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Trabalho artes decorativas
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Desde os finais do século XV que as encomendas de objectos decorativos,
nomeadamente de painéis azulejares, eram feitos por parte de ordens religiosas como
os franciscanos, beneditos, carmelitas, entre outros, para decorar os seus edifícios
religiosos, sobretudo os espaços interiores. Dentre essas encomendas, a de azulejos
para aplicação nas frentes de mesas de altar se tornou um elemento decorativo
recorrente. O frontal de azulejo tripartido tema deste ensaio é datado de 1650, e é
proveniente do Convento Carmelita, da região de Coimbra. No entanto, foi produzido
em Lisboa, centro da produção azulejar, e hoje a peça encontra-se no Museu Nacional
do Azulejo.
Tradicionalmente as mesas de altar eram decoradas com têxteis bordados ou
lavrados, e normalmente, a frente do altar era coberta por um tecido de onde podiam
pender sebastos para as zonas laterais, enquanto que o tampo era revestido por uma
toalha que pendia para a frente e formava uma sanefa. Estes frontais azulejares
substituem os têxteis, e remetem mimeticamente a eles. Para melhor compreender
este uso do azulejo é importante ter em conta que este elemento decorativo é
identitário da cultura portuguesa. Segundo tal ator, “esta arte se constituiu como
suporte privilegiado do registo dos imaginários, da difusão de mensagens e da
renovação do gosto.”1. Desde sua inserção em Portugal, a grande capacidade de
assimilar elementos artísticos originários noutras culturas foi outra característica dos
azulejos, permitindo compreender a importância do exótico na constituição de uma
arte portuguesa. Produzidos em Lisboa sobretudo a partir da segunda metade do
século XVII, os frontais de altar com motivos ornamentais de carácter exótico e
oriental, como o aqui estudado, são um dos resultados da confluências de diferentes
culturas causadas pela expansão marítima lusitana. E permite perceber a forma como
todos os elementos vindos de culturas extra europeias eram transformados por uma
sensibilidade própria, portuguesa2.
Esta transformação e hibridização de culturas pode ser observada tanto
iconograficamente como decorativamente. Como apontado anteriormente, estes
revestimentos faziam referência aos têxteis, com um carácter ilusório que pretende
1 Citação!!!2 Um Gosto Português. P.9.
dar a ideia de franjas de um tecido que cai sobre o frontal fazendo uso de cores como
o azul e branco sobre o amarelo, passando a ideia de ser fio de ouro laminado nas
referidas franjas, bem como outros ornamentos próprios dos têxteis. Estes
ornamentos remetem a tecidos europeus, enquanto que a estampa remete a motivos
orientais, esta união vem ao encontro da assimilação de elementos decorativos de
diferentes horizontes geográficos e culturais. Estas influências são reelaboradas e
adaptadas a um contexto português, no caso da peça estudada isso destaca-se pela
criação de secções compartimentadas. Esta decoração geometricamente emoldurada
é resultado de um gosto português apontado como progressivamente dominante no
contexto da expansão marítima.3
Tradicionalmente, atribuiram-se aos motivos decorativos destes frontais uma
inspiração nos denominados Panos da Índia ou Chitas. Porém, a autora Maria João
Ferreira argumenta a necessidade de se expandir esses horizontes, destacando a
produção têxtil chinesa como uma influência de marcante impacto. No frontal azulejar
deste trabalho, a associação ao horizonte chinês é evidente. A profusão de ramagens e
flores exóticas remetem a peónias e camélias que em conjunto com a fauna e o
destaque dado a fénix, formam uma composição típica dos têxteis chineses.
Acrescenta-se a isso o pagode do primeiro enquadramento à esquerda, elemento que
pode ser entendido como conclusivo na necessidade de reconhecer a influência do
horizonte chinês apontado pela a autora. É importante ressaltar que ao acrescentar os
têxteis chineses no repertório destes altares, não se exclui a influência dos panos das
índias. Esta cultura visual do exótico, além de sempre marcada pela apropriação e
adaptação ao contexto europeu - e suas possibilidades imaginativas e fantásticas em
relação a este “outro” -, também foi caracterizada pelo hibridismo e o ecletismo. Ou
seja, ao imaginar este exótico, a cultura européia fundiu diferentes repertórios do
contexto asiático. Um cenário que com as novas relações comerciais causadas, em
especial, pelos portugueses, já encontrava-se em um processo de aproximação e
mútua apropriação de referentes.
Segundo Maria João Ferreira, a exposição dessas peças nas igrejas permitem a
“veiculação de um discuso político-religioso que verdadeiramente promove e glorifica
3 Curvelo, Alexandra.
a empresa de Portugal”4. Um elogio tanto à Igreja, quanto a Coroa, nas indissociáveis
intenções de missionação, comércio e império. Porém a intenção simbólica desses
frontais ultrapassa este discurso institucional, tendo ao lado a finalidade de suporte
visual do discurso oral religioso. Assim, a fauna e a flora representadas na obra são
simplificadas e não se pretendem mimetizar a realidade, além de remeter a um mundo
exótico, são símbolos que reforçam as leituras da eucaristia. No caso do frontal de
altar tripartido, a fénix na parte central do painel é associada a ressureição, assim
como a borboleta em seu bico. Resultado de uma apropriação e recontextualização de
simbologias estrangeiras, mas que são cuidadosamente transformadas dentro do
universo cristão.
João Pedro Monteiro é um autor que sugere que os frontais de altar
pretendiam passar a imagem do que poderiam ser os Jardins do Paraíso5. A fauna e a
flora estampadas em uma harmonia rica em detalhes transmitiriam sensorialmente a
idéia do espaço onírico relatado no Antigo Testamento. O altar deste estudo apresenta
a particularidade de conter a representação de um elemento humano, o já
mencionado pagode. A presença desta construção quase em segundo plano, um pouco
dissimulada por entre as plantas e os animais, não interfere na representação deste
mundo ideal e maravilhoso. O pagode, apesar de uma referência à estes sítios
distantes, não invoca a China em si, enquanto espaço no mundo dos homens. Parece,
por outro lado, referir-se ao imaginário, este fator muito importante na construção do
exótico. Desta forma, mesmo com o elemento humano, este frontal de altar tripartido
é capaz de criar um espaço onírico, de um imaginário exótico que configura um Jardim
do Éden. É um verdadeiro resultado da confluência de diferentes povos causadas por
estes circuitos, que mais do que trocar produtos, acarretaram em uma verdadeira
troca e hibridismo cultural. Estes sempre pautados pela necessidade de se tornarem
inteligíveis em seus novos contextos.
4 Maria João Ferreira5 Maria João Ferreira. P.92.