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Tradução lígia azevedo

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Traduçãolígia azevedo

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Copyright © 2013 by Rainbow RowellPublicado mediante acordo com a autora por intermédio de The Lotts Agency, Ltd.

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

A tradução do poema de Emily Dickinson na p. 20 foi feita por Maria do Carmo Ferreira (In: Suplemento Literário de Minas Gerais, ano XXI, n. 1021, 3 maio 1986, pp. 6-7). As citações originais de Romeu e Julieta e Macbeth, de William Shakespeare, foram retiradas de Teatro completo (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006), com tradução de Barbara Heliodora.

título original Eleanor & Parkcapa Anna Gorovoyilustração de capa Harriet Russellpreparação Gabriela Ubrig Tonellirevisão Jasceline Honorato e Renato Potenza Rodrigues

[2020]Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — spTelefone: (11) 3707-3500www.seguinte.com.br

[email protected]

/editoraseguinte

@editoraseguinte

Editora Seguinte

editoraseguinteoficial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Rowell, RainbowEleanor & Park / Rainbow Rowell ; [tradução Lígia

Azevedo]. — 1a ed. — São Paulo : Seguinte, 2020.

Título original: Eleanor & Park.isbn 978-85-5534-100-7

1. Ficção norte-americana i. Título.

20-34426 CDD-813

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura norte-americana 813

Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

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Para Forest, Jade, Haven e Jerry — e todos os outros na caçamba da picape

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Ele tinha parado de tentar trazê-la de volta.Ela só vinha quando queria, em sonhos, mentiras e déjà-vus frag-

mentados.Tipo, se ele estivesse indo para o trabalho e visse uma garota ruiva

parada na rua… ele jurava, por meio instante sem fôlego, que era ela.Então ele notava que o cabelo da garota era mais loiro do que

ruivo.E que ela segurava um cigarro… e usava uma camiseta do Sex

Pistols.Eleanor odiava Sex Pistols.Eleanor…De pé atrás dele até que virasse a cabeça. Deitada ao seu lado pou-

co antes que ele acordasse. Fazendo todo mundo parecer mais tedioso, mais chato e nunca bom o bastante.

Eleanor estragando tudo.Eleanor indo embora.Ele tinha parado de tentar trazê-la de volta.

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agosto de 1986

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park

xtc não bastava para sufocar o barulho dos idiotas no fundo do ônibus.Park levou as mãos aos fones de ouvido e os pressionou contra

as orelhas.Amanhã ia levar Skinny Puppy ou Misfits. Talvez gravasse uma

fita especial para o ônibus, com o maior número de gritos e lamentos possível.

Ele poderia voltar a ouvir new wave em novembro, depois que tirasse a carta de motorista. Seus pais tinham dito que poderia ficar com o Impala da mãe, e Park estava economizando para comprar um toca-fitas novo. Quando começasse a ir de carro para a escola, pode-ria ouvir o que quisesse ou mesmo nada, e ainda poderia dormir uns vinte minutos a mais.

— Isso não existe! — alguém gritou atrás dele.— Claro que existe, caralho! — Steve gritou de volta. — Estilo

macaco bêbado, cara, é sério. Dá pra matar alguém com essa porra…— Você só fala merda.— Você só fala merda — Steve disse. — Park! Ei, Park!Park o ouviu, mas não respondeu. Às vezes, se você ignorasse um

pouco Steve, ele se voltava para outra pessoa. Saber disso garantia 80% de sobrevivência tendo o cara como vizinho. Os outros 20% envol-viam manter sempre a cabeça baixa…

O que Park tinha esquecido por um momento. Uma bolinha de papel atingiu sua nuca.

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— Eram minhas anotações sobre crescimento e desenvolvimento humano, seu cuzão — Tina disse.

— Desculpa, linda — Steve disse. — Vou te ensinar tudo sobre crescimento e desenvolvimento humano. O que precisa saber?

— Ensina pra ela o estilo macaco bêbado — alguém disse.— Park! — Steve gritou.Park tirou os fones e virou para o fundo do ônibus. Steve estava

no último banco, e era o centro das atenções. Mesmo sentado, sua cabeça quase tocava o teto. Steve sempre parecia estar cercado por móveis de casa de bonecas. Parecia um adulto desde a sexta série, isso antes de ter barba. Só um pouquinho antes.

Às vezes Park se perguntava se Steve estava com Tina porque ela o fazia parecer ainda mais monstruoso. A maioria das meninas que moravam em Flats era pequena, mas Tina devia ter um metro e meio, no máximo. Contando o cabelo enorme.

Uma vez, na época do ginásio, um menino ficou tirando uma com a cara do Steve, dizendo que era melhor não engravidar a Tina, ou o bebê gigante dele ia acabar matando a coitada. “Ele ia sair pela barriga dela, que nem no Alien”, o menino disse. Steve quebrou o dedinho dando um soco na cara dele.

Quando o pai de Park ficou sabendo, disse: “Alguém precisa ensi-nar o filho do Murphy a socar direito”. Park torceu para que ninguém ensinasse. O menino em que Steve batera não conseguiu abrir o olho por uma semana.

Park jogou para Tina a bolinha de papel com suas anotações. Ela pegou no ar.

— Park — Steve disse —, conta pro Mikey sobre o estilo de ca-ratê macaco bêbado.

Park deu de ombros.— Não sei nada disso.— Mas existe, né?— Acho que já ouvi falar.

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— Pronto. — Steve procurou alguma coisa para jogar em Mikey, mas não achou nada. Então, em vez disso, só apontou para ele. — Não falei, porra?

— E o que que o Sheridan sabe de kung fu, caralho? — Mikey disse.

— Você é retardado? — Steve retrucou. — A mãe dele é chinesa.Mikey observou Park atentamente. Park sorriu e estreitou os olhos.— É, acho que tô vendo agora — Mikey disse. — Sempre achei

que você fosse mexicano.— Cacete, Mikey — Steve disse. — Você é racista pra caralho.— Ela não é chinesa — Tina disse. — É coreana.— Quem? — Steve perguntou.— A mãe do Park.A mãe de Park era cabeleireira de Tina desde o primário. As duas

tinham exatamente o mesmo cabelo: comprido com permanente e franja repicada.

— Ela é gostosa pra caralho, isso sim — Steve disse, morrendo de rir. — Sem querer ofender, cara.

Park forçou outro sorriso e voltou a sentar virado para a frente, colocando os fones e aumentando o volume. Ainda podia ouvir Steve e Mikey, quatro bancos atrás.

— Mas qual é o sentido disso, caralho? — Mikey perguntou.— Cara, você ia querer lutar contra a merda de um macaco bêba-

do? Eles são gigantes. Seria tipo naquele filme Doido para brigar… louco para amar. Imagina aquela porra descontrolada indo pra cima de você.

Park notou a menina nova mais ou menos no mesmo instante em que o resto do ônibus. Ela estava de pé na frente, ao lado do primeiro lugar disponível.

Um menino da oitava série estava sentado sozinho no banco. Ele colocou a mochila no espaço livre ao seu lado, então desviou o rosto. Todo mundo que estava sentado sozinho passou para o assento do cor-redor. Park ouviu Tina rir; ela adorava aquele tipo de coisa.

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A menina nova respirou fundo e seguiu em frente. Ninguém nem olhava para ela. Park tentou evitar, mas como em um eclipse/ acidente de trem, foi impossível.

Ela parecia exatamente o tipo de pessoa com quem aquele tipo de coisa acontecia.

Não era apenas nova, mas grande e desengonçada. Tinha um ca-belo meio maluco, vermelho-vivo e cacheado. E estava vestida co-mo… como se quisesse que olhassem para ela. Ou como se não tives-se ideia de como era esquisita. Usava camisa xadrez masculina, com uma meia dúzia de colares estranhos e lenços amarrados como pul-seiras. Fazia Park lembrar de um espantalho, ou de uma das bonequi-nhas que ficavam sobre a cômoda da mãe dele. Algo que não sobre-viveria na selva.

O ônibus parou de novo, e um grupo de garotos entrou. Eles pas-saram pela menina nova, trombando com ela, e sentaram nos bancos de sempre.

Era meio que isso — todo mundo já tinha seu lugar no ônibus, que havia sido reivindicado no primeiro dia de aula. Pessoas como Park, que contavam com a sorte de ter um banco só para si, não que-riam abrir mão daquilo. Especialmente para alguém como ela.

Park voltou a olhar para a garota. Ela continuava ali parada.— Ei, você! — o motorista gritou. — Senta!Ela começou a avançar para o fundo do ônibus. Direto para a

bocarra da fera. Ah, meu Deus, Park pensou, para. Dá meia-volta. Ele podia sentir Steve e Mikey salivando conforme a menina se aproxima-va. Tentou de novo não olhar.

A garota notou um assento vazio na altura de Park, mas do outro lado do corredor. Seu rosto se iluminou de alívio, e ela correu para ele.

— Ei — Tina disse, afiada.A garota não parou.— Ei — Tina repetiu. — Bozo.Steve começou a rir. Seus amigos fizeram o mesmo.

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— Não pode sentar aí — Tina disse. — É o lugar da Mikayla.A garota parou e olhou para Tina, então voltou a olhar para o

assento vazio.— Senta — o motorista gritou lá da frente.— Tenho que sentar em algum lugar — a garota disse para Tina,

com a voz firme e tranquila.— Não é problema meu — Tina retrucou. O ônibus saiu, e a ga-

rota teve que se esforçar para não cair. Park tentou aumentar o volume do walkman, mas já estava no máximo. Ele olhou para ela; parecia que ia começar a chorar.

Antes mesmo que estivesse decidido, Park escorregou para o as-sento da janela.

— Senta — ele falou, parecendo bravo. A garota virou para Park, como se não tivesse certeza de que ele não era outro babaca. — Ca-cete — Park murmurou, indicando o lugar ao seu lado. — Só senta.

Ela sentou. Não disse nada — não agradeceu, ainda bem — e deixou uns quinze centímetros de espaço entre os dois.

Park virou para a janela e esperou que toda aquela merda explo-disse.

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eleanor

Eleanor considerou suas opções:

1. Podia voltar andando para casa. Prós: exercício, bochechas co-radas, tempo sozinha. Contras: não tinha seu próprio endere-ço e nem sabia para que lado ir.

2. Podia ligar para a mãe e pedir uma carona. Prós: muitos. Con-tras: a mãe não tinha telefone. Nem carro.

3. Podia ligar para o pai. Rá!4. Podia ligar para a avó. Só para dar um oi.

Ela estava sentada nos degraus de concreto na frente da escola, olhando para a fila de ônibus amarelos. O dela estava bem ali. Número 666.

Mesmo que pudesse evitar o ônibus naquele dia, mesmo que sua fada madrinha aparecesse com uma carruagem feita com uma abó-bora, ela ainda teria que pensar em outro jeito de ir para a escola no dia seguinte.

E não era como se os idiotas do ônibus fossem acordar mais sim-páticos no dia seguinte. Sério. Eleanor não ficaria surpresa se eles ros-nassem da próxima vez que os visse. Aquela loira no fundo, de jaqueta jeans desbotada? Quase dava para ver os chifres de demônio escon-didos debaixo da franja. E o namorado dela só podia ser um gigante bíblico.

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Aquela menina — todos eles — odiara Eleanor antes mesmo de vê-la. Como se tivessem sido contratados para matá-la em uma vida passada.

Eleanor não tinha entendido se o menino asiático que finalmente deixara ela sentar ao seu lado era um deles, ou se era muito burro. (Mas não burro de verdade, porque ele estava em duas aulas avançadas com ela.)

A mãe insistira com a nova escola para que a matriculassem em turmas avançadas. Tinha surtado quando vira como as notas de Elea-nor haviam piorado no último ano do ginásio. “Isso não pode ser uma surpresa para a senhora”, o orientador da escola dissera. Rá, Eleanor pensara, você ficaria surpreso com o que seria surpresa para ela.

Mas não importava. Eleanor podia ficar olhando para as nuvens do mesmo jeito em uma turma avançada. Havia o mesmo número de janelas nas salas.

Se é que ela ia voltar àquela escola.Se é que ia voltar para casa.Eleanor não podia contar sobre o que acontecera aquela manhã,

porque a mãe já tinha dito que ela não precisava pegar o ônibus. Na noite anterior, quando estava ajudando Eleanor a desfazer as malas…

— Richie disse que leva você — a mãe disse. — Fica no caminho do trabalho.

— Ele vai me fazer andar na caçamba?— Richie está tentando fazer as pazes, Eleanor. Você prometeu

que ia tentar também.— Pra mim é mais fácil tentar à distância.— Eu disse a ele que você estava pronta para fazer parte desta

família.— Já sou parte desta família. Sou um membro fundador, aliás.— Eleanor — a mãe disse. — Por favor.— Vou de ônibus — Eleanor disse. — Não é nada de mais. Vou

conhecer gente.

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Rá!, Eleanor pensou agora. Um “rá!” gigante e dramático.O ônibus logo iria embora. Outros já estavam saindo. Alguém

desceu os degraus correndo e acidentalmente chutou sua mochila. Eleanor a tirou do caminho e já ia se desculpar — mas era o tonto do menino asiático. Ele franziu a testa quando notou que era ela. Eleanor franziu a testa de volta, e ele seguiu em frente.

Tá bom, Eleanor pensou. Os filhos do demo não vão passar fome en-quanto eu estiver aqui.

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park

Ela não falou com ele no caminho de volta.Park tinha passado o dia todo tentando pensar em como se livrar

da menina nova. Teria que trocar de lugar. Era o único jeito. Mas onde sentaria? Não queria se impor a ninguém. E trocar de lugar já ia cha-mar a atenção de Steve.

Park achou que Steve ia pegar no seu pé quando deixou a menina sentar, mas ele voltara a falar de kung fu. Park, aliás, sabia bastante coisa sobre kung fu. Porque seu pai era obcecado por artes marciais, não porque sua mãe era coreana. Park e seu irmão mais novo, Josh, faziam aulas de tae kwon do desde que aprenderam a andar.

Mas como ele ia mudar de lugar?Provavelmente poderia sentar com os mais novos, mas aquilo se-

ria uma demonstração de fraqueza. E ele quase odiava pensar em dei-xar a menina nova, toda esquisita, sozinha no fundo do ônibus.

Park se odiava por isso.Se seu pai soubesse, ia chamá-lo de bichinha. Em voz alta, para

variar. Se sua avó soubesse, ia dar um tapa na cabeça dele. Que falta de educação, ela diria. Isso é jeito de tratar alguém com dificuldades?

Mas Park tinha suas próprias dificuldades, e não podia perder seu pouco status por causa daquela ruiva idiota. Era o que permitia que ficasse longe de problemas. Ele sabia que aquilo era horrível, mas meio que agradecia a existência de pessoas como aquela garota. Porque ha-

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via gente como Steve, Mikey e Tina, que precisavam de alguém para devorar. Se não fosse a ruiva, seria outra pessoa. E, se não fosse outra pessoa, seria Park.

Naquela manhã, Steve tinha deixado passar, mas não ia esquecer daquilo…

Park podia ouvir a avó de novo. Como você pode estar se remoendo por ter tomado uma atitude gentil na frente de outras pessoas?

Nem tinha sido tão gentil assim, Park pensou. Ele deixou que a garota sentasse, mas tinha dito um palavrão. Quando ela aparecera na turma de inglês dele naquela tarde, parecera que era só para assom-brá-lo.

— Eleanor — o sr. Stessman disse. — Que nome forte. É um nome de rainha, sabia?

— É o nome da esquila gorda do Alvin — alguém sussurrou atrás de Park. Outra pessoa riu.

O sr. Stessman apontou para a carteira vazia logo à frente.— Estamos lendo poemas hoje, Eleanor — ele disse. — Dickin-

son. Gostaria de começar?O professor abriu o livro dela na página certa e apontou.— Vamos lá — ele disse —, alto e claro. Te digo quando parar.Eleanor olhou para o sr. Stessman como se torcesse para que fosse

uma brincadeira. Quando ficou claro que não era — ele quase nunca brincava —, ela começou a ler.

— “Todo esse tempo passei fome” — Eleanor declamou. Alguns alunos riram.

Minha nossa, Park pensou, só o sr. Stessman faria uma menina gorda ler um poema sobre fome no primeiro dia de aula.

— Pode continuar, Eleanor — o professor disse.Ela recomeçou, o que Park achou uma péssima ideia. Disse ainda

mais alto:— “Todo esse tempo passei fome/ Meio-dia, o repasto/ da mesa

aproximei-me trêmula/ toquei o vinho raro/ Já tinha visto outros

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banquetes/ de volta ao lar, faminta/ Pelas janelas quantas vezes/ so-nhei cenas mais íntimas.”

O sr. Stessman não a interrompeu, de modo que ela leu o poema inteiro como que em desafio, com aquela voz tranquila. A mesma voz que havia usado com Tina.

— Maravilhoso — o sr. Stessman disse quando Eleanor acabou. Estava radiante. — Foi maravilhoso. Espero que fique conosco, Elea-nor, pelo menos até chegarmos a Medeia. É uma voz que chega em uma carruagem puxada por dragões.

Quando Eleanor apareceu na aula de história, o sr. Sanderhoff não fez nenhum escarcéu. Mas quando ela lhe entregou o papel que tinha na mão, ele disse:

— Ah. Rainha Eleanor da Aquitânia.Eleanor sentou algumas fileiras à frente de Park e, pelo que ele

reparou, ficou o tempo todo olhando para o sol.Park não conseguia pensar em um jeito de se livrar dela no ôni-

bus. Ou em um jeito de se livrar de si mesmo. Então colocou os fones de ouvido antes que ela sentasse e aumentou o volume até o máximo.

Ainda bem que a garota não tentou falar com ele.

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eleanor

Ela chegou em casa naquela tarde antes dos mais novos, o que era bom, porque não estava pronta para vê-los de novo. Tinha sido tão bizarro quando chegara na noite anterior…

Eleanor tinha passado muito tempo pensando em como seria fi-nalmente voltar para casa, e em como sentia falta de todo mundo. Ela achava que haveria uma grande festa. Achava que seria um festival de abraços.

Mas quando entrara em casa, fora como se seus irmãos não a re-conhecessem.

Ben só deu uma olhada nela, e Maisie… Maisie estava sentada no colo de Richie. O que teria feito Eleanor vomitar na hora se ela não ti-vesse acabado de prometer à mãe que ia se comportar pelo resto da vida.

Só Mouse correu para abraçá-la. Eleanor o pegou no colo, agra-decida. Ele tinha cinco anos, e estava pesado.

— Oi, Mouse — ela disse. Chamavam-no assim desde bebê, Elea-nor nem conseguia lembrar o motivo. Ele a lembrava mais de um ca-chorrinho crescido e atrapalhado do que de um ratinho: sempre ani-mado, sempre tentando pular no seu colo.

— Olha, pai, é a Eleanor — Mouse disse, descendo do colo. — Você conhece a Eleanor?

Richie fingiu não ouvir. Maisie ficou só olhando enquanto chu-pava o dedo. Fazia anos que Eleanor não a via fazer aquilo. Já tinha oito anos, mas com o dedo na boca parecia um bebê.

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O mais novo nem ia se lembrar de Eleanor. Ele devia ter dois anos… E ali estava, sentado no chão com Ben, que tinha onze e olha-va para a parede atrás da tv.

A mãe levou a mala com suas coisas para um quarto que dava para a sala, e Eleanor a seguiu. Era um cômodo apertado, com espaço apenas para uma cômoda e uma beliche. Mouse correu atrás delas.

— Você vai ficar na cama de cima — ele disse. — Ben vai dormir no chão comigo. Quando a mamãe falou pra gente, ele começou a chorar.

— Não se preocupe com isso — a mãe disse, tranquila. — Só vamos precisar nos adaptar.

Não havia espaço no quarto para adaptação. (Mas Eleanor decidiu não mencionar aquilo.) Ela foi para a cama assim que pôde, para não precisar voltar para a sala.

Quando acordou no meio da noite, os três irmãos dormiam no chão. Ela não tinha como levantar sem pisar neles, nem sabia onde ficava o banheiro.

Mas descobriu. Havia apenas cinco cômodos na casa, se contasse o banheiro. Ele dava para a cozinha — literalmente, porque nem havia porta. Eleanor pensou que a casa devia ter sido projetada por homens das cavernas. Alguém, provavelmente a mãe, tinha pendurado um len-çol florido entre a geladeira e o banheiro.

Quando voltou da escola, Eleanor abriu a porta com sua chave no-va. A casa parecia ainda mais deprimente à luz do dia — suja e vazia —, mas pelo menos tinha o lugar, e sua mãe, só para si.

Era estranho chegar em casa e ver a mãe ali de pé na cozinha, como… como se fosse normal. Ela estava fazendo sopa, picando ce-bola. Eleanor teve vontade de chorar.

— Como foi na escola? — a mãe perguntou.— Tudo bem — Eleanor respondeu.— Teve um bom primeiro dia?— Tive. Quer dizer, nada de mais, só aula.

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— Vai ter que correr atrás para acompanhar?— Acho que não.A mãe limpou as mãos no jeans e ajeitou o cabelo atrás das ore-

lhas. Eleanor ficou impressionada, pela milésima vez, com como ela era linda.

Quando Eleanor era pequena, achava que sua mãe parecia uma rainha, a protagonista de um conto de fadas.

Não uma princesa — princesas são apenas bonitas. A mãe de Eleanor era linda. Era alta e imponente, com ombros largos e cintura fina. Seus ossos pareciam ter mais intenção que os dos outros. Como se não estivessem lá apenas para sustentá-la, mas para mandar uma mensagem.

Ela tinha um nariz marcante, um queixo pontudo e maçãs do ros-to altas. Quem olhasse para a mãe de Eleanor lembrava de uma figura esculpida na proa de um barco viking, ou pintada na lateral de um avião.

Eleanor era muito parecida com ela.Mas não o bastante.Eleanor parecia sua mãe vista através de um aquário. Era mais

redonda e atenuada. Indistinta. Se sua mãe era escultural, Eleanor era pesada. Se sua mãe era finamente desenhada, Eleanor era um borrão.

Mesmo depois de cinco filhos, sua mãe tinha o corpão de uma modelo de propaganda de cigarro. Com dezesseis anos, Eleanor já parecia uma taberneira medieval.

Ela tinha muito de tudo e estatura baixa demais para esconder isso. Seus seios começavam logo abaixo do queixo, seu quadril era… uma piada. Mesmo o cabelo da mãe, comprido, ondulado e castanho--avermelhado, parecia uma versão mais aceitável dos cachos verme-lho-vivo da filha.

Eleanor levou a mão à cabeça, constrangida.— Tenho uma coisa para te mostrar — a mãe disse, tampando a

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panela da sopa —, mas não queria que fosse na frente das crianças. Vem aqui.

Eleanor a seguiu até seu novo quarto. A mãe abriu o armário e tirou uma pilha de toalhas e uma cesta cheia de meias.

— Não consegui trazer todas as suas coisas quando nos muda-mos — ela disse. — É óbvio que não temos tanto espaço aqui quanto na casa antiga… — A mãe esticou o braço e pegou um saco plástico preto dentro do armário. — Mas eu trouxe tudo o que pude. — Ela entregou o saco a Eleanor e disse: — Sinto muito pelo resto.

Eleanor tinha imaginado que Richie jogara todas as suas coisas no lixo dez segundos depois de botá-la para fora de casa, um ano antes. Ela pegou o saco.

— Tudo bem — disse. — Obrigada.A mãe esticou o braço para tocar seu ombro por apenas um se-

gundo.— As crianças vão chegar em uns vinte minutos — ela disse —, e

vamos comer umas quatro e meia. Gosto que esteja tudo certo quan-do Richie chega.

Eleanor assentiu. Abriu o saco assim que a mãe saiu do quarto. Queria ver o que ainda tinha…

A primeira coisa que reconheceu foram as bonequinhas de pa-pel. Estavam soltas no saco e tinham amassado; algumas tinham sido pintadas com giz de cera. Fazia anos que não brincava com elas, mas ficou feliz ao vê-las mesmo assim. Eleanor as desamassou e fez uma pilha com elas.

Sob as bonequinhas havia uma dúzia de livros, que a mãe devia ter pego aleatoriamente, sem saber quais eram os favoritos de Eleanor. Ela ficou feliz em ver Garp e A longa jornada. Era uma pena que A história de Oliver tivesse sobrevivido e Love Story não. E Homenzinhos estava ali, mas Mulherzinhas e A rapaziada de Jô não.

Também havia um monte de papel no saco. Eleanor tinha um ar-quivo em seu antigo quarto, e a mãe parecia ter pego a maior parte das

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pastas. A garota tentou organizar tudo em uma pilha, todos os boletins, as fotos da escola e as cartas de amigos.

Ela se perguntou onde o resto das coisas de sua antiga casa tinha ido parar. Não só o que era dela, mas dos outros também. Os móveis, os brinquedos, todas as plantas e os quadros da mãe. O conjunto de louça dinamarquesa que a avó havia ganhado quando se casara… O cavalinho vermelho que sempre ficava em cima da pia.

Talvez estivesse tudo guardado em algum lugar. Talvez a mãe es-perasse que aquela casa fosse apenas temporária.

Eleanor ainda tinha esperanças de que Richie fosse apenas tem-porário.

No fundo do saco de lixo preto havia uma caixa. Quando Elea-nor a viu, seu coração deu um pulo. Todo Natal, seu tio de Minnesota costumava dar de presente para a família a assinatura de uma cesta de frutas, e Eleanor e seus irmãos brigavam pelas caixas em que elas vi-nham. Parecia idiota, mas as caixas eram boas — firmes, com tam-pa. Aquela era de toranja, e estava um pouco amassada nos cantos de tanto usar.

Eleanor a abriu com cuidado. Tudo continuava intocado lá dentro. Seus papéis de carta, seus lápis de cor, suas canetinhas (outro presente de Natal do tio). Havia uma pilha de cartõezinhos do shopping que ainda cheiravam a perfume caro. E ali estava seu walkman. Intocado. Sem pilhas, mas ainda assim ali. E onde havia um walkman, havia pos-sibilidade de música.

Eleanor levou a cabeça à caixa. Cheirava a Chanel no 5 e aparas de lápis. Ela suspirou.

Depois de avaliar todos os seus pertences recuperados, Eleanor não tinha nada a fazer com eles. Não havia espaço na cômoda nem para suas roupas. Eleanor separou a caixa e os livros e devolveu todo o resto cuidadosamente ao saco de lixo. Então enfiou o saco o mais fundo que pôde na prateleira mais alta do armário, atrás das toalhas e do umidificador de ar.

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Eleanor subiu no beliche e encontrou um gato velho e magro dormindo ali.

— Chispa — ela disse, afastando-o. O gato pulou no chão e saiu pela porta.