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TÍTULO ORIGINAL: Grundlegung zur Metaphysik der Sitte n © desta tradução: Edições 70, Lda. © da introdução: Pedro Galvão e Edições 70, Lda. Tradução de Paulo Quintela Capa de FB A Depósito Legal n" 304103/0 9 Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação KANT, Immanuel, 17*1-180 4 Fundamentação (la metafísica dos costumes. - (Textos filosóficos ; 7) ISBN 978-972-44-1537- 0 CDU 17 Impressão, paginação e acabamento: PKNTAKDRO para EDIÇÕES 70, LDA. Fevereiro de 201 1 ISBN: 978-972-44-1537-0 ISBN chi 2* edição: 978-972-1-1-1439-3 ISBN da I" edição: 972-44-11390- 8 EDIÇÕES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123 - 1" Esq" - 10Õ9-L37 Lisboa / Portugal Telefs,: 213190240 - Fax: 2LU90249 e-mail: [email protected] l www.edicoes70.p t Esta obra está protegida pela lei. Não pode sei' reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocopia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor seiã passível de procedimento judicial. Immanuel Kant Fundamentação da Metafísica dos Costumes INTRODUÇÃO DE PEDRO GALVÃO 7( )

Tradução de Paul Quintelo a Immanuel Kant … · 14 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES tirados da experiência, pois que então não seria Lógica, isto é, um cânone

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Page 1: Tradução de Paul Quintelo a Immanuel Kant … · 14 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES tirados da experiência, pois que então não seria Lógica, isto é, um cânone

T Í T U L O ORIGINAL:

Grundlegung zur Metaphysik der Sitten

© desta t r adução : Edições 70, Lda. © da i n t r o d u ç ã o : Pedro Galvão e Edições 70, Lda.

T radução de Paulo Quin te l a

Capa de FBA

Depósi to Legal n" 3 0 4 1 0 3 / 0 9

Biblioteca Nacional de Por tugal - Cata logação na Publicação

KANT, I m m a n u e l , 17*1-1804

F u n d a m e n t a ç ã o (la metafísica dos cos tumes . - (Textos filosóficos ; 7)

ISBN 978-972-44-1537-0

CDU 17

Impressão , pag inação e a c a b a m e n t o : PKNTAKDRO

para EDIÇÕES 70, LDA. Fevereiro de 2011

ISBN: 978-972-44-1537-0

ISBN chi 2* ed ição : 978-972-1-1-1439-3

ISBN da I" ed ição: 972-44-11390-8

EDIÇÕES 70, Lda. Rua Luciano Corde i ro , 123 - 1" Esq" - 10Õ9-L37 Lisboa / Portugal

Telefs,: 213190240 - Fax: 2 L U 9 0 2 4 9 e-mail: [email protected]

www.edicoes70 .pt

Esta obra está p ro t eg ida pe la lei. Não p o d e sei' r eproduz ida , no todo ou em par te , q u a l q u e r que seja o m o d o uti l izado,

i nc lu indo fotocópia e xerocopia, sem prévia au tor ização do Editor. Q u a l q u e r t ransgressão à lei dos Direi tos de Autor seiã passível

de p r o c e d i m e n t o jud ic ia l .

Immanuel Kant Fundamentação da Metafísica dos Costumes INTRODUÇÃO DE PEDRO GALVÃO

7()

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i-i'

/ / P r e f á c i o

A velha filosofia grega dividia-se em três ciências: a Física, a

Ética e a Lógica . (') Esta divisão esiá perfnlamente conforme

com <i natureza das coisas, e nada há a corrigir nela a não ser

apenas acrescentar o princípio em que. se baseia, para deste modo,

por um Indo, nos assegurarmos da suo perfeição, e, por outro,

podermos determinar exactamente as necessárias subdivisões.

'iodo o conhecimento é racional: ou m a t e r i a l e considera, qual­

quer objecto, ow. fo rmal e ocupa-se apenas da forma do entendimento

e da razão em si mesmas e. das regras universais do pensar em gemi,

sem, distinção dos objectos. A filosofia formal chama-se Lóg ica ; a

material porém, //que se ocupa de. determinados objectos e das leis

a que eles estão submetidos, é por sua vez dupla, pois que estas

leis ou são leis da n a t u r e z a ou leis da. l i b e r d a d e . A ciência da

primeira chama-se Física, a da outra é a, Ét ica; aquela chama-se

também Teoria, da Natureza, esta Teoria dos Costumes.

A Lógica não pode ter parte empírica, isto é, parte em que as

leis universais e, necessárias do pensar assentassem em princípios

(') Esta dist inção, mui to usada na filosofia helenística, costuma ser a tr ibuída a Xenocra tes (396-314 a . C ) , um discípulo de Platão que acabou por assumir a direcção da Academia.

//LÍA 111, IV

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14 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA D O S C O S T U M E S

tirados da experiência, pois que então não seria Lógica, isto é, um

cânone para o entendimento ou para a razão que é válido para

todo o pensar e que tem de ser demonstrado. Em contraposição,

tanto a Filosofia natural como a Filosofia moral podem cada

uma ter a sua parte empírica, porque aquela tem de determinar

as leis da natureza como objecto da experiência, esta porém as

da vontade do homem enquanto ela é afectada pela natureza ('");

quer dizer, as primeiras como leis segundo as quais tudo acontece,

as // segundas como leis segundo as quais tudo deve acontecer,

mas ponderando também as condições sob as quais muitas vezes

não acontece o que devia acontecer.

Pode-se chamar e m p í r i c a a toda a filosofia que se baseie em

princípios da experiência, àquela porém cujas doutrinas se apoiam

em princípios a p r i o r i chama-se filosofia pura.. Esta última, quando

é simplesmente formal, chama-se Lóg ica ; mas quando se limita a

determinados objectos do entendimento chama-se Metaf ís ica .

Desta maneira surge a ideia duma dupla metafísica, uma

Metaf í s ica da N a t u r e z a e uma Meta f í s i ca d o s C o s t u m e s . A

Física terá portanto a sua parte empírica, mas também uma parte

racional; igualmente a Ética, se bem que nesta a parte empírica se

poderia chamar especialmente A n t r o p o l o g i a p r á t i c a , enquanto

a racional seria a M o r a l propriamente dita.

Todas as indústrias, ofícios e artes ganharam, pela divisão do

trabalho, // com a experiência de que não é um só homem que faz

tudo, limitando-se cada um a certo trabalho, que pela sua técnica

se distingue de outros, para o poder fazer com a maior perfeição e

com mais facilidade. Onde o trabalho não está assim diferenciado

e repartido, onde cada qual é homem de mil ofícios, reina ainda

nas indústrias a maior das barbarias. Mas, em face deste objecto

O Esta expressão p o d e induzir em e r ro p o r q u e , s egundo Kant, a von tade h u m a n a p o d e t ambém ser cons iderada de uni p o n t o de vista não natural .

/ / BA V, VI

PREFÁCIO 15

que em si não parece indigno de ponderação, perguntar-se-á se

a filosofia pura, em todas as suas partes, não exige um homem

especial; e se não seria mais satisfatório o estado total da indústria

da ciência se aqueles que estão habituados a vender o empírico

misturado com o racional, conforme o gosto do público, em pro­

porções desconhecidas deles mesmos, que a si próprios se chamam

pensadores independentes e chamam sonhadores a outros que apenas

preparam a parte racional, fossem advertidos de não exercerem ao

mesmo tempo dois ofícios tão diferentes nas suas técnicas, para

cada um dos quais se exige talvez um. talento especial // e cuja

reunião numa só pessoa produz apenas remendões. Mas aqui

limito-me a perguntar se a natureza da ciência não exige que se

distinga sempre cuidadosamente a parte empírica da parte racional

e que se anteponha à Física propriamente dita {empírica) uma

Metafísica da Natureza, e à Antropologia prática uma Metafísica

dos Costumes, que deveria ser cuidadosamente depurada de todos

os elementos empíricos, para se chegar a saber de quanto é capaz

em ambos os casos a razão pura e de que fontes ela própria tira o

seu ensino a priori. Esta última tarefa poderia, aliás, ser levada

a cabo por todos os moralistas (cujo nome é legião), ou só por

alguns deles que se sentissem com vocação para isso.

Não tendo propriamente em vista por agora senão a filosofia

moral, restrinjo a questão posta ao ponto seguinte : - Não é ver­

dade que ê da mais extrema necessidade elaborar um dia uma

pura Filosofia Moral que seja completamente depurada de tudo o

que possa ser //somente empírico e pertença à Antropologia? Que

tenha de haver urna tal filosofia, ressalta com evidência da ideia

comum do dever c das leis morais. Toda a gente tem de confessar

que uma lei que tenha de valer moralmente, isto é como fundamento

duma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que

o mandamento : «não deves mentir», não é válido somente para

os homens e que outros seres racionais se não teriam que importar

com ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais; que,

/ / BA VII, VIII

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16 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA D O S C O S T U M E S

por conseguinte, o princípio da obrigação não se há-de buscar

aqui na, natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo

em que o homem está posto, mas sim a p r i o r i exclusivamente nos

conceitos da razão pura, e que qualquer outro preceito baseado em

princípios da simples experiência, e m,esm,o um, preceito em certa,

medida universal, se. ele. se apoiar em princípios empíricos, num

mínimo que seja, talvez apenas por um só móbil, poderá chamar-se.

na. verdade uma regra prática, mas nunca uma lei moral.

// As leis morais com os seus princípios, em todo o conhecimen­

to prático, distinguem-se. portanto de tudo o mais em que exista

qualquer coisa de empírico, e não só se distinguem essencialm,enle,

como também toda a Filosofia moral assenta inteiramente na sua

parte, pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja

do conhecimento do homem (Antropologia), mas fornece-lhe como

ser racional leis a p r i o r i . E verdade que estas exigem ainda urna

/acuidade de julgar apurada pela experiência, para, por um lado,

distinguir em. que caso elas têm aplicação, e, por outro, assegurar-

-Ihes entrada na vontade do homem e eficácia na sua prática (*).

O homem, com. efeito, afectado por tantas inclinações, é. na verdade

capaz de conceber a. ideia de uma razão pura prática, mas não

é tão facilmente dotado da força necessária para a tornar eficaz

in c o n c r e t o no seu comportamento.

Uma Metafísica dos Costumes, é, pois, indispensavelmenle

necessária, não só por motivos de ordem especulativa para

investigar a fonte dos princípios práticos que residem / / a p r i o r i

na, nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam

sujeitos a, toda a sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele

fio condutor e norma suprema, do seu exacto julgamento. Pois que

(*) Kant, como esta afirmação sugere , não p r e sume que seja sempre fácil aplicar o imperat ivo categórico e os pr incípios dele decor ren tes às situações complexas da vida real. A aplicação dos pr incípios r e q u e r um d i sce rn imento - u m a «faculdade de julgar» - que se desenvolve apenas com a prát ica e a exper iência .

/ / BA IX, X

PREFÁCIO 17

aquilo que deve ser moralmente bom, não basta que seja c o n f o r m e

à lei moral, mas tem também que cumprir-se p o r a m o r dessa

m e s m a lei; caso contrário, aquela conformidade será apenas

muito contingente c incerta, porque o princípio imoral produzirá,

na verdade de vez em. quando acções conformes à lei moral, mas

mais vezes ainda, acções contrárias a, essa lei. Ora a lei. moral, na

sua pureza, e autenticidade (e é exactamente isto que mais importa,

na prática), não se deve buscar em, nenhuma outra, parte senão

numa filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em

primeiro lugar, e sem ela não pode haver em parte alguma uma

Filosofia moral; e aquela que mistura os princípios puros com os

empíricos não merece, mesmo o nome de filosofia (pois esta distingue-

se do conhecimento racional comum exactamente por expor em

ciência, aparte aquilo que este conhecimento só concebe misturado);

merece ainda // muito menos o nome de Filosofia moral, porque,

exactamente por este. amálgama de princípios, vem, prejudicar até

a, pureza dos costumes e age contra a sua própria finalidade.

Não se vá pensar, porém, que aquilo que aqui pedimos exista

já na propedêutica que o célebre Wolff antepôs á sua Filosofia

moral, a que chamou Fi losofia p r á t i c a u n i v e r s a l (*), e que se, não

liaja de entrar portanto em campo inteiramente novo. Precisamente

porque ela devia ser urna filosofia prática, universal, não tomou

em consideração nenhuma, vontade de qualquer espécie particular

- digamos uma vontade que. fosse determinada completamente

por princípios a p r i o r i e sem quaisquer móbiles emfnricos, e a

que se poderia chamar urna vontade pura -, mas considerou o

querer em. geral com todas as acções e condições que lhe, cabem

nesta acepção geral, e por aí se distingue ela de, uma Metafísica

dos Costumes exactamente como a Lógica geral, se distingue da

Filosofia transcendental, // a primeira das quais expõe as ope-

(*) Christian Wolff (1679-1754), Philosophia practica universalis, 2 vols., 1738-9.

/ / B A XI, XII

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18 F U N D A M E N T A Ç Ã O DA METAFÍSICA DOS C O S T U M E S

rações e regras do pensar em ge ra l , enquanto que a segunda

expõe somente as operações e, regras especiais do pensar p u i o, isto

é, daquele pensar pelo qual os objectos são conhecidos totalmente

a p r i o r i . Com efeito, a Metafísica dos Costumes deve investigar

a ideia e os princípios duma possível vontade p u r a , e não as

acções e condições do querer humano em geral, as quais são tira­

das na maior parte da Psicologia. O facto de na Filosofia prática

universal (sem aliás ter o direito de o jazer) se falar também, de

leis morais e de dever, não constitui objecção alguma ao que eu

afirmo. Porque os autores daquela ciência também nisto conti­

nuam fiéis à ideia que dela fazem; não distinguem os motivos de

determinação que, corno tais, se apresentam totalmentea p r i o r i só

pela razão (') e são propriamente morais, dos motivos empíricos.,

que o entendimento eleva a conceitos universais só por confronto

das experiências. Consideram-nos, pelo contrário, sem atender à

diferença // das suas fontes, só pela sua maior ou menor soma

(tomando-os a todos como de igual espécie), e formam assim o

seu conceito de o b r i g a ç ã o ; em verdade este conceito não é nada

menos que moral, mas é o único que se pode exigir de uma filosofa

que não atende à o r i g e m de todos os conceitos práticos possíveis,

sejam eles a p r i o r i ou simplesmente a p o s t e r i o r i .

No propósito, pois, de publicar um dia uma Metafísica dos

Costumes ('"), faço-a preceder desta Fundamentação. Em verdade

não há propriamente nada que lhe possa servir de base além da

Crítica duma r a z ã o p u r a p r á t i c a , assim como para a Metafísica

o ê a Crítica da razão pura especulativa já publicada. Mas, por

um lado, aquela não é. como esta de extrema necessidade, porque

a razão humana no campo moral, mesmo no caso do mais vul­

gar entendimento, pode ser facilmente levada a um alto grau de

(') Moren le (púg. 17) i raduz inadver t idamente «sólo por e! enten­dimiento»; o original diz «bloss du rch Vernunfl». (P. Q.)

O Publ icada em dois volumes nesta colecção «Textos Filosóficos» (N. E.)

/ / B A XIII

PREFÁCIO 19

justeza e desenvolvimento, enquanto que, pelo contrário, no uso

teórico, mas puro, ela é exclusivamente // dialéctica (*j; por outro

lado, eu exijo, para que a Crítica de uma razão pura prática

possa ser acabada, que se possa demonstrar simultaneamente a

sua unidade com. a razão especulativa num princípio comum;

pois no fim de contas trata-se sempre de uma só e mesma razão,

que só na, aplicação se deve diferençar. A tal perfeição não podia

eu chegar ainda agora, sem recorrer a considerações de natureza

totalmente diversa, que provocariam confusão no espírito do leitor.

Eis por que, em vez de lhe chamar Cr í t i ca da r azão p u r a p rá ­

tica, eu me sirvo do título de F u n d a m e n t a ç ã o da Metaf ís ica

d o s C o s t u m e s ( 2 ) .

Como, porém, em terceiro lugar, uma Metafísica dos Costumes,

a despeito do título repulsivo, é susceptível de um alto grau de

popularidade e acomodamento ao entendimento vulgar, acho útil

separar dela este trabalho preparatório de fundamentação, para

de futuro não ter de juntar a teorias mais fáceis as subtilezas

inevitáveis em tal matéria.

// A presente Fundamentação nada m.ais é, porém, do que a

busca e fixação do p r i n c í p i o s u p r e m o da m o r a l i d a d e , o que

constitui só por si no seu propósito uma tarefa completa e bem

distinta de qualquer outra investigação moral. E verdade que as

minhas afirmações sobre esta questão capital tão importante e

que até agora não foi, nem de longe, suficientemente discutida,

receberiam milita clareza pela aplicação do mesmo princípio a todo

o sistema e grande confirmação pelo facto da suficiência que ele

( 2) «Fundamentação», e não «Fundamentos» como gera lmente se diz segu indo os franceses, é que é a boa t radução do a lemão «.Grundlegung». Fica assim posto em evidência o esforço demonstra t ivo e construtivo que o original implica. Morenie t ambém traduz como nós. (P. Q.)

O Kant que r dizer que a razão pura , q u a n d o usada na tentativa de ob te r conhec imen to , gera apenas contradições e ilusões. O termo «dialéctica», em Kant, é s empre pejorativo.

•'/ BA xrv, XV

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20 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS C O S T U M E S

mostraria por toda a parte; mas tive, que, renunciar a esta van­

tagem, que no fundo seria também mais de amor-próprio do que­

de utilidade geral, porque a facilidade de aplicação e a aparente

suficiência dum princípio não dão nenhuma prova segura da sua

exactidão, pelo contrário, despertam em nós uma certa parcialidade

para o não examinarmos e ponderarmos cm. toda a severidade por

si mesmo, sem qualquer consideração pelas consequências.

//O método que adoptei neste escrito é o que creio mais conve­

niente, uma vez que se queira percorrer o caminho analiticamente

do conhecimento vulgar para. a. determinação do princípio

supremo desse conhecimento, e, em seguida, e em sentido inverso,

sinteticamente, do exame deste princípio e das suas fontes para o

conhecimento vulgar onde se encontra a sua aplicação. A divisão

da matéria é, pois, a. seguinte:

1. P r i m e i r a S e c ç ã o : Transição do conhecimento moral da,

razão vulgar para o conhecimento filosófico.

2. S e g u n d a S e c ç ã o : 'Transição da filosofia moral popular

para a Metafísica dos cost.um.es.

3. T e r c e i r a S e c ç ã o : Ultimo passo da Metafísica dos costumes

para a Crítica da, Razão pura prática.

/ / BA XVI

/ / P r i m e i r a S e c ç ã o

Transição do C o n h e c i m e n t o Moral da Razão

Vulgar para o C o n h e c i m e n t o Fi losóf ico

Nes te m u n d o , e a t é t a m b é m fora d e l e , n a d a é possível

p e n s a r q u e possa se r c o n s i d e r a d o c o m o b o m s e m l i m i t a ç ã o

a n ã o ser u m a só coisa: u m a boa vontade . D i s c e r n i m e n ­

to a r g ú c i a de e s p í r i t o (''), c a p a c i d a d e de j u l g a r ( r>) e

c o m o q u e r q u e p o s s a m c h a m a r - s e o s d e m a i s talentos d o

e sp í r i t o , o u a i n d a c o r a g e m , d e c i s ã o , c o n s t â n c i a d e p r o p ó ­

s i to , c o m o q u a l i d a d e s do temperamento, s ão s e m d ú v i d a

(;<) Verstand no original , parece-me dever ser aqui excepc iona lmente traduzido por «discernimento» e n ã o po r «en tend imento» . Os dois tra­dutores franceses p r o p õ e m «intelligence»; Moren te «entendimiento» .

(P.Q.) (4) Witz no original, tem o sent ido especial da palavra no a lemão

do século XVIII. Delbos t raduz parafrást icamente: «le don de saisir les ressemblances des choses»; Lachel ier s implesmente «L'esprit»; Moren te dá à expressão o seu sent ido actual e t raduz «gracejo»! (P. Q.)

(r>) Urteilskrafl, na paráfrase de Delbos: «la faculté de discerner le part iculier pour en juger». (P. Q.)

/ / BA l

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22 I FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS C O S T U M E S

/ / B A 2, 3

PRIMEIRA SECÇÃO 23

A b o a v o n t a d e n ã o é b o a p o r a q u i l o q u e p r o m o v e o u

real iza , p e l a a p t i d ã o p a r a a l c a n ç a r q u a l q u e r f i n a l i d a d e

p r o p o s t a , m a s t ã o - s o m e n t e p e l o q u e r e r , isto é , em s i m e s m a ,

e , c o n s i d e r a d a em s i m e s m a , d e v e se r ava l iada em g r a u

m u i t o m a i s a l to d o q u e t u d o o q u e p o r s eu i n t e r m é d i o

p o s s a s e r a l c a n ç a d o e m p r o v e i t o d e q u a l q u e r i n c l i n a ç ã o ,

o u m e s m o , s e s e qu ise r , d a s o m a d e t o d a s a s i n c l i n a ç õ e s .

A i n d a m e s m o q u e p o r u m des favor e spec i a l d o d e s t i n o ,

o u p e l o a p e t r e c h a m e n t o a v a r o d u m a n a t u r e z a m a d r a s t a ,

fal tasse t o t a l m e n t e a e s t a b o a v o n t a d e o p o d e r de fazer

v e n c e r a s suas i n t e n ç õ e s , m e s m o q u e n a d a p u d e s s e a l c a n ç a r

a d e s p e i t o d o s seus m a i o r e s es forços , e só af inal res tasse a

b o a v o n t a d e ( é c l a ro q u e n ã o s e t r a t a a q u i d e u m s imp le s

de se jo , m a s s im d o e m p r e g o d e t o d o s o s m e i o s d e q u e a s

nossas forças d i s p o n h a m ) , e la f i ca r ia a b r i l h a r p o r s i m e s m a

c o m o u m j ó i a , c o m o a l g u m a coisa q u e e m s i m e s m a t e m o

seu p l e n o valor. A u t i l i d a d e ou a i n u t i l i d a d e n a d a p o d e m

a c r e s c e n t a r ou t i r a r a es te valor. A u t i l i d a d e ( 6 ) ser ia a p e n a s

c o m o q u e o e n g a s t e p a r a essa j ó i a p o d e r ser m a n e j a d a mais

f a c i l m e n t e n a c i r c u l a ç ã o c o r r e n t e o u p a r a a t r a i r s o b r e e la

a a t e n ç ã o d a q u e l e s q u e n ã o são a i n d a b a s t a n t e c o n h e c e ­

d o r e s , m a s n ã o / / p a r a a r e c o m e n d a r aos c o n h e c e d o r e s e

d e t e r m i n a r o s eu valor.

Piá c o n t u d o n e s t a i de i a d o va lo r a b s o l u t o d a s imp le s

v o n t a d e , s e m e n t r a r e m l i n h a d e c o n t a p a r a a s u a avalia­

ç ã o c o m q u a l q u e r u t i l i d a d e , a lgo d e tão e s t r a n h o q u e , a

d e s p e i t o m e s m o d e t o d a a c o n c o r d â n c i a d a r a z ã o vu lga r

c o m ela , p o d e s u r g i r a s u s p e i t a d e q u e n o f u n d o haja

talvez o c u l t a a p e n a s u m a q u i m e r a a é r e a e q u e a n a t u r e z a

('') E evidente que o p r o n o m e singular que Kant emprega se refe­re a «utilidade». Morcmc. ipág. 23) , t raduzindo no plural , refere-o a «nulidade» e «inutil idade», o q u e não faz sentido. (P. Q.)

/ / BA 4

a m u i t o s r e s p e i t o s coisas b o a s e dese jáveis ; m a s t a m b é m

p o d e m to rna r - s e e x t r e m a m e n t e m á s e p r e j u d i c i a i s se a

v o n t a d e , q u e haja de fazer u s o des t e s d o n s n a t u r a i s e cuja

c o n s t i t u i ç ã o p a r t i c u l a r p o r isso se c h a m a carácter, n ã o for

b o a . O m e s m o a c o n t e c e c o m os dons da fortuna. P o d e r ,

r i q u e z a , h o n r a , m e s m o a s a ú d e , e t o d o o b e m - e s t a r e c o n ­

t e n t a m e n t o c o m a s u a s o r t e , s o b / / o n o m e de felicidade,

d ã o â n i m o q u e m u i t a s vezes p o r isso m e s m o d e s a n d a e m

s o b e r b a , s e n ã o ex is t i r t a m b é m a b o a v o n t a d e q u e cor r i j a

a s u a i n f l u ê n c i a s o b r e a a l m a e j u n t a m e n t e t o d o o p r i n c í ­

p i o de ag i r e l h e dê u t i l i d a d e ge ra l ; is to s e m m e n c i o n a r o

fac to d e q u e u m e s p e c t a d o r r azoáve l e i m p a r c i a l e m face

d a p r o s p e r i d a d e i n i n t e r r u p t a d u m a p e s s o a a q u e m n ã o

a d o r n a n e n h u m t r a ç o d u m a p u r a e b o a v o n t a d e , n u n c a

p o d e r á s e n t i r sa t i s fação , e ass im a b o a v o n t a d e p a r e c e

c o n s t i t u i r a c o n d i ç ã o i n d i s p e n s á v e l d o p r ó p r i o fac to d e

s e r m o s d i g n o s d a f e l i c i d a d e .

A l g u m a s q u a l i d a d e s são m e s m o favoráveis a es ta b o a

v o n t a d e e p o d e m faci l i tar m u i t o a s u a o b r a , m a s n ã o t ê m

todavia n e n h u m va lor í n t i m o a b s o l u t o , p e l o c o n t r á r i o , p res ­

s u p õ e m a i n d a e s e m p r e u m a b o a v o n t a d e , a q u a l r e s t r i n g e

a a l t a e s t i m a q u e , al iás c o m r a z ã o , p o r e las se n u t r e , e n ã o

p e r m i t e q u e a s c o n s i d e r e m o s a b s o l u t a m e n t e b o a s . M o d e r a ­

ç ã o n a s e m o ç õ e s e p a i x õ e s , a u t o d o m í n i o e c a l m a r e f l exão

são n ã o s o m e n t e b o a s a m u i t o s r e s p e i t o s , m a s p a r e c e m

c o n s t i t u i r a t é p a r t e do va lo r íntimo da p e s s o a ; m a s falta

a i n d a m u i t o p a r a a s p o d e r m o s d e c l a r a r b o a s s em r e se rv a

( a i n d a q u e o s a n t i g o s a s l o u v a s s e m i n c o n d i c i o n a l m e n t e ) .

C o m efe i to , s e m o s p r i n c í p i o s d u m a b o a v o n t a d e , p o d e m

elas t o rna r - s e m u i t í s s i m o m á s , e o s angue - f r i o d u m f a c í n o r a

n ã o s ó / / o t o r n a m u i t o m a i s p e r i g o s o c o m o o faz t a m b é m

i m e d i a t a m e n t e mais a b o m i n á v e l a i n d a a nossos o l h o s do

q u e o j u l g a r í a m o s s em isso.

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24 I FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS C O S T U M E S

/ / BA 5

PRIMEIRA SECÇÃO 25

da í p r o v é m q u e e m m u i t a s pe s soas , e n o m e a d a m e n t e n a s

mais e x p e r i m e n t a d a s n o u s o d a r a z ã o , s e elas q u i s e r e m

ter a s i n c e r i d a d e de o / / c o n f e s s a r , sur ja um c e r t o g r a u de

misologia, q u e r d i z e r de ó d i o à r a z ã o . E isto p o r q u e , u m a

vez fe i to o b a l a n ç o de t o d a s as v a n t a g e n s q u e elas t i r a m ,

n ã o d i g o j á d a i n v e n ç ã o d e t o d a s a s a r t e s d o l u x o vulgar ,

m a s a i n d a das c i ê n c i a s ( q u e a elas l h e s p a r e c e m no f im e

a o c a b o s e r e m t a m b é m u m l u x o d o e n t e n d i m e n t o ) , de sco ­

b r e m c o n t u d o q u e ma i s s e s o b r e c a r r e g a r a m d e fadigas d o

q u e g a n h a r a m e m fe l i c idade , e q u e p o r isso f i n a l m e n t e

inve jam mais d o q u e d e s p r e z a m o s h o m e n s d e c o n d i ç ã o

i n f e r io r q u e e s t ão m a i s p r ó x i m o s d o p u r o i n s t i n t o n a t u r a l

e n ã o p e r m i t e m à r a z ã o g r a n d e i n f l u ê n c i a s o b r e o q u e

f azem ou d e i x a m de fazer. E a t é a q u i t e m o s de con fe s sa r

q u e o j u í z o d a q u e l e s q u e d i m i n u e m e m e s m o r e d u z e m a

m e n o s d e ze ro o s l o u v o r e s p o m p o s o s das v a n t a g e n s q u e

a r azão n o s t e r i a t r a z i d o no t o c a n t e à f e l i c idade e ao c o n ­

t e n t a m e n t o d a v ida , n ã o é d e f o r m a a l g u m a m a l - h u m o r a d o

o u i n g r a t o p a r a c o m a v o n t a d e d o g o v e r n o d o m u n d o , m a s

q u e na base de ju ízos d e s t a o r d e m es tá o c u l t a a i de i a de

u m a o u t r a e ma i s d i g n a i n t e n ç ã o da ex i s t ênc i a , à q u a l , e

n ã o à f e l i c idade , a r a z ã o m u i t o e s p e c i a l m e n t e se d e s t i n a , e

à qua l p o r isso, c o m o c o n d i ç ã o s u p r e m a , se deve s u b o r d i n a r

e m g r a n d í s s i m a p a r t e a i n t e n ç ã o p r i v a d a d o h o m e m .

P o r t a n t o , se a r a z ã o n ã o é a p t a b a s t a n t e p a r a g u i a r

c o m s e g u r a n ç a a v o n t a d e n o q u e r e s p e i t a aos seus ob jec ­

tos / / e à sa t is fação de t o d a s as nos sas n e c e s s i d a d e s ( q u e

e la m e s m a - a r a z ã o - em p a r t e m u l t i p l i c a ) , visto q u e um

i n s t i n t o n a t u r a l i n a t o levar ia c o m m u i t o m a i o r c e r t e z a

a es te f im, e se , no e n t a n t o , a r a z ã o n o s foi d a d a c o m o

f a c u l d a d e p r á t i c a , isto é , c o m o f a c u l d a d e q u e deve e x e r c e r

in f luênc ia s o b r e a vontade, e n t ã o o seu v e r d a d e i r o d e s t i n o

d e v e r á ser p r o d u z i r u m a vontade, n ã o só boa q u i ç á c o m o

/ / BA (5, 1

t e n h a s i do m a ] c o m p r e e n d i d a n a s u a i n t e n ç ã o a o d a r - n o s

a r a z ã o p o r g o v e r n a n t e d a n o s s a v o n t a d e . V a m o s p o r isso,

d e s t e p o n t o de vista, p ô r à p r o v a es ta ide ia .

Q u a n d o c o n s i d e r a m o s a s d i s p o s i ç õ e s n a t u r a i s d u m ser

o r g a n i z a d o , is to é , d u m se r c o n s t i t u í d o e m o r d e m a u m

f im q u e é a vida, a c e i t a m o s c o m o p r i n c í p i o q u e n e l e se

n ã o e n c o n t r a n e n h u m ó r g ã o q u e n ã o seja o m a i s conve ­

n i e n t e e a d e q u a d o à f inal idade a q u e se d e s t i n a . O r a , se

n u m se r d o t a d o de r a z ã o e v o n t a d e a v e r d a d e i r a f i na l idade

da n a t u r e z a fosse a s u a conservação, o s eu bem-estar, n u m a

pa l av ra , a sua. felicidade, m u i t o m a l t e r i a ela t o m a d o as suas

d i s p o s i ç õ e s a o e s c o l h e r a r a z ã o d a c r i a t u r a p a r a e x e c u t o r a

d e s t a s suas i n t e n ç õ e s . Pois t o d a s a s a c ç õ e s q u e esse se r

t e m d e r ea l i z a r n e s s e / / p r o p ó s i t o , b e m c o m o t o d a a r e g r a

d o s e u c o m p o r t a m e n t o , l h e s e r i a m i n d i c a d a s c o m m u i t o

m a i o r e x a c t i d ã o p e l o i n s t i n t o , e a q u e l a f i n a l i d a d e o b t e r i a

p o r m e i o d e l e m u i t o m a i o r s e g u r a n ç a d o q u e p e l a r a z ã o ;

e se , a i n d a p o r c i m a , essa r a z ã o tivesse s i do a t r i b u í d a à

c r i a t u r a c o m o u m favor, e la s ó l h e p o d e r i a t e r s e r v i d o p a r a

se e n t r e g a r a c o n s i d e r a ç õ e s s o b r e a feliz d i s p o s i ç ã o da sua

n a t u r e z a , p a r a a a d m i r a r , a l egra r - se c o m e la e m o s t r a r - s e

p o r e la a g r a d e c i d a à C a u s a ben faze j a , m a s n ã o p a r a s u b m e ­

t e r à s u a d i r e c ç ã o f raca e e n g a n a d o r a a s u a f a c u l d a d e de

dese ja r , a c h a v a s c a n d o ass im a i n t e n ç ã o d a n a t u r e z a ; n u m a

pa l av ra , a n a t u r e z a t e r i a e v i t a d o q u e a r a z ã o caísse no uso

prático e se a t r evesse a e n g e n d r a r c o m as suas f racas luzes

o p l a n o da f e l i c i dade e d o s m e i o s de a a l c a n ç a r ; a n a t u r e z a

t e r i a n ã o só c h a m a d o a s i a e s c o l h a d o s f ins , m a s t a m b é m

a d o s m e i o s , e t e r i a c o m sáb ia p r u d ê n c i a c o n f i a d o a m b a s

a s coisas s i m p l e s m e n t e ao i n s t i n t o .

O b s e r v a m o s d e fac to q u e q u a n t o m a i s u m a r a z ã o cul­

t ivada se c o n s a g r a ao g o z o da v ida e da f e l i c i d a d e , t a n t o

m a i s o h o m e m , se afasta do v e r d a d e i r o c o n t e n t a m e n t o ; e

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26 I F U N D A M E N T A Ç Ã O DA METAFÍSICA D O S C O S T U M E S

( 7) Moren te (pág. 26) não traduz esta oração (V. O.).

(") Parece-nos ser esta a me lhor t radução a p r o p o r para a expressão a lemã neste contexto: «der natürl iche gesunde Versiand». Morente (pág. 27) t raduz l i tera lmente: «el sano e n t e n d h n i e n t o natural». Delbos (pág. 94): «l ' intell igence nature l le saine», bachel ie r (pág. 16): «nature l lement c o n t e n u dans tout e n t e n d e m e n t sain». (P. Q.)

/ / BA 8

PRIMEIRA SECÇÃO 27

em s i o de b o a v o n t a d e , p o s t o s o b ce r t a s l i m i t a ç õ e s e

o b s t á c u l o s subjec t ivos , l i m i t a ç õ e s e o b s t á c u l o s esses q u e ,

m u i t o l o n g e de o c u l t a r e m e t o r n a r e m i r r e c o n h e c í v e l a b o a

v o n t a d e , a f azem a n t e s r e s sa l t a r p o r c o n t r a s t e e b r i l h a r

c o m luz m a i s c la ra .

D e i x o a q u i d e p a r t e t o d a s a s a c ç õ e s q u e são l o g o r e c o ­

n h e c i d a s c o m o c o n t r á r i a s a o dever , p o s t o p o s s a m se r ú te i s

s o b es te o u a q u e l e a s p e c t o ; p o i s ne l a s n e m s e q u e r s e p õ e a

q u e s t ã o d e s a b e r se f o r a m p r a t i c a d a s por dever; visto e s t a r e m

a té e m c o n t r a d i ç ã o corn e le (*). P o n h o d e l a d o t a m b é m

a s a c ç õ e s q u e são v e r d a d e i r a m e n t e c o n f o r m e s a o dever ,

m a s p a r a a s qua i s o s h o m e n s n ã o s e n t e m i m e d i a t a m e n t e

nenhuma inclinação, e m b o r a as p r a t i q u e m p o r q u e a isso são

l evados p o r o u t r a t e n d ê n c i a . Po is / / é fácil e n t ã o d i s t i n g u i r

se a a c ç ã o c o n f o r m e ao d e v e r foi p r a t i c a d a por dever ou c o m

i n t e n ç ã o ego í s t a . M u i t o m a i s difícil é esta d i s t i n ç ã o q u a n d o

a a c ç ã o é c o n f o r m e ao d e v e r e o suje i to é a l é m disso l e v a d o

a e la p o r i n c l i n a ç ã o imediata. P o r e x e m p l o : - E na v e r d a d e

c o n f o r m e a o d e v e r q u e o m e r c e e i r o n ã o s u b a o s p r e ç o s

a o c o m p r a d o r i n e x p e r i e n t e , e , q u a n d o o m o v i m e n t o d o

n e g ó c i o é g r a n d e , o c o m e r c i a n t e e s p e r t o t a m b é m n ã o faz

s e m e l h a n t e coisa , m a s m a n t é m u m p r e ç o f i x o g e r a l p a r a

t o d a a g e n t e , d e f o r m a q u e u m a c r i a n ç a p o d e c o m p r a r

e m s u a casa t ã o b e m c o m o q u a l q u e r o u t r a pe s soa . E-se,

(*) De acordo com u m a crítica c o m u m a Kant, a sua perspectiva implica q u e u m a pessoa realizará um acto mora lmen te valioso desde que p roceda s egundo o que ju lga ser o seu dever. Sendo assim, ter íamos de louvar o terrorista que mata inocentes po rque julga ter o dever moral de p rocede r dessa forma. Na verdade , a perspectiva de Kant não tem esta implicação: dado que as atrocidades do terrorista serão seguramente contrár ias ao dever (ainda q u e ele, e r r adamen te , possa acredi tar no con t rá r io ) , nem faz sent ido p e r g u n t a r se foram prat icadas por dever. Agir por dever implica tei u m a concepção correcta acerca do que é permissível fazer de acordo com a lei moral .

/ / B A 9

meio p a r a o u t r a i n t e n ç ã o , m a s u m a vontade boa em si mesma,

p a r a o q u e a r a z ã o e r a a b s o l u t a m e n t e n e c e s s á r i a , u m a

vez q u e a n a t u r e z a d e r e s t o a g i u e m t u d o c o m a c e r t o n a

r e p a r t i ç ã o das suas f a c u l d a d e s e t a l e n t o s . Esta v o n t a d e n ã o

s e r á n a v e r d a d e o ú n i c o b e m n e m o b e m to ta l , m a s t e r á

de se r c o n t u d o o b e m s u p r e m o e a c o n d i ç ã o de t u d o o

m a i s , m e s m o de t o d a a a s p i r a ç ã o de f e l i c i dade . E n e s t e

caso é fácil de c o n c i l i a r c o m a s a b e d o r i a da n a t u r e z a o

fac to de o b s e r v a r m o s q u e a c u l t u r a da r a z ã o , q u e é neces ­

sá r ia p a r a a p r i m e i r a e i n c o n d i c i o n a l i n t e n ç ã o , de m u i t a s

m a n e i r a s r e s t r i n g e , p e l o m e n o s n e s t a vida, a c o n s e c u ç ã o

d a s e g u n d a q u e é s e m p r e c o n d i c i o n a d a , q u e r d i z e r d a

f e l i c i d a d e , e p o d e m e s m o reduz i - la a m e n o s de n a d a (•),

s e m q u e c o m isto a n a t u r e z a fal te à sua f i n a l i d a d e , p o r q u e

a r a z ã o , q u e r e c o n h e c e o s eu s u p r e m o d e s t i n o p r á t i c o na

f u n d a ç ã o d u m a b o a v o n t a d e , a o a l c a n ç a r es ta i n t e n ç ã o é

c a p a z d u m a só sa t i s fação c o n f o r m e à s u a p r ó p r i a í n d o l e ,

is to é , a q u e p o d e a c h a r ao a t i n g i r um fim q u e só ela (a

r a z ã o ) / / d e t e r m i n a , a i n d a q u e isto p o s s a e s t a r l i g a d o a

m u i t o d a n o c a u s a d o aos fins d a i n c l i n a ç ã o .

P a r a desenvolver , p o r é m , o c o n c e i t o d e urna b o a v o n t a d e

a l t a m e n t e e s t imáve l e m s i m e s m a e s e m q u a l q u e r i n t e n ç ã o

u l t e r i o r , c o n c e i t o q u e r e s i d e j á n o b o m s e n s o n a t u r a l (*) e

q u e m a i s p r e c i s a d e se r e s c l a r e c i d o d o q u e e n s i n a d o , es te

c o n c e i t o q u e está s e m p r e n o c u m e d a a p r e c i a ç ã o d e t o d o o

va lo r das nossas a c ç õ e s e q u e c o n s t i t u i a c o n d i ç ã o de t o d o

o r e s to , v a m o s e n c a r a r o c o n c e i t o do D e v e r q u e c o n t é m

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28 I FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA D O S C O S T U M E S

/ / BA 10,

PRIMEIRA SECÇÃO 29

é c o n s e q u e n t e m e n t e h o n r o s o e m e r e c e l o u v o r e estí­

m u l o , m a s n ã o e s t ima ; po i s à s u a m á x i m a falta o c o n t e ú d o

m o r a l q u e m a n d a q u e tais a c ç õ e s s e p r a t i q u e m , n ã o p o r

i n c l i n a ç ã o , m a s por dever. A d m i t i n d o pois q u e o â n i m o

desse f i l a n t r o p o est ivesse v e l a d o p e l o d e s g o s t o pessoa l

q u e a p a g a t o d a / / a c o m p a i x ã o p e l a s o r t e a lhe i a , e q u e

ele c o n t i n u a s s e a t e r a p o s s i b i l i d a d e de fazer b e m aos des ­

g r a ç a d o s , m a s q u e a d e s g r a ç a a l h e i a o n ã o tocava p o r q u e

estava b a s t a n t e o c u p a d o c o m a s u a p r ó p r i a ; s e a g o r a , q u e

n e n h u m a i n c l i n a ç ã o o e s t i m u l a j á , e le se a r r a n c a s s e a es ta

m o r t a l i n s e n s i b i l i d a d e e p r a t i c a s se a a c ç ã o s e m q u a l q u e r

i n c l i n a ç ã o , s i m p l e s m e n t e p o r dever , só e n t ã o é q u e e la

t e r i a o seu a u t e n t i c o va lo r m o r a l . Mais a i n d a : - Se a n a t u ­

r eza tivesse p o s t o n o c o r a ç ã o d e s t e o u d a q u e l e h o m e m

p o u c a s impa t i a , s e e le ( h o m e m h o n r a d o d e r e s to ) fosse

p o r t e m p e r a m e n t o frio e i n d i f e r e n t e à s d o r e s d o s o u t r o s

p o r se r e le m e s m o d o t a d o e s p e c i a l m e n t e d e p a c i ê n c i a e

c a p a c i d a d e de r e s i s t ê n c i a às suas p r ó p r i a s d o r e s e p o r isso

p r e s s u p o r e ex ig i r as m e s m a s q u a l i d a d e s d o s o u t r o s ; se a

n a t u r e z a n ã o tivesse fe i to d e u m tal h o m e m ( q u e e m b o a

v e r d a d e n ã o se r i a o s eu p i o r p r o d u t o ) p r o p r i a m e n t e u m

f i l a n t r o p o , -- n ã o p o d e r i a e le e n c o n t r a i ' a i n d a d e n t r o de s i

u m m a n a n c i a l q u e l h e p u d e s s e d a r u m va lo r m u i t o m a i s

e l e v a d o d o q u e o d u m t e m p e r a m e n t o b o n d o s o ? S e m dúvi­

da! - e e x a c t a m e n t e aí é q u e c o m e ç a o va lo r do ca rác t e r ,

q u e é m o r a l m e n t e s e m q u a l q u e r c o m p a r a ç ã o o ma i s a l to ,

e q u e cons i s te em fazer o b e m , n ã o p o r i n c l i n a ç ã o , m a s

p o r dever .

A s s e g u r a r c a d a q u a l a s u a p r ó p r i a f e l i c i dade é um d e v e r

( p e l o m e n o s i n d i r e c t a m e n t e ) ; p o i s a a u s ê n c i a d e c o n t e n ­

t a m e n t o / / c o m o s eu p r ó p r i o e s t a d o n u m t o r v e l i n h o d e

m u i t o s c u i d a d o s e n o m e i o d e n e c e s s i d a d e s insat is fe i tas

p o d e r i a f a c i l m e n t e t o rna r - s e n u m a g r a n d e tentação para a

/ / B A 11, 12

po i s , s e r v i d o honradamente; m a s isso a i n d a n ã o é b a s t a n t e

p a r a a c r e d i t a r q u e o c o m e r c i a n t e t e n h a ass im p r o c e d i d o

p o r d e v e r e p r i n c í p i o s de h o n r a d e z ; o s e u i n t e r e s s e ass im

o exig ia ; m a s n ã o é de a c e i t a r q u e e le a l é m d isso t e n h a

t i d o u m a i n c l i n a ç ã o i m e d i a t a p a r a o s seus f r egueses , d e

m a n e i r a a n ã o fazer, p o r a m o r d e l e s , p r e ç o m a i s van t a jo so

a um do q u e a o u t r o . A a c ç ã o n ã o foi, p o r t a n t o , p r a t i c a d a

n e m p o r d e v e r n e m p o r i n c l i n a ç ã o i m e d i a t a , m a s s o m e n t e

c o m i n t e n ç ã o ego í s t a .

P e l o c o n t r á r i o , c o n s e r v a r c a d a q u a l a s u a v ida é um

dever , e é a l é m disso u m a coisa p a r a q u e t o d a a g e n t e t e m

i n c l i n a ç ã o i m e d i a t a . Mas p o r isso m e s m o é q u e o c u i d a d o ,

p o r vezes a n s i o s o , q u e a m a i o r i a d o s h o m e n s l h e d e d i c a m

n ã o t e m n e n h u m va lo r i n t r í n s e c o e a m á x i m a q u e o e x p r i ­

m e n e n h u m c o n t e ú d o m o r a l . O s h o m e n s c o n s e r v a m a

s u a v ida conforme // ao dever, s e m d ú v i d a , m a s n ã o por dever.

Em c o n t r a p o s i ç ã o , q u a n d o as c o n t r a r i e d a d e s e o d e s g o s t o

s e m e s p e r a n ç a r o u b a r a m t o t a l m e n t e o gos to d e viver; q u a n ­

d o o infel iz, c o m fo r t a l eza d e a l m a , ma i s e n f a d a d o d o q u e

d e s a l e n t a d o ou a b a t i d o , dese ja a m o r t e , e c o n s e r v a c o n t u d o

a v ida s e m a a m a r , n ã o p o r i n c l i n a ç ã o o u m e d o , m a s p o r

dever , e n t ã o a s u a m á x i m a t e m u m c o n t e ú d o m o r a l .

Se r ca r i t a t ivo q u a n d o se p o d e sê-lo é um dever , e há

a l é m disso m u i t a s a l m a s d e d i s p o s i ç ã o t ã o c o m p a s s i v a q u e ,

m e s m o s e m n e n h u m o u t r o m o t i v o d e v a i d a d e o u i n t e r e s s e ,

a c h a m í n t i m o p r a z e r em e s p a l h a r a l e g r i a à s u a vo l t a e se

p o d e m a l e g r a r c o m o c o n t e n t a m e n t o d o s o u t r o s , e n q u a n t o

es te é o b r a sua . E u a f i r m o p o r é m q u e n e s t e caso u m a tal

a c ç ã o , p o r c o n f o r m e a o dever , p o r a m á v e l q u e e l a seja,

n ã o t e m c o n t u d o n e n h u m v e r d a d e i r o va lo r m o r a l , m a s vai

e m p a r e l h a r c o m o u t r a s i n c l i n a ç õ e s , p o r e x e m p l o o a m o r

d a s h o n r a s q u e , q u a n d o p o r feliz a c a s o t o p a a q u i l o q u e

e f e c t i v a m e n t e é de i n t e r e s s e g e r a l e c o n f o r m e ao dever ,

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30 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES

transgressão dos deveres. Mas , t a m b é m s e m c o n s i d e r a r a q u i o

dever , t o d o s os h o m e n s t ê m já p o r s i m e s m o s a mais fo r t e e

í n t i m a i n c l i n a ç ã o p a r a a f e l i c i d a d e , p o r q u e é e x a c t a m e n t e

n e s t a i d e i a q u e s e r e ú n e m n u m a s o m a t o d a s a s i n c l i n a ç õ e s .

Mas o q u e p r e s c r e v e a f e l i c i dade é g e r a l m e n t e cons t i ­

t u í d o d e tal m a n e i r a q u e vai c a u s a r g r a n d e d a n o a a lgu­

m a s i n c l i n a ç õ e s , d e f o r m a q u e o h o m e m n ã o p o d e fazer

i d e i a p r e c i s a e s e g u r a da s o m a d e sa t i s fação de t o d a s elas

a q u e c h a m a f e l i c i d a d e (*); p o r isso n ã o é de a d m i r a r q u e

u m a ú n i c a i n c l i n a ç ã o d e t e r m i n a d a , e m vista d a q u i l o q u e

p r o m e t e e do t e m p o em q u e se p o d e a l c a n ç a r a sua satisfa­

ç ã o , p o s s a s o b r e p o r - s e a u m a ide i a t ão vac i l an t e . Assim um

h o m e m , p o r e x e m p l o u m g o t o s o , p o d e e s c o l h e r o r e g a l o

q u e l h e d á q u a l q u e r c o m i d a d e q u e g o s t a e s o í i e r q u a n t o

p o d e , p o r q u e , p e l o m e n o s s e g u n d o o seu cá l cu lo , n ã o qu i s

r e n u n c i a r a o p r a z e r d o m o m e n t o p r e s e n t e e m favor d a

e s p e r a n ç a talvez i n f u n d a d a d a f e l i c i d a d e q u e possa h a v e r

n a s a ú d e . Mas t a m b é m n e s t e caso , m e s m o q u e a i n c l i n a ç ã o

u n i v e r s a l p a r a a f e l i c i d a d e n ã o d e t e r m i n a s s e a sua v o n t a d e ,

m e s m o q u e a s a ú d e , p e l o m e n o s p a r a e l e , n ã o e n t r a s s e tão

n e c e s s a r i a m e n t e n o c á l c u l o , a i n d a a q u i , c o m o e m t o d o s o s

o u t r o s casos , c o n t i n u a a exis t i r u m a lei q u e lhe p r e s c r e v e

a p r o m o ç ã o / / d a s u a f e l i c idade , n ã o p o r i n c l i n a ç ã o , m a s

p o r d e v e r - e é s o m e n t e e n t ã o q u e o s e u c o m p o r t a m e n t o

t e m p r o p r i a m e n t e va lo r m o r a l .

(") K a n t c o n c e b e a f e l i c i d a d e e m t e r m o s d e sa t i s f ação d e d e s e j o s o u

p r e f e r ê n c i a s . Há duas a l t e r n a t i v a s principais a e s t e género de c o n c e p ç ã o de

felicidade: o h e d o n i s m o e o p e r f e c c i o n i s m o . Os hedonistas d e f e n d e m q u e

a f e l i c i d a d e c o n s i s t e s o m e n t e e m e x p e r i ê n c i a s a p r a z í v e i s e n a a u s ê n c i a d e

experiências d o l o r o s a s . P a r a os p e r f e c c i o n i s t a s , p e l o contrár io, a f e l i c i d a d e

r e s u l t a d a p r e s e n ç a d e b e n s q u e t ê m v a l o r i n d e p e n d e n t e m e n t e d e s e r e m

d e s e j a d o s (e.g., o c o n h e c i m e n t o , a a m i z a d e e a a p r e c i a ç ã o e s t é t i c a ) , e a q u i l o

q u e faz esses b e n s c o n t r i b u í r e m p a r a a f e l i c i d a d e é o l a c t o d e s e n v o l v e r e m

o u a p e r f e i ç o a r e m o q u e é f u n d a m e n t a l n a n a t u r e z a h u m a n a .

/ / B A 13

PRIMEIRA SECÇÃO 31

É s e m d ú v i d a t a m b é m ass im q u e s e d e v e m e n t e n d e r o s

passos d a E s c r i t u r a e m q u e s e o r d e n a q u e a m e m o s o p r ó ­

x i m o , m e s m o o n o s s o i n i m i g o . Pois q u e o a m o r e n q u a n t o

i n c l i n a ç ã o n ã o p o d e se r o r d e n a d o , m a s o b e m - f a z e r p o r

dever , m e s m o q u e a isso n ã o s e j amos l evados p o r n e n h u ­

ma i n c l i n a ç ã o e a t é se o p o n h a a e le u m a ave r são n a t u r a l

e i nvenc íve l , é a m o r prático e n ã o patológico, q u e r e s i d e na

v o n t a d e e n ã o n a t e n d ê n c i a d a s e n s i b i l i d a d e , e m p r i n c í p i o s

de a c ç ã o e n ã o em c o m p a i x ã o l â n g u i d a . E só esse a m o r é

q u e p o d e se r o r d e n a d o .

A s e g u n d a p r o p o s i ç ã o é : — U m a a c ç ã o p r a t i c a d a p o r

d e v e r t e m o seu valor m o r a l , não no propósito q u e c o m ela se

q u e r a t ingir , m a s n a m á x i m a q u e a d e t e r m i n a ; n ã o d e p e n d e

p o r t a n t o d a r e a l i d a d e d o o b j e c t o d a acção , m a s s o m e n t e

do princípio do querer s e g u n d o o qua l a a cção , a b s t r a i n d o

de t o d o s os ob jec tos da f a c u l d a d e de desejar , foi p r a t i c a d a .

Q u e o s p r o p ó s i t o s q u e p o s s a m o s ter a o p r a t i c a r ce r tas

acções e os seus efei tos, c o m o f ins e m ó b i l e s da v o n t a d e ,

n ã o p o d e m d a r à s a c ç õ e s n e n h u m va lor i n c o n d i c i o n a d o ,

n e n h u m va lo r m o r a l , r e s u l t a c l a r a m e n t e d o q u e f i c a a t rás .

Em q u e é q u e r e s ide po i s es te valor, se e le se n ã o e n c o n t r a

n a / / v o n t a d e c o n s i d e r a d a e m r e l a ç ã o c o m o efei to e spe ra ­

d o dessas acções? N ã o p o d e res id i r e m ma i s p a r t e a l g u m a

s e n ã o no princípio da vontade, a b s t r a i n d o d o s f ins q u e p o s s a m

ser r ea l i z ados p o r u m a tal acção ; po is q u e a v o n t a d e está

c o l o c a d a e n t r e o seu p r i n c í p i o a priori, q u e é fo rma l , e o

seu m ó b i l a posteriori, q u e é m a t e r i a l , p o r assim d i ze r n u m a

e n c r u z i l h a d a ; e , u m a vez q u e ela t e m d e ser d e t e r m i n a d a

p o r q u a l q u e r coisa, t e r á d e ser d e t e r m i n a d a p e l o p r i n c í p i o

fo rmal do q u e r e r em ge ra l q u a n d o a a c ç ã o seja p r a t i c a d a

p o r dever , po is lhe foi t i r a d o t o d o o p r i n c í p i o m a t e r i a l .

A t e r c e i r a p r o p o s i ç ã o , c o n s e q u ê n c i a das d u a s a n t e r i o r e s ,

formulá- la - ia eu ass im: — Dever é a necessidade de uma acção

/ / B A 14

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32 j FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS C O S T U M E S

O A boa vontade é motivada s imul t aneamente pela lei mora l , que é objectiva, e pelo sen t imen to de respei to , que é subjectivo. Isto, p o r é m , não significa que a boa vontade t e n h a duas motivações distintas: a mo­tivação é só uma , dado que o respei to só p o d e ter a lei c o m o objecto, mas p o d e ser descri ta de duas manei ras diferentes.

(") Máxima é o pr incíp io subjectivo do querer ; o p r inc íp io objec­tivo (isto é o que serviria t ambém subject ivamente de pr inc íp io prát ico a todos os seres racionais, se a razão fosse in te i ramente s enhora da faculdade cie desejar) é a lei prática. (Nota de Kant.)

/ / BA'15

PRIMEIRA SECÇÃO 33

nossa s i t u a ç ã o , e m e s m o o f o m e n t o da f e l i c i dade a l h e i a )

p o d i a m t a m b é m se r a l c a n ç a d o s p o r o u t r a s causas , e n ã o s e

p rec i sava p o r t a n t o p a r a ta l d a v o n t a d e d e u m ser r a c i o n a l ,

na q u a l v o n t a d e - e só n e l a - se p o d e e n c o n t r a r o b e m

s u p r e m o e i n c o n d i c i o n a d o . P o r c o n s e g u i n t e , n a d a s e n ã o a

representação da lei em si m e s m a , q u e / / em verdade só no ser

racional se realiza, e n q u a n t o é ela, e n ã o o e s p e r a d o e fe i to ,

q u e d e t e r m i n a a v o n t a d e , p o d e c o n s t i t u i r o b e m e x c e l e n t e

a q u e c h a m a m o s m o r a l , o q u a l s e e n c o n t r a j á p r e s e n t e na

p r ó p r i a pes soa q u e age s e g u n d o esta lei , m a s s e n ã o d e v e

e s p e r a r s o m e n t e d o e fe i to d a a c ç ã o (*).

(*) Poder iam objectar-me que eu, por trás da palavra respeito, busco apenas refúgio n u m sen t imen to obscuro, em vez de dar informação clara sobre esta questão por meio de um concei to da razão. Porém, embora o respeito seja um sen t imento , não é um sen t imento recebido por in l luêivia ; é, pelo cont rár io , um sen t imento que se produz por si mesmo através dum concei to da razão, e assim é especificamente dist into de iodos os sent imentos do pr imeiro género que se podem repor ta r à inclinação <»> a " medo . Aquilo que eu r econheço imedia tamente como lei para mim, reconheço-o com um sen t imen to de respeito que nao significa senão a consciência da subordinação da minha vontade a uma lei. sem intervenção de outras influências sobre a minha sensibil idade. A de te rminação imediata da vontade pela lei e a consciência desta de te rminação é que se chama respeito, de m o d o que se deve ver o efeito da lei sobre o sujeito e não a sua causa. O respei to é p rop r i amen te a representação de uni valor que causa d a n o ao meu a m o r - p r ó p n o . JÍ por tan to alguma coisa que não pode ser cons iderada como objecto nem da inclinação n e m do temor, e m b o r a t e n h a algo de análogo com ambos s imul taneamente . O objectado respei to é por tan to s implesmente a lei, quero dizei - aquela lei que nos impomos a nós mesmos, e no entan­to como necessária em si. Como lei que é, estamos-lhe subord inados , sem termos que consul tar o amor-própr io ; mas como lei que nós nos impomos a nós mesmos, é ela uma consequênc ia da nossa vontade e tem, de um lado, analogia com o temor, e, do ou t ro , com a incl inação. / / T o d o o respeito p o r uma pessoa é p r o p r i a m e n t e só respeito pela lei (lei da rect idão, e t c ) , cia qual essa pessoa nos dá o exemplo . Porque

/ / BA 16. not;>; / / RA 16

por respeito à lei. P e l o o b j e c t o , c o m o efe i to da a c ç ã o em vista,

p o s s o eu s e n t i r em v e r d a d e inclinação, m a s nunca respeito,

e x a c t a m e n t e p o r q u e é s i m p l e s m e n t e um efe i to e n ã o a

a c t i v i d a d e d e u m a v o n t a d e . D e igua l m o d o , n ã o p o s s o t e r

r e s p e i t o p o r q u a l q u e r i n c l i n a ç ã o e m g e r a l , seja e l a m i n h a

o u d e u m o u t r o ; p o s s o q u a n d o m u i t o , n o p r i m e i r o caso ,

aprová- la , e , n o s e g u n d o , p o r vezes amá- la m e s m o , isto

é , c o n s i d e r á - l a c o m o favorável a o m e u p r ó p r i o i n t e r e s s e .

S ó p o d e se r o b j e c t o d e r e s p e i t o e p o r t a n t o m a n d a m e n t o

a q u i l o q u e es tá l i gado à m i n h a v o n t a d e s o m e n t e c o m o

p r i n c í p i o e n u n c a c o m o efe i to , n ã o a q u i l o q u e se rve

à m i n h a i n c l i n a ç ã o m a s o q u e a d o m i n a ou q u e , p e l o

m e n o s , a exc lu i d o c á l c u l o / / n a e s c o l h a , q u e r d i z e r a

s i m p l e s lei p o r s i m e s m a . O r a , s e u m a a c ç ã o r e a l i z a d a p o r

d e v e r d e v e e l i m i n a r t o t a l m e n t e a i n f l u ê n c i a d a i n c l i n a ç ã o

e c o m e la t o d o o o b j e c t o da v o n t a d e , n a d a m a i s r e s t a à

v o n t a d e q u e a possa d e t e r m i n a r do q u e a lei'objectivamente,

e, s u b j e c t i v a m e n t e , o puro respeito p o r es ta lei p r á t i c a (" j , e

p o r c o n s e g u i n t e a m á x i m a (**) q u e m a n d a o b e d e c e r a essa

lei , m e s m o c o m p r e j u í z o d e t o d a s a s m i n h a s i n c l i n a ç õ e s .

O va lo r m o r a l d a a c ç ã o n ã o r e s i d e , p o r t a n t o , n o e fe i to

q u e d e l a s e e s p e r a ; t a m b é m n ã o r e s i d e e m q u a l q u e r p r i n ­

c í p i o da a c ç ã o q u e p r e c i s e de p e d i r o seu m ó b i l a es te

e fe i to e s p e r a d o . Pois t o d o s es tes efe i tos ( a a m e n i d a d e d a

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34 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS C O S T U M E S

/ / Mas que lei pode ser então essa cuja representação, mesmo sem tomar em consideração o efeito que dela se espera, tem de determinar a vontade para que esta se possa chamar boa absolutamente e sem restrição? Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que lhe poderiam advir da obediência a qualquer lei ( 9), nada mais resta do que a conformidade a uma lei universal das acções em geral que possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer

também que a minha máxima se torne uma lei universal. Aqui é pois a simples conformidade à lei em geral (sem tomar como base qualquer lei destinada a certas acções) o que serve de princípio à vontade, e também o que tem de lhe servir de princípio, para que o dever não seja por toda parte uma vã ilusão e um conceito quimérico; e com isto estã perfeitamente de acordo a comum razão humana (U)) nos seus juízos práticos e tem sempre diante dos olhos este princípio.

consideramos também o a largamento dos nossos talentos como um dever, r ep resen tamo-nos igua lmente n u m a pessoa de ta lento por assim dizer o exemplo duma lei (a de nos to rnarmos semelhan tes a ela por meio do exercício) , e é isso que constitui o nosso respei to . Todo o c h a m a d o in­teresse mora l consiste s implesmente no resprito'peln lei. (Nota de Kant.)

('•') Moren te (pág. 35) in te rpre ta este passo de mane i ra to ta lmente e r rada ao traduzir: «Como he subst ra ído la voluntad a todos los afanes q u e pud ie ran apar tar ia dei cumpl imien to de u n a ley...». O original diz: «Da ich den Willen aller Antr iebe be raube t habe , die ihm aus de r Befolgung i rgendeines Gesetzes en t sp r ingen könnten. . .» (P 0_.)

("') Ativemo-nos, neste passo, à t radução literal do original < die geme ine Menschenvernunf t» , embora nos pareça que seria me lho r t raduzir por «o h u m a n o senso comum». Delbos (pág. 103) traduz: «la raison c o m m u n e des hommes» ; Moren te (pág. 35): «la ra/.ón vulgar de los hombres»; Lachel ier (pág. 25) , quase em concordânc ia connosco: «Le bon sens populaire .» (P. Q.)

/ / B A 17

PRIMEIRA SECÇÃO 35

/ /Ponhamos, por exemplo, a questão seguinte: — Não posso eu, quando me encontro em apuros, fazer uma pro­messa com a intenção de a não cumprir? Facilmente dis­tingo aqui os dois sentidos que a questão pode ter: — se é prudente, ou se é conforme ao dever, fazer uma falsa promessa. O primeiro caso pode sem dúvida apresentar-se muitas vezes. É verdade que vejo bem que não basta furtar--me ao embaraço presente por meio desta escapatória, mas que tenho de ponderar se desta mentira me não poderão advir posteriormente incómodos maiores do que aqueles de que agora me liberto; e como as consequên­cias, a despeito da minha pretensa esperteza, não são assim tão fáceis de prever, devo pensar que a confiança uma vez perdida me pode vir a ser mais prejudicial do que todo o mal que agora quero evitar; posso enfim perguntar se não seria mais prudente agir aqui em conformidade com uma máxima universal e adquirir o costume de não prometer nada senão com a intenção de cumprir a promessa. Mas em breve se me torna claro que uma tal máxima tem sempre na base o receio das consequências. Ora ser verdadeiro por dever é uma coisa totalmente diferente de sê-lo por medo das consequências prejudiciais; enquanto no pri­meiro caso o conceito da acção em si mesma contém já para mim uma lei, no segundo tenho antes que olhar à minha volta para descobrir que efeitos poderão para mim / /estar ligados à acção. Porque, se me afasto do princípio do dever, isso é de certeza mau; mas se for infiel à minha máxima de esperteza, isso poderá trazer-me por vezes grandes vantagens, embora seja em verdade mais seguro continuar-lhe fiel. Entretanto, para resolver da maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma promessa mentirosa é conforme ao dever, preciso só de perguntar a mim mesmo: — Ficaria eu satisfeito de ver a

/ / B A 18, 19

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36 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA. D O S C O S T U M E S

(*) Este parágrafo e o início do seguinte sugerem e n g a n a d o r a m e n t e que , a part i r do m o m e n t o em que c o m p r e e n d e m o s o pr inc íp io s u p r e m o da mora l idade , se to rna bastante fácil de t e rmina r em todos os casos o que devemos fazer. Não é isso que Kant nos diz no Prefácio (BA 9) . E na Metafísica dos Costumes encon t r amos diversas secções com «questões casuísticas» (problemas éticos bastante concre tos e específicos) pa ra as quais Kant n ã o oferece resposta, o que evidencia o seu reconhec i ­m e n t o de q u e a aplicação do imperat ivo categórico envolve p o r vezes dificuldades consideráveis.

/ / BA 20

PRIMEIRA SECÇÃO 37

mas porque ela não pode caber como princípio numa possível legislação universal. Ora a razão exige-me respeito por uma tal legislação, da qual em verdade presentemente não vejo em que se funde (problema que o filósofo pode investigar), mas de que pelo menos compreendo que é uma apreciação do valor que de longe ultrapassa o de tudo aquilo que a inclinação louva, e que a necessidade das minhas acções por puro respeito à lei prática é o que constitui o dever, perante o qual tem de ceder qualquer outro motivo, porque ele é a condição de uma vontade boa em si, cujo valor é superior a tudo.

Assim, no conhecimento moral da razão humana vulgar, chegámos nós a alcançar o seu princípio, princípio esse que a razão vulgar em verdade não concebe abstractamente numa forma geral, mas que mantém sempre realmente diante dos olhos e de que se serve como padrão dos seus juízos. Seria fácil mostrar aqui como //ela, com esta bússola na mão, sabe perfeitamente distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o que é mau, o que é conforme ao dever ou o que é contrário a ele. Basta, sem que com isto lhe ensinemos nada de novo, que chamemos a sua atenção, como fez SÓCRATES, para o seu próprio prin­cípio, e que não é preciso nem ciência nem filosofia para que ela saiba o que há a fazer para se ser honrado e bom, mais ainda, para se ser sábio e virtuoso. Podia-se mesmo já presumir antecipadamente que o conhecimento daquilo que cada homem deve fazer, e por conseguinte saber, é também pertença de cada homem, mesmo do mais vulgar. E aqui não nos podemos furtar a uma certa admiração ao ver como a capacidade prática de julgar se avantaja tanto à capacidade teórica no entendimento humano vulgar. Nesta última, quando a razão vulgar se atreve a afastar-se das leis da experiência e dos dados dos sentidos, vai cair

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minha máxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa não verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como para os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo: — Toda a gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha numa dificuldade de que não pode sair de outra maneira? Em breve reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas que não posso querer uma lei universal de mentir; pois segundo uma tal lei, não poderia propriamente haver já promessa alguma, porque seria inútil afirmar a minha vontade relativamente às minhas futuras acções a pessoas que não acreditariam na minha afirmação, ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda. Por conseguinte a minha máxima, uma vez arvorada em lei universal, destruir-se-ia a si mesma necessariamente.

Não preciso pois de perspicácia de muito largo alcance para saber o que hei-de fazer para que o meu querer / / seja moralmente bom. Inexperiente a respeito do curso das coisas do mundo, incapaz de prevenção em face dos acontecimentos que nele se venham a dar, basta que eu pergunte a mim mesmo: — Podes tu querer também que a tua máxima se converta em lei universal (*)? Se não podes, então deves rejeitá-la, e não por causa de qualquer pre­juízo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros,

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38 I FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS C O S T U M E S

(") «Der gemeine Verstand» —- Poder ia t ambém traduzir-se: «o senso comum». (P. Q.) .

('-') Moren te (pág. 39) t raduz e r r a d a m e n t e : «lo que es más frecuen­te». O original diz: «was das meiste ist.» (P. Q.)

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PRIMEIRA SECÇÃO 39

do que em saber - precisa também da ciência, não para aprender dela, mas para assegurar às suas / / prescrições entrada nas almas e para lhes dar estabilidade. O homem sente em si mesmo um forte contrapeso contra todos os mandamentos do dever que a razão lhe representa como tão dignos de respeito: são as suas necessidades e inclina­ções, cuja total satisfação ele resume sob o nome de feli­cidade. Ora a razão impõe as suas prescrições, sem nada aliás prometer às inclinações, irremitentemente, e também como que com desprezo e menoscabo daquelas pretensões tão tumultuosas e aparentemente tão justificadas (e que se não querem deixar eliminar por qualquer ordem). Daqui nasce uma dialéctica natural, quer dizer uma tendência para opor arrazoados e subtilezas (1S) às leis severas do dever, para pôr em dúvida a sua validade ou pelo menos a sua pureza e o seu rigor e para as fazer mais conformes, se possível, aos nossos desejos e inclinações, isto é, no fundo, para corrompê-las e despojá-las de toda a sua dignidade, o que a própria razào prática vulgar acabará por condenar.

É assim, pois, que a razão humana vulgar, impelida por motivos propriamente práticos e não por qualquer neces­sidade de especulação (que nunca a tenta, enquanto ela se satisfaz com ser simples sã razão), se vê levada a sair do seu círculo e a dar um passo para dentro do campo da filosofia prática. Aí encontra ela informações e instruções claras sobre a fonte do seu princípio, / / sobre a sua ver­dadeira determinação em oposição às máximas que se apoiam sobre a necessidade e a inclinação. Assim espera ela sair das dificuldades que lhe causam pretensões opos-

( l : )) «Vernünfteln» é a expressão alemã. Lachelier (pág. 29) t raduz por «chicaner»; Delbos (pág. 109) por «sophistiquer»; Moren te (pág. 40) po r «discutir». (P. Q.)

/ / BA 23,24

em puras incompreensibilidades e contradições consigo mesma ou, pelo menos, num caos de incerteza, escuridão e inconstância. No campo prático, porém, a capacidade de julgar só então começa a mostrar todas as suas vantagens quando o entendimento vulgar ( n ) exclui das leis práticas todos os móbiles sensíveis. Faz-se então mesmo subtil, quer ele queira fazer chicana com a sua consciência ou com outras pretensões em relação com o que deva chamar-se justo, quer queira sinceramente determinar / / o valor das suas acções para sua própria edificação; e - o que é o prin­cipal (1 2) - , neste último caso pode até alimentar esperanças de êxito tão grandes como as de qualquer filósofo, é nisto até mesmo mais seguro do que este, porque o filósofo não pode ter outro princípio que o homem vulgar, mas o seu juízo pode ser facilmente perturbado e desviado do direito caminho por tuna multidão de considerações estranhas ao caso. Não seria, portanto, mais aconselhável, em matéria moral, ficarmo-nos pelo juízo da razão vulgar e só recorrer à filosofia para, quando muito, tornar o sistema dos cos­tumes mais completo e compreensível, expor as regras de maneira mais cómoda com vista ao seu uso (e sobretudo à discussão), mas não para desviar o humano senso comum [den gemeinen Menschenverstand], mesmo em matéria prática, da sua feliz simplicidade e pô-lo por meio da filosofia num novo caminho da investigação e do ensino?

A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. E é por isso que a própria sageza - que de resto consiste mais em fazer ou não fazer

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40 FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA D O S C O S T U M E S

(*) A dialéctica da razão prát ica é a sua tendênc ia na tura l para in­cor re r em contradições , mais p rec i samente para mis turar as exigências do dever com as da felicidade. E m b o r a a l e i mora l esteja ao alcance da razão h u m a n a vulgar, temos essa t endênc ia para a adu l t e ra r e para a in te rpre ta r e r r a d a m e n t e , p r o c u r a n d o ajustá-la aos nossos desejos e inclinações. Segundo Kant, a filosofia mora l ajuda a q u e isso não aconteça , pois faz-nos pe rcebe r c l a ramente a na tureza da b o a vontade e da acção po r dever.

/ / S e g u n d a S e c ç ã o

Transição da Filosofia Moral Popular para a Metafísica d o s C o s t u m e s

Do facto de a t é a g o r a h a v e r m o s t i r a d o o n o s s o c o n ­

ce i to d e d e v e r d o u s o vu lga r d a nossa r a z ã o p r á t i c a n ã o

s e deve de f o r m a a l g u m a c o n c l u i r q u e o t e n h a m o s t ra ta­

d o c o m o u m c o n c e i t o e m p í r i c o . P e l o c o n t r á r i o , q u a n d o

a t e n t a m o s n a e x p e r i ê n c i a h u m a n a d e fazer o u d e i x a r d e

fazer, e n c o n t r a m o s q u e i x a s f r e q u e n t e s e , c o m o nós m e s m o s

c o n c e d e m o s , j u s t a s ( H ) , d e q u e s e n ã o p o d e m a p r e s e n t a r

n e n h u n s e x e m p l o s s e g u r o s d a i n t e n ç ã o d e ag i r p o r p u r o

dever ; p o r q u e , e m b o r a m u i t a s das coisas q u e o dever o r d e n a

p o s s a m a c o n t e c e r em conformidade c o m e le , é c o n t u d o a i n d a

d u v i d o s o q u e e las a c o n t e ç a m v e r d a d e i r a m e n t e por dever e

q u e t e n h a m p o r t a n t o va lo r m o r a l . P o r isso é q u e h o u v e

e m t o d o s o s t e m p o s f i l ó s o f o s q u e n e g a r a m p u r a e s imp les -

( w ) Lachelier (pàg. 31) traduz, a m b i g u a m e n t e : «...nous e n t e n d r o n s

bien des personnes se p la indre , e t j u s t e m e n t nous l 'accordons. . .».

(P- Q-)

/ / BA 25

tas, e fugi r ao p e r i g o de p e r d e r t o d o s o s p u r o s p r i n c í p i o s

m o r a i s e m v i r t u d e d o s e q u í v o c o s e m q u e f a c i l m e n t e cai .

Ass im se d e s e n v o l v e i n s e n s i v e l m e n t e na r a z ã o p r á t i c a vul­

gar , q u a n d o se cul t iva, u m a dialéctica q u e a o b r i g a a b u s ­

ca r a j u d a n a filosofia, c o m o l h e a c o n t e c e n o u s o t e ó r i c o ;

e t a n t o a p r i m e i r a c o m o a s e g u n d a n ã o p o d e r ã o a c h a r

r e p o u s o e m p a r t e a l g u m a a n ã o se r n u m a c r í t i ca c o m p l e t a

da n o s s a r a z ã o . (*)