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Tradução Ryta Vinagre

Tradução Ryta Vinagre - rocco.com.br · 9 cap 01 9/2/10 07:57 Page 9. ... 1895. – Eles haviam saído em um dos extremos da plataforma e agora o dr. Burrows apontava a lanterna

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PARTE UM

A Escavação

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Capítulo Um

S HLAAC! A picareta atingiu a parede de terra e, cintilandoem uma lasca de sílex oculta, afundou na argila, parando

subitamente com um baque surdo.– Pode ser aqui, Will!Dr. Burrows avançou, engatinhando pelo túnel apertado.

Transpirando e respirando mal no espaço confinado, começou aescavar febrilmente a terra, seu hálito formando uma névoa no arúmido. Sob a luz combinada das lanternas de capacete, cadapunhado ávido revelava outras tábuas de madeira velha, expon-do sua superfície rachada e granulosa de alcatrão.

– Me passe o pé de cabra.Will vasculhou uma maleta, encontrou o rombudo pé de

cabra azul e o entregou ao pai, cujo olhar estava fixo na área demadeira diante dele. Forçando a ponta achatada da ferramentaentre duas tábuas, dr. Burrows grunhiu ao lançar todo seu pesopara trás para ter algum impulso. Depois começou a alavancar deum lado a outro. As tábuas crepitaram e gemeram nos pregosenferrujados até que, enfim, incharam, soltando-se com um esta-

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lo alto. Will recuou um pouco ao sentir o sopro de uma brisa friae úmida vinda do buraco agourento criado pelo dr. Burrows.

Apressados, eles arrancaram mais duas tábuas, deixando umespaço da largura de um ombro, e pararam por um momento emsilêncio. Pai e filho se viraram e se olharam, compartilhando umbreve sorriso de conspiração. Seus rostos, cada um iluminadopela lanterna do parceiro, estavam sujos de terra como numapintura de guerra.

Eles se voltaram para o buraco e começaram a vagar pelosgrãos de poeira que flutuavam feito diamantes pequenininhos,formando e refazendo constelações desconhecidas na aberturanegra como a noite.

Dr. Burrows inclinou-se cautelosamente para o buraco, Willespremendo-se ao lado dele para espiar por sobre o ombro dopai. Sob a luz das lanternas dos capacetes que penetrava no abis-mo, entrou em foco claramente uma parede curva e ladrilhada.A luz das lanternas, penetrando mais fundo, oscilou por dois car-tazes cujas bordas descascavam da parede e se agitavam devagar,como gavinhas de algas pegas na forte correnteza do fundo domar. Will ergueu a cabeça um pouco, varrendo o espaço aindamais, chegando à beira de uma placa esmaltada. Dr. Burrowsseguiu o olhar do filho até que os feixes de luz se uniram e mos-traram um nome com muita clareza.

– Highfield & Crossly North! É isso, Will, é isso! Nós acha-mos! – A voz empolgada do dr. Burrows ecoou nos confins aba-fados da estação ferroviária abandonada. Eles sentiram uma levebrisa no rosto, de algo que soprava pela plataforma e descia aostrilhos, como que reagindo em um pânico vivificado a esta inva-são rude, depois de tantos anos, em sua catacumba lacrada eesquecida.

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Will chutou desvairadamente a madeira na base da abertura,lançando um jato de lascas e fragmentos de madeira podre, atéque de repente o chão abaixo dele escorregou e se derramou nacaverna. Ele cambaleou pela abertura, pegando a pá ao entrar.Seu pai estava bem atrás e os dois seguiram um pouco, abaixadosna superfície sólida da plataforma, os passos ecoando e as lanter-nas de capacete lançando faixas na escuridão que os cercava.

Teias de aranha pendiam em meadas do teto e o dr. Burrowssoprou quando uma delas envolveu seu rosto. Ao olhar em volta,sua luz pegou o filho, uma visão estranha, com um emaranhadode cabelos brancos projetando-se como palha alvejada do capa-cete de minerador amassado da batalha, os olhos azuis-claros cin-tilando de entusiasmo ao piscarem no escuro. Era difícil descre-ver as roupas de Will, a não ser que se dissesse que pareciam serdo mesmo marrom-avermelhado e da mesma textura da argilaem que estivera trabalhando. Colava-se nele, cobrindo-o no pes-coço, deixando-o parecido com uma escultura que fora por mila-gre infundida de vida.

Quanto ao próprio dr. Burrows, era um homem magro erijo, de estatura mediana – ninguém o descreveria como altonem baixo, na realidade, só em algum ponto no meio. Tinha umrosto redondo com olhos castanhos e penetrantes que pareciammuito mais intensos devido aos óculos de aro dourado.

– Olhe aqui, Will, olhe só isso! – disse ele, enquanto sua lan-terna pegava uma placa acima do buraco pelo qual os dois acaba-ram de sair. SAÍDA, dizia em grandes caracteres pretos. Eles vira-ram as lanternas de mão e, ricocheteando pela escuridão, os fei-xes de luz, unidos às lanternas de capacete, mais fracas, revelaramtoda a extensão da plataforma. Raízes pendiam do teto e as pare-

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des eram revestidas de eflorescência e raiadas de um calcáriobranco como giz cujas fissuras estavam úmidas. Eles podiamouvir o som de água corrente em algum lugar ao longe.

– Que tal uma descoberta dessas? – disse o dr. Burrows comum ar de satisfação pessoal. – Pense só nisso, ninguém pôs os pésaqui desde que a nova ferrovia de Highfield foi construída em1895. – Eles haviam saído em um dos extremos da plataforma eagora o dr. Burrows apontava a lanterna para a abertura do túnelferroviário ao lado deles. Estava bloqueada por um monte deentulho e terra. – Será exatamente igual do outro lado... Devemter lacrado os dois túneis.

Enquanto eles andavam pela plataforma, olhando as pare-des, era possível distinguir blocos de ladrilhos creme rachadoscom bordas verde-escuras. Lampiões a querosene brotavam maisou menos a cada três metros, vários com o quebra-luz de vidroainda intacto.

– Pai, pai, vem aqui! – gritou Will. – Já viu esses cartazes?Ainda dá para ler. Acho que são anúncios de terras ou coisaassim. E este aqui está bom... Circo de Wilkinson... a se apresentarno Parque... 10.º dia de fevereiro de 1895. Tem uma foto – disseWill sem fôlego enquanto o pai se juntava a ele. O cartaz forapoupado dos danos da umidade e eles distinguiram as coresrudes do topo grande e vermelho, com um homem de azul e car-tola parado na frente. – E olha só isso. Gordo demais? Pílulas deElegância do Doutor Gordon! – O desenho em traços grossosretratava um homem majestoso de barba, segurando um peque-no recipiente.

Eles seguiram mais adiante, passando por uma montanha deentulho que descia de um arco para a plataforma.

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– Este aqui levaria para a outra plataforma – disse o dr.Burrows ao filho.

Eles pararam para olhar um banco de ferro batido ornamen-tado.

– Isto vai ficar bonito no jardim. Só precisa de uma lixada ealgumas demãos de verniz – murmurava o dr. Burrows enquan-to a lanterna de Will iluminava uma porta de madeira escura,escondida nas sombras.

– Pai, não há um escritório ou coisa parecida na sua planta?– perguntou Will, fitando a porta.

– Um escritório? – respondeu o dr. Burrows, vasculhando osbolsos até encontrar a folha de papel que procurava. – Deixe-medar uma olhada.

Will não esperou por uma resposta, empurrando a porta,que estava emperrada. Perdendo rapidamente o interesse naplanta, dr. Burrows foi ajudar o filho e, juntos, eles tentaramabrir a porta com os ombros. Ela mal oscilou no batente, mas naterceira tentativa cedeu repentinamente e eles tropeçaram parauma sala, tomando um banho de lodo na cabeça e nos ombros.Tossindo e esfregando a terra dos olhos, abriram caminho poruma cortina de teias.

– Caramba! – exclamou Will em voz baixa. Ali, no meio dopequeno escritório, distinguiram uma mesa e uma cadeira,cobertas de pó. Will avançou cautelosamente para trás da cadei-ra e, com a mão enluvada, espanou a camada de teias de aranhada parede, revelando um mapa grande e desbotado do sistemaferroviário.

– Deve ter sido a sala do chefe da estação – disse o dr.Burrows ao varrer com o braço o tampo da mesa, descobrindo

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um mata-borrão, no qual havia uma xícara de chá e um piresencardidos. Ao lado deles um pequeno objeto, descolorido pelotempo, vazava verde na superfície da mesa. – Que coisa fascinan-te! Um telégrafo ferroviário, muito bem-feito... De bronze, eudiria.

Duas das paredes eram revestidas de prateleiras com pilhasde caixas de papelão em ruínas. Will escolheu uma caixa ao acasoe a levou para a mesa rapidamente, porque havia o risco de eladesmontar em suas mãos. Ele ergueu a tampa disforme e olhoumaravilhado os maços de bilhetes antigos. Pegou um deles, maso elástico perecido esfarelou, espalhando bilhetes feito confetepelo tampo da mesa.

– Estão em branco... Ainda não tinham sido impressos –disse o dr. Burrows.

– Tem razão – confirmou Will, sem parar de se surpreendercom o conhecimento do pai, ao examinar um dos bilhetes. Maso dr. Burrows não estava ouvindo. Ajoelhava-se e mexia em umobjeto pesado na prateleira mais baixa, embrulhado em um panopodre que se dissolveu a seu toque.

– E aqui – anunciou o dr. Burrows enquanto Will se viravapara ver o aparelho, que parecia uma máquina de escrever antigacom uma manivela grande do lado – é um exemplar de máquinaprimitiva de impressão de bilhetes. Meio corroída, mas talvezpossamos limpar as partes mais danificadas.

– O que, para o museu?– Não, para minha coleção – respondeu o dr. Burrows. Ele

hesitou e seu rosto assumiu uma expressão séria. – Veja bem,Will, não vamos dizer uma palavra sobre isso, sobre nada disso,a ninguém. Entendeu?

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– Hein? – Will girou o corpo, um leve franzido vincando atesta. É claro que nenhum dos dois ia divulgar o fato de que seenvolveram neste trabalho de escavação elaborado em suas horasvagas – não havia ninguém seriamente interessado mesmo. Suapaixão pelo que estava enterrado e o ainda não revelado era umacoisa que eles não compartilhavam com mais ninguém, algo queunia pai e filho... Um vínculo entre eles.

Eles ficaram parados na sala, as lanternas de minerador pai-rando no rosto um do outro. Como o filho não deu nenhumtipo de resposta, dr. Burrows o encarou e continuou.

– Não preciso lembrá-lo do que aconteceu no ano passadocom a villa romana, preciso? Apareceu aquele professor meda-lhão, que tomou posse da escavação e ficou com toda a glória.Fui eu que descobri aquele sítio e o que foi que consegui? Umreconhecimento minúsculo sepultado no arremedo ridículo deartigo dele.

– É, eu me lembro – disse Will, recordando-se da frustraçãodo pai e de suas explosões de cólera na época.

– Quer que aconteça novamente?– Não, claro que não.– Bem, desta vez não serei só uma nota de rodapé. Prefiro

que ninguém saiba disso. Não vão roubar isso de mim, não destavez. De acordo?

Will assentiu, fazendo com que a luz da lanterna subisse edescesse na parede.

Dr. Burrows olhou o relógio.– Agora nós precisamos voltar, sabe disso.– Tá bom – respondeu Will de má vontade.O pai entendeu seu tom de voz.

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– Não temos pressa, temos? Podemos levar o tempo que qui-sermos para explorar o resto amanhã à noite.

– Não, acho que não – disse Will sem nenhum entusiasmo,seguindo para a porta.

Dr. Burrows deu um tapinha afetuoso no capacete duro dofilho ao saírem do escritório.

– Devo dizer que foi um trabalho excelente, Will. Todosaqueles meses de escavação valeram mesmo a pena, não é?

Eles refizeram os passos até a abertura e, depois de uma últi-ma olhada na plataforma, subiram de volta ao túnel. A mais oumenos seis metros, o túnel se abriu, e assim eles puderam seguirlado a lado. Se o dr. Burrows se curvasse um pouco, seria alto osuficiente para ele ficar de pé.

– Precisamos reforçar os suportes e as estacas – anunciou odr. Burrows, examinando o trecho de madeira no alto. – Em vezde um a cada metro, como discutimos, deve haver dois pormetro.

– Claro. Tudo bem, pai – garantiu-lhe Will, sem parecerconvincente.

– E precisamos levar isso para fora – continuou o dr. Burrows,cutucando com a bota um monte de argila no chão do túnel. –Não queremos ficar apertados demais aqui embaixo, não é?

– Não – respondeu Will vagamente, sem realmente preten-der fazer alguma coisa. Graças à mera emoção da descoberta, eledesconsiderava com demasiada frequência as diretrizes de segu-rança que o pai tentava impor. Sua paixão era escavar e a últimacoisa que tinha em mente era perder tempo com a “faxina”,como chamava o dr. Burrows. E, de qualquer forma, o pai rarasvezes se prontificava a ajudar na escavação em si, só aparecendoquando um de seus “pressentimentos” se confirmava.

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Dr. Burrows assoviava distraído entre os dentes ao se abaixarpara inspecionar uma torre de baldes numa pilha ordenada e ummonte de tábuas. À medida que continuavam, o túnel subia e eleparou várias vezes para testar as estacas de madeira de cada lado.Batia nelas com a palma da mão; ao fazer isso, o assovio obscurochegava a um guincho impossível.

A passagem por fim se aplainou e se alargou em uma câma-ra grande, onde havia uma mesa de armar e duas cadeiras debraço gastas. Eles colocaram parte do equipamento na mesa,depois subiram o último trecho de túnel até a entrada.

Assim que o relógio da cidade soou a última batida das setehoras, uma folha de aço corrugado se ergueu alguns centímetrosem um canto do estacionamento da Temperance Square. Era oinício do outono e o sol mostrava uma ponta no horizonteenquanto pai e filho, satisfeitos ao ver que a área estava limpa,empurravam a folha e revelavam no chão o grande buraco emol-durado em madeira. Eles colocaram a cabeça mais um poucopara fora, verificando se havia alguém no estacionamento, emseguida saíram do buraco. Depois que a folha de aço foi recolo-cada na entrada, Will chutou a terra por cima, para disfarçar.

Uma brisa agitava os tapumes em torno do estacionamentoe um jornal girou pelo chão como um rolo de galhos secos, espa-lhando suas páginas no impulso que tomara. À medida que o soltornava distintos os contornos dos armazéns ao redor e se refletiana fachada de ladrilhos vinho de um conjunto habitacionalPeabody Estate, próximo, os dois Burrows andaram devagar até ocarro estacionado, parecendo, em tudo, uma dupla de prospecto-res deixando sua mina no sopé da montanha para voltar à cidade.

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