Tradição X Inovação: As tentativas de mudança no ensino de gramática de uma professora da rede pública estadual paulista. - Ana Sílvia Moço Aparício

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    TRADIO X INOVAO: AS TENTATIVAS DE MUDANA NOENSINO DE GRAMTICA DE UMA PROFESSORA DA REDE PBLICA

    ESTADUAL PAULISTA

    Ana Slvia Moo APARCIOIEL/UNICAMP

    Resumo: Neste artigo, descrevemos e analisamos como a inovao se produz em umaaula de gramtica ministrada por uma professora que est tentando inovar sua prtica deensino. Nessa aula, a professora tematiza as variaes de sentido estabelecidas pelapreposio de, sem distinguir os nveis de interpretao semntica levados em conta nasatividades desenvolvidas, mas tambm sem se prender s diferentes formas de

    classificao desses sentidos, oriundas de conflitos terico-metodolgicos existentesno somente entre a gramtica e a lingstica, mas entre vertentes da prpria lingstica.Palavras-chaves: inovao; ensino; gramtica.

    Introduo

    A renovao do ensino de lngua materna na sala de aula, mais especificamentedo ensino de gramtica, tem sido foco de nossas preocupaes desde o final dos anos80, como professora em curso de Licenciatura em Letras e em cursos de capacitaodocente, e, mais recentemente, como pesquisadora da rea de ensino aprendizagem emlngua materna no campo da Lingstica Aplicada.

    Neste artigo, procuramos descrever e analisar como a inovao se produz na salade aula, considerando-se uma aula ministrada no ensino fundamental II, em uma escolapblica estadual do interior paulista, por uma professora empenhada em inovar suaprtica pedaggica de ensino de gramtica.

    Trata-se de uma pesquisa caracterizada como estudo de caso de naturezaqualitativo-interpretativista, no qual, para a coleta, gerao e tratamento dos dados,utilizamos diversos procedimentos: gravao em udio, anotaes de campo,entrevistas, questionrios, relatos, documentos locais.

    Nesta pesquisa, consideramos a professora informante um agente scio-

    institucional constitudo por caractersticas especficas e que atua em uma situaotambm especfica. uma professora de lngua portuguesa, licenciada em Letras, em1995, em uma instituio particular do interior do estado de So Paulo. Aps aconcluso da licenciatura, ela continuou freqentando cursos de capacitao na rea deensino de lngua materna. Na poca da coleta dos dados (2003), essa professoralecionava no ensino fundamental II em uma escola pblica estadual da regio noroestedo estado de So Paulo, e permitiu a gravao de sua aula, informada de que esta seriaobjeto de anlise de uma pesquisa acadmica. Nessa poca, em que contava comaproximadamente sete anos de experincia em sala de aula, afirmava que estavatentando inovar sua prtica de ensino de gramtica e que organizava suas prprias aulasa partir da seleo de diversos materiais didticos e no-didticos, ou seja, no seguia

    um manual especfico. Segundo depoimentos dessa professora, a Proposta Curricular

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    para o Ensino de Lngua Portuguesa no 1o. Grau do Estado de So Paulo (doravantePCLP) e os Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa para 3 e 4 Ciclos(doravante PCNs) eram os documentos oficiais considerados para a elaborao de seusPlanos de Ensino.

    A aula analisada neste trabalho foi ministrada por essa professora em situaesnaturalistas, em uma 8a. srie da rede pblica estadual, no primeiro semestre de 2003. uma aula de aproximadamente 40 minutos de durao, e que foge ao esquematradicional de aula de gramtica, isto , no uma aula em que o elemento gramatical aser estudado introduzido por meio de definies e conceitos prontos, para posterioridentificao e classificao pelo aluno, conforme j descrito pela literatura (Neves,1990; Batista, 1997; Aparcio, 1999). Na verdade, uma aula em que a professora buscainovar sua prtica a partir de uma tentativa de expanso/ampliao de umacategorizao da gramtica tradicional, acrescentando elementos de anlise semntica.

    Cabe ressaltar que a dimenso semntica de uma categoria ou funo gramatical j considerada pela Gramtica Tradicional, mas, na maioria das vezes, as relaes

    entre os aspectos formal e semntico dos elementos gramaticais no so explicitados etampouco confrontados ou correlacionados. Um exemplo bastante citado por lingistaspreocupados com a inovao do ensino de gramtica na escola o da confuso decritrios utilizados pela Gramtica Tradicional na elaborao de definies de sujeito.Uma das definies correntes, por exemplo, identifica a funo gramatical de sujeitocom a funo semntica de agente, concebendo o sujeito como o elemento que pratica aao expressa por um verbo na forma ativa; outra definio identifica a funogramatical do sujeito com a funo pragmtica de tpico, concebendo o sujeito como oelemento de que se fala na orao (cf. Perini, 1985, 1996; Franchi, 1987).

    Alm disso, no que se refere considerao da dimenso semntica doselementos gramaticais, um outro problema apresentado pela Gramtica Tradicional,salientado por Perini (1996), o da no distino entre qual poro do significado oriunda da interpretao das estruturas e dos itens lxicos e qual poro provm doconhecimento que o falante tem de fatores extralingsticos, tais como: a situao decomunicao, as relaes existentes entre os interlocutores, o conhecimento prvio queestes tm do assunto, entre outros.

    Com base em crticas a essas e a outras deficincias da GramticaTradicional, e com vistas a um ensino de lngua que propicie o desenvolvimento dacompetncia de leitura e escrita do aluno (Franchi, 1987; Geraldi, 1984; Travaglia,1996) ou de habilidades de raciocnio, de observao, de formulao e testagem dehipteses (Perini, 1985, 1996; Travaglia, 1996), muitas propostas foram difundidas por

    lingistas empenhados na divulgao de conhecimentos sobre a lngua e sobre o ensinoda lngua junto aos professores de lngua portuguesa. Nesse sentido, so particularmenteimportantes as contribuies que orientaram os processos de elaborao eimplementao da PCLP, na dcada de 80 e na primeira metade da dcada de 90, e dosPCNs, a partir da segunda metade da dcada de 90. Essas contribuies compem umeixo do ensino da lngua que inclui aspectos relacionados ao ensino de gramtica,comumente chamado de eixo da reflexo sobre a linguagem ou da prtica de anliselingstica.

    So, pois, essas contribuies que, por via direta (textos cientficos ou dedivulgao produzidos por especialistas da rea) ou indireta (documentos oficiais), tmorientado os professores empenhados em transformar sua prtica de ensino de

    gramtica, como o caso da professora informante de nossa pesquisa.

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    Essa professora como veremos na anlise continua trabalhando comcategorias da Gramtica Tradicional, mas a inovao se produz, sobretudo, pelaintroduo de aspectos novos de descrio e de tratamento didtico do objeto de ensino,sugeridos principalmente por estudos de Perini (1985, 1996, 1997), que foram

    incorporados, juntamente com os de outros lingistas (como Franchi, 1987; Geraldi,1984), explicitamente pela PCLP (cf. Aparcio, 1999) e implicitamente pelos PCNs.Para descrever e analisar o modo como a inovao se produz na aula em questo,

    utilizamos como referenciais tericos estudos de Schneuwly (2000, 2005), que visam construo de uma metodologia de anlise dos objetos efetivamente ensinados em aulasde francs como lngua materna. Para a descrio da organizao global da aula sobanlise, bem como para a delimitao das unidades de anlise dessa aula, utilizamosestudos de Matncio (2001) sobre as unidades constituintes de uma aula.

    Na seo a seguir, esclarecemos os pressupostos terico-metodolgicos queorientam nossa anlise. Na seo subseqente, apresentamos a organizao global daaula a ser analisada e, na ltima seo, analisamos o modo de produo da inovao

    adotado por nossa professora informante na aula em questo.

    1. Enfoque terico-metodolgico

    Os estudos de Schneuwly (2000, 2005) elegem como unidade de anlise osobjetos efetivamente ensinados na aula, com ateno particular ao trabalho do professorno processo de construo desses objetos. Um objeto efetivamente ensinado, para esseautor, o resultado de um processo de transposio didtica interna Chevallard (1991),ou seja, do processo pelos quais os objetos a ensinar/objetos de ensino (contedos deensino) transformam-se em objetos efetivamente ensinados em sala de aula. Um dosaspectos focalizados por Schneuwly (2000) na descrio desse processo, e o que maisnos interessa no presente trabalho, o papel dos instrumentos (outils) mobilizados peloprofessor.

    Fundamentado na concepo marxista de trabalho e na concepo vigotskiana deeducao e de ensino, Schneuwly (2000) defende que ensinar consiste em transformaros modos de pensar, falar e agir dos alunos por meio de instrumentos semiticos. Nessesentido, o autor compreende o trabalho do professor como um trabalho que implica umadupla semiotizao do objeto de ensino: de um lado, ele torna-se presente por meio dastcnicas de ensino, materializado sob formas diversas (objetos, textos, folhas,exerccios, etc) como objeto a ser ensinado, a ser semiotizado, a partir do qual novas

    significaes podem e devem ser elaboradas pelos alunos; de outro lado, ele focalizado como objeto sobre o qual aquele que tem a inteno de ensinar guia/orienta aateno do aluno, apontando/mostrando as dimenses essenciais desse objeto, por meiode procedimentos semiticos diversos. Esses dois processos tornar presente o objeto aensinar e apontar/mostrar as dimenses essenciais desse objeto , assinala Schneuwly(op.cit.), so indissociveis e se definem mutuamente. Nesse sentido, Schneuwly(op.cit.) define instrumentos semiticos como aqueles que permitem essa duplasemiotizao do objeto de ensino, ou seja, os que asseguram o encontro/contato doaluno com o objeto a ensinar e os que asseguram a orientao/direo da ateno doaluno. Os primeiros so, sobretudo, de ordem material (textos, exerccios, esquemas,objetos reais e muitas outras coisas), os segundos so, sobretudo, de ordem discursiva.

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    Esses dois processos e os instrumentos que os constituem, de acordo comSchneuwly (2005), so especficos de cada disciplina, dado que pressupem a existnciade uma tradio de prticas profissionais historicamente constitudas, as quais oprofessor re-cria, re-inventa em cada aula, a cada momento em que um objeto a ensinar

    torna-se um objeto efetivamente ensinado., pois, com base nesses pressupostos que, para descrever e analisar o modo detraduo da inovao pela nossa professora informante em sua aula, focalizaremos, noprocesso de construo dos objetos ensinados, os instrumentos semiticos materiais(textos, exerccios, etc.) e discursivos (definies, explicaes, exposies, instrues),seus usos, suas funes e funcionamentos na aula selecionada para anlise.

    2. A organizao global da aula a ser analisada

    Com base em categorias conversacionais e textuais, Matncio (2001) procura

    descrever a organizao e o funcionamento das diferentes unidades que constituem umaaula, explicitando tanto as relaes de articulao e hierarquizao dessas unidadesquanto de suas especificidades e funes. Desses estudos, interessam-nos as noes deseqncias didtico-discursivas, atividades e tarefas didticas, para a descrio daorganizao global da aula a ser analisada, bem como para a delimitao das unidadesde anlise dessa aula. Segundo Matncio (op. cit.), a atividade didtica uma operaode ensino/aprendizagem complexa que engloba as tarefas, e estas tm como objetivo

    justamente realizar a atividade. As seqncias didtico-discursivas, para a autora, sounidades da aula cujos limites so determinados pela coerncia relativa aos focosdiscursivos e ao desenvolvimento das tarefas que constituem a(s) atividade(s) proposta(s). Nesse sentido, o primeiro procedimento para a anlise de uma aula segmentar asseqncias didtico-discursivas, identificando as atividades e as tarefas que asconstituem.

    Com base nessa proposta, apresentamos, no quadro a seguir, a organizaoglobal da aula que estamos considerando para anlise, evidenciando a disposio dasatividades e tarefas, e a localizao das seqncias didtico-discursivas configuradas emcada atividade realizada. Ressaltamos que, para a anlise, focalizaremos as seqncias Ie II.

    Quadro I: Esquematizao da organizao global da aulaSeqncias Atividades Tarefas

    - Leitura em voz alta do texto por um

    aluno;

    - Identificao da moral da histria dotexto lido;

    I

    1- Leitura e discusso do texto deMrio Perini (1997) As gravatas deMrio Quintana, que versa sobre aimportncia de informaesextralingsticas para a identificao dediferentes sentidos da preposio de emenunciados que apresentam a mesmaestrutura sinttica.

    - Anlise e discusso de exemplostrazidos pelo texto lido;

    - Leitura pela professora do enunciadoda questo;

    II

    2- Resoluo, pelos alunos, juntamentecom a professora, de um teste extradode exame vestibular (v. anexo 1), quesolicita a identificao da relao desentido nocional estabelecida pelapreposio de no fragmento de texto de

    - Observao da relao nocionalexpressa pela preposio de no exemploapresentado no enunciado da questo;

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    uma das alternativas do exerccio. - Identificao das relaes de sentidoexpressas pela preposio de nosfragmentos de cada uma dasalternativas, por meio da estratgia deexcluso das alternativas incorretas para

    se chegar correta;- Leitura pela professora do enunciadoda questo;

    III

    3- Resoluo, somente pelos alunos, deum outro teste extrado de examevestibular (v. anexo 1), que solicita aidentificao da relao de sentido decausa expressa pela preposio de emum fragmento de texto literrio.

    - Identificao apenas da alternativacorreta.

    Do ponto de vista da organizao da interao, como veremos na anlise aseguir, a regulao e organizao da aula so gerenciadas pela professora e seguem,geralmente, o padro de interao do tipo IRA (Mehan, 1979): iniciao do professor-resposta do aluno-avaliao do professor. Desse modo, as intervenes dos alunos, em

    sua maioria, so solicitadas pela professora.

    3. Tentativas de mudana no ensino de gramtica em sala de aula

    Conforme j assinalamos na Introduo, nossa professora informante buscainovar sua prtica de ensino de gramtica tentando expandir/ampliar uma categorizaoda Gramtica Tradicional, acrescentando elementos de anlise semntica, influenciada,sobretudo, por estudos de Perini (1985, 1996, 1997), que, dentre os de outros lingistas,orientaram as propostas de ensino de gramtica, principalmente, as da PCLP. Taisestudos propem uma nova gramtica que seja sistemtica, teoricamente consistente elivre de contradies. (Perini, 1985:6). Em sua Gramtica descritiva do portugus,publicada em 1996, direcionada a professores do ensino fundamental II e mdio, e aalunos e professores dos cursos de Letras, Perini defende que uma gramtica bemsucedida deve ser formada por um conjunto de instrues sobre como construir asformas da lngua (palavras, sintagmas, oraes), mais um conjunto de regras semnticasque atribuem a essas formas determinados significados. Tendo isso em vista, Perini(1996) descreve, em um primeiro momento, os aspectos formais e os aspectossemnticos separadamente, para depois descrever a relao entre forma e significado.Essa separao, segundo o autor, fundamental, porque a relao que existe entre asformas gramaticais e o significado que elas veiculam extremamente complexa e

    indireta. Nos termos de Perini (1996:38), a explicitao dessa relao um dosobjetivos primordiais da anlise lingstica e por isso mesmo essencial descrever osdois aspectos separadamente, para depois coloc-los em confronto.

    Ao descrever, ento, aspectos sintticos e semnticos da lngua, Perini (op.cit.)ressalta que a sintaxe tem como nica funo definir quais so as frases bem formadasna lngua, tratando-se apenas de um conjunto de instrues sobre o modo de construirfrases em portugus, deixando de lado a dimenso textual. J a semntica, conformeesse autor, alm de ter tambm a funo de definir os modos de construir frases quetenham sentido, um dos pontos de contato com o mundo exterior. Assim, de acordocom Perini (op. cit.), como se o processo de interpretao semntica compreendesseduas etapas: primeiro h um sistema que extrai do enunciado aquilo que possvel

    depreender a partir somente da estrutura formal (morfossinttica), cujo resultado o que

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    se pode chamar de significado literal; em um segundo momento, essa representaosemntica se associa a uma srie de outros fatores, ligados ao contexto de comunicaoe ao conhecimento prvio existente na memria do falante e do ouvinte, cujo resultadopode ser chamado de significado final. Na verdade, Perini (op. cit.) trata apenas do

    significado literal, mas ressalta que nem sempre os enunciados podem sercompreendidos literalmente, uma vez que h fatores extralingsticos que devem serlevados em conta.

    , pois, essa idia que embasa o texto de Perini (1997) denominado As gravatasde Mrio Quintana (no basta saber uma lngua para entend-la), e utilizado pelaprofessora, na primeira seqncia didtico-discursiva da aula, como instrumentosemitico material (Schneuwly, 2000) mediador da construo do objeto principal deensino: diferentes relaes de sentido estabelecidas pela preposio de. Esse texto foipublicado no livro Sofrendo a Gramtica, volume composto por vrios ensaios dePerini (op.cit.). Segundo o prprio autor, trata-se de um livro que no tem pretensoacadmica, o que o torna acessvel a leitores em geral, interessados em questes de

    linguagem. Os ensaios que compem esse volume fazem questionamentos sobreconceitos cristalizados da gramtica tradicional, evidenciando as fragilidades dessadisciplina e sugerindo uma postura mais reflexiva para lidar com a gramtica doPortugus.

    Em As gravatas de Mrio Quintana, para demonstrar que o significado de umafrase no simples funo de seus elementos constitutivos, mas depende ainda deinformao extralingstica, o autor apresenta como exemplos vrios sintagmas, com amesma estrutura, em que aparece a preposio de. Ou seja, por meio de algunsexemplos como As gravatas de Mrio Quintana, As gravatas de Pierre Cardin e Os

    poemas de Mrio Quintana, o autor evidencia que, para identificar a relao de sentidoexpressa pela preposio de nesses trs enunciados, no basta apoiar-se na estruturamorfossinttica: so necessrias informaes gerais sobre o mundo. Segundo o autor, nosso conhecimento de mundo que resolve a questo, o que sabemos sobre MrioQuintana e Pierre Cardin e sobre os objetos (gravatas e poemas) que nos permitereconhecer se a relao de sentido expressa pela preposio de de posse ou autoria.Trazendo outros exemplos Roupa de Maria, Roupa de linho e Roupa de palhao ,mas sem indicar o sentido expresso pela preposio de nesses enunciados, Periniressalta que a comunicao lingstica precisa apoiar-se, a todo instante, noconhecimento de uma infinidade de coisas no-lingsticas (...) coisas como PierreCardin um estilista de moda, palhao um artista que se veste de uma maneiraespecial para fazer graa, e assim por diante. (Perini, 1997:61).

    Vejamos, na primeira seqncia da aula transcrita a seguir, como esseinstrumento semitico material (texto de Perini) funciona na mediao da construo doobjeto a ser ensinado:

    Seqncia 11- leitura e discusso do texto As gravatas de Mrio Quintana

    1 Adotamos as seguintes convenes de transcrio:P: para nos referirmos fala do professor;As: para nos referirmos s mesmas falas, ao mesmo tempo, de vrios alunos;A1, A2, A3,...: para nos referirmos fala dos diferentes alunos que participam da interao;(( )): comentrios do analista;...: pausa nos fluxos de fala;

    letra maiscula: entonao enftica;hfen entre slabas: fala pausada, silabao;

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    1-P: ((a professora distribui para a classe parte de um texto de Mrio Perini, denominado As Gravatas de2-Mrio Quintana, e pede a um aluno pra fazer a leitura em voz alta; aps a leitura do aluno, a professora3-inicia a discusso)) qual que afinal a moral da histria que ele ((o autor do texto lido)) est tentando4-passar pra gente?5-A1: o conhecimento que precisamos ter pra entender as coisas

    6-P: que pra conhecer e entender at um aspecto gramatical preciso antes de tudo tambm ter7-conhecimento de?8-A2:gramtica9-P: MUN-DO... mundo...ento porque que ele falou o que que sintagma?...o sintagma que ele est10-tentando falar a estrutura sinttica...ento veja bem n?...ento eu tenho um nome a mais um de11-n? e mais outro nome...ento se eu pensar...as gravatas DE Mrio Quintana...as gravatas DE Pierre12-Cardin...se a gente for pensar em estrutura sinttica no a mesma coisa?13-As: :::14-P: aparentemente a estrutura a mesma...mas a preposio est indicando a mesma coisa?... entre15-um elemento e outro?16-As: no17-P: no...entre um elemento e outro no...quando eu digo...agora como que eu vou saber que no 18-a mesma coisa?...

    19-As: ((vrios alunos falam ao mesmo tempo e a fala fica incompreensvel))20-P: quando eu sei que Mrio Quintana um escritor n?...ento se eu disser as gravatas de Mrio21-Quintana s pode ser as que ele usa...no ?...quer dizer as gravatas que ele possui...e quando eu22-digo as gravatas de Pierre Cardin? eu s posso no mnimo pensar duas coisas...as gravatas que tm o23-nome dele...que ele um estilista...que ele desenhou...que tm a marca dele...inclusive pode ser at as24-que ele usa tambm...

    25-A2: que ele usava26-P: ((a professora ri)) que ele usou...que ele usava n? ((os alunos fazem comentrios ao mesmo tempo27-e a professora continua a explicao)) ento...quer dizer...ele t tentando... interessante isso que ele28-t tentando mostrar que no porque a estrutura sinttica a mesma que o sentido vai ser o29mesmo...n?...eu preciso saber...ter o conhecimento de mundo...e o mesmo exemplo ele d com a30roupa...roupas de Maria...n? a roupa de Maria...e a roupa o qu?...

    31-As: de linho32-P: roupa de linho...roupa de palhao e roupa de Maria...n?...so diferentes...se a gente pensar no33-...a quer dizer qual o sentido que a preposio de est estabelecendo...qual o sentido desse34-de?...qual a importncia desse de?... estabelecer uma relao entre possuidor e coisa35-possuda...no ?...e saber quem o possuidor e a coisa possuda no ?...ou ento de origem de...que36- feita por...no a idia de que possui mas que feita por...ento gente...so essas coisinhas que so37-interessantes...

    O texto de Perini, utilizado na mediao da construo do objeto de ensino naseqncia acima, um texto de divulgao de conhecimentos lingsticos quecomumente no circula na sala de aula do ensino fundamental. O modo como esse texto

    utilizado na aula tambm no tpico de uma aula tradicional de gramtica. A leituraem voz alta pelo aluno e a pergunta inicial da professora (qual que afinal a moral dahistria que ele est tentando passar pra gente?) so instrumentos semiticosdiscursivos (Schneuwly, 2000) tpicos de aula de leitura e interpretao de textos que aprofessora utiliza, nessa aula, para tornar presente o objeto a ensinar. A tarefa solicitadapela professora a partir da pergunta inicial corresponde a uma tpica estratgia de leituraque visa compreenso geral do texto.

    Desse modo, entendemos que o conhecimento de mundo, ao ser considerado pelaprofessora como sendo a moral da histria, quando ela confirma a resposta de A1(linhas 5-9) e corrige a resposta de A2, refere-se a um outro nvel de interpretao

    ::: : prolongamento de vogal ou consoante;/.../: passagem da transcrio omitida.

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    semntica que deve ser observado pelos alunos na atribuio de sentidos preposiode, nvel esse que requer no apenas o conhecimento lingstico, mas tambm oconhecimento de mundo ou conhecimento enciclopdico. Segundo Koch (1997, combase em Heinemann & Viehweger), o conhecimento lingstico compreende o

    conhecimento gramatical e o lexical, remete s regras da lngua e aos sentidosregistrados em dicionrio; o conhecimento enciclopdico ou conhecimento de mundo aquele que se encontra armazenado na memria de cada indivduo, de acordo com oembasamento cultural de cada um, com os conhecimentos que vai acumulando por meiode experincias, vivncias e aprendizagens. Nesse sentido, o que a professora pretende que os alunos reconheam a importncia do conhecimento de mundo quando o sentidoque possvel depreender a partir somente da estrutura morfossinttica (que requereriaapenas o conhecimento lingstico) no suficiente para atribuir o sentido adequado preposio de.

    Esse segundo nvel de interpretao focalizado pela professora na identificaodos sentidos expressos pela preposio de nos sintagmas exemplificados por Perini, e

    retomados por ela, compostos por: nome comum (gravatas) + de + nome prprio depessoa. Em outros termos, para dirigir a ateno dos alunos para a importncia doconhecimento de mundo na atribuio de sentidos da preposio de, a professorarecorre, inicialmente, a dois exemplos dentre os apresentados no texto de Perini (Asgravatas de Mrio Quintana e As gravatas de Pierre Cardin), ressaltando queapresentam a mesma estrutura sinttica (ento eu tenho um nome a mais um de n? emais outro nome...), e que a preposio de no est indicando a mesma coisa entre umelemento e outro.

    Com base no primeiro exemplo, valendo-se de perguntas indutivas (linhas 11-21), e com a contribuio dos alunos, que sempre apresentam a resposta esperada(linhas 13, 16, 19), a professora argumenta que, sabendo-se que Mrio Quintana umescritor, possvel reconhecer que a relao de sentido estabelecida pela preposio de,em As gravatas de Mrio Quintana, de posse. Na verdade, a professora identifica arelao de sentido expressa pela preposio de, fazendo referncia somente ao termoque acompanha a preposio (Mrio Quintana), categorizando-o como escritor emoposio a estilista, ou seja, como uma pessoa conhecida, mas que no estilista (s

    pode ser as gravatas que ele usa...no ...quer dizer as gravatas que ele possui...).Desse modo, a considerao do conhecimento de mundo (de que Mrio Quintana no estilista) funciona para excluir o sentido de autoria no enunciado As gravatas de MrioQuintana, permanecendo, portanto, o sentido de posse.

    Ao referir-se ao outro exemplo ( As gravatas de Pierre Cardin), desta vez por

    meio de perguntas retricas (linhas 21, 22), e tambm fazendo referncia somente aotermo que acompanha a preposio, a professora categoriza Pierre Cardin comoestilista e como pessoa comum que usa gravatas (eu s posso no mnimo pensar as duascoisas...as gravatas que tm o nome dele...que ele um estilista...que ele desenhou...que

    tem a marca dele...inclusive pode ser at as que ele usa tambm). Nesse caso, aconsiderao do conhecimento de mundo (Pierre Cardin um estilista; Pierre Cardin uma marca da indstria de moda) funciona na atribuio de mais um sentido expressopela preposio de em tal enunciado, ou seja, o sentido de autoria, alm do sentido deposse, no caso de a pessoa conhecida tambm ser uma pessoa que usa gravatas. maisprovvel que, nesse exemplo, o sentido seja de autoria, mas somente considerando-seum contexto mais amplo pode ser possvel identificar exatamente o sentido expresso

    pela preposio de nesse caso, ou seja, se de autoria ou de autoria e posse.

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    Com a introduo de outros exemplos apresentados no texto de Perini (Roupa deMaria, Roupa de linho e Roupa de palhao), uma espcie de concluso do que haviasido dito at aquele momento da aula ento...quer dizer...ele t tentando...interessante isso que ele t tentando mostrar que no porque a estrutura sinttica a

    mesma que o sentido vai ser o mesmo...n?...eu preciso saber...ter o conhecimento demundo...e o mesmo exemplo ele d com a roupa... temos a impresso de que aprofessora vai continuar focalizando a importncia do conhecimento de mundo para oreconhecimento dos efeitos de sentido expressos pela preposio de. No entanto, aoreferir-se a esses trs exemplos como diferentes (linha 32), deixa de lado o que pareciaser o foco da primeira seqncia da aula.

    Esses enunciados certamente devem sua diferena ao fato de poderem ter seussentidos depreendidos somente com base no conhecimento lingstico, ao passo que osdois exemplos anteriormente estudados exigiam tambm o conhecimento de mundo.Nesse momento, a professora deixa de tematizar a importncia do conhecimento demundo, sem explicitar a existncia desses dois nveis de interpretao semntica. Cabe

    lembrar que Perini tambm no explicita, no texto estudado na aula, a distino entreesses dois nveis de interpretao dos enunciados. Desse modo, a professora faz apenasreferncia aos sentidos expressos pela preposio de em Roupa de Maria (qual osentido que a preposio de est estabelecendo... qual o sentido desse de?...qual aimportncia desse de?... estabelecer uma relao entre possuidor e coisa possuda...no ?) e em Roupa de linho (ou ento de origem de...de que feita por...no a idiade que possui mas que feita por...) sem explicitar que, dessa vez, o conhecimentolingstico que est sendo privilegiado na identificao desses sentidos expressos pelapreposio de.

    Um outro aspecto interessante observado no processo de construo do objeto deensino evidenciado na seqncia transcrita acima so o que chamamos de referncias decarter metadiscursivo, que a professora associa perspectiva que est adotando para oestudo da preposio de. Consideramos essas referncias instrumentos semiticosdiscursivos que funcionam, conforme diz Schneuwly (2005), na institucionalizao dosaber ensinado, ou seja, funcionam como uma explicitao de um ou de vrios aspectosnovos do objeto de ensino que devem ser apre(e)ndidos pelos alunos. De fato, naseqncia acima transcrita, as trs referncias de carter metadiscursivo efetuadas pelaprofessora parecem buscar a legitimao de um novo modo de analisar/estudar umacategoria da gramtica tradicional: analisar/estudar a preposio de levando em conta osvrios sentidos que essa palavra pode estabelecer em enunciados diferentes,considerando-se dois nveis de interpretao semntica das formas lingsticas.

    A primeira referncia de carter metadiscursivo realizada pela professora ocorreno incio da aula, quando ela reformula a resposta de A1 (linhas 6-7): que pra conhecere entenderat um aspecto gramatical preciso antes de tudo tambm ter conhecimento

    de /.../ MUN-DO. Fazendo uso dos marcadores argumentativos at e tambm, aprofessora aponta para uma idia que contradiz a viso tradicional de ensino degramtica, isto , a idia de que o conhecimento de mundo do falante/leitor s requerido para o estudo de textos, e no necessrio para o estudo da gramtica. Nessecaso, a forma de tratamento que ela est adotando para o estudo da preposio de revelaque esto em jogo outros princpios tericos, alm daqueles adotados pelo ensinotradicional de gramtica.

    A segunda referenciao metadiscursiva (linhas 27-29) ocorre quando a

    professora encerra a discusso sobre os exemplos As gravatas de Mrio Quintana/As

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    59-P: temporal...n? eu...quer dizer...eu no durmo de dia...quer dizer durante o dia...ento a idia a...a60-noo temporal...esse aqui acho que de um verso tambm ((a professora l a frase da alternativa61-(c))...depois fui pirata mouro...flagelo da Tripolitnia...((silncio)) ningum?...vamos ver a outra62-ento ((a professora l a frase da alternativa (d)) chegarei de madrugada quando cantar a seriema63-As: tempo

    64-P: temporal...noo de tempo... a ltima ((a professora l a frase da alternativa (e)) s os roados da65-morte compensam aqui cultivar...((silncio)) bom...ento sobrou dois pra gente parar pra66-pensar...qual a diferena entre flagelos da Tripolitnia e roados da morte? ((silncio))? um de67-origem...de lugar...68-A5: a c69-P: o c qual?70-A5:flagelo da Tripolitnia71-P: isso...ento a c no a resposta correta...a resposta os roados da morte...que tipos72-n?...roados mor...roados n que trazem a morte...que tipos n?... mais caracterizando... como o73-exemplo que ele d no incio amor de velho que tipo de amor...ento essa nocional...agora flagelos74-da Tripolitnia...quer dizer origem...n? quer dizer que veio de...d mais idia de75-lugar...espacial...ento veja bem este aqui um exercicinho ...este aqui pra falar a verdade pra vocs76- uma questo de vestibular...e eu trouxe s pra vocs terem uma idia n? de como s vezes o sentido

    77- muito mais importante do que a prpria classificao ou identificao...porque essa questo ela78-visa...voc identificar a preposio? no...e nem voc classificar? no...mas pra tentar entender qual79- o sentido que uma preposio exerce ao ligar dois elementos no ?...

    No incio da seqncia, como podemos verificar, antes de iniciar a atividade aprofessora recorda com os alunos a definio gramatical de preposio (linhas 39-40):

    palavra que liga os elementos da frase. A focalizao dessa funo est relacionada aoexerccio de vestibular cujo enunciado se inicia fazendo referncia ao papel sinttico dapreposio de: Ao ligar dois elementos de uma orao , a preposio pode expressarentre outros aspectos, uma relao temporal, espacial ou nocional.

    Como o exerccio focaliza a relao nocional estabelecida pela preposio de,

    at mesmo apresentando um exemplo (Amor de velho adolescente), ao ler oenunciado do exerccio, a professora procura explicitar a relao nocionalcategorizando-a (linhas 47-48) como uma relao de qualificao, de especificao:...relao nocional quer dizer...que ...uma rela...ela t qualificando n?...ela

    t...especificando no ? ...que tipo de amor...

    De acordo com a Gramtica do Portugus Contemporneo de Celso Cunha(1970), preposio uma palavra invarivel que relaciona dois termos de uma orao,de tal modo que o sentido do primeiro explicado ou completado pelo segundo. Essarelao pode implicar movimento ou no movimento (situao). Tanto o movimentocomo a situao podem ser considerados em referncia ao espao, ao tempo e noo.Assim, de acordo com Cunha (1970), a preposio de estabelece uma relao: espacial,

    em Todos saram de casa; temporal, em Trabalha de 8 s 8 todos os dias; nocional,em Livro de Pedro. Nos termos do autor, os matizes significativos que estapreposio pode adquirir em contextos diversos derivaro sempre das suaspossibilidades de aplicao aos campos espacial, temporal ou nocional, com a presenaou a ausncia de movimento. (Cunha, op.cit.:379)

    Nesse sentido, possvel depreender que as relaes de sentido espacial etemporal estabelecidas pela preposio de correspondem propriedade desse termo detransformar um sintagma nominal em um sintagma adverbial; a relao nocionalcorresponde propriedade de transformao do sintagma nominal em um sintagmaadjetivo.

    Provavelmente, sem ter por base tais definies, e ciente da dificuldade doexerccio para os alunos, a professora desenvolve a atividade juntamente com eles,

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    adotando uma estratgia de resoluo de testes que a de se chegar alternativa corretapor meio da excluso das alternativas incorretas.

    Na anlise do fragmento da primeira alternativa (linhas 50-54), quando aprofessora solicita o sentido do primeiro de em Este mundo de hotel, um fim de

    mundo (que que esse mundo de hotel?), A3 identifica a relao de sentidoestabelecida pela preposio de como sendo de tamanho. A professora, por sua vez,aceita inicialmente a resposta do aluno (tamanho, n?), mas tenta reformul-laacrescentando um outro efeito de sentido preposio de sob anlise: mas...aqui o dese for pensar muito mais enftico... um recurso muito mais...o de mais pra

    reforar... Sem fazer referncia classificao dos sentidos da preposio de trazidapelo exerccio ou aos sentidos estudados na primeira seqncia da aula, a professoraacaba parafraseando a resposta de A3 (esse mundo de hotel...esse hotel grande...essehotel enorme...) fazendo uma interpretao essencialmente semntica do sintagma,invertendo a sua ordem e apagando a preposio de. A relao semntica estabelecidapela preposio de em sintagmas como mundo de hotel identificada por Neves

    (2000) em sua Gramtica de Usos do Portugus. Para essa autora, a preposio de, emum sintagma composto por nome qualificador + de + substantivo qualificado, estabeleceuma relao semntica de qualificao. , pois, o caso em questo: mundo, no sentidode grande extenso, o nome qualificador, e hotel o substantivo qualificado. Esse tipode construo sinttica parece no se encaixar nos modelos sintagmticos consideradospor Cunha (1970) ou por Perini (1996), pois o sintagma nominal precedido pelapreposio de (de hotel) no se transforma em sintagma adjetivo e nem em sintagmaadverbial. Nesse caso, h uma inverso na ordem cannica substantivo qualificado +nome qualificador e a preposio de assume o sentido de qualificao quando o nomequalificador antecede o substantivo qualificado, assim como em mundo de hotel, ounos exemplos apresentados por Neves (op.cit.): beleza de barraco, imensido debrancura.

    Essa noo, explicitada por Neves (op.cit.), ajuda-nos a entender a interpretaode A3 e a anlise intuitiva da professora, tanto ao qualificar o efeito de sentido dapreposio de como sendo enftico uma vez que a inverso enfatiza o nomequalificador quanto ao inverter a ordem dos termos do sintagma sem a preposio de,tentando demonstrar, mas sem explicitar, a relao direta substantivo qualificado +nome qualificador (hotel enorme/hotel grande). Por isso, nem a professora e nem A3recorreram categorizao apresentada pelo exerccio para a anlise do primeiro de dofragmento da alternativa (a), j que tal categorizao no suficiente para a anlise doenunciado em questo.

    J com relao identificao do sentido expresso pela outra preposio de queaparece no fragmento da primeira alternativa (fim de mundo), mesmo no sendo objetode anlise no exerccio, a professora solicita a participao dos alunos (linhas 54-55) eA4 identifica-a como uma relao espacial. A resposta de A4 confirmada pelaprofessora que rapidamente d seqncia atividade, passando para a anlise daalternativa seguinte. Na verdade, fim de mundo uma expresso idiomtica que,segundo o Dicionrio Aurlio, significa lugar ermo, afastado, cabendo, portanto, anoo de espao. Mesmo considerando os constituintes desse sintagma atribuindo-lhessentido literal, a preposio de + sintagma nominal (mundo = o planeta Terra ou oUniverso) estabelece com o nome que a antecede (fim = extremidade, limite) umarelao semntica de localizao espacial.

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    Na anlise do fragmento da segunda alternativa (A quem sonha de dia e sonhade noite, sabendo todo sonho em vo), a participao dos alunos solicitada pelaprofessora (linhas 57-59) demonstra no haver dificuldade na identificao da relaotemporal expressa pela preposio de nas duas ocorrncias. Contudo, ao solicitar a

    participao dos alunos na anlise da preposio no fragmento da terceira alternativa(depois fui pirata mouro, flagelo da Tripolitnia), o silncio leva a professora a passarpara a alternativa (d). A anlise da preposio de no fragmento Chegarei demadrugada, quando cantar a seriema tambm no apresenta problemas, j que a relaotemporal pode ser claramente identificada pela expresso indicadora de um perodo dodia (madrugada) que acompanha a preposio de.

    Dado o silncio dos alunos (linha 65) tambm em relao anlise dapreposio no fragmento da ltima alternativa (S os roados da morte compensamaqui cultivar), a professora adianta (linhas 66-67) que, em uma das duas alternativasque restaram, a relao de sentido expressa pela preposio de espacial, relao essacategorizada pela professora pelas expresses de origem...de lugar. Com isso, um aluno

    (A5) identifica a alternativa (c), reconhecendo a palavra Tripolitnia como o nome deum lugar, levando em conta seu conhecimento de mundo ou seu conhecimentolingstico sobre a formao de palavras do portugus: palavras com letra inicialmaiscula, compostas pelo sufixo nia, geralmente referem-se a nome de lugar.

    Enfim, por meio da estratgia de excluso, a relao de sentido expressa pelapreposio de no fragmento da ltima alternativa reconhecida como sendo nocional.Para explicitar esse sentido (linhas 72-73), a professora faz analogia com o exemploapresentado no enunciado do exerccio: roados da morte...que tipos n?...roadosmor...roados n que trazem a morte...que tipos n?... mais caracterizando... como o

    exemplo que ele d no incio amor de velho que tipo de amor...ento essa nocional.

    Assim como no incio da seqncia aqui analisada, a professora categoriza a relaonocional como uma relao adjetivadora, ou seja, uma relao de caracterizao.

    Em sntese, o que podemos perceber nessa seqncia da aula que, buscandoanalisar o sentido da preposio de considerando a categorizao trazida pelo exercciode vestibular, a professora e os alunos levam tambm em conta os dois nveis deinterpretao semntica suscitados pelo texto de Perini, estudado na primeira seqnciada aula, embora estes no tenham sido tematizados e nem explicitados para identificaras relaes de tempo e espao estabelecidas pela preposio de nos diferentesfragmentos, a professora e os alunos levaram em conta no s o conhecimentolingstico, mas tambm o conhecimento de mundo para atribuir sentido aos termosligados pela preposio.

    De todo modo, a professora procura alinhar as diferentes unidades de anlise dapreposio de, trazidas pelos diferentes instrumentos semiticos materiais (texto dePerini e exerccio de vestibular), estabelecendo um modo de anlise da preposio deque tematiza principalmente as variaes de sentido estabelecidas por esse elementogramatical. Esse modo de anlise reforado pela professora, no final da seqncia(linhas 75-79), quando ela faz uma referncia metadiscursiva atividade desenvolvida apartir do exerccio de vestibular: ...ento veja bem este aqui um exercicinho ...esteaqui pra falar a verdade pra vocs uma questo de vestibular...e eu trouxe s pra

    vocs terem uma idia n? de como s vezes o sentido muito mais importante do que a

    prpria classificao ou identificao...porque essa questo ela visa...voc identificar a

    preposio? no...e nem voc classificar? no...mas pra tentar entender qual o

    sentido que uma preposio exerce ao ligar dois elementos no ? Vemos que com essa

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    referenciao a professora justifica a presena do exerccio de vestibular na aula,valorizando o enfoque semntico dado pelo exerccio, e tambm por ela, ao estudo dapreposio de, em contraposio ao enfoque morfossinttico das atividades tradicionaisde identificao e classificao dessa categoria gramatical.

    Em suma, entendemos que, ao tentar alinhar modos de anlise mais inovadoresaos mais tradicionais, trazidos pelos diferentes instrumentos materiais mobilizados naaula (texto de Perini e exerccio de vestibular), a professora acaba focalizando asvariaes de sentido estabelecidas pela preposio de, sem distinguir os dois nveis deinterpretao semntica levados em conta nas atividades de atribuio de sentidos preposio de desenvolvidas na aula, mas tambm sem se prender s diferentes formasde classificao desses sentidos, oriundas de conflitos terico-metodolgicos existentesno somente entre a gramtica e a lingstica mas entre vertentes da prpria lingstica.

    Consideraes finais

    A focalizao dos instrumentos semiticos materiais e discursivos mobilizadosno processo de construo do objeto de ensino, na aula de uma professora que buscainovar sua prtica pedaggica de ensino de gramtica, permitiu-nos descrever ecompreender um modo de produzir a inovao em sala de aula. A inovao produzidana aula analisada sustenta-se principalmente no texto de Perini (1997) estudado na aula,cujo subttulo no basta saber uma lngua para entend-la j pe em cena acomplexidade do processo de comunicao, que vai alm da estrutura lingstica e dacombinatria gramatical. O trabalho de um lingista que reconhece a dificuldade deaprendizagem da gramtica, faz uma crtica detalhada das deficincias desse ensino esugere a reformulao do objetivo desse estudo por si s uma novidade e um convite mudana que essa professora acolhe e busca aplicar em suas aulas e articular sexigncias do vestibular.

    Nesse sentido, nossa anlise evidenciou o trabalho de articulao da professoraentre a necessidade de se ensinar gramtica na escola, a busca da inovao com base emmodelos cientficos diversos de descrio e tratamento metodolgico do objeto deensino e a imposio do vestibular. Trabalho esse no de fato desenvolvido nos cursosde formao de professores.

    Em conseqncia, nossa anlise tambm evidenciou que os discursos inovadoressobre a lngua tm impacto, sim, na sala de aula. Resta saber quo significativa aadeso ao rduo trabalho de alinhamento e articulao desses discursos - nem sempre

    compatveis - pela categoria docente em seu conjunto, num Estado que h mais de vinteanos a tem sistematicamente pressionado para isso.

    Referncias bibliogrficas

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    _____. Le travail de lenseignant et lobjet enseign. Palestra proferida noIEL/Unicamp, 2005.TRAVAGLIA, L.C. Gramtica e interao: uma proposta para o ensino degramtica no 1. e 2. graus. So Paulo: Cortez, 1996.

    Anexo

    Questo de Vestibular

    1- (FUVEST/1995) Ao ligar dois termos de uma orao, a preposio pode expressar,entre outros aspectos, uma relao temporal, espacial ou nocional. Nos versos: "Amortotal e falho... Puro e impuro... Amor de velho adolescente...", a preposio deestabelece uma relao nocional. Essa mesma relao ocorre em:

    a) "Este mundo de hotel um fim de mundo."

    b) "A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo todo sonho vo."

    c) "depois fui pirata mouro, flagelo da Tripolitnia."

    d) "Chegarei de madrugada, quando cantar a seriema."e) "S os roados da morte compensam aqui cultivar."