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Topicos de Filosofia Da Educacao Online

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2006-2009 - IESDE Brasil S.A. proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorizao por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

W761 Winck, Otto Leopoldo; Triches, Ivo Jos; Rezende, Cludio Joaquim. / Tpicos da Filosofia da Educao. / Otto Leopoldo Winck; Ivo Jos Triches; Cludio Joaquim Rezende. 2. ed. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009. 336 p. ISBN: 978-85-7638-998-9 1. Educao. 2. Filosofia. 3. Antropologia educacional. 4. Filosofia - Histria. I. Ttulo. II. Machado, Wanderley. III. Silva, Lu- ciano D. da. IV. Triches, Natalina. CDD 370.1Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Domnio pblico Nome da obra: Escola de Atenas, 1510 Autor: Rafael Sanzio

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Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batei-Curitiba-PR Excelncia no Ensino 0800 708 88 88 www.iesde.com.br

Otto Leopoldo Winck Ivo Jos Triches

Mestre em Estudos Literrios pela Universidade Federal do Paran (UFPR). Especialista em Filosofia com nfase em tica pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUCPR) e bacharel em Teologia pela PUCPR. Mestre em Engenharia da Produo com nfase em Mdia e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clnica pela Faculdade Padre Joo Bagozzi. Especialista em Filosofia Poltica pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporneo pela PUC-PR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR.

Sumrio

Apresentao ................................................11 Convite filosofia ..................................................................................................... 13Por que filosofia?....................................................................................................... 13 Definies ................................................................................................................. 14 Diviso de tarefas ..................................................................................................... 16 A atitude filosfica e o senso comum...................................................................... 17 Nem dogmatismo nem ceticismo ............................................................................ 18 O gnio grego, o mito e as origens da filosofia....................................................... 25 Os filsofos naturalistas e os sofistas ...................................................................... 27 Plato: atleta e poeta ................................................................................................ 41 As vigas do pensamento platnico .......................................................................... 43 O legado de Plato.................................................................................................... 46

Scrates e a filosofia moral ocidental ........................................ 25 Plato e o nascimento da razo ocidental................................. 41

Aristteles e a filosofia como totalidade dos saberes

Filho de mdico, mestre de prncipe........................................................................ 53 Os escritos de Aristteles ......................................................................................... 54 S o individual real................................................................................................. 55 A metafsica .............................................................................................................. 57 O pai da lgica .......................................................................................................... 59 Ajusta medida e o bem comum............................................................................... 61 A filosofia na era helenstica..................................................................................... 69 Sob a gide da cruz .................................................................................................. 77 A Renascena e o divrcio entre razo e f ............................................................. 87 A filosofia moderna: entre razo e experincia ....................................................... 97 Uma vida em dispora.............................................................................................. 98 Uma vida de filsofo ............................................................................................... 100 O pantesmo de Espinosa....................................................................................... 103 O ser humano ......................................................................................................... 104 A moral, o sbio e a eternidade ............................................................................. 106 Igrejae Estado.......................................................................................................... 106 H algo de novo debaixo do Sol ............................................................................ 113 Da Inglaterra e da Frana as luzes brilham para o mundo ................................... 115 Luzes e revoluo ................................................................................................... 116

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De Aristteles Renascena ..................................................69

Espinosa: uma filosofia da liberdade .....................................97

O lluminismo e o Sculo das Luzes .....................................113

A mquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam tcnica.................................. 118 Nomes que brilham ................................................................................................ 119 O legado iluminista................................................................................................. 122 Na encruzilhada da razo....................................................................................... 129 O filsofo de Knigsberg........................................................................................ 130 Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana ...................................................... 133 A razo no tribunal ................................................................................................. 134 O imperativo categrico ......................................................................................... 138 Kant e a educao................................................................................................... 140 O idealismo alemo ................................................................................................ 141 Dialtica: breve histrico ........................................................................................ 147 Hegel .......................................................................................................................149 O hegelianismo....................................................................................................... 151 Filsofo e agitador .................................................................................................. 154 O materialismo histrico ........................................................................................ 156 A prxis ................................................................................................................... 158 Contra Hegel ........................................................................................................... 167 U ma vida taciturna................................................................................................. 169 O mundo como representao .............................................................................. 171 Tudo dor .............................................................................................................. 172 O nirvana................................................................................................................. 173 Schopenhauer e a educao................................................................................... 174 Um mestre e uma musa ......................................................................................... 179 Histria e evoluo ................................................................................................. 181 A religio da humanidade ...................................................................................... 183 Quando filosofia vira samba................................................................................... 183 Vates e filsofos...................................................................................................... 191 U ma vida perigosa ................................................................................................. 192 Uma filosofia feita com o martelo .......................................................................... 196 0"anticristo"e a luta contra o platonismo do povo ................................................ 197 O super-homem e a nova moral ........................................................................... 198 Nietzsche e a educao .......................................................................................... 199 Nietzsche est vivo ................................................................................................. 201

Immanuel Kant e o idealismo alemo .................................129

A dialtica idealista e materialista ....................................... 147

Schopenhauer: o mundo como representao ................. 167

O positivismo e o desenvolvimento da cincia .................. 179

Nietzsche educador............................................................. 191

A Escola de Frankfurt........................................................... 209A herdeira do facho ................................................................................................ 209 Uma escola crtica ................................................................................................... 210 Os momentos da teoria crtica ............................................................................... 212 Teoria crtica versus teoria tradicional ................................................................... 213 Razo instrumental e indstria cultural ................................................................. 214 Principais expoentes............................................................................................... 216 Luzes, razo e educao ........................................................................................ 222 Era dos extremos: as duas faces da moeda .......................................................... 231 Pragmatismo: origens e paternidade ..................................................................... 232 Existencialismo:"uma mstica do inferno".............................................................. 237 Filosofia para qu? .................................................................................................. 259 Crise e filosofia ....................................................................................................... 259 Filosofia e educao: isso d samba?..................................................................... 262 Filosofar ou filosofar: eis a questo ....................................................................... 264

Pragmatismo e existencialismo .......................................... 231

Filosofia e educao............................................................. 259

tica e educao................................................................... 269A refundao da tica ............................................................................................. 269 tica e moral ........................................................................................................... 270 A tica atravs dos tempos .................................................................................... 271 A tica na educao ................................................................................................ 275 Reconstruindo a tica na escola: tarefas................................................................ 276 No princpio ............................................................................................................ 283 A educao como formao................................................................................... 284 A formao como humanizao ............................................................................ 286 A escola como espao privilegiado da formao .................................................. 288 Filosofia para crianas e filosofia com crianas .................................................... 295 Filosofia e autonomia ............................................................................................. 296 Uma sociedade real ................................................................................................ 298 A diferena .............................................................................................................. 300

Filosofia e formao humana na escola ............................. 283

O processo do filosofar na Educao Infantil ..................... 295

Gabarito............................................................ 305 Referncias

............................................................................329 Anotaes

.............................................................................................. 335

Apresentao''Tudo o que slido se desmancha no ar" escreveu Karl Marx no Manifesto Comunista, referindo-se vertiginosa velocidade das mudanas na sociedade de sua poca. Hoje, mais de 150 anos depois, podemos afirmar que essa constatao continua mais do que nunca atual. Vivemos, com efeito, sob o impacto de mudanas cada vez mais velozes, em um tempo em que valores e certezas outrora considerados slidos liquefazem-se antes mesmo que outros lhes tenham substitudo. Nesse sentido, a educao uma caixa de ressonncia dessas vertiginosas transformaes. Ao mesmo tempo em que as instituies de ensino so o baluarte de algumas das mais antigas tradies, como a disciplina e a hierarquia, elas no deixam de ser profundamente afetadas pelas alteraes do presente mais imediato. As rebelies juvenis do ano de 1968, por exemplo, tiveram como palco privilegiado as universidades. Da a importncia e a urgncia de pensarmos constantemente a educao. E para faz-lo, nada melhor do que pedirmos auxlio filosofia. E o que faremos ao longo deste curso de Tpicos de Filosofia da Educao. Na aula inicial, intentaremos uma melhor clarificao do conceito de filosofia. Em seguida, da aula dois aula 14, faremos uma viagem pela histria da filosofia ocidental, desde os seus antecessores gregos at correntes recentssimas como o Existencialismo e a Escola de Frankfurt. Assim, nessa viagem lanaremos um olhar especial sobre alguns dos principais pensadores desse longo perodo, e esse olhar ser acompanhado de exerccios de fixao e reflexo. Ademais, cada aula ser complementada com um ou mais textos extrados preferencialmente dos prprios filsofos - isso porque acreditamos que conhecer a histria da filosofia , sobretudo, freqentar a reflexo dos pensadores que fizeram essa histria. Mas, em todo caso, ler textos de filosofia ainda no produzir filosofia e, por isso, ao fim de cada uma destas aulas, os alunos sero estimulados a ousarem pensar e refletir, luz tanto dos filsofos estudados quanto de problemas extrados da contemporaneidade. As aulas 15 a 18, por seu lado, abordam sob vrios aspectos as relaes

entre filosofia e educao. Aqui so atacadas algumas questes candentes dessa problemtica. J que a educao nunca ocorre sem um substrato filosfico, ainda que latente ou oculto, importante trazer tona esse dilogo incontornvel. da mtua fecundao entre essas duas disciplinas, muito prximas uma da outra, que poder surgir uma compreenso e uma prtica de ensino e aprendizagem capazes no apenas de interpretar as velozes mudanas de nosso tempo como tambm de conduzi-las para a construo de uma sociedade mais humana. Alis, o prprio Marx declarou, na 11 .a tese sobre Feuerbach, que "at agora os filsofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transform-lo". Acrescentamos apenas que essa misso tambm - e sobretudo - dos educadores. Dessa maneira, ao fim desta apresentao, que no pretendemos longa, s nos resta desejar bons estudos e que essa viagem pelos horizontes imbricados da filosofia e da educao possa produzir muitos frutos tanto na teoria quanto na prtica de nossa ao pedaggica. Otto Leopoldo Winck

Convite filosofiaMaurice Merleau-Ponty Immanuel Kant

A verdadeira filosofia reaprender a ver o mundo. No se pode aprender a filosofia; somente se pode aprender a filosofar.

Por que filosofia?Entre as matrias escolares, a filosofia vista no raro como a mais abstrata e a mais distante dos interesses humanos mais imediatos. Depois do declnio da teologia, na Idade Moderna, coube filosofia, a antiga serva da teologia (conforme a mxima dos telogos medievais), o lugar de rainha. No entanto, ela seria tambm destronada com o advento das cincias positivas aquelas que exigem o recurso da experimentao -, de modo que hoje comum se perguntar o porqu da filosofia, pergunta que no feita quando o assunto Matemtica, Fsica ou Biologia. Mesmo disciplinas pertencentes ao arco das cincias humanas - como Pedagogia, Psicologia e Sociologia encontram justificativas mais facilmente que a Filosofia. Ora, estuda-se Pedagogia para se aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, e a Psicologia e a Sociologia so necessrias para melhor se compreender o funcionamento da mente humana e da sociedade. Mas, e a filosofia, serve para qu? Em uma cultura em que se valoriza sobremaneira o que tem finalidade prtica e utilidade imediata, o conhecimento filosfico parece fora de lugar, suprfluo e desnecessrio. Todavia, justamente a que se revela a sua imprescindibilidade. Em uma poca e uma sociedade dominadas pela tcnica, com os saberes (entre outros fatores, por causa do enorme cabedal de conhecimento e experincia acumulados) sendo extremamente especializados e portanto fragmentados,

indispensvel um olhar que oferea uma crtica e rigorosa viso de conjunto de todo esse horizonte. imperioso - sob o risco de no sabermos nos localizar e portanto ficarmos privados de ao - um saber sobre esses saberes, um olhar sobre esses olhares, uma indagao sobre essas indagaes, uma pergunta que nasce antes e no termina depois. Por que pensamos o que pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos? Nossa reflexo tem por meta a educao e, portanto, vamos direcionar para ela nossos questionamentos. Por que tenho essas ideias acerca do processo educacional? Ser que no h outra maneira de se compreender esse processo? Por que falo dessa maneira sobre ou com nossos educandos? Por que me comporto dessa maneira em relao a eles? A quem interessa esse mtodo educacional? De que ponto de vista e de que lugar social ele foi produzido? Isso filosofia. E, aplicandoa ao processo do aprendizado, filosofia da educao.

Definies

Mas, afinal, o que filosofia? Como podemos defini-la? Existem provavelmente tantas definies quantas so as escolas ou correntes da filosofia. O significado etimolgico do termo "amor sabedoria":

phylos = "amigo", "amor" sophya = "sabedoria"Porm, antes do substantivo filosofia j era usado o verbo filosofar e o nome

filsofo. Provavelmente Pitgoras (580-500 a.C.) foi o primeiro a autodenominar- se filsofo, embora se discuta se o ttulo possua ento o mesmo sentido que ganharia depois, com Plato (426-347 a.C.) e Aristteles (384-322 a.C.). Para esses dois nomes paradigmticos do pensamento ocidental, a filosofia resultante da admirao e do estranhamento diante do espetculo do mundo. Enquanto para Plato a filosofia o saber que, em face das contradies da realidade, atinge a viso do verdadeiro - isto , das ideias -, para Aristteles a sua funo a investigao das causas e princpios das coisas. Para ele, na medida do possvel, o filsofo possui, para alm da particularidade de cada objeto, a totalidade do saber. Por isso, a filosofia a cincia do ser enquanto ser e, em ltima instncia, a cincia do princpio dos princpios, da causa ltima.

Convite filosofia

Na Idade Mdia, a filosofia era uma aspirao compreenso racional dos dados da f. Na modernidade, ela foi ganhando cada vez mais autonomia. Para Francis Bacon (1561-1626), a filosofia o conhecimento das coisas no pelos seus fenmenos transitrios, mas pelos seus princpios imutveis. Para Ren Descartes (1596-1650), ela o saber que avergua os princpios de todas as cincias e, enquanto filosofia primeira (a metafsica), ocupa-se da elucidao das verdades ltimas. John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711 -1776), cada um por sua vez, consideram-na, em geral, como crtica das ideias abstratas e reflexo sobre a experincia. Por outro lado, Immanuel Kant (1724-1804), depois de traar os limites da razo, concebe a filosofia como um conhecimento racional por princpios. Na corrente conhecida como idealismo alemo, a filosofia entendida ora como o sistema do saber absoluto, deduo do mundo a partir do eu, como em Fichte (1762-1814), ora, como em Hegel (1770-1831), como a considerao pensante das coisas, identificando-se assim com o esprito absoluto, isto , o esprito plenamente consciente e conhecedor de si. Para Schopenhauer (1788-1860), ela a cincia do princpio de razo como fundamento de todos os outros saberes e como autorreflexo da vontade. No positivismo, a filosofia torna-se um compndio geral dos resultados das cincias. J para Edmund Husserl (1859-1938), ela uma cincia rigorosa que conduz fenomenologia1 como disciplina filosfica fundamental. Por outro lado, para Wittgenstein (1859-1938) e os positivistas lgicos, ela no um saber com um contedo especfico, mas um conjunto de atos; no um conhecimento e sim uma atividade. Em contrapartida, para Henri Bergson (1859-1941), a filosofia tem por objeto a substncia da intuio, e ainda que se utilize da cincia como instrumento, aproxima-se mais da arte. Como se v, as definies e compreenses do que seja filosofia tm sido to elsticas quanto contraditrias. Eis a seguir uma tentativa contempornea de definio da filosofia:

A filosofia no cincia: uma reflexo crtica sobre os procedimentos e conceitos cientficos. No religio: uma reflexo crtica sobre as origens e formas das crenas religiosas. No arte: uma interpretao crtica dos contedos, das formas, das significaes das obras de arte e do trabalho artstico. No Sociologia nem Psicologia, mas a interpretao e avaliao crtica dos conceitos e mtodos da Sociologia e da Psicologia. No poltica, mas a interpretao, compreenso e reflexo sobre a origem, a natureza e as formas do poder. No Histria, mas interpretao do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreenso do que seja o prprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ao humana, conhecimento da transformao temporal dos princpios do saber e do agir, conhecimento das mudanas das formas do real ou dos seres; a filosofia sabe que est na Histria e que tem uma histria. (CHAU, 1994, p. 17)

Todavia, o importante em todas essas discusses que, medida que crescia a conscincia do problema, erigia-se pouco a pouco uma verdadeira "filosofia da filosofia", que tem a sua justificao no fato de a filosofia no ser nunca, por** Fenomenologia o estudo dos fenmenos, ou melhor, o estudo de como o indivduo percebe os fenmenos, isto , tudo aquilo que apreendido pelos sentidos ou pela conscincia.

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Convite filosofia

princpio, uma totalidade acabada, mas sempre uma totalidade possvel.

Diviso de tarefas

No entanto, desde cedo essa totalidade precisou de uma repartio de tarefas para poder abarcar os mais variados ngulos de seu mltiplo objeto. Ainda que a diviso da filosofia em diferentes disciplinas no seja comum a todos os sistemas, como ocorre em Plato ou Santo Agostinho, ela visvel em muitos outros sistemas filosficos. Foi em Aristteles que apareceram pela primeira vez as divises que seriam to influentes no curso da filosofia ocidental. a partir de seu sistema filosfico - espcie de enciclopdia do saber de seu tempo - que se constituram como disciplinas a lgica, a tica, a esttica (potica), a Psicologia (doutrina da alma), a filosofia poltica e a filosofia da natureza, todas elas dominadas pela filosofia primeira (metafsica). Ao longo do tempo, a elas viriam se acrescentar, dominando sobretudo o ensino da filosofia at o sculo XIX, a gnoseologia, a epistemologia, a ontologia, a sociologia, alm de um conjunto de matrias como filosofia da religio, filosofia do Estado, filosofia do Direito, filosofia da histria, filosofia da linguagem etc., bem como a histria da filosofia. Algumas delas se tornariam autnomas, como a Psicologia e a Sociologia. Por outro lado, h aqueles que julgam, por diversos motivos, que se deve excluir do corpus filosfico disciplinas como a lgica e a metafsica. possvel estudar a filosofia de uma maneira sincrnica, isto , abordando-a por meio de todas essas disciplinas, sem uma preocupao especfica com suas evolues temporais e os problemas decorrentes de influncias, filiaes, ramificaes e desdobramentos. Tambm possvel estud-la de um ponto de vista diacrnico, a partir de uma visada histrica, verificando no tempo o surgimento de suas principais correntes e o desenvolvimento de suas disciplinas. Pode-se tambm usar uma abordagem que se sirva de ambas as possibilidades. Por exemplo, pode-se ao mesmo tempo estudar tanto a tica e suas exigncias atuais (abordagem sincrnica) quanto a sua evoluo na histria (abordagem diacrnica). Em nosso trabalho, privilegiaremos um enfoque diacrnico, lanando um olhar sobre alguns dos principais filsofos e escolas filosficas da histria, mas sem desprezar, em alguns momentos, uma ptica sincrnica.

A atitude filosfica e o senso comum

Em que consiste uma atitude filosfica? Quando, de fato, estamos envolvidos no processo filosfico? O que h de fundamental na atitude filosfica a sua capacidade de indagar. Perguntar: O que a coisa ? Como a coisa ?

Tpicos da Filosofia da Educao

Porque a coisa assim? Essas questes fazem parte da atitude de algum que se coloca em uma postura filosfica frente ao mundo. O filsofo aquele que no aceita como dadas as respostas s questes com que ele se depara no mundo. De fato, a filosofia um conhecimento instituinte na medida em que questiona o saber institudo, que o saber j posto, j estabelecido, que goza de um certo consenso. De certa forma, tudo aquilo que se tem por verdadeiro, por natural em um determinado momento, em uma determinada sociedade. Resumindo, saber institudo o senso comum. E, nesse processo de indagao acerca desse saber institucionalizado, o ser humano vai dando novos significados ao mundo e sua prpria existncia. Quando nos referimos ao conceito de senso comum, ns o relacionamos ao conhecimento fragmentado da realidade. Plato definia esse tipo de conhecimento como doxa ("opinio"). Em outras palavras, emitimos parecer sobre tudo o que nos cerca e, no entanto, nessas opinies nos falta uma viso da totalidade. No conseguimos perceber que tudo se encontra inter-relacionado. Ou seja, para que possamos ter uma viso da totalidade de um fenmeno, torna-se necessrio apreend-lo na sua relao com os demais fenmenos. Embora Plato tenha estabelecido vrios nveis de compreenso da realidade, os dois principais so a doxa e a episteme. Um indivduo que vive no mbito da doxa algum que localiza sua existncia apenas no senso comum. Por outro lado, pensar os problemas a partir da episteme ("cincia") pensmos luz da filosofia. Essa expresso designa a capacidade de olharmos para os fenmenos de maneira sistematizada. Uma reflexo somente sistemtica se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importncia desses conceitos dentro do processo do filosofar, valemo-nos de um comentrio de Maria Lcia de Arruda Aranha. Nesse trecho, a filosofia da vida pode ser tomada como sinnimo de doxa, opinio, senso comum:

A filosofia radical porque vai at as razes da questo. A palavra latina radix, radieis significa literalmente "raiz" e, no sentido derivado, "fundamento" "base". Portanto, a filosofia radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir. A filosofia rigorosa porque, enquanto a filosofia de vida no leva suas concluses at as ltimas conseqncias, o filsofo especialista dispe de um mtodo claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerncia e o exerccio da crtica. Para justificar suas afirmaes com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambigidade tpica das expresses cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filsofo inventa conceitos, cria expresses novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexo de conjunto porque globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as cincias examinam "recortes" da realidade, a filosofia, alm de poder examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), tambm visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107)

Outro aspecto a se salientar que o contedo da reflexo filosfica, o tecido do seu pensar, a trama dos acontecimentos do cotidiano. por isso que nesse 10

Convite filosofia

processo de indagao esto presentes tanto os temas aparentemente mais distantes de nossa experincia imediata quanto os problemas com que nos deparamos todos os dias em nossa vida. Em suma, na atitude filosfica est compreendido o pressuposto de que no podemos aceitar como bvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situaes, os valores em geral, os comportamentos de nossa existncia cotidiana; jamais devemos aceit-los sem antes hav-los submetido a uma crtica radical. por essa razo que se justifica mais uma vez a importncia da filosofia em nosso trabalho como educadores: ela impede a estagnao e ressignifica a experincia. Se educar no se reduz apenas transmisso de conhecimentos, mas tambm uma reflexo crtica sobre o que conhecimento e sobre o que educao, a filosofia no ser apenas mais um contedo do processo educacional, mas o seu prprio alvo.

Nem dogmatismo nem ceticismoNovamente torna-se relevante um olhar sobre a etimologia das palavras.

Skeptiks significa "aquele que observa", "que considera". Desse modo, ctico aquele que observa e considera, tanto que conclui pela impossibilidade mesma do conhecimento. Por outro lado, dogmatiks denota "aquele que se funda em princpios". Assim, dogmtico todo aquele que se apega aprioristicamente aos princpios de uma doutrina.

Convite filosofia

Dogma, por sua vez, pode ser compreendido como um princpio fundamental e indiscutvel de uma determinada doutrina ou teoria, no necessariamente religiosa. Toda vez que verdades irrefutveis so aventadas, sem que elas possam ser demonstradas racionalmente, na verdade so dogmas que esto sendo aludidos. As tradies religiosas no tm necessariamente problemas com dogmas, pois toda f est fundada, em ltima instncia, em uma origem suprarracional. Todavia, sempre que na cincia se acena para verdades indemonstrveis, muitas vezes tomadas de emprstimo do senso comum ou da religio, se est resvalando da episteme para a doxa. No fim das contas, tanto o ctico quanto o dogmtico acabam produzindo uma viso imobilista do mundo. O primeiro porque acha impossvel chegar-se a algum conhecimento real das coisas. O segundo, porque antes de se debruar sobre a realidade, j traz, de antemo, as suas "verdades". A filosofia, ao contrrio, move-se entre o ceticismo e o dogmatismo - na verdade, mais prxima do primeiro. Enquanto o ctico declara que impossvel saber, o dogmtico diz que tem certeza que sabe. O filsofo, por seu turno, afirma que no sabe, mas quer saber - tendo conscincia, entretanto, que todo saber parcial e provisrio. Com efeito, "a filosofia a procura da verdade, no a sua posse" (ARANHA,1988, p. 51).

Texto complementarCincia e filosofia(DURANT, 2000, p. 26-27)

Cincia descrio analtica; filosofia interpretao sinttica. A cincia quer decompor o todo em partes, o organismo em rgos, o obscuro em conhecido. Ela no procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu significado total e final; contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operao atuais, reduz resolutamente o seu foco, concen- trando-o na natureza e no processo das coisas como so. O cientista to imparcial quanto a natureza no poema deTurguniev: est to interessado na perna de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gnio. Mas o filsofo no se contenta em descrever o fato; quer averiguar a relao do fato com a experincia em geral e, com isso, chegar ao seu significado e ao seu valor; ele combina coisas numa sntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse grande relgio que o universo e que o cientista perquiridor desmontou analiticamente. A cincia nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas s a sabedoria - o desejo coordenado luz de toda experincia - pode nos dizer quando curar e quando matar. Observar processos e construir meios a cincia; criticar e coordenar fins filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumentos se multiplicaram alm de nossa interpretao e da nossa sntese de ideais e fins, nossa vida est cheia de12 I

Convite filosofia

som e fria, no significando coisa alguma. Porque um fato nada , exceto em relao ao desejo; no completo, exceto em relao a um propsito e a um todo. Cincia sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliao no podem nos salvar da devastao e do desespero. A cincia nos d o conhecimento, mas s a filosofia nos d a sabedoria.

Atividades1. Com base nos trechos de Marilena Chaue Will Durant que constam da aula, estabelea os pontos de convergncia e divergncia entre a cincia e a filosofia. Segundo as definies de filosofia que os filsofos foram estabelecendo ao longo dos tempos, relacione a coluna da esquerda com a da direita. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. Bergson Locke, Berkeley e Hume Fichte Wittgenstein Kant Husserl Schopenhauer

Cincia rigorosa que conduz fenomenologia. Tem por objeto a substncia da intuio. um conjunto de atos desprovido de contedo especfico. Crtica das ideias abstratas e reflexo da experincia. Cincia do princpio da razo como fundamento dos saberes. Sistema do saber absoluto. Conhecimento racional por princpios. 3. A respeito das proposies de Plato sobre a doxa ("opinio","senso comum") e episteme ("cincia"), assinale, quanto aos enunciados seguintes, F (falso) ou V (verdadeiro). ( ) Pensar os problemas a partir da doxa pens-los luz da filosofia. ( ) O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade. ( ) Ao saber institudo (episteme) contrape-se o saber instituinte (doxa). ( ) Doxa uma reflexo rigorosa, radical e de conjunto. ( ) Episteme diz respeito capacidade de contemplarmos os fenmenos de maneira sistematizada.

Para produzir filosofia

Diante do aumento dos ndices de violncia em nosso pas, no poucos tm defendido o incremento de medidas coercitivas como ampliao das penas, diminuio da maioridade penal e sobretudo recrudescimento da represso do

Tpicos da Filosofia da Educao

Estado. H ainda quem, em conversas privadas, defenda o uso da tortura na investigao e a eliminao fsica dos criminosos. Dizem que "direitos humanos so para humanos direitos". Segundo o que foi explanado na aula, essa linha de pensamento relaciona-se com a doxa ou a episteme? O que seria uma reflexo filosfica - rigorosa, radical e de conjunto - a respeito da violncia social em nosso pas?

Scrates e a filosofia moral ocidentalO mito o nada que tudo.

Fernando Pessoa Diferentemente dos sofistas, Scrates no se apresenta como professor. Pergunta, no responde. Indaga, no ensina. Marilena Chau

0 gnio grego, o mito e as origens da filosofiaTanto o termo quanto o conceito de filosofia tem a sua origem na Grcia antiga, mas isso no significa que outros povos no tenham desenvolvido formas particulares de pensamento crtico. De maneira especial, encontramos algumas dessas formas na ndia, na China e na Prsia. Alm disso, os gregos usufruram conhecimentos conquistados por povos mais antigos, como a astronomia dos caldeus e dos babilnicos e a agrimensura dos egpcios. No entanto, a forma de pensamento sistemtico, racional e desvinculado da religio que ficou conhecida como filosofia ns devemos s peculiaridades do gnio grego. Como era esse gnio? Podemos resumir as suas caractersticas em alguns traos bsicos.

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Em primeiro lugar, o racionalismo, isto , a conscincia do valor mximo do conhecimento. Mas esse conhecimento no abstrato e sim proveniente da experincia: um conhecimento sensvel. Todavia, esse conhecimento sensvel no se fecha sobre si mesmo, mas transcende o real em direo ao absoluto. Sendo otimista, como conseqncia de seu racionalismo, o grego tender tambm ao pessimismo quando pressentir toda a irracionalidade do real. Contudo, todos esses traos se coadunam em um equilbrio harmnico, como aprazia grandemente ao senso de propores do esprito helnico2. E tambm outras causas colaboraram para o surgimento do pensamento filosfico:

Nos sculos VII e VI a.C., a Grcia sofreu uma transformao socioeconmica considervel. De pas predominantemente agrcola que era, passou a desenvolver de forma sempre crescente a indstria artesanal e o comrcio. Assim, tornou-se necessrio fundar centros de distribuio comercial, que surgiram inicialmente nas colnias jnicas, particularmente em Mileto, e depois tambm em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando um forte crescimento demogrfico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20)

Foi nas cidades ou plis - que na Grcia eram sobretudo cidades-Estado - que se desenvolveu outra importante criao grega: a poltica. O desenvolvimento urbano com as suas instituies, e o lugar privilegiado da pennsula grega entreposto estratgico entre Ocidente e Oriente, arena de encontro de muitas etnias e de diversas culturas, cujo contato e rivalidade ensejaram comparaes, anlises e reflexes - resultaram em um ambiente propcio para o surgimento da filosofia. Entre os gregos, a arte e a filosofia so devidas sobretudo aos jnios3, que souberam exprimir em alto grau o gnio helnico. Mas como se deu, a partir desse gnio, e de maneira especial entre os jnios, a gnese da filosofia grega, matriz de todo o pensamento ocidental? Primeiramente, os gregos, como todos os povos, explicavam os fenmenos do universo e as suas origens por meio do mito. A palavra mito vem do grego myths e deriva de dois verbos, tendo os sentidos de "contar, narrar, falar alguma coisa a algum" e"anunciar, nomear, designar". Para os gregos, o mito era um discurso proferido para ouvintes que recebiam o relato como verdadeiro porque este est fundado na autoridade daquele que narra. Refere-se quase sempre a algo fabuloso que se supe acontecido em um passado remoto, imemorial, impreciso. Os mitos podem reportar-se a grandes feitos heroicos, considerados frequentemente como o fundamento e o incio de uma determinada comunidade ou do gnero humano** Helnico: que se refere Grcia antiga, chamada Hlade, ou aos gregos antigos. 3 Os jnios eram habitantes da Jnia, conjunto de colnias da Grcia antiga nas ilhas e no litoral asitico do Mar Egeu.

Scrates e a filosofia moral ocidental

como um todo. Podem tambm ter como objeto fenmenos naturais e, nesse caso, costumam ser apresentados alegoricamente. Alm disso, muitas vezes os mitos contm a personificao de coisas ou de acontecimentos. Para os filsofos da Antiguidade, nem sempre o mito foi entendido como oposto razo: alguns o admitiam como invlucro da verdade. Essa concepo foi adotada, por exemplo, por Plato, que considerava as narraes mitolgicas como um modo de expresso de verdades que escapam ao raciocnio. Em todo caso, a explicao racional, objeto da filosofia, tem a sua origem a partir do mito, desenvolvendo-se a partir dele, at sua plena autonomia. Se a explicao mtica dos fenmenos do universo encontrada em todos os povos e em todas as pocas, devemos aos gregos os primeiros e decisivos passos da explicao racional do mundo. So muitas as maneiras que os historiadores subdividiram a histria da filosofia clssica, que compreende um perodo de mais de um milnio. De um modo geral, podemos sintetizar essa poca em quatro perodos: Perodo naturalista - tambm chamado cosmolgico4 ou pr-socrtico do final do sculo VII ao final do sculo V a.C., quando a filosofia ocupa-se fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformaes na natureza. Perodo humanista - tambm denominado antropolgico5 ou socrtico, do final do sculo V e todo o sculo IV a.C., quando o objeto principal da filosofia torna-se as questes humanas, como a tica e a poltica. Perodo sistemtico - do final do sculo IV ao final do sculo III a.C., quando a filosofia tem por tarefa reunir e sistematizar todo o conhecimento anterior sobre o mundo e o ser humano. Perodo helenstico - tambm conhecido como greco-romano ou religioso, do final do sculo III a.C. at o sculo VI d.C. Nesse longo perodo, que j alcana Roma e o pensamento cristo, a filosofia interessa-se principalmente pelas questes da tica, do conhecimento humano e das relaes entre a humanidade e Deus. O primeiro perodo da filosofia grega toma o nome de naturalista ou cosmo-

Os filsofos naturalistas e os sofistas

lgico porque a especulao dos filsofos voltou-se para a natureza, o mundo exterior. Esse perodo surgiu e se desenvolveu fora da Grcia propriamente dita, nas florescentes colnias da sia Menor6 e do sul da Itlia, tendo o seu incio nos fins do sculo VII e o seu trmino dois sculos depois.^ Em grego, cosmos significa "mundo"e por isso esse perodo recebeu o nome de cosmolgico. 5 Em grego, ntropos significa "homem" e por isso esse perodo recebeu o nome de antropolgico. 6 Na Antiguidade, era conhecida como sia Menor a extremidade ocidental da sia, em linhas gerais correspondendo ao territrio do que conhecemos hoje como Turquia.

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Tpicos da Filosofia da Educao

A escola jnicaA primeira expresso dessa fase, inaugurando por assim dizer o pensamento ocidental, a chamada escola jnica, que floresceu em Mileto, na sia Menor, ao longo do sculo VI. Os jnios procuravam a substncia ltima de todas as coisas em uma nica matria, animada por uma energia interior (da hilozosmo, "matria animada" ser o nome dessa doutrina). Seu primeiro representante Tales de Mileto (624-546 a.C.), para quem a gua era a substncia primordial de todas as coisas. Para Anaximandro (610-547 a.C.), tambm de Mileto, o elemento primordial seria o

apeiron (o indeterminado, sem fim e em constante movimento). J para Anaxmenes (585-528 a.C.), tambm da mesma cidade, este princpio era o ar. O expoente mais clebre dessa escola Herclito (aproximadamente 540-470 a.C.), de feso, na Jnia. Para ele, o elemento primordial o movimento, o eterno vir-a-ser: tudo est sujeito a um fluxo perptuo, representado pelo fogo. O vir-a- ser luta, conflito de opostos, anttese de vida e morte. Esse movimento s ser reconduzido estabilidade pela sabedoria universal, que determina o acordo entre as oposies. Por esse motivo Herclito considerado o pai da dialtica, a qual considera que a razo das coisas est na constante luta dos contrrios. de Herclito a ideia de que o mesmo homem no se banha duas vezes no mesmo rio, pois ao tentar um segundo banho, o rio j ter mudado, j ser outro por conta do contnuo fluxo das guas. E como as coisas mudam constantemente, aquele homem j no ser o mesmo homem que da primeira vez.

Pitgoras e a escola itlica

Pitgoras (571-497 a.C.), fundador da escola pitagrica ou itlica, nasceu em Samos, uma ilha do Mar Egeu, mas pontificou nas colnias do sul da Itlia. Para ele, o princpio primordial da realidade representado pelo nmero, ou seja, pelas relaes matemticas. Toda a multiplicidade do mundo e o vir-a-ser explicado pelo pitagorismo por meio da luta dos opostos, da qual os nmeros pares e os mpares so paradigmticos. Esse conflito reconduzido ao equilbrio pela harmonia matemtica que rege o universo todo, tanto material quanto moral. Outros representantes dessa escola so Filolau de Crtona e rquitas deTarento.

Xenfanes e a escola eleata

Essa escola empresta o seu nome da cidade de Eleia, no sul da Itlia, e seu fundador Xenfanes (cerca de 570-460 a.C.), nascido em Clofon, na sia Menor. Mas o seu maior representante Parmnides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.), para quem o elemento original das coisas o ser, uno, idntico, imutvel e eterno, representado como um esfera suspensa no vcuo, sendo que o mundo sensvel no passa de iluso. Zeno (cerca de 495-430 a.C.), tambm de Eleia, discpulo de Parmnides, famoso pelas controvrsias nas quais tentava demonstrar a inexistncia do 28

Scrates e a filosofia moral ocidental

movimento.

A escola pluralistaEmpdocles (cerca de 492-493 a.C.), de Agrigento, Siclia, toma dos eleatas a doutrina da eternidade e da imutabilidade do ser, mas o divide em quatro elementos fundamentais - a terra, a gua, o ar e o fogo -, explicando a multiplicidade e a mudana dos fenmenos mediante as vrias recombinaes desses elementos. Como Herclito, acreditava na realidade do movimento. Pensava, entretanto, que o amor e o dio so as duas foras primordiais que presidem a combinao dos quatros elementos. J para Anaxgoras (cerca de 500-428 a.C.), a realidade constituda de uma infinidade de minsculas partculas, eternas e imutveis, de natureza diversa, para explicar a variedade das coisas. O nous a inteligncia imanente que controla e seleciona essas partculas, tirando-as do caos e ordenando-as conforme sua similaridade. Todavia, Demcrito (460-370 a.C.), natural de Abdera, naTrcia7, o maior representante dessa corrente, tambm chamada atomstica. Para ele, o ser de Parmnides dividido em uma infinidade de corpsculos simples e homogneos, denominados tomos, os quais, suspensos no vazio, movem-se devido diversidade de tamanho e conseqente diversidade de gravidade de cada uma dessas partculas. Os tomos, o vazio e o movimento constituiriam a razo de tudo.

Os sofistas e a arte da persuaso

De 500 a 448 a.C., houve as chamadas Guerras Mdicas, relatadas em Histrias, de Herdoto. As cidades jnicas, pertencentes Grcia e situadas na sia Menor, revoltaram-se contra o Imprio Persa e foram apoiadas por algumas cidades do continente, por fim sendo lideradas por Atenas. Depois das vitrias dos gregos sobre os persas, assistimos ao triunfo de Atenas, que torna-se o eixo social, poltico e cultural do universo grego. o chamado sculo de Pricles8, quando a democracia encontra-se em seu auge. A democracia ateniense, que se tornaria fundamental para o desenvolvimento da filosofia, tem uma caracterstica essencial que a distingue da democracia moderna: uma democracia direta, sem a mediao de representantes eleitos. Ora, para lograr que a sua opinio fosse acatada nas assembleias, o cidado precisava ser dotado de talentos oratrios. Aqui entram os sofistas, mestres da eloqncia, encarregados de ensinar aos jovens das famlias das classes mais abastadas a arte da persuaso. Professores encarregados de transmitir os princpios da retrica e da oratria, os sofistas alegavam que os ensinamentos dos filsofos cosmologistas estavam eivados de erros, alm de no terem nenhuma utilidade para a vida da plis.ATrcia uma regio do sudeste da Europa, englobando o que hoje o nordeste da Grcia, o sul da Bulgria e a parte europeia da Turquia. Pricles foi uma das principais lideranas polticas de Atenas. Sua poca, o sculo V a.C., foi um perodo de esplendor para Atenas, no qual conviveram grandes nomes como Fdias, Sfocles, Policleto, Calcrates e Scrates.7 8

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Tpicos da Filosofia da Educao

Portanto, com os sofistas h uma mudana de foco na pesquisa filosfica: a preocupao com a natureza, que esteve no centro das atenes dos pensadores anteriores, comea a refluir, dando lugar ao interesse pelo humano - da tambm o nome de antropolgica ou humanista dado a essa fase. "Com efeito, os sofistas operaram uma verdadeira revoluo espiritual, deslocando o eixo da reflexo da

physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne vida do homem como membro de uma sociedade" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 73). Protgoras (cerca de 480-410 a.C.), um dos maiores nomes da sofistica - junto com Grgias (484-375 a.C.) e Hpias (cerca de 435-343 a.C.) -, dizia que o homem a medida de todas as coisas. Em relao ao perodo anterior, isso significava uma abertura para o subjetivismo: dizer que o homem a medida de todas as coisas significa dizer "que as coisas so como lhe parecem; no, porm, como aparecem ao homem em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc ["aqui e agora"]: verdadeiro - e bem - o que aparece como tal a cada qual e a cada momento" (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 109). Da porque no raro os sofistas serem acusados de relativistas e cticos - para os relativistas, tudo pode ser verdade, enquanto para os cticos no possvel alcanar a verdade. nesse contexto que aparece Scrates, como um meteoro, dividindo a filosofia grega em antes e depois dele.

0 filho da parteira

Nascido em Atenas (470 ou 469 a.C.), filho de um escultor e de uma parteira, desde cedo Scrates se entregou reflexo e ao ensino filosfico, no se deixando levar pelos cuidados da vida domstica e da poltica. No entanto, ao contrrio dos outros filsofos, no fundou uma escola, preferindo ensinar em lugares pblicos, como nos ginsios, nas praas e nos mercados. Exerceu um enorme fascnio sobre os atenienses, especialmente os mais jovens, mas a sua ironia e a sua atitude crtica foram-lhe aos poucos granjeando inimizades entre as parcelas influentes da sociedade. Por fim, foi acusado de corromper a juventude e demonstrar impiedade diante dos deuses da cidade. Todavia, Scrates no quis se defender. Condenado pena capital, morreu aos 71 anos, em 399 a.C., ingerindo cicuta - um veneno extremamente letal, extrado da planta de mesmo nome -, depois de ter recusado os projetos de fuga propostos por alguns de seus discpulos. Sua morte foi o coroamento de uma vida dedicada ao conhecimento e virtude, j que ele se transformou no marco de algum que preferiu morrer em vez de negar suas convices. Scrates no escreveu nada: tudo que sabemos de sua pessoa nos chegou por meio de seus discpulos, como Xenofonte e Plato - e no so poucos os debates da crtica para estabelecer o que confivel nessas fontes. O certo, porm, que Scrates se beneficia da virada antropolgica efetuada pelos sofistas. Contudo, ao 30

Scrates e a filosofia moral ocidental

contrrio destes, ele no se interessa pelo ser humano emprico (o ser humano individual, como visto e apreendido pelos sentidos), mas pelo humano em geral, com propsitos morais. Como os sofistas, ele comea por criticar o senso comum, o saber institudo, a opinio, a doxa - mas no para a, o que no seria mais do que um ceticismo: ele transcende o saber imediato em busca do saber autntico, que seria racional e perene. Esse conhecimento estaria dentro de cada um. Para encontr-lo, Scrates, um filho de parteira, serve-se de uma tcnica por ele chamada de mai- utica, um mtodo que consiste em "parir", "dar luz" ideias complexas a partir de perguntas simples, articuladas a partir de um determinado assunto. Assim ele explicava o seu mtodo:

A minha arte obsttrica tem atribuies iguais s das parteiras, com a diferena de eu no partejar mulheres, porm homens, e de acompanhar as almas, no os corpos, em seu trabalho de parto. Porm, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens est na iminncia de conceber alguma quimera ou faculdade ou fruto legtimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35) O aludido preceito socrtico pretende mais do que orientar o indivduo ao simples conhecimento de si prprio. Seu alcance maior: um convite [...] ao aprofundamento da condio humana, do qual [...] nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopdico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33)

Da tambm a sua mxima: gnothiseauton, "conhece-te a ti mesmo".

Partindo desse pressuposto, Scrates constri uma tica racionalista, na qual a virtude passa a ter um papel fundamental. Mas em que consiste a virtude? Antes de mais nada, ela se identifica com o conhecimento. Os gregos chama- vam-na aret, "significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que , ou melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeioa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser"(REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele nos diz que a causa do mal a ignorncia: se conhecssemos o bem, no praticaramos o mal. Por essa razo, o conhecimento de si mesmo condio suficiente e necessria para a obteno da aret. O autodomnio e a liberdade so as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano o artfice da sua prpria felicidade ou infelicidade. Mas, afinal, o que o ser humano para Scrates? "O homem sua alma, enquanto perfeitamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E, por a/ma, Scrates entende a nossa razo e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso, a essncia do ser humano - segundo Scrates - sua psych. Nesse sentido, ele considerado o fundador da filosofia moral do Ocidente. Outra ideia relevante no pensamento socrtico a noo de humildade. Sua mxima "s sei que nada sei" ilustrativa disso. Quando era elogiado por seus discpulos, ele fazia tal afirmao. Para demonstrar que esse era um valor incorporado em sua prtica cotidiana, Scrates construa suas afirmaes a partir da relao dialgica com seus interlocutores. Alm disso, a dialtica socrtica per31

Tpicos da Filosofia da Educao

passada pela ironia. Em sua etimologia, o conceito de ironia significa "a arte de interrogar". Quando Scrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar que aquele com quem estava dialogando na verdade estava ignorando o que julgava conhecer. Por meio desse processo, desejava tornar seu interlocutor cnscio da prpria ignorncia para que ele pudesse partir em busca da verdade. Finalmente, mais que suas palavras, sua postura como filsofo mostrou-nos que a filosofia no uma forma de conhecimento hermtico, fechado, reservado somente a uma elite de iniciados: Scrates interpelava os transeuntes com quem se deparava e discutia com eles os temas do cotidiano. Refletia, por exemplo, sobre a liberdade, o amor, a amizade, a verdade - questes que nos tocam a todos. Comentando a morte de Scrates, Marilena Chau afiana que[...] o maior erro dos juizes foi no terem ouvido o mais importante ensinamento de Scrates, isto , que todos os homens so iguais porque todos so capazes de cincia, todos so dotados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos so capazes de virtude. Razo, cincia, verdade e virtude so universais e todos os homens so, por natureza, capazes delas. (CHAU, 2000, p. 155)

Mrtir da filosofia e da fidelidade aos seus princpios, Scrates permanece vivo at hoje, no s em seu exemplo, mas sobretudo como base da construo do edifcio da moral do Ocidente.

Texto complementarScrates e Polo(PLATO, 1986, p. 98-102)

SCRATES: - [...] V, pois, se ests disposto a ceder-me o turno da argumentao, respondendo s perguntas. Eu creio deveras que ns - eu, tu e toda gente julgamos pior cometer a injustia do que sofr-la, e pior do que expi-la no a expiar. POLO: - Mas, a meu ver, nem eu, nem ningum mais, o admitimos. Quem, se no tu, a cometer uma injustia, preferiria sofr-la? SCRATES: - Eu? Sim, como tu e toda gente. POLO: - Ora, ora! Nem eu, nem tu, nem ningum mais. SCRATES: - Ento, no vais responder? POLO: - Mas como no? Estou at ansioso por saber o que, afinal, vais dizer! SCRATES: - Ento, para o saberes, faze de conta que estou principiando a interrogar-te e dize-me, Polo, o que achas pior: praticar uma injustia, ou sofr-la? POLO: - Sofr-la, ora! SCRATES: - E o que mais feio? Ser autor ou ser vtima duma injustia? Responde. POLO: - Ser autor. SCRATES: - Sendo mais feio, no , ento, pior? POLO: - Absolutamente no. SCRATES: - Compreendo. No consideras a mesma coisa, parece, o belo e o bom, o mau e o feio. 32

Scrates e a filosofia moral ocidental

POLO: - No, realmente. SCRATES: - Que dizes a isto? Todas as coisas belas, como objetos, cores, formas, ressonncias, costumes, sempre sem relao alguma que lhes atri- buis a beleza? Por exemplo, comecemos pelos objetos belos; no os chama belos tendo em vista, em cada caso, os fins a que servem, ou algum prazer, caso se delicie quem os contempla? Fora desses pontos de vista, podes mencionar alguma outra razo da beleza dos objetos? POLO: - No posso. SCRATES: - No se d o mesmo com tudo mais? Formas, cores, no as declara belas em razo de certo prazer ou certa utilidade, ou por ambos os motivos? POLO: - Sim. SCRATES: - No assim tambm quanto s ressonncias e tudo que concerne msica? POLO: - Sim. SCRATES: - Outrossim, no tocante s leis e costumes, sem dvida, os que so belos no fogem a estas qualificaes de teis, agradveis, ou ambas as coisas. POLO: - Acho que no. SCRATES: - beleza de instruo sucede o mesmo, no ? POLO: - Por sem dvida! Agora, Scrates, ests acertando, quando defines o belo pelo prazer e pelo bem. SCRATES: - Portanto o feio ser aferido pelos opostos, pela dor e pelo mal. POLO: - Forosamente. SCRATES: - Quando, portanto, de duas coisas belas, uma seja mais bela, assim porsobrelevar num dos dois predicados referidos, ou em ambos, isto , ou no prazer, ou na utilidade, ou nesta e naquele. POLO: - Perfeitamente. SCRATES: - E quando de duas coisas feias uma mais feia, assim por sobrelevar ou na dor, ou no dano. Ou no forosamente assim? POLO: - , sim. SCRATES: - Adiante. Que dizamos h pouco sobre praticar e sofrer injustia? No dizias que sofr-la pior, mas pratic-la mais feio? POLO: - Dizia. SCRATES: - Ento, se pratic-la mais feio do que sofr-la, assim por ser mais doloroso e sobrelevar em dor, ou dano, ou ambas as coisas. No isso tambm foroso? POLO: - Como no? SCRATES: - Ora, examinemos em primeiro lugar se praticar uma injustia sobreleva em dor sofr-la e se padecem mais os autores do que as vtimas. POLO: - Isso, Scrates, absolutamente no. SCRATES: - Ento, no em dor que sobrelevas? POLO: - No, por certo. SCRATES: - Se na dor, no, no sobrelevaria portanto em ambos os motivos.33

Tpicos da Filosofia da Educao

POLO: - No, claro. SCRATES: - Resta, pois, a outra razo? POLO: - Sim. SCRATES: - O dano? POLO: - Naturalmente. SCRATES: - Ora, se praticar uma injustia sobreleva em dano, ser pior do que sofr-la. POLO: - Claro que sim. SCRATES: - ou no fato que anteriormente a maioria das pessoas e tu tambm concordveis em que mais feio ser o autor do que a vtima? POLO: - Sim. SCRATES: - E revelou-se agora pior. POLO: - Aparentemente. SCRATES: - Acaso, entre o mais e o menos danoso e feio, preferirias o primeiro? No hesites em responder, Polo; no te far dano algum. Ao contrrio, confia-te bravamente razo como a um mdico e responde sim ou no minha pergunta. POLO: - Bem, Scrates, eu no preferiria. SCRATES: - Algum no mundo o faria? POLO: - No creio, a pensar assim. SCRATES: - Portanto, eu dizia a verdade: nem eu, nem tu, nem qualquer outra pessoa preferiramos cometer injustia a sofr-la, por ser mais danoso.

Atividades1.

Segundo o princpio primordial que os filsofos naturalistas ou cosmolgi-

cos aventaram para a origem das coisas, relacione a coluna da esquerda com a da direita. a) Anaximandro de Mileto b) Demcrito c) Pitgoras d) Tales de Mileto e) Empdocles f) Anaxmenes de Mileto g) Herclito A gua. O apeiron (o indeterminado, sem fim e em terno movimento). O ar. Terra, gua, ar e fogo. O movimento, o vir-a-ser representado pelo fogo. O nmero. O tomo. 2. Com base no conceito de maiutica e no exemplo desse conceito apresentado no texto complementar, vamos fazer um exerccio prtico. Para tanto, vamos dividir a turma dois a dois. Em cada dupla, um faz o papel de 34

Scrates e a filosofia moral ocidental

Scrates e o outro o de interlocutor do filsofo. O primeiro, com base no contedo da aula, deve procurar extrair a verdade a partir do mtodo socrtico de pergunta e resposta. O segundo deve se deixar conduzir at que do senso comum se chegue a ideias mais pertinentes e perspicazes. Depois, os alunos devem registrar os resultados. Eis alguns exemplos de temas que podem ser abordados nesses dilogos socrticos: A educao o nico caminho para o desenvolvimento de um pas. A mulher s se realiza plenamente na maternidade. Artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua.

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Tpicos da Filosofia da Educao

3. Leia abaixo uma letra do compositor Chico Buarque.

Bom conselho

Para produzir filosofia

Oua um bom conselho Que eu lhe dou de graa Intil dormir que a dor no passa Espere sentado Ou voc se cansa Est provado, quem espera nunca alcana Venha, meu amigo Deixe esse regao Brinque com meu fogo Venha se queimar Faa como eu fao Aja duas vezes antes de pensar Corro atrs do tempo Vim no sei de onde Devagar que no se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade Agora responda: quais so os pontos de contato entre essa letra e o mtodo socrtico?

Em um pas de alfabetizao tardia e com pssimos ndices de leitura, somos levados a acreditar em qualquer opinio apresentada em letra impressa. Mas nem sempre essas opinies so o resultado de uma reflexo de ndole filosfica, isto , que vai at a raiz do problema. Muitas vezes, elas no passam do que realmente so, isto , uma opinio. A exemplo de Scrates, procure desconstruir o que h de superficial - isto , atrelado ao senso comum - em algumas das

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Scrates e a filosofia moral ocidental

ideias veiculadas nos jornais da imprensa diria.

Plato e o nascimento da razo ocidental Plato: atleta e poetaAo contrrio de Scrates, que era filho de membros das classes populares, Plato era de ascendncia aristocrtica. Seu pai orgulhava-se de ter o rei Codros entre os seus antepassados e sua me de ter parentesco com Slon1. Nascido em Atenas (428 ou 427 a.C.), seu nome original era Aris- tcles.

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Tpicos da Filosofia da Educao

Plato apelido, derivado, segundo alguns, de seu porte atltico (ombros largos) ou, segundo outros, da largueza de seu estilo. Com sua origem, era natural que desde cedo Plato visse na carreira poltica o seu destino. Aos 20 anos de idade travou contato com Scrates - 40 anos mais velho - e por oito anos usufruiu de seus ensinamentos e de sua amizade. A morte trgica do mestre imprimiu uma marca em todas as fases de seu pensamento. Ele passou a desprezar a democracia e as massas, ideando um modo de governo dirigido pelos mais sbios e capazes. A partir disso, fez vrias viagens com o intuito de instruir-se. Conheceu o Egito, o sul da Itlia, (onde estabeleceu relaes com os pitagrigos), a Siclia (onde no teve sucesso no intento de influenciar positivamente o rei, tendo sido vendido como escravo, sendo resgatado mais tarde). De volta a Atenas, fundou nos jardins do parque dedicado ao heri Academos a sua clebre escola, destinada a desenvolver as ideias de Scrates e a rebater as dos sofistas. A Academia, como ficou conhecida, adquiriu grande prestgio, a ela acorrendo homens de todos os cantos e ali sendo desenvolvidos os ideais de uma educao para a autonomia do indivduo. O ideal da educao autnoma significa:

Slon (640-560 a.C.) foi um estadista e poeta ateniense. Autor de um cdigo de leis que introduziu grandes reformas nos primeiros 25 anos do sculo VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram significativamente o poder da aristocracia, que se baseava nos privilgios de nascimento. Slon substituiu as leis draconianas por um estatuto menos severo, que se tornaria a base para as leis clssicas surgidas posteriormente.

em primeiro lugar, ensinar o livre esprito de pesquisa, o compromisso do pensamento apenas com a verdade; em segundo lugar, estimular a autodeterminao tica e poltica. Em vez de transmitir doutrinas, a Academia ensina a pensar ou, como lemos no Mnon, que um dos textos de Plato, "o dever de procurar o que no sabemos". Em vez de transmitir valores ticos e polticos, a Academia ensina a crilos, isto , a prop-los a partir da reflexo e da teoria. Ali estudaram, entre outros, o matemtico Eudxio e o jovem Aristteles. Nela prevaleceu o esprito socrtico: a discusso oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante, sendo menos importantes as exposies escritas (CHAU, 2000, p. 175). Finalmente, em 347 a.C., aos 80 anos de idade, reconhecido e admirado, morre Plato, tendo sido velado por uma verdadeira multido. De sua grandeza nos d testemunho um dos maiores pensadores do sculo XX:"Poucos filsofos, se que algum, alcanaram a sua amplitude e profundidade e nenhum o superou. Qualquer pessoa que se dedique investigao filosfica ser insensata se ignor-lo" (RUSSELL, 2002, p. 107). Praticamente toda a sua produo chegou at ns, compreendendo 36 dilogos, 13 epstolas e uma coleo de definies, esta provavelmente apcrifa isto , pode ser que tais definies sejam erroneamente atribudas a Plato, no h certeza se a sua autoria realmente do mestre. Seu interesse abarca as mais

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Plato e o nascimento da razo ocidental

diversas reas do conhecimento: cincias, matemtica, retrica, arte, poltica etc. Suas obras mais importantes e conhecidas so: Apologia de Scrates, em que resgata os pensamentos do mestre; O Banquete, em que versa sobre o amor de uma forma dialtica; A Repblica, em que analisa desde a poltica e a tica at questes metafsicas, como a imortalidade da alma. No entanto, um problema sobre a real compreenso do pensamento platnico diz respeito s "doutrinas no escritas". Antigas fontes referem que, na Academia, Plato ministrou cursos cujo teor ele no quis deixar por escrito. Para ele, "O conhecimento dessas coisas no de forma alguma transmissvel como os

outros conhecimentos" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20). Para muitos estudiosos, esse aspecto decisivo para se ter uma viso de conjunto da filosofia platnica, e essa tradio oral pode ser de certa forma reconstituda pelos escritos dos discpulos de Plato. Alm disso, bom ter presente que Plato, a despeito de ter expulsado de sua repblica os poetas, um filsofo de inspirao potica. Por trs do sbio, visvel, em sua produo, a veia do artista, manifestada no recurso s metforas, s fbulas e aos mitos. No tocante ainda sua obra, deve-se destacar a influncia de Scrates. verdade que em seus escritos percebem-se elementos de diversos filsofos pr- socrticos, como Parmnides e Herclito, por exemplo. Contudo, nenhuma influncia foi to grande e decisiva quanto a de Scrates, a ponto de em seus livros, sobretudo nos dilogos socrticos, ser difcil distinguir aquilo que do mestre e aquilo que efetivamente de Plato. Assim, por meio dos textos de Plato que conhecemos as ideias de Scrates, e por meio de Scrates, tornado seu porta-voz, que conhecemos as ideias de seu discpulo mais clebre.

As vigas do pensamento platnico

Assim como em Scrates, para Plato a filosofia tem um objetivo prtico, moral: a incumbncia de resolver os grandes problemas da vida. Todavia, ao contrrio de seu mestre, que restringia o mbito da filosofia ao ser humano, Plato a estende a toda a realidade. Nas pegadas de Scrates, Plato tambm distingue um conhecimento sensvel (a opinio, a doxa) e um conhecimento intelectual (a cincia, a episteme). Mas enquanto Scrates fazia derivar o segundo do primeiro, para Plato o universal e imutvel conhecimento intelectual no pode se originar do conhecimento sensvel, particular e mutvel. Nas palavras de Joo da Penha (1994, p. 36):

As ideias esto separadas das coisas, o mundo inteligvel est fora e acima do mundo sensvel. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma iluso dos sentidos. A nica realidade objetiva, perfeita, so as ideias, no passando aquilo que vemos de plidas representaes daquelas. As coisas so cpias imperfeitas e fugazes de arqutipos de modelos ideais. no mundo dos inteligveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essncia de tudo o que existe e de suas perfeies.

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Tpicos da Filosofia da Educao

Jostein Gaarder (1999, p. 100) apresenta um exemplo significativo dessa teoria de Plato:

Por que todos os cavalos so iguais, Sofia? Talvez voc ache que eles no so iguais. Mas existe algo que comum a todos os cavalos; algo que garante que ns jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o "exemplar" isolado do cavalo, este sim "flui", "passa". Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira "forma do cavalo" eterna e imutvel.

Desse modo, os conceitos ou ideias que temos em nossa mente so eternos e imutveis, e por isso, necessrios9. So os arqutipos, isto , formas ou modelos espirituais a partir dos quais todos os fenmenos so formados. A realidade, por sua vez, mutvel e imperfeita, ou seja, contingente10. O conhecimento por meio dos sentidos e o conhecimento por meio da razo trazem resultados completamente diferentes. Os dados dos sentidos apenas nos permitem apreender simulacros (cpias imperfeitas) das ideias, levando-nos a formular opinies no raro contraditrias e superficiais sobre a realidade. No entanto, a experincia sensvel que nos dada pelos sentidos fundamental para desencadear o processo de conhecimento. O conhecimento ocorre quando nos recordamos imperfeitamente dos arqutipos que a alma teria contemplado no mundo das ideias antes do nascimento corporal. A esse processo d-se o nome de anamnesis (reminiscncia). Trata-se, todavia, do nvel mais baixo do conhecimento. O mundo das ideias, por sua vez, s pode ser intudo pela razo, o que implica uma ruptura radical com os dados dos sentidos a que estamos acostumados. O conhecimento, para Plato, passa ainda por trs nveis fundamentais: o conhecimento sensvel, que efetuado pelos sentidos no mundo dos fenmenos; o conhecimento discursivo, que implica o conhecimento da matemtica, a nica cincia que possui uma natureza no corprea; o conhecimento intelectivo, ao qual s a filosofia capaz de levar, por meio de um corte completo com a experincia sensorial. Por meio desses trs nveis, a mente se eleva do mltiplo e sensvel at o uno, universal e inteligvel. Para Plato, ainda, o divino representado pelo mundo das ideias, no pice do qual se encontra a ideia do bem, seguida de trs ideias que a caracterizam: a beleza; a proporo;

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Necessrio, em filosofia, tudo aquilo que no pode no ser; que no h outra forma de ser. algo inelutvel. Contingente, em filosofia, o contrrio de necessrio, ou seja, aquilo que existe mas poderia no existir.

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a verdade. Como a multiplicidade dos fenmenos unificada pelas respectivas ideias, unas e imutveis, do mesmo modo a multiplicidade das ideias encontra a sua unidade na ideia do bem, que o ser sem o qual no se entende o vir-a-ser. E, embora ela apresente atributos divinos, a essa realidade suprema falta o poder criador, ou melhor, ordenador, de que dotado o demiurgo, o qual, ainda que superior matria, inferior s ideias, de cujo modelo se serve para ordenar o mundo, extraindo o cosmos do caos. Da mesma maneira que o demiurgo, mas subordinado a ele, as almas tm uma funo mediadora entre as ideias e a matria. Segundo Plato, existem trs tipos de alma: alma concupiscente, prpria dos vegetais; alma irascvel, prpria dos animais; alma racional, exclusiva do ser humano. Mas no ser humano os trs tipos de alma encontram-se reunidos hierarquicamente. A alma racional, destinada ao conhecimento das ideias, localiza-se na cabea e tem como virtude principal a sabedoria. A alma irascvel, associada vontade, situa-se no peito e tem por virtude cardeal a fora. A alma concupiscente, por seu turno, tem por sede o ventre e como virtude capital, a moderao. A alma racional controla as outras duas, e por meio das trs virtudes obtm-se o pleno domnio do corpo e das paixes, alcanando-se assim a justia e a felicidade. Nesse sentido, o corpo seria um obstculo para a natureza racional do ser humano. A moral platnica, portanto, ancorada no dualismo corpo-alma, uma moral asctica, de renncia ao mundo. O objetivo da humanidade encontra-se alm deste mundo, na contemplao do mundo das ideias. Quanto ao destino individual das almas depois da morte, segundo Plato, as almas dos filsofos e de todos que souberam se desprender do mundo sensvel voltam para o mundo das ideias; as dos seres apegados matria vo para um lugar de danao; enquanto as outras se reencarnam em corpos mais ou menos nobres segundo o bem ou mal que tiverem praticado. Alis, para Plato, cabe tambm aos filsofos o governo de sua repblica ideal e nela haveria basicamente trs classes: a dos filsofos, encarregados da direo do estado; a dos guerreiros, responsveis pela sua defesa; a dos produtores - agricultores e artesos -, os quais, submetidos aos outros, seriam os responsveis pela sua sustentao econmica.41

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Compreendendo que os interesses privados, domsticos, no raro entram em choque com os interesses da coletividade, Plato no hesita em sacrificar os primeiros em proveito dos ltimos.Todavia, se a natureza do Estado sobretudo tica, o seu fim principal pedaggico: antes de mais nada, o Estado deve zelar pelo bem espiritual dos cidados, educando-os na virtude, e somente em um segundo momento ele deve se ocupar com o bem-estar desses cidados.

0 legado de Plato

Se Aristteles, o mais famoso discpulo de Plato, seria o responsvel por grande parte da construo do arcabouo cientfico do Ocidente, caberia ao mestre o estabelecimento de sua estrutura espiritual. Opondo o mundo das ideias ao mundo da matria, Plato criaria as condies - que seriam reforadas mais tarde pelo cristianismo - para que se produzisse durante muitos sculos uma repulsa profunda por tudo que estivesse relacionado com a ordem material e sensvel, como o corpo e a sexualidade, em proveito do mundo do esprito, da mente, das ideias. Essa ciso entre corpo e alma, matria e esprito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, ns devemos a Plato. No poucos pensadores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde desconstruir essa herana. Em todo caso, de certa forma Plato foi a pedra fundamental do edifcio filosfico e espiritual do Ocidente. No tarefa de pouca monta livrarmo-nos de sua influncia.

Textos complementares(CHAU, 2000, p. 195)

Imaginemos uma caverna separada do mundoImaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, gerao aps gerao, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabea para a entrada nem se locomover, forados a olharem apenas para a parede do fundo e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro, uma rstia de luz exterior ilumina o espao habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trs do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais, cujas sombras so projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras so as prprias coisas externas, e que os artefatos projetados so seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhes e escala o muro. Sai da caverna. No primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus olhos no esto acostumados; pouco a pouco se habitua luz e comea a ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as prprias coisas, descobrindo que, em sua priso, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e somente voltar a ela se for obrigado, para contar o que 42

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viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era ngreme e a luz ofuscante, tambm o retorno ser penoso, pois ser preciso habituar-se novamente s trevas, o que muito mais difcil do que se habituar luz. De volta caverna, o prisioneiro ser desajeitado, no saber mover-se nem falar de modo compreensvel para os outros, no ser acreditado por eles e correr o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.

0 amor platnico(WEISCHEDEL, 2006, p. 47-57)

Comumente entende-se [o amor platnico] por ser aquele amor no qual, em primeiro plano, no se encontra a cobia sexual, mas antes, uma atrao espiritual. Mas porque ele levaria o nome de Plato? De fato, folheando a obra de Plato, em parte alguma se encontram sinais de respeito s mulheres. Pelo contrrio, afirma que so bem menos virtuosas que os homens, superficiais, pusilmines, traioeiras e supersticiosas. Aqueles homens que tivessem sido covardes e injustos, aps a morte, como punio, renasceriam mulheres. O casamento no passa da tarefa de produzir uma descendncia. Assim, Plato no nos oferece uma imagem romntica do amor entre homem e mulher. Na Grcia daquela poca, mais que entre homem e mulher, havia ainda uma outra espcie de relao amorosa: a relao de um homem mais velho com um rapaz. Scrates, seu mestre, ininterruptamente procura o trato com belos rapazes. Mas o relacionamento de Scrates com os adolescentes no da espcie usual de relao amorosa. A podemos ver algo do que significa "o amor platnico". Em O Banquete, isso expresso no discurso que o jovem Alcebades profere para Scrates. Aquele amor que, com plena intensidade, dirige-se ao outro, mas que simultaneamente se contm, aquele "amor platnico" portanto, est intimamente ligado ao modo de ser de Scrates como praticante da filosofia e ao modo como Plato, ento, concebe a essncia da filosofia: como sendo essencialmente amor. A experincia de Alcebades com Scrates mostra que o amor filosfico no o amor sensual. E a essncia desse amor seria a saudade do belo, pois isso que de fato eterno no homem. Dessa forma, portanto, torna-se claro o sentido mais profundo do"amor platnico"; que no consiste to somente na represso da cobia sensual, em vez disso, concede-lhe a essa seus direitos limitados, mas os exalta a uma forma mais elevada de desejo, para alm da beleza dos corpos, das almas, da conduo da vida e do conhecimento: o "amor platnico" insta pela beleza em si mesma. O amor consiste na aspirao pelo arqutipo do belo, do qual tudo o que belo participa, ou seja, na aspirao pela ideia do belo. Assim, o "amor platnico" est estreitamente relacionado com a grandiosa realizao do pensamento de Plato que entraria para a conscincia do esprito ocidental: sua doutrina das ideias. Em suas reflexes, Plato descobre que o homem sabe desde sempre, originariamente, o que justia e o que so as outras virtudes. Ele traz em sua alma a ideia de todos esses retos modos do comportamento, os quais podem e devem determinar a sua ao. Mas essa conexo entre realidade e ideia no diz respeito apenas ao campo da ao humana. Tambm o que seja uma rvore s o sabemos desde que tenhamos em ns a43

Tpicos da Filosofia da Educao

ideia da rvore. O conhecimento da realidade total s se torna possvel quando o homem possui em sua alma arqutipos de tudo o que , podendo ento dizer: isto uma rvore, aquilo um animal; isto um crime, aquilo uma boa ao. Isso significa que todo o real o que enquanto participa de seu arqutipo e enquanto aspira a tornar-se semelhante a ele. A rvore quer ser tanto quanto possvel rvore; o homem, tanto quanto possvel homem; a justia, tanto quanto possvel, justia. O mundo um lugar de incessante mpeto pela perfeio, de amor pela ideia, pois as ideias so o real imaginrio. As coisas so meras cpias das ideias e, portanto, de diminuto grau de realidade. As ideias esto livres de toda a transitoriedade. O conhecimento das ideias tem de ser atribudo ao homem antes de sua existncia temporal, em uma existncia anterior ao nascimento. Quando reconhece uma coisa, isso significa que o homem se lembra de uma contemplao originria dessa ideia, a qual precisa ter ocorrido antes de sua existncia temporal. Portanto, conhecer relembrar. Assim, a teoria da ideia conduz necessariamente suposio de uma preexistncia da alma e a certeza da imortalidade. Dessa existncia anterior, fala-nos Plato atravs do dilogo Fedro, a qual deixa no homem, por toda sua vida, uma certa nostalgia. O filsofo, por sua natureza, aspira ao ser. A paixo daquele que filosofa , portanto, a significao ltima do"amor platnico'^ sem ela no haveria nenhuma procura verdadeira pelo eterno.

Atividades

1. Com base no texto complementar de Marilena Chau ("Imaginemos uma caverna separada do mundo"), qual a mensagem deixada por esse mito? E, no seu entendimento, quais so as cavernas de hoje? O que a educao pode fazer para ajudar os educandos a libertarem-se de suas cavernas? 2. Segundo as principais linhas do da esquerda com a da direita.

a) As coisas b) c) d)Os conceitos ou ideias A alma concupiscente A repblica ideal

( (

e) O mundo das ideias

f) A realidade ( pensamento platnico, relacione a coluna) s pode ser intudo pela razo. ) contingente. ) prpria dos vegetais. ) so cpias imperfeitas de arqutipos de modelos ideais. ) governada pelos filsofos. 44

Plato e o nascimento da razo ocidental

) so necessrios. 3. Quanto ao legado de Plato, assinale a nica alternativa correta. a) o responsvel por grande parte da construo do arcabouo cientfico do Ocidente. b) No poucos pensadores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde reformular, a partir de novas bases, a herana de Plato. c) o principal responsvel pela repulsa concernente a tudo que esteja relacionado com a ordem material e sensvel. d) incompatvel com a dogmtica crist, que desde o princpio preferiu a filosofia de Aristteles. e) Essa ciso entre corpo e alma, matria e esprito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, ns devemos mais a Scrates que a Plato.

Para produzir filosofia

Com base no segundo texto complementar ("O amor platnico"), qual a relao da expresso "amor platnico" com as ideias de Plato?

Aristteles e a filosofia como totalidade dos saberesFilho de mdico, mestre de prncipeSe elementos da filosofia platnica persistem nos substratos inconscientes do Ocidente, sobretudo em seus veios religioso e espiritual, o pensamento de Aristteles, seu mais famoso discpulo, foi praticamente hegemnico. E ainda cedo para afirmar, como pretendem alguns, que tenhamos entrado em uma fase ps-aristotlica. Diferentemente de Scrates e Plato, Aristteles era estrangeiro em Atenas: sua famlia era de Estagira, colnia grega da Trcia, na fronteira com a Macednia, onde ele nasceu em 384 ou 383 a.C. Por ter nascido na cidade de Estagira, por vezes ele chamado de o Estagirita. Seu pai foi mdico na corte de Macednia, servindo ao rei Amintas, que era pai de Felipe e av de Alexandre. Graas a essa influncia, o futuro filsofo beneficia-se desde cedo de uma atmosfera de pesquisa emprica, experimental, sem dvida alguma decisiva para os vrios tratados sobre questes biolgicas que escreveria mais tarde. Aos 18 anos de idade, j rfo, ele mudou-se para Atenas, ingressando na Academia platnica, onde permaneceu por 20 anos convivendo com os maiores nomes do pensamento da poca. Todavia, com a morte de Plato, Aristteles se afastou da escola, j que a direo desta tendia para reas que

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no eram inteiramente de seu interesse. Assim, nos 12 anos seguintes ele viajou pela sia Menor, vivendo e lecionando em vrias cidades, em uma fase importantssima de sua vida, at que, por volta de 343 a.C., Felipe da Macednia o convocou para a corte, encarregando-lhe da educao de seu filho, Alexandre, o Grande. Pouco depois da ascenso de Alexandre ao trono, em 336, Aristteles retornou a Atenas, onde funda uma escola prpria, o Liceu, assim denominado por conta do templo dedicado a Apoio Lcio, que ficava nas proximidades. Em virtude do seu hbito de lecionar caminhando, a escola recebeu o nome de Perpatos, que significa "passeio", e os seus seguidores foram perpatticos. "Foram esses os anos mais fecundos na produo de Aristteles, o perodo que viu o acabamento e a grande sistematizao dos tratados filosficos e cientficos que chegaram at ns" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 175). Com a morte de Alexandre, irrompeu em Atenas uma rebelio contra a dominao macednica. Culpado por ter sido tutor do grande soberano, Aristteles foi acusado de impiedade, como o fora Scrates. No entanto, sem a mesma vocao para o martrio, Aristteles fugiu para Clcis, onde havia uma propriedade sua, deixando a direo do Liceu com Teofrasto, um de seus discpulos. Com apenas poucos meses de exlio, veio a falecer em 322 a.C., aos 60 anos de idade.

Os escritos de Aristteles

Os escritos de Aristteles chegam s centenas - no faltando autores antigos que lhe atribuem a autoria de cerca de mil volumes. O certo que os textos de Aristteles dividem-se basicamente em dois grandes grupos: os escritos exotricos, destinados ao grande pblico, compostos sobretudo em forma de dilogos, semelhana de Plato; os escritos esotricos, de aspecto mais didtico, produzidos para os alunos e, em alguns casos, pelos prprios alunos, como notas tomadas das aulas do mestre - a maior parte do que nos chegou pertence a este segundo grupo. No entanto, a primeira edio completa de suas obras s veio a lume pela metade do ltimo sculo antes de Cristo, graas ao esforo de Andrnico de Rodes, seu dcimo sucessor na direo do Liceu. A classificao tradicional do corpus aristotlico, como a que se segue, tem por base essa edio: Escritos lgicos - esse conjunto de escritos sobre a lgica, que Aristteles considerava um instrumento indispensvel da cincia, recebeu mais tarde o ttulo de Organon. Escritos sobre a fsica - esse grupo abrange as obras de cincias naturais e a Psicologia. Escritos metafsicos - essa compilao, feita depois da morte do filsofo por meio de seus apontamentos, refere-se metafsica, cujo nome foi dado devido ao lugar que ocupa na coleo de Andrnico, isto ,"depois da fsica". Escritos morais e polticos - a tica a Nicmaco, assim chamada porque de-

Aristteles e a filosofia como totalidade dos saberes

dicada a Nicmaco, seu filho; a tica a Eudemo, inconclusa, considerada hoje em dia uma verso mais antiga do livro anterior; a Grande Moral, compndio das duas precedentes, em especial da segunda; e a Poltica, tambm incompleta. Escritos retricos e poticos - a Retrica e a Potica, que, no seu estado atual, apenas uma parte do que Aristteles escreveu. Quanto abrangncia e grandeza do empreendimento aristotlico e o estilo em que suas obras foram redigidas, transcrevemos o bem-humorado comentrio de Will Durant (2000, p. 75):

Temos aqui, evidentemente, a Encyclopedia Britannica da Grcia: todos os problemas abaixo e ao redor do sol tm um lugar nela [...]. Aqui est uma sntese de conhecimento e teoria que nenhum homem tornaria a realizar at a poca de Spencer, e mesmo ento com uma magnificncia que no chegava metade dela; aqui, melhor do que a impulsiva e brutal vitria de Alexandre, estava uma conquista do mundo. Se a filosofia a procura da unidade, Aristteles merece o elevado ttulo que 20 sculos lhe deram: llle Philosophus - O filsofo. Naturalmente, a um esprito de tal pendor cientfico faltava a poesia. No devemos esperar de Aristteles o brilhantismo literrio que inunda as pginas do filsofodramaturgo Plato. Em vez de nos dar uma alta literatura, na qual a filosofia esteja corporificada (e obscurecida) em mitos e imagens, Aristteles nos d cincia, tcnica, abstrata, concentrada [...]. Em vez de dar termos literatura, como fez Plato, ele construiu a terminologia da cincia e da filosofia; praticamente no podemos falar de qualquer cincia, hoje, sem empregar termos que ele inventou; eles jazem como fsseis no substrato de nossa linguagem: faculdade, mdia, mxima [...], categoria, energia, realidade, motivo, fim, princpio, forma - estas indispensveis moedas do pensamento filosfico foram cunhadas em sua mente.

Com Aristteles, assistimos passagem de uma filosofia ainda tateante a uma filosofia madura, rigorosa, autnoma. Nele se concretiza, mais do que em qualquer outro antes dele, o domnio do logos sobre o mythos, da razo sobre a imaginao. Podemos afirmar ainda que com o filsofo de Estagira se manifesta, pelo menos em seus princpios epistemolgicos, o que viria a ser a cincia ocidental.

S o individual real

Para compreendermos a originalidade da contribuio do pensamento de Aristteles preciso levar em conta dois fatores essenciais: a formao prtica herdada de seu pai e a fora da filosofia platnica. So duas tendncias opostas que encontraro nele uma sntese original, a formao prtica funcionando como ponto de partida e pano de fundo para a superao da filosofia platnica. Assim, em Aristteles a pesquisa emprica fornece o instrumental para a refutao da teoria platnica das ideias. Em outros termos, em Aristteles formulada uma filosofia realista em comparao ao pensamento idealista de Plato. O ponto de partida dessa nova filosofia consiste em conceber, ao contrrio de Plato, que somente o individual real: o que realmente existe o indivduo material concreto. Esse indivduo concreto seria o constituinte lt