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    Toxicmanos de identidade

    subjetividade em tempo de globalizao*

    Suely Rolnik

    A globalizao da economia e os avanos tecnolgicos, especialmente amdia eletrnica, aproximam universos de toda espcie, situados em qualquer pontodo planeta, numa variabilidade e numa densificao cada vez maiores. Assubjetividades, independentemente de sua morada, tendem a ser povoadas por afetosdesta profuso cambiante de universos; uma constante mestiagem de forasdelineia cartografias mutveis e coloca em cheque seus habituais contornos.

    Tudo leva a crer que a criao individual e coletiva se encontraria em alta,pois muitas so as cartografias de foras que pedem novas maneiras de viver,numerosos os recursos para cri-las e incontveis os mundos possveis. Porexemplo, as infovias: forma-se, atravs delas, uma comunidade do tamanho domundo que produz e compartilha suas idias, gostos e decises viva voz, numainfindvel polifonia eletrnica; uma subjetividade que se engendra na combinaosempre cambiante da multiplicidade de foras deste coletivo annimo. Estaramosassistindo emergncia de uma democracia em tempo real, administrada por umsistema de autogesto em escala planetria? A figura moderna da subjetividade, comsua crena na estabilidade e sua referncia identitria, agonizante desde o final do

    sculo passado, estaria chegando ao fim?No to simples assim: que a mesma globalizao que intensifica as

    misturas e pulveriza as identidades, implica tambm na produo de kits de perfis-padro de acordo com cada rbita do mercado, para serem consumidos pelassubjetividades, independentemente de contexto geogrfico, nacional, cultural, etc.Identidades locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadasflexveis que mudam ao sabor dos movimentos do mercado e com igual velocidade.

    Esta nova situao, no entanto, no implica forosamente o abandono dareferncia identitria. As subjetividades tendem a insistir em sua figura moderna,ignorando as foras que as constituem e as desestabilizam por todos os lados, paraorganizar-se em torno de uma representao de si dada a priori, mesmo que, naatualidade, no seja sempre a mesma esta representao.

    * Reelaborao de artigo publicado no caderno Mais! da Folha de So Paulo. So Paulo, 19/05/96.

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    verdade que estas mudanas implicam a conquista de uma flexibilidadepara adaptar-se ao mercado em sua lgica de pulverizao e globalizao; umaabertura para o to propalado novo: novos produtos, novas tecnologias, novosparadigmas, novos hbitos, etc. Mas isto nada tem a ver com flexiblidade para

    navegar ao vento dos acontecimentos - transformaes das cartografias de forasque esvaziam de sentido as figuras vigentes, lanam as subjetividades no estranho eas foram a reconfigurar-se. Abertura para o novo no envolve necessariamenteabertura para o estranho, nem tolerncia ao desassossego que isto mobiliza e menosainda disposio para criar figuras singulares orientadas pela cartografia destesventos, to revoltos na atualidade.

    a desestabilizao exacerbada de um lado e, de outro, a persistncia dareferncia identitria, acenando com o perigo de se virar um nada, caso no seconsiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma rbita do mercado. Acombinao desses dois fatores faz com que os vazios de sentido sejaminsuportveis. que eles so vividos como esvaziamento da prpria subjetividade eno de uma de suas figuras - ou seja, como efeito de uma falta, relativamente imagem completa de uma suposta identidade, e no como efeito de umaproliferao de foras que excedem os atuais contornos da subjetividade e aimpelem a tornar-se outra. Tais experincias tendem ento a ser aterrorizadoras: assubjetividades so tomadas pela sensao de ameaa de fracasso, despersonalizao,enlouquecimento ou at de morte. As foras, ao invs de serem produtivas, ganham

    um carter diablico; o desassossego trazido pela desastabilizao torna-setraumtico. Para proteger-se da proliferao das foras e impedir que abalem ailuso identitria, breca-se o processo, anestesiando a vibratilidade do corpo aomundo e, portanto, seus afetos. Um mercado variado de drogas sustenta e produzesta demanda de iluso, promovendo uma espcie de toxicomania generalizada. Masa que drogas estou me referindo?

    Primeiro as drogas propriamente ditas, fabricadas pela indstriafarmacolgica que so pelo menos de trs tipos: produtos do narcotrfico,proporcionando miragens de onipotncia ou de uma velocidade compatvel com asexigncias do mercado; frmulas da psiquiatria biolgica, nos fazendo crer que essaturbulncia no passa de uma disfuno hormonal ou neurolgica; e, paraincrementar o coquetel, miraculosas vitaminas prometendo uma sade ilimitada,vacinada contra o stress e a finitude. Evidentemente no est sendo posto emquesto aqui o benefcio que trazem tais avanos da indstria farmacolgica, masapenas seu uso enquanto droga que sustenta a iluso de identidade.

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    Outros tipos de drogas que sustentam igualmente esta iluso encontram-sedisponveis no mercado, embora no se apresentem enquanto tal. Vejamos as maisevidentes.

    A droga oferecida pela TV (que os canais a cabo s fazem multiplicar), pela

    publicidade, o cinema comercial e outras mdias mais. Identidades prt--porter,figuras glamurizadas imunes aos estremecimentos das foras. Mas quando estas soconsumidas como prteses de identidade, seu efeito dura pouco, pois os indivduos-clones que ento se produzem, com seus falsos-self estereotipados, so vulnerveis aqualquer ventania de foras um pouco mais intensa. Os viciados nesta droga vivemdispostos a mitificar e consumir toda imagem que se apresente de uma formaminimamente sedutora, na esperana de assegurar seu reconhecimento em algumarbita do mercado.

    H ainda a droga oferecida pela literatura de auto-ajuda que lota cada vezmais as prateleiras das livrarias, ensinando a exorcizar os abalos das figuras emvigncia. Esta categoria inclui a literatura esotrica, o boom evanglico e as terapiasque prometem eliminar o desassossego, entre as quais a Neurolingustica,programao behaviorista de ltima gerao.

    Muito procuradas, por fim, so as drogas oferecidas pelas tecnologiasdiet/light. Mltiplas frmulas para uma purificao orgnica e a produo de umcorpo minimalista, maximamente flexvel. o corpo top model, fundo neutro embranco e preto, sobre o qual se vestir diferentes identidades prt--porter.

    Dois processos acontecem nas subjetividades hoje que correspondem adestinos opostos desta insistncia na referncia identitria em meio ao terremotoque transforma irreversivelmente a paisagem subjetiva: o enrijecimento deidentidades locais e a ameaa de pulverizao total de toda e qualquer identidade.

    Num plo, as ondas de reivindicao identitria das chamadas minoriassexuais, tnicas, religiosas, nacionais, raciais, etc. Ser viciado em identidade nestascondies considerado politicamente correto, pois se trataria de uma rebeliocontra a globalizao da identidade. Movimentos coletivos deste tipo so semdvida necessrios para combater injustias de que so vtimas tais grupos; mas noplano da subjetividade trata-se aqui de um falso problema. O que se coloca para assubjetividades hoje no a defesa de identidades locais contra identidades globais,nem tampouco da identidade em geral contra a pulverizao; a prpria refernciaidentitria que deve ser combatida, no em nome da pulverizao (o fascnio niilistapelo caos), mas para dar lugar aos processos de singularizao, de criaoexistencial, movidos pelo vento dos acontecimentos. Recolocado o problema nestes

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    termos, reivindicar identidade pode ter o sentido conservador de resistncia aembarcar em tais processos.

    No plo oposto, est a assim chamada sndrome do pnico. Ela acontecequando a desestabilizao atual levada a um tal ponto de exacerbao que se

    ultrapassa um limiar de suportabilidade. Esta experincia traz a ameaa imaginriade descontrole das foras, que parecem prestes a precipitar-se em qualquer direo,promovendo um caos psquico, moral, social, e antes de tudo orgnico. aimpresso de que o prprio corpo biolgico pode de repente deixar de sustentar-seem sua organicidade e enlouquecer, levando as funes a ganharem autonomia: ocorao que dispara, correndo o risco de explodir a qualquer momento; o controlepsicomotor que se perde, perigando detonar gestos gratuitamente agressivos; opulmo que se nega a respirar, anunciando a asfixia, etc. Neste estado de pnico, nobasta mais apenas anestesiar a vibratibilidade do corpo, tamanha a violncia deinvaso das foras. Imobiliza-se ento o prprio corpo, que s se deslocaracompanhado. A simbiose funciona aqui como uma droga: o outro torna-se umcorpo-prtese que substitui as funes do corpo prprio, caso sua organicidadevenha a faltar, dilacerada pelas foras enfurecidas.

    Todas estas estratgias, tanto as que visam a volta s identidades locais,quanto as que visam a sustentao das identidades globais, tm uma mesma meta:domesticar as foras. Em todas elas, tal tentativa malogra necessariamente. Mas oestrago est feito: neutraliza-se a tenso contnua entre figura e foras,

    despotencializa-se o poder disruptivo e criador desta tenso, brecam-se os processosde subjetivao. Quando isto acontece, vence a resistncia ao contemporneo.

    A visada de qualquer prtica clnica hoje seria, a meu ver, encontrar meios deestar desdomesticando as foras do fora e relanando a processualidade. A questocentral que se coloca a do abandono da referncia identitria e sua substituiopela prpria processualidade. Isto passa por criar condies para que o vazio desentido e valor possa ser vivido como excesso e no como falta, de modo que assubjetividades possam incorporar o inumano no homem, pensar o impensvel einventar possibilidades de vida. Quando com o vazio que se est lidando, no hporque esperar a formulao de algum sentido recalcado, atravs de associaes,lapsos ou atos falhos, como no modelo clssico da neurose: que se trata aqui daexperincia radical de um no-sentido, promovida pela dissoluo de alguma figurada subjetividade no embate com as foras do fora. Evidentemente o modo neurticode subjetivao, ou se preferirem, seu modelo clssico, no deixou de existir, e ascartografias tericas e prticas de que dispomos continuam vlidas para abord-lo; o

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    que acontece que ele tende a compor-se com novos modos e a dirigir-se muitasvezes para um segundo plano. Da a importncia de circunscrever os modosemergentes de subjetivao e encontrar procedimentos apropriados para combatersuas modalidades especficas de parada de processo.

    Enfrentar esta tarefa implica em rever nossas referncias na clnica. Ora,estes novos sintomas constitudos no contexto problemtico de formao de umnovo modo de subjetivao, alguns dos quais aqui assinalados, parecem estartraumatizando o saber psicanaltico, como a histeria traumatizou o saber psiquitricodo sculo XIX, e fz com que deste trauma nascesse a psicanlise. Se a psicanliseno puder suportar os efeitos disruptivos da desestabilizao no grau de intensidadecom que ela vem ocorrendo neste final de sculo, com certeza outros mtodos serocapazes de faz-lo, como foi o caso da psicanlise em relao psiquiatria no finaldo sculo passado, e como, alis, j est sendo o caso com a psiquiatria biolgica, aneurolingustica e as terapias mgicas de toda espcie. O que preocupa no a perdade um lugar, mas de uma tica: o carter disruptivo do dispositivo analtico, apeste como o chamava Freud, que consiste em abrir as subjetividades s irrupesdo contemporneo. Quanto mais este dispositivo sucumbir ao poder hegemnico deoutros tipos de dispositivos que se inserem no mercado das drogas da iluso, maissua tica estar correndo o risco de desaparecer: nesse caso, em nosso prpriocampo que estaro vencendo as foras de resistncia emergncia do novo.

    H, sem dvida, outras foras em jgo. Elas aparecem nas tentativas de

    problematizar a situao que estamos vivendo, enfrentando seus efeitos traumticose cartografando os modos de subjetivao que vm se inventando a partir do traumae para alm dele. A presente jornada, a meu ver, constitui um esforo nesta direo.

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    Resumo

    Toxicmanos de identidade

    subjetividade em tempo de globalizao

    Suely Rolnik

    So problematizados aqui certos efeitos da globalizao e da inveno denovas tecnologias - especialmente as eletrnicas - nos processos de subjetivao.Destacam-se entre tais efeitos: a pulverizao das identidades locais relativamenteestveis, acompanhada de uma tendncia a conformar as subjetividades assimdesparametradas segundo identidades globalizadas flexveis. Estas so figurasprt--porter que se formam e se desfazem ao sabor das novas rbitas do mercado.Para alm da aceitao a-crtica de tais identidades globalizadas flexveis, diversasformas de resistncia se esboam, que vo da apologia da pulverizao (o fascnioniilista pelo caos) defesa de identidades locais fixas (as chamadas minorias).

    Prope-se a idia de que todas estas formas de resistncia tem em comum amanuteno de um regime identitrio na constituio das subjetividades. Isto ascoloca em estado de falta permanente e promove uma verdadeira toxicomania deidentidade, sustentada e produzida por um variadssimo mercado de drogas. Rompercom tal regime identitrio seria uma condio essencial para que possa afirmar-se oimenso potencial de criao na existncia individual e coletiva, de que portadora a

    atualidade.

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    Novas figuras do caos

    mutaes da subjetividade contempornea*

    Suely Rolnik

    A palavra caos das mais pronunciadas na atualidade. Tema cult decongressos, livros de divulgao cientfica, artigos de jornal e at programas de TV,fala-se de caos em todos os campos da cultura. Com certeza, no se trata de ummero modismo, mas de uma exigncia que a realidade contempornea vem noscolocando: enfrentar o caos, repens-lo, reposicionar-se diante dele - mesmo quemuitas vezes a insistente evocao dessa palavra vise, pelo contrrio, evitar talenfrentamento e conjurar o pavor que o caos certamente mobiliza. Que mudanas seestariam operando nas subjetividades, hoje, para lev-las a revisar seu conceito decaos e de ordem, assim como da relao entre ambos?

    Primeiro, duas palavras acerca da noo de subjetividade. Todo ambiente scio-cultural feito de um conjunto dinmico de universos. Tais universos afetam assubjetividades, traduzindo-se como sensaes que mobilizam um investimento dedesejo em diferentes graus de intensidade. Relaes se estabelecem entre as vriassensaes que vibram na subjetividade a cada momento, formando constelaes de

    foras cambiantes. O contorno de uma subjetividade delineia-se a partir de umacomposio singular de foras, um certo mapa de sensaes. A cada novo universoque se incorpora, novas sensaes entram em cena e um novo mapa de relaes seestabelece, sem que mude necessariamente a figura atravs da qual a subjetividadese reconhece. Contudo, medida em que mudanas deste tipo acumulam-se, podetornar-se excessiva a tenso entre as duas faces da subjetividade - a sensvel e aformal. Neste caso, a figura em vigor perde sentido, desestabiliza-se: um limiar desuportabilidade ultrapassado. A subjetividade tende ento a ser tomada por umainquietude que a impele a tornar-se outra, de modo a dar consistncia existencialpara sua nova realidade sensvel.

    *Texto apresentado em mesa redonda no III Congresso Internacional Latino-Americano de Semitica. PUC-SP, So Paulo, 04/09/96.

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    Como coloquei na mesa anterior, neste final de sculo - e de milnio -, adesestabilizao trabalha no atacado. A imensa diversidade e densificao deuniversos que se miscigenam em cada subjetividade torna suas figuras e suaslinguagens obsoletas muito rapidamente, convocando-a a um esforo quase que

    permanente de reconfigurao. Nesse contexto, a subjetividade se descobre precriae incerta. Muda por completo o modo como vivida a experincia dadesestabilizao.

    Na modernidade, tal experincia era associada doena mental, e trazia omedo de no conseguir configurar-se de acordo com o mapa absolutizado de umaordem considerada normal: medo de ser anormal, de fracassar ou enlouquecer. Asescolhas eram movidas pela exigncia de se alcanar essa suposta identidade, sobpena de sucumbir culpa.

    No contemporneo, no entanto, a experincia da desestabilizao encontra-sea tal ponto intensificada que ela no mais se associa doena; sua generalizao asitua no mbito de uma normalidade. Essa experincia tende ento a ser vivida comofragilidade. O medo no mais o de no conseguir configurar-se segundo um certomapa, pois mltiplos so os mapas possveis. O medo agora de no conseguirreconfigurar-se de todo, de forma minimamente eficaz.

    Nesse processo surgem novos objetos na paisagem ambiente; outros mudamde lugar. Por exemplo, o estatuto dos remdios psiquitricos, que passam a ter afinalidade de evitar ou remediar a fragilizao e seus efeitos - o stress, a depresso, a

    ansiedade, etc. Hbito que se tornou comum, tomar esse tipo de remdio deixa deser uma prtica secreta, culposa e envergonhada, que marca aquele que o toma como estigma de doente mental. Hoje, quem toma tais remdios no tem mais por queescond-lo; pelo contrrio, tal atitude denota algum que investe na administraodos prprios processos de subjetivao, e que se mantm ao par das ltimasnovidades da indstria farmacutica.

    Como coloquei na mesa anterior, h vrias outras tecnologias que permitemlidar com o perigo de fragilizao - algumas antigas, mas investidas de novas formasou sentidos; outras inditas. Entre as antigas, a cocana, da qual o que se espera hojeso fugazes miragens de uma velocidade compatvel com as exigncias do mercado.Alm da cocana, a literatura de auto-ajuda, que pretende ensinar a exorcizar osabalos das figuras em vigncia, incluindo-se nessa categoria a literatura esotrica eas terapias que prometem eliminar o desassossego (com destaque para a to faladaneurolingstica, programao behaviorista de ltima gerao). Entre astecnologias inditas, esto os coquetis de vitaminas, prometendo uma sade

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    ilimitada, vacinada contra o stress e a finitude, que os prodgios da indstra decosmticos vm complementar, apagando, da pele, qualquer vestgio do tempo. Porltimo, no podemos esquecer as tecnologias diet/light, frmulas de uma purificaoorgnica para a produo de um corpo minimalista, maximamente flexvel, capaz de

    vestir toda espcie de identidade.Um sintoma desse medo da perda de qualquer possibilidade de configurao

    a experincia, bastante recorrente nos dias de hoje, que a psiquiatria batizou desndrome do pnico, que tentei problematizar na mesa anterior. [Ela acontecequando a desestabilizao levada a um tal ponto de exacerbao que se ultrapassatraumaticamente um limiar de tolerncia. Produz-se ento uma ameaa imaginriade descontrole das foras, que parecem prestes a precipitar-se em qualquer direo,promovendo um caos psquico, moral, social, e antes de tudo orgnico. aimpresso de que o prprio corpo biolgico pode de repente deixar de sustentar-seem sua organicidade e enlouquecer, levando as funes a ganharem autonomia: ocorao que dispara, correndo o risco de explodir a qualquer momento; o controlepsicomotor que se perde, o que pode detonar gestos gratuitamente agressivos; opulmo que se nega a respirar, anunciando a asfixia, etc. A soluo ser ento a deimobilizar o corpo, que s se deslocar acompanhado. O outro torna-se um corpo-prtese, pronto para substituir as funes do corpo prprio caso sua organicidadevenha a faltar, dilacerada pelas foras enfurecidas. ]

    essa a situao que leva o homem a transformar, mais uma vez na Histria,sua concepo de ordem, de caos e da relao entre ambos. A ordem tende a nomais associar-se a equilbrio. que a idia de equilbrio implica uma concepo desubjetividade reduzida conscincia e suas representaes, e esse tipo de concepopassa a ser inoperante, j que no permite fazer face s importantes mudanas que seproduzem no plano das sensaes. A subjetividade comea ento a ser apreendidacomo um sistema complexo, heterogentico e distante do equilbrio, sofrendoconstantes bifurcaes. O par estabilidade/instabilidade tende a ser abandonado. Emseu lugar aparece a idia de uma metaestabilidade: uma estabilidade que se faz erefaz a partir das rupturas de sentido, incorporando as composies de forasresponsveis por cada uma dessas rupturas. Circunscreve-se assim um alm daconscincia, mbito que a psicanlise apontou j no final do sculo passado,chamando-o de inconsciente. No entanto, a viso psicanaltica desse mbito, bemcomo de sua relao com a conscincia, tributria do par caos/ordem, entendidoscomo os dois plos, respectivamente negativo e positivo, de um sistema em

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    equilbrio. Hoje se levado a pensar que a inexistncia de forma no caos no fazdele o mbito do indiferenciado, como se pensava no final do sculo XIX, momentoem que emerge a psicanlise: o caos possui uma trama ontolgica especfica, feita damultiplicidade de foras em movimento de atrao e repulsa, as quais formam

    composies que engendraro as figuras ordenadas da subjetividade. Em outraspalavras, o caos o mbito das gneses das figuras da subjetividade, ele portadorde linhas de virtualidade. Se mantivermos o nome de inconsciente para design-lo,teremos que pens-lo como um inconsciente produtivo e criador. Um inconscientejamais determinado de uma vez por todas, e que se encontra em constante devir.Nesse tipo de viso, a ordem no se faz partindo-se de um elementar indiferenciadopara um complexo diferenciado: a subjetividade no se define por uma s e mesmafigura, que se estabeleceria na infncia e se desenvolveria ao longo da vida. Asfiguras so vrias; elas tomam consistncia a partir de limiares caticos que vo seproduzindo, um aps outro, do comeo ao fim da existncia.Mais do que subjetividades, preciso falar em processos de individuao ou desubjetivao. Tais processos so inseparveis das linhas de virtualidade traadas nocaos, linhas que eles atualizam, correndo sempre o risco de submergir. Complexaoperao de agenciamento de intensidades, que no esgota essas intensidades e seupotencial de gerar outros devires.

    Faz-se necessrio constituir uma teoria da subjetividade que comporte taissingularidades e sua potncia de transfigurao. Isso implica deslocar-se

    radicalmente de um modelo identitrio e representacional, que busca o equilbrio eque, para obt-lo, despreza as singularidades. Trata-se de apreender a subjetividadeem sua dupla face: por um lado, a sedimentao estrutural e, por outro, a agitaocatica propulsora de devires, atravs dos quais outros e estranhos eus se perfilam,com outros contornos, outras linguagens, outras estruturas, outros territrios.

    Vrias so as estratgias que as subjetividades tm inventado na atualidadepara defender-se do desconforto provocado por to exacerbada desestabilizao.Tais estratgias compem, em doses variadas, as diferentes subjetividades, ou osdiferentes momentos de uma mesma subjetividade. Farei um breve resumo dealgumas destas estratgias que expus na mesa anterior. Elas so basicamente de trstipos.

    A primeira estratgia toma como alvo de combate as identidades globalizadasflexveis, em torno das quais as subjetividades so levadas a se reconfigurar, sequiserem inserir-se em alguma rbita do capitalismo mundializado. Como antdoto a

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    tais identidades globalizadas flexveis, se prope ento a afirmao de identidadeslocais fixas, de ordem geogrfica, sexual, racial, religiosa, etc. So as minoriasmilitantes de toda espcie.

    J a segunda estratgia toma como alvo a pulverizao das identidades locais

    e dos antigos ideais, processo que se vive hoje num ritmo acelerado. Como antdotoa to intenso esfacelamento, prope-se investir identidades ideais, de ordem poltica,ideolgica, religiosa, etc. So os romnticos de direita, de centro ou de esquerda.

    A terceira e ltima estratgia toma como alvo a prpria idia de ordem, deprevisibilidade e, portanto, de escolha. Como antdoto a esta idia, prope-se apulverizao como bandeira de ordem. o fascnio niilista pelo caos.

    Todas essas estratgias tm em comum basear-se numa mesma concepo decaos, de ordem e da relao entre ambos; varia apenas o posicionamento de cadauma no interior dessa polaridade. O niilista estaria do lado do caos, entendido comonegativo da ordem; j o romntico e as minorias, xiitas ou no, estariam do lado daordem, associada a equilbrio, variando apenas suas figuras.

    Ora, se h um combate a ser travado, seu alvo a prpria polaridadeordem/desordem. No mbito da subjetividade isso implica em combater o regimeidentitrio, no em nome de uma pulverizao generalizada, mas para dar lugar a umoutro princpio de individuao. A subjetividade deixa de recorrer, para organizar-se, a imagens a priori, opinies prontas, clichs. Estes tendem a ser varridos decena, para serem substitudos pelas figuras singulares produzidas nos processos de

    criao, que trazem existncia as configuraes de foras que se desenham nasubjetividade.

    Recolocado o problema nesses termos, enfrentar as intensas mudanas que seoperam no contemporneo, atravs de qualquer uma das estratgias anteriormenteevocadas, pode ter o sentido conservador de resistncia a embarcar nos processos desingularizao. Em todas essas estratgias h uma anestesia aos efeitos disruptivosda radical disparidade entre o caos e a ordem, e essa anestesia impede de construirnovos mundos, a partir da riqueza de hibridaes que se fazem nas subjetividades nocontemporneo. A sndrome do pnico uma espcie de destino extremo dessasituao: ela se apresenta quando a anestesia j no basta, tamanha a violncia demovimentao de foras, e passa a ser preciso imobilizar o prprio corpo,concretamente.

    preciso resgatar a vibratibilidade do corpo, a receptividade aos efeitos domundo na subjetividade. No entanto, conhecer as intensidades no discursivas docaos s possvel por contaminao, jamais por representao. Esse tipo de

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    conhecimento depende de uma escuta para os movimentos que se fazem no caos,assim como de uma certa tolerncia para a metaestabilidade. Conhecer deixa entode ser o exerccio da busca de uma verdade - o que no quer dizer que tudo sejarelativo e que no haja escolhas a fazer em funo de alguma previsibilidade.

    Continua havendo um horizonte de previsibilidade, mas este limita-se a contextosproblemticos singulares e sempre atravessado pelo imprevisvel. O que muda que no se trata mais de estabelecer um mtodo de conhecimento que garanta aprevisibilidade, com o qual se traa o mapa terico de um mundo em equilbrio,eliminando tudo o que dele distoa. Trata-se, ao contrrio, de ouvir as linhas devirtualidade que se anunciam e se perguntar: como fazer para que esses conjuntosflous de intensidades ganhem consistncia subjetiva? Que agenciamentos sopassveis de traz-los existncia, recompor um mundo, relanar o processo? H,sem dvida, uma escolha a ser feita, mas ela no se faz em funo de uma supostaverdade; as escolhas so mltiplas e se fazem em funo do que melhor para aexpanso da vida, assumindo-se sempre o risco do engano. Uma escolha tica, que mais da ordem da arte do que do mtodo: o que ela visa criar formas de existncia,a favor do processo vital; todo o contrrio da tentativa clssica e moderna de domaresse processo.

    Dizamos no incio que o caos, hoje, circula de boca em boca, e que essainsistncia em evoc-lo responderia a uma solicitao que a realidade atual vem noscolocando. De fato, o caos nunca esteve to presente. Mas se, neste final de milnio,

    estamos confrontadas ao carter precrio e incerto da subjetividade, estamoscertamente tambm - e mais do que nunca - diante de seu carter criador.

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    Resumo

    Novas figuras do caos

    mutaes da subjetividade contempornea*

    Suely Rolnik

    As subjetividades encontram-se hoje atravessadas por uma infinidadecambiante de fluxos heterogneos, tomadas por intensidades as mais variadas.Nessas condies, revela-se sua natureza de sistema complexo, heterogentico edistante do equilbrio. Mais do que subjetividades, o que temos so processos deindividuao ou subjetivao - complexa operao de agenciamento de intensidades,que no esgota tais intensidades e seu potencial de gerar outros devires. O indivduoest sempre implicado no exerccio de sua individuao, no contexto de um sistemametaestvel de singularidades pr-individuais e impessoais. Faz-se necessrioconstituir uma teoria da subjetividade que comporte tais singularidades e suapotncia de transfigurao, de modo a apreend-la em sua dupla face: sedimentaoestrutural e agitao catica. Impossvel faz-lo sem enfrentar o caos na prpriasubjetividade e acolher os mltiplos e estranhos eus que a se perfilam.

    *Texto apresentado em mesa redonda no III Congresso Internacional Latino-Americano de Semitica. PUC-SP, So Paulo, 04/09/96.

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    Inconsciente Antropofgico*

    Suely Rolnik

    O fio condutor deste encontro um balano das psicologias na virada dosculo. Estar sempre fazendo este tipo de balano condio de nossa profisso, queimplica uma postura crtica permanente, especialmente quando nossa prtica clnica. Se tentarmos uma rpida definio das noes de crtica e de clnica,mobilizados pela idia de sua associao teramos o seguinte:

    Crtica uma postura virtualmente presente em todas nossas prticas eque consite em problematiz-las tendo como referncia a afirmao da vida em suapotncia criadora. Esta postura implica em estar em dois planos, sempre e ao mesmotempo: por um lado, aderido aos sentidos e valores vigentes e, por outro lado,embarcado nos processos que pedem a criao de novos sentidos e valores e que seenfrentados levam ao reconhecimento da superao dos que at ento funcionavam.Uma postura crtica implica em estar sempre enfrentando os entraves a esteprocesso.

    Clnica uma prtica especfica da vida humana que consiste em trabalharcom a subjetividade em diferentes mbitos da existncia individual e coletiva, e cujaprincipal razo de ser poderia ser assim resumida: dissolver os entraves afirmaode uma postura crtica. Se a crtica pode e deve estar presente em todas nossas

    atividades, na clnica ela a prpria condio de possibilidade do lado de quem apratica e a meta a ser atingida do lado de quem a ela se submete1.

    Se pensamos ento a associao entre crtica e clnica como fundamental,diremos que no exerccio clnico impossvel ter como referncia um modelo geralde subjetividade e a teoria que lhe corresponde. Todo exerccio clnico implica emconsiderar os processos de subjetivao em sua especificidade semprecontextualizada e, por outro lado, em estar sempre produzindo teoria para traarcartografias de tais processos.

    Partindo desta postura, me interessa estar examinando hoje basicamenteuma certa especificidade dos modos de subjetivao no Brasil e indagar porque as

    * Texto apresentado no colquio Encontros Internacionais Gilles Deleuze (RJ e SP, 10-14 de junho de 1996),com alguns remanejamentos. Editado no Brasil pela coleo Trans (Ed. 34, prelo), e na Frana pela coleoLes empcheurs de penser en rond (Synthlabo, prelo).1 Cf. Paulo C. Lopes: Pragmtica do desejo. Aproximaes a uma teoria da clnica em Flix Guattari eGilles Deleuze. Dissertao de mestrado, PUC-SP. So Paulo, 1996.

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    idias elaboradas por Gilles Deleuze e Flix Guattari encontram tanta ressonncia naclnica praticada entre ns.

    evidente que no encontramos aqui uma escola esquizoanaltica - istoseria um tanto ridculo, pois estaria na contramo da postura crtica que nos foi

    legada por tais autores. A esquizoanlise est presente no exerccio clnico e tericode alguns psicanalistas, pertencentes ou no a associaes psicanalticas, querecorrem obra de Deleuze e Guattari; tambm no trabalho que se desenvolve comgrupos e instituies, vinculado sobretudo psicose; e, ainda, em programas de ps-graduao de psicologia clnica, onde ncleos de pesquisa vm estudando essa obrae produzindo um nmero significativo de teses de mestrado e doutorado.

    Pode-se dizer, ainda, que a esquizoanlise habita, embora noexplicitamente, o imaginrio de analistas de diferentes filiaes - e no s dos que areivindicam -, convocando, em seu fazer terico, uma sensibilidade emergncia donovo. Em outras palavras, ela funciona neste mbito como uma espcie de chamado dimenso crtica da clnica.

    O que faz do Brasil essa exceo no solitrio destino da esquizoanlise? Otradicional fascnio do brasileiro pela cultura francesa - que, evidentemente, incluiriaos psicanalistas? Se assim fosse, essa influncia poderia limitar-se a umabibliografia estritamente psicanaltica, j que a produo francesa neste campo farta e conta com ampla divulgao no mercado editorial brasileiro. So entooutros, certamente, os motivos dessa peculiar situao da esquizoanlise no Brasil.

    Vou partir da idia de que a concepo de subjetividade de Deleuze eGuattari, implicada em sua teoria da clnica (a qual, por vezes, eles chamaram deesquizoanlise), faria eco a um dos princpios constitutivos das subjetividades noBrasil, e se constituiria como uma ferramenta eficaz para traar sua cartografia.Chamarei esse princpio de antropofgico, trazendo para a esfera da subjetividade,e reinterpretando, aquilo que o Movimento Antropofgico apontou no domnio daesttica e da cultura brasileiras.

    S a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.Filosoficamente2 - com essas palavras que Oswald de Andrade inicia seuManifesto. Numa leitura desatenta, a antropofagia pode ser entendida como umaimagem que representaria o brasileiro, e que, alm de delinear o contorno de umasuposta identidade cultural, teria a ambio de englobar o conjunto to diversificado

    2 Oswald de Andrade, Manifesto antropfago, in Revista de Antropofagia, ano I, no I, So Paulo, maio de1928. Reeditado em A utopia antropofgica, Obras completas de Oswald de Andrade, Editora Globo eSecretaria de Estado da Cultura de So Paulo, So Paulo, 1990.

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    de tipos que forma a populao deste pas. No entanto, o interessante na demarcheoswaldiana justamente um movimento que se desloca dessa busca de umarepresentao da cultura brasileira, e tenta alcanar o princpio predominante de suavariada produo. Estendido para o domnio da subjetividade, o princpio

    antropofgico poderia ser assim descrito: engolir o outro, sobretudo o outroadmirado, de forma que partculas do universo desse outro se misturem s que jpovoam a subjetividade do antropfago e, na invisvel qumica dessa mistura, seproduza uma verdadeira transmutao. Constitudos por esse princpio, os brasileirosseriam, em ltima instncia, aquilo que os separa incessantemente de si mesmos. Emsuma, a antropogafia todo o contrrio de uma imagem identitria.

    A ressonncia com as idias de Deleuze e Guattari notria: a subjetividade,segundo os dois autores, no dada; ela trabalhada por uma incansvel produoque transborda o indivduo por todos os lados. O que temos so processos deindividuao ou de subjetivao, que se fazem nas conexes do desejo com fluxosheterogneos que variam ao longo da existncia, dos quais o indivduo e seucontorno seriam apenas uma resultante. Assim, as figuras da subjetividade so porprincpio efmeras, e sua formao pressupe necessariamente agenciamentoscoletivos e impessoais.

    Tanto em Oswald quanto em Deleuze e Guattari, temos uma crticacontundente aos modos de subjetivao subordinados ao regime identitrio e aomodelo da representao. Mas a dupla febril vai certamente mais longe nesse

    empreendimento, ao criar uma complexa construo conceitual para traarefetivamente uma outra cartografia. Para isso, uma de suas principais iniciativas,seno a principal, ser a de circunscrever o plano onde se opera esse processo deproduo: inspirando-se em Artaud, eles lhe daro o nome de Corpo sem rgos. nesse corpo que os encontros com o outro, no s humano, geram intensidadesque os autores definiro como singularidades pr-individuais ou proto-subjetivas. Os agenciamentos de tais singularidades so exatamente aquilo que irvazar dos contornos dos indivduos, e que acaba levando sua reconfigurao.

    Se o esforo de Oswald de Andrade foi movido pela necessidade de pensar opeculiar modo de produo da cultura no Brasil, j o esforo de Deleuze e Guattari,naquilo que nos interessa, visou pensar o peculiar modo de produo dasubjetividade dominante na era do capitalismo globalizado, num momento inclusiveem que este ainda no se mostrava em todo o seu alcance, como o caso nos dias dehoje. Nesse sentido, sua obra constitui uma poderosa cartografia para nos movermos

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    nos meandros dos processos de subjetivao contemporneos, cartografia essa queainda est por ser descoberta e explorada.

    Esboar um tal percurso, indagando de que maneira incide o processo de

    globalizao nesse mbito, nos aproximar das possveis ressonncias das idias deDeleuze e Guattari neste modo de subjetivao bastante comum no Brasil, que aobra de Oswald de Andrade nos permite entrever. Pois bem, o que se observa hoje,j num primeiro olhar, uma multiplicao ao infinito das mestiagens que seoperam na subjetividade, com elementos vindos de toda parte do planeta, noimportando onde se esteja. Com isso, pulverizam-se muito rapidamente asidentidades, o que pode levar a supor que o modelo identitrio na construo dasubjetividade estaria sofrendo igual pulverizao. Mas no bem assim: ao mesmotempo em que se dissolvem as identidades, produzem-se figuras-padro, de acordocom cada rbita do mercado. As subjetividades so levadas a se reconfigurar emtorno de tais figuras delineadas a priori, independentemente de contexto -geogrfico, nacional, cultural, etc. -, submetendo-se a um movimento dehomogeneizao generalizada. Identidades locais fixas desaparecem para dar lugara identidades globalizadas flexveis. Estas acompanham o ritmo alucinado demudanas do mercado, mas nem por isso deixam de funcionar sob o regimeidentitrio. a desestabilizao exacerbada de um lado e, de outro, a persistnciadesse regime acenando com o perigo de se virar um nada, caso no se consiga

    produzir o perfil requerido para gravitar em alguma das rbitas do mercado, as quaisse formam e se dissolvem com a mesma velocidade. Tal perigo traz conseqnciasconcretas, pois corre-se o risco de cair na vala dos desempregados, que j somamhoje um bilho, espcie de buraco negro do qual cada vez mais difcil sair.

    Dilaceradas entre esses dois vetores, as subjetividades se encontram em crise.Na tentativa de reagir, elas tendem a ficar se debatendo em torno de falsos dilemas: a defesa da identidade em geral contra a pulverizao, ou vice-versa; ou, ento, adefesa de identidades locais contra identidades globais, como se v nos explosivosmovimentos de reivindicao religiosa, tnica, racial, etc. Varia a disposio daspeas do tabuleiro, mas este no varia: sempre o mesmo tabuleiro de umasubjetividade que funciona sob o regime identitrio e figurativo, que as novastecnologias da imagem e da comunicao tendem a fortalecer e a sofisticar cada vezmais. Evidentemente, tais tecnologias no trazem esse sentido embutido em suafabricao, ele apenas o resultado de seu uso dominante.

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    A esquizoanlise pode nos ajudar a sair desse crculo vicioso. A incorporaodo plano intensivo que o Corpo sem rgos na cartografia da subjetividade indicauma pista: o prprio tabuleiro do regime identitrio o que est para ser posto emquesto. No em nome do fascnio niilista do caos, mas para viabilizar a produo

    de uma subjetividade heterogentica. No lugar de imagens a priori em torno dasquais se reconfiguram as subjetividades desterritorializadas, o que se podevislumbrar so modos de existncia singulares e heterogneos. Tais modos se criamem funo do mapa de intensidades que vai se traando nesse denso processo dehibridaes ao qual assistimos em nossos dias. Isso requer, no entanto, que se escuteo Corpo sem rgos, o que implica em desenvolver um ouvido atento s mutaessensveis, um ouvido que consiga deixar de ficar sintonizado exclusivamente sejacom os significados, seja com os significantes, seja com ambos.

    Estariam Deleuze e Guattari, com essa sua noo de Corpo sem rgos,introduzindo uma outra concepo de inconsciente? Sem dvida: esses autoresconservam a idia de um inconsciente, mas propem um inconsciente maqunico, aoinvs de representacional ou estrutural. A noo de maqunico, que causou tantacontrovrsia, define a operao por excelncia do desejo: agenciar elementos deuma infinita variedade de universos e, a partir do que se engendra nesseagenciamento, produzir as mltiplas figuras da realidade - e no s da realidadesubjetiva.

    Ora, isso no evoca diretamente a operao antropofgica? Se a interpretamos

    desta perspectiva, o antropo deglutido e transmutado nessa operao nocorresponderia ao homem concreto, mas ao humano propriamente dito - as figurasvigentes da subjetividade, com seus contornos, suas estruturas, sua psicologia. Oresultado dessa operao um desfilar de figuras que se sucedem, geradas nasmiscigenaes promovidas pelo nomadismo do desejo. Juntando, ento,esquizoanlise e antropofagia, diramos que a lei que rege esse nomadismo a deum inconsciente maqunico-antropofgico, inumano Corpo sem rgos que devoraincansavelmente as figuras do humano.

    Essa idia ressoa em certas afirmaes intrigantes tanto de Oswald deAndrade quanto de um outro Oswaldo do Movimento Antropofgico, o da Costa: quando o primeiro escreve que a antropofagia governada pela lei de um deus decaravana metamorfoseado em deus de caravela, e que esta seria a nica lei domundo3; e o segundo completa, dizendo que esta a menos transcendental das

    3 Idem.

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    leis4. Se retomarmos tais afirmaes do ponto de vista que estamos adotando aqui,teramos que a lei maqunico-antropofgica do deus de caravana imanente aonomadismo do desejo; enquanto que a lei do deus da caravela, lei das potnciascatlicas que colonizaram o pas, transcendente a esse nomadismo. A diferena

    est na estratgia a que obedece a configurao das formas da realidade: quandoesse processo comandado por uma lei que lhe imanente, ele ir orientar-se pelasintensidades produzidas no Corpo sem rgos; j quando regido por uma leitranscendente, esta impe ao desejo imagens a priori, extrnsecas a seu movimento.A primeira estratgia definir um modo antropofgico de subjetivao, enquanto quea segunda, um modo do tipo identitrio-figurativo.

    Se concordamos com os dois Oswaldos, diremos que parece no ser evidentea hegemonia de um modo identitrio em terras brasileiras. Podemos inclusive suporque tanto faz se a representao a ser investida como identidade imposta por umdeus de caravela, ou se ele foi substitudo por um deus moderno, padroeiro da naobrasileira, ou por um mais moderno ainda, talvez at ps-moderno, deus docapitalismo mundial integrado, como o chamava Guattari, com suas imagensglobalizadas, flexveis e efmeras. que sob qualquer uma dessas mscaras compretenso transcendente, tenderia a afirmar-se uma outra - a qual, alis, no uma,mas vrias e imprevisveis, pois ela se metamorfoseia acompanhando o nomadismodo desejo. As subjetividades no Brasil teriam, assim, uma certa maleabidade paradeixar-se habitar por uma constante variao de universos, bem como, uma certa

    liberdade de criao de novas mscaras, territrios de existncia marcados pelahibridao de tais universos. Em suma, o inconsciente maqunico-antropofgico seencontraria especialmente ativo neste pas.

    Seria essa situao a responsvel pelo fato de a esquizoanlise, cartografiapara uma clnica da subjetividade no final do milnio, ter encontrado precocementeum solo fecundo entre os psicanalistas brasileiros? Vista por esse prisma, aesquizoanlise se constituiria num instrumento eficaz para escutar - e com isso,ativar - o inconsciente maqunico-antropofgico do brasileiro. Da mesma forma, oouvido do psicanalista brasileiro estaria particularmente afinado para esse tipo deescuta que se trata igualmente de ativar. A cartografia concebida por Deleuze eGuattari tenderia a fortalecer o psicanalista nessa empreitada, fornecendo-lheoperadores para circunscrever o modo de subjetivao que sua escuta apreende, eatribuir-lhe sentido e valor.

    4 Acquilles Vivacqua, A propsito do homem antropfago, in Revista de Antropofagia,Dirio de SoPaulo, 1/5/29.

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    Isso provavelmente j no acontece - em todo caso no com o mesmo rigor -,quando a escuta na clnica tem, como nica referncia, uma cartografia psicanaltica.Mas deixemos para desenvolver esta idia na prxima aula.

    Segunda Aula

    Quando atuamos sob o crivo exclusivo de uma cartografia psicanaltica, odesejo conduzido pela lei da antropofagia tender a ser ignorado na positividade desua lgica; ele ser interpretado como carecendo de uma associao lei abstrata doIdeal transcendente e lei negativa da falta, submetido exclusivamente regra doprazer que o pontua de fora. Tal funcionamento ser diagnosticado como um traotransgressivo, prprio de uma posio arcaica na suposta escala do desenvolvimentopsquico e/ou cultural. quando se escreve coisas do gnero falta ao brasileiro aLei, falta-lhe o Ideal, o brasileiro precisa atravessar seu dipo... 5

    Deleuze e Guattari examinam essa concepo de desejo, que o associa faltae ao Ideal transcendente, em muitas passagens de sua obra. Destaca-se o platconsagrado justamentente ao Corpo sem rgos, em seu livro Mil Plats6, ondecom seu humor eles afirmam que esse tipo de associao coisa de padre. Seriamcomo maldies lanadas contra o desejo, por meio das quais ele trado, arrancadode seu campo de imanncia (o Corpo sem rgos), onde precisamente ele se definecomo processo de produo.

    Examinemos a associao do desejo falta. por intermdio destaassociao que se obtm o sacrifcio da castrao. Para obt-lo, preciso passarprimeiramente por uma operao que consiste em pensar o tempo como realizaodo possvel. Por meio dessa operao, instaura-se um falso problema: contentar-seou no com o possvel. Com base nisso, o fato de o desejo no estar associado aoIdeal transcendente e a seu corolrio, a lei da falta, ser interpretado como recusa acontentar-se com o possvel. E o resto, j se sabe: tal recusa ser vista como produtode uma vontade de impossvel, vontade delirante, ou no mnimo, imatura e infantil.

    Ora, o que Deleuze e Guattari esto pleiteando no que no se devacontentar-se com o possvel, mas sim que o problema est mal colocado. S d parase pensar em termos do par possvel/impossvel no plano da representao, porque

    5 Encontramos esse tipo de viso, no Brasil, em ensaios de alguns psicanalistas, especialmente no livroHelloBrasil, de Contardo Calligaris (So Paulo, Escuta).6 Gilles Deleuze e Flix Guattari, Mil plats. Capitalismo e esquizofrenia, Vol. 3, Plat 6 28 de novembro de1947 - Como criar para si um Corpo sem rgos. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996.

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    tal par supe uma imagem a ser realizada, Ideal transcendente, inacessvel pornatureza, em direo ao qual, atormentado pela falta, se moveria o desejo. Mas seescutarmos o Corpo sem rgos, descobriremos que o tempo como realizao dopossvel apenas uma de suas figuras; vislumbraremos que o tempo tambm

    inveno. A partir da, a questo do desejo no mais se coloca em termos de umaescolha entre o possvel e o impossvel, mas sim de uma viabilizao do trnsito emmo dupla entre o plano virtual das intensidades e o plano atual das formas. Trata-sede estar atento s rachaduras das formas vigentes no atual, para escutar o burburinhodas singularidades pr-individuais ou proto-subjetivas que se agitam no virtualCorpo sem rgos; trata-se igualmente de farejar a pista de agenciamentos quefavoream a atualizao de tais singularidades como matrias de expresso. E,assim, infinitamente.

    Para Deleuze e Guattari, o desejo no carece de nada, no porque possaatingir a plenitude de uma satisfao, mas porque a falta s pode ser pensada doponto de vista de um sujeito, que se orienta pela cartografia de um Idealtranscendente. esse sujeito que, ao ver sua figura desestabilizar-se pelosmovimentos do desejo, o interpretar como sinal de uma carncia de completude.No entanto, se tiramos o Ideal transcendente de cena e examinamos esses mesmosmovimentos com a escuta sintonizada no Corpo sem rgos, aquilo que para osujeito falta revela-se como excesso de singularidades que transbordam edesmancham sua figura, levando-a a tornar-se outra, se o processo seguir seu curso.

    Dizer que Deleuze e Guattari no consideram que o desejo carea de algumacoisa no significa, portanto, que eles estariam pleiteando uma associao do desejoao prazer. Pelo contrrio: para os autores, esse tipo de associao consiste na terceiramaldio lanada contra o desejo, pois o momento da obteno do prazer umaforma de trgua durante a qual o desejo se desativa. Como eles escrevem, com essemesmo humor, obter o prazer j uma maneira de descarregar o desejo, no prprioinstante e de desencarregar-se dele7. O oposto da tica proposta pela dupla, queconsiste em encarregar-se do desejo, recarregar constantemente sua processualidade,afirmar sua potncia de conexo e criao. No lugar do par prazer/desprazer, o quese ter neste caso a alegria da atividade do desejo e a tristeza de suas desativaes.No a essa alegria que Oswald estaria se referindo ao escrever em seu Manifesto:a alegria a prova dos nove?

    7 Idem; p. 15 (no original, p. 191).

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    Se concordamos com tais consideraes, somos levados a pensar que quandose trabalha clinicamente tendo como guia exclusivo uma cartografia estritamentepsicanaltica, no sentido mais tradicional, corre-se o risco de fazer vingar no desejoas duas maldies contra as quais ele tenta, mal ou bem, resistir. Ou, no mnimo,

    corre-se o risco de fixar o desejo sob o feitio da terceira maldio, a que o submete regra exterior do prazer, atrelando a subjetividade a uma imagemfundamentalmente hedonista. Sob esse olhar, o desejo tende a penetrar-se deangstia, culpa e vergonha. A antropofagia, confundida com um hedonismo, temgrandes chances de minguar.

    A imagem de uma subjetividade brasileira marcada pelo prazer no nova.Ela ecoa numa das vises mais tradicionais que se tem do Brasil: o pas seria umaespcie de reserva tropical de hedonismo, disposio do planeta, para quemqueira fazer a suas catarses e se saciar. Essa viso, que mobiliza um misto deseduo e condenao, tem seu incio na prpria fundao do pas, com a vontade decatequese dos portugueses, mesclada volpia com que se relacionavam com osnativos e, depois, com os negros. Ela vai ganhando outras roupagens ao longo dossculos e, evidentemente, no apenas em sua verso psicanaltica que se apresentana atualidade; o to falado turismo sexual , provavelmente, a mais bvia de suasmanifestaes contemporneas.

    J em outro panorama, quando a antropofagia encontra um aliado, como

    parece ser o caso com a esquizoanlise, o que se descortina a imagem de umareserva tropical de heterognese, fruto de uma rica biodiversidade de que o Brasildisporia no s no reino vegetal e animal, mas tambm no humano, principalmenteno campo da subjetividade. O que haveria de vital nessa reserva no uma imagema mais da subjetividade, nem uma variedade de imagens, para alimentar o mundo emsua nsia de consumo de figuras que possam servir de identidade. Pelo contrrio,essa reserva conteria a frmula de uma vacina contra a tendncia dominante homogeneizao, tanto em sua necessidade de identidades globais quanto em seusefeitos colaterais de reivindicao de identidades locais ou de dissoluo no caos: avacina de heterognese provocaria nas subjetividades um desinvestimento do modoidentitrio. Doses de tal vacina estariam assim disposio para serem injetadas nacomplexa qumica da subjetividade que se produz nessa difcil, mas no menosfascinante, passagem de milnio.

    Nossa indagao acerca do porque a esquizoanlise vinga precisamente nasprticas clnicas brasileiras acabou desembocando numa questo tico-poltica de

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    alcance mais amplo. Mas tambm aqui se encontram Oswald, Deleuze e Guattari.Oswald chegou a defender a tese de que a Antropofagia constituiria umateraputica social para o mundo contemporneo8. Guattari via no modo desubjetivao no Brasil uma sada interessante para as questes que se colocam, neste

    mbito, na atualidade. Este era, alis, um dos aspectos que mais o atraam neste pas,segundo suas prprias palavras:

    Parece-me que esto reunidas aqui as condies para que se desenvolva umaespcie de mquina imensa, uma espcie de imenso ciclotron de produo desubjetividades mutantes.9.

    So pessoas que fizeram essa mutao capitalstica e que nem por isso estointeiramente engolfadas num processo de buraco negro em grande escala, como aUnio Sovitica.10

    Em matria de ndios, metropolitanos ou tupiniquins, os pases europeus somuito subdesenvolvidos. claro que sempre d para se reassegurar, dizendo que aHistria no linear e que se pode esperar rupturas brutais. Estou convencido disso.Sobretudo se vocs continuarem nesse ritmo em que esto engajados nesta espciede transformao do Brasil, talvez vocs acabem nos enviando o elevador dasrevolues moleculares.11

    Esses so apenas alguns exemplos da insistncia de Guattari nessa idia, aolongo de suas sete viagens ao Brasil. Quanto a Deleuze, no ter sido algo assim oque ele quis dizer com a intrigante frase de seu livro Nietzsche e a filosofia: Os

    lugares do pensamento so as zonas tropicais, freqentadas pelo homem tropical12?

    bvio que no se trata, aqui, de estabelecer um quadro classificatrio decartografias do desejo por regies geogrficas, nem de enaltecer os trpicos. Assubjetividades no Brasil, como em qualquer outro lugar, se constituem na tensoentre modos de vrios tipos. A propsito, quando aqui prevalesce o modoidentitrio, tanto sob a forma de identidades locais fixas quanto de identidadesglobalizadas flexveis, este tende a apresentar-se particularmente tosco eexacerbado. No primeiro caso, vemos por exemplo subjetividades aderirem sem amenor crtica representao de um suposto ser brasileiro, investindo-a com

    8 Oswald de Andrade, A marcha das utopias [1953], inA utopia antropofgica (cf. nota 3).9 Flix Guattari e Suely Rolnik, Micropoltica. Cartografias do desejo. Petrpolis, Vozes, 4a ed. 1996 [1986];pp. 310-311 (trecho de debate ocorrido em 1982).10 Idem, p.310.11 Idem, p.304 .12 Deleuze Gilles, Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro, Semeion, 1976 [1962]; p.91 (no original, p. 126).

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    impressionante fervor ufanista. Uma imagem marcante nesse sentido circula porocasio de disputas esportivas internacionais: a bandeira envolvendo por inteiro oscorpos de atletas e torcedores que, por um momento, transformam-se em purosemblemas de uma pretensa identidade nacional. No segundo caso, quando o modo

    identitrio assume a forma de identidades globalizadas flexveis, surpreendente afacilidade com que se mitifica qualquer figura que se apresenta de modominimamente sedutor; facilidade igualmente para reconfigurar-se atravs destaidentificao, na esperana de conquistar um reconhecimento social imediato(herana de um inconsciente colonial?). Um bom exemplo disso o fenmeno dastelenovelas, especialmente a novela das oito na rede Globo. Sua linguagemincorpora as mais avanadas tecnologias e sua temtica, as questes polticas,econmicas, sociais, comportamentais, etc. que agitam a vida nacional a cadamomento. O tratamento dado a essas questes sempre o mesmo: seu poderdisruptivo, envolto pelo glamour dos personagens, se esfumaa. Tais personagens seoferecem como atraentes figuras-padro para todos os gostos, participando da vidacotidiana de uma mdia de cinquenta milhes de brasileiros - a audincia chega aatingir setenta milhes, perto da metade da populao do pas - que os consomemcomo sua rao diria de identidade. Eles formam uma espcie de famlia-prtesecujo equilbrio e mesmice nada tem o poder de abalar. Verdadeiro laboratrio hightech de imagens prt--porter, idealizadas de acordo com cada nova situao domercado, as telenovelas brasileiras so exportadas com expressivo sucesso para mais

    de cem pases.Com efeito, o inconsciente maqunico-antropofgico no prerrogativa dos

    trpicos, e muito menos dos brasileiros: sendo um princpio imanente produo desubjetividade, ele prprio da espcie humana como um todo. No entanto, ele podeestar mais ou menos ativo nas subjetividades, e isso em muito depende doscontextos scios-culturais, do quanto tendem a favorecer ou inibir sua atividade.

    Hoje, na era da neo-liberalizao global do planeta, tal inconsciente pareceencontrar-se especialmente em baixa. diante dessa situao que ativ-lo torna-seuma prioridade da clnica, no s no Brasil. Prioridade que, alis, extrapola a esferada clnica propriamente dita: ativar o insconsciente maqunico-antropofgico seconstitui como fora de resistncia poltica regra geral da homogeneizao,engrenagem imprescindvel do sistema em que vivemos.

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    Resumo

    Inconsciente antropofgico

    A clnica lida com a subjetividade, seus modos de individuao, seusimpasses e paradas de processo, os quais se definem em contextos problemticossingulares. O curso visa circunscrever um modo de subjetivao em funcionamentono Brasil, chamado aqui de antropofgico, que ser problematizado em duasdirees. Em primeiro lugar, o fato de tal modo constituir-se como uma possvelresposta s questes que se colocam s subjetividades no contemporneo. Emsegundo lugar, a pertinncia de apreend-lo atravs da concepo de subjetividadeproposta por Gilles Deleuze e Flix Guattari, desenvolvida exatamente em funodas intensas mutaes que ocorrem neste mbito na atualidade. Sero discutidas asimplicaes tico-polticas das escolhas tericas que norteiam a escuta dopsicanalista e, consequentemente, a direo da cura.

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    Palestras de Suely RolnikIa Jornada de Psicologia da UFSM

    1) Toxicmanos de identidade: subjetividade em tempo de globalizao

    So problematizados aqui certos efeitos da globalizao e da inveno de novas tecnologias -especialmente as eletrnicas - nos processos de subjetivao. Destacam-se entre tais efeitos: a pulverizaodas identidades locais relativamente estveis, acompanhada de uma tendncia a conformar as subjetividadesassim desparametradas segundo identidades globalizadas flexveis. Estas so figuras prt--porter que seformam e se desfazem ao sabor das novas rbitas do mercado. Para alm da aceitao a-crtica de taisidentidades globalizadas flexveis, diversas formas de resistncia se esboam, que vo da apologia dapulverizao (o fascnio niilista pelo caos) defesa de identidades locais fixas (as chamadas minorias).

    Prope-se a idia de que todas estas formas de resistncia tem em comum a manuteno de umregime identitrio na constituio das subjetividades. Isto as coloca em estado de falta permanente e promoveuma verdadeira toxicomania de identidade, sustentada e produzida por um variadssimo mercado de drogas.Romper com tal regime identitrio seria uma condio essencial para que possa afirmar-se o imenso potencialde criao na existncia individual e coletiva, de que portadora a atualidade.

    2) Novas figuras do caos: mutaes da subjetividade contempornea

    As subjetividades encontram-se hoje atravessadas por uma infinidade cambiante de fluxosheterogneos, tomadas por intensidades as mais variadas. Nessas condies, revela-se sua natureza de sistemacomplexo, heterogentico e distante do equilbrio. Mais do que subjetividades, o que temos so processos deindividuao ou subjetivao - complexa operao de agenciamento de intensidades, que no esgota taisintensidades e seu potencial de gerar outros devires. O indivduo est sempre implicado no exerccio de suaindividuao, no contexto de um sistema metaestvel de singularidades pr-individuais e impessoais. Faz-senecessrio constituir uma teoria da subjetividade que comporte tais singularidades e sua potncia detransfigurao, de modo a apreend-la em sua dupla face: sedimentao estrutural e agitao catica.Impossvel faz-lo sem enfrentar o caos na prpria subjetividade e acolher os mltiplos e estranhos eus que ase perfilam.

    3) Inconsciente antropofgico

    A clnica lida com a subjetividade, seus modos de individuao, seus impasses e paradas deprocesso, os quais se definem em contextos problemticos singulares. O curso visa circunscrever um modo desubjetivao em funcionamento no Brasil, chamado aqui de antropofgico, que ser problematizado emduas direes. Em primeiro lugar, o fato de tal modo constituir-se como uma possvel resposta s questesque se colocam s subjetividades no contemporneo. Em segundo lugar, a pertinncia de apreend-lo atravsda concepo de subjetividade proposta por Gilles Deleuze e Flix Guattari, desenvolvida exatamente emfuno das intensas mutaes que esto ocorrendo neste mbito na atualidade. Sero discutidas asimplicaes tico-polticas das escolhas tericas que norteiam a escuta do psicanalista e, consequentemente, adireo da cura.

    Mini bio-bibliografia

    Suely Rolnik psicanalista, professora universitria, ensasta e tradutora. Nascida no Brasil, em1948, filha de imigrantes judeus poloneses, participou intensamente do movimento contra-cultural dos anos60, o que a levou a uma priso em 1970 e a um posterior exlio voluntrio em Paris, onde viveu de 1970 a1979. Em sua permanncia na Frana, licenciou-se primeiramente em filosofia e sociologia na entoefervescente Universidade de Vincennes, tendo sido frequentadora assdua dos seminrios de Gilles Deleuze,Michel Foucault, Pierre Clastres, Roland Barthes e outros. Mais tarde, a partir de um trabalho desenvolvidona clnica de La Borde, enveredou para a psicologia e a psicanlise, formando-se pela Universidade de ParisVII, cujo curso de psicologia foi criado aps maio de 68, por um grupo de psicanalistas, entre os quais JeanLaplanche e Pierre Fdida. Paralelamente sua formao psicanaltica, estve sempre ligada obra de GillesDeleuze e Flix Guattari, assim como ao universo de pensamento onde situam-se tais autores.

  • 8/7/2019 Toxicoidentid[1]

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    Como psicanalista, trabalhou com psicticos no s em La Borde, mas tambm em outrasinstituies na Frana (1973-1978). Desde 1980, clinica em consultrio particular em So Paulo. uma dasresponsveis pela introduo, nas prticas clnicas no Brasil, da obra de Gilles Deleuze e Flix Guattari, comquem publicou, em 1986, o livro Micropoltica. Cartografias do desejo, que est indo para a quinta edio(4a edio em 1996). Seu trabalho est na origem de um movimento das prticas clnicas no Brasil marcadopelo pensamento destes dois autores. Tal movimento parece no ter se desenvolvido com igual intensidadeem nenhum outro pas.

    Como professora, Titular da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, onde ministraseminrios e orienta trabalhos de pesquisa e teses (22 dissertaes e 8 teses defendidas), no quadro do Ncleode Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Ps-Graduao de Psicologia Clnica, do qual a atualcoordenadora. Este Ncleo, de perfil inteiramente transdisciplinar, constitui uma das principais referncias noBrasil para a investigao acerca da subjetividade contempornea, bem como de uma clnica que leva emconta tais dimenses. Participa igualmente, ao lado de especialistas latino-americanos de diferentes reas, deuma pesquisa acerca dos modos de subjetivao especficos dos pases que integram o Mercosul, com o apoiodo Programa Most da Unesco. Tem feito inmeras conferncias e participado de vrios congressos e mesas-redondas, no Brasil e no exterior, entre os quais foi a conferencista convidada do Brasil para o ForumInternacional do Pensamento Contemporneo: 100 Tage 100 gste; 100 Days - 100 ghests, na exposiointernacional Documenta X. Kassel, 06 e 07 de julho de 1997.

    Como ensasta, alm dos temas j mencionados, dedica-se investigao dos modos de subjetivaono Brasil (particularmente de um modo que ela identifica como antropofgico, fazendo referncia aoMovimento Antropofgico, vertente mais original do modernismo brasileiro). Dedica-se igualmente investigao da arte contempornea brasileira (j nos anos 70, defendeu em Paris VII uma tese sobre LygiaClark).

    Publicou inmeros ensaios no Brasil e no exterior e os livros Inconsciente Antropofgico. Ensaiossobre as subjetividades contemporneas (1997, prelo) e Cartografia Sentimental. Transformaescontemporneas do desejo (1989), alm da obra citada, escrita em co-autoria com Flix Guattari. Organizou acoletnea de textos de Flix Guattari, Pulsaes polticas do desejo. Revoluo Molecular (1981; 3

    a ed.1987). Editou, com Peter Pl Pelbart, o no especial Gilles Deleuze dos Cadernos de Subjetividade (1996),que integra artigos publicados e inditos, brasileiros e estrangeiros, acerca do filsofo. Traduziu, entre outros,Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrnie (Vol. III e IV), de Gilles Deleuze e Flix Guattari. Dirige umacoleo da editora Escuta (5 ttulos publicados) e membro da comisso editorial de vrias revistasuniversitrias. Escreveu prefcios e apresentaes de diversos livros; concedeu inmeras entrevistas para aimprensa, rdio e televiso no Brasil e no exterior.

    Mini bio-bibliografia resumida

    Suely Rolnik psicanalista e Professora Titular da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo(coordenadora do Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Ps Graduao de Psicologia Clnica).Autora de Cartografia Sentimental. Transformaes contemporneas do desejo (1989), de InconscienteAntropofgico. Ensaios sobre as subjetividades contemporneas (Estao Liberdade, 1997, prelo) e, em co-autoria com Flix Guattari, de Micropoltica. Cartografias do desejo (1986, 4a ed. 1996, esgotada);organizadora da coletnea de Guattari, Pulsaes polticas do desejo. Revoluo Molecular (1981, 3a ed.1987, esgotada); organizadora, com Peter P.Pelbart, do no especial Gilles Deleuze dos Cadernos deSubjetividade (1996). Tradutora, entre outros, de Mille Plateaux (Vol. III e IV), de Deleuze e Guattari (Ed.34. 1997).