da sua investigação: “A linguagem é um labirinto de caminhos. Vindo de um lado, conheces o caminho; vindo de outro lado, mas para o mesmo ponto, já não conheces o caminho.” (IF, I, §203, cf. §18)

257 Tolstoi, Guerra e Paz, Livro IV, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Lisboa: Editorial Presença, 2005, p. 60.

258 Citado em Christian, Tolstoy: A Critical Introduction, p. 40. 259 Cf. Carta a A. A. Tolstaia, 1874; Carta a Strakhov, 1876; e Carta a Rachinksi, 1878, in

Tolstoy’s Letters, vol. I, pp. 268, 296-97, 311-12.

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reforçava outra ideia: “qualquer obra, qualquer história, impressiona

verdadeiramente quando é impossível discernir com quem o autor simpatiza. E

assim tive de escrever tudo de uma forma tal que não fosse discernível”260.) As

hipóteses acima mencionadas poderão ser apelativas. Explorá-las poderia servir

para mitigar os excessos analíticos provocados pela concentração da “visão

directa”261 de Tolstoi-leitor sobre Rei Lear. Poderiam, quem sabe, redimir ST das

inconsistências resultantes da defesa do argumento antigo (em si razoável) de que

uma falha ética ou moral pode ser uma falha estética ou artística. Pecam, contudo,

não tanto por serem cenários contrafactuais, como por exigirem que se ignore o

principal problema que Tolstoi identifica em Rei Lear: o de as suas personagens

não falarem “a linguagem dos seres vivos, a linguagem que na tragédia é o

principal meio para diferenciar os caracteres.” (ST, 404) Ao contrário do que

sucede com o fluxo de palavras inarticuladas de Platon, indissociáveis do seu

contexto (i.e. da cultura do camponês-cristão) e, como tal, dispensando, ou

inviabilizando, métodos usuais de compreensão (i.e. de interpretação), os

discursos contraditórios de Lear (ou do Bobo) não poderiam adquirir, como

aqueles adquirem na mente de Pierre, o “sentido de uma sabedoria profunda”. Do

ponto de vista de Tolstoi, os sons proferidos por Lear ou o Bobo permanecem

ininteligíveis porque não fluem de uma cultura (aliás, como é frisado repetidas

vezes, anacrónica já à época de Shakespeare) nem são criados para revelar o

carácter das personagens – são meros jogos de palavras.

260 Tolstoi refere-se a Anna Karenina e, em particular, à cena da confissão de Levin. Tolstoi

responde a Obolenski, que lhe perguntara com quem estava a sua simpatia, se com o padre ou com Levin, que estava “inteiramente do lado do padre”, contrariando a expectativa do seu interlocutor (e, possivelmente da esmagadora maioria dos seus leitores). Obolenski, apesar de confirmar que a cena estava de tal modo bem escrita que era impossível identificar com quem estava a simpatia do autor, desconfia que Tolstoi não poderia estar “inteiramente do lado do padre”. A. D. Obolenski citado em Eikhenbaum, Tolstoy in the Seventies [Semidesiatye gody, 1960], Albert Kaspin (trad.), Ardis: Ann Arbor, 1982, p. 134.

261 Isaiah Berlin, “Tolstoy and Enlightenment”, p. 274. Cf. n.r. 178.

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Por outro lado, diante da conclusão de que Shakespeare não deve sequer

ser considerado um artista, poderíamos, como certos críticos sugeriram, responder

simplesmente que Tolstoi deveria ter aprendido mais inglês, lido menos traduções,

mesmo as de Schlegel, e visto mais, e melhores, produções das peças de

Shakespeare.

John Bayley, por exemplo, chama a atenção para a semelhança óbvia

entre o ataque a Lear em ST e o ataque ao Anel dos Nibelungos em OQA?262,

naquela mesma linguagem “maçónica de ‘tornar estranho’, uma espécie de

Esperanto pretensamente transparente”, com a qual Tolstoi visa mostrar a

artificialidade de certas convenções, nomeadamente as da poesia e as da música

programática (ou simplesmente da ópera). Bayley realça duas coisas importantes.

A primeira, que o absurdo a que Tolstoi objecta em Lear não é tanto o absurdo da

língua inglesa, mas o da própria vida; a segunda, que o verdadeiro alvo deste

ataque é, mais do que Tolstoi poderia adivinhar, não a arte contrafeita,

erradamente avaliada como arte própria (e.g. tragédias de Shakespeare ou óperas

de Wagner), mas o mau gosto “que se tornou aceite e padronizado entre produtor e

consumidor”263. É por este motivo que, na mesma linha de Iris Murdoch (a qual

revisita diversas vezes as ideias principais de OQA?, sublinhando que as suas 262 É com a “nova música” de Wagner que Tolstoi mais se empenha em OQA? no exercício, pela

via negativa, de algo que se aproxima a uma crítica de arte. O Anel do Nibelungo, ou melhor, uma produção moscovita do Anel do Nibelungo merece várias páginas num ensaio muito pouco pródigo, à excepção, como já mencionado, dos poetas simbolistas, em apresentar quaisquer razões para as expulsões de praticamente todos os representantes do cânone ocidental. Tal distinção poderá ser em parte explicada não tanto pela deplorada tentativa de Wagner de corrigir a ópera, tornando a música subserviente às exigências da poesia (música programática), como por representar, juntamente com a ópera anónima com que OQA? inicia, a dimensão mais aparatosa e artificial da produção de “espectáculo pelo espectáculo”. Wagner é o paradigma da “falsificação exemplar de uma obra de arte”: “Experimentem sentar-se no escuro durante quatro dias na companhia de pessoas não muito normais, sujeitando o vosso cérebro à influência mais intensa de sons calculados para excitar o cérebro através da afecção intensa dos nervos da audição, e é certo que irão alcançar um estado anormal e acabarão por admirar o absurdo da situação. […] Observei o público durante a performance a que assisti. As pessoas que guiavam a audiência inteira e davam o tom, eram pessoas que já tinham sido hipnotizadas e tinham recaído no estado familiar de hipnose.” (OQA?, p. 111)

263 John Bayley, Tolstoy and the Novel, London: Chatto & Windus, 1966, p. 242.

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muitas excentricidades não obstam a que esta obra exprima, como outras,

filosoficamente mais respeitáveis, não exprimem, ideias profundas e tão

importantes para a discussão sobre a arte264), Bayley acrescenta:”[é] por isso que

muito do que ele tem a dizer sobre a arte é tão relevante hoje”265.

O ponto da observação de Bayley é equilibrado. O mesmo se passa com o

de Peter B. Lewis, quando sugere que, à semelhança de Tolstoi, a incapacidade

professa por Wittgenstein em ler com facilidade Shakespeare, em apreciar a

“objectividade” (ou o ponto de vista neutro) com que apresenta a “dança das

paixões humanas”, poderia ter sido moderada caso o filósofo tivesse assistido a

mais performances de Rei Lear como a que assistiu certa vez em Cambridge. Uma

performance que, como Wittgenstein relata a Maurice Drury, o tinha

impressionado de tal forma que, à saída do teatro, ainda absorvido pelo

espectáculo a que assistira, quase fora atropelado por um táxi. Daí que Lewis

conclua: “[S]e alguma coisa poderia permitir a Wittgenstein ‘vibrar em harmonia’

com Shakespeare teria sido certamente a exposição a mais performances

poderosas como aquela”266.

Contudo, deve ser referido que as dúvidas expressas por Wittgenstein nos

comentários e aforismos coligidos em Vermischte Bemerkungen em relação à

ausência de uma perspectiva moral na poesia de Shakespeare – “um criador da

linguagem” sobre o qual dificilmente se poderá falar do “grande coração” como se

poderá falar de outros artistas que têm alguma coisa para ensinar à humanidade –,

não culminam, como as de Tolstoi, na afirmação radical de que “Shakespeare não

é sequer um artista”. No momento desta afirmação, o argumento de Tolstoi deixa

264 Iris Murdoch, op. cit., p. 9, et passim. Cf. n.r. 234. 265 Bayley, op. cit., pp. 244-245. 266 Peter B. Lewis, “Wittgenstein, Tolstoi, and Shakespeare”, Philosophy and Literature, vol. 29,

no. 2, 2005, p. 253.

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de ser o de que Rei Lear, por todos os motivos já enunciados, uns mais válidos do

que outros, é uma obra dramática medíocre para se tornar o argumento de que não

é sequer uma obra de arte, no sentido estipulado em ST: não cumpre a condição

necessária e suficiente da arte, isto é, não evoca no seu recipiente “a ilusão de que

o que as pessoas representadas estão a viver e a experimentar está a ser vivido e

experimentado por ele mesmo”. Ao assistir ou ao ler Lear, não vemos Lear, mas o

actor que faz de Lear: não há ilusão, apenas actores em palco.

∗∗

Podemos, e é inevitável que assim aconteça, ficar surpreendidos com o

radicalismo do ataque de Tolstoi, com as suas descrições estranhas de Rei Lear, a

redução dos seus cenários, motivos, enredos e personagens a uma sucessão de

episódios arbitrários e diálogos absurdos, sem qualquer tipo de medida ou de

simpatia pelos sofrimentos e revezes das personagens. Poderemos mesmo ficar

escandalizados com a asserção de que as personagens de Lear são desprovidas de

carácter e de linguagem, transformadas em fonógrafos da voz amoral do seu

criador, marionetas nas mãos de um ilusionista que tira sem parar truques da

cartola até extinguir a ilusão de que estamos diante de “pessoas tão reais como

nós” – até comprovar o princípio tolstoiano (mas também platónico) de que,

enquanto “a pseudo-arte é sempre mais ostentatória, a verdadeira arte é modesta”

(OQA?, 120). Poderemos finalmente não partilhar do ponto de vista que associa

dogma religioso a juízo estético, ou levar a sério a reivindicação de que a entrada

de Shakespeare para o cânone se deve unicamente a uma sugestão epidémica,

iniciada por um punhado de críticos alemães enfadados com as prescrições das

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poéticas clássicas e do teatro francês. Para mais, quando nos é dito que esta

sugestão epidémica é da mesma espécie daquelas que geraram fenómenos como as

Cruzadas, a prática da tortura para obtenção da verdade, a obsessão das tulipas na

Holanda, o caso Dreyfus, a busca da pedra filosofal, a crença na feitiçaria ou em

Marx, Hegel ou Darwin, sobre a qual se afirma estar já “em declínio” (ST, 528).

A argumentação por reductio ad absurdum com que Tolstoi reduz Rei

Lear a imagens desconexas entre si, onde todos falam e agem como bobos, e a

conclusão paradoxal de que se, por um lado, “falta linguagem a Shakespeare” e “é

evidente que ele não está in earnest; brinca com as palavras (ST, 403, 426), por

outro, o conteúdo das suas obras é “a visão do mundo [mirosozertsanie] mais

baixa e trivial” (ST, 426), não colhem de A. N. Wilson qualquer simpatia: ST é

meramente a “acumulação de mais de quinze mil palavras de puro disparate”267.

Todavia, como temos vindo a sugerir, há outras leituras a fazer.

Em primeiro lugar, pode argumentar-se que estes disparates (e nem todos

são irrelevantes) resultam, como é reivindicado por Tolstoi, de um problema

genuíno com o qual se debateu durante quase toda a sua carreira, desde pelo

menos os primeiros contactos com a obra de Shakespeare através da sua

associação com o grupo literário presidido por Turguenev: “Porque é que

Shakespeare não é o que a sua idolatria pretende?” A constatação de que “Fui

sempre agudamente susceptível às belezas da Poesia em todas as suas formas; mas

eis que as obras de Shakespeare, reconhecidas por todo o mundo culto como obras

do génio artístico, não só não conseguiam agradar-me, como chegavam mesmo a

repugnar-me!” (ST, 376) poderá ser um artifício retórico com o qual um

romancista pretende mascarar uma deficiente familiarização com as convenções

267 A. N. Wilson, op. cit., p. 478.

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do teatro isabelino, da linguagem poética ou de um idioma. Contudo, tais

hipóteses parecem-me remotas por variadas razões268, e aliás assentam num

pressuposto pouco evidente: o de que o libelo contra Shakespeare é motivado pela

defesa dos princípios da arte que Tolstoi pratica, ou seja, das convenções do

romance realista. Este é um dos argumentos de H. O. Mounce para refutar que a

crítica de Tolstoi a Shakespeare seja tão infundada e arbitrária quanto Orwell

pressupõe:

[...] Tolstoi vê Shakespeare como estando constantemente a violar os

princípios da arte que ele próprio pratica. No entanto, é também óbvio, pelo menos quando reflectimos, que ele deve ver na celebração de Shakespeare a celebração de uma arte em conflito com a sua. Isto confere à sua crítica uma orientação [basis] pessoal. Mas não é uma orientação [basis] mesquinha. O que está em jogo, na sua perspectiva, são os padrões da arte à qual devotara a maior parte da sua vida269.

O argumento de que ST se torna mais inteligível quando lido como a

defesa dos padrões do romance realista não me parece ser corroborado pelos

termos em que a crítica a Lear é feita. Por outro lado, não esclarece também o

ponto onde a atitude céptica de Wittgenstein em relação à recepção e ao estatuto

de Shakespeare pode ser entendida como o resultado da sua leitura de Tolstoi.

Tal argumento tem, todavia, estado no centro das leituras de ST, mesmo

das leituras mais benevolentes e interessadas, como as de Mounce. O crítico

shakespeareano Lionel Charles Knights, por exemplo, selecciona o ensaio de

Tolstoi, fruto de uma “mente insensível” ao modo de compreensão que obras

poéticas como Rei Lear requerem, como o mais ilustre representante de uma

268 Relativamente ao domínio insuficiente do inglês, diversos estudos bastariam para questionar

esta hipótese (e.g. Eikhenbaum, Maude, Gibian), para não mencionar o exemplar, na língua original, de Hamlet, profusamente anotado por Tolstoi.

269 Mounce, op. cit, p. 100.

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abordagem não-metafórica de Lear270. Não pretendo (nem saberia) discutir a teoria

da metáfora que L. C. Knights defende, nem o modo como esta determina o

sentido que o crítico inglês atribui à noção de “ilusão artística” invocada por

Tolstoi. Gostaria, porém, de acrescentar que se, por um lado, Knights infere

correctamente, como outros não inferem, que a finalidade da tragédia é, no

contexto de ST, a produção de uma ilusão e que esta depende de um certo tipo de

reacção por parte do público, a conclusão de que esta reacção (i.e. projecção

empática ou identificação com as personagens) está determinada por um critério

de verosimilhança redutor é mais problemática. A conclusão é tanto ou mais

problemática quanto este critério denota, de acordo com Knights, uma prescrição

do teatro naturalista, a partir do qual Tolstoi avaliaria negativamente (i.e. não

compreenderia) qualquer produção artística eminentemente simbólica ou

metafórica. Esta ilação é manifestamente absurda, ainda que possa ser sugerida

pela incapacidade de Tolstoi em voluntariamente “suspender a sua descrença” no

que diz respeito à tragédia de Lear. E isto sem mencionar o facto de que este

argumento contraria a crítica recorrente de Tolstoi às poéticas realistas e

naturalistas, citadas em OQA? como exemplo de técnicas de falsificação da arte, a

saber, de construção de simulacros, meros pastiches ou cópias vazias271.

A descrição da finalidade da tragédia como a produção, no espectador ou

leitor, “da ilusão de que o que as pessoas representadas estão a viver e a

experimentar está a ser vivido e experimentado por ele mesmo” (ST, 417) suscita,

de facto, perplexidade. À perplexidade não será também alheia a insuficiente

clarificação do termo “ilusão”, que tem levado os críticos a interpretá-lo como a

270 L. C. Knights, “King Lear as Metaphor”, Further Explorations. Essays in Criticism. Stanford:

Stanford UP, 1965, p. 173. 271 Cf. OQA?, pp. 84-93.

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confirmação de que os padrões segundo os quais Tolstoi avalia os méritos das

produções dramáticas de Shakespeare são as convenções da forma artística que tão

eximiamente praticara: o romance realista272.

Não sei se a Tolstoi faltava na realidade ouvido poético, ou se não teria as

habilitações necessárias para apreciar o verso de Shakespeare, a musicalidade da

poesia, a textura do som das palavras. Pode dar-se o caso de Tolstoi não ser “tão

sensível à poesia como à música, e de as convenções do verso (se não mesmo da

harmonia e eufonia) constituírem para si um obstáculo tão artificial quanto as

convenções da ópera ou do teatro”273, parodiadas em OQA? e em ST, mas também

na famosa ida ao teatro de Natacha, em Guerra e Paz, quando Tolstoi descreve a

ópera “como se a visse pela primeira vez”274. A cena é evocativa da qualidade

estranha que imprimirá mais tarde à sua descrição da acção de Lear:

A meio do palco havia tábuas lisas, dos lados árvores de cartão pintado,

por trás um telão estendido preso a tábuas. No centro de cena estavam sentadas umas moças de espartilhos vermelhos e saias brancas. Uma delas, muito gorda, de vestido branco de seda, sentava-se à parte, num banquinho baixo a que estava colada, por trás, uma cartolina verde. Todas elas cantavam qualquer coisa. Quando terminaram a sua canção, a moça de branco aproximou-se do lugar do ponto e foi juntar-se a ela um homem de calças justas de seda nas pernas gordas, com penacho e punhal, que começou a cantar e a abrir os braços.

O homem das calças justas cantou sozinho, depois cantou ela. Depois calaram-se os dois, tocou a música, o homem pôs-se a apalpar com os dedos a mão da rapariga de branco, pelos vistos à espera do compasso para cantar um dueto com ela. Cantaram em duo, todo o público começou a bater palmas e a gritar, e o homem e a mulher, que representavam em palco um par de namorados, puseram-se às vénias ao público, sorrindo, abrindo os braços.

[...]

272 George Steiner identifica o problema de se associar o repúdio de Rei Lear ao facto de este não

ser conforme às convenções do realismo ou do naturalismo: “Não importa por que motivos exactos, Tolstoi martelou com insistência no ponto óbvio de que há em Rei Lear acontecimentos revoltantes e mesmo inexplicáveis. [...] Mas Tolstoi não repudiou o drama shakespeareano meramente por este não ser ‘naturalista’. Ele era um escritor demasiado grande e subtil para não se aperceber de que a visão de Shakespeare ia para além de quaisquer critérios básicos de realismo.” (Steiner, op. cit., p. 121)

273 R. F. Christian, Tolstoy: A Critical Introduction, p. 254. 274 Um dos exemplos que V. Chklovski oferece da variante tolstoiana de representação singular é

a cena da ida ao teatro de Natacha, da qual cita várias passagens, incluindo as que são aqui transcritas no corpo do texto. Cf. Chklovski ,”L’art comme procedé”, p. 17.

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No segundo acto, os cenários de cartão representavam monumentos, um buraco no telão era a lua; ergueram-se quebra-luzes na ribalta e, em sons graves, atacaram a música os cornetins e os contrabaixos; da esquerda e da direita saíram para o palco muitas pessoas de mantos pretos. As pessoas, empunhando uma espécie de punhais, começaram a abanar as mãos; depois chegaram a correr mais umas pessoas quaisquer e puseram-se a arrastar para fora aquela moça de branco que agora estava de azul celeste. Não a levaram logo, primeiro ainda cantaram demoradamente com ela e só depois a arrastaram, e logo nos bastidores bateram três vezes em qualquer coisa de ferro e toda aquela gente se ajoelhou e se pôs a cantar uma oração.”275

Poderá também ser o caso que, de acordo com os critérios de Tolstoi,

qualquer produção poética – que não os hinos védicos, os salmos

veterotestamentários, ou as cantigas populares – seja um sintoma da decadência

que assolou a cultura ocidental num dado momento histórico (o Renascimento), a

partir do qual escrever poesia, ou melhor, poesia inteligível que não apenas para

“o meu melhor amigo, ou eu mesmo” (OQA?, 79), se tornou progressivamente

impossível. Estas hipóteses não esgotam, porém, os problemas que ST coloca,

embora o modo como Tolstoi apresenta o seu caso contra Shakespeare, ou contra

os poetas simbolistas em OQA?, convide a que seja associado à incapacidade de se

movimentar numa tradição, ao desconhecimento de certas convenções ou,

simplesmente, como R. F. Christian constata, a “uma surpreendente falta de

sensibilidade poética”276. Quando Tolstoi reitera que Lear é ininteligível, ou

quando reduz os poemas de Verlaine a “uma sucessão de comparações e palavras

falsas” (OQA?, 70), sublinhando que como qualquer pessoa sabe “a lua não morre

nem vive num céu de latão, nem a neve pode brilhar como a areia”277, não está a

275 Tolstoi, Guerra e Paz, Livro II, pp. 375, 337-378. 276 Christian, loc. cit. Por seu lado, Eikhenbaum repudia a noção divulgada de que Tolstoi seria

insensível à poesia, esforçando-se por demonstrar – porventura, de uma forma não inteiramente bem sucedida – o papel crucial da poesia lírica, nomeadamente de Puchkin, Tiutchev e Fet, nas experiências literárias de Tolstoi e, em particular, nos recursos criativos de Anna Karenina. Cf. Eikhenbaum, Tolstoy in the Seventies, pp. 153-162.

277 Às comparações e metáforas de Ariettes oubliées – VIII, e.g. “Dans l’ interminable / Ennui de la plaine / La neige incertaine / Luit comme du sable // Le ciel est de cuivre / Sans lueur aucune, / On croirait voir vivre / Et mourir la lune.” Tolstoi contrapõe: “Como é que a lua vive

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demonstrar um putativo défice de compreensão da linguagem em modo metafórico

ou a censurar tropos ou usos não literais da linguagem. Ao identificar as

armadilhas em que caímos quando confundimos usos metafóricos com usos não-

metafóricos das palavras, levando-nos a ver a sua falta de sentido, Tolstoi está a

descrever modos importantes como a linguagem funciona e a travar, no seu

terreno e à sua maneira, o mesmo combate de Wittgenstein – o “combate contra o

embruxamento do intelecto pelos meios da nossa linguagem” (IF, I, §109).

Nos momentos em que Tolstoi critica o recurso a convenções artísticas

como, por exemplo, o “verso branco”278, ou mostra, através de Nikolai Irtenev

(Infância), como se pode aprender a mentir através da poesia para obter a

aprovação da audiência279, está por outro lado a criticar a finalidade de certas

estratégias, o espírito com que certas actividades são empreendidas – na expressão

de Chklovski, a “atingir a nossa consciência moral”280. Se não faz sentido avaliar a

relevância de uma obra de arte pelas informações que possa, por exemplo,

transmitir sobre um dado período histórico, Tolstoi repetidas vezes diz-nos que

também não deverá ser pelo grau de sucesso do poeta em mascarar, recorrendo a

e morre num céu de latão, e como é que a neve brilha como a areia?”. (OQA?, p. 70, em francês no original) Note-se que Tolstoi, numa carta a Fet, um dos seus poetas dilectos, elogia um dos poemas do amigo “Entre as Estrelas”, enaltecendo o recurso à personificação das estrelas para expressar de modo “filosoficamente poético” o quão reconfortante é para o homem erguer a face “em direcção a nós, em direcção à nossa infinitude, onde tudo é esplêndido e radiante”. O veredicto de Tolstoi é claro: “É excelente que sejam as estrelas a dizê-lo”. Carta a Fet, 1876, citada em Eikhenbaum, idem, p. 156.

278 Numa carta a N. Strakhov, Tolstoi diz o seguinte: “Enquando lia esta abominação [uma peça de D. V. Averkiev] compreendi para que serve o verso branco. Ostrovski, certa vez, respondeu-me à minha pergunta sobre o motivo por que escreveu Minin em verso: “é preciso distanciar-nos”. Quando um homem não está pessoalmente envolvido naquilo que escreve, escreve em verso branco, e assim a falsidade não é tão flagrantemente visível.” (Carta a N. N. Strakhov, 1875, Tolstoy’s Letters, I, p. 278)

279 Entre os muitos jogos sociais que vemos Nikolai aprender no decorrer da sua infância está a poesia. Durante a escrita do seu primeiro poema, dedicado à avó, Nikolai vê-se confrontado com a espinhosa escolha: rimar ou ser verdadeiro e não dizer, através do seu poema, que gosta da avó “como a mãe querida” (o que é uma afirmação falsa). A escolha da rima, em detrimento da sinceridade, é publicamente aplaudida e o veredicto é que o poema do pequeno Nikolai é “charmant!”. Cf. capítulo 16 “Poesias” de Infância, Adolescência e Juventude.

280 Chklovski, op. cit., p. 17.

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técnicas e convenções, a sua compreensão do que é o bem e o mal, ou o

distanciamento daquilo que descreve: “[se] o autor não sabe quem deve amar e

quem deve odiar; então tão pouco o poderá saber o leitor. E, sem saber isto, o

leitor não consegue sentir qualquer interesse no que é descrito”281. Por outras

palavras, Tolstoi está a afirmar a conexão entre arte e moral, entre o objecto visto

sub specie aeternitatis (a obra literária) e o mundo visto sub specie aeternitatis (a

vida boa). Ainda que a força motriz por detrás do seu libelo contra o drama

shakespeareano seja o reconhecimento de que os valores da arte são atribuídos de

acordo com a consciência religiosa de um dado período, e que a avaliação da arte

através de padrões artísticos ou religiosos e a avaliação de uma religião através de

padrões religiosos ou artísticos deveria ser a mesma coisa, dever-se-á sublinhar,

porém, que isto é “um fim que nenhum indivíduo pode alcançar”282.

Julgo que é neste contexto que deveremos entender a descrição da acção

de Lear, e dos poemas wagnerianos e simbolistas em OQA?, a partir de um ponto

de vista que requer que sejam interpelados com perguntas que normalmente

fazemos em certos contextos, e.g. quando tratamos um poema não como uma

finalidade sem fins, mas como “um homem a falar a outro homem”, e ao qual

podemos, e devemos poder, perguntar – e já não tão wordsworthianamente –

“Quem fala aqui?”, “Quem saiu?”, “Quem entrou?”283.

281 Tolstoi, “Guy de Maupassant”, p. 165. 282 T. S. Eliot, “Os Três Sentidos de ‘Cultura’” (1943), Ensaios Escolhidos, p. 124, itálicos meus. 283 Estas são algumas das perguntas que Tolstoi faz a “Pan”, de Maeterlinck (OQA?, p. 74). O

resultado desta abordagem insólita à poesia chega a ser cómico, como a reacção, acima citada, de Tolstoi a uma das Ariettes de Verlaine permite constatar. Os dotes críticos do autor poderão, contudo, parecer menos atrofiados se tivermos em conta que a crítica de OQA? ao “dogma da obscuridade” das poéticas simbolistas e decadentistas não é uma censura linguística (ao uso de certos vocábulos, e não de outros, vernaculares, por exemplo), mas uma crítica feroz à finalidade da estratégia de nada nomear “trop exactement”: divertir os neófitos com jogos de palavras sofisticados e enfeitiçar os não iniciados. O oposto, portanto, daquilo que Morson, na sua leitura wittgensteiniana de Guerra e Paz, identifica como a finalidade das anti-narrativas de Tolstoi: levar-nos a ver os aspectos das coisas mais importantes que

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Deve também referir-se que a tese dos leitores mais benévolos do Tolstoi

tardio – a qual explica o “ataque ao senso comum” (i.e. a Shakespeare) através do

desconhecimento de convenções linguísticas e de uma insensibilidade à estrutura

musical do verso (confirmada pelo tratamento áspero dos poetas franceses, em

OQA?) – parte da mesma premissa improvável de que a dificuldade professada por

Wittgenstein em ler Shakespeare “com facilidade” (CV, 56e) decorre de um

insuficiente domínio das normas da língua inglesa, para além de pecar por ignorar

a ênfase que o próprio Tolstoi coloca na “peculiaridade” da dicção de

Shakespeare, isto é, do seu estilo poético:

Não importa quão arbitrárias possam ser as situações em que Shakespeare

coloca as suas personagens, não importa o quão pouco natural seja a linguagem que as faz falar, não importa o quão deficiente em individualidade esta possa ser, o movimento do próprio sentimento, a sua intensificação e mudança, bem como a condensação de inúmeros sentimentos contraditórios, muitas vezes expressos correctamente, e de um modo poderoso, nalgumas das cenas de Shakespeare, induzem, nas mãos de bons actores, e pelo menos durante um certo período de tempo, a simpatia pelas pessoas representadas (ST, 415-416, itálicos meus).

A “peculiaridade” identificada por Tolstoi – numa concessão

extraordinária ao génio de Shakespeare – para explicar porque é que aos olhos do

espectador ela poderá sugerir, não o que na realidade é (a evocação e expressão de

sentimentos contraditórios), mas uma “grande mestria na apresentação dos

caracteres”, é um dos momentos que, segundo G. Wilson Knight, mostra as

qualidades críticas de Tolstoi. Os poderes analíticos da “poderosa mente” de

Tolstoi poderão conduzir a conclusões comprovadamente erradas. A sua análise

tem, contudo, a virtude de não ignorar as falhas de obras como Rei Lear. Ignorar

as falhas de Shakespeare, as suas “peculiaridades”, significa ignorar as suas

parecem estar ocultos pela familiaridade com que os percebemos habitualmente, os acontecimentos comuns, “hidden in plain sight”. Cf. Morson, Hidden In Plain Sight, p. 123.

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maiores qualidades, as quais, por serem “óbvias” ou evidentes, perdem, ou podem

perder, o seu carácter excepcional284.

Por outro lado, na passagem acima transcrita, a ênfase na mestria de

Shakespeare em agitar as emoções denota um dos aspectos mais problemáticos da

noção da arte como a “produção de ilusões”. Se a arte for definida como a

produção de ilusões, num processo análogo àquele provocado em certas pessoas

quando, no limiar entre a vigília e o sonho, estão susceptíveis de ser afectadas por

qualquer sugestão285, torna-se impossível distinguir ilusões verdadeiras (e.g.

Homero) de ilusões falsas (e.g. Shakespeare), ilusões com conteúdo de ilusões sem

conteúdo. Se, na apreciação de Tolstoi, “[u]m sonho [poesia] tem um lado melhor

do que a realidade [prosa]; a realidade tem um lado melhor do que a poesia” – “[a]

felicidade completa seria uma combinação dos dois”286, e a susceptibilidade à

hipnose é uma característica da espécie humana, como distinguir então as ilusões

às quais é benéfico submetermo-nos daquelas que não o são? Como, em suma,

distinguir nonsense significativo de nonsense que “se desviou para um caminho

que não vai dar a lado algum”?

284 Uma destas qualidades, do ponto de vista de G. Wilson Knight, é o facto de a crítica de

Tolstoi pôr em evidência o facto descurado pela crítica romântica de que Shakespeare não se limita a representar, como sucede, por exemplo, no drama de costumes ou no romance, pessoas a agir ou a falar de um modo “vulgar” ou “natural”, mas, e por ser um poeta dramático, a exprimir o contraditório e primitivo mundo da psique que a poesia exprime melhor do que a prosa: “o mundo que habitamos e receamos, mas não mundo que vemos normalmente; nem o mundo que pensamos compreender.” G. Wilson Knight, “Tolstoy’s Attack on Shakespeare”, p. 284.

285 Num ensaio datado de 1902, “Tchto takoe religiia i v tchem sushchnost’ eë? [“O que é a religião e em que consiste a sua essência?”], Tolstoi esboça uma teoria da acção e estipula que as três causas, ou motivos, para a acção são: sentimento, razão e sugestão – “a característica a que os médicos chamam de hipnotismo”. Inseridas nesta última categoria encontram-se a arte e a educação, mas também as religiões falsificadas (ou pagãs), que hipnotizam ao invés de promover a acção racional. Nenhuma destas forças motivadoras da acção são, em si, negativas; são indispensáveis à realização de qualquer acção. Note-se que esta caracterização permite conciliar a categoria de sugestão, onde recai a actividade artística, com o que em OQA? é definido como “infecção”, um critério não-valorativo da arte. Cf. Tolstoi, “What is Religion and of What Does its Essence Consist?”, A Confession and Other Religious Writings, Jane Kentish (trad.), London: Penguin, 1987, p. 92-93.

286 Tolstoy’s Diaries, I, 1851, p. 33.

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A poesia de Mallarmé e de outros. Nós, os que não a compreendemos,

afirmamos sem receio que ela não tem sentido, que é poesia que se desviou para um caminho que não vai dar a lado algum. Mas por que motivo, quando escutamos música, que é incompreensível e igualmente sem sentido, não dizemos a mesma coisa [...]? Artistas medíocres produzem obras de qualidade medíocre, e nunca nada verdadeiramente muito mau. Mas génios reconhecidos produzem ou verdadeiras obras grandiosas, ou absoluto lixo: Shakespeare, Goethe, Beethoven, Bach, etc. 287

Ao contrário de Tolstoi, que apenas sugere, numa entrada ocasional dos

seus diários, que Shakespeare possa afinal ter produzido “ilusões verdadeiras”, ao

lado de “absoluto lixo”, Wittgenstein teve a lucidez de constatar que, apesar da

suspeita de que os encómios a Shakespeare, proferidos ao longos dos séculos por

eminentes personalidades, poderem ser apenas uma questão de convenção, tal

poderia dever-se ao facto de que “num sonho tudo está errado, tudo é absurdo,

compósito &, contudo, inteiramente correcto”. Porque se Shakespeare é, como

dizem, verdadeiramente grande, “então deve ser possível dizermos a seu respeito:

Tudo está errado, as coisas não são assim – &, ao mesmo tempo, tudo está

inteiramente correcto de acordo com uma lei própria” (CV, 89e).

Wittgenstein diz nutrir uma “desconfiança profunda” pelos que olham

para Shakespeare do mesmo modo que se olha para Beethoven ou Bach. Todavia,

nas indagações sobre a qualidade da sua não-resposta às obras de Shakespeare,

não exclui a hipótese de que o motivo pelo qual não consegue compreender

Shakespeare resulte do facto de se querer encontrar simetria em toda aquela

assimetria (CV, 98e).

As possibilidades de aproximar os comentários ambíguos de

Wittgenstein, disseminados em CV, sobre a falta de unidade e naturalidade, sobre

a infidelidade à vida ou as metáforas artificiais do corpus shakespeariano, à crítica

287 Tolstoy’s Diaries, II, 1896, pp. 427-28.

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de Tolstoi foram avaliadas por Peter B. Lewis. Em “Wittgenstein, Tolstoi, and

Shakespeare” (2005), Lewis tenta esclarecer os motivos pelos quais Wittgenstein

não integraria as tragédias de Shakespeare na série das “coisas imensas em arte”.

Trata-se aqui da série a que o filósofo alude nas suas aulas, coligidas e publicadas

sob o título Aulas sobre Estética (AC), para distinguir obras de arte como as

sinfonias de Beethoven e as catedrais góticas de outras obras menos

impressionantes, às quais se aplicam os critérios de apreciação estética, e.g. de

“correcção”: [o] jogo é diferente. Tão diferente como ao julgar um ser humano

dizer por um lado ‘Agiu bem’ e por outro ‘Impressionou-me’.” (AC, 26)

O estudo de Lewis tem o interesse acrescido de sugerir que a influência

dos escritos de Tolstoi no desenvolvimento do pensamento de Wittgenstein sobre

questões relacionadas com a religião, a moral e a estética não se restringe ao

‘primeiro Wittgenstein’, ao período em que redigia o Tractatus e reflectia sobre

um método para solucionar os problemas da Filosofia, como as evidências

biográficas e estudos como os de Ray Monk ou Janik e Toulmin podem

corroborar. Se, à época em que Wittgenstein descobre Os Meus Evangelhos, e com

esta a possibilidade de uma nova forma de vida, religiosa288; e se o Tractatus

deverá ser entendido, no contexto do debate cultural da Viena do fin-de-siècle,

como “uma condenação de l’art pour l’art, tanto quanto O Que é a Arte?”289, a

influência da obra de Tolstoi não se esgota no “ponto ético” do Tractatus, que

tanto intrigaria os seus leitores: ela estende-se, mais difusa, à filosofia tardia de

Wittgenstein. Do ponto de vista de Lewis, os comentários de Wittgenstein sobre

Shakespeare reunidos em CV, e escritos entre 1939-40 e 1950, poderão ser melhor

entendidos em contraponto aos argumentos de Tolstoi contra Shakespeare e à

288 Ray Monk, op. cit., p. 116. 289 Allan Janik e Stephen Toulmin, Wittgentein’s Vienna, Chicago: Ivan R. Dee, 1996, p. 197.

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teoria da arte de OQA?: “[P]arece-me, pois, que é parcialmente através da sua

reflexão acerca das teorias sobre a arte de Tolstoi que Wittgenstein é induzido a

tecer os seus comentários relativos a Shakespeare”290.

O estudo de Lewis, além de corroborar que o contexto das dúvidas

expressas por Wittgenstein em relação aos admiradores da obra de Shakespeare é a

crítica de Tolstoi (i.e. ST) e a concepção da arte nela implícita, permite inferir que

as reflexões de Wittgenstein sobre a sua dificuldade em fazer alguma coisa com

Shakespeare, em se deixar impressionar pela objectividade (i.e. neutralidade) com

que este pinta a “grandiosa dança das paixões humanas”, ou em apreciar a cultura

ao qual pertence, relevam de aspectos cognatos aos referidos por Tolstoi ao longo

do seu ensaio contra Lear. Apesar de não condenar Shakespeare, de reconhecer a

possibilidade de uma resposta genuína às suas obras, e sublinhar que é preciso a

autoridade de um Milton para o convencer de que haverá verdade nos encómios

que colocam as obras do Bardo na categoria das coisas supremas em arte,

Wittgenstein regressa ao tópico da objectividade e da falta de naturalidade da

linguagem e das personagens shakespeareanas: “Não é como se S[hakespeare]

representasse bem tipos humanos & fosse, a este respeito, fiel à vida. Ele não é fiel

à vida” (CV, 96e).

As dificuldades professadas por Wittgenstein em reagir às obras de

Shakespeare, em “se sintonizar com o homem por trás da obra”, em situá-las num

contexto de inteligibilidade, resultam, surpreendentemente, da mesma espécie de

dificuldades de Tolstoi em se sintonizar com as “ilusões” criadas por Shakespeare

e, sobretudo, pela “bardolatria”. Estas dificuldades não são, contudo, de ordem

linguística, nem decorrem da falta de familiarização com certas convenções

290 Peter B. Lewis, “Wittgenstein, Tolstoi, and Shakespeare”, p. 242.

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literárias. Resultam, antes, de uma concepção afim do valor da arte, de acordo com

a qual um objecto artístico será tanto ou mais bem conseguido quanto transmitir,

de um modo não-assertivo, não a intenção do autor, mas o pano de fundo

metafísico, religioso ou moral no qual ele opera, ou seja, os valores que são

considerados como enformando o sentido da vida. Wittgenstein refere, aliás, esta

concepção em diferentes momentos, umas vezes de modo explícito, outras não. A

primeira referência implícita, em CV, à teoria de OQA? data de 1931. Neste passo,

Wittgenstein comenta a necessária inteligibilidade da arte própria defendida por

Tolstoi291 e a formulação de que “o significado (importância) de alguma coisa

reside na sua qualidade de ser por todos compreendido”. Reflectindo sobre esta

ideia, Wittgenstein acrescenta em seguida uma correcção:

O que torna o objecto difícil de ser compreendido – se for significativo e

importante – não é que tenhamos de ser instruídos em matérias abstrusas para o podermos compreender, mas a antítese entre a compreensão do objecto & o que a maioria das pessoas quer ver. É precisamente por isto que o que é mais óbvio pode ser o que é mais difícil de compreender. É preciso superar, não uma dificuldade do intelecto, mas da vontade (CV, 25e).

Refira-se, em primeiro lugar, que Wittgenstein não restringe o seu

raciocínio a objectos de arte e recupera este princípio basilar da crítica de Tolstoi à

arte decadente, tornada ininteligível, num outro trecho, no contexto de uma

observação sobre a (sua) prática filosófica: “És então um mau filósofo, se aquilo

que escreves é difícil de compreender. Se fosses melhor, então tornarias fácil de

compreender o que é difícil. – Mas quem diz que isto é possível?! [Tolstoi]”.

(Wittgenstein, CV, 87e)

291 “[U]ma obra de arte distingue-se de todas as outras actividades espirituais pelo facto de que a

sua linguagem é compreensível a todos, pelo facto que infecta todos, sem distinções”. (OQA?, p. 81) Este ponto surge condensado na correcção de Tolstoi do aforismo de Voltaire: “tous les genres sont bons, hors le genre ennuyeux” é corrigido para “‘[t]ous les genres sont bons, hors celui qu’on ne comprend pas’, ou ‘qui ne produit pas son effect’.” (idem, p. 83)

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Em segundo lugar, a correcção de Wittgenstein, além de aludir ao seu

método (ou métodos) tardio em chamar a atenção para os aspectos mais

importantes das coisas, ocultos “devido à sua simplicidade e familiaridade”292,

poderá, na realidade, reforçar o argumento de Tolstoi sobre a decadência da arte

moderna, segundo ele obedecendo a fins puramente privados, i.e., divorciada de

uma comunidade, ou daquilo a que ambos chamam “formas de vida”:

O obstáculo à compreensão dos sentimentos mais nobres e elevados, tal

como também é dito no Evangelho, não reside de modo algum na ausência de desenvolvimento e instrução, mas, pelo contrário, no falso desenvolvimento e na falsa instrução. Uma obra artística boa e elevada [...] pode ser e, muitas vezes é, incompreensível para pessoas com muitos estudos, pervertidas e privadas de religião, como sucede constantemente na nossa sociedade [...] O curso que a arte tem vindo a tomar pode ser comparado à colocação, num círculo grande, de círculos cada vez menores, até formar um cone, cujo vértice deixa de ser de todo um círculo. Isto foi o que aconteceu à arte do nosso tempo (OQA?, pp. 82-83).

Por outro lado, a modificação de Wittgenstein vem ao encontro da

constatação de Tolstoi de que “[é] impossível forçar a mente a apreender ou a

compreender o que o coração não quer”293.

A segunda referência explícita à teoria da arte de Tolstoi data de 1947.

Nesta passagem, Wittgenstein reage à formulação estipulativa de OQA?, segundo

a qual “a arte começa quando o homem, com a intenção de comunicar aos outros

um sentimento que já experimentou, convoca em si esse mesmo sentimento e

292 Wittgenstein, IF, I, §129. 293 Esta conclusão surge no seguimento de dois outros pontos, estipulados por Tolstoi, sobre o

carácter infeccioso da expressão artística, que pode ser entendido como a qualidade do que é compreensível, num certo sentido, pelo recipiente de uma obra de arte., i.e., uma propriedade relacional. Os pontos são: “(1) A [...] paixão da poesia em descrever aquilo que é provém do facto de o artista desejar, ao ver claramente e ao estabelecer aquilo que é, compreender o sentido daquilo que é. (2) Em qualquer domínio artístico há duas aberrações: trivialidade a artificialidade. Entre as duas há apenas um caminho estreito”. Tolstoy’s Diaries, II, 1896, p. 422.

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expressa-o através de certos signos externos” e à conclusão de que “toda a arte tem

em si a propriedade de unir as pessoas”294:

Há muito que poderá ser aprendido com a falsa teorização de Tolstoi

sobre o modo como a obra de arte comunica ‘um sentimento’. – E poderíamos mesmo chamar-lhe, se não a expressão de um sentimento, uma expressão de sentimento, ou uma expressão sentida. E também poderíamos dizer que as pessoas a compreendem na medida em que ‘ecoam em harmonia [schwingen] com ela, reagem a ela. Poderíamos dizer: a obra de arte não busca comunicar outra coisa qualquer, só ela mesma. Como quando faço uma visita a alguém, não quero simplesmente produzir tal & tal sentimentos nela, mas acima de tudo fazer-lhe uma visita, & naturalmente, também quero ser bem recebido.

E começa a ser realmente absurdo dizer que o artista deseja que aquilo que sente ao escrever o outro o sinta a ler. (CV, 67e)

Os comentários de Wittgenstein, escritos numa fase tardia, pós-

tractariana, são esclarecedores, na medida em que oferecem reflexões correctivas

sobre pontos críticos da teoria da arte de OQA? (e.g. como é que uma obra infecta

o seu recipiente e como é que este a compreende, ou reage a ela?) e sobre os

padrões com que Tolstoi avalia a obra de Shakespeare em ST. São também

elucidativos porque fornecem pistas sobre os critérios com que Wittgenstein

identifica o que, nas aulas compiladas pelos seus alunos, designa pela enigmática

expressão “as coisas imensas em arte”, as obras de arte às quais não se aplicam os

critérios de apreciação estética vulgares. Como já referido, nestes casos

Wittgenstein diz que “o que fazemos não é achar que ela [a catedral gótica] está

correcta – o papel que desempenha em relação a nós é inteiramente diferente.

Todo o jogo é diferente” (AC, 26). Wittgenstein não esclarece o sentido em que

catedrais góticas e sinfonias de Beethoven, por exemplo, evadem as regras de

apreciação estética que se aplicam a outras obras (i.e. não imensas), nem o papel

inteiramente diferente que estas obras desempenham na nossa cultura.

Wittgenstein diz que estes são casos singulares, impressionantes, e o jogo da

294 Tolstoi, OQA?, pp. 38, 129.

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expressão do juízo estético simplesmente não se aplica: “[n]ão falaríamos em

apreciar coisas imensas em arte”. No entanto, no contexto da sua relutância em

colocar as obras de Shakespeare numa série que integrará coisas como sinfonias de

Beethoven, obras de Bach e possivelmente de Goethe, e no contexto dos

comentários críticos sobre a “comunhão de sentimento” e sobre o conceito de

infecção de OQA?, a conexão entre os critérios de Wittgenstein para manter

Shakespeare e Beethoven em domínios distintos e os de Tolstoi para refutar a

bardolatria torna-se mais evidente. Quando avalia em sucessivos momentos a

natureza da sua incapacidade em reagir às criações de Shakespeare como se reage

a obras que se dirigem a nós “na linguagem de um grande ser humano”, como a

música de Bach (CV, 81e), Wittgenstein está a aplicar um critério similar ao de

Tolstoi quando este critica as personagens de Shakespeare por serem aparições

desprovidas de carácter: os atributos de uma obra de arte são os atributos do

carácter do seu criador. Ou, como Wittgenstein coloca, “o que colhemos dele [de

qualquer artista] é sempre apenas a sua própria personalidade” (CV, 27e).

Como já mencionado no capítulo anterior, no contexto da discussão sobre

teorias da ficção, Tolstoi critica George Bernard Shaw (curiosamente, um dos

raros leitores entusiastas de OQA?) por não respeitar um princípio de “seriedade

artística” análogo. Na obra que o dramaturgo lhe enviara, Homem e Super-

Homem, Tolstoi detecta um tratamento pouco sério do tema elevado, e acrescenta:

“preferiria que os discursos de Don Juan não fossem os discursos de uma aparição,

mas os discursos de Bernard Shaw e, do mesmo modo, que The Revolutionist’s

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Handbook fosse atribuído não a um não-existente Tanner, mas ao Bernard Shaw

existente, responsável pelas suas próprias palavras”295.

Este princípio – com o qual se reivindica, não uma teoria intencionalista

do significado de uma obra de arte, mas a seriedade, ou “sinceridade”, no “mais

grave sentido da palavra”296 – está assente numa concepção da arte, cujo principal

aspecto surge já claramente enunciado por Tolstoi, numa entrada dos diários de

1852, na constatação de quão surpreendente seria “[q]ue pudéssemos ter perdido a

um tal ponto a ideia da única finalidade da literatura – a finalidade moral – que se

hoje disséssemos alguma coisa sobre a necessidade de moralidade na literatura não

haveria ninguém para nos compreender”297. Vemos esta mesma ideia ser realçada

por Wittgenstein, quando – no que também pode ser entendido como uma

indicação do ponto essencial da sua divergência com os “bardólatras”, com todos

aqueles críticos literários (ou professores de literatura) que enaltecem Shakespeare

sem compreensão e “pelas razões erradas” (CV, 55e) – afirma, no espírito de

Tolstoi, embora por razões não inteiramente coincidentes, que “hoje em dia as

pessoas pensam que os cientistas existem para as instruir; que os poetas, os

295 Carta a George Bernard Shaw, 1908, Tolstoy’s Letters, II, p. 678. (Citada no capítulo 2, n.r.

137). 296 A qualidade com a qual Fernando Pessoa, num dado momento, se distanciava dos “manifestos

escandalosos” e da ambição de brilhar por brilhar, de épater, distinguindo escritores-palhaços, que criam coisas insinceras “feitas para fazer pasmar”, e “por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade e do mistério da Vida”, de escritores-sérios, atentos à “importância misteriosa de existir”. Esta qualidade é a sinceridade, “no meu grave sentido da palavra”, ou seja, a atitude metafísica, religiosa, do autor. (Cf. Carta a Armando Cortes-Rodrigues, 19 Janeiro 1915, Fernando Pessoa, Cartas, Obra Essencial de Fernando Pessoa, Richard Zenith (ed.), Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, pp. 98-103.

297 Tolstoy’s Diaries, I, 1853, p. 82. Tolstoi faz o mesmo ponto sobre a educação quando disputa as teorias pedagógicas que excluem dos curricula a “ciência das ciências”, a busca da virtude: “Por que motivo, quando ensino a uma criança ou a um adulto que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa, ou que a electricidade tem dois pólos e se comporta de acordo com determinadas leis, não estou a coagir; e, quando ensino que as pessoas têm uma essência espiritual que é imortal e que devemos comportar-nos em relação aos outros como gostaríamos que se comportassem connosco, estou a coagir? Uma tão estranha opinião existe apenas porque é vulgar considerar-se que a única ciência verdadeiramente importante e fundamental – a ciência da religião e da moral – não é uma ciência, mas alguma coisa arbitrária e irrelevante” (idem, p. 491). Como se pode constatar pelo trecho citado, Tolstoi usa “ciência” num sentido particular.

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músicos, etc., existem para os entreter. Que estes últimos têm alguma coisa para

lhes ensinar; isso nunca lhes ocorre” (CV, 42e).

∗∗

Após esta incursão por alguns dos pontos principais da versão de Tolstoi

do libelo de Rousseau contra o levantamento da proibição dos espectáculos na

cidade-estado, defendido pelos filósofos e dramaturgos Iluministas298, gostaria

ainda de considerar uma hipótese de leitura sobre as contradições que foram sendo

identificadas ao longo deste capítulo.

A. N. Wilson, como vimos, afirma que ST traduz a renúncia do seu autor

à visão libertadora da literatura como a criação de uma ilusão (i.e. a criação de

personagens tão reais como nós) em prol da “visão de túnel” com que o puritano

beligerante tenta coarctar a sua “visão artística” para dizer ao mundo como se

comportar. A. N. Wilson refere ainda o estranho empenho de Tolstoi na

composição da sua diatribe. Tal empenho é tanto ou mais estranho, como bem

refere, quanto acontece num período conturbado da sua vida familiar (para não

falar da Rússia) e em que, além da correspondência com os inúmeros discípulos do

tolstoismo espalhados por todo o mundo, se dedicava ainda à denúncia de

qualquer espécie de opressão, coligia os escritos espirituais que integrariam o

inacabado Ciclo de Leituras, iniciava uma nova versão de Hadji-Murat e

terminava Padre Sérgio e Depois do Baile. Centrado na violência com que Tolstoi

dirige o tão estranho ataque contra Shakespeare (ou contra a “bardolatria”),

Wilson, à semelhança dos outros críticos, não equaciona uma possibilidade: a de 298 Refiro-me à Lettre à d’Alembert sur les spectacles (1758), onde Rousseau disputa os

argumentos a favor do teatro e dos dramaturgos, avançados por d’Alembert na entrada sobre “Genève” da Encyclopédie.

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que por detrás de ST possa estar, não a defesa implícita da superioridade dos

romances do seu autor sobre as tragédias de Shakespeare, mas uma crítica

implícita à concepção de narrativa (ou de identidade pessoal), encapsulada nos

seus próprios romances. Estes serão procedentes, tanto quanto as obras de

Shakespeare, de uma ilusão induzida por um processo de hipnose, que consiste em

“atribuir um significado virtuoso a diligências egotistas”299. Neste sentido, a crítica

de George Orwell à concepção rarefeita da literatura como uma parábola

“praticamente independente da linguagem”300, da qual deverão ser excluídos o

prazer e a curiosidade, pugnada por Tolstoi na sua fase tardia (na verdade, muito

antes, quando descobre a vocação de escritor de manuais escolares301), e que ditará

a sorte de Shakespeare às mãos do seu leitor mais hostil, parece-me mais certeira.

De facto, permite entrever a hipótese de que o paradoxo que está na génese deste

tratado não é o paradoxo de avaliar imitações de acções (tragédias) através dos

padrões do romance realista, ou tragédias simbólicas através dos padrões do teatro

naturalista.

Levanta-se por isso a possibilidade alternativa de supor que Tolstoi, ao

invocar as prescrições clássicas para impugnar o drama shakespeareano e

convocar, no final do seu libelo, uma outra concepção de forma dramática,

adequada à consciência religiosa do seu tempo, e “modesta, como a arte

verdadeira”302, está mais próximo de admitir que as “falhas” de Shakespeare são as

suas próprias “falhas”, as falhas do “grande escritor da Rússia”, do que de

reivindicar a superioridade do método de representação dos seus grandes

romances. Particularmente se levarmos a sério (como é para levar) o repúdio de

299 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 422. 300 Orwell, “Lear, Tolstoy and The Fool”, p. 126. 301 Cf. capítulo 2 desta tese. 302 Cf. OQA?, p. 120.

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Tolstoi destes romances, a partir do momento em que a admiração pelas narrativas

e poemas bíblicos, mas também pela simplicidade do grego clássico e da

linguagem popular, resulta num novo manifesto literário, em maturação desde as

experiências pedagógicas da década de 60.

Ao longo deste capítulo, foram-se identificando os principais aspectos

invocados por Tolstoi para, subitamente imbuído de espírito clássico, deflacionar

as inovações artísticas de Shakespeare e os argumentos dos “bardólatras”. As

acções sem causa, a arbitrariedade dos conflitos, os anacronismos, saltos de lógica,

a eloquência omnívora, a proliferação de personagens, pontos de vista, enredos

paralelos, apotegmas e monólogos filosóficos, tão lamentados em Shakespeare,

são também alguns dos aspectos que terão levado Tolstoi a tentar depurar Guerra

e Paz e a evitar aquilo a que chama uma “orgia” de excessos e “disparates

verborreicos”303. Até mesmo Anna Karenina, o qual Tolstoi vaticinara não vir a ser

compreendido nem apreciado, por “ser demasiado simples” e escrito de acordo

com novos métodos e privilegiando a linguagem do quotidiano304, é relegado para

a lista de candidatos que falharam no exigente e difícil teste da arte, mais tarde

proposto em OQA?. O teste afirma ser mais fácil escrever poemas e rimas

303 Em 1873, quando já começara a escrever Anna Karenina, Tolstoi revê Guerra e Paz para uma

nova edição da sua obra completa, onde, nas suas palavras, “rejeita tudo o que é supérfluo” na anterior edição, publicada entre 1868-69, e que, ao ser escrutinada, lhe suscitara um sentimento de vergonha e arrependimento “não muito distinto daquilo que um homem experimenta quando olha para os restos de uma orgia da qual participara” (Carta a A. A. Tolstaia, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 257). O resultado desta segunda edição, para a qual Tolstoi pediu a ajuda de Strakhov, difere consideravelmente daquela que é hoje a edição consagrada como definitiva: o francês foi substituído pelo russo (refira-se que com alguns resultados caricatos), os argumentos filosóficos, históricos e as descrições militares, dispersos pelos vários capítulos, foram censurados, bem como os materiais sobre a filosofia da história dos epílogos, publicados separadamente, numa secção intitulada “Artigos sobre a Campanha de 1812”. Cf. Cartas a Strakhov, Tolstoy’s Letters, vol. I, pp. 261-265.

304 A oscilação de Tolstoi entre a satisfação e a insatisfação com a escrita de Anna Karenina está documentada nos seus diários e cartas. Ela não será alheia às crises cada vez mais constantes que o faziam desejar entrar para um mosteiro ou dedicar-se aos artigos religiosos que começara a planear escrever. Contudo, terá provavelmente mais com a crescente deriva do romance da sua intenção inicial de nunca mais escrever “disparates” repulsivos como Guerra e Paz: “Meu Deus, se apenas alguém pudesse terminar A. Karenina por mim! É espantosamente repulsivo.” (Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 283)

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complexas sobre o reinado de Cleópatra (ou Guerra e Paz e Rei Lear) do que uma

narrativa “simples” e desprovida de excessivos pormenores305. Uma narrativa, por

exemplo, sobre o encontro com um lobo na floresta (o relato do rapaz) ou uma

pantomima que dramatiza uma cena de caça (a tribo Vogul), citadas por Tolstoi

para ilustrar experiências comunitárias, i.e. genuínas, de arte. A importância de

tais experiências não reside na ilusão de profundidade, obtida através da criação de

monólogos filosóficos, de acções incausadas ou de personagens paradoxais, como

os proscritos Lear, Hamlet e Otelo, ou ainda, poder-se-á acrescentar, de

personagens “auto-absorvidas”, como os próprios protagonistas de Tolstoi, e

heróis tão pusilânimes como Hamlet306. Não se suicida Anna, proferindo, de certa

forma, discursos sobre o mundo “out of joint” até à chama se extinguir? Não é

Levin, quando ceifa no campo, aspirando à inconsciência de quem não tem

consciência de si, um camponês travestido, um nobre proprietário a tentar vestir

uma natureza que não é sua – porque a vida verdadeira está para si no modo de

vida dos seus ascendentes? Não julgará Tolstoi, portanto, os seus protagonistas

“fonógrafos” de pensamentos já por si expressos sob a forma, não de sonetos,

como afirma sobre Hamlet, mas de narrativas autobiográficas, epílogos e ensaios

filosóficos?

É curioso verificar que as vicissitudes da recepção de Shakespeare, desde

os seus primeiros críticos ingleses, passando pelos philosophes franceses,

espelham em aspectos relevantes as vicissitudes da recepção da obra de Tolstoi,

305 Cf. OQA?, p. 156. 306 A recensão do crítico literário Polonski a Cossacos é ilustrativa da recepção pouco entusiasta

que esta obra obteve aquando da sua publicação, em 1863. Além de ser considerada uma revisitação anacrónica do Cáucaso, um pastiche do tema de “Os Ciganos”, de Puckhin, e de ter por protagonista um herói pusilânime, “um pequeno Hamlet!”: “Olenin não é representativo das melhores pessoas do nosso tempo. Ele é claramente um homem de uma geração obsoleta, uma espécie de pálida reflexão das pessoas da era de Puckhin.” (Citado em Eikhenbaum, Tolstoi in the Sixties, p. 87)

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particularmente da sua “primeira fase”. Todavia, mais curioso ou significativo será

verificar uma simetria entre a crítica de Tolstoi a Shakespeare e a crítica de Tolstoi

a si mesmo, discernível no modo como a primeira espelha as vicissitudes da

recepção crítica das suas obras pré-Confissão.

Neste contexto, podemos ainda notar que, desde a publicação de Infância,

Tolstoi rapidamente de destacou pela “técnica de inserir momentos não-

justificados na acção”, por fazer mergulhar as suas personagens num estado de

semi-delírio, entre a vigília e o sonho, e que “[o]s sonhos se tornaram numa

espécie de especialidade de Tolstoi”307. Para Eikhenbaum, esta “especialidade”

tolstoiana308 não integra um qualquer método de caracterização (os sonhos não são

descrições psicológicas das pessoas descritas – são descrições “simplesmente

paradoxais”); para Dostoevski (ou Ivan Karamazov), são visões artísticas:

Ouve: nos sonhos, especialmente nos pesadelos, causados por, digamos,

desarranjos estomacais, ou por qualquer outra coisa, o homem vê coisas tão artísticas, vê uma realidade tão complexa e verosímil, acontecimentos, ou mesmo séries completas de acontecimentos com um enredo a ligá-los e com pormenores tão inesperados, desde as vossas manifestações mais sublimes até ao mero botão de punho, que nem o próprio Lev Tolstoi, juro-te, seria capaz de inventar [...]309.

Por outro lado, ao insistir na imoralidade flagrante das criações de

Shakespeare, na falta de compaixão do dramaturgo pelos sofrimentos das suas

personagens, Tolstoi parece legitimar uma crítica que lhe foi dirigida

recorrentemente pelos detractores dos seus métodos e modo de caracterização. Lev

Chestov encapsula esta corrente crítica e declara, em A Ideia do Bem em Tolstoi e

307 Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 73. 308 Inúmeros exemplos poderiam ser citados para ilustrar esta “técnica” (termo caro à escola

formalista). Um dos mais conhecidos será, possivelmente, o da agonia de Andrei, em Guerra e Paz (capítulo XXXII).

309 F. Dostoevski, Os Irmãos Karamazov, vol. II, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Lisboa: Editorial Presença, 2002, p. 364.

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em Nietzsche310, que “em toda a literatura russa, e talvez mesmo na literatura

universal, não se encontrará um outro romancista que tenha revelado tal ausência

de compaixão”311 pelas suas personagens. Tal será outro dos motivos pelos quais

Tolstoi repudia toda a sua obra literária, à excepção, como já referido, de dois

modestos contos, “desprovidos de pormenores” e escritos sem concessões à

linguagem elevada, artificial: por reconhecer, com os leitores invocados por

Chestov, que “é impossível dar o nome de grande escritor àquele que não mostra

suficiente compaixão pelos sofrimentos do seu próximo”312.

Tolstoi, como vimos, não aceita os excessos de Lear, os não-

reconhecimentos, o cortejo final de mortes cruéis e desnecessárias, e desejaria que

aos justos fosse dado um destino e um discurso adequados. É por isso curioso

verificar que um dos argumentos de Chestov para desvelar a insuspeitada

afinidade entre Tolstoi, o profeta do amor ao próximo, e Nietzsche, o anti-Cristo,

seja a ausência de compaixão do primeiro, tão deplorada pelos seus leitores,

inconformados com o destino que as personagens, incluindo as virtuosas, recebem

às mãos do impiedoso romancista. Para estes leitores

Tolstoi não tem piedade de nenhuma das suas vítimas. Nele, não se

poderá escutar em lado algum aquelas doces notas de compaixão, tão usuais nas obras de Dickens, de Turgenev, e mesmo dos realistas como Zola e Bourget, os quais nunca deixam escapar a oportunidade de sublinhar os seus sentimentos humanos.

310 Em 1901, pouco antes de Tolstoi começar a escrever ST, Gorki relata a reacção pouco

entusiasta do mestre a A Ideia do Bem em Tolstoi e em Nietzsche: “Achei-o divertido, pretensioso, mas não inteiramente mau. Na verdade, aprecio os cínicos quando são sinceros. [...] Que coiffeur audacioso; declara frontalmente que me iludi e isso significa que também iludi os outros. Esta é a conclusão óbvia…’.” A discussão sobre Chestov é breve e termina com a seguinte conclusão: “‘É impossível’, diz ele, ‘viver a olhar para terríveis fantasmas, mas, como pode ele [Chestov] saber se é horrível ou não? Se soubesse, se visse realmente fantasmas, não escreveria estes disparates, mas faria alguma coisa séria, aquilo que Buda fez durante toda a sua vida’. Alguém comentou que Chestov era judeu. ‘Não creio, respondeu Lev Nikolaevitch dubitativo. ‘Não, ele não é como um Judeu; não existem judeus descrentes, não conseguirão nomear um que seja... não’.” Gorki, op. cit., pp. 54-55. cf. Tolstoy’s Letters, n.r., p. 623.

311 Lev Chestov, L’Idée de Bien Chez Tolstoï et Nietzsche, Philosophie et Prédication, p. 47. 312 Idem, p. 58.

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Isto poderá parecer estranho a Tolstoi, mas muitos dos leitores acusam-no pela sua frieza, insensibilidade, pela sua dureza. Levar Anna a atirar-se para debaixo de um comboio sem soltar um suspiro! Seguir a agonia de Ivan Ilitch sem verter uma única lágrima! Para numerosos leitores, esta atitude parece de tal modo incompreensível e revoltante que estão mesmo dispostos a negar o génio de Tolstoi. Falar de Tolstoi como se de um génio se tratasse afigura-se-lhes uma ofensa à moral, cuja primeira exigência requer que se tenha compaixão pelo próximo313.

Ao contrário do que se poderia pensar, o objectivo de Chestov não é o de

legitimar as queixas dos muitos leitores que, censurando a punição da heroína de

Anna Karenina e o seu julgamento no tribunal do imperativo categórico, enquanto

outras personagens, igualmente culpadas, mas menos virtuosas, são

inexplicavelmente poupadas314, negam a superioridade dos seus romances por

neles não serem respeitados os “direitos sagrados da compaixão.” Chestov,

munido de uma concepção muito particular de ficção, de filosofia (e de religião),

pretende antes distinguir a prédica da filosofia, o romance didáctico da obra de

arte e, simultaneamente, avançar a contra-intuitiva tese de que a doutrina moral de

Tolstoi deve mais às intuições de Nietzsche do que a qualquer interpretação literal

do Novo Testamento.

A qualidade a que Chestov recorre para distinguir, num outro momento

desta obra, a representação da psicologia do assassino em Crime e Castigo e em

Macbeth (i.e. o autor-pregador do autor-filósofo) é a da obra literária onde o

313 Chestov, L’Idée de Bien Chez Tolstoï et Nietzsche, Philosophie et Prédication, p. 57. 314 Chestov não cita os nomes destes leitores anónimos inconformados com a ausência de

compaixão pelo próximo do autor de Anna Karenina. Esta obra gerou uma enorme polémica na sociedade russa (maior do que Guerra e Paz) por razões variadas. Uma destas prendia-se com o final abrupto, o suicídio de Anna. O editor da revista que publicou, com grandes intervalos, Anna Karenina, recusou-se a publicar, por motivos políticos, a última parte (VIII). Até 1878, quando foi por fim publicado sob a forma de livro, Anna Karenina terminava por isso com o suicídio de Anna, final este criticado até pelo indefectível Strakhov, que tanto instigara Tolstoi a não abandonar a escrita do seu romance, e para o qual a inesperada punição de Anna revelava um Tolstoi, implacável, e “mesmo cruel”. Eikhenbaum, na sua análise sobre a enigmática epígrafe desta obra, cita diferentes críticos, que discorrem sobre a natureza dúbia da moral que conduz Anna à morte e sobre a interpretação que Tolstoi confere à epígrafe bíblica. Um destes, M. Aldanov, exclama que em Anna Karenina “encontramo-nos no reino do imperativo categórico na sua forma mais rígida e quase inumana!” (citado em Eikhenbaum, Tolstoy in the Seventies, p. 140)

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“autor parece estar ausente” e onde não parece “existir uma força que possa, ou

deseje, destruir o homem”. É esta mesma qualidade que permeia Guerra e Paz e a

caracteriza, à semelhança de Macbeth, como uma “obra verdadeiramente

filosófica”, cuja tese crucial é a de que “a vida humana se encontra para além dos

limites estabelecidos pela totalidade das palavras abstractas contidas na

linguagem”315. Embora refira wittgensteiniamente que, naquela obra, Tolstoi

incorre no erro de tentar esclarecer o que “apenas pode ser dito indirectamente” –

i.e. a tese filosófica enformada na obra de arte –, Chestov concede que os dois

epílogos de Guerra e Paz são uma mácula numa obra de outro modo puramente

filosófica. O autor não deixa, porém, de frisar que tal não deverá impedir de

constatar que “Tolstoi, em Guerra e Paz, é um filósofo no melhor sentido do

termo”316. Este estatuto resulta de Tolstoi conseguir fazer-nos ver ali o aspecto

mais enigmático e misterioso da vida e atribuir a cada uma das suas personagens

uma natureza própria, numa obra onde “predomina ainda uma ‘naïveté’

inteiramente homérica ou inteiramente shakespeareana, ou seja, a ausência de

qualquer desejo de retribuir aos homens o bem e o mal que praticaram, a

consciência de que é necessário buscar mais alto, fora de nós, a responsabilidade

da vida humana”317.

O mesmo não acontece em Anna Karenina. Apesar de o objectivo de

Tolstoi nesta “obra maravilhosa” não ser ainda o de “tornar a visão do mundo, que

entretanto forjara, obrigatória para todos”318, a atmosfera homérica ou

shakespeareana das obras anteriores começa a dar sinais de soçobrar diante da

interpretação que, segundo Chestov, Tolstoi faz do texto bíblico, em epígrafe: “A 315 Chestov, L’Idée de Bien Chez Tolstoï et Nietzsche, Philosophie et Prédication, pp. 114, 118-19

e 116. 316 Idem, p. 117. 317 Idem, pp. 117-119. 318 Idem, p. 44.

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vingança será minha”319. Em nome de uma ideia de “bem” e de dever despóticas

(seguidas por Levin, a única personagem que Tolstoi aprova e cujo

comportamento deverá pautar o de todas as outras personagens), Anna Karenina

anuncia a missão iminente de Tolstoi, o qual passa a condenar abertamente, sem

“qualquer piedade ou nota de simpatia”, todas as personagens que “seguem as suas

próprias naturezas, [e] infringem as regras”320.

Não importa aqui discutir as muitas propostas provocadoras do tão

estimulante quanto paradoxal estudo de Chestov: se Guerra e Paz, pesem embora

o “post-scriptum mal conseguido” e os “lapsos” anti-shakespeareanos (e.g. a

condenação moral de Napoleão ou de Sónia, a “flor estéril”), deverá ocupar um

lugar cimeiro na história da filosofia; nem se a filosofia deverá ser escrita como

uma obra de arte e se a sua função é mostrar o aspecto mais enigmático da vida;

ou se a fórmula a germinar em Anna Karenina – a de que “Deus é o bem” –

procede do prognóstico de Nietzsche sobre a morte de Deus.

Limito-me a verificar que alguns dos argumentos do estudo de Chestov –

uma curiosa inversão dos argumentos jamesianos de Percy Lubbock – parece de

319 A epígrafe de Anna Karenina resulta, de acordo com Chestov, de uma interpretação

heterodoxa da moral encapsulada nos versículos bíblicos, segundo a qual a vingança é devida àqueles que pecam: “Anna. É a ela que a vingança aguarda, é ela a quem Tolstoi punirá. Ela pecou: ela deverá aceitar a punição” (op. cit., 47, itálicos meus). A interpretação do sentido da epígrafe, e a sua relação com a obra, suscitaram, desde a sua publicação, perplexidade. Eikhenbaum, por exemplo, centra a atenção na anomalia da citação de Tolstoi do aforismo bíblico, numa primeira versão do romance, de 1873: “Minha é a vingança”. A inversão do pronome, que não consta do Antigo Testamento (Dt 32,35) nem do Novo Testamento (Rom 12,18-19) das versões em eslavo eclesiástico ou em russo, e a ênfase no pronome, é explicada por Eikhenbaum como um desvio decorrente da tradução directa do alemão de Shopenhauer, no capítulo §62 do livro IV de O Mundo como Vontade e Representação, onde se condena a concepção de “punição por punição” kantiana e se defende a imoralidade da vingança humana. De acordo com Eikhenbaum, esta hipótese atesta a influência da ética de Shopenhauer na interpretação de Tolstoi da epígrafe bíblica (i.e. o sofrimento não vem dos homens), e explica a evolução de Anna Karenina, concebido inicialmente como uma refutação da tese de Dumas, em L’Homme-femme, de que ao homem atraiçoado é-lhe permitida a vingança. O herói do romance de Tolstoi seria, nesses primórdios, o marido injustiçado, e não Anna, a mulher imoral. Cf. Eikhenbaum, Tolstoi in the Seventies, pp. 111-162.

320 Chestov, op. cit., p. 48.

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certa forma terem impregnado os argumentos que Tolstoi, escassos anos após ter

lido esta obra, dirigiria contra Shakespeare, e que, portanto, também a ST poderá

ser aplicado o juízo de Chestov sobre as tentativas de Tolstoi em subordinar o

particular, e as suas premonições de que “the centre cannot hold”, à ordem do

sentido partilhado e da razão: “só se descobre a verdade mais dolorosa, a mais

significativa, quando se fala de si apenas indirectamente”321.

Gostaria para terminar de referir uma outra inesperada simetria entre os

argumentos contra Tolstoi e certos argumentos de Tolstoi contra Rei Lear, que

vem reforçar a hipótese que tem vindo a ser testada. Como vimos anteriormente,

uma das acusações mais controversas de ST incide sobre a “falta de linguagem” de

Shakespeare, isto é, a linguagem impessoal, sem carácter, com que as personagens

de Shakespeare se exprimem: “E todos falam do mesmo modo. [...] Os discursos

de qualquer uma das personagens podem ser colocados na boca de outra qualquer

e pela natureza do discurso é impossível distinguir quem está a falar” (ST, 404).

Ao criticar a “falta de linguagem” de Shakespeare, Tolstoi poderá estar

também a reagir – indirectamente – a uma outra crítica que lhe fora dirigida,

pouco antes de começar a escrever ST, pelo escritor e crítico literário Dimitri

Merejkovski, no ainda hoje influente estudo sobre Tolstoi, o “visionário pagão”, e

Dostoevski, o “visionário cristão”. Neste estudo, primeiramente publicado na

célebre revista onde Chestov também colaborava, O Mundo da Arte [Mir

Iskusstva], entre 1900-1901, no mesmo período em que a excomunhão de Tolstoi,

e a sua resposta ao Sínodo, o transformara num dos tópicos de discussão mais

acesa, constata-se que Merejkovski invoca o mesmo argumento de Tolstoi para

questionar a mestria da caracterização de Shakespeare, e acusa o romancista, 321 Lev Chestov, Les révélations de la mort, Dostoïevsky – Tolstoï [Na Vesakh Iova. Stranstvovaniia po ducham], Boris Schlœzer (intro. e trad.), Paris: Librarie Plon, 1923, p. 161.

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ímpar nos limites da descrição do “homem puramente natural”322, de colocar todas

as suas personagens a falar a mesma linguagem:

Levin usa exactamente a mesma linguagem de Pierre Bezukhov ou do

Príncipe Andrei, Vronski ou Pozdnichev; Anna Karenina usa as mesmas expressões de Dolli, Kiti ou Natacha. Se não soubéssemos quem estava a falar, não conseguiríamos distinguir uma pessoa da outra pela linguagem que usa ou o som das suas vozes, por assim dizer, com os nossos olhos fechados. [...] Em suma, a linguagem de todas as personagens de Tolstoi é a mesma323.

No momento em que entrevemos a possibilidade de ST dramatizar o

conflito que atravessa toda a carreira literária de Tolstoi – como mostrar o que não

pode ser dito – vemos a sua crítica a Shakespeare ganhar novos contornos, ou um

novo contexto.

Numa entrada do diário de 1900, ao reflectir sobre as intensas

investigações sobre hipnose, que empreendera no ano anterior, Tolstoi anota o

seguinte: “não conseguiu encontrar nos livros uma resposta à questão: ‘como

poderemos libertar-nos da hipnose?’ Penso que há apenas uma forma: cortar

relações com o hipnotizador”324. Se é verdade que Shakespeare é um dos grandes,

se não o maior, dos hipnotizadores da humanidade, com o qual a única coisa a

fazer é, portanto, “cortar relações” – vemos também ST a transformar-se numa

auto-crítica. Por outras palavras, a crítica de Tolstoi a Shakespeare pode ser

entendida, não como o ponto terminal de uma longa e embaraçosa agonia

intelectual e artística, mas como uma peça fundamental do “estudo da fisiologia

das ilusões”, no qual o autor confessa não conseguir deixar de mergulhar

322 Dimitri Merejkovski, “Tolstoy, Seer of the Flesh”, Tolstoy: A Collection of Critical Essays,

Ralph E. Matlaw (ed. e trad.), p. 64. 323 Merejkovski, citado em R. A. Stacy, op. cit., p. 113. Mirski, na sua História da Literatura

Russa (1928), responderá à crítica de Merejkovski sobre os anacronismos, a caracterização deficiente e a sintaxe desleixada de Tolstoi com uma apreciação diametralmente oposta: “O discurso que Tolstoi atribui às suas personagens é algo que suplanta a perfeição. [...] Ele dá a impressão ao leitor de estar a ouvir realmente as diferentes vozes distintas das suas personagens”. (Mirski, citado em Stacy, loc. cit.)

324 Tolstoy’s Diaries II, entrada de 1900, p. 483.

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apaixonadamente, mesmo quando o resultado é a “afirmação de disparates”325,

mesmo quando o resultado é, como no caso de ST, o repúdio das obras que o

tinham colocado no panteão dos grandes hipnotizadores da humanidade.

É também no âmbito desta hipótese, corroborada pelos termos da crítica

de Tolstoi e pela rejeição do seu magnum opus, desse “lixo verborreico” tão

desprovido de sentido e de proporção como a tragédia de Lear, e como esta,

igualmente deficiente nas qualidades enaltecidas em OQA?, aquelas que Pierre

identifica no fluxo de palavras, máximas e histórias integradas de Platon

Karataev, conferindo-lhes “o significado de uma sabedoria profunda”, que ST

revela um dos aspectos mais surpreendentes do combate de Tolstoi à hipnose da

linguagem e que surge formulado por Wittgenstein: “o espírito de um livro tem de

estar manifesto no próprio livro & não pode ser descrito” (CV, 10e).

325 Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 326.

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CAPÍTULO 4

VER O MUNDO A DIREITO: HADJI-MURAT

I am safe, nothing can injure me whatever happens. Ludwig Wittgenstein

Um fenómeno artístico vive enquanto não for compreendido, enquanto surpreender. A

crítica é surpreendida. A ciência compreende. Boris Eikhenbaum

Para se deixarem surpreender, os seres humanos – e talvez os povos – têm de acordar.

A ciência é uma forma de os pôr outra vez a dormir. Ludwig Wittgenstein

Religion has for centuries been trying to make men exult in the ‘wonders’ of creation,

but it has forgotten that a thing cannot be completely wonderful so long as it remains sensible. So long as we regard a tree as an obvious thing, naturally and reasonably created for a giraffe to eat,

we cannot properly wonder at it. G. K. Chesterton

No mesmo período em que comparava as reacções dos leitores

arrebatados por Shakespeare às de uma pessoa enamorada que ama, não o objecto

do seu amor, mas aquilo que este em si evoca326, e criticava a indiferença de

Shakespeare para com as suas personagens, Tolstoi escrevia uma nova versão da

novela póstuma, Hadji-Murat (1912). O protagonista epónimo é um dos heróis da

guerra santa proclamada pelos imãs do Cáucaso que, desde os inícios do século

XIX, tentavam unir sob a sharia as tribos do Daguestão e da Chechénia para

expulsar os russos e converter os infiéis ao muridismo, uma vertente mística da

religião islâmica327.

326 A comparação, registada numa entrada de diário, surge imediatamente a seguir à anotação de

imagens cénicas, a serem inseridas em Hadji-Murat. Entrada de 14 de Outubro de 1897, Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 447.

327 Ordem sufi (Naqshbandi) que, a partir do início do século XIX, se infiltra no Cáucaso.

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Poderá parecer estranho que Tolstoi, enquanto impugnava o drama

shakespeareano por não estar embebido pelos mais elevados valores da época e,

fundamentalmente, por o seu autor mascarar o distanciamento daquilo que

descreve através da obtenção de efeitos, se empenhasse simultaneamente em

transformar uma narrativa histórica edificante sobre os malefícios da violência

num dos seus contos mais ambíguos. No decorrer deste capítulo, procurar-se-á

mostrar os motivos pelos quais esta novela é uma obra singular e porque parte

desta singularidade pode ser entendida como o resultado do estudo concomitante

sobre a hipnose shakespeareana.

O plano para escrever a história de Hadji-Murat, cujas fugas

espectaculares, ataques inesperados e sucessivas vitórias em combate, quer contra

os murides do imã (antes de aderir à hazavat), quer as tropas russas (depois de se

tornar o comandante principal de Shamil), o tinham transformado numa figura

lendária das lutas dos montanheses pela independência, surge referenciado

explicitamente pela primeira vez nos diários de Tolstoi, numa entrada de 1896:

Ontem atravessei um campo em pousio, de terra negra, acabado de ser

arado. Até perder de vista, não havia nada a não ser a terra negra – nem uma só folha de erva. E então, na berma da estrada empoeirada e cinzenta estava um cardo Tártaro (bardana) com três hastes: uma estava partida, e uma flor branca, suja, pendia dela; a segunda também estava partida e salpicada de lama, negra e com o caule partido e sujo; a terceira haste espetava-se para o lado, também negra, mas ainda viva e vermelha no centro. Fez-me recordar Hadji-Murat. Gostava de escrever sobre isso. Luta até ao fim pela vida, sozinho no meio do campo inteiro, e consegue, de algum modo, vencer a luta328.

O procedimento para escrever aquele que viria a ser um dos seus

derradeiros projectos literários, e um dos poucos que considerava, não obstante as

328 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 429.

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reticências habituais, digno de ser publicado, ainda que postumamente329, revela o

mesmo zelo com que Tolstoi se preparara para a crítica à hipnose de Shakespeare.

Para escrever a história que em parte testemunhou, em parte ouviu contar

por outros, e o resto fantasiou (HM, 10), como o narrador diz no prefácio que

emoldura o romance de Hadji-Murat, Tolstoi pretende apurar primeiramente a

“chave do carácter” 330 do guerreiro que “luta até ao fim pela vida, sozinho no meio

do campo”.

Com este propósito, rodeia-se de inúmeras e variadas fontes históricas,

consulta estudos etnográficos sobre o Cáucaso, despachos e relatórios

governamentais, colectâneas de lendas e poemas, as memórias dos oficiais russos,

incluindo os seus próprios diários e notas do período em que servira no exército

russo.

Na sua busca do “retrato completo do guerrilheiro ávaro”331, Tolstoi

corresponde-se com o Grão-Duque Nicolau Mikhailovitch, neto de Nicolau I e

autor de diversas obras históricas, que lhe envia materiais dos Arquivos de Tiflis e

documentos da corte; manda enviados transcrever testemunhos directos332; pede

informações relativas – “ayant les coudées franches”, como ressalva à sua

interlocutora – à “la petite histoire” de Nicolau I (os hábitos diários, as intrigas

329 Hadji-Murat pertence ao conjunto de obras que Tolstoi, embora considerasse ter-lhes dado

uma forma final, não quis publicar em vida. O seu tradutor para inglês e amigo Aylmer Maude refere, na sua biografia, que as disposições de Tolstoi sobre o destino a dar ao manuscrito de Hadji-Murat resultam em parte de querer evitar querelas sobre os direitos autorais a que renunciara contra vontade da sua mulher e editora, e em parte para evitar alimentar a sua vaidade. (Maude, The Life of Tolstoy, Later Years, pp. 610-611) David Herman contempla outra hipótese, mais radical: Hadji-Murat desafiava toda a sua estética e teologia oficiais. (Cf. “Khadzhi-Murat’s Silence”, Slavic Review, vol. 64, no. 1, 2005, pp. 1-23)

330 Tolstoi, Carta a A. A. Tolstaia , 26 Janeiro de 1903, in Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 629. 331 Na sua história sobre o Cáucaso e a expansão russa, o escritor e historiador britânico, John

Baddeley, escreve: “Se, como anunciado, Tolstoi escreveu uma obra, a ser publicada após a sua morte, tendo por herói Hadji-Murat, o mundo inteiro ficará, um dia, na posse do retrato completo do guerrilheiro Ávaro, pintado pela mão de um mestre.” John F. Baddeley, The Russian Conquest of the Caucasus, London, New York, Bombay, and Calcutta: Longmans, Green and Co., 1908, p. 443.

332 Tolstoy’s Letters, vol. II, p. 628.

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palacianas, o modo como tratava a amante, como a mulher o tratava a ele)333, e

também do herói muçulmano (se coxeava, se cumpria as cinco orações diárias, se

falava russo, como se vestia, se tinha um bom cavalo e de que cor). Entre 1896 e

1904, durante oito anos, num período superior ao que lhe tinha levado a escrever

Guerra e Paz, Tolstoi escreve, embora com interrupções, onze variantes do conto

inicialmente intitulado O Cardo [Repei], que ocupam mais de duas mil páginas

manuscritas334.

Depois de várias tentativas para encontrar o “tom” e a “forma” adequados

ao seu tema, e de abandonar a sequência cronológica dos capítulos, onde descrevia

as experiências formativas de Hadji-Murat, a sua educação religiosa, ora pela mão

de um avô sábio, ora pela dos mullahs da sua aldeia, e a adesão à jihad e o que a

motivara335, Tolstoi resolve, por fim, centrar a sua narrativa no episódio da

defecção de Hadji-Murat para os russos, em Dezembro de 1851, e na sua fuga e

morte, quatro meses depois, num derradeiro combate lendário, às mãos dos

Cossacos e Cãos336 inimigos.

O regresso ao topos do Cáucaso, um dos temas mais estáveis da literatura

romântica russa, explorado, assimilado e exemplarmente parodiado na leitura dos

críticos formalistas russos, por Tolstoi nos contos da juventude onde se dedica a

dirimir as representações exóticas do Cáucaso e os seus topoi (a guerra, o herói

épico, o amor, a coragem, o “outro”), é um regresso inesperado, por variados

motivos.

333 Carta a A. A. Korganova, 8 Janeiro de 1903, e Carta a A. A. Tolstaia, 26 Janeiro de 1903,

Tolstoy’s Letters, vol. II, pp. 628-29. 334 Herman, “Khadzhi-Murat’s Silence”, p. 3. 335 Variantes em versão electrónica em http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_1280.shtml 336 Por questões de uniformidade, e uma vez que todas as citações de Hadji-Murat são da tradução

portuguesa de Nina Guerra e Filipe Guerra, sigo aqui a grafia de “Cão”, proposta pelos tradutores, em detrimento da transliteração mais familiar “khan”.

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Um dos motivos mais imediatos, e um dos mais referidos pelos escassos

comentadores, pelo menos ocidentais, de Hadji-Murat, é o de que esta obra, que

tem por protagonista o “principal, e, depois de Shamil, o mais poderoso inimigo da

Rússia” (HM, 35), ou o “Napoleão do Cáucaso”, como é dito num dos momentos

ambíguos desta novela, não é harmonizável com a teologia oficial do seu autor.

Tem sido feito notar que o tema de Hadji-Murat (a vingança e a luta pela

independência), e o seu tratamento, contrariam, directa ou indirectamente, as

doutrinas que Tolstoi passa a defender quando os seus interesses literários e

filosóficos dão lugar a um novo e apaixonado interesse: a investigação sobre a

“forma do Cristianismo mais puro”337.

Ao celebrar o ethos do assaz violento Hadji-Murat, colocando-o em

conflito com dois déspotas – o czar da Rússia e o imã do Cáucaso –, em

comparação com os quais o guerreiro surge como uma figura inteiramente heróica,

Hadji-Murat parece, até mesmo aos olhos do próprio autor338, contrariar o

princípio que, após mergulhar no estudo da fé dogmática e das escrituras, Tolstoi

viria a reclamar como o “ponto mais simples, claro e inteligível da doutrina de

Cristo” (AEQA, 2): o princípio da “não-resistência ao mal”.

Este princípio, um dos baluartes da versão purificada do cristianismo de

Tolstoi, e do seu trabalho em redor dos Evangelhos339, surge exposto,

possivelmente na sua forma mais clara, em Aquilo em Que Acredito (AEQA).

Nesta obra, onde Tolstoi descreve a sua conversão como o momento em que

“subitamente [vdrug] ouviu as palavras de Cristo, as compreendeu, e a vida e a

morte deixaram de lhe parecer um mal” (AEQA, 3), é reivindicado que a essência 337 Carta a Strakhov, 26-27 Novembro de 1877, Tolstoy’s Letters, vol. I, pp. 308-309. 338 Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 627 (Cf. “Introduction”). 339 Soedinenie i perevod tchetyrekh Evangelii, 1881 [Os Quatro Evangelhos Harmonizados e

Traduzidos] e Kratkoe izlojenie Evangeliia, 1881, a obra que traduzimos por Os Meus Evangelhos.

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dos ensinamentos de Cristo se encontra nos três capítulos do Sermão da Montanha

e em particular em Mt 5,38-39: “‘Ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente

por dente. Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém

te bater na face direita, oferece-lhe também a outra’.”340

Convocando o único princípio que julga capaz de assegurar uma correcta

compreensão do “sentido moral, religioso, gramatical e lógico das palavras de

Cristo”, o princípio de que “Cristo quis dizer exactamente aquilo que realmente

disse” (idem, 83, 10), Tolstoi declara ter encontrado a chave que permite

compreender o verdadeiro sentido da doutrina com a qual Jesus veio abolir todas

as disposições da Lei Antiga (Mosaica e Romana)341, inaugurando um novo

primado de amor. Apenas respeitando este princípio, com o qual reitera não

pretender interpretar a doutrina de Cristo, mas “evitar que os outros a interpretem

erradamente” (idem, 2), poderá o sentido, oculto pelos sedimentos calcificados das

sucessivas interpretações dogmáticas ou figurais das escrituras, e por interpolações

várias342, mostrar-se à superfície do texto bíblico. As interpretações “figurais” (ou

profundas) dos evangelhos, tornam-se dispensáveis:

340 Todas as citações bíblicas são da Bíblia Sagrada, Ed. dos Missionários Capuchinhos, Difusora

Bíblica, Lisboa, 2008. 341 Na leitura de Tolstoi dos versículos de Mt, 5,17-18, a Lei (Tora) de que Jesus fala neste passo

não é a lei escrita (de Moisés e dos fariseus), pela qual Jesus seria condenado à morte (Jo, 19,7), mas a Lei eterna, divina, primeiramente usada por Ezra e que em Mateus é denotada pela construção disjuntiva – “a lei ou os profetas”. De modo a sublinhar a impossibilidade de conciliar a lei de Moisés e a Lei Nova, anunciada no Sermão da Montanha, Tolstoi estipula assim dois sentidos para Lei e dá diversos exemplos do seu uso para designar a Lei eterna (quando ocorre na expressão disjuntiva ou quando é precedida pelo artigo definido) e para designar a lei mosaica que Jesus veio revogar (empregue na expressão conjuntiva “a lei e os profetas”, Lc 16,16). Cf. Tolstoi, AEQA, pp. 48-56. A tradução inglesa utilizada foi cotejada com o original, disponível em versão electrónica em: http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0152.shtml

342 Tolstoi empenha-se em particular na refutação da cláusula “em vão” [naprasno], então ainda presente na versão sinodal russa (e também na King James Bible), aposta ao versículo de Mt, 5-22: “‘Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar [em vão] contra o seu irmão será réu perante o tribunal...’.” Consultando transcrições da Bíblia e comentários dos Padres da Igreja, Tolstoi identifica-a como uma interpolação, datada do século V, que “destrói por completo o sentido da doutrina de Cristo.” Cf. AEQA, pp. 67-75, et passim.

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Quando compreendi que as palavras ‘não resistir ao mal’ [ne protivysia zlu] significam ‘não resistir ao mal’ [ne protivysia zlu], todas as minhas ideias anteriores sobre o sentido da doutrina de Cristo subitamente se modificaram; [...] porque é que eu não tinha compreendido estas palavras simples de um modo simples, mas tinha procurado nelas algum sentido figurado [inoskazatel’nyi smysl]? Não resistir ao mal – significa não resistir ao mal, isto é, nunca cometas um acto de violência [nikogda ne delai nasiliia]. (AEQA, 13-14)

Neste ponto Tolstoi encontra a justificação da sua versão dos Evangelhos

e do seu repúdio da “interpretação figural” que Erich Auerbach identifica como

tendo sido desenvolvida por S. Paulo e pelos Padres da Igreja na tentativa de

conciliar Antigo e Novo Testamentos, e através da qual “um acontecimento como

o sacrifício de Isaac é interpretado como uma prefiguração do sacrifício de Cristo,

de modo que no primeiro o segundo está, por assim dizer, anunciado e prometido e

o segundo “cumpre” (o termo técnico é figuram implere) o primeiro [...]”343.

A Tradição, ao acomodar no seu modelo exegético princípios que

permitem, e visam, conciliar Leis antagónicas (ou, na descrição de Auerbach, que

permitem e visam relacionar acontecimentos que não estão ligados temporal ou

causalmente), ficou assim, de acordo com Tolstoi, irremediavelmente ancorada

num paradoxo: a justificação da ética cristã. Os mandamentos de Cristo passaram

a encarnar leis abstractas, divinas e, enquanto tais, apenas possíveis de serem

cumpridas num plano transcendente. Desta forma, lendo alegoricamente o que não

foi intencionado como metáfora – os mandamentos de Cristo – se destituiu esta

doutrina revolucionária da sua finalidade. Transformou-se numa colecção de

aforismos e afirmações metafísicas sem-sentido, e teorias fantásticas foram

elaboradas para justificar a distorção do seu sentido original: “Quando, à

semelhança de talentosos advogados, interpretamos o sentido do mandamento de

tal forma que lhe conferimos um significado contrário ao pretendido por Aquele 343 Erich Auerbach, Mimesis, The Representation of Reality in Western Literature [Mimesis:

Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur], Willard R. Trask (trad.), Princeton: Princeton University Press, 1991, p. 73.

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que o pronunciou […] substituímos a verdade pelas nossas instituições” (AEQA,

88).

À deliberação do momento exegético, Tolstoi opõe assim um princípio

racional344 que pretende tornar indissociáveis sentido e intenção autoral: “Se

tratarmos as palavras de Cristo da mesma forma que tratamos as palavras de

qualquer outro homem que tenha a oportunidade de falar connosco, i.e., se

partimos do pressuposto de que Ele diz aquilo que quer dizer, todas as

interpretações profundas tornar-se-ão desnecessárias” (idem, 91, itálicos meus).

Fora deste contexto pragmático, as proposições enunciadas no Sermão da

Montanha deixam de ser injunções inteligíveis que “significam precisamente

aquilo que dizem” (idem, 90), surge a inevitável discórdia e começa a luta pelo

podium das interpretações. Ao dirimir-se a racionalidade com que Jesus transmitiu

a sua doutrina, dissociando-se intenção e sentido, inicia-se a heresia que Tolstoi

pretende debelar: a pretensão hermenêutica de descobrir sentidos profundos nas

asserções proferidas por Jesus.

Neste âmbito, a recusa da tradição hermenêutica cristã parece surgir não

como uma recusa da interpretação, mas como a recusa de uma interpretação que

não tome em consideração aquilo que, segundo o esquema adoptado pelo autor, a

própria comunicação linguística impõe a qualquer intérprete, o princípio racional

que responsabiliza qualquer falante pelas suas próprias palavras: “para decidirmos

344 Podemos aqui recordar que o argumento de Tolstoi se desenvolve a partir de um princípio não

muito arredado daquele que Donald Davidson, em “On The Very Idea of a Conceptual Scheme” (1984), reclama como um dos aspectos constitutivos da interpretação: o princípio da caridade. Um princípio que pressupõe que um intérprete considere verdadeiras a maioria das crenças do sujeito interpretado, e também coerentes com as suas próprias crenças. No âmbito da discussão sobre a putativa dualidade esquema/conteúdo, é assumido que sem este princípio de racionalidade não é possível sequer atribuir sentido às frases, i.e., não é possível dar conta do fenómeno da interpretação. Cf. Donald Davidson, Inquires into Truth and Interpretation, London: Clarendon, 1984, pp. 183-198.

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se os Seus ensinamentos são racionais ou não, é necessário primeiro acreditar que

Ele quis dizer aquilo que disse” (idem, 42).

Não irei aqui discutir a coerência com que Tolstoi aplica este princípio na

sua leitura da Bíblia, nem a literalidade que se propõe recuperar. Estas são

questões complexas, que requereriam um tratamento exaustivo e em separado de

um conjunto de outros textos, começando pelos textos bíblicos. Julgo, porém,

pertinente acrescentar algumas considerações, começando pela obra onde Tolstoi

oferece a sua tradução dos textos evangélicos, Os Quatro Evangelhos Traduzidos

e Comentados345. Nesta obra, que apresenta a tradução de Tolstoi ao lado da

versão grega consultada e da versão sinodal russa, todos os escritos pertencentes

às diversas tradições judaico-cristãs, considerados demasiado obscuros e

heteróclitos, são eliminados. Todas as passagens onde se relatam os milagres e os

episódios que provam a divindade de Jesus Cristo, incluindo a Ressurreição, são

também eliminados. A excepção é feita aos versículos que permitem uma leitura

metafórica (invariavelmente, provenientes do Evangelho de São João)346 que não

esteja em conflito com a premissa a partir da qual Tolstoi desenvolve as suas

investigações em torno dos Evangelhos: a premissa de que a doutrina de Cristo

não carece de quaisquer provas nem de “mentiras úteis” para a confirmar ou

disseminar347. E, se ela “sobreviveu incólume à passagem do tempo – todos nisto

345 Soedinenie i perevod tchetyrekh Evangelii [Os Quatro Evangelhos Harmonizados e

Traduzidos]. A versão inglesa usada, The Four Gospels Harmonized and Translated, traduzida e editada por Lev Wiener (1904), foi cotejada com o original, disponível em versão electrónica em: http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_0510.shtml

346 Um exemplo disto é a Cura do Cego (Jo 9), que Tolstoi transforma numa “parábola”, lendo metaforicamente o termo grego para “cego”, o qual denota um estado de ignorância da verdade [tëomnyi]. Cf. Os Quatro Evangelhos Harmonizados e Traduzidos, vol. II, pp. 34-44.

347 Os Quatro Evangelhos Harmonizados e Traduzidos, vol. II, p. 360. Além de “mentiras úteis”, todas as provas miraculosas referidas pelos evangelistas são também apodadas de “manobras de publicidade”, “lendas” criadas para “chamar a atenção” da multidão e disseminar os ensinamentos de Jesus. Se Tolstoi concede que, nos primórdios do cristianismo, tais manobras poderão ter sido úteis ou inevitáveis, volvidos 1800 anos, são redundantes, quando não prejudiciais.

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concordam –, as provas externas, as provas miraculosas das suas verdades

constituem agora o obstáculo principal para a aceitação da doutrina348.

É deste aturado trabalho de tradução, análise e purificação dos

Evangelhos, assente no reconhecimento de que a doutrina de Cristo não é uma

teoria metafísica, pura revelação ou um período histórico, mas “a única doutrina

que dá sentido à vida” (Os Meus Evangelhos, 22), uma descrição, como

Wittgenstein coloca, “de algo que na realidade acontece na vida humana”349, que

resulta Os Meus Evangelhos (OME).

Em contraste com a obra que lhe deu origem, esta versão condensada

dispensa o extenso aparato crítico, comentário e referências bibliográficas com os

quais Tolstoi justifica as suas opções de tradução e refuta as interpretações

dogmáticas da Igreja e dos teólogos. Composta por uma introdução, doze curtos

capítulos (e um epílogo), e seus respectivos resumos, esta versão foi intencionada

com um intuito particular:

Na obra completa [Os Quatro Evangelhos...], cada desvio da tradução

aceite, cada anotação inserida no texto e cada omissão são explicados e justificados através do confronto com diferentes versões dos Evangelhos, da análise dos seus contextos, considerações filológicas, e outras. Nesta versão abreviada, todas estas provas e refutações da leitura [ponimaniia] da Igreja, bem como as pormenorizadas notas e referências, foram omitidas; por muito correcto e rigoroso que o raciocínio [rassyjdeniia] de cada secção possa ser, não poderá persuadir [mogut ubedit’] de que esta leitura [ponimaniia] da doutrina seja verdadeira (OME, 20).

O resultado desta empresa é uma versão dos Evangelhos na qual pouco

fica do estilo do Novo Testamento. Os versículos dos quatro Evangelhos são

transpostos, reorganizados numa composição unificada, na qual os episódios ou

temas secundários que subsistiram são expurgados dos seus elementos

348 Tolstoi, Os Quatro Evangelhos Traduzidos e Harmonizados, p. 361. 349 Wittgenstein, CV, p. 32e.

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sobrenaturais (ou reinterpretados) e, em seguida, integrados numa acção que

progride em torno do seu tema principal: a exposição dos ensinamentos de Jesus.

O narrador de terceira pessoa encarrega-se de uniformizar as narrativas dos quatro

evangelistas sob um único ponto de vista omnisciente. As características que, de

acordo com Erich Auerbach, assinalam a inequívoca presença do elemento

histórico nos escritos evangélicos, muitas vezes confusos, elípticos e

contraditórios350, dão aqui lugar a uma narrativa perfeitamente articulada, sem

nexos causo-temporais indeterminados, contradições ou digressões. Nos

momentos em que os Evangelhos colocam em cena acontecimentos que provam a

divindade de Jesus, Tolstoi conserva as palavras, eliminando todos os versículos

que relatam factos de natureza sobrenatural351. Os intervenientes da narrativa de

Tolstoi são identificados, verbalizam os seus pensamentos mais secretos e, quando

não os dizem em discurso directo, o narrador omnisciente encarrega-se de lhes dar

expressão de modo a que conheçamos os motivos que os levam a agir352. Não só

tudo é expresso como repetidamente explicitado, através de um discurso de

350 Erich Auerbach, no muito citado e glosado primeiro capítulo da sua obra seminal, Mimesis: A

Representação da Realidade na Literatura Ocidental, coloca em confronto e analisa dois excertos que ilustram dois modos de apresentação da realidade a partir dos quais se constitui toda a literatura ocidental: o episódio do regresso de Ulisses a casa e o do sacríficio de Abraão. Cf. Auerbach, “Odysseus Scar”.

351 A título exemplificativo, poderemos indicar o episódio com que OME se inicia, o nascimento de Jesus (Mt 1,18-25): “O nascimento de Jesus Cristo foi assim: – A sua mãe Maria estava noiva de José. Mas antes de começarem a viver como homem e mulher, Maria engravidou. Mas José era um homem bom, e não pretendia desgraçá-la; tomou-a como sua mulher, e absteve-se da sua companhia até ela ter dado à luz o seu primeiro filho, e o chamou de Jesus.” (OME, p. 36). Como se pode verificar, são omitidos os versículos que referem explicitamente a concepção divina de Jesus, “pelo poder do Espírito Santo” (Mt 1,18), bem como a visita do anjo do sonho de José, uma vez que “complicam a exposição […], não contradizem nem confirmam” a verdade desta doutrina (OME, p. 20).

352 Um exemplo deste procedimento é o tratamento de Jo 2, 23-25: “E assim em Jerusalém, muitos eram os que acreditavam naquilo que ele dizia. Mas ele próprio não acreditava em nada exterior [vnechnee] ao homem, porque sabia que tudo está dentro do homem. Não precisava que ninguém o elucidasse acerca das pessoas, pois sabia o que está dentro do homem – o espírito [dukh].” (OME, p. 52) Não só a relação causal entre crença e milagre, estabelecida nos versículos originais, é elidida – “muitos creram nele, ao verem os sinais miraculosos que fazia” (Jo 2,23) – como o que fica por denominar nos versículos originais – “e não precisava de que ninguém o elucidasse acerca das pessoas, pois sabia o que havia dentro delas” (Jo 2,25) – é aqui nomeado: “pois sabia o que está dentro do homem – o espírito”.

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redundância que pretende exaurir todos os sentidos das palavras de Jesus. Estas

são ditas, tal como as das outras personagens, quase exclusivamente em discurso

directo. No entanto, o discurso de Jesus não tem a brevidade sincopada dos

Evangelhos. A palavra é dada ao protagonista, que expõe os seus ensinamentos da

forma mais clara possível. Quando fala por parábolas, não deixa de fornecer o

sentido apenas implícito nas parábolas dos Evangelistas. Um exemplo

paradigmático desta permanente auto-exegese na versão de Tolstoi é a parábola do

Bom Pastor. Aos dois primeiros versículos do Evangelho “Em verdade, em

verdade vos digo: quem não entra pela porta no redil das ovelhas, mas sobe por

outro lado, é um ladrão e salteador. Aquele que entra pela porta, é o pastor das

ovelhas” (Jo 10,1-2), contrapõe o autor:

Uma terceira vez, Jesus ensinou as pessoas: “Os homens entregam-se aos

meus ensinamentos, não porque eu lhes dê provas da sua verdade. É impossível provar a verdade [dokazyvat’ istinu]. É a verdade que prova tudo o resto. Mas os homens entregam-se aos meus ensinamentos, porque eles são únicos e conhecidos dos homens, e prometem a vida. Os meus ensinamentos são para as pessoas como a voz familiar do pastor é para as suas ovelhas quando ele entra pela porta e vai ter com elas” (OME, 138).

Na versão de Tolstoi, a parábola é antecedida por um paradoxo que,

justamente, ilustra a parábola: a verdade existe, mas não pode ser provada nem

refutada – é ela que prova tudo o resto. Tal como os ouvintes do Jesus apresentado

por Tolstoi, também os leitores desta obra são desencorajados a procurar uma

justificação para a verdade que o protagonista reivindica: “É impossível provar

[dokazat’] se as palavras que são proferidas são de Deus ou não são de Deus. Deus

é espírito; Ele não pode ser avaliado [merit’], Ele não pode ser provado

[dokazat’]” (idem, 54).

Mesmo nestes momentos, em que é explicitamente negada a presença de

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“Deus” na gramática do dizível (ou pensável), o narrador vigilante de OME nada

deixa na penumbra. Tudo é trazido para a frente, não parecendo existir uma ilusão

de profundidade, um outro tempo ou espaço não especificados, como Auerbach

refere em relação à descrição exteriorizada e objectiva dos poemas homéricos, os

quais, por oposição ao estilo dramático genésico, resistem à interpretação.

A narrativa de Tolstoi pode e deve, com efeito, ser enquadrada numa

tradição que, na descrição de Auerbach, visa dispensar a interpretação e, com ela,

as indeterminações de sentido. O estilo com que Tolstoi apresenta a história de

Jesus é mais próprio do herói lendário do que do herói histórico do estilo

fragmentado do Novo Testamento. A dúvida que convoca a interpretação torna-se

um elemento desnecessário à compreensão do seu texto possivelmente mais

“homérico”, ou “redundante”. O autor encarrega-se de fornecer a sua auto-

exegese, literalizando o discurso e assinalando os limites daquilo que pode “ser

expresso com clareza”, mas também aquilo que não pode ser interpretado.

Com esta digressão sobre a versão dos Evangelhos de Tolstoi, cujo grau

de correcção, diz-nos o seu autor, reside “não nos seus raciocínios, mas na sua

unidade, clareza, simplicidade, completude, e pela sua harmonia com os

sentimentos internos de todos os que procuram a verdade353, e com as

considerações iniciais sobre o “princípio de caridade” esboçado no comentário às

suas diligências exegéticas (Aquilo em Que Acredito), pretende-se

fundamentalmente duas coisas. Em primeiro lugar, contextualizar o argumento dos

leitores para os quais a maior singularidade de Hadji-Murat reside na sua

incompatibilidade com a teologia do autor, que enforma, ou até motiva, todas as

suas obras ensaísticas e ficcionais do período pós-conversão. Em segundo lugar,

353 “s vnytrennim tchuvstvom kajdogo tcheloveka, ishchushchego istiny” (Cf. OME, p. 20).

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introduzir um tópico importante para a compreensão, quer do conceito de infecção

de OQA?, do qual já aqui falámos, quer dos métodos a partir dos quais Tolstoi vai

modificando e depurando a sua biografia sobre Hadji-Murat: a dispensa da

interpretação.

Por agora interessa sublinhar que no mesmo período em que continua a

exortar os seus leitores a não procurarem sentidos ocultos nos capítulos do Sermão

da Montanha, porque “significam precisamente aquilo que dizem” (AEQA, 90); em

que denuncia qualquer forma de opressão como contrária à lei universal inscrita

por Deus no coração de cada homem (seja a guerra, o patriotismo, os pogroms, o

serviço militar obrigatório, o dogma ou os tribunais); em que abre e encerra o seu

terceiro grande romance com citações dos evangelhos, que confirmam que é

preciso “perdoar sempre, perdoar a todos, perdoar vezes sem fim, porque não

havia quem não fosse culpado, não podendo por isso castigar ou corrigir”354, e em

que anuncia que a “arte deve eliminar a violência e só a arte o pode fazer”355,

Tolstoi depurava, em sucessivas revisões, a sua narrativa sobre o tão temerário

quanto vingativo herói da resistência dos montanheses.

O resultado deste longo processo de depuração é pouco consensual entre

os escassos críticos que se debruçaram sobre Hadji-Murat. Tal acontece, todavia,

não apenas por esta obra contrariar presumivelmente o “princípio da não-

resistência” que Tolstoi deriva do Sermão da Montanha e elege como a chave para

a compreensão da doutrina de Cristo, purgada dos sedimentos exegéticos e

conotações teológicas que a tinham transformado em afirmações metafísicas sobre

a divindade de Cristo.

354 Ressurreição [Voskresenie], Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Lisboa: Editorial Presença,

2010, p. 518. 355 OQA?, p. 167.

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De acordo com certos estudiosos, como R. F. Christian, as dez variantes

manuscritas de Hadji-Murat atestam o labor da transformação rigorosa de

personagens psicologicamente densas e complexas (o ur-Hadji-Murat, das

primeiras versões) em “personagens redondas”, mais opacas, e também mais

conformes àquilo que em OQA? é categorizado como literatura universal356.

Outros críticos, menos complacentes com os resultados práticos da teoria de arte

de Tolstoi, como John Bayley, inserem Hadji-Murat nos moldes narrativos

rígidos, e decepcionantes, que caracterizam a “arte da ficção” por que Tolstoi

pugnou na sua fase tardia. Outros ainda (e.g. David Herman), atentos às estratégias

paradoxais resultantes da “inscrição do silêncio”, analisam o árduo processo de

escrita de Hadji-Murat como um tour de force técnico, reminiscente do Livro de

Job, incompatível com os artigos da teologia oficial de Tolstoi e com os princípios

de inteligibilidade da comunicação artística, expostos em OQA?. Finalmente, um

outro grupo de críticos, do qual se destaca Harold Bloom, surpreendidos pela

descrição particularizada das personagens que desfilam fugazmente em Hadji-

Murat, mas fundamentalmente da do seu protagonista, herói simultaneamente

épico e trágico, em conflito com dois déspotas perversos, olham para a derradeira

obra-prima que Tolstoi escreveu como uma indulgência do seu autor à imaginação

artística que julgara ter esconjurado quando passa a devotar as suas energias à

imitatio Christi e à arte do sermão.

Após referir a escrupulosa reconstituição histórica de Hadji-Murat, Henri

Troyat, por exemplo, confessa não conseguir encontrar qualquer explicação para a

natureza anómala do regresso do escritor ao Cáucaso da sua juventude, e dos

primórdios da pura liberdade artística: o facto de Tolstoi ter conseguido escrever

356 Cf. R. F. Christian, Tolstoy: A Critical Introduction.

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uma obra tão irrepreensível do ponto de vista literário, tão desprovida das

reflexões religiosas e filosóficas que o ocupavam há mais de três décadas, e ao

lado das quais todos os prazeres (artísticos incluídos) empalideciam e pareciam

triviais, ou mesmo prejudiciais, permanece um enigma insondável357.

Harold Bloom, um dos leitores mais entusiastas de Hadji-Murat, ao qual

devota um capítulo do seu Cânone Ocidental, em detrimento das obras mais

conhecidas de Tolstoi, reflecte sobre o mesmo aspecto enigmático apontado por

Troyat, e conclui igualmente que o “profeta da não-violência” se encontra

simplesmente ausente da obra-prima que Tolstoi escreveu para o guerreiro

muçulmano, avatar moderno, numa era democrática, do herói da épica clássica. O

narrador de Hadji-Murat, à semelhança de Homero, não celebra nem deplora a

batalha – antes a aceita como lei básica da vida. Ao escrever a história do

guerreiro que “simultaneamente inventou e não inventou”, dotando-o de todas as

qualidades que Homero distribui por diferentes heróis, e nenhum dos seus

defeitos, Tolstoi ficou “tão fascinado pela arte do contador de histórias que se

liberta das doutrinas tolstoianas e aceita, ao invés, a pureza da arte e da sua

práxis”358. Ao aceitar, involuntariamente, a “pura arte”, centrando-se na

representação da mudança interior do seu protagonista e na arte de justapor cenas

contrastantes, Tolstoi liberta a narrativa das usuais “digressões predicais”, sejam

estas as suas crenças morais, religiosas ou estéticas. O que resulta desta

‘involuntária suspensão da crença’ é “a mais grandiosa excepção do Tolstoi da

última fase, pois aqui o velho xamã rivaliza com Shakespeare”359. Hadji-Murat

não é apenas uma narrativa estranha pela sua atmosfera homérica; o Tolstoi que

357 Troyat, op. cit., p. 578. 358 Harold Bloom, “Tolstoy and Heroism”, p. 319. 359 Idem, p. 317.

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narra a história do herói epónimo é, como Shakespeare, “simultaneamente todos e

ninguém, tanto interessado como desinteressado, profundamente implicado e,

contudo, desapaixonado”360. O seu inesquecível protagonista, que morre como

nenhum outro protagonista anterior a si, provocador como os heróis trágicos de

Shakespeare, mas, e ao contrário de Rei Lear, sem “combater ou conjurar forças

demoníacas”, é também, num triunfo irónico do dramaturgo que Tolstoi tentara

esconjurar, com virulência absurda, no seu ensaio sobre Shakespeare, “uma versão

shakespeareana de Tolstoi”. Quer pelos seus “shakespeareanismos inconscientes”,

o catálogo infindável de personagens vividamente particularizadas, quer pelo

modo como ficamos a conhecer o mundo interior do admirável guerreiro, Hadji-

Murat é, para Bloom, “a melhor história do mundo” porque é, indiscutivelmente, a

história mais shakespeareana do romancista, a sua “pedra-de-toque pessoal do

sublime da prosa de ficção”361.

Em contraste com o panegírico de Bloom à qualidade única do sublime

em Hadji-Murat, a qual tudo desculpa, até o seu “simbolismo demasiado óbvio”,

técnica subversiva desta narrativa, “tão estranha como a Odisseia e tão familiar

como Hemingway”362, o crítico britânico John Bayley olha para esta novela como

o culminar da busca pela perfeição estética. Lamenta-o porém pelos motivos pelos

quais Bloom o celebra. A nova “arte da comunhão” do Tolstoi crescentemente

metafórico e confiante na arte de “infectar o seu recipiente com um sentimento”, a

qual personagens como Platon Karataev, ou mesmo Andrei, com as suas

intimações da imortalidade e da natureza (e.g. o “céu alto”, sob o campo de

Austerlitz, ou o velho carvalho), já anunciam, lapsos simbólicos numa obra de

360 Bloom, op. cit, p. 316. 361 Idem, p. 313. 362 Idem, p. 314.

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outro modo exemplar, poderá ser “mais laboriosamente urdida” do que qualquer

outra narrativa de Tolstoi. Todavia, por este mesmo motivo, é decepcionante:

Hadji-Murat não é mais do que uma “parábola sem sentido”363.

Na apreciação deflacionada de Bayley dos recursos estilísticos que Hadji-

Murat exibe, a arte de Tolstoi torna-se ali impessoal, esvaziada, e as pessoas

desaparecem de cena. O egotismo gargantuesco de Tolstoi, a sua auto-absorção,

condição necessária da monumental galeria de indivíduos encarnados e

imperfeitos que desfilam como que por acidente em Guerra e Paz, é sacrificado no

altar, não da “arte pela arte”, mas no da “vida boa”, na imitação do que “deverá

ser”. As personagens anteriores, tão individuais nas suas idiossincrasias e na

consciência de si quanto o seu criador omnipresente, são substituídas pelas

construções parabólicas enfadonhas, pelos símbolos que denotam, através de

sinédoques óbvias, os protagonistas desprovidos de personalidade.

O exemplo paradigmático desta transformação é a comparação elaborada

no início do conto (e retomada na coda final), o breve apólogo que emoldura a

narrativa de Hadji-Murat. Neste apólogo, que incorpora e amplia a entrada do

diário de Tolstoi, citada no início deste capítulo, onde o autor regista pela primeira

vez o plano de escrever a história sobre o célebre “salteador”, o narrador descreve

como, de regresso a casa após um passeio pelos campos, vê um maravilhoso cardo

carmesim, daquela espécie ao qual se chama de “tártaro”. Ao tentar apanhá-lo,

para o acrescentar ao seu ramo de flores campestres, constata a dificuldade, e

futilidade, e executar a tarefa:

Muito difícil, porém: a haste não só picava por todos os lados, mesmo

através do lenço com que eu tinha envolvido a mão, mas era também tão duro que lutei com ele uns cinco minutos, pelo menos, rasgando os filamentos um a

363 John Bayley, op. cit., p. 192.

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um. Quando, por fim, arranquei a flor, a haste estava toda em farrapos e a flor já não parecia fresca nem bonita. Além disso, o seu aspecto tosco e berrante não condizia com as ternas flores com que eu compusera o ramo. Lamentei ter destruído inutilmente uma flor que, no seu lugar, era tão linda. Deitei-a fora. “É impressionante a força, a energia daquela flor – pensei, recordando o que me custara a arrancá-la. – Lutou muito pela vida e vendeu-a caro”(HM, 9-10).

Após um breve comentário sobre a natureza rapace e cruel da espécie

humana, o narrador procura involuntariamente qualquer sinal de vida no campo

negro acabado de lavrar e repara num pequeno arbusto, que sobrevivera à acção do

homem, um segundo “tártaro” solitário, semelhante àquele a que tinha arrancado

inutilmente uma flor. Desta vez não tenta, porém, enriquecer o seu ramo de “ternas

flores” com a flor “tosca e berrante” do “tártaro”, cuja tenacidade e apego à vida o

faz recordar-se de “uma história caucasiana”:

O arbusto de “tártaro” tinha três hastes. Uma fora arrancada, as outras

duas espetavam-se como cotos de braço. Cada qual com a sua flor, dantes vermelha, agora preta. Um caule dobrava-se, partido, com a sua flor suja na ponta; o outro, embora coberto de lama negra, ainda se erguia. Era evidente que o arbustinho fora pisado por uma roda e só depois se levantara, estando por isso retorcido. E mesmo assim de pé, era como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo e um braço, o tivessem esventrado, lhe tivessem vazado um olho, mas segurava-se em pé e não se entregava ao homem que matara todos os irmãos à volta.

“Mas que energia! – pensei. – O homem venceu tudo, exterminou milhões de ervas, mas ele continua a resistir.”

Então, lembrei-me de uma história caucasiana que em parte testemunhei, em parte ouvi contar por outros, e o resto fantasiei. Esta história, tal como se formou na minha memoria e imaginação é a que relato a seguir.” (HM, 10)

Se Harold Bloom nos revela que, a cada vez em que relê este prelúdio,

fica maravilhado pelo facto de o seu simbolismo demasiado óbvio não lhe parecer

um defeito estético, o mesmo não sucede com Bayley. Diante da metáfora

transparente do cardo para denotar as qualidades do protagonista, e do tom

parabólico que este prefácio confere à narrativa que emoldura, o crítico conclui

que tais recursos facilitam a apreensão do sentido da narrativa, tornando-a

possivelmente inteligível até para uma audiência de camponeses iletrados (ou, nos

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seus termos, “rústicos”). Se estes recursos constitutivos da técnica de Hadji-Murat

tornam tudo, como Bloom coloca, “extraordinariamente óbvio”, permitem a

também a Tolstoi consumar nesta novela o ideal preconizado em OQA?. São os

sinais visíveis do processo de desumanização operado pela teoria da arte do

Tolstoi tardio: “e isto em prole de nada – porque o conto não ilustra nada, mas é

sobre Hadji-Murad tout court”364.

As intromissões do autor pré-conversão, as digressões e os recalcitrantes

epílogos que tamanhas objecções tinham suscitado nos primeiros leitores de

Guerra e Paz, e que Tolstoi, após a maturação de um novo manifesto literário,

planeara depurar com a ajuda de Strakhov, são celebrados por Bayley, por motivos

parecidos com os que E. M. Forster, em Aspects of the Novel, enaltece o romance

‘imperfeito’ de Tolstoi. Tais violações do distanciamento estético constituem a

marca do solipsismo – a particularidade, ou, na variante tipicamente tolstoiana

desta qualidade, o que Bayley designa de “samodovolnost” (auto-suficiência ou

auto-estima)365. Este intenso sentimento físico de si que Tolstoi consegue

transmitir num movimento metonímico às suas criações é conceptualizado no

epílogo de Guerra e Paz, em particular na afirmação solipsista recorrente – “Eu

sou único e tudo o que existe é apenas eu” – ou, nas palavras de Wittgenstein, “eu

sou o meu mundo. (o microcosmos)” (TLP, §5.63).

Todas as suas personagens [à excepção de Karataev] vêem a realidade tal

como ela é. A asserção do seu solipsismo é tão grande que consegue criar um solipsismo comparável nas suas personagens; ele não as alcança tanto por meio da intuição ou simpatia como por as dotar do mesmo poder de existência absoluta e primeva que ele próprio possui. Temos de olhar para Shakespeare para ter alguma coisa que se lhe aproxime, mas Shakespeare enquanto pessoa está ausente da sua criação. A presença de Tolstoi ali é esmagadora, mas a

364 Bayley, op. cit., p. 192. 365 Idem, p. 43, et passim.

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presença das suas personagens também é esmagadora. A visão de Tolstoi é mais ampla, mais total, mas não é mais autêntica do que a das suas personagens366.

Como Platon Karataev, que permaneceria sempre para Pierre

“extraordinário, redondo, eterna personificação da simplicidade e da verdade”367,

Tolstoi sucumbe à tentação de ilustrar uma ideia e não consegue conferir “carne”

àquele camponês-cristão que apenas existe para a, e através da, consciência de

Pierre. A ênfase nas qualidades físicas de Karataev, na sua forma esférica, voz ou

cheiro, não suprem, de acordo com o critério subitamente severo de Bayley, a

ausência da particularidade que insufla de vitalidade todas as outras personagens

de Guerra e Paz, “seres inteiramente sentientes” [fully sentient beings]368.

Bayley censura a reiteração da qualidade esférica de Karataev, o uso da

metáfora, “que unifica”, em detrimento da afirmação do solipsismo tolstoiano,

“que diversifica” e é incompatível com quem “viu a luz” e busca a união com os

outros homens por meio de uma arte religiosa (ou “católica”, no sentido de

“universal”). Ao fazê-lo, está também de certa forma a censurar Hadji-Murat e

todos os protagonistas (incluindo o narrador de Confissão) que surgem após Anna

Karenina. Nesta obra, que Tolstoi considerava ser o seu primeiro romance, as

intromissões do autor, as célebres “generalizações”, tendem a tornar-se menos

evidentes, as metáforas são mais óbvias (e.g. a luz da vela que se apaga na cena do

suicídio de Anna), até se desvanecerem por completo em narrativas como Hadji-

Murat, substituídas por prefácios e epílogos proverbiais, “demasiadamente

óbvios” e esvaziados de conteúdo. Tal modificação de método confere, concede

Bayley, um novo tom e coerência artísticos até então ausentes do estilo de Tolstoi,

mais congruentes, não obstante os evidentes assomos da “disfarçada 366 Idem, p. 158. 367 Tolstoi, Guerra e Paz, Livro IV, p. 61. 368 Bayley, op. cit., p. 50.

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tendenciosidade” ou assertividade da sua personalidade369, com o ideal do “well-

wrought book” de Percy Lubbock e Henry James (mas também, de certo modo, do

da “pura práxis”, enaltecida por Bloom). Retira, todavia, a qualidade “dramática,

complexa e multiforme, e até shakespeareana”, do Tolstoi pré-conversão

religiosa370.

Por seu turno, Wittgenstein, um outro notável leitor do Tolstoi tardio,

parece ter sido imune aos efeitos negativos, mencionados por Bayley, da

superação do “solipsismo tolstoiano” a favor do princípio que afirma que uma

obra literária é tanto melhor quanto mais mostrar aquilo que deverá ser (i.e. o

caminho do bem), e não descrever aquilo que aconteceu371. Para além de professo

admirador das narrativas exemplares e parábolas religiosas, coligidas e publicadas

sob o título inglês de Twenty-Three Tales372, Wittgenstein nutria particular apreço

por Hadji-Murat. As evidências biográficas apontam para que este apreço se terá

mantido constante e que o entusiasmo inicial de Wittgenstein por esta obra

369 Idem, p. 274. 370 Bayley contrasta os epílogos (os ensaios sobre a história) de Guerra e Paz com a última parte

de Anna Karenina, censurada pelo editor “eslavófilo” da revista onde esta obra foi primeiro publicada. Mesmo constituindo o epílogo de Anna Karenina uma intromissão das reflexões de Tolstoi sobre as questões políticas da altura (a “questão eslava” e a guerra da Sérvia contra os Turcos), na forma do romance, ele é “económico, ficcional, metafórico”. Estas qualidades que se, por um lado, aproximarão Anna Karenina do ideal do “well-wrought book” de Percy Lubbock e Henry James (cujas críticas a Guerra e Paz Bayley se dedica a desmontar) afastam-no, por outro, do ideal de Bayley: perde-se a “aparente liberdade e variedade do epílogo Guerra e Paz”, a sua qualidade “dramática, complexa e multiforme e, até mesmo, shakespeareana” (Bayley, op. cit, p. 187).

371 Em “Onde está a verdade na arte?” (1887), Tolstoi, contrariando o que afirma em outros escritos, reafirma o princípio aristotélico de que a arte trata não daquilo que aconteceu (o contingente), mas daquilo que poderia acontecer (o universal), e que uma obra literária é tanto melhor quanto mostrar aquilo que deverá ser, e não descrever aquilo que aconteceu. O seu argumento é curioso: para mostrar o que deverá ser [i.e. o caminho do bem] é impossível descrever apenas aquilo que aconteceu. Cf. Tolstoi, Shakespeare, The Christian Teaching, Letters and Introductions, pp. 185-87.

372 Nas suas memórias sobre o período em que estudara com Wittgenstein, em Cambridge, no ano lectivo de 1946/47, Norman Malcolm testemunha que Wittgenstein “tinha uma opinião extremamente elevada destas histórias”. Malcolm refere ainda que, certa vez, estando Wittgenstein desagradado consigo (por um motivo do qual já se esquecera), mencionou numa conversa as narrativas morais de Tolstoi e o efeito no imprevisível mestre foi imediato: Wittgenstein “tornou-se amigável e animado”. Cf. Norman Malcolm, Ludwig Wittgenstein, A Memoir. Oxford: Clarendon Press, 2001, p. 45.

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“maravilhosa”, expresso numa carta a Bertrand Russell, datada de 1912, quando

estudava ainda com o filósofo e matemático em Cambridge, não se terá

desvanecido373. Décadas mais tarde, Wittgenstein continua a qualificar Hadji-

Murat com o mesmo adjectivo e a aconselhar a sua leitura.

Verifica-se que se, sob a influência da lição moral de Os Meus

Evangelhos, Wittgenstein aconselhava a sua leitura aos amigos que atravessavam

crises espirituais, uma vez que aquela obra o mantivera “praticamente vivo”

quando combatia como voluntário na Frente Russa374, também conselhava Hadji-

Murat aos discípulos que cumpriam o serviço militar a bordo de um navio.

Em resposta a uma carta do filósofo norte-americano Norman Malcolm,

datada de 26 de Junho de 1945, onde aquele se referia à guerra como um

“tédio”375, Wittgenstein objecta a esta descrição e afirma que o estado de

aborrecimento de que Malcolm se lamenta é sintoma de uma fraca “digestão

mental”. Wittgenstein compara a atitude de Malcolm à de um aluno que encara a

intensa aprendizagem na escola com a mesma sensação de tédio: ambos não estão

a aprender o muito que se pode aprender naquelas duas situações. Ao pupilo

ficcional entediado, Wittgenstein poderia responder que, predispusesse-se ele para

a aprendizagem [if he only could get himself to learn], aprenderia o que se pode

aprender naquela situação, e não julgaria a escola um local tão aborrecido. Ao

discípulo e amigo, Wittgenstein sublinha que acredita que muito se poderá

aprender sobre os seres humanos no contexto de uma guerra, “se conseguirmos

373 Este apreço manteve-se constante. Wittgenstein lê Hadji-Murat pela primeira vez em 1912. No

Verão do mesmo ano escreve a Bertrand Russell, aconselhando a sua leitura e sublinha o seu entusiasmo: “se não leu, deveria, porque é maravilhosa.” Cf. Wittgenstein, Wittgenstein in Cambridge: Letters and Documents, 1911-1951, Brian McGuinness (ed.), Oxford: Blackwell Publishing, 2008, p. 35. Numa outra carta para Rush Rhees, datada de 25.6.45, Wittgenstein diz que leu recentemente Hadji-Murat, “um livro maravilhoso [a wonderful book]” (idem, p. 378).

374 Cf. Carta de Wittgenstein a Ludwig von Ficker (24.07.1915), citada em Monk, op. cit., p. 132. 375 Norman Malcolm, op. cit., p. 36.

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manter os olhos abertos”376. Neste momento, será conveniente recordar que as

notas esparsas sobre o sentido da vida, a morte, o dever, a vida autêntica, Deus e

religião, que surgem nos Cadernos e no Prototractatus377 – e nas secções do

Tractatus que tanto surpreenderiam Bertrand Russell pelo seu misticismo –, foram

escritas quando Wittgenstein combatia na I Guerra Mundial. Reflexões como

“Crer num Deus significa compreender a questão do sentido da vida. / Crer num

Deus significa perceber que ainda nem tudo está decidido com os factos do

mundo. / Crer em Deus significa perceber que a vida tem um sentido”378, cujo

conteúdo as aproxima de Confissão e cuja formulação as aproxima mais de uma

oração do que de um argumento filosófico, revelam como a busca de Wittgenstein

para a solução final do problema da filosofia está intimamente relacionada com a

questão que a guerra, o perigo e a morte tornara possivelmente ainda mais

premente: “Como posso ser um bom filósofo quando não consigo ser um homem

bom?”379. A bordo do seu navio, Wittgenstein anotava nos seus cadernos e diários

codificados que “[p]ara a vida no presente não há morte”; “[o] medo perante a

morte é o melhor sinal de uma vida falsa, isto é, má”; só quem vive “no presente e

para o espírito” é livre380. Atestava também a influência da lição ética contida no

“único livro” que encontrara na pequena livraria de Tarnov, Os Meus Evangelhos:

“Repito as palavras de Tolstoi vezes sem conta na minha cabeça: ‘O homem é

impotente na carne mas livre por causa do espírito.’ Possa o espírito estar em

376 Malcolm, op. cit, p. 95. 377 Cf. Brian McGuinness, Approaches to Wittgenstein: Collected Papers, London: Routledge,

2002. 378 Wittgenstein, Cadernos 1914-1916, João Tiago Proença (trad.), Lisboa: Edições 70, 2004, p.

110. 379 Brian McGuinness, Wittgenstein: A Life, Young Ludwig 1889-1921, London: Penguin, 1990, p.

227. 380 Wittgenstein, Cadernos 1914-1916, p. 111; McGuinness, idem, p. 222.

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mim! [...] Não tenho medo de ser morto, mas de não cumprir o meu dever

correctamente. Deus me dê a força! Ámen. Ámen. Ámen”381.

Retomando a analogia expressa por Wittgenstein na carta a Malcolm

acima citada, se “pensar é digerir” e “quanto melhor estivermos a pensar, mais

retiraremos daquilo que estivermos a ver”382, no caso de uma “digestão mental”

atrofiada, Wittgenstein sugere a sua estimulação através da leitura de certos livros.

E o livro seleccionado para obter o efeito pretendido, isto é, para suprir o défice de

atenção reflexiva de Malcolm, do qual o seu professo tédio a bordo do navio de

guerra é sintoma, é Hadji-Murat, um exemplar do qual Wittgenstein acaba por

enviar a Malcolm.

Numa outra carta, por datar, escrita cerca de dois meses mais tarde,

Wittgenstein menciona novamente Hadji-Murat para reafirmar que há muito para

aprender com a leitura desta obra “porque há muito nela” [there is a lot in it]”.

Wittgenstein não tenta, tipicamente, esclarecer a natureza dos conteúdos

cognitivos de Hadji-Murat; limita-se a dizer que espera que Malcolm retire muito

desta leitura. Acrescenta, porém, a qualificação importante: esta obra é a prova de

que o seu autor é “um homem A SÉRIO” e de que “tem o direito de escrever”383.

Embora elípticos, como seria, de resto, de esperar, os comentários de

Wittgenstein sobre Hadji-Murat são relevantes. Em primeiro lugar, e para manter

a metáfora terapêutica da primeira carta de Wittgenstein, apontam para o seu

estatuto de potencial coadjuvante de “digestões mentais” deficientes, sugerindo

que o seu possível efeito terapêutico passa, não pela aquisição de novos

conhecimentos, mas por dirigir a atenção para ver o que está oculto pela sua

381 McGuinness, op. cit., pp. 220-21. 382 Malcolm, Carta de 26.6.45, op. cit., p. 95. 383 Idem, p. 97.

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simplicidade e familiaridade – e que portanto não está a ser digerido. Em segundo

lugar, estabelecem a relação entre carácter e obra, entre ser um “homem a sério” e

“ter o direito a escrever”, isto é, o direito moral. Esta relação, expressa na injunção

de Wittgenstein atrás citada – “Como posso ser um bom filósofo quando não

consigo ser um homem bom?” – e em diversos comentários reunidos em CV, é

reivindicada, como vimos no capítulo precedente, tanto por Wittgenstein, para

justificar as suas dúvidas quanto ao estatuto de Shakespeare, como por Tolstoi,

para recusar a “hipnose de Shakespeare”.

Por agora, interessa sublinhar a possibilidade de que na apreciação de

Wittgenstein Hadji-Murat, pelas razões invocadas, surgisse como um candidato

para integrar a lista, se não das “coisas imensas em arte” que identifica nas suas

aulas sobre estética, pelo menos da lista de obras que se dirigem a nós “na

linguagem de um grande ser humano”. Daquele conjunto de obras que mostram,

contra a cultura progressista dominante, que a melhor arte tem outro estatuto que

não apenas o de entreter ou distrair (CV, 81e, 42e).

Quer seja lida como uma fonte histórica384, uma glorificação da luta,

incompatível com a doutrina da não-violência, uma descrição não dogmática de

uma pulsão básica da vida, como uma superação do solipsismo que insufla de

vitalidade as personagens pré-profeta do pacifismo, ou ainda como um ‘manual

terapêutico’ em tempos de guerra, Hadji-Murat não deixa de surpreender. (Tal

como não deixa de surpreender que a sua recepção tenha dado origem a um corpus

crítico, não só pouco estável, como despiciendo quando comparado com outras

novelas de Tolstoi). Por um lado, não é a obra que se poderia esperar do autor que

mesmo naqueles romances que repudia por serem, como Rei Lear, tão desprovidos

384 Herman refere que este é um dos eixos basilares, a partir dos quais a recepção crítica soviética

de Hadji-Murat se desenvolveu. Cf. Herman, op. cit.

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de uma clara concepção do bem e do mal, já objectava, através de Levin, a todos

os argumentos invocados para justificar a priori uma guerra: “quaisquer que

fossem os objectivos comuns”385. Por outro, não é a obra mais harmonizável com

os escritos que se seguiram a Confissão, em particular, com O Reino de Deus Está

Dentro de Vós (que tanto influenciaria Gandhi) e AEQA, onde Tolstoi não cessa de

glosar a ideia de que “qualquer acto de violência, pilhagem, execução ou guerra

são o resultado, não da força irracional da natureza, mas da ignorância do homem

do que é a verdade” (AEQA?, 235).

Hadji-Murat, cujas proezas, celebradas pelos convidados do velho

príncipe Vorontsov, incluíam ter irrompido em pleno dia em Temir-Cão-Chura e

assaltado várias lojas, e ter mandado matar “vinte e seis prisioneiros” (HM, 49),

não é o herói mais congruente com o postulado de que a arte do futuro, “ao

invocar os sentimentos de fraternidade e amor nas pessoas sob condições

imaginárias, [...] treinará as pessoas a experimentar os mesmos sentimentos na

realidade sob as mesmas condições” (OQA?, 166).

Embora tal congruência entre teoria e prática não seja certamente um

imperativo (mesmo no caso de Tolstoi), nem tão pouco um desiderato para a

maioria dos leitores e críticos, não deixa de ser misterioso que Hadji-Murat, após

as suas diversas redacções, pareça violar de forma tão flagrante, como Henri

Troyat ou Harold Bloom afirmam, sem qualquer resquício de pesar, todas as

crenças morais e estéticas que Tolstoi preconiza (ou que é tido comummente por

preconizar) em OQA? e em ST. Talvez seja conveniente abrir aqui um parênteses

para reiterar que, ao chamar a atenção para este aspecto, não pretendo atribuir uma

autoridade particular aos eventuais comentários de Tolstoi sobre a sua obra

385 Anna Karenina, p. 815, meus itálicos.

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literária (tecidos quer nos diários, quer na correspondência ou ensaios) nem

defender a tese implícita de que o sentido de Hadji-Murat equivale àquele

estipulado pelo seu autor. Não disputo a evidência de que um autor não é

necessariamente um bom juiz do que se encontra realizado no seu texto, isto é, no

caso de ter deixado um corpus crítico. Todavia, reconheço, à semelhança de

Martha Nussbaum em relação a Henry James e aos seus prefácios386, que há

excepções e Tolstoi, pese embora a sua relutância em oferecer comentários sobre

qualquer uma das suas obras ficcionais, para além daqueles que as integram, é

uma delas. Neste sentido, recorde-se que o próprio Tolstoi defende que o sentido

de uma obra literária pode divergir radicalmente da intenção original do autor.

Num curto texto sobre Anton Tchekhov, cujos contos apreciava (ao contrário da

sua obra dramática), Tolstoi analisa “A Querida” [“Dychetchka”, 1899] a partir

desta estratégia hermenêutica e atribui a excelência do conto à assimetria que

verifica entre a intenção original (do autor empírico) e a intenção realizada no

texto. A ser verdade a hipótese de que Tchekhov, enformado por certas ideias

(feministas), pelo “espírito do tempo” (expressão pouco querida de Tolstoi),

pretendia com a sua história “mostrar o que uma mulher não deve ser”,

ridicularizando a sua heroína, sucede que, “ao dirigir para ela a atenção

concentrada de um poeta”, acaba por mostrar involuntariamente o inverso387. O

resultado deste desvio – tanto ou mais bem conseguido quanto involuntário – é

uma obra literária mais complexa do que o intuito didáctico inicial de defender a

“questão das mulheres” poderia permitir vislumbrar (pelo menos do ponto de vista

de Tolstoi). Ao invés de amaldiçoar a patética “queridinha”, Tchekhov, tal como

386 Cf. Martha Nussbaum, “Introduction: Form and Content, Philosophy and Literature”, p. 10, et

passim. 387 Tolstoi, “An Afterword to ‘Darling’”, What Is Art? and Essays On Art, Aylmer Maude (trad.),

Tolstoy Centenary Edition, Oxford, London: Oxford UP, 1929, pp. 325, 327.

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Balaam, na narrativa bíblica, e o verdadeiro artista, acaba por abençoar aquela

mulher desprovida de ‘consciência de si’, de interesses e opiniões próprias, a não

ser as que absorve por osmose, e com igual grau de entusiasmo, dos homens que

se sucedem na sua vida: ao entusiasmo pela gestão do teatro do primeiro marido

segue-se o entusiasmo pelo negócio da madeira do segundo; ao da luta contra

epidemias bovinas do veterinário segue-se, por fim, o da gramática e o da rotina

escolar do filho adoptivo. Não importa aqui discutir a noção de “intenção autoral”

de Tolstoi, aventar se ela procederá ou não do que a crítica e teoria da literatura do

século XX designariam de falácia intencional (ou genética). Poderemos discordar

da conclusão da leitura de Tolstoi do “efeito involuntário” que Tchekhov, como

verdadeiro poeta que é, obtém ao prolongar a sua atenção (e, por conseguinte, a do

leitor) sobre Olenka – o de que ela “permanecerá sempre um exemplo do que a

mulher pode ser por forma a ser feliz e a tornar felizes aqueles com quem o seu

destino está unido”388. O que interessa sublinhar é que Tolstoi admite não só a

possibilidade de o sentido de um texto colidir com a intenção do autor como

também nesta divergência residir o seu valor artístico.

Todavia, como já aludido, tal assimetria não impede John Bayley e R. F.

Christian de citarem Hadji-Murat, pesem embora as diferentes conclusões, como

um candidato para figurar numa das duas categorias da arte, no sentido pleno da

palavra, estipuladas em OQA?: a arte religiosa, que transmite sentimentos

explicitamente religiosos, ou a arte universal, que transmite sentimentos elevados,

acessíveis a todos.

Ressalve-se que esta distinção, delineada em OQA?, muitas vezes mal

descrita (ao que não será alheia a oscilação na argumentação de Tolstoi), não se

388 Tolstoi, “An Afterword to ‘Darling’”, p. 327.

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reporta a obras avaliadas independentemente do seu conteúdo, isto é, avaliadas

exclusivamente através do critério de infecção389. Num dos capítulos mais

criticados deste ensaio, o capítulo XVI, Tolstoi acrescenta um outro critério para

avaliação da arte: o seu conteúdo moral. No âmbito da teoria da arte de Tolstoi,

este segundo critério determina se o objecto artístico, i.e., o objecto que cumpre a

condição necessária e suficiente da arte (a infecção) entra para a categoria de arte

cristã – a arte no sentido mais elevado da palavra. Tolstoi resolve então subdividir

esta categoria em duas subcategorias: a arte religiosa e a arte universal. A primeira

transmite sentimentos positivos (de amor a Deus ou ao próximo) ou sentimentos

negativos (de indignação ou terror pela violação deste amor); a segunda transmite

sentimentos inteligíveis a todos. Um dos exemplos que Tolstoi oferece desta

segunda subcategoria é, porventura, mais esclarecedor do que a estipulação do seu

“conteúdo” (i.e. sentimentos inteligíveis a todos), ou mesmo do que as obras

literárias que Tolstoi cita, com hesitação, como candidatos à categoria de “arte

universal” (e.g. Dom Quixote, David Copperfield, Pickwick Papers, os contos de

Gogol, Puchkin, “alguns dos escritos de Maupassant”, sem esquecer o seu “O

Prisioneiro do Cáucaso”390): a narrativa bíblica de José e dos irmãos. Tolstoi

389 Como afirmámos no capítulo anterior, de acordo com a teoria de OQA?, a primeira condição

que um candidato tem de cumprir para ser considerado arte é ser infeccioso: quanto maior a sua capacidade de infecção, maior é o seu valor qua arte. Objectos que falhem em cumprir esta condição são excluídos do domínio da arte; não podem ser sequer classificados como boa ou má arte; são pseudo-arte, contrafacções. Refira-se ainda que, não obstante as flutuações e non sequiturs, dos quais está, aliás, consciente, Tolstoi pretende reiterar que “só existem duas espécies de boa arte cristã; tudo o resto [que cumpra o critério de infecção, mas] que não corresponda a nenhuma destas espécies, deve ser classificado como má arte” (OQA?, p. 136).

390 Neste aspecto, Tolstoi não pode ser acusado de incoerência: ao aplicar os seus dois critérios de avaliação da arte, recusando o estatuto de arte, no verdadeiro sentido da palavra, a praticamente todo o cânone ocidental, também o recusa a todo o seu corpus literário, produzido até OQA?. Como já referido, a excepção é feita, numa nota de rodapé, a dois contos, “Deus Vê a Verdade Mas Espera” e “O Prisioneiro do Cáucaso”, ambos publicados em 1872 (e incluídos na sua cartilha, Azbuka). O primeiro, uma versão da história favorita de Platon Karataev, de Guerra e Paz, sobre um comerciante falsamente acusado de assassínio que aceita as suas vicissitudes com espírito cristão, é inserido na categoria de arte religiosa. O segundo, a história de um soldado russo capturado pelos tártaros, e que consegue fugir com a ajuda de uma criança tártara, é inserida na de arte universal (cf. OQA?, n.r., p. 198).

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conclui que, em contraste com os outros exemplos “mais literários”, a narrativa

bíblica transmite sentimentos acessíveis a todos, independentemente do credo,

idade, nacionalidade ou grau de instrução: todos podem compreender, isto é,

ressoar com as desventuras e venturas do filho predilecto de Deus, José. Na

verdade, o que parece distinguir esta narrativa das outras obras que Tolstoi hesita

em classificar de arte universal, reconhecendo a dificuldade de aplicar a distinção

a “obras de arte verbal modernas” (OQA?, 134), é tanto a espécie de sentimentos

transmitidos (a inveja dos irmãos de José, a luxúria da mulher de Potifar), como a

qualidade da forma através da qual tais sentimentos são comunicados, ou infectam

o seu recipiente – a depuração e a ausência de pormenores e informações

supérfluas:

Na narrativa de José não havia necessidade de descrever em pormenor,

como hoje acontece, as roupas manchadas de sangue de José, a casa e as roupas de Jacob, e a afectação ou vestes da mulher de Potifar quando, ajeitando uma pulseira no braço esquerdo, disse ‘Vem a mim’, e por aí adiante, porque o sentimento contido nesta história é tão forte que todos os pormenores, excepto os mais necessários – por exemplo, que José se afastou para chorar391 – são supérfluos e apenas serviriam para prejudicar a transmissão do sentimento, e por isso esta história é acessível a todas as pessoas, toca as pessoas de todas as nações, estrato, idade, chegou até nós, e continuará a viver durante milhares de anos. Mas retirem os pormenores aos melhores romances da nossa época, e o que restará? (OQA?,134).

No âmbito da defesa daquilo que George Orwell apodou de concepção

rarefeita da literatura do Tolstoi pós-apostasia artística, da literatura como uma

parábola “quase independente da linguagem”392, justifica-se a possibilidade de que

Hadji-Murat, embora não ilustre nada e não seja compaginável com a doutrina da

não-violência propugnada pelo seu autor, possa aspirar ao que Tolstoi define como

arte universal, cujo paradigma é a história de José e seus irmãos. Face às 391 Tolstoi refere-se aqui ao reencontro de José e os irmãos, no Egipto, quando estes falam entre si

sobre o mal que tinham feito ao irmão mais novo, julgando que o governador (o irmão) não os compreenderia (Gn 42,24).

392 George Orwell, “Lear, Tolstoy and The Fool”, p. 126.

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transformações e sucessivas depurações por que Hadji-Murat passa desde a sua

primeira redacção, até chegar à sua forma final, é esta a conclusão de R. F.

Christian:

Cristalina, excitante e supremamente bem narrada, [Hadji-Murat] aspira

àquela categoria de literatura universal a que Tolstoi conferiu um estatuto tão elevado no seu tratado O Que é a Arte?, pois se, por um lado, ela reconhece [acknowledges] a força motora da vingança e da ambição, e embora nada avance em prol da causa da resistência passiva, o seu pathos está alicerçado no que Tolstoi chamava de “aqueles sentimentos muito simples e comuns, acessíveis a todos” – os sentimentos de solidariedade familiar e de compaixão pela vida humana393.

Mais adiante irei retomar esta possibilidade, averiguando as suas

consequências. Importa, para já, sublinhar que ao propor Hadji-Murat como um

candidato à categoria de arte universal se está a chamar a atenção para dois

aspectos importantes, interligados: o primeiro, que a categoria de arte universal

(ou arte cristã), tal como estipulada por Tolstoi, é incompatível com a afirmação

de doutrinas ou de teses filosóficas e, por conseguinte, com a teoria didáctica da

literatura, comummente imputada a OQA?394; o segundo, que ao despender

considerável esforço para transformar personagens complexas e contraditórias (o

Ur-Hadji-Murat) em personagens redondas, ou mais opacas, Tolstoi consegue

veicular “aqueles sentimentos muito simples e comuns, acessíveis a todos”,

alicerce do que em OQA? é definido como a marca da arte no sentido mais

elevado da palavra, a arte cristã.

Por agora, não interessa confirmar ou disputar a ideia de que Hadji-

Murat, pelos motivos referidos, possa ser, não obstante a sua incompatibilidade

com as doutrinas morais de Tolstoi, um exemplo da “arte da comunhão”, da arte

do futuro que, “ao transferir a consciência religiosa cristã do domínio da mente e 393 R. F. Christian, Tolstoy: A Critical Introduction, p. 246. 394 Recorde-se a discussão do capítulo anterior.

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da razão para o domínio do sentimento, aproximará as pessoas, na prática, na

própria vida, do ideal de perfeição e de união que lhes é indicado pela consciência

religiosa” (OQA?, 156).

Importa, sim, discutir ainda alguns dos aspectos que tornam esta obra um

facto singular no contexto da obra literária do seu autor.

Por um lado, Hadji-Murat não se insere no ciclo de contos “escritos para

todos” (“narodnye rasskazy”), com intuitos claramente didácticos, cujo regulador

poético é a simplicidade da “linguagem do quotidiano” e da Bíblia – a reinvenção

de Tolstoi do exemplum medieval395. Tão pouco se insere no ciclo das novelas

tardias, escritas num estilo elevado, “literário” (e este termo, como já sabemos,

não está isento para Tolstoi de conotações pejorativas), “para os leitores que ainda

não viram a luz”396, seja este estilo elevado tributário, ou não, tal como o de

Ressurreição, da noção de “estranhamento”. Susan Layton chama a atenção para o

uso da celebrada técnica na ida de Hadji-Murat à ópera e ao baile dos Vorontsov

(capítulo 10), de forma a desacreditar as convenções russas, tal como vistas pelos

olhos dos montanheses caucasianos (ou de Tolstoi)397. Todavia, a comparação

entre estas duas cenas com outras obras onde Tolstoi descreve o teatro desse

mesmo ponto de vista estranho, como se desconhecesse as regras subjacentes

àquela forma de vida ou tradição (e.g. em Guerra e Paz, OQA? ou ST398), coloca

em evidência o que distingue Hadji-Murat: a parcimónia com que Tolstoi visa

395 Gary R. Jahn analisa as particularidades estilísticas e temáticas de alguns destes contos e

afirma: “Na sua tentativa de apresentar a sua versão da doutrina cristã nas obras para as camadas populares, Tolstoi reinventou o género eclesiástico do exemplum, uma história contada habitualmente como parte de uma homilia ou sermão, para ilustrar algum ponto em particular da doutrina. Cf. “Tolstoy as a Writer of Popular Literature”, The Cambridge Companion to Tolstoy, Donna Tussing Orwin (ed.), Cambridge: Cambridge UP, 2002, p. 117.

396 Cf. Carta a Tchertkov, Junho 1885, Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 383. 397 Cf. Susan Layton, “Imagining the Caucasian Hero: Tolstoj vs. Mordovcev”, The Slavic and

East European Journal, vol. 30, no. 1 (Spring, 1986), pp. 1-17. 398 Cf. capítulo anterior, onde são citados excertos da cena de Guerra e Paz e das descrições da

ópera de OQA?.

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aqui restituir “a vida complexa de muitos gestos”, engolidos pela automatização da

percepção, descrevendo-os como se os visse pela primeira vez. Por outras

palavras, faz sobressair a economia com a qual a ópera italiana ou um baile são

descritos como se fossem percepcionados do ponto de vista de alguém de uma

tribo diferente – neste caso, o ponto de vista imaginado seria o de Hadji-Murat.

Valerá a pena citar aqui as duas cenas em questão:

No mesmo dia, à noite, no teatro arranjado no novo estilo oriental,

exibiam uma ópera italiana. Vorontsov estava no seu camarote; na plateia apareceu a notável figura de Hadji-Murat, manco, com o turbante na cabeça. Entrou acompanhado por Loris-Melikov, ajudante-de-campo de Vorontsov, posto à sua disposição, e sentou-se na primeira fila. Depois de assistir ao primeiro acto com uma dignidade oriental, muçulmana, não só sem qualquer expressão de espanto, mas com um ar de absoluta indiferença, Hadji-Murat levantou-se e, olhando com calma para os espectadores, saiu, atraindo a atenção de toda a assistência.

O dia seguinte era uma segunda-feira, o dia de os Vorontsov receberem os convidados em sua casa. Numa grande sala fortemente iluminada, soava uma música escondida vinda do jardim de Inverno. As mulheres, jovens, menos jovens, com vestidos que lhes destapavam os pescoços, os braços e quase os peitos, valsavam abraçadas pelos homens de fardas vistosas. Junto ao bufete, os lacaios de casacas vermelhas, meias e sapatos serviam champanhe e ofereciam confeitos às senhoras. A mulher do “sardar”, que apesar da sua idade avançada, estava também seminua, deambulava no meio dos convidados com um sorriso amável e, por intermédio do intérprete, disse algumas palavras carinhosas a Hadji-Murat que, tal como no teatro, observava os convidados com indiferença (HM, 54, meus itálicos).

Compare-se o efeito de “estranhamento” desta descrição com aquele

obtido em Ressurreição (composto no mesmo período em que Hadji-Murat ia

sendo depurado), onde o autor concentra toda a força do seu estranhamento (ou

iconoclastia) para o dirigir contra a liturgia ortodoxa, de forma a ridicularizá-la (tal

esforço valeu-lhe a oficialização da sua excomunhão da Igreja Ortodoxa):

Começou o ofício festivo. O ofício consistia nisto: o padre, paramentado com um trajo de brocado,

muito estranho e desconfortável, cortava e dispunha na bandeja pedaços de pão, depois metia-os na taça com vinho, ao mesmo tempo que pronunciava vários nomes e orações. O salmista, entretanto, primeiro lia sem parar, depois cantava, alternando com o coro dos presos, várias orações em língua eslava antiga, já de

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si pouco compreensíveis e ainda menos por causa da rapidez da leitura e do canto [...]

A essência do ofício divino consistia em que se pressupunha que os pedaços cortados e metidos no vinho pelo padre, em resultado de determinadas manipulações e orações, se transformavam no corpo e no sangue de Deus. As manipulações baseavam-se em que o padre, com movimentos regulares, apesar de estorvado pelo saco de brocado que vestia, erguia ambas as mãos e mantinha-as erguidas, depois ajoelhava-se e beijava a mesa e o que estava em cima da mesa. Mas a acção mais importante era a de o padre, pegando com as suas mãos num guardanapo, o abanar monótona e fluentemente por cima da bandeja e da taça de ouro. Supunha-se que, neste entrementes, o pão e o vinho se transformavam em corpo e sangue e, por isso, este momento do ofício era montado com especial solenidade. (Ressurreição, pp. 159-160)

Por outro lado, em contraste com os romances ou novelas tardias (ou a

trilogia com que inaugura a sua carreira literária), a caracterização de Hadji-Murat

não procede em larga medida da anotação das ínfimas alterações na consciência

das suas personagens (mesmo quando estão a morrer e descobrem que é preciso

saber morrer), traço constituinte da “anti-poética”, com a qual Tolstoi reclama que

a “boa vida” decorre onde o “bom enredo” se fragmenta. Como o autor reitera

num texto tardio, a “arte começa com o ínfimo”, com a atenção ao pormenor. Isto

sucede porque a “verdadeira vida começa com o ínfimo [...]. A vida verdadeira

não é vivida onde grandes alterações externas acontecem – onde as pessoas se

movimentam, colidem, lutam e se matam – ela é vivida apenas onde estas

minúsculas e infinitesimais mudanças ocorrem”399.

Como dissemos no capítulo 2, G. S. Morson associa este método de

registar a “vida verdadeira”, o “infinitesimal”, conceptualizado e aplicado por

Tolstoi em diferentes obras, com intuitos distintos, ao que designa de “poética

399 “Dlia tchego liudi odyrmanivaiutsia?”, 1890 [“Porque é que os homens consomem substâncias

estupefacientes?”]. Cf. “Why Do Men Stupefy Themselves?”, Recollections & Essays, Aylmer Maude (trad. e ed.), Oxford, London: Oxford UP, 1937, p. 81. A mesma ideia, originada no conselho do pintor russo (Briullov) a um aluno, surge também mencionada em OQA?, para contrapor à lamentada profissionalização das artes, e à sua consequente degradação, a arte própria, a arte produzida sem técnica, teoria ou escola, apenas através da atenção e amor ao infinitesimal, ou do que nos seus diários, Tolstoi apoda de “a vida complexa de muitos gestos”, dos quais não estamos muitas vezes conscientes (cf. OQA?, p. 99).

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prosaica” [prosaics] – a poética do acidental através da qual Tolstoi encapsula nos

grandes romances a sua “visão do mundo” e oferece aos leitores uma lição de

“modéstia epistémica”. Contra as narrativas dos “totalitaristas semióticos”, que

pressupõem que tudo tem um enredo, um padrão e um sentido decifráveis, a

“poética prosaica” visa mostrar que o mundo é caótico (incluindo os nossos

processos mentais) e que os acontecimentos mais significativos (históricos ou

psíquicos) são na maior parte das vezes acontecimentos imperceptíveis: o que está

oculto diante dos olhos pela sua familiaridade400. Por seu turno, como também já

foi atrás referido, Boris Eikhenbaum associa este método de composição, marcado

pela secundarização da sequência causo-temporal dos acontecimentos [fabula] de

uma narrativa401, a uma concepção de personagem (ou de identidade pessoal) que

privilegia a fluidez da personalidade em detrimento da sua unidade. De acordo

com Eikhenbaum, esta apresentação caleidoscópica de uma pessoa está

parcialmente realizada em Ressurreição. Neste romance, composto enquanto

Tolstoi escrevia Hadji-Murat de acordo com a intenção de “expressar a natureza

contraditória do homem”402, o autor insere uma das suas “generalizações”403 (um

dos eixos a partir do qual o estilo de Tolstoi obtém o efeito de “estranhamento”)

para dirimir o “cânone da tipificação”:

Um dos mais vulgares e divulgados preconceitos consiste em afirmar que

cada pessoa tem apenas as suas características determinadas, que existem pessoas boas ou más, inteligentes ou estúpidas, energéticas ou apáticas, etc. Mas as pessoas não são assim. Podemos dizer de um indivíduo que é mais vezes bom do que mau, mais vezes inteligente do que estúpido, mais vezes energético do que apático – e vice-versa; mas será mentira se dissermos que uma pessoa é boa e inteligente, e que outra é má e estúpida. No entanto, classificamos sempre as pessoas desta maneira. O que é incorrecto. As pessoas são como os rios: a água é igual, a mesma por todo o lado, mas cada rio ora é estreito, ora é largo, ora é

400 Cf. Morson, Hidden in Plain Sight. 401 Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 24. 402 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 457. 403 Eikhenbaum empresta a expressão do próprio Tolstoi. Cf. capítulo 2 desta tese.

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rápido, ora é calmo, ora límpido, ora turvo, ora frio, ora quente. As pessoas também. Cada qual transporta em si o germe de todas as características humanas e manifesta ora uma, ora outras, e às vezes nem parece ele próprio, mas continuando, no entanto, a sê-lo404.

O crítico russo não tenta esclarecer como é que a tendência para a

digressão, classificação ou prédica, expressa na “generalização” acima citada, se

articula neste romance com a tendência contrária para a “descrição de

particulares”. O crítico também não se debruça sobre o modo como esta

“generalização”, tipicamente tolstoiana, “activa uma técnica artística”,

parcialmente consumada em Ressurreição. Tal técnica consiste em dirigir a

atenção para o que a tradição romântica precedente (de Marlinski a Lermontov),

com os seus heróis portadores de atributos estáveis405, os seus enredos unificados,

as suas digressões líricas e descrições metafóricas da natureza, tornara banal e,

como tal, “artisticamente imperceptível”: os movimentos, muitas vezes discretos

ou contraditórios, da mente – a “dialéctica da alma”406. O tópico de análise do

primeiro volume do seu estudo consagrado a Tolstoi não é Ressurreição, ou

Hadji-Murat, mas os mecanismos através dos quais, em obras como Infância, O

Ataque ou os Cossacos (e nas suas primeiras descrições diarísticas do Cáucaso),

Tolstoi dirige o seu ataque aos precursores românticos e reivindica, para usar as

palavras de Tolstoi, um modo próprio de “sonhar acordado”, i.e. de descrever

paisagens sem nelas ver intimações da grandeza de Deus ou o rosto da amada:

“Não sei como é que as outras pessoas sonham, mas pelo que ouvi e li não tem 404 Tolstoi, Ressurreição, p. 229. 405 No volume dedicado aos anos 70, quando, após as experiências na escrita de contos populares,

Tolstoi redescobre a obra de Puchkin, Eikhenbaum dedica-se a oferecer exemplos da influência da caracterização de Puchkin na obra de Tolstoi, e em particular em Anna Karenina, para a contrastar com os escritores realistas: “as suas pessoas não são tipos, nem tão pouco podem ser consideradas personagens acabadas; são “fluidas” e mutáveis, são apresentadas de forma íntima – como individualidades compostas de traços comuns a toda a humanidade” (Eikhenbaum, Tolstoy in the Seventies, p. 127).

406 [dialektika duchi]: expressão que o crítico empresta de uma resenha anónima sobre Tolstoi, publicada na Sovremmenik, em 1856 (Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 66).

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nada a ver com o modo como eu sonho. As pessoas dizem que quando se olha para

a natureza bela, surgem pensamentos sobre a grandeza de Deus e a insignificância

do homem; os amantes vêem a imagem da amada na água”407.

Do ponto de vista temático e estilístico, Hadji-Murat aproxima-se

naturalmente mais destes primeiros contos caucasianos do que dos grandes

romances que se lhes seguiriam. Poderá ser mesmo visto como a consumação do

romance cossaco que Tolstoi começa a escrever quando parte com o irmão para o

Cáucaso, em 1851, e ao qual regressará repetidamente ao longo dos anos408. O

estilo directo, purgado dos períodos colossais de Guerra e Paz, da sintaxe

cumulativa e dicção cultas, é reminiscente daquelas primeiras experiências

literárias. Todavia, poder-se-á igualmente referir os momentos em que Hadji-

Murat se torna mais próximo dos “métodos e da linguagem do quotidiano” que

Tolstoi experimenta a partir da década de 70, em narrativas como “O Prisioneiro

do Cáucaso”, do que daqueles primeiros contos, onde desenvolve a lição de

Stendhal409 e descreve num extraordinário “monólogo interior” as alterações

ínfimas na consciência de um soldado que não compreendeu que foi atingido:

407 Entrada de 10 Agosto, 1851, Tolstoy’s Diaries, vol. I, p. 35. Boris Eikhenbaum dá numerosos

exemplos da “demolição” da “poética romântica da guerra” (ou do que o seu colega I. Tynianov cunhou de a “luta” ou o “combate” [bor’ba] entre um autor e a tradição precedente, através da qual se constitui a tradição e história literárias), efectuada por Tolstoi em contos como O Ataque, A História de Um Cadete, A Tempestade de Neve ou Cossacos. Cf. Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 90.

408 Nas digressões e aforismos com que Chklovski percorre o labirinto de conexões da obra de Tolstoi, as suas inovações, derivações e padrões repetitivos, Hadji-Murat surge como a consumação da viagem postergada de Olenin: o término de Cossacos é a composição mais poética de Tolstoi – as variantes de Hadji-Murat. Cf. Viktor Chklovski, The Energy of Delusion [Energiia zablujdeniia; kniga o siujete], Shushan Avagyan (trad.). Champaign: Dalkey Archive Press, 2007, p. 67.

409 Tolstoi diz a Paul Boyer que aprendeu mais sobre a guerra a ler Stendhal do que com tratados de guerra ou do que com a sua própria experiência de batalha: “[Stendhal] ensinou-me a compreender a guerra. Reli a história da batalha de Waterloo, na Cartuxa de Parma. Quem antes dele descrevera a guerra daquele modo, i.e., do modo como realmente é? Lembra-se de Fabrizio atravessando o campo de batalha sem compreender ‘nada’? E como os hussardos o atiram facilmente para cima do cadáver de um cavalo, do belo cavalo do general? Mais tarde, o meu irmão, que serviu no Cáucaso antes de mim, confirmou-me a veracidade das descrições de Stendhal... Pouco depois, na guerra da Crimeia, foi-me fácil comprovar tudo isto com os

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Com um estrondo terrível, qualquer coisa lhe caiu no meio do peito.

Correu um bocado, embaraçou-se na espada e caiu de lado. “Graças a Deus, apenas estou confuso!” – foi o seu primeiro pensamento. E queria levar as mãos ao peito, mas elas pareciam-lhe presas. Uma broca como que lhe furava a cabeça. Soldados passavam em frente, e ele, inconscientemente, contava: “Um, dois, três soldados e um oficial”. Depois, viu faíscas brilhantes e desejou saber de que seriam: disparos de metralhadora ou de canhão? Provavelmente de canhão. Eis mais um tiro, e ainda soldados: cinco, seis, sete soldados lhe passaram à frente. Queria acreditar que não estava senão magoado, mas tinha a boca tão seca que a língua se lhe colava ao palato, uma sede horrível o torturava. Como o peito se encontrava molhado, sentia uma sensação de humidade. Lembrou-se de água, e queria beber mesmo essa humidade: “Provavelmente, quando caí feri-me e deita sangue” – pensou [...] Depois luzes vermelhas começaram a saltar-lhe diante dos olhos e pareceu-lhe que os soldados o cobriam de pedras. As luzes brilhavam cada vez menos e as pedras que lhe punham em cima pesavam cada vez mais. Fez um esforço para afastar as pedras, inteiriçou-se e não viu mais nada. Não compreendia nada. Deixou de pensar e de sentir. Tinha morrido com um estilhaço em pleno peito410.

O narrador omnisciente da narrativa emoldurada de Hadji-Murat não é o

oficial do exército russo que discute com um desencantado comandante – um

“Hamlet de Província de Shchigrov”411 – as descrições metafóricas da literatura

romântica, confirmando com bonomia que aqueles que abandonam a civilização e

partem para o Cáucaso, inspirados pela “lenda dos glaciares e paisagens virgens”,

estão na verdade destinados a desiludirem-se: “Sim [...], na Rússia olhamos para o

Cáucaso de modo muito diferente do que quando estamos aqui. Já alguma vez

passou pela experiência de ler versos numa língua que não conhece bem?

Pensamos que são melhores do que na realidade são...”412.

O prólogo parabólico de Hadji-Murat não é uma introdução filosófica

onde o narrador anuncia a intenção de esclarecer a natureza da coragem, a sua

meus próprios olhos. Mas, repito-lhe, tudo o que eu sei sobre a guerra aprendi primeiramente com Stendhal”. (Tolstoi citado em Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 78)

410 Tolstoi, “Sevastopol in May”, Tolstoy’s Short Fiction, pp. 71-72. 411 A comparação entre o Comandante Bolkhov e o Hamlet de Turgenev (do conto “Um Hamlet

da Província” é de Nekrasov, que escreve uma carta entusiástica sobre “A História de um Cadete” (1855) a Turguenev, a quem Tolstoi dedicara o seu “artigo” de guerra. Citado em Christan, Tolstoy: An Introduction, pp. 56-57.

412 “Wood Felling, The Cadet’s Story” [“Rubka lesa, rasskaz iunkera”, 1855], The Short Stories of Tolstoy, Barbara Makanowitzky (trad.), Alexandra Tolstoy (intro.), New York: Bantam Books, 1960, p. 39.

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“gramática” (“o que é um acto de coragem?”, “podem os animais ser corajosos?”)

e declara que está mais interessado em evidenciar de “que modo e sob a influência

de que sentimento um soldado mata outro soldado, do que em saber como os

exércitos se posicionaram em Austerliz ou em Borodino”413.

Hadji-Murat não é narrado na primeira pessoa por um voluntário que

tenta compreender um fenómeno incompreensível e caótico (a guerra), enquanto

discorre sobre o conceito platónico de coragem e observa os oficiais que modelam

as suas vidas “a partir dos heróis de Lermontov e Marlinski”, e cujas acções são

“governadas não pelas suas disposições próprias, mas pelas destes modelos”

literários414.

Na galeria diversificada de personagens que compõem o mosaico dos

vinte e cinco curtos capítulos de Hadji-Murat surgem todavia traços daqueles

primeiros protagonistas que, não obstante as introduções, monólogos e diálogos

filosóficos, anunciavam para os contemporâneos de Tolstoi um novo período na

literatura militar russa, purgado do exotismo sentimental que maculava os heróis

militares da literatura romântica415. O exemplo provavelmente mais flagrante disto

é Butler, o jovem oficial de quem Hadji-Murat fica amigo “desde o primeiro

encontro” (HM, 90). Além de partir para o Cáucaso por motivos análogos aos de

Olenin, em Cossacos – “em parte para fugir das dívidas de jogo e do alfaiate, em

parte para enfrentar a morte e tornar-se respeitável e respeitado por todos” –,

Butler parece padecer da mesma doença civilizacional, que consiste em modelar-

se através de modelos literários (românticos): “A única consolação de Butler,

413 “The Raid, A Volunteer’s Story” [“Nabeg, rasskaz volontera”, 1855], The Raid and Other

Stories, Louise Maude e Aylmer Maude (trad.), New York: Oxford UP, 1990, p. 1. 414 Idem, p. 8. 415 Na apreciação do editor d’O Contemporâneo de contos como Sevastopol: “Mais uns quantos

ensaios como estes e a vida militar deixará de constituir um mistério obscuro.” Nekrasov, apud Tolstoy: The Critical Heritage, p. 49.

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naquele tempo, era a poesia guerreira a que ele se entregava não só no serviço,

mas também na sua vida pessoal.” (HM, 112) Tal como os outros heróis dos

primeiros contos de Tolstoi, mas particularmente como Olenin, o seu ascendente

mais directo, que tanto se esforçara para se transformar num cossaco à la Rousseau

e conquistar a mulher amada, Butler, inspirado tanto pela amizade que o une a

Hadji-Murat e aos seus murides, como pela poesia da canção “solene e triste”

favorita do herói ávaro, resolve arranjar “para si um bechmet, uma tcherkeska e

umas nogovitsas” e, vestido como os rebeldes montanheses, “[s]entia-se também

um montanhês e parecia-lhe que tinha a mesma vida que eles” (HM, 98). A

imitação de Butler revela-se tão precária quanto a de Olenin (que abandona,

desiludido, o Cáucaso) e tão pouco épica quanto a do Tenente Rosenkrantz,

parodiado em O Ataque: “Vestido com o traje circassiano, galopava armado em

djiguit e por duas vezes foi com Bogdanovitch fazer emboscadas, embora não

chegassem a apanhar nem a matar ninguém. Esta bravura e a amizade com

Bogdanovitch, famoso valentão, pareciam a Butler uma coisa agradável e

importante” (HM, 112).

Não obstante as intenções de adoptar um modo de vida épico, o jovem

oficial de Hadji-Murat rapidamente recai nos antigos hábitos adquiridos na

civilização, perde uma soma astronómica ao jogo, começa a beber e, com o

entorpecimento do seu sentido moral, o narrador omnisciente, num breve e curioso

comentário, faz-nos saber que o modelo do comportamento amoroso de Butler

deixara de ser o de “José, o Belo”. Do papel do seduzido que resiste aos encantos

da mulher do seu anfitrião, passa ao papel de sedutor: porém, para seu espanto, e

constrangimento, Maria Dmitrievna recusa “resoluta e forte” os seus avanços

(HM, 112). O fracasso da vida amorosa de Butler parece dever-se aqui não tanto à

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imitação de um modelo literário (neste caso, não exactamente literário, mas

bíblico), como ao entorpecimento moral e, para empregar a analogia de

Wittgenstein, a uma fraca “digestão mental”, motivada pela vida ociosa no

exército, que o leva a cometer um erro de interpretação: o de associar Maria à

mulher de Potifar.

Todavia, é no protagonista epónimo de Hadji-Murat que a singularidade

desta novela no contexto da obra de Tolstoi mais se faz notar. Hadji-Murat não é

um aristocrata moscovita dissoluto (Olenin) que foge das dívidas ao jogo e ao

alfaiate e parte para o Cáucaso para viver uma “vida como deve ser”: ora matando

e subjugando, com uma coragem e força épicas, os montanheses selvagens; ora,

num outro cenário, igualmente glorioso, ele próprio conquistado pela beleza

primitiva dos montes e das escravas circassianas (a uma das quais amará,

ensinando-lhe línguas várias e cultivando-a na arquitectura gótica e literatura

francesa), se torna num dos guerreiros montanheses, “e defende com eles a sua

independência, lutando contra os russos”416.

No centro de cada obra de Tolstoi, seja nos seus “artigos militares”, com

os quais altera a fisionomia da guerra na literatura russa, seja nos grandes

romances ou novelas tardias, há sempre, emprestando a metáfora de Virginia

Woolf, um Olenin , um Pierre, um Levin , um Pozdnichev, um Ivan Ilitch ou um

Padre Sérgui que faz girar o mundo nas suas mãos e nunca desiste de perguntar

qual é o sentido da vida e quais deveriam ser os objectivos dos seus leitores417. É

difícil inserir, contudo, Hadji-Murat nos mesmos moldes de ‘narrativa de

demanda’.

416 Tolstoi, Cossacos, pp. 17-18. 417 Cf. Virginia Woolf, “The Russian Point of View”, The Common Reader – First Series,

London: The Hogarth Press, 1933, p. 231.

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A caracterização de Hadji-Murat não progride do exterior para o interior,

nem apresenta aquela inequívoca qualidade de intermitência cognitiva,

antidramática, enaltecida por E. M. Forster – Tolstoi não nos proporciona aqui,

momentaneamente, um lenitivo para a nossa solidão, oferecendo-nos a ilusão do

conhecimento absoluto das outras mentes.

O narrador omnisciente de Hadji-Murat não recorre, sem qualquer

respeito pela noção de equilíbrio dramático, ao célebre monólogo interior com o

qual Tolstoi apresenta a cartografia psíquica dos seus ‘demandantes’ ou conversos

– dos seus Pierre, Andrei ou Ivan Ilitch – e até mesmo as ruminações de um cavalo

em torno do incoerente mundo dos humanos, onde as palavras estão dissociadas

das acções. Se, para os leitores da primeira parte de Guerra e Paz, tal cartografia

era tanto ou mais surpreendente quanto nada parecia resultar dela418, o mesmo

sucedia para leitores como Percy Lubbock e Henry James, para os quais, como

referido no capítulo 2, os célebres monólogos interiores surpreendiam pela sua

violação das regras do decoro estético, indispensáveis para a criação da ilusão

artística (dramática).

Pela primeira vez, pelo menos numa obra de maior fôlego, Tolstoi cria

um protagonista que não se revela através das suas epifanias sob o céu alto, das

lutas wittgensteinianas para não cair na “armadilha das palavras” da filosofia, dos

raciocínios em torno de silogismos, das pequenas mentiras que forja para si

418 A primeira parte de Guerra e Paz, publicada no Russkii Vestnik (O Mensageiro Russo) não foi

particularmente bem recebida pelo círculo literário afecto a Tolstoi. Eikhenbaum cita uma carta do crítico literário Pavel Annenkov para Turguenev, datada de Fevereiro de 1865: “O Mensageiro Russo publicou o início de um romance de L. Tolstoi intitulado 1805. É surpreendente pela sua percepção de pormenores infinitamente pequenos, pelo seu retrato dos valores da época, e ainda mais pelo facto de nada resultar disto. [...] [Q]uando um romance diz que isto é o tipo de pessoas que elas eram, a nossa reacção é para o diabo com elas!”. Eikhenbaum, Tolstoy in the Sixties, p. 161.

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mesmo, ou da descoberta da exequibilidade dos cinco mandamentos do Sermão da

Montanha.

Hadji-Murat não é uma narrativa da busca pela fé, isto é, em que se

procure a resposta para a pergunta que está no centro de todas as ‘confissões’,

sejam ficcionais ou autobiográficas, de Tolstoi: qual o sentido da vida que a morte

não destrói?

**

Na altura em que Hadji-Murat, numa reviravolta inesperada, se entrega ao

comandante-em-chefe de Tiflis, oferecendo-se para lutar ao lado dos russos contra

Shamil em troca da ajuda do czar para resgatar a família, refém do imã, Tolstoi

servia como voluntário no exército russo estacionado no Cáucaso. É daqui, de

Tiflis, que escreve, em 23 de Dezembro de 1851, uma carta ao irmão Serguei,

onde relata as novidades das suas aventuras militares e extra-militares: a iminente

promoção a oficial de bateria, a expectativa de partir numa incursão e, vestido à

moda local, contribuir, “com a ajuda de uma espingarda, para a destruição dos

pérfidos, predatórios e recalcitrantes Asiáticos”419, mas também os êxitos das

caçadas, os avanços na língua tártara e na comunicação com as ciganas locais. A

carta termina com o anúncio do acontecimento que viria a ter consequências

importantes para o sucesso da campanha no Norte do Cáucaso420: a defecção para

419 Tolstoy’s Letters I, p. 14. 420 Como Tolstoi reitera na sua novela, está mais interessado em mostrar o significado e as

consequências daquela reviravolta na vida de Hadji-Murat do que no destino das nações: “No entender de Vorontsov e das autoridades de Petersburgo, tal como da maioria dos russos que conheciam a história de Hadji-Murat, o caso dele representava uma de duas coisas: ou uma feliz reviravolta na guerra caucasiana, ou simplesmente um episódio interessante; ora para Hadji-Murat, sobretudo nos últimos tempos, aquilo era uma terrível viragem na sua vida.”(HM, 105).

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os russos do “número dois de Shamil, um certo Hadji-Murat”, o qual, embora

“fosse o cavaleiro mais corajoso (dzhigit), e o mais destemido de toda a

Chechénia, tinha cometido uma acção torpe”421.

Mais de quarenta anos após se ter cruzado com Hadji-Murat422, e de as

suas façanhas, incluindo o modo como, “rodeado pelos inimigos, cantou a sua

cantiga de morte e se lançou sobre o punhal”, serem pretexto, decorridos outros

tantos anos, para as conversas (vagamente socráticas) de Tolstoi com os seus

alunos camponeses sobre o valor da arte, o autor, já imerso na pesquisa e escrita

da sua novela, indica, numa entrada do diário de 1897: “o principal é expressar

nela [Hadji-Murat] o logro da fé [obman very]. Quão bom ele teria sido, não fosse

por aquele logro”423.

Contudo, após as sucessivas modificações através das quais Tolstoi vai

limpando, para confusão da maioria dos leitores, o seu manuscrito de todos – ou

quase todos – os indicadores, tipicamente tolstoianos, sobre o sistema de valores

que ali se aplica e sobre os princípios éticos que orientam as ‘cartografias

espirituais’ das suas personagens, o episódio da deserção de Hadji-Murat é

descrito sem que Tolstoi aluda a que pudesse ter sido uma “acção torpe”, fosse por

constituir uma traição (a Shamil), ou por ser, como Loris-Melikov pondera, uma

artimanha “para espiar os pontos fracos dos russos” (HM, 61). Verifica-se que, ao

eliminar as digressões, presentes nas primeiras versões, sobre a brutalidade da

ocupação russa, as reflexões sobre a sharia, tariqa e manifat, ou os apontamentos

etnográficos e os juízos sobre os Chechenos, os quais “naquela época, não

421 Tolstoy’s Letters I, p. 17. 422 Embora Tolstoi estivesse em Tiflis na mesma altura em que Hadji-Murat se entrega a

Vorontsov, não há evidências, nem nos diários nem na correspondência da época, de que tenha conhecido pessoalmente Hadji-Murat.

423 Tolstoy’s Diaries, vol. II, 4 de Abril, p. 443.

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valorizavam a vida humana, quer a dos outros, quer a própria”424, Tolstoi se desvia

do seu propósito inicial: expressar o “logro da fé” de Hadji-Murat e como este se

imprime numa falha de carácter. Ao desviar-se da intenção inicial (possivelmente

do mesmo modo como descreve o ‘desvio’ involuntário de Tchekhov, em “A

Querida”), Tolstoi acaba também por resolver a controvérsia que a defecção do

seu herói suscitara nos seus contemporâneos e nos historiadores. Tolstoi articula

cuidadosamente a sua narrativa e os diversos pontos de vista das personagens com

os materiais históricos seleccionados, por forma a que não subsistam, neste

aspecto, dúvidas sobre os motivos (e a seriedade) do seu protagonista. Um breve

monólogo interior, seguido da descrição de um sonho, no início da narrativa425, são

suficientes para apaziguar o cepticismo do leitor e confirmar a veracidade (ou

sinceridade) do relato posterior de Hadji-Murat: o seu desentendimento com

Shamil não é um ardil, é verdadeiro e, para mais, motivado pela ambição do imã

em assegurar a sucessão dinástica, afastando o seu rival mais temível. Em

contraste com os seus interlocutores russos (ou com o imã), cujos discursos não

fluem necessariamente das suas naturezas, o carácter de Hadji-Murat revela-se na

congruência entre a palavra e a acção.

Não é apenas neste aspecto (crucial para os historiadores) que Tolstoi se

exime a tecer qualquer crítica às acções de Hadji-Murat ou a sugerir, quer através

do narrador omnisciente, quer através das outras personagens, que a sua vida tenha

sido uma vida mal vivida porque submetida a um código moral errado (imposto

pela adesão à hazavat), incompatível com o princípio que permite compreender

que a violência apenas pode gerar mais violência.

424 David Herman, op. cit., p. 9. 425 Cf. HM, pp. 28-29.

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Desde o plano de Hadji-Murat para vingar, em conformidade com a lei

tribal, a morte dos Cãos, seus irmãos adoptivos, e assassinar o imã Gamzat, em

plena festa na mesquita, até ao seu derradeiro combate, quando olha, sem se

perturbar, para os “belos olhos” do seu murid favorito, morto a seus pés, e o

afasta, para prolongar mais uns instantes a sua missão letal, até também ele

tombar, nenhuma acção de Hadji-Murat, por muito violenta, é condenada ou

descrita de modo a evidenciar qualquer falha no seu carácter – ou o “logro” da sua

fé.

Este tratamento da violência por parte de Tolstoi, o “profeta da não-

resistência ao mal”, é inusitado, tanto mais por estar assente numa estratégia

discursiva pouco usada por Tolstoi fora do âmbito das suas adaptações de contos e

lendas tradicionais: a taciturnidade do seu narrador. O esvaziamento de conteúdo

de Hadji-Murat, isto é, dos juízos morais e filosóficos, patentes nas primeiras

versões (e, tipicamente, em todas as obras de Tolstoi), e a concomitante contenção

discursiva do narrador da “narrativa-dentro-da-narrativa” de Hadji-Murat, têm

sido, como já foi referido, ora lamentados por uns, ora enaltecidos por outros, por

motivos diversos. Tal ‘esvaziamento de conteúdo’ foi também questionado por

outros leitores, sugestionados pelo tratamento pouco favorável do czar, no capítulo

XV desta narrativa, e, possivelmente, pela consulta das primeiras versões do

manuscrito, onde Tolstoi irrompe na narrativa, para condenar ostensivamente as

políticas expansionistas russas e, por inerência, todos os auto-denominados

cristãos que violam a lei do amor ao próximo em nome das instituições imorais

dos seus países426. Contudo, na versão final, o que mais ressalta é a contenção com

426 Susan Layton, no seu estudo comparativo sobre o herói caucasiano de Tolstoi e o de

Mordovcev, contrasta o tratamento do tema da guerra do Cáucaso nas suas obras e cita passagens de Hadji-Murat, de modo a ilustrar como, nesta obra, “Tolstoi ofereceu uma crítica radical da guerra do Cáucaso – uma operação militar prolongada na qual o próprio participara

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a qual Tolstoi apresenta as personagens e, em particular, o seu misterioso herói,

sem recorrer às “legendas” tipicamente tolstoianas, sejam estas monólogos

interiores, intromissões autorais, ou outras. Tal contenção dramática poderá ser

associada ao método através do qual Tolstoi pondera mostrar o “carácter volátil”

do seu herói.

Numa entrada do diário de 1898 e após várias cogitações sobre o desejo

de escrever uma obra literária “onde pudesse exprimir claramente a natureza fluida

do homem; o facto de um mesmo homem ser agora um vilão, agora um anjo,

agora um sábio, agora um idiota, agora um homem capaz, agora a mais impotente

das criaturas”, Tolstoi explica o ambicionado método de caracterização através

“do que os ingleses chamam de ‘peepshow’: primeiro mostra-se [pokazvaetsia] uma

coisa e depois outra debaixo de um vidro. Este é o modo de mostrar [pokazat’]

Hadji-Murat: como marido, fanático, e por aí adiante”427.

O laconismo de Hadji-Murat, enfatizado desde o início, quando retorque

ao ávaro que o acolhe em casa que “A corda é boa quando é comprida, a fala

quando é curta” (HM, 14), poderá não impedir que transgrida, “aparentemente

lisonjeado com a ideia de que a sua história seria lida pelo próprio czar”, o

princípio acima citado (idem, 55). Com um sorriso “especial, infantil”, Hadji-

Murat prontamente acede ao pedido de Loris-Melikov para que narre, na primeira

pessoa, a história da sua vida, “desde o início”. A narrativa emoldurada pela

narrativa-dentro-da-narrativa de Hadji-Murat (capítulos 11 a 13), entrecortada

como cadete do exército, no início da década de 1850.” Cito de um destes excertos, oriundo da nona versão do manuscrito, omitido da versão final: “Sob o pretexto de auto-defesa (embora os ataques sejam sempre provocados pelo vizinho poderoso), ou do pretexto de civilizar os modos de um povo selvagem (embora o povo selvagem viva uma vida incomparavelmente melhor e mais pacífica do que a dos civilizadores), ou então sob outro tipo de pretexto, os funcionários dos grandes estados militares cometem toda a espécie de vilanias contra povos pequenos, enquanto sustentam que não é possível lidar com eles de outra forma. Esta era a situação no Cáucaso”. Susan Layton, op. cit., pp. 11-12.

427 Tolstoy’s Diaries, vol. II, entrada de 21 Março, 1898. Versão digital em russo disponível em http://az.lib.ru/t/tolstoj_lew_nikolaewich/text_1340.shtml

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pelos seus silêncios súbitos e saídas de cena para cumprir as orações e abluções

diárias, é uma adaptação da transcrição do relato de Hadji-Murat pelo ajudante-de-

campo e intérprete Loris-Melikov. Se este é um registo seco das sucessivas

campanhas e incursões militares de Hadji-Murat428, as quais são, aliás, resumidas,

num só parágrafo, em discurso indirecto429, a biografia que Tolstoi acaba por

escrever para o seu protagonista nos capítulos onde lhe dá a voz, mas também ao

longo da novela, mostra na verdade o que o relato autobiográfico do Hadji-Murat

histórico e os relatórios oficiais não dizem, nem poderiam dizer sobre o temível

naíb de Shamil: o medo que confessa ao oficial russo (um desconhecido) ter

sentido quando assistiu à morte dos Cãos irmãos e a vergonha, que ainda então o

faz corar, por ter fugido dos seus inimigos (idem, 58); a frontalidade com que

exprime no olhar “toda a verdade” ao velho príncipe Vorontsov, ao qual “se

submetia apenas porque a isso tinha sido obrigado” (idem, 52); a dignidade com

que se move nos meios convencionais dos russos (e.g. o teatro e o baile); “o

sorriso tão bondoso que não parecia um estranho mas um amigo de longa data”

(idem, 33); a dedicação à família430; a cumplicidade silenciosa com Maria

Dmitrievna e (como é dito, mas não à nossa frente: nunca os vemos a falar) a mais

eloquente com o jovem Butler, de quem fica amigo “desde o primeiro encontro”

(idem, 90).

428 Cf. Herman, op. cit. p. 9. 429 “A seguir, Hadji-Murat centrou a narrativa em todas as suas campanhas militares. Eram muitas

e Loris-Melikov conhecia uma parte delas. Todas as campanhas e incursões, sempre coroadas de êxito, eram impressionantes pela extraordinária rapidez das deslocações e pela ousadia dos ataques.” (HM, p. 66)

430 A preocupação de Hadji-Murat com a segurança da mulher e dos filhos é um aspecto referido pelos historiadores. Além de Vorontsov, na carta que escreve ao ministro da Guerra, e transcrita na íntegra por Tolstoi no capítulo 14, referir os sinais da “plena sinceridade” da preocupação exibida por Hadji-Murat em relação aos seus entes queridos, bem como o seu “estado febril” (“não dorme de noite, não come quase nada, reza constantemente”, HM, p. 67), na sua crónica sobre a conquista do Cáucaso, Baddeley refere que “tal como Shamil, e outros destes semi-selvagens sequiosos de sangue, Hadji-Murat era um marido e pai devotado.” (Baddeley, The Russian Conquest of the Caucasus, pp. 441-442)

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O método do peepshow, através do qual a narrativa progride de forma

sincopada, sem ordem ou direcção aparentes, permite a Tolstoi mostrar fragmentos

da “vida secreta” do seu protagonista que nenhuma fonte histórica lhe poderia ter

fornecido: as reminiscências da sua infância, com os seus cheiros e sabor do leite

coalhado, os rituais de iniciação e as toadas compostas pela mãe,

involuntariamente evocadas pelas canções guerreiras e pelo chilreio dos rouxinóis,

pouco antes do seu último combate431; o prazer que experimenta ao observar a

“força, a flexibilidade e a destreza” dos movimentos do “seu querido filho Iussuf”

(HM, 111); a perspicácia com que entende que o aguarda a mesma morte dos

djiguit das canções de guerra (Gamzat) e a das lendas montanhesas (o falcão), a

tranquilidade solene com que a aceita, estendendo a burka e fazendo o namázi; a

concentração com que luta até à morte, sem sentir “pena, nem raiva, nem qualquer

desejo” (idem, 122).

A extraordinária descrição da morte de Hadji-Murat, num derradeiro

combate, acompanhado apenas de um punhado de fiéis murides, contra um

número infinitamente superior de inimigos, poderá mostrar como Hadji-Murat,

herói simultaneamente estranho e familiar, é uma correcção de Aquiles e Ulisses,

mas também de Lear: “ele é trágico apenas porque é heróico e natural e tem,

contudo, de se confrontar com adversidades impossíveis”432.

A caracterização através do peepshow, com a sua ênfase na natureza

“fluida” do seu herói – Hadji-Murat “como marido, fanático, e por aí adiante”433 –,

poderá contribuir para a atmosfera simultaneamente estranha e natural desta

431 Provavelmente de modo a enfatizar a taciturnidade de Hadji-Murat, e o muito que o guerreiro

deliberadamente omite no seu relato autobiográfico, Tolstoi acaba, após muitas hesitações, por transpor as recordações da infância do protagonista para o capítulo 23, quando ouve as canções guerreiras, pouco antes de fugir com os seus murides.

432 Bloom, op. cit., p. 320. 433 Tolstoy’s Diaries, vol. II, entrada de 21 Março, 1898.

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narrativa, que tanto fascina Harold Bloom e o leva a concluir que, por rivalizar

com Shakespeare na descrição particularizada de Hadji-Murat, mas também de

Avdeev, Shamil, Nicolau I, Vorontsov, Eldar, Butler, Maria Dmitrievna, Hadji-

Murat deve ser considerada a “mais grandiosa excepção” do Tolstoi tardio434.

Poderá ser também o caso de que a precisão com que os peepshows de

Hadji-Murat apresentam as diversas personagens que desfilam fugazmente no seu

álbum de cenas contrastantes seja a consumação de uma técnica literária,

minuciosamente analisada por Boris Eikhenbaum no seu seminal estudo sobre o

jovem Tolstoi. Tal técnica, ao delinear as personagens através da “acumulação

acidental” de atributos contraditórios e intermutáveis, sem que pareça existir

alguma coisa que “una todos estes traços” numa imagem coerente, mostra o

“homem visto de todos os lados”435. Como vimos atrás, no início deste capítulo,

Eikhenbaum cita uma passagem de Ressurreição, onde Tolstoi insere uma das

suas típicas “generalizações” para afirmar a impossibilidade de descrever um

homem: “As pessoas são como os rios: a água é igual, a mesma por todo o lado,

mas cada rio ora é estreito, ora é largo, ora é rápido, ora é calmo, ora límpido, ora

turvo, ora frio, ora quente. As pessoas também”. Esta ideia, basilar para o

desenvolvimento da sua “poética” da juventude, quando começa a experimentar

nos seus diários caucasianos modos de apresentar as pessoas e as paisagens

atomisticamente, dispensando noções de síntese e coerência, a favor do realce de

pormenores, da apresentação de uma visão intensificada, é associada ao método

planeado de mostrar Hadji-Murat sob aspectos contraditórios.

Verifica-se que esta passagem de Ressurreição, citada pelo crítico russo,

para ilustrar o método de Tolstoi apresentar as suas pessoas, não como tipos, mas

434 Bloom, op. cit., p. 317. 435 Eikhenbaum, The Young Tolstoi, p. 65.

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“indivíduos compostos de traços comuns a toda a humanidade”436, chamou

igualmente a atenção de Norman Malcolm. No contexto das suas conversas

epistolares com Wittgenstein, muitas incidindo sobre tópicos literários (ou sobre

as obras e os autores que Wittgenstein recomendava ao aluno e amigo), e escassos

meses após ter recebido o exemplar de Hadji-Murat enviado por Wittgenstein,

Malcolm, entusiasmado com o mesmo trecho, cita-o numa carta de 8 de Setembro

de 1945. Embora não discorra sobre os motivos do seu entusiasmo, nem faça

qualquer alusão a conceitos como “semelhanças de família” ou “jogos de

linguagem”, Malcolm resolve partilhá-lo com Wittgenstein na expectativa de que

este, então imerso na preparação do manuscrito postumamente publicado como a

Parte I das Investigações Filosóficas, aprecie a ideia nele expressa. Quaisquer que

fossem as expectativas de Malcolm (por essa altura, já teria dados suficientes para

inferir que Tolstoi era um tópico que agradaria ao mestre), a reacção de

Wittgenstein não terá ido por completo ao seu encontro:

Tentei uma vez ler “Ressurreição” mas não consegui. É que quando

Tolstoi conta simplesmente uma história impressiona-me infinitamente mais do que quando se dirige ao leitor. Quando ele vira as costas ao leitor, aí, sim, ele parece-me ser muitíssimo impressionante [most impressive]. Talvez um dia possamos conversar sobre isto. Parece-me que a sua filosofia é mais verdadeira quando está latente na história.437

Levanta-se a possibilidade de que Wittgenstein tenha desvalorizado a

passagem citada (e também a obra onde ela surge) porque, ao contrário do que

sucede em romances ‘didácticos’ como Ressurreição, as ideias, intuições e

convicções que compõem a ‘filosofia’ de Tolstoi, e lhe outorgam o “direito de

escrever”, estejam para o filósofo expressas em obras como Hadji-Murat. Nestas

obras, Tolstoi expressa a sua ‘filosofia’, não sob a forma da denúncia dos males 436 Eikhenbaum, Tolstoy in the Seventies, p. 129. 437 Malcolm, op. cit., p. 98.

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sociais que afectam as sociedades, da enunciação de teorias sobre identidade

pessoal (por interessantes que sejam) ou de interpretações bíblicas (por correctas

que sejam), mas sob uma forma artística, sendo que esta é a única forma de tornar

a sua ‘filosofia’ (ou qualquer filosofia) “latente”, i.e. “verdadeira”.

Ao “virar as costas” ao seu leitor, ao evitar pôr a descoberto os pontos

intelectuais da sua lição, revestindo-os com a sua arte438 em Hadji-Murat, Tolstoi,

à semelhança de Wittgenstein, ao guardar silêncio sobre aquilo de que não se pode

falar nem pensar, está a apontar para o método correcto da Filosofia: “Ela denotará

o indizível, ao representar claramente o que é dizível.” (TLP, § 4.115)

É, pois, provável que para Wittgenstein o contraste entre obras como

Ressurreição e Hadji-Murat, ou entre afirmações sobre a impossibilidade de

descrever um homem de uma certa maneira e o uso do peepshow para mostrar

pessoas de uma certa maneira, seja configurável através da distinção mostrar/dizer,

enunciada no Tractatus: “O que pode ser mostrado não pode ser dito” (TLP,

§4.1212). A distinção que, como Wittgenstein diz na importante carta que escreve

a Ludwig von Ficker, explicando-lhe o ponto ético do Tractatus, delimita o seu

livro a partir do interior e oferece a chave para a sua compreensão: a de que ele é

composto por duas partes, sendo que a segunda, a mais importante, é a que não foi

escrita, porque só pode ser mostrada através daquilo que foi silenciado”439.

Por outro lado, e não obstante as afirmações de Harold Bloom sobre a

qualidade shakespeareana que Tolstoi imprime a Hadji-Murat, dotando-o de uma

capacidade de mudança interior e de atenção pré-natural aos outros, é possível que

a descrição de R. F. Christian daquilo que Tolstoi concretiza através do seu

438 “Uma lição [pointe] num poema é excessiva [überspitzt] quando os pontos intelectuais estão

expostos, sem estarem revestidos pela arte”. Wittgenstein, CV, p. 62e. 439 Carta de Wittgenstein a Ludwig von Ficker, provavelmente datada de Novembro de 1919,

citada em Monk, op. cit., p. 177.

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peepshow seja, num determinado aspecto, mais certeira. Embora não me pareça

necessário ir tão longe quanto negar que em Hadji-Murat haja lugar para

complexidade psicológica, ou para a exploração de processos e estados mentais, é

verdade que ao “ler algumas das primeiras versões da história, compreendemos o

labor considerável que Tolstoi dispendeu a tornar Hadji-Murat uma personagem

redonda.”440 O resultado da caracterização por meio da aplicação de contrastes

claro-escuros e da sucessão rápida de cenas (do aúl para os soldados russos; do

ajudante-de-campo da corte para Hadji-Murat e os seus murides; do hospital para a

casa dos pais de Avdeev, e assim sucessivamente) poderá não ser uma galeria de

“personagens redondas”, sem densidade psicológica, ou um mosaico de imagens e

cenas desconexas. Constata-se, porém, que Hadji-Murat mostra o seu protagonista

sob uma forma contraditória – mas nas variantes, e não no versão final441.

O modo de mostrar Hadji-Murat “como um marido, um fanático, e por aí

adiante” não parece tão pouco resultar, apesar da progressão fragmentada da

narrativa, da negação radical de nexos de causalidade e de noções de unidade,

aristotélicas ou outras, inerentes à “poética prosaica” com que Morson baptiza as

estratégias anti-literárias de Guerra e Paz e de Anna Karenina.

Se é verdade que a finalidade desta “criação por potencial”, de trabalho à

escala do infinitesimal e de acumulação dos incidentes que compõem a cadeia

infinita de um acontecimento seja a de ilustrar a tese do cepticismo radical de que

o conhecimento da história é uma construção ilusória e que todas as narrativas são

falsificações, o narrador de Hadji-Murat não está interessado em dirimir as teses

epistemológicas do século XIX (como o narrador de Guerra e Paz). Tão pouco

perora sobre a possibilidade de um Livro contra teorias gerais da agricultura ou

440 R. F. Christian, Tolstoy: A Critical Introduction, p. 245. 441 David Herman, “Khadzhi-Murat’s Silence”, p. 11.

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sobre a impossibilidade de um Livro sobre a vida boa (como Levin em Anna

Karenina). Em contraste com aqueles romances ou com as novelas tardias, o

narrador omnisciente de Hadji-Murat recua, quase desaparece. Não argumenta

contra a possibilidade de que Hadji-Murat possa ser o Hadji-Murat das crónicas ou

das reminiscências dos oficiais que serviram no Cáucaso, ou de que o seu

derradeiro combate tenha tido outra configuração. Hadji-Murat é historicamente

irrepreensível; a sua forma é, todavia, a da “pura fantasia”442.

É verdade que Tolstoi não se exime a parodiar Nicolau I no capítulo mais

longo desta novela. Não fosse, por exemplo, suficientemente claro transcrever a

nota onde o czar, dando graças a Deus por não existir pena de morte na Rússia,

condena um estudante polaco a “passar 12 vezes através de mil homens” por ter

provocado uns “ferimentos insignificantes” a um professor, o narrador

omnisciente insere a ‘legenda’ inequívoca: “Nicolau sabia que doze mil

vergastadas eram não só uma morte certa e torturante, mas também uma crueldade

inútil, porque bastavam cinco mil pauladas para matar o mais forte dos homens;

porém, agradava-lhe ser implacavelmente cruel e pensar, ao mesmo tempo, que na

Rússia não havia pena de morte” (HM, 78). Recorde-se, porém, que Tolstoi,

ponderara, caso tivesse tempo (antes da sua morte), retirar este capítulo anómalo e

escrever separadamente sobre Nicolau443. Tolstoi não resiste a fazer outras breves

aparições: interrompe, por exemplo, a descrição do banquete do príncipe

Vorontsov para atestar a justeza da descrição do “corajoso general” que

involuntariamente contraria o relatório apresentado ao czar, classificando o

“episódio da infeliz campanha de Drago” de “socorro”, e não como mais uma

brilhante façanha das tropas russas (HM, 48). Todavia, o Tolstoi que narra Hadji-

442 Troyat, op. cit., p. 578 443 Cf. Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 518.

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Murat pauta-se sobretudo pelo inusitado laconismo, o que torna o vocabulário

moral de Hadji-Murat estranhamente rarefeito para os parâmetros tolstoianos.

Sabemos, por exemplo, que a vida do protagonista é permeada pela oração e

abluções, pelos seus deveres de muçulmano (e do seu título – “hadji”), mas nunca

o vemos a orar, a invocar Deus, a condenar os infiéis (cristãos), ou a defender a

causa da guerra santa. As intromissões autorais, quando sucedem, são económicas:

não perscrutam os conteúdos mentais das personagens, nem avançam qualquer

reflexão filosófica sobre o modo como os acontecimentos são falsificados, desde o

instante em que são percepcionados, até ao momento em que são descritos nos

relatórios oficiais, nas margens dos documentos, nos livros de história ou nas

conversas dos salões e dos banquetes. Embora confirme que os oficiais

experientes, que sabem que nunca se combate da maneira que “se pressupõe e se

descreve”, mas optam por reconhecer como verdadeiro esse “combate corpo a

corpo fictício” (HM, 30), comportando-se sem se preocuparem com a morte,

Tolstoi limita-se a mostrar que descrições como as da morte do soldado Avdeev,

quer no relatório transcrito, quer na carta enviada para a mãe, redigida pelo escriba

do regimento, anunciando a sua morte na guerra, “defendendo o czar, a Pátria e a

fé cristã” (HM, 45), são necessariamente omissas.

O progresso de O Cardo para Hadji-Murat implica alterações

fundamentais, não apenas na estrutura e organização dos capítulos mas,

essencialmente, no carácter do protagonista. Hadji-Murat poderá ser apresentado

sob aspectos contraditórios nas primeiras versões, onde seduz as anfitriãs atraentes

e volúveis, busca o poder ou morre a lançar impropérios aos Cãos traidores da

hazavat. Na última versão, porém, Hadji-Murat já não é um homem atormentado

pela ambição e pelo conflito entre a lealdade à guerra santa e a ambição de glória

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pessoal. O universo particularizado do peepshow da versão final atomiza o sentido

e “omite deliberadamente a consolação de que há alguma coisa que nós possamos

aprender [...] Pela primeira vez, o grande pregador curva a sua cabeça”444.

Na primeira versão do manuscrito, Hadji-Murat morre como os

protagonistas de Tolstoi que buscam apaixonadamente o sentido da vida: depara-

se com Alá, e “subitamente compreendeu tudo. Que isto estava errado. Que nada

disto era como devia ser.”445 Seis anos mais tarde, possivelmente recordando a

conversa entre os três alunos da sua escola, Fedka, Semka e Pronka, sobre a morte

de Hadji-Murat, que morre a entoar uma canção guerreira, e a conclusão de

Pronka “Eu acho que ele cantou uma oração”446, Tolstoi põe Hadji-Murat a morrer

apenas com uma prece nos lábios. Na última versão, a “vida secreta” de Hadji-

Murat permanece a “vida secreta” de Hadji-Murat: não é uma alegoria. Tolstoi não

tenta descrever o momento para o qual toda a sua narrativa conflui – a morte do

guerreiro – como uma conversão, o acordar de um sonho para a verdadeira vida, a

vida no espírito: Hadji-Murat já vive para o espírito. Ao ver fracassar os seus

planos, limita-se a morrer como viveu – sem dúvidas, remorso, sem nos dizer que

a sua vida tinha sido uma vida mal vivida447 ou que alguma coisa importante lhe

escapara, mas também sem ostentar qualquer desprezo pela vida. Ao morrer desta

forma, resistindo até ao fim, mas sem “combater ou conjurar forças demoníacas”,

sem interpelar a divindade, sem criticar, discutir ou fazer correcções a Deus, e sem

duvidar da justiça divina, como Job, ou de que tal como para a árvore cortada, que

“pode ainda reverdecer”, há também esperança para o homem448, Tolstoi talvez

444 David Herman, op. cit., p. 12. 445 Idem, p. 29. 446 Cf. Tolstoi, “Schoolboys and Art” (1861), What Is Art? and Essays On Art, p. 4. 447 Nas primeiras versões, no final de Hadji-Murat, o herói depara-se nada mais nada menos do

que com Alá e admite os seus erros. Cf. David Herman, op. cit., p. 5. 448 Cf. Job 14.

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tenha conseguido mostrar o que afinal de contas pretendia desde o início. Quando,

entre as suas reflexões sobre a ausência de compaixão de Shakespeare pelos

sofrimentos de Lear, se deparou no campo com um cardo partido, sujo de lama,

mas ainda vivo e vermelho no centro: que Hadji-Murat, tal como o cardo, mas

também como aquela árvore bíblica, consegue sozinho, de “algum modo, vencer a

luta”449.

A característica da vida harmoniosa, da vida do homem feliz, não se

deixa descrever – ela é, como Wittgenstein diz, transcendente450. Contudo, pode

ser mostrada. Pela primeira vez, numa obra de fôlego maior, Tolstoi emoldura a

história do seu herói a partir do “ponto de vista da eternidade” e não da moldura da

“busca apaixonada pela fé”. Daí que Tolstoi descreva a morte (e a vida) de Hadji-

Murat de uma forma tão diferente do habitual: Hadji-Murat não procura o sentido

da vida; já vive para Deus. Tolstoi, ao conseguir transmitir esse sentimento

místico, “que não importa o que aconteça no mundo, nada de mau poderia

acontecer-lhe – ele era independente do destino e das circunstâncias”451, sem

descrever a vida secreta do protagonista, a sua luta com o embruxumento das

palavras e da filosofia, ou a sua epifania final de que a vida tem um sentido – o

“inquestionável sentido do bem” – mas que “não pode ser expresso em

palavras”452 , talvez tenha conseguido mostrar a ética no sentido absoluto de que

Wittgenstein fala na sua “Conferência Sobre Ética”.

449 Tolstoy’s Diaries, II, p. 429, meus itálicos. 450 Wittgenstein, Cadernos 1914-1916, p. 116-117. 451 De acordo com Malcolm, este “pensamento estóico”, com o qual Wittgenstein se deparou por

volta dos 21 anos, quando assistia a um drama de qualidade duvidosa em Viena, atingiu-o profundamente e, pela primeira vez, Wittgenstein “viu a possibilidade da religião”. (Cf. Malcolm, op. cit., p. 58) Este “pensamento estóico”, que recorre nos Cadernos, é um dos três exemplos de experiência do ético no sentido absoluto que Wittgenstein dá na sua “Conferência sobre Ética”.

452 Tolstoi, Anna Karenina, p. 822.

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A estranha objectividade, quase desapaixonada, com que tal é mostrado

na última cena de Hadji-Murat torna a terrível morte do guerreiro possivelmente

mais semelhante à descrita em “Três Mortes”, a morte “honesta e graciosa” da

árvore453, do que à de Ivan Ilitch ou qualquer outro protagonista anterior a si:

Soaram vários tiros, ele cambaleou e caiu. Vários milicianos

precipitaram-se, com guinchos rejubilantes, para o corpo caído. Porém o que lhes parecia um corpo morto de repente mexeu-se. Primeiro levantou a cabeça rapada ensanguentada, sem gorro, depois soergueu o tronco e, agarrando-se a uma árvore, pôs-se completamente de pé. Parecia tão pavoroso que os atacantes pararam. Ele, porém, estremeceu de repente, afastou-se da árvore e, como um cardo cortado, caiu sobre a cara e não se mexeu mais.

Não se mexia, mas ainda sentia. Quando Agá Gadji, o primeiro a acorrer, lhe bateu com um grande punhal na cabeça, pareceu a Hadji-Murat que lhe estavam a dar marteladas no crânio, e não percebia quem o estava a fazer nem porquê. Foi a sua derradeira consciência da ligação com o seu corpo. Não sentia mais nada e os inimigos espezinhavam e cortavam um objecto que já não tinha nada a ver com ele. Agá Gadji pisou-lhes as costas, decepou-lhe a cabeça com dois golpes e, com cuidado, para não sujar os tchuviakes com o sangue, rolou-a para o lado a pontapé. Inundando as ervas, o sangue vermelho jorrou das artérias do pescoço e o sangue negro da cabeça.

Kargánov, Agá Gadji, o Cão Akhmet e todos os milicianos, como caçadores ao pé de um animal abatido, juntaram-se sobre os corpos de Hadji-Murat e dos seus homens (Khanefi, Kurban e Gamzalo foram amarrados) e, parados no meio dos arbustos envoltos no fumo da pólvora, conversavam alegremente, rejubilando com a vitória.

Os rouxinóis que se haviam calado durante o tiroteio voltaram a chilrear, primeiro um mais próximo, depôs outros, nos extremos dos arbustos (HM, 123).

*

De repente, no meio das machadadas, ouviu-se um ligeiro estalido. Todo

o corpo da árvore estremeceu, inclinou-se, endireitou-se logo, e cambaleou, assustado na sua raiz. Por um instante silenciou-se tudo, mas a árvore voltou a inclinar-se, de novo se ouviu o estalido estranho no seu tronco e, quebrando os galhos e os ramos, a árvore tombou inteira no solo húmido, da copa à raiz. Os sons do machado e dos passos calaram-se. O pisco assobiou e voou mais para cima. O raminho que o pássaro tocou com as asas balançou um pouco e imobilizou logo todas as suas folhas, como os outros. As árvores, no novo espaço aberto, exibiam com uma alegria ainda maior os seus ramos imóveis.

[...] Os pássaros azafamavam-se no fundo do bosque e, enlevados, trinavam

qualquer coisa feliz, as folhas palpitantes de seiva cochichavam, alegres e 453 Numa carta à condessa A. A. Tolstaia, Tolstoi diz à tia para não tentar ler a sua história “Três

Mortes” [Tri smerti, 1859] de um ponto de vista cristão. A morte da terceira “criatura”, a árvore, é descrita da seguinte forma: “morre em paz, honestamente, graciosamente. Graciosamente – porque não mente, não se dá ares, sem medo e sem arrependimentos. Aí está a minha ideia, e claro que não irá concordar com ela”. Tolstoy’s Letters, vol. I, p. 122, itálicos meus.

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calmas, nas ramagens vivas que se mexiam com vagar e majestade por cima da árvore caída e morta454.

**

Um dos motivos para a instabilidade da recepção de Hadji-Murat prende-

se com as leituras distintas e contraditórias que têm sido feitas do que se designou

o “estranho laconismo” do narrador de Hadji-Murat. Por um lado, como vimos, é

enaltecido pela qualidade shakespeareana, dramática e contraditória que imprime

às personagens.

Por outro, é percepcionado como a tentativa de segregar o valor do

mundo dos factos e da experiência, cujo resultado é a redução drástica da vida

mental das personagens e da possibilidade da sua expressão. E isto em nome de

uma concepção de literatura parabólica, quase desligada da linguagem e, por

conseguinte, da esfera dos valores que impregnam a linguagem do quotidiano.

Esta leitura nostálgica da ausência discursiva do Tolstoi que narra Hadji-

Murat é comparável àquela sensação de perda de alguma coisa importante que Iris

Murdoch detecta na transição do Tractatus para as Investigações Filosóficas e

identifica como o resultado de um recorrente movimento anti-metafísico, que se

manifesta por um processo de purificação (ou desmitologização) das nossas

descrições do mundo, incluindo as descrições religiosas455.

Cora Diamond refere-se a esta leitura nostálgica como a “estranha lacuna

do ético”, associada aos escritos tardios de Wittgenstein456. Para Diamond esta

disputa (deveremos, ou não, lamentar esta lacuna?) é uma disputa entre duas

454 Lev Tolstoi, “Três Mortes”, O Diabo e Outros Contos, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.,

notas), Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2008, p. 185. 455 Cf. Iris Murdoch, Metaphysics as a Guide to Morals, London: Vintage, 2003, pp. 49-51, et

passim. 456 Cora Diamond, “Introduction to ‘Having a Rough Story About What Moral Philosophy Is’”,

The Literary Wittgenstein, John Gibson e Wolfgang Huemer (eds.), London: Routledge, 2004.

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leituras das Investigações Filosóficas – a doutrinária (ou filosófica) e a literária – e

traduz dois modos distintos de ver o interesse filosófico de determinadas obras

literárias: através das ideias que se encontram enunciadas no texto e daquilo que

não se encontra, dito ou mostrado, no texto. O que se pretende dizer é que esta

ausência só poderá parecer “estranha” aos que não lêem a filosofia tardia de

Wittgenstein, com a sua forma heterodoxa e desenvolvimento assistemático de

argumentos, como o resultado da aplicação do método estritamente correcto para a

filosofia, proposto no Tractatus:

O método correcto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser

dito, i.e., as proposições das ciências naturais – e portanto sem nada que ver com a Filosofia – e depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o método pareceria ser frustrante – uma vez que não sentiria que lhe estávamos a ensinar Filosofia – mas este seria o único método estritamente correcto” (TLP, §6.53).

Na interpretação radical que Diamond faz da distinção mostrar/dizer,

repudiando “a concepção substancial do nonsense tractariano”457, ou seja, o

argumento de que certas proposições sem-sentido poderiam ser verdadeiras se

aquilo que elas tentam dizer pudesse ser dito (o inefável)458, o método proposto e

aplicado no Tractatus é uma técnica literária. Tal técnica consiste em levar o

leitor, através da sua imaginação, a acreditar que naquele livro se encontram

enunciadas doutrinas, teses ou soluções finais para problemas filosóficos para, em

457 Cf. Cora Diamond, “Ethics, Imagination and the Method of Wittgenstein’s Tractatus”, The

New Wittgenstein, Alice Crary & Rupert Read (eds.), London, New York: Routledge, 2005, pp. 149-173.

458 O argumento de G.E.M. Anscombe e de P.M.S. Hacker segundo o qual, no âmbito da teoria da linguagem do Tractatus, há de facto um ponto de vista lógico correcto e que este ponto de vista traduz a compreensão de Wittgenstein “dos motivos pelos quais [why] a essência do mundo e a natureza do sublime são – inexprimíveis. (P.M.S. Hacker, “Was He Trying to Whistle It?”, The New Wittgenstein, p. 382). Em suma, a leitura do Tractatus que não procura resolver o seu paradoxo final (§6.54) e que aceita que existe realmente o que não pode ser dito, porque só pode ser mostrado. (cf. G.E.M Anscombe, op. cit.)

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seguida, levá-lo a ver claramente que nada ali é dito sobre tais problemas,

transformando deste modo a nossa compreensão:

Temos não só de compreender o que está nele ausente como também

transformar essa ausência em alguma coisa que possa transformar a nossa concepção do que são as nossas dificuldades filosóficas. O livro não nos ‘ensina’ filosofia, no sentido em que não tem quaisquer ensinamentos para oferecer; e enquanto nos restringirmos a buscar ensinamentos, seremos incapazes de aprender alguma coisa de filosófico com ele459.

Pesem embora os “lapsos” moralistas em que Tolstoi incorre em Hadji-

Murat, não se coibindo de tecer críticas ao czar ou à impropriedade da moda

feminina, esta obra exemplifica para Cora Diamond aquilo que a filosofia, pré e

pós-tractariana, pretende alcançar: a ausência do ético. Porque nada é ali dito

explicitamente sobre o sentido da vida, nem tão-pouco “o que pensar do próprio

Hadji-Murat, da sua vida e morte”, esta obra exige do seu leitor algo que o

Tractatus também exige: uma atenção particular ao que nele se encontra ausente,

i.e. “uma leitura das suas ausências [a reading for absences]”460. Este modo de

reagir imaginativamente à descrição de ausências, ou à “escrita de ausências”461,

em projectar coisas inexistentes nestes livros para, em seguida, “abandonar a

escada” e deixar de ler proposições sem-sentido como se tratassem de proposições

com sentido, permite produzir-se o pretendido efeito terapêutico, o ponto ético

destes livros: libertar o leitor do seu próprio desejo de neles encontrar uma

doutrina ou um qualquer tipo de conhecimento.

Nesta classe de textos sem teses filosóficas, mas, não obstante, com um

ponto ou uso filosóficos, referida por Diamond, poder-se-á incluir não somente

459 Diamond, “Introduction to ‘Having a Rough Story About What Moral Philosophy Is’”, p. 128. 460 Idem, p. 131. 461 “[Wittgenstein] escreve ausências, ou assim o estou a sugerir.” Diamond, loc. cit.

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Hadji-Murat como uma outra, importante, como já dissemos, para o itinerário de

Wittgenstein: Os Meus Evangelhos.

Como referido aquando do excurso sobre um dos baluartes do trabalho de

Tolstoi em torno dos evangelhos – a doutrina da não-violência –, o processo de

literalização das metáforas realizado em Os Meus Evangelhos pode ser

enquadrado numa tradição literária que, empregando uma imagem afim à de

Auerbach, procura iluminar o obscuro, isto é, de um estilo que, ao nada deixar

omisso, pretende dispensar a interpretação figural e, com ela, as indeterminações

de sentido. Como vimos, Tolstoi defende que a sua versão recupera um conteúdo

até então obscurecido pelo exercício, no decorrer dos tempos, das “imaginações de

milhares de mentes e mãos humanas”: a literalidade da “doutrina de vida” de

Jesus. Simultaneamente, nega um contexto histórico (ou a sua relevância para a

compreensão da essência dos Evangelhos), uma autoria e encarrega-se de fornecer

a sua auto-exegese, transformando as metáforas dos Evangelhos em comparações:

“O Senhor é o meu pastor” é traduzido por “O Senhor é como um pastor”.

Assinalando o vazio proposicional das metáforas, os momentos em que a

linguagem deixa de poder dizer alguma coisa sobre o mundo dos factos, porque

“Deus” nada denota no mundo462, Tolstoi visa tornar qualquer “interpretação

profunda” um elemento redundante para a compreensão do seu texto evidente e

possivelmente mais “homérico”.

Ora, num certo sentido, sugeriu-se que Hadji-Murat também poderá ser

lido no âmbito desta estratégia, com resultados igualmente paradoxais. O prelúdio

e coda sobre o cardo podem ser simbólicos e constituir mesmo, para certos 462 Não é por acaso que Wittgenstein introduz as suas descrições da experiência de valor absoluto,

do ético, sublinhando que, no contexto da linguagem religiosa e ética, “mal tentamos abandonar a símile para simplesmente dizer os factos que estão por trás dela [which stand behind it], vemos que não existem tais factos. E assim, o que à partida parecia ser uma símile, parece agora ser mero sem-sentido. Wittgenstein, “Conferência Sobre Ética”, pp. 42-43.

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leitores, uma intromissão da prédica numa “escrita de ausência”, um “lapso

moralista” numa arte cuja aspiração mais elevada deverá ser proporcionar uma

visão intensificada sobre o particular. Para mais, Tolstoi não se limita a recorrer

com prodigalidade a metáforas demasiado óbvias, como também as transforma em

comparações, esvaziando-as de significado. Antecipa-se ao seu leitor, auto-

interpretando o seu texto, como se pretendesse dizer: “Uso isto como uma

alegoria, mas reparem: não encaixa aqui”463.

Por outro lado, embora o prelúdio que emoldura a narrativa sobre Hadji-

Murat e a coda final tornem o conteúdo ético de Hadji-Murat explícito, e

inteligível até para uma audiência de “rústicos”464 (ao contrário do prefácio e da

injunção final do Tractatus), muito é silenciado e permanece na sombra. Em

contraste com a descrição objectiva e exteriorizada de Os Meus Evangelhos, o

peepshow de Hadji-Murat não unifica a realidade, o exterior e o interior, numa só

imagem – fragmenta a percepção que temos dela. Este laconismo do narrador da

história emoldurada, do protagonista, mas também de Deus, aproxima assim esta

narrativa do estilo dramático genésico, tal como descrito por Auerbach: o discurso

é paractático, a acção entrecortada, o retrato humano mais problemático,

enigmático, o mundo social mais variado (do príncipe passa-se para o soldado, do

salteador para o camponês, etc.). Isto é feito de uma forma deliberada. As várias

versões através das quais Tolstoi vai depurando a sua narrativa de interferências

autorais, de indicações claras quanto às suas intenções, das marcas, em suma, do

que distingue, segundo Diamond, as actividades do “moralista” e do “filósofo

moral”465, mostram que Tolstoi, o “profeta da não-violência”, se ausenta

463 Wittgenstein, CV, p. 34e. 464 Bayley, op. cit., p. 192. 465 O “explicitamente ético”, o qual Cora Diamond, no seu ensaio introdutório a “Having a Rough

Story About what Moral Philosophy Is”, hesita em classificar como a “ausência de uma ética”

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voluntariamente do seu teatro ao empregar o método do peepshow.

Do mesmo modo em que a referida “ausência do ético” nos escritos

tardios de Wittgenstein466 pode ser entendida de formas distintas, consoante a

nossa receptividade em aceitar que obras literárias nos possam elucidar sobre em

que consiste a filosofia moral, o resultado do processo de depuração de Hadji-

Murat pode ser, assim, entendido de duas formas distintas. Em primeiro lugar,

como uma “parábola óbvia”, exemplificando o que Tolstoi classifica em OQA? de

“arte universal”. A intenção do autor (a sua tese ética) vem enunciada no prefácio,

e a coda reforça-o: a guerra é irracional, quer do ponto de vista de um cristão (o

narrador), quer de um murid que segue os preceitos mais elevados da religião

muçulmana (o protagonista). Em segundo, como uma narrativa filosófica, no

sentido implícito na estipulação de Wittgenstein de que a filosofia de Tolstoi é

mais verdadeira quando está latente na história467, e no sentido mais explícito de

que “se não tentarmos dizer aquilo que não pode ser dito, então nada se perde.

Mas o que não pode ser dito já estará – sem ser dito – contido naquilo que foi

ou como a “ausência de uma ética explícita”. No ensaio propriamente dito, depreende-se que o “explicitamente ético” é aquilo que distingue de acordo com Diamond as actividades do “moralista” e do “filósofo moral”, na medida em que o primeiro, ao ter como objectivo o estabelecimento de códigos morais e/ou a promoção da sua observância, seja em textos literários ou filosóficos, abordaria as questões éticas do ponto de vista do “explícito”. O segundo, ao rejeitar a descrição da ética ou da filosofia moral como a especificação de princípios de acção ou de escolha do moralista, parte do princípio de que o objectivo da filosofia moral é o reconhecimento da particularidade do homem, da sua visão interior, e de que as obras literárias têm um papel central na clarificação daquilo em que consiste a actividade da filosofia moral: a percepção ou a “atenção”, no sentido que Simone Weil confere ao termo, ao particular, a marca distintiva do agente moral (e as diferenças entre as actividades do romancista e do filósofo moral esbatem-se). Cf. Diamond, “Having a Rough Story About What Moral Philosophy Is”.

466 Sublinhe-se que esta “ausência” não é absoluta. “Deus”, “fé” ou “religião” são temas recorrentes nos escritos tardios de Wittgenstein, incluindo nas notas reunidas em Da Certeza, onde Wittgenstein discute as gramáticas do “saber” e da “certeza”: “Está Deus limitado pelo nosso saber? Serão muitas das nossas declarações insusceptíveis de falsidade? Porque é isso o que pretendemos dizer”. Ludwig Wittgenstein, Da Certeza [On Certainty / Über Gewissheit], Maria Elisa Costa (trad.), António Fidalgo (rev. da trad.), Lisboa: s.d., p. 125)

467 Norman Malcolm, op. cit., p. 98.

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dito!”468.

No seguimento das suas intensas investigações sobre a hipnose de

Shakespeare através do modo como esta se revela na “bardolatria”, e de ter

conseguido, após mais de mais duas mil páginas manuscritas, aliar no peepshow

de Hadji-Murat os dois estilos através dos quais Auerbach analisa a tradição

literária ocidental, Tolstoi anotava no seu diário: “Não gosto, e considero até

poeticamente mau, tratar de questões religiosas, filosóficas e éticas de uma forma

literária ou dramática, como no Fausto de Goethe, etc. Sobre estas questões,

devemos ou não dizer nada, ou então apenas falar com o máximo cuidado e

atenção, sem expressões teóricas, e – Deus tenha misericórdia de nós – sem

rima”469.

Se tivermos em mente que, ao tratar estas questões “com o máximo

cuidado e atenção, sem expressões teóricas”, seguindo a injunção final do

Tractatus, Tolstoi consegue, ainda assim, ou precisamente por isso, mostrar uma

forma de vida religiosa, a fé como uma entrega apaixonada a uma sistema de

coordenadas470, a “ausência do ético” de narrativas como Hadji-Murat (e Os Meus

Evangelhos) ganha novos contornos.

A “filosofia” de Tolstoi apresenta-se ali sob a única forma possível –

como o pano de fundo, como Wittgenstein diz em relação às suas investigações

468 Wittgenstein resume desta forma a virtude maior de poemas “realmente magníficos” como “O

Espinheiro do Conde Eberhard”, de Ludwig Uhland. Engelmann enviara-lhe uma cópia deste poema por carta, recomendando-o como um exemplo de “assombrosa objectividade”. Sublinhe-se o paralelismo entre os motivos de Hadji-Murat e os do poema de Uhland, o qual conta a história de um conde que, em cruzada pela Terra-Santa, apanha um raminho de um arbusto-espinheiro e, já de regresso a casa, o planta na terra para o ver crescer e se desenvolver numa árvore. Cf. Carta a Paul Engelmann, citada em Monk, op. cit., pp. 150-151.

469 Tolstoy’s Diaries, vol. II, p. 642. 470 Cf. Wittgenstein, p. CV, 73e.

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gramaticais471, a partir do qual a parte escrita da sua biografia sobre Hadji-Murat

adquire o sentido. A “ausência do ético” transforma-se na “ausência do

explicitamente ético”, corrigindo-se assim os excessos decorrentes do processo de

purificação do transcendente: “Tudo o que a filosofia pode fazer é destruir ídolos.

E isso significa não criar um ídolo novo – como, por exemplo, a “ausência de um

ídolo”472.

471 “O inexprimível (o que considero enigmático & não sou capaz de exprimir) talvez seja o pano

de fundo a partir do qual o que quer que eu tenha conseguido exprimir adquire sentido.” Wittgenstein, CV, p. 23e.

472 Wittgenstein, “Philosophy” [“Philosophie”], Philosophical Occasions, 1912-1951, p. 171.

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