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Título O Espião Português

Autor Nuno Nepomuceno

Todos os direitos para a publicação desta obra reservados por: TopBooks Campo Pequeno, n.o 21, 3.o Esq. 1000-079 LisboaTel.: (+351) 214 094 260 | Fax: (+351) 214 094 136 | Tlm.: (+351) 961 563 353 E-mail: [email protected]

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Capa Addmore Branding & Architecture

Coordenação editorial Fernando Gabriel Silva

Revisão a neticn

Pré-impressão a neticn

Impressão e acabamentos Guide Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal 387399/15

Edição Fevereiro de 2015

ISBN 978-989-706-142-4

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso do editor. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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Está a correr. Não tem a certeza de quantos são. Olha para trás. Os guardas dobram a esquina do corredor. São apenas dois. Não, três. O certo é que mais venham a caminho. De arma em punho, gritam em sueco. Um deles atira, mas falha. Uma luz de presença estala, dei-xando o corredor um pouco mais escuro. Vindo de cima, o besouro do alarme ressoa-lhe nos ouvidos. O corredor parece não ter fim. Sente as solas duras a escorregar sobre o chão antigo de pedra. As dores no pé começam a incomodá-lo verdadei ramente. «Stanna, stanna!», orde-nam eles, como se parar fosse mesmo uma opção. Tem de continuar a correr! Sente a respiração ofegante e o coração a roçar o descontrolo. Os olhos, a única parte do rosto além dos lábios que o carapuço negro lhe deixa visível, começam a revelar a transpiração. Normalmente são verdes. Naquele momento, quase aposta que estão cinzentos. Ficam assim com a tensão. Ao fundo, avista mais uma curva. Se estudou bem a planta, as escadas são logo a seguir. Novos disparos cortam as pala-vras de ordem dos guardas. Encolhe-se ao sentir silvar muito perto. Mas Freelancer continua a correr. Cada vez mais depressa.

A perseguição continua nas escadas. Gustav, Fredrik e Carl, os três guardas de serviço à ala sul naquela noite, galgam dois degraus de cada vez. Dois lances e meio acima, avistam o intruso. É alto. Um pouco menos do que Fredrik. Talvez um e oitenta. Obviamente atlético, tem um carapuço e usa fato e gravata. Um entre as dezenas de homens ali presentes naquela noite? Gustav, o mais experiente, pára e atira

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de novo. É inútil. O intruso move-se demasiado depressa. Pelo poço das escadas, vêem-no chegar ao último piso. Ali, naquela ala, só há a capela real e está a ser restaurada… Ou irá ele para o telhado? Pega no rádio e actualiza a posição do fugitivo. Os reforços estão a caminho. É hoje que vai conseguir uma menção honrosa.

A pequena capela está em silêncio. Iluminado apenas pelo luar que se derrama pelas janelas, Freelancer tenta regularizar a respiração. Está virado para o que parece ser um altar. Observa o interior da igreja em busca de orientação. Tem a altura de dois andares. O tecto é branco com frescos dourados. Lá em cima, pequenos anjos parecem esprei-tá-lo, divertidos, por entre as nuvens. Até ao altar, os bancos desfilam alinhados. Sobreviveram ao incêndio de 1697 e ainda estão impecá-veis. Verdadeiras preciosidades. Ao fundo, duas portas escuras e pe-quenas. Talvez dêem para o corredor este… Não, não é opção.

Quando era pequeno, o pai deu-lhe um batalhão de soldadinhos de chumbo. Fartou-se de brincar com eles. Tinham umas fatiotas azul--escuras, com capacetes metálicos que mal lhes deixavam ver os olhos. Por esta hora, o corredor já deve estar repleto deles… de carne e osso. Olha em redor. De cada lado, uma fila de janelas estende-se até ao fundo. Aí, nota que duas estão escuras. São falsas. Logo, viradas para a ala este… Portanto, a rua ficará para a sua direita. O que significa que, à esquerda, estará o pátio do palá cio. Ouve os passos dos guardas no cimo das escadas. Mais um minuto e estarão ali. Talvez nem tanto… Olha para cima. Está por baixo de um varandim. Consegue ver que se estende mais para a frente. Alguns ferros unem os pilares que supor-tam o peso de qualquer coisa. Sim, ouviu dizer que estava em obras.

Enquanto limpa o suor dos olhos, dá alguns passos em frente, olha para cima e depois para trás. Lá está. Imediatamente por cima, um órgão de tubos. O luar reflectido nos cilindros dá-lhes um ar lunar. Ao lado, do tecto, pendem dois candeeiros presos por fios de aço. Por cima, uma inscrição: «Laudate Dominum in Sanctis»… Tenho de aprender latim, pensa.

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A porta está escancarada. Gustav anui para Fredrik, o mais alto dos três. Este entra de arma em punho. Os outros dois seguem-no com movimentos laterais rápidos. Passam pela porta de acesso ao órgão. Uma fita amarela proíbe a entrada devido a obras. Não está forçada. Ignoram-na e avançam para o interior. Estão virados para o altar da ca-pela. O silêncio que dela emana é cortado pelo rádio. Gustav responde e informa que acabaram de entrar. Os colegas vêm pela ala este. Se ele não está lá, só pode estar na capela. Olha para os bancos, faz sinal a Carl para os cobrir a partir dali e avança. Fredrik segue-o de imediato. Não só é o mais novo, como é a primeira vez que está de guarda à ala sul. «É melhor começar por um sítio mais ligeiro», rematou o coman-dante. «O verdadeiro problema vai ser a recepção e segurança dos VIP. Aí é que precisamos de pessoal mais experiente», terminou enquanto dava uma valente baforada no primeiro charuto do dia. Só espero que te engasgues com o fumo e mordas a língua, pensa Carl, enquanto cobre o avanço de Fredrik e Gustav. Observa-os enquanto passam as duas primeiras filas. Estão a uns cinco metros de si, talvez seis. Não há som-bra de ninguém. Vê o cano da arma a tremelicar. Aperta-a com mais força. Dava tudo para não estar ali. Sente algo frio na cara — como um pingo de água ou de chuva. Sim, a capela está em obras, mas será possível que o telhado deixe entrar água? Fredrik e Gustav avançam lentamente, inspeccionando os bancos com cautela. Um novo e ir-ritante pingo cai-lhe sobre a bochecha. Lentamente, roda a cabeça e olha para cima. Está por baixo de um varandim. Por momentos, duvida se o mundo não deu um pinote inesperado e ficou virado ao contrário. Inexplicavelmente preso ao tecto, está um homem. De fato e gravata. E no meio do carapuço preto, uns trans pirados olhos cin-zentos olham-no sem expressão.

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Cimeira de Estocolmo — Baile de EncerramentoPalácio Real Sueco, duas horas antes

Diz-se que Tessin, o arquitecto do palácio, tinha particular orgulho nela. E não é para menos. A escadaria ocidental tem um brilho muito singular. Nevou toda a tarde em Estocolmo e a forma como o amarelo das luzes se reflecte nos degraus de mármore sueco e de pórfiro dá ao espaço um tom dourado no mínimo aconchegante. Contudo, não se sente confortável. À medida que vai subindo as escadas, a dor no pé direito parece acentuar-se. Tenta revirar os dedos dentro dos sapatos, mas é inútil. Desde o meio da tarde que parece ter um rato a roer-lhe o dedo grande do pé. Malditos sapatos novos. E maldito seja ele. Não os devia ter trazido. Ainda passou pelo hotel para descansar um pouco, mas não foi, definitivamente, o suficiente.

Apesar de toda a cerimónia da ocasião, não se sente intimidado. Não é todos os dias que a Suécia transfere a presidência da União Eu-ropeia para a Áustria. E, de facto, decidiram fazê-lo em grande. Mas, embora os pais o tenham poupado a este tipo de coisas, crescer no meio de uma família de diplomatas tem o que se lhe diga. Sente-se à vontade com o protocolo e afins. E, além do mais, já está no ministé-rio há mais de quatro anos, praticamente três ao mais alto nível.

A comitiva portuguesa vai subindo as escadas. Àquela hora, a maior parte do pessoal — tradutores, secretários — já deve estar

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confortavelmente instalada num avião a ver um filme qualquer. Na verdade, também ele poderia estar. Mas ser responsável pelo Ga-binete de Informação e Imprensa do MNE e ainda secretário pessoal do ministro dá-lhe outros privilégios, como este. Embora naquele ins-tante, depois de ter passado toda a tarde a enviar press releases para os media portugueses e ter trucidado um dedo do pé, não se sinta parti-cularmente afortunado.

À sua frente segue João Santos Ferreira. É o ministro dos Negó-cios Estrangeiros português e conduz a mulher levemente apoiada no braço. Os saltos altos de Madalena acentuam a diferença de altu-ras. Caminha, elegante como sempre, no esplendor do seu metro e oitenta. Passou dos quarenta há pouco tempo. Já se nota uma ruga aqui ou ali, mas o vestido preto, apesar de simples, realça-lhe a be-leza natural dos seus traços finos e cabelo curto encaracolado. O ma-rido, mais velho e mais baixo, é tipicamente português. Atarracado e barrigudo por natureza, acaba por ter um ar castiço que desarma qualquer um à primeira. E à medida que as madeixas brancas lhe vão tingindo o cabelo e a barba, parece ganhar uma aura de bonomia e distinção.

A escadaria está quase no fim e a pequena comitiva fica agora ainda mais reduzida. O primeiro-ministro e a mulher deixam-se ficar atrás, entretidos a cumprimentar os congéneres franceses. É importante que estreitem relações, pois no âmbito da presidência tripartida, Portugal irá suceder à Áustria a partir da metade do próximo ano, seguindo- -se-lhe depois a França no princípio do seguinte. Indiferentes, João e Madalena Santos Ferreira continuam e trocam com ele um olhar de cumplicidade.

A afinidade que tem com o ministro vem de há muito. Se não fosse tão próximo do seu próprio pai, teria ali quem não o deixasse ficar mal. Tem bem presente na memória a manhã em que ele o abor-dou. Na altura, não passava de um mero assessor no gabinete que agora chefia. Tinha acabado de chegar da rua com os matutinos e sentara-se na sua secretária na biblioteca do rei D. Carlos, o espaço

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no Palácio das Necessidades ocupado pelo Gabinete de Informação e Imprensa. Outubro já ia a meio. Chovera copiosamente toda a noite e assim continuava. O trânsito estava para lá de caótico e vira-se grego para chegar a horas ao trabalho. Levantara-se depois da hora, não tomara banho de manhã e o cabelo absorvera a humidade do dia. Sentia-se sujo e desconfortável e, à medida que folheava os jornais com pouco interesse, pensava se devia ou não cortar o cabelo muito rente. Máquina três? Ou dois ficaria melhor? E eis que, pelo canto do olho, se apercebeu da entrada súbita do ministro.

— Ora, André. Bom dia! — cumprimentou bem-disposto. — Bom dia, Sr. Ministro — respondeu, disfarçando a curiosidade

por ter na frente o recém-empossado ministro dos Negócios Estran-geiros com uma chávena de café numa mão e um donut com açúcar na outra.

— Tem muito que fazer? — Não, estava só aqui com os jornais. Posso ajudá-lo? — Creio que sim. A partir de agora e durante o próximo mês vai

trabalhar directamente com o Tavares — continuou, enquanto dava uma dentada no donut.

— O Tavares? — repetiu, perplexo. O Tavares era o seu chefe di-recto, uma mula com cérebro, na verdade, mas o seu chefe.

— Ele vai reformar-se. Segundo me disse, o André está cá há pouco tempo. Mas é o mais qualificado. Vá ter com ele para ficar ao corrente do funcionamento das coisas — avançou, enquanto coçava a barba. — A partir do próximo mês, assumirá a chefia deste gabinete. Precisa-mos de sangue novo. Isto aqui está tão atrasado, que até o D. Carlos deve dar voltas no túmulo. Acho que o André está a ser subaprovei-tado. Encare isto como um desafio e não se intimide.

Por momentos sentiu o mundo parar. Teria o universo um sentido de humor tão mórbido que lhe dava uma oportunidade daquelas, logo no dia em que se desleixara um pouco e tinha o cabelo mais pastoso do que um tubo de cola UHU?

— André? Percebeu? — Sim, claro.

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— Ah, e também gostaria que fosse o meu secretário particular. Não o vou chatear muito. Mas é que é a melhor forma de interligar os dois serviços.

— Será uma honra, obrigado. — Não me agradeça à mim. Agradeça à minha mulher. Ela não vai

à bola com aquela pequena que lá está agora.

E foi assim que o homem a quem o país tinha entregado a política externa lhe ofereceu o cargo, enquanto limpava o açúcar da barba. Claro que o que se seguiu foram três anos de trabalho intenso de mo-dernização e actualização de um organismo obsoleto… e frequentes idas matinais à pastelaria para comprar donuts.

Mas foi pelo melhor. Depois de tudo o que acontecera no último ano, não pode deixar de se sentir grato por ter tido uma oportunidade de mergulhar de cabeça em algo. Qualquer coisa que o fizesse esquecer o disparate inútil de há dois meses. Se bem que algo daquela dimensão nunca se pode esquecer completamente. Nem convém…

Agora, com vinte e sete anos, enquanto lhe devolve o sorriso cúm-plice, compõe o casaco sobre os pulsos, coça ligeiramente o cabelo — curto, cortado à máquina dois e não três — e entra no salão principal, não pode evitar sentir orgulho por ter a sua confiança. Ao mesmo tempo que uma culpa aguda lhe martela no peito por se preparar para o enganar, trair e mentir mais uma vez.

Quando se entra num salão como aquele, engalanado para receber a nata da política europeia, só se pode pensar numa coisa: será que os contos de fadas existem? E se sim, haverá algo mais próximo do que isto? Tudo brilha e reluz. As jóias, os vestidos, os candelabros e toda a decoração. Do tecto, pendem imponentes lustres que acentuam ainda mais a pompa do momento. A decoração marcadamente francesa, em-bora suavizada pela influência sueca, revela anos de história e de poder. Alguns pares estão já a dançar ao som da orques tra. As senhoras, nos seus vestidos de gala, dão um colorido muito especial à ocasião. Se na escadaria o dourado dominava, agora o azul, o vermelho, o branco,

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o salmão, o preto, o verde e até o rosa forte parecem fundir-se num arco-íris inebriante. Um empregado aproxima-se de imediato com uma bandeja de copos de champanhe. O ministro serve-se e faz-lhe sinal. Aceita enquanto Madalena recusa. Avançam mais um pouco. Molha os lábios ligeiramente.

— André, aproveite. Trabalhou o dia inteiro. Distraia-se um pouco — diz o ministro, enquanto segue a mulher.

— Sim. Tenho amigos aqui. Vou ver se os vejo. — Nós não vamos ficar muito tempo. O voo de amanhã é cedo,

não é? — Sete. Já deixei tudo tratado. É só sairmos. — Óptimo. Depois vá connosco. Encontramo-nos lá em baixo, ao

pé das escadas? — Certo. Fica a vê-los afastarem-se. Volta a apreciar a sala. Devem estar mais

de cento e cinquenta pessoas ali dentro.O dedo do pé continua a incomodá-lo. Retorce-o no interior do

sapato, enquanto circula pela periferia do salão. Um criado passa, de-sinteressado, com canapés. Rouba um e avança mais um pouco. Vai mastigando discretamente. Há que manter a calma. O canapé está já no fim. Nada mau. Enfia a mão esquerda no bolso e vai andando. Uma rapariga de cabelo curto, castanho-claro e espetado, passa por ele. Tem um ar muito fresco, um vestido amarelo-claro, olhos cor de mel e cerca de um metro e setenta. Chama-se Marie. Tem vinte e pou-cos anos e é filha do embaixador francês na Suécia. Está acompanhada por duas outras raparigas, ambas bastante mais novas. Discretamente, ela deixa escapar um sorriso. Ele retribui com uma piscadela de olho e continua a andar, enquanto nas suas costas as amigas de Marie se desfazem em risinhos colegiais. No centro, o baile continua animado. Espreita, curioso, e vê o ministro a ensaiar uns passos de dança com a mulher. Madalena ri-se, deliciada. Estão felizes. É palpável. Mais à frente, consegue distinguir o primeiro-ministro britânico e a mu-lher. E mais. A chanceler alemã e o marido. O ministro dos Negó-cios Estrangeiros de Malta a falar com alguém da comitiva polaca.

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O primeiro-ministro francês, desta feita sozinho, à conversa com al-guém, e, claro está, a família real, com Vitória e Madalena lado a lado, devidamente inacessíveis.

Avança mais um pouco até a uma planta quase da sua altura. Vira--se de costas para ela, enquanto, disfarçadamente, despeja o resto do champanhe no vaso.

— Var finns toalett? — dirige-se-lhe uma voz forte, bem colocada, familiar.

Vira-se. É Anssi, assessor do primeiro-ministro francês. A mãe é finlandesa, daí o nome. E o aspecto nórdico, claro. À primeira vista, parece um ser de outro mundo. É alto, quase da sua altura, atlético, vinte e nove anos, pele muito branca — quase translúcida — e olhos verde-água. E se tudo isto não fosse já o suficiente para humilhar a maioria dos homens ali presentes, o cabelo louro, comprido, com tranças afro apanhadas atrás, dá o toque de exotismo essencial e faz o resto.

— A casa de banho? Não sei, mas o meu sueco não é grande coisa — responde, enquanto dão um aperto de mão.

— Isto está mesmo a descer de nível. Como é que te deixaram en-trar aqui? — pergunta Anssi, sarcástico.

— Da mesma maneira que deixaram entrar homens com tranci-nhas — retribui. — A propósito de meninas, ainda não vi a tua na-morada.

O francês faz uma expressão de ultraje fingido. — Está enfiada na casa de banho há mais de vinte minutos. —

Pausa para respirar por momentos. — O que é que elas fazem lá den-tro?

— Perguntas tu e todos os homens do mundo. Uma socialite sueca com um ar esfomeado passa por eles e deixa

cair um olhar interessado. Anssi repara e lança um olhar dissimulado a André.

— Não te faças de parvo que aquilo não foi para mim. O português balança ligeiramente sobre os calcanhares, vê as horas

e muda radicalmente de assunto e de expressão.

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— Inseriste o sinal gravado? Anssi hesita por momentos, como que à espera de resposta à pro-

vocação anterior. Por fim, diz discretamente: — A Blue trata disso. Estudaste a planta? — Uhum. — OK. Já tens o cartão? — Não. Ficaram de estabelecer contacto. Charlie. Sabes quem é? — Não. Deve ser novo — responde Anssi, enquanto vê as horas.

— Avisa-me pelo canal 1 quando estiveres a postos. Eu e a Monique damos-te cobertura, como combinado.

— Se ela sair da casa de banho — ironiza com uma pequena gar-galhada.

— Não me lembres! — São piores do que comadres! — ouve-se por trás. É Monique.

Pertence ao executivo britânico. Acabou de fazer trinta anos. É loura, magra, de olhos azuis e muito bonita. O tipo de beleza sóbria que não precisa de adornos, pós ou brilhos.

Chega e cumprimenta André com um beijo leve na cara. O per-fume é delicioso. Fresco, com um pouco, só um pouco, de picante.

— Estás bom? — Agora estou melhor — diz, sorridente. Anssi olha-a de sobrolho carregado. — Vamos dançar — pede ela, enquanto lhe faz uma festa nas tran-

ças. — Onde é que te meteste? — Vamos dançar! — pede ela, a fazer beicinho. — Perdi a vontade. Monique chega-se mais ao namorado e diz-lhe qualquer coisa ao

ouvido. Afasta-se depois um pouco, sem nunca lhe largar a mão. Pro-positadamente, finge uma expressão inocente.

— Vamos dançar? Anssi olha-a muito sério. Finalmente rendido, vira-se para André,

encolhe os ombros, desfaz o enfado, pragueja qualquer coisa em fin-landês e segue-a pela mão. André fica a vê-los ir. Monique está com

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um vestido vermelho com brilhantes discretos e o cabelo ligeiramente ondulado. Anssi, impecável no seu fato completo e cabelo comprido, encosta-a a si, faz-lhe uma festa com a cara e entrega-se à dança. Fazem um par muito atraente. Encaixam.

Deixa-se ficar por ali uns momentos. Continua a ver inúmeras caras familiares. Ao longe, repara nos guardas suecos com os seus uniformes azuis. Estão na entrada do salão, bem como nas portas de acesso aos corredores que comunicam com o resto do palácio. Respira fundo e prepara-se para circular mais um pouco quando sente uma mão fina no braço.

— Quer dançar? Por instantes, fica sem reacção. Uma mulher, quase da sua altura,

está ao seu lado. Tem um fantástico vestido branco só com uma alça. Deve ter vinte e três ou vinte e quatro anos. E o cabelo é castanho--escuro, apanhado ao alto.

— Vai ficar pregado ao chão? — insiste ela, revelando um acen-tuado sotaque espanhol.

— Desculpe — hesita. — Conhecemo-nos? — Só dança com quem conhece? Olha-a com disfarçado interesse. Usa óculos com hastes ligeiras

de um metal que não consegue identificar. E apesar de os olhos es-curos brilharem intensamente, parecem não conter um ligeiro ner-vosismo.

— De modo algum — diz, esboçando um pequeno sorriso e esten-dendo-lhe a mão.

Seguem os dois para o centro da pista de dança. A orquestra toca agora algo que lhe parece uma valsa. Pelo canto do olho, repara que o ministro e a mulher o olham com curiosidade. Coloca-lhe a mão ao de leve um pouco abaixo do ombro e começam a dançar.

— Tem uns olhos muito bonitos — diz a rapariga, obviamente a tentar quebrar o gelo. — São do seu pai?

— Não. Do meu avô. — Um português alto, atlético, moreno, com olhos verdes… Hum,

devo ser a mulher mais invejada da sala.

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— Ficaria admirada. A rapariga não responde. Parece tentar disfarçar alguma timidez.

Olha casualmente para os pares que estão por perto. — O seu apelido, Marques-Smith… O seu pai é americano, não

é? — diz subitamente, tentando preencher o silêncio embaraçoso. — O meu apelido? Está bem informada — diz, enquanto ela se vai

deixando conduzir. — Mas não, o meu pai é francês e a minha mãe, portuguesa. O meu avô é que era americano. Daí a mistura.

— Fui inconveniente — desculpa-se a rapariga com algum emba-raço.

— De forma alguma. Como é que soube? — A habitual curiosidade feminina. — Uhum — anui, desconfiado. — Foi a Marie — confessa ela. — Conversas de gabinete, presumo. — De Estado. E altamente secretas, por sinal. — Está explicado, então — conclui, divertido.Continuam a dançar. Vão passando por outros casais. O primeiro-

-ministro italiano e a mais recente acompanhante, com os atributos habituais, também estão por perto. A orquestra prepara-se para mudar de ritmo. A rapariga afasta-se ligeiramente, como que para se ir em-bora.

— Pés de chumbo, é? — Não, não. Dança muito bem. Preciso de ir. Mas queria levar

comigo uma recordação desta dança. Olha-a por breves momentos, como que a tentar decifrar algo que

ficou por dizer. Ela começa a afastar-se em direcção à periferia do salão. Vendo que a despedida está iminente, diz:

— Não sei o seu nome. — Catarina — revela, enquanto se vai distanciando. Por fim, com

um sorriso impecável, deixa escapar: — Mas os amigos chamam-me Charlie.

Fica a vê-la ir. É uma mulher fascinante. Discretamente, leva a mão ao bolso das calças. Sim, Charlie acabou de fazer a sua parte.

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Deixou-lhe um pequeno cartão. O acesso ao Tesouro Público. Afasta--se também ele para uma zona menos descoberta. Sem que ninguém veja, leva a mão ao ouvido e liga o auricular. Como sempre, todas as comunicações são em inglês.

— White Knight e Ice Lady, Freelancer a chamar — sussurra. — Transmite, Freelancer — responde Anssi, fingindo segredar algo

a Monique. — Já tenho o cartão. Estou pronto. — OK. Avança quando eu disser.— À espera. — Blue Swan, aqui White. Insere o sinal. — Roger — responde uma voz jovial.

Na sala de vigilância, Gustav, Fredrik e Carl, os três guardas de serviço, vão lançando olhares às câmaras entre uma partida de cartas. Tudo parece dentro da normalidade. Apesar de a recepção ser de alto nível, não é esperada confusão de maior. Pelo menos, seria inédito. O jogo de cartas prossegue a bom ritmo. Quem perder paga uma rodada na próxima folga, ou seja, Fredrik, normalmente o mais aza-rado. A menos que calhe a Carl. Afinal é novato… Atrás do grupo, as imagens a preto-e-branco vão passando. A escadaria, o salão principal, os corredores… e, graças à observação medianamente atenta dos três guardas, um breve corte na imagem passa despercebido.

À porta da central de comunicações do palácio, um dos elementos da guarda real sueca está estendido no chão. Inerte e adormecido por um dardo tranquilizante. No interior, uma jovem mulher tecla apres-sadamente num pequeno telemóvel de executivo. Uma mera ligação ao servidor da Cadmo, em Londres, e os rapazes da divisão técnica fizeram o resto. Só falta o toque final e Freelancer pode avançar. Com a mão no ouvido, ajusta o auricular e avisa White Knight de que o sinal gravado foi correctamente inserido. Apressa o passo e segue para o salão principal. A noite de Marie ainda não acabou.

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No baile, Anssi e Monique continuam a dançar. Vão rodopiando a velocidade moderada, passando por outros casais. Estão perto do primeiro-ministro francês e da mulher, que cumprimentam cordial-mente. Afastam-se ligeiramente. Fingindo ver as horas no seu moderno relógio digital, White Knight carrega numa combinação de números. O efeito é imediato. Ouve-se um estalido seco à medida que as luzes se apagam e o salão mergulha numa escuridão profunda. A música pára subitamente e é substituída por um burburinho crescente. Ao longe, ouve-se uma bandeja cair com estrondo quando um empregado tro-peça. Tal como se foram, as luzes reaparecem de repente. Um aah generalizado faz-se ouvir por todo o lado. Um grito profundo testa a acústica do salão. O primeiro-ministro francês está petrificado. A sua mulher grita histéricos mon Dieus agarrada ao pescoço. O seu vistoso colar que toda a noite suscitara comentários maldosos desapareceu. Foi-lhe roubado mesmo debaixo do seu nariz. O caos está instalado. Os pares avolumam-se em seu redor, na mesma proporção que os gri-tos sobem de tom. Umas pessoas fazem perguntas, outras comentam, algumas dão palpites. Os guardas, estrategicamente colocados nas en-tradas e saídas do salão, abandonam o posto e tentam pôr alguma ordem na situação. A palavra ladrão começa a surgir nas mais variadas línguas, enquanto as mulheres presentes iniciam uma revista frenética às malas de mão e restantes pertences. Expectantes, Anssi e Monique vão-se deixando engolir pelo círculo imenso de curiosos. Ficam cada vez mais para trás, como é de resto desejável. Estão todos concentra-dos na mulher, guardas incluídos. Atento, Anssi olha na direcção da saída para a ala sul. Completamente abandonada. Disfarçada mente, manda Freelancer avançar. Pelo canto do olho, Monique vê Marie entrar no salão. Blue Swan avança rapidamente para o par. Ice Lady afasta-se ligeiramente do namorado e, por entre as pregas do vestido, retira e passa discretamente o colar à colega. Blue Swan recolhe-o, esconde-o com a mala de mão e continua a andar. Dirige-se à mesa das carnes frias, tira um rolinho de carne e come-o delicadamente, enquanto se junta ao grupo em torno da francesa. Faz uma pergunta a um homem que está por ali e deixa escapar um comentário maldoso

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sobre a segurança. «Ainda há pouco vi um guarda a dormir», opina, ultrajada. Ao fundo, protegido pela confusão, André Marques-Smith desaparece, incógnito.

O corredor está livre. Freelancer estuga o passo, enquanto retira um carapuço do bolso interior do casaco. Sim, é verdade que não o estão a ver na sala de vigilância, mas, sim, também é verdade que o seguro morreu de velho. Compõe a máscara de esqui. Agora, apenas os olhos e os lábios estão visíveis. Vestido como muitos ali dentro, pode ser qualquer um. O corredor é antigo, quase medieval. Umas tapeçarias aqui e ali, algumas portas de acesso — todas fechadas — e chão de pedra. A iluminação é escassa. Apenas algumas luzes de presença, mal semeadas. Apressa ainda mais o passo. Não convém correr. Amaldiçoa o erro de principiante que cometeu ao escolher aqueles sapatos. São de sola dura — farão barulho indesejado ao baterem na pedra — e há a chatice do dedo do pé… Desfaz uma curva no corredor. O cami-nho continua desimpedido. Anssi e Monique estiveram muito bem lá dentro. Ainda vai demorar um pouco até que a normalidade seja restaurada no salão. E Marie? Magnífica! Agora só falta a sua parte. Passou a maior parte da noite de ontem a estudar a planta do palácio. Neste momento, deve estar já na ala sul, por baixo do salão nobre e do trono de prata. Ao fundo, consegue ver o acesso ao Tesouro Público. Fica sensivelmente a meio da ala, mas para baixo, na cave. Aproxima--se rapidamente e começa a descer as escadas. Como previsto, estão livres. Serão cinquenta e seis degraus até lá abaixo. Cinquenta e seis velhinhos degraus. Palmilha-os com algum cuidado. São pequenos. Uma escorregadela não só traria atrasos consideráveis como poderia colocar tudo em risco também. Tenta concentrar-se. À medida que desce, sente o ar frio e húmido a entrar-lhe nos pulmões. Vê o seu próprio vapor a sair com a expiração. Continua a descer. O cheiro a mofo acentua-se. Está de frente para uma porta, simples, de aspecto robusto. Ao lado, uma ranhura para um cartão. Nada ali parece ser altamente tecnológico ou excessivamente seguro. O valor das peças no seu interior é mais simbólico do que monetário. Pelo menos, é o que

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consta. Retira o cartão do bolso e passa-o pela ranhura. Nada. Vira-o. Passa de novo. Um pequeno bip faz-se ouvir com eco. O alarme é desactivado. À medida que do interior surge uma luz branca, a porta abre-se ligeiramente. Freelancer empurra-a e entra.

No salão principal, a normalidade começa a ser reposta. A um canto da sala, o primeiro-ministro francês abana a sua pesarosa mu-lher. Está sentada numa cadeira. Tem um ar inconsolável e a pintura toda esborratada. De um momento para o outro, passara de vítima de um assalto a… vítima de chacota. Logo no dia em que trouxera a sua jóia preferida. Roubada sem apelo nem agravo, para depois reaparecer sobre a mesa das carnes frias… a adornar o pescoço da nada respeitá-vel madame truie. Mon Dieu! Mon Dieu! Mon Dieu!

Ao seu lado, Anssi reassume o papel de assessor e conversa com outro elemento do staff francês. Tem uma mão na boca, outra sobre a barriga, uma ruga vincada na testa e vai anuindo com ar preocupado a cada lamento do colega. «C’est incroyable», exclama o outro, indig-nado. Debruçada sobre a mulher, está Monique. Segura-lhe a mão, fala francês com desenvoltura e vai-lhe dizendo que foi tudo culpa de alguém mal-intencionado que se queria divertir e que ela acabou por ser uma vítima inocente. Amanhã já ninguém se lembrará de nada.

A dois ou três metros, estão os representantes suecos, obviamente embaraçados pelo incidente. Vão dizendo palavras de circunstância, multiplicadas por inúmeras desculpas. A orquestra retomou a mú-sica, mas são poucos os que dançam. Mais para o centro do salão, os empregados regressam à rotina e vão servindo bebidas. O primeiro- -ministro de Portugal serve-se de um copo de champanhe. A festa está obviamente estragada e pela entrada principal começam já a sair os primeiros pares. Madalena Santos Ferreira toca ao de leve no braço do marido.

— João, podemos ir? A festa acabou. Estou cansada e o voo ama-nhã é cedo — pede ela, falando baixo.

— Sim, claro. Vamos começar a despedir-nos. Deixa-me só… O André ficou de ir connosco — responde o marido. — Viste-o?

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— Não. Não o vejo desde que dançou com aquela rapariga — Ma-dalena pausa por alguns instantes. Deixa escapar um sorriso e diz na brincadeira: — Se calhar, é ele o nosso ladrão misterioso.

— Oh, sim! Logo o André! Aquele rapaz até envergonha os santos — diz ele e, finalizando com uma gargalhada: — Não estou exacta-mente a vê-lo rodeado do jóias preciosas!

A coroa, o ceptro, a pia baptismal, o orbe, as chaves do reino… Através das vitrinas, Freelancer vai observando os principais símbolos da monarquia sueca. Tem o passo apressado e os olhos fixos em apenas uma coisa. A sala está medianamente iluminada, mas ele sabe bem o que procura. Segue caminho. Passa por mais alguns objectos. Estão todos expostos da mesma forma. Blocos de pedra. Caixas de vidro. Avança, até que, por fim, o vê. O Globo de Eurico XIV. Mira-o pela vitrina, enquanto confirma o nome inscrito na placa de identificação. Está assente numa pequena base de madeira. É amarelo com manchas castanho-escuras no sítio dos continentes. Tem o tamanho e o diâme-tro de um globo terrestre normal. A base é de madeira e relativamente pequena. O equador está demarcado por um anel de ouro com uma espessura de dois dedos. Outro anel semelhante une os pólos, divi-dindo o globo em quatro. No topo, está uma cruz de ouro e pérolas. Respira fundo e pensa: Que lindo, André! Estás prestes a profanar uma preciosidade da coroa sueca.

Retira umas finas luvas pretas dos bolsos das calças. Calça-as sem demora e pega na vitrina. A caixa de vidro é bastante pesada. Com algum esforço, levanta-a e, por fim, pousa-a no chão com cuidado. Aproxima-se do globo. Tenta rodar o anel do equador. Nada. Tenta para o outro lado. Também não. Coça a cabeça através do carapuço. As primeiras gotas de suor começam a incomodá-lo. Volta a olhar o globo. Tenta rodar a cruz. Parece-lhe ouvir um estalido. Tenta rodar, mas não cede. Não a pode forçar. Exerce alguma pres são, desta vez de cima para baixo. Surpreendentemente, a cruz começa a ceder. Vai até metade. Não dá mais. Roda para a direita. Nada. Para a esquerda, agora. Nada também. Pragueja baixinho enquanto larga o globo.

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Fixa-o por alguns segundos enquanto coça a cabeça novamente. Volta a carregar na cruz. À medida que esta cede, rodeia o anel do equador com a mão livre. Tenta rodá-lo. Surpreendentemente, as duas folhas do hemisfério norte deslizam e o globo transforma-se em meia-lua. No seu interior, jaz um pequeno bloco de apontamentos.

Num dos corredores de acesso do Palácio Real, um dos guardas caminha vagarosamente. Alheio à confusão provocada pelo roubo no salão principal, prepara-se para render o colega que está de serviço à central de comunicações. Vê as horas. Uma da manhã, sem tirar nem pôr. Mais uma madrugada a ver passar as moscas. Se ao menos as houvesse, no meio de tanto frio…, pensa, enquanto funga o pingo no nariz e dobra o corredor. Surpreendido, vê um corpo estendido no chão. Com o coração aos pulos, corre em direcção ao vulto. Curva- -se sobre ele. Tenta acordá-lo. Bate-lhe na cara, abana-o. Respira, mas não reage. Repara numa mancha vermelha no pes coço. Foi drogado. Vê então a porta entreaberta da central. Há luz lá dentro. O primeiro instinto é agarrar na arma. Põe-se de pé e abre a porta com brusquidão e de arma em punho. Ninguém. Apenas um aparelho qualquer sobre a bancada. Parece um telemóvel e está ligado ao sistema. No visor, pode ler que está a transmitir. Num impulso, arranca o fio de ligação.

Na sala de vigilância, Fredrik prepara-se para a vingança. Após noi-tes e noites a perder, parece que a sua sorte mudou. Olha as cartas com um ligeiro esgar. Amanhã, não é ele quem vai pagar a rodada. Quando se prepara para fazer a jogada final, um estrondoso alarme soa sem aviso. Apanhados de surpresa, os três olham para os moni-tores. Gustav é o primeiro a reagir. Os monitores de vigilância do Tesouro Público estão destacados com molduras vermelhas. E, num deles, por cima de um globo terrestre, um homem encapuzado olha surpreendido para a câmara.

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