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Universidade Católica de Brasília – UCB
Escola de Educação, Tecnologia e Comunicação
Curso de Letras
Trabalho de Conclusão de Curso
TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA NOS QUADRINHOS DE ROMEU E JULIETA,
ADAPTADO POR MAURICIO DE SOUSA: QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA
UM PONTO?1
Camilla Lustosa Carvalho2
Profa. MSc. Michelle de Abreu Aio3
Resumo: Este trabalho teve como objetivo explorar a adaptação do clássico de Shakespeare,
Romeu e Julieta, para a história em quadrinhos da Turma da Mônica, verificando as
ocorrências de Tradução Intersemiótica nas principais cenas da versão adaptada. Para tanto, a
pesquisa foi estruturada à luz das teorias de Adaptação (HUTCHEON, 2006) e Tradução
Intersemiótica (PLAZA, 2003). Com isso, depreendeu-se que mais do que dizer que
adaptações são releituras, é necessário compreender o verdadeiro significado disso, aceitando
como válido esse modo de contar histórias e reconhecendo-o como um bom caminho no qual
os leitores em formação podem começar a trilhar seus passos.
Palavras-chave: Adaptação; Romeu e Julieta; História em Quadrinhos; Turma da Mônica;
Tradução Intersemiótica.
INTERSEMIOTIC TRANSLATION IN ROMEO AND JULIET COMICS, ADAPTED
BY MAURICIO DE SOUSA: WHO TELLS A TALE ADDS A TAIL?
Abstract: The purpose of this paper was to explore the adaptation of Shakespeare’s classic,
Romeo and Juliet, into Monica and Friends’ comics. It was found in the main scenes of the
adapted version the occurrences of Intersemiotic Translation. Therefore, this research was
organized based on the theories of Adaptation (HUTCHEON, 2006) and Intersemiotic
Translation (PLAZA, 2003). With this, it was possible to realize that considering adaptations
as re-readings is not sufficient. It is necessary to understand the true meaning of adaptation,
accepting it as a valid way to tell stories, and also recognizing it as a good way in which the
new readers can start to tread their steps.
Keywords: Adaptation; Romeo and Juliet; Comics; Monica and Friends; Intersemiotic
Translation.
1 Artigo apresentado ao Curso de graduação em Letras Inglês da Universidade Católica de Brasília – UCB, como
requisito parcial para obtenção do Título de Licenciado em Língua Inglesa e respectivas literaturas. 2 Graduanda do Curso de Letras Inglês da Universidade Católica de Brasília – UCB. 3 Professora do Curso de Letras Inglês da Universidade Católica de Brasília – UCB.
2
1 INTRODUÇÃO
Por mais que a leitura seja um hábito de muitos na atualidade, sua construção teve
início no passado e desde então não permaneceu estática, desenvolvendo-se ao longo do
tempo e contando com o leitor como um dos critérios a partir do qual é estruturada. Foi o
público consumidor e a vontade do artista de brincar com o próprio texto que deram origem à
adaptação, que chegou para reestruturar o texto original e torná-lo acessível a um maior
número de pessoas. Nesse ramo os clássicos literários ganharam espaço, sendo altamente
reinterpretados para os leitores infantojuvenis, a fim de semear a leitura, na tentativa de
constituí-la como um hábito desde a mais tenra idade.
Contrário ao que se pode pensar, a prática adaptativa não compreende um processo
simplório, e na laboriosa jornada até se chegar ao produto final está inclusa a Tradução
Intersemiótica, que auxilia na transposição dos componentes do original para a nova versão.
As pesquisas e análises realizadas neste trabalho são significativas para ampliar a visão que se
tem a respeito das adaptações, de maneira a não marginalizá-las, uma vez que são resultados
de uma tarefa pautada no princípio de estabelecer uma relação dialógica com as obras
originais correspondentes, sem descaracterizá-las.
Neste trabalho, procurou-se analisar os principais tipos de Tradução Intersemiótica
presentes na adaptação do clássico de Shakespeare, Romeu e Julieta, para os quadrinhos -
nomeadamente, da Turma da Mônica. O objetivo foi identificar os pontos de confluência
entre as duas obras, apontando na adaptação aspectos que, em maior ou menor grau,
estabelecessem um vínculo com o romance original, os quais juntamente com o arcabouço
teórico permitiram enxergar a abrangência do processo adaptativo e de seus possíveis
recursos. Finalmente, observou-se que o ouvinte de uma história é, muitas vezes, quem
determina o modo como ela será contada, manipulando a situação tal qual faz um titeriteiro
com suas marionetes.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 REVISÃO DE LITERATURA
2.1.1 Tradução Intersemiótica
Segundo Pignatari (2004, p. 15), qualquer coisa que esteja sistematizada “ou que tenda
a organizar-se sob a forma de linguagem” verbal ou não, diz respeito à semiótica, que estuda
as ligações entre um sistema de códigos e outro. Posto isto, quando se fala de Tradução
Intersemiótica é possível compreender que se trata de um exercício que excede a prática
interlingual, em que um texto originalmente escrito em um certo idioma é traduzido para
Camilla Lustosa Carvalho 3
outro. Refere-se, portanto, à tradução de um sistema de signos, seja ele verbal, gestual, visual
ou sonoro, para um sistema distinto.
A tradução, para Diniz (1999, p. 30), “é um texto alusivo a outro(s) texto(s), que
mantém com ele(s) uma determinada relação ou que ainda o(s) representa de algum modo”.
Partindo desse pressuposto, compreende-se que é a ligação entre a e b o objeto dos estudos da
tradução na esfera da intersemiótica. Tem-se a exemplo disso as várias versões para a tragédia
de Romeu e Julieta, nas quais há consonância entre o contexto semiótico e a obra-base, de
sorte que o novo script, adaptado, transporta referências do original por meio dos recursos que
lhe são possíveis utilizar.
Uma vez que compreende meios que diferem entre si, a Tradução Intersemiótica
expressa-se entre sistemas variados levando o conteúdo primordial de um para outro, em
graus diferentes de carga semântica. Para tanto, na tradução entre meios, além de questões
intersemióticas, há uma série complexa de sistemas tecnológicos, culturais, políticos e de
classificação etária diretamente relacionados ao público-alvo, os quais são indispensáveis
durante o processo de tradução.
Há três formas ou “matrizes fundamentais de tradução” de acordo com Plaza (2003, p.
89): Icônica, Indicial e Simbólica. A Tradução Icônica é aquela propensa a elevar o índice de
informação estética, pautando-se no princípio de similaridade da estrutura. Quer dizer:
“Temos, assim, analogia entre os objetos imediatos, equivalências entre o igual e o parecido,
que demonstram a vida cambiante da transformação sígnica.” (PLAZA, 2003, p. 89-90).
O autor recorre metaforicamente a noções da física e da química para classificar a
Tradução Icônica em dois tipos: Isomórfica, “quando substâncias diferentes cristalizam-se no
mesmo sistema, com a mesma disposição e orientação” (PLAZA, 2003, p. 90); e Paramórfica,
que consiste em “fazer aparecer o segundo modelo (a tradução) similar ou equivalente ao
primeiro, porém, com estrutura diferente e equivalente” (PLAZA, 2003, p. 90). Cabe ressaltar
que enquanto a primeira busca analogias entre as formas, a segunda se atém ao estímulo de
analogias entre original e tradução no que tange às sensações.
Por sua vez, a Tradução Indicial baseia-se no contato entre original e tradução,
indicando uma relação de continuidade entre ambos. “O objeto imediato do original é
apropriado e transladado para um outro meio. Nesta mudança, tem-se a transformação de
qualidade do objeto imediato, pois o novo meio semantiza a informação que veicula.”
(PLAZA, 2003, p. 91).
Visto que esse movimento pode ocorrer deslocando-se o todo ou parte dele, a
Tradução Indicial pode ser: Topológica-Homeomórfica, em que “na transposição do “mesmo”
4
para um outro meio [...] tem-se a correspondência entre elementos” (PLAZA, 2003, p. 92); e
Topológica-Metonímica, caracterizada “pelo deslocamento de metonímias (partes do original)
e sua localização no novo contexto sígnico.” (PLAZA, 2003, p. 92).
Finalmente, a Tradução Simbólica baseia-se em metáforas, símbolos ou outros signos
que tenham proximidade com as referências convencionais. Isto significa que há um esforço
para que os mesmos referentes presentes no original sejam apontados na tradução, o que
requer um entendimento prévio acerca deles. É válido ressaltar que aqui parte-se de um
aspecto do original e passa-se de uma linguagem para outra, atendo-se mais ao significado.
2.1.2 Adaptações de clássicos para o público infantil
Grandes obras de épocas remotas percorreram o mundo e conquistaram o status
universal. Tornaram-se então, uma espécie de patrimônio da sociedade erudita, sobrevivendo
ao tempo e, consequentemente, chegando à posteridade. Há escritores, no entanto, que não
obtiveram reconhecimento desde o início, embora sejam aclamados nos dias que correm.
Nomes consagrados como Shakespeare, Homero, Cervantes e Machado de Assis têm o
prestígio de estar no cânone literário. Algumas obras ditas canônicas:
[...] chegam pelo viés das adaptações literárias, e outras pelo processo de
apropriações por outros textos ou meios que não impressos. Afinal, quem não
conhece, por exemplo, a história de Romeu e Julieta, apropriada por outros autores
na literatura, pelo cinema ou TV, pelos cordéis, pela música e até pela indústria
gastronômica? (FORMIGA, 2009, p. 117).
Nas adaptações literárias, o leitor, além de ser o alvo, é também um entrave, pois sua
“maturidade cognitiva, linguística e intelectual” (CARVALHO, 2011, p. 158) está em
desenvolvimento, o que por vezes impede uma proximidade mais satisfatória com o original.
Ainda que muito do acervo literário direcionado à criança seja repleto de clássicos
adaptados, Pires (2010) declara que não são óbvios os motivos que regem a ideia de que esse
público deva ler livros que lhe não foram pré-destinados. Na verdade, a preocupação com que
as crianças leiam os clássicos parte dos adultos. O fato de uma determinada obra pertencer a
um autor consagrado em nada acrescenta na decisão de leitura das crianças, visto que elas
leem “sem preocupações teóricas, e as questões de autoria e da carga simbólica nos títulos não
despertam [nelas] nenhum interesse conceptual ou reflexivo substancial.” (PIRES, 2010, p. 5).
Hutcheon (2006) defende que as adaptações, de quaisquer naturezas, estão por toda
parte, e é a partir dessa premissa que a autora suscita uma reflexão sobre a prática de se
colocar as adaptações em um plano secundário, taxando-as como trabalhos derivados de
outros. Para ela, qualificar uma obra adaptada como inferior ou dar-lhe o estigma de cópia do
Camilla Lustosa Carvalho 5
original é um julgamento proveniente de uma concepção pejorativa sobre o próprio processo
de adaptação, que apesar de repetir o conteúdo de um objeto, não faz réplicas propriamente
ditas. “De acordo com seu significado no dicionário, “adaptar” é o mesmo que ajustar, alterar,
tornar adequado. Isso pode ser feito de inúmeras formas.”4, 5 (HUTCHEON, 2006, p. 7).
Embora esteja claro que a adaptação pode ser trabalhada de várias maneiras, não raro
são distribuídas críticas fundamentadas principalmente em comparações que tomam o original
como parâmetro. Quanto a isso, Jeha (2004, p. 123) declara:
Dizer que gostamos [da adaptação], mas que o [original] é melhor (ou pelo menos é
o que achamos) pouco difere de afirmar que preferimos maçãs a torta de maçã. Eles
não devem ser comparados, pois um é o que o outro se tornou. Faríamos melhor se
comparássemos como o significado de um texto foi apresentado em [duas ou mais
adaptações]. Ou, para manter a metáfora, julgar qual receita faz melhor a torta.
Conforme Hutcheon (2006), há três perspectivas para definir a adaptação e, embora
distintas, se relacionam entre si. Primeiro, se tratada como entidade formal ou produto, a
adaptação é a transposição de várias produções, ou de uma só especificamente. Segundo, vista
como um processo de criação, a prática adaptativa implica tanto em (re-)interpretar quanto
em (re-)criar. Terceiro, pela ótica de seu processo de recepção, a adaptação é um modo de
intertextualidade, pois os resultados são experimentados através da memória que se tem de
outros trabalhos que ecoam mediante repetição com variação.
Conquanto tenhamos visto que as adaptações podem ser elaboradas sem a necessidade
de obedecer a um padrão, existem dois princípios básicos envolvidos nesse processo:
[o] da simplificação do texto propriamente dito, da sua complexidade sintáctica,
gramatical e vocabular, que permita uma leitura acessível às crianças; e [o] da
correção e eliminação dos conteúdos que se entendam como corruptores da
inocência infantil contidos nas obras literárias canônicas, bem como da sua
linguagem imprópria àquela inocência. (PIRES, 2010, p. 5).
Isso vem corroborar a ausência de alguns personagens nas adaptações, a redução de
papéis e a tênue relevância ou supressão de elementos originalmente concebidos para ocupar
um lugar de destaque. De fato, a própria recontação de histórias – que existe desde épocas
anteriores – passa por um ajuste mesmo que na oralidade, para que esteja de acordo com o
contexto do(s) ouvinte(s). Logo, por que não o fazer nos meios impressos a fim de alcançar
mais pessoas e auxiliar na formação humana e intelectual dos pequenos leitores?
Paralelo a isso, Pires (2010) sugere que a adaptação é explorar uma narrativa, ou seja,
tomar novas direções e percorrer outros caminhos. Assim, o resultado que se obtém equivale a
4 Todas as traduções de citações em língua estrangeira usadas neste trabalho são de nossa responsabilidade. 5 According to its dictionary meaning, “to adapt” is to adjust, to alter, to make suitable. This can be done in any
number of ways.
6
uma versão onde clássico e adaptação dialogam frutiferamente entre si. Dito de outro modo,
as adaptações infantis culminam em uma reelaboração do clássico:
[...] que opere sobre este, não só ao nível da linguagem, como autêntico projecto de
escrita que não passe somente pela simplificação estilística e sintáctica daquele
texto, mas também ao nível da narrativa, como fazem as paródias ao encontro do
cómico da obra que recriam, transformando trama, experimentando novas
combinações dos mesmos acontecimentos, alterando os traços de personalidade das
personagens, etc. Uma recriação do clássico que, por um esforço maturado de
reconstrução sobre ele exercido, ande talvez mais perto do seu espírito, e o
reproduza melhor para a criança e para o jovem do que a adaptação habitual.
(PIRES, 2010, p. 54).
Na modernidade, obras literárias clássicas só conquistam efetivamente a atenção do
público infantojuvenil quando submetidas à (re)leitura no cinema, na TV e nos quadrinhos. Se
é uma tarefa árdua para os pequenos e/ou médios leitores apreciar a leitura do original de O
Cortiço, por exemplo, escrito por Aluísio de Azevedo, sua adaptação quadrinística pode
reverter a situação (PINA, 2014).
Assim sendo, com a diversidade de adaptações infantis existentes, bem como com sua
popularidade, é possível perceber que as histórias que compõem os famosos clássicos têm
seus processos evolutivos e se metamorfoseiam para se enquadrarem não só em tempos,
lugares e situações díspares, mas a um período específico da vida como a infância,
sobrevivendo também à prova do tempo.
2.2 METODOLOGIA
O trabalho a seguir foi pautado no método comparativo. Gil (2008) nos diz que é
pertinente a esse procedimento a investigação de indivíduos, classes, fenômenos ou fatos,
objetivando destacar os aspectos que os aproximam ou distanciam. Em outras palavras, sua
finalidade é verificar os pontos análogos e explicar as divergências, pois “ao ocupar-se das
explicações de fenômenos, permite analisar o dado concreto, deduzindo elementos constantes,
abstratos ou gerais nele presentes.” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 38).
Embora a peça Romeu e Julieta tenha sido adaptada por inúmeros artistas e para os
mais variados meios, foi a fama da Turma da Mônica que atualmente não se limita ao público
infantil, bem como a união de aspectos de duas narrativas distintas que motivou a escolha do
objeto de estudo desta pesquisa. Foram selecionados trechos da história contada por Mauricio
de Sousa, os quais além de desvios – quando comparados com o original – apresentavam
alguma ocorrência de Tradução Intersemiótica. Quando apropriado, os fragmentos originais
precederam as cenas dos quadrinhos às quais correspondiam.
Camilla Lustosa Carvalho 7
2.2.1 Turma da Mônica
Mauricio Araújo de Sousa é um cartunista, empresário brasileiro e criador da Turma
da Mônica. Nascido em Santa Isabel, no estado de São Paulo, em 1935, passou parte de sua
infância em Mogi das Cruzes, época em que já traçava alguns desenhos nos cadernos da
escola. Os seus primeiros esboços ilustraram cartazes e pôsteres para os comerciantes da
região e atualmente suas criações alcançam cerca de trinta países. Foi em 1959, fase em que
ainda trabalhava como repórter policial no jornal Folha da Manhã (atual Folha de S. Paulo),
que formou seu primeiro personagem – o cãozinho Bidu. E assim, a partir dos anos 60,
Mauricio, que não imaginava que anos mais tarde seria eleito para a Academia Paulista de
Letras, começou a inserir novas figuras ao seu rol de personagens. Dentre os mais famosos se
destacam: Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão (SOUSA, 2016).
Conhecida como a líder da turma6, Mônica, na verdade, teve sua primeira aparição
com um papel secundário em uma tira protagonizada por Cebolinha. Sempre de vestidinho
vermelho, a personagem mais conhecida de Mauricio de Sousa não leva desaforo para casa e
ninguém segura suas coelhadas. Hoje, além de atuar nos quadrinhos, Mônica é também estrela
de cinema e teatro, tem seu nome em vários produtos, está em campanhas educativas e
comerciais televisivos. É além disso a única personagem de quadrinhos do mundo a ser
consagrada como embaixadora do Unicef.
Com cabelos espetados e continuamente trocando o “r” pelo “l” em seus momentos de
fala, Cebolinha é um garoto esperto que sonha em derrotar Mônica a fim de se tornar o “dono
da rua”. Por isso está sempre bolando planos infalíveis com seu amigo inseparável, Cascão,
uma criança que tem pavor de água e por isso nunca toma banho. O problema é que os planos
arquitetados pelos dois parceiros sempre dão errado, o que resulta em várias coelhadas.
Diferentemente de seus três colegas, Magali é meiga e delicada e ao passo em que os
outros estão envolvidos em confusões, ela está preocupada em comer, o que é justificado por
seu apetite totalmente incontrolável. Portanto, costuma devorar todo tipo de comida que
aparece à sua frente e qualquer um que tencione agradá-la, sempre lhe oferece pães de queijo,
bolos, tortas e quaisquer outros tipos de guloseima.
O mais famoso e premiado autor brasileiro de quadrinhos, Mauricio de Sousa,
conquistou o público de maneira que dentre os gibis mais vendidos do país, dez são seus.
Enquanto isso, no âmbito internacional, as principais enciclopédias sobre quadrinhos pontuam
como referência o autor e seus personagens. Com o tempo a linha de livros de Mauricio de
6 As informações a respeito das personagens foram retiradas, em grande parte, do website oficial da Turma da
Mônica, disponível em: http://turmadamonica.uol.com.br/. Acesso em: 05 de março 2017.
8
Sousa foi de tal modo diversificada e ampliada que hoje suas publicações possuem vários
enfoques tais como lendas, adaptações de contos clássicos, paradidáticos, religiosos e outros
(SOUSA, 2016). Não à toa, é respeitado como o maior formador de leitores do Brasil.
2.2.2 Romeu e Julieta
Não se tem uma época específica estabelecida para a criação de Romeu e Julieta, e
datas que compreendem desde 1591 a 1596 têm sido propostas (EVANS, 2003). Essa peça
antitética que contrapõe o ódio mútuo entre as famílias com o amor proibido do casal
protagonista foi escrita por William Shakespeare, um influente dramaturgo do século XVI. O
clássico passa-se em Verona e conta com dois grupos pertencentes a linhagens distintas,
Montéquio e Capuleto, os quais possuem rivalidade declarada. Independentemente de toda
oposição, Romeu e Julieta, filhos destes clãs, se apaixonam um pelo outro e escolhem lutar a
favor do sentimento.
Após uma série de desavenças, Romeu é banido da cidade e Julieta é obrigada a casar-
se com o conde Páris. Tentando ajudar, Frei Lourenço aconselha a jovem a aceitar o enlace e
ingerir uma poção que provocará um sono profundo, simulando uma falsa morte e evitando a
concretização do matrimônio. Romeu descobre o ocorrido sem ser avisado sobre o plano e ao
chegar na sepultura onde jaz sua amada, toma um veneno que levava consigo. Julieta acorda e
dando-se conta da situação, toma o punhal de Romeu e se mata, incitando a reconciliação de
seus familiares e dando um fim à tragédia.
2.2.3 O gibi
O famoso romance shakespeariano foi adaptado por Mauricio de Sousa no ano de
1978. Foram os fãs que fizeram germinar essa ideia por meio de inúmeras cartinhas que
pediam à produção “algo mais” elencado pela Turma da Mônica. Não muito depois, viam-se
os frutos dessas petições. Mônica e Cebolinha no mundo de Romeu e Julieta chegou aos
quadrinhos, ao teatro e à televisão em um especial de natal. Naturalmente, o tempero infantil e
descontraído dado à peça pelo cartunista por meio da interseção entre suas personagens e a
trama original fez bastante sucesso entre o público (SOUSA, 2015).
3 RESULTADOS
Há de se perceber adiante que o fato de se tratar da história de Romeu e Julieta não
impede que a adaptação mantenha suas raízes no universo de Mauricio, que há muito trabalha
com a fusão entre suas personagens e os originais dos clássicos que adapta. Sobre essa
Camilla Lustosa Carvalho 9
combinação de características, Ramos (2014, p. 48) diz que “a polifonia vem expressa
justamente por haver uma absorção, mas não diluição, de aspectos específicos de cada
narrativa, que colaboram para a construção do novo enredo.”
A Tradução Intersemiótica acontece em um universo de signos. Não apenas a
representação imagética faz-se importante nessa conjuntura, mas também a transposição
linguística na adaptação do original. Os episódios abaixo são concernentes ao primeiro
encontro de Romeu e Julieta que acontece originalmente durante o banquete na casa dos
Capuleto. Na edição da Turma da Mônica os jovens se veem em um baile de máscaras onde
há uma brincadeira da produção: Romeu Montéquio Cebolinha está “fantasiado” de si mesmo.
Além disso, nos quadrinhos, as personagens colidem durante a festa no momento de uma
dança e essa é a deixa que instaura o diálogo.
ORIGINAL TURMA DA MÔNICA
ROMEO (taking Juliet’s hand) If I offend
you by touching my hand on yours, my lips
like blushing pilgrims, are ready to improve
things with a kiss.
JULIET Good pilgrim, you don’t give your
hand enough credit. By holding my hand you
show polite devotion. After all, pilgrims
touch the hands of statues of saints. Holding
one palm against another is like a kiss.
(BERTIN; MILTON; 2006, p. 57).
Figura 1: Baile de máscaras
Fonte: SOUSA, 2015.
Nesse ínterim fica claro que tanto a atmosfera poética quanto o arrebatamento do casal
ao primeiro contato, no original, são substituídos por reações que não são apenas diferentes,
mas que remetem o leitor à relação habitual entre Mônica e Cebolinha, especialmente quando
ele questiona sobre o peso da garota – algo corriqueiro nas histórias da turma. Deste modo, o
que se tem é a Tradução Indicial Topológica-Metonímica, pois há o deslocamento de parte do
original e sua relocalização no novo contexto sígnico. O que se diz com isso é que o encontro
acontece em ambas as versões, mas é nítida, na história em quadrinhos, a relação costumeira
entre Mônica e Cebolinha, marcada por um clima frequentemente provocativo. Isso se
contrapõe ao momento romântico protagonizado por Romeu e Julieta e ocorre com muita
frequência no desenrolar do gibi.
10
ORIGINAL
JULIET Oh Romeo, Romeo! Why do you have to be Romeo? Deny your father and refuse
your name. Or else, if you can’t, just swear you love me and I’ll no longer be a Capulet.
(BERTIN; MILTON; 2006, p. 71).
TURMA DA MÔNICA
Figura 2: Cena do balcão
Fonte: SOUSA, 2015.
O original conta que pouco depois de se encontrar com Julieta pela primeira vez,
Romeu vai ao jardim da residência dos Capuleto e vê sua amada aparecer na sacada. De onde
está, Julieta põe-se a conversar sozinha de maneira aflita sobre sua paixão recém descoberta,
ponderando sobre os possíveis desdobramentos de seu romance proibido. Essa atmosfera
triste e comovente é amenizada nos quadrinhos, visto que apesar de comentar com Romeu
Montéquio Cebolinha o possível fim da relação dos dois, que mal havia começado, Julieta
Monicapuleto não demonstra estar tão angustiada com a situação em que se encontra. No gibi,
essa cena traz nas entrelinhas a inocência, característica infantil, que muitas vezes impede as
crianças de perceberem a profundidade ou gravidade de algumas circunstâncias da vida.
Identifica-se novamente a Tradução Indicial Topológica-Metonímica, dado que nessa
versão Julieta Monicapuleto expressa seu amor por Romeu Montéquio Cebolinha e sugere
que ele renuncie o próprio nome, assim como sucede no original. Em outras palavras, uma
parte do todo é relocada em outro ambiente, passando por algumas adequações. Nesse caso,
ainda que a carga poética da fala seja mantida, nota-se a simplificação do texto e a utilização
Camilla Lustosa Carvalho 11
de rimas, que tornam o texto mais divertido e atraente, facilitam a assimilação do conteúdo
pelas crianças e são igualmente aplicadas em poesias, músicas e contos dedicados a esse
público. Ora, além do mais, ainda que na maior parte do tempo sejam vistos apenas como
recursos lúdicos que favorecem a sonoridade em detrimento do sentido, jogos de linguagem
como rimas infantis são estratégias propulsoras do desenvolvimento da linguagem em geral e
da própria consciência fonológica7 (VIANA, 2006).
Outro fato que se pode apontar a respeito da representação acima é a presença das
notas musicais, que são vistas em algumas cenas do gibi em questão. Isso se dá pelo fato de
que Romeu e Julieta foi primeiramente elencado pela Turma da Mônica em adaptações
teatrais que contavam com músicas em determinados momentos da encenação. Logo, assim
que Mauricio de Sousa e sua produção converteram sua versão de Romeu e Julieta para os
quadrinhos, mantiveram algumas características relacionadas à primeira representação da
turma sobre esse romance de Shakespeare. Além de tudo, há uma visão comercial por trás
disso, uma vez que, no gibi, a alusão a falas cantadas pode despertar nas crianças o desejo de
adquirir o CD com as músicas ou mesmo a vontade de assistir à representação teatral ao vivo.
Algumas cenas depois, quando estão prestes a se casar em segredo, Romeu e Julieta
trocam algumas palavras sobre o acontecimento iminente. Como é de se esperar, no original
essa conversa exala paixão e ansiedade em concretizar a união matrimonial. Nota-se,
entretanto, que a mesma passagem é apresentada nos quadrinhos da Turma da Mônica sob
outra perspectiva, pois Romeu Montéquio Cebolinha sequer demonstra ter certeza que Julieta
Monicapuleto é a garota certa para ele.
ORIGINAL TURMA DA MÔNICA
ROMEO Ah, Juliet, if you’re as happy as I am,
imagine the happiness we’ll have in our marriage.
JULIET I can imagine more than I can say. My
true love has made me so rich that I cannot count
half of my wealth.
FRIAR LAWRENCE Come with me, and we’ll
quickly unite you in marriage. (BERTIN;
MILTON; 2006, p. 97-99).
Figura 3: O casamento
Fonte: SOUSA, 2015.
7 O termo consciência fonológica é pertinente à noção de que a fala pode ser segmentada e à competência para
operar as unidades fonológicas – sílabas e unidades intra-silábicas (CAPOVILLA & CAPOVILLA, 2000).
12
Tem-se, novamente, uma ocorrência da Tradução Indicial Topológica-Metonímica,
dado que o diálogo antecedente ao casamento é selecionado e reinserido no ambiente dos
quadrinhos. Para aqueles que leem o gibi tendo conhecido antes a trama original, a atitude de
Romeu Montéquio Cebolinha segue por um viés cômico. Isso se dá não por haver uma
referência ao convívio habitual entre Mônica e Cebolinha – notadamente na atitude
ameaçadora da garota ao pegar o coelhinho de pelúcia –, tampouco pela dislalia do
menino, mas porque a remontagem desse episódio rompe o ideal que se tem da personagem,
revelando um Romeu em nada apaixonado e que, por intermédio de sua própria fala anula a
autenticidade de um sentimento que, no original, é constantemente enfatizado.
É claro no texto de Shakespeare que o enlace será realizado, todavia a peça não se
atém aos pormenores do evento em si, já que a cena termina antes que qualquer detalhe sobre
o casamento seja dado. Assim, pautando-se na última fala da cena, a qual é conferida a Frei
Lourenço, pressupõe-se que o matrimônio é concretizado na transição do segundo para o
terceiro ato. Já nos quadrinhos não fica subentendido que tudo aconteceu, porque ao leitor é
dada a oportunidade de ver o ritual religioso.
Figura 4: A bênção de Frei Cascão
Fonte: SOUSA, 2015.
O fragmento acima, retirado do gibi, mostra o momento em que Frei Cascão conclui a
cerimônia, abençoando o casal. Há um intencional aproveitamento da cena para trazer à
memória daqueles que são familiarizados com as histórias da Turma da Mônica, uma
particularidade direta e automaticamente relacionada ao Cascão, a saber, o pavor de água.
Usar talco ao invés de água para benzer é o suficiente para salientar a maior característica
identitária dessa personagem. Assim, vê-se outra Tradução Indicial Topológica-Metonímica,
visto que o casamento, existente no original, foi situado em um sistema distinto.
Na obra de Shakespeare, a partir do momento em que o desejo de Romeu e Julieta em
viver um amor proibido ganha força, a peça adquire automaticamente uma aura de tensão. Por
isso, é certo que Frei Lourenço tem pressa em realizar o matrimônio devido à irregularidade
Camilla Lustosa Carvalho 13
da ação. Já nos quadrinhos, a urgência de Frei Cascão é motivada por um campeonato de
bolinhas de gude, do qual é finalista. Ainda que possuam caráter heterogêneo, as duas versões
da mesma cena revelam proximidade, pois na Tradução Indicial Topológica-Metonímica o
deslizamento de significantes instaura uma relação de contiguidade, com efeito de sentido,
entre o original e sua tradução.
Em outra cena, basicamente na metade da peça, Teobaldo mata Mercúcio. Romeu,
querendo fazer justiça, convoca o assassino de seu amigo para uma nova luta, tirando-lhe a
vida e fugindo do local imediatamente. Pouco depois de saber sobre o que havia sucedido, o
príncipe anuncia o banimento de Romeu da cidade de Verona. Em contrapartida, a história em
quadrinhos propõe que a confusão acontece durante um campeonato de bolinhas de gude,
onde estão o Príncipe Xaveco, Frei Cascão, Chico Bento Tebaldo, Romeu Montéquio
Cebolinha e Zé Lelé Mercúcio.
ORIGINAL
BENVOLIO Here comes Tybalt again.
ROMEO Alive in triumph – and Mercutio dead! Let rage guide my actions. Tybalt, call me
villain now. Mercutio’s soul is floating above our heads. He’s waiting for you to keep him
company. Either you, or I, or both must go with him. (BERTIN; MILTON; 2006, p. 107).
TURMA DA MÔNICA
Figura 5: Discussão no campeonato
Fonte: SOUSA, 2015.
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O clima afrontoso que desencadeia os duelos e as mortes no original é retratado nos
quadrinhos da Turma da Mônica como um desentendimento entre os finalistas do campeonato
de bolinhas de gude. Disso resultam acusações, conflitos e principalmente a expulsão de
Romeu Montéquio Cebolinha do campo onde transcorria o jogo. Para além das peculiaridades
das personagens que são mantidas na representação do romance – como a fala do Cebolinha e
os traços caipiras de Chico Bento e Zé Lelé – o que se tem é a Tradução Icônica-Paramórfica.
Essa matriz da Tradução Intersemiótica definida por Plaza (2003) exibe uma forma similar ao
original, tendo uma estrutura diferente e equivalente no tocante às sensações.
Na física e na química o paramorfismo é conceituado como a “transformação de um
mineral em outro sem mudança de composição, alterando-se apenas a estrutura cristalina.”
(PLAZA, 2003, p. 90, grifo nosso). Logo, na Tradução Icônica-Paramórfica, ainda que o
contexto sígnico seja outro é a preservação de uma composição inalterada que faz com que o
receptor da mensagem transponha as barreiras visuais e perceba a essência através do “sentir”.
As desavenças na competição da HQ remetem aos insultos e confrontos registrados no
original, de modo que a impressão que se tem é a de estar diante de uma cena que embora
tenha sido construída de maneira diferente, corresponde à ideia de origem. É oportuno
ressaltar que só é possível “sentir” a alusão no episódio recriado por Mauricio de Sousa se, e
somente se, houver um conhecimento prévio acerca da obra de Shakespeare.
Toda a primeira cena do terceiro ato é dedicada ao relato das lutas que culminaram no
banimento de Romeu. No gibi em questão alguns pormenores são suprimidos. O mais
evidente deles é a substituição dos dois duelos com espadas – Mercúcio vs. Teobaldo e
Romeu vs. Teobaldo – por uma única briga entre Romeu Montéquio Cebolinha e Chico Bento
Tebaldo, que “saem no braço”. Essa reescrita é arranjada em um único quadrinho e
exemplifica o que se chama, na Tradução Intersemiótica, de Tradução Simbólica.
Figura 6: Briga entre Romeu Montéquio Cebolinha e Chico Bento Tebaldo
Fonte: SOUSA, 2015.
Camilla Lustosa Carvalho 15
Nesse caso, toma-se um aspecto como base – a ideia geral de um confronto – e passa-
se de uma linguagem para outra usando metáforas, ou seja, as propriedades do desenho acima
como as onomatopeias e a fala no balãozinho são alegóricas ao que deveras ocorre no
original. Em outras palavras, a totalidade da cena é convertida em um único elemento que
contém a memória de dois. Conclui-se, assim, que a tradução como procedimento simbólico
estabelece as leis de como um signo dá início a outro e institui o símbolo como uma lei “que
governará e será materializada e que determinará algumas de suas qualidades, unindo o
sensível ao inteligível, isto é, será uma forma de significante.” (PLAZA, 2003, p. 94).
Figura 7: O fim de Romeu e Julieta
Fonte: SOUSA, 2015.
Como sabido por muitos, é triste o fim do romance de Romeu e Julieta. A falha na
comunicação impede Romeu de saber sobre a falsa morte de Julieta e isso resulta em um final
trágico. Na adaptação da Turma da Mônica, como se vê acima, os fatos são apresentados com
certa suavidade e humor por meio da Tradução Indicial Topológica-Metonímica, isto é, não se
omite que Romeu e Julieta não ficam juntos, o que acontece é a diferenciação na forma como
tais informações são disponibilizadas para o leitor.
Nas últimas cenas da história adaptada, Frei Cascão não sabe como resolver a situação
de Romeu Montéquio Cebolinha que havia sido expulso da cidade de Verona depois da
confusão no campeonato de bolinhas de gude. De repente, no entanto, Frei Cascão tem a ideia
de consultar o que seria a obra original, como uma estratégia para saber o que acontece com o
casal de acordo com Shakespeare. Assim, ele lê a partir do momento em que Julieta toma a
poção para adormecer e a série de desastres acontece. Todavia, assim que indica que a
tragédia é o final da história, Julieta Monicapuleto não se conforma e decide mudar o
desfecho, embora Frei Cascão ainda diga que com Shakespeare é “tudo muito romântico,
muito bonito, mas muito triste também...” (SOUSA, 2015, p. 50).
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Figura 8: Reconstrução do final
Fonte: SOUSA, 2015.
Julieta Monicapuleto vai até o castelo do Príncipe Xaveco de Verona e resolve a
situação de uma maneira típica da personagem mais forte e brigona de Mauricio de Sousa, ou
seja, à base de pancadas. Após apanhar de Julieta Monicapuleto, o Príncipe Xaveco de Verona
“decide” perdoar Romeu Montéquio Cebolinha e com isso o banimento do rapaz é revogado
fazendo com que o casal tenha um final feliz. Por se tratar de um acréscimo à adaptação, a
cena acima não pode ser tipificada como uma das matrizes de Tradução Intersemiótica.
Dedicar-se às histórias em quadrinhos significa estar frequente e simultaneamente
operando com palavras e imagens, os quais são importantes dispositivos de comunicação
(EISNER, 2010). Assim, é preciso que o desenho e o assunto abordado estejam conectados,
de modo que um reforce a ideia do outro numa espécie de retroalimentação. Para tal, cabe ao
produtor da história adaptar a trama original ao estereótipo adotado, caso contrário, “pode-se
criar uma sequência inverossímil aos olhos do leitor.” (RAMOS, 2010, p. 125).
No gibi escolhido percebe-se que as roupas das personagens não foram mantidas –
como feito com algumas de suas características específicas –, sendo substituídas por trajes
que têm um design característico da época em que o romance foi escrito. Apesar de ser um
aspecto passível de análise pelo viés das teorias pertinentes aos quadrinhos, as ilustrações das
vestimentas feitas por Mauricio de Sousa em sua versão de Romeu e Julieta podem ser
Camilla Lustosa Carvalho 17
igualmente observadas sob a perspectiva da Tradução Intersemiótica, enquadrando-se
particularmente na Tradução Indicial Topológica-Metonímica. Essa categoria consiste no fato
de que partes do original – o que aqui serão os dados históricos acerca das vestimentas do
século XVI – são deslocadas e direcionadas espacial e contextualmente em uma nova
organização. “Quer dizer, pela transposição de um organismo ou partes para outro (tradução
de meio para meio), obtemos continuidade e identificação.” (PLAZA, 2003, p. 92).
Dar-se-á preferência, nesta parte, ao que estiver relacionado ao vestuário ilustrado e
não ao que acontece na cena em si. No período do Renascimento Italiano os chapéus
masculinos tinham formas variadas, com abas modestas e podiam ser decorados com um
broche ou com uma pena. “As pequenas plumas que enfeitavam os chapéus dos homens no
último trimestre do século XV deram lugar a formatos maiores como as de cisnes e pavões.
Estas, por sua vez, foram substituídas por penas de avestruz.”8 (SELBIE, 1977, p. 39). Na
cena abaixo, somente Romeu Montéquio Cebolinha e Zé Arauto da Roça usam chapéus com
enfeites que correspondem à moda da época. Já o Príncipe Xaveco (ver Figura 5) dispõe de
um broche como ornamento do seu chapéu. Outro adereço muito comum naquele tempo e que
se pode notar no figurino do mensageiro é a pochete acoplada ao cinto (SELBIE, 1977).
Figura 9: A mensagem do príncipe
Fonte: SOUSA, 2015.
Outra indumentária dessa fase histórica e também um símbolo de autoridade em
Veneza, era a toga, uma bata larga com mangas cheias e soltas, amarrada no alto da cintura
(SELBIE, 1977). A descrição desse modelo assemelha-se ao estilo da roupa usada por Frei
Cascão nos quadrinhos (ver Figuras 4 e 5). O figurino masculino ainda contava com o manto
8 The small feathers which decorated men’s hats in the last quarter of fifteenth century gave way to larger ones
from swans and peacocks. These, in turn, were replaced by ostrich plumes.
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ou capa como um complemento essencial em ocasiões formais. Eram predominantemente
semicirculares começando nos ombros e podendo chegar até a cintura, quadril ou panturrilhas
(ELGIN, 2005). Dentre as personagens da Turma da Mônica na adaptação, Romeu Montéquio
Cebolinha é o único que tem uma capa anexa à roupa (ver Figuras 2 e 3).
No que diz respeito ao que era tendência na sociedade feminina do século XVI, os
lenços estavam entre os acessórios mais utilizados principalmente como enfeite, pois
raramente chegavam perto do nariz (ELGIN, 2005). “Inicialmente foram usados tão somente
pela nobreza, que tinha leis especiais promulgadas para manter a exclusividade [do uso da
peça].”9 (SELBIE, 1977, p. 40). Com o tempo, porém, a população de maneira geral teve livre
acesso aos lenços podendo fazer deles parte de seu enxoval. Na próxima ilustração vê-se um
dos momentos da adaptação em que o acessório foi inserido.
Se atualmente a indústria da moda influencia as pessoas, refletindo no modo como se
comportam mediante o uso de determinadas roupas, no passado não foi diferente. No período
renascentista, a grande quantidade de pano usada na fabricação dos vestidos, bem como as
vastas anáguas que os tornavam mais espaçosos, exigiam que as mulheres erguessem o tecido
a fim de poderem caminhar com menos dificuldade (SELBIE, 1977), o que é possível
identificar na atitude de Julieta Monicapuleto na representação abaixo.
Figura 10: Despedida após o baile
Fonte: SOUSA, 2015.
9 At first they were used only by nobility, who had special laws enacted to keep handkerchiefs exclusive.
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Durante a cerimônia matrimonial “a noiva colocava flores no cabelo e carregava uma
grinalda feita com alecrim e rosas.” (ELGIN, 2005, p. 42). Seguindo um costume tradicional e
comum a todas as classes sociais da época, apenas no final do ato religioso é que a coroa de
flores era colocada. Mauricio de Sousa não transferiu para seus quadrinhos (ver Figura 3)
singularidades culturais do passado como o fato de esperar o fim da celebração para usar a
grinalda, entretanto, a cena adaptada carrega partículas relacionadas ao vestuário de praxe nos
casamentos daquele tempo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reinventar uma obra, torná-la apropriada a épocas, culturas e grupos de leitores
diferentes pressupõe a ruptura do padrão original, evidenciando a antiquada relação que
alguns ainda mantêm com os clássicos da literatura, tratando-os como imutáveis e intocáveis.
Foi por levar isso em consideração que se tornou possível propor, por meio desta pesquisa e
sua respectiva análise, uma reflexão sobre a prática adaptativa, que, aliada à Tradução
Intersemiótica, ressignificou substancialmente o famoso romance de Romeu e Julieta
tornando seu conteúdo inteligível ao público infantil.
Fez-se com a participação das personagens da Turma da Mônica uma verdadeira
comédia da original tragédia shakespeariana, e tal mudança na conceituação dos gêneros
teatrais não altera a transmissão do que é primordial que se absorva da peça. Há ainda, no que
diz respeito à adaptação, um apontamento que vem a calhar: julgar uma obra que passou por
um processo de releitura, baseando-se na ideia sinonímica equivocada entre adaptação e
fidelidade, qualificando o resultado como incompleto é uma prática não somente
desnecessária, como incoerente, vide que o ato de adaptar envolve técnicas e estratégias
diretamente relacionadas ao propósito, ao público-alvo e sua faixa etária, o que pode
ocasionar substituição, omissão, suavização e/ou acréscimo de certos elementos.
Refletir sobre a adaptação da literatura – canônica ou não – é uma valiosa tentativa de
minar sensos arcaicos sobre o processo de leitura que nunca foi homogêneo. Assim, para
desmistificar posicionamentos que contestam esse tipo de leitura, é preciso enxergar toda e
qualquer reinterpretação de um original como parte de um acervo que se volta a uma
determinada coletividade, ora apresentando legados de séculos passados, ora divulgando a
literatura contemporânea.
Como bens culturais, as adaptações têm acompanhado a trajetória da humanidade e
estão rigorosamente vinculadas ao leitor, às obras originais que as inspiraram, à prática da
leitura em si e, mais do que isso, à história da literatura. Logo, explorar o mundo da
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Adaptação e da Tradução Intersemiótica é ainda um coadjuvante para que se entenda melhor
como se dá a atuação dos profissionais não apenas em uma perspectiva técnica, mas também
do ponto de vista de que eles participam no mundo como instrumentos ampliadores dos meios
de propagação de informação e educação, os quais são fatores transformadores da sociedade.
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