19
O reconhecimento na tragédia grega: a Ifigênia em Tauris, de Eurípides Adriane da Silva Duarte FFLCH/USP As cenas de reconhecimento estão presentes em diversos gêneros literários gregos, desde a épica homérica até a comédia nova. Seu emprego, no entanto, está mais associado à tragédia, sendo consideradas por Aristóteles um elemento constitutivo da trama complexa em conjunto com a peripécia e o patético (enxerto 1). Ao menos, é o que julga Aristóteles na Poética (XI, 1452a 33), que define assim a sua natureza (enxerto 2): "O reconhecimento (anagnórisis), como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer (ex agnoías eis gnósin metabolé), que se faz para a amizade (philían) ou inimizade (échthran) das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita". Ou seja, o reconhecimento consiste em um processo cognitivo, a descoberta de algo que era desconhecido previamente. Tal movimento mental opera uma mudança no relacionamento entre as pessoas nele envolvidas, que pode ser para melhor (amizade) ou para pior (inimizade). No entanto, alguns comentadores da Poética, notadamente Else (1957: 349), não têm dúvidas de que o termo philía, nesta definição, designa não a amizade, mas o parentesco, uma vez que a maioria absoluta dos casos citados revela a existência de laços de

Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

O reconhecimento na tragédia grega: a Ifigênia em Tauris, de Eurípides

Adriane da Silva DuarteFFLCH/USP

As cenas de reconhecimento estão presentes em diversos gêneros literários gregos,

desde a épica homérica até a comédia nova. Seu emprego, no entanto, está mais associado à

tragédia, sendo consideradas por Aristóteles um elemento constitutivo da trama complexa

em conjunto com a peripécia e o patético (enxerto 1). Ao menos, é o que julga Aristóteles

na Poética (XI, 1452a 33), que define assim a sua natureza (enxerto 2):

"O reconhecimento (anagnórisis), como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer (ex agnoías eis gnósin metabolé), que se faz para a amizade (philían) ou inimizade (échthran) das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita".

Ou seja, o reconhecimento consiste em um processo cognitivo, a descoberta

de algo que era desconhecido previamente. Tal movimento mental opera uma mudança no

relacionamento entre as pessoas nele envolvidas, que pode ser para melhor (amizade) ou

para pior (inimizade). No entanto, alguns comentadores da Poética, notadamente Else

(1957: 349), não têm dúvidas de que o termo philía, nesta definição, designa não a

amizade, mas o parentesco, uma vez que a maioria absoluta dos casos citados revela a

existência de laços de sangue entre os agentes. Portanto, mais do que o sentimento de

amizade ou hostilidade, o que está em questão é o estado a que o ato de reconhecimento

conduz: o herói descobre-se philós de alguém, seu parente – a hostilidade só é significativa,

e por isso mesmo inesperada, na medida em que advém de um familiar. Mesmo que não se

concorde com a leitura estrita de Else, deve-se conceder que, no mínimo, há uma

potencialização do efeito trágico quando essas condições estão presentes.

Em outra passagem de seu Tratado, Aristóteles afirma (1452b 3) que o

reconhecimento se dá entre pessoas, embora não precise necessariamente ser mútuo - uma

pessoa pode reconhecer outra, sem ser por ela imediatamente reconhecida (enxerto 4).

Mais adiante, ele oferece uma tipologia das cenas de reconhecimento,

hierarquizando-as a partir do efeito emocional produzido – tendo em vista a produção da

catarse (1454b 20ss, enxerto 6). Levando em conta um critério estético, as melhores são (1)

Page 2: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

as que estão associadas à peripécia e são conseqüência da ação dramática, cujos exemplos

são a do Édipo Rei e a da Ifigênia em Tauris. Tais reconhecimentos seriam mais eficientes

no despertar do terror e da piedade, emoções trágicas por excelência. Seguem-se as

derivadas de um silogismo (2), como o reconhecimento de Electra n' As Coéforas, que

antecipa o retorno do irmão valendo-se não apenas dos sinais que encontra, mecha de

cabelo e pegadas, comparáveis aos dela, mas de um cálculo de probabilidade (quem mais

teria características comuns a ela e motivos para sacrificar sobre o túmulo de Agamenão

senão Orestes?). Associa-se a essa, ao meu ver, o reconhecimento derivado de uma falsa

inferência feita pela audiência, o chamado "paralogismo da parte dos espectadores". O

exemplo é o de Odisseu que, sob o disfarce de mendigo, afirma reconhecer o arco do herói.

Como não era provável que alguém de sua condição gozasse dessa liberdade junto ao dono

da casa, a audiência presume que ele seja o próprio Laertíada.

Os reconhecimentos oriundos de um despertar da memória (3) e os que se devem

meramente à arte do poeta (4) têm menor valor. Aqueles ocorrem quando um estímulo

sensível produz lembranças capazes de revelar sentimentos profundos, como é o caso do

pranto de Odisseu diante dos Feácios ao ouvir a canção de Demódoco sobre Tróia, na

Odisséia. Os últimos são arbitrários, portanto, já que decorrem da manipulação de cenas e

falas.

Por fim, o menos sofisticado, embora largamente empregado, é o reconhecimento

por sinais, sejam eles inatos (uma mancha de nascença, por exemplo) ou adquiridos (como

ocorre com a famosa cicatriz de Odisseu ou com os vários objetos que permitem o

estabelecimento da identidade de um determinado personagem – anéis, colares ou

bordados).

A classificação de Aristóteles reflete, antes de tudo, a sua visão da questão e não

pode ser tomada como evidência de que os autores que o antecederam (e mesmo os que o

sucederam) dividissem as cenas de reconhecimento nas categorias acima descritas. Uma

primeira discordância parece residir na predileção que os poetas gregos tinham pelo uso de

sinais nos reconhecimentos, recurso que o filósofo considera grosseiro. Inegável também é

a constatação de que os dramaturgos do século V a.C. demonstram ter consciência desse

recurso e das possibilidades por ele oferecidas, como atestam Eurípides, em sua tragédia

Page 3: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

Electra, e Aristófanes, na comédia As nuvens, em que aludem à cena de reconhecimento

criada por Ésquilo em Coéforas.

Mas o fato é que com Aristóteles, reconhecimento (anagnórisis) torna-se um termo

de poética, associado à fábula (muthos), da qual faz parte em conjunto com a peripécia e o

patético1. Além de ser um recurso estruturador da narrativa, capaz de promover o desenlace

de um conflito e dotado de alto potencial emocional2, sua vasta presença, igualmente

atestada nos mitos, sugere que o reconhecimento seja antes uma resposta às inquietações do

homem a cerca de sua origem e de sua identidade.

Édipo é o exemplo mais acabado desta necessidade de saber quem somos, condição

para definirmos nosso comportamento ante os outros, e das possíveis conseqüências de o

ignorar. De fato, provem da tragédia homônima de Sófocles, o exemplo melhor acabado de

cena de reconhecimento, segundo Aristóteles na Poética (cf. quadro tipológico e também

enxerto 3). No entanto, outra tragédia se destaca nesta avaliação, trata-se da Ifigênia em

Tauris, de Eurípides, que disputa com a peça de Sófocles a preferência do Filósofo. Além

de estar, junto com o Édipo, no topo da classificação aristotélica, também ilustra duas

outras categorias – reconhecimento urdido pelo poeta e por silogismo (cf. quadro) –,

recebendo diversas outras menções ao longo do texto (enxertos 4, 5 e quadro). Sem dúvida,

um de seus atrativos é desdobrar o reconhecimento em duas etapas – trata-se de um

reconhecimento múltiplo (enxerto 4). Examinando a peça mais de perto, notamos que ela

foi composta tendo em vista fazer da cena de reconhecimento o seu clímax. Passo, então, ao

exame da tragédia Ifigênia em Tauris, de modo a ilustrar melhor meu ponto de vista.

Ifigênia em Tauris, de Eurípides, foi composta em algum momento entre os anos

414 a. C. (Dale) e 411 a. C. (Lesky). Com esta tragédia, Eurípides propõe uma seqüência

para a história de Orestes e de sua família, a dos Atridas, tantas vezes tratada pelos

tragediógrafos (cf. quadro, A lenda de Ifigênia). Sua absolvição pelo crime de matricídio,

encenado por Ésquilo nas Eumênides, é relativizada. Algumas eríneas, que discordaram do

veredicto, ainda perseguem o herói até que ele traga de Tauris, uma terra bárbara (atual

Criméia), para Atenas uma estátua de Ártemis. Os taúrios são hostis aos gregos, tendo sido

determinada a captura e subseqüente sacrifício a Ártemis dos que se aventurassem em seu

1 Cf. Aristóteles, Poética (1452 b 9): “São estas, duas partes do mito: peripécia e reconhecimento. Terceira é a catástrofe” [Tradução de Eudoro de Souza].2 Cf. Aristóteles, Poética (1450 a 28): “Ajuntemos a isto que os principais meios porque a tragédia move os ânimos (psukhagogein) também fazem parte do mito: refiro-me a peripécias e reconhecimentos”.

Page 4: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

território. Não obstante, a sacerdotisa encarregada de consagrar as vítimas para a morte é

grega. Trata-se de Ifigênia, irmã de Orestes, que todos na Grécia julgavam morta. Ártemis

exigira de Agamenão, seu pai, seu sacrifício em Aulis, de modo a permitir o avanço das

tropas gregas até Tróia. A deusa, entretanto, substituíra Ifigênia por uma corça,

transportando-na a Tauris, onde a encarregou de seu culto.

Essa situação inicial é potencialmente explosiva, já que, ao chegar a Tauris, Orestes

corre o risco de ser morto, senão pelas mãos da própria irmã, com seu auxílio,

acrescentando mais um capítulo triste à saga funesta dos Atridas. Isso teria de fato

acontecido não fosse os jovens se reconhecerem antes da execução ter lugar.

A tensão gerada pelo encontro dos irmãos que desconhecem quem são é

cuidadosamente preparada desde as cenas iniciais. No prólogo da tragédia, Ifigênia conta,

perturbada, um sonho que tivera durante a noite. Em suas visões, o palácio em Argos era

destruído por um terremoto só restando a coluna central. Esta coluna estava adornada com

uma cabeleira loura e emitia sons humanos. Ifigênia, como sacerdotisa, o aspergia para que

fosse sacrificado. Embora óbvio, este sonho premonitório, pois de fato Orestes já está na

ilha e em breve será levado à presença da sacerdotisa, é mal compreendido pela moça. Para

ela, a coluna representa Orestes, já que os filhos homens são o esteio da casa – o que está

certo –, mas o sacrifício iminente era indício de que já estava morto. Tal conclusão, a lança

no maior desespero, já que sua salvação e repatriamento tornam-se cada vez mais difíceis.

Essa pressuposição da morte de Orestes constituirá um grande obstáculo para que

Ifigênia reconheça o irmão no jovem grego que aporta a ilha. O mesmo ocorre com Orestes,

que crê que sua irmã não vive mais, sacrificada que fora pelo pai em Aulis (cf. v. 564:

ou)dei/j ge [lo/goj e)/stin], plh\n Janou=san ou)x o(ra=n fa/oj.). O estado de

ignorância que afeta os irmãos supera a mera questão de identidade, pois ambos, ao se

defrontarem, partirão da falsa premissa da morte um do outro, o que os deixa cegos para os

indícios que apontam para o parentesco, como o fato de serem originários da mesma

cidade, de conhecerem em detalhe a vida familiar, de sofrerem, especialmente Ifigênia, ao

serem informados dos sucessivos infortúnios que abalaram os Atridas. Por outro lado, esta

situação guarda alto potencial dramático, já que os espectadores, que conhecem a

Page 5: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

identidade dos irmãos, temem que o engano em que estão mergulhados termine por

determinar a morte de Orestes3.

O poeta vai explorar esta situação tensionando ao máximo as questões relativas à

identidade. Assim, quando o mensageiro taúrio vem anunciar a captura de dois jovens

estrangeiros que serão encaminhados para o sacrifício, Ifigênia pergunta de onde são e qual

seu nome (v. 246-248). Diante da resposta de que são gregos e que um deles se chama

Pílade, que ela ignora ser o companheiro inseparável de seu irmão, insiste em saber o nome

do outro (250), mas seu informante não sabe dizer.

A partir do verso 490, Ifigênia interroga Orestes, que se nega a revelar quem seja.

Sua recusa advém do desejo de morrer no anonimato, de modo a não se tornar alvo de

escárnio alheio (v. 502, a)nw/numoi Jano/ntej ou) gel%/meJ” a)/n.). Declara o

jovem herói a sua algoz (v. 504, to\ sw=ma Ju/seij tou)mo/n, ou)xi\ tou)/noma.):

O meu corpo sacrificarás, não o meu nome.

No entanto, diante da insistência da sacerdotisa, o jovem termina por fazer algumas

revelações. Diz que nasceu em Argos (v. 508), mesma cidade de Ifigênia, que a evocação

de Tróia lhe é funesta (v. 518) e que Helena lhe custou a vida de um ente querido (v. 522).

Ifigênia, por sua vez, não esconde suas emoções ao saber das mortes de Calcas, o adivinho

que determinara o seu sacrifício (v. 532), e de Aquiles (v. 538-539). A jovem fora atraída a

Aulis por Agamenão sob o pretexto de se casar com Aquiles, o principal herói grego; ele,

por sua vez, ignorava a armadilha e se dispôs a salvá-la quando a verdade veio à tona (cf.

Ifigênia em Aulis, de Eurípides). Tamanha familiaridade e interesse da jovem acabam por

atiçar a curiosidade de Orestes, que, por sua vez, deseja saber quem ela é (v. 540, ti/j ei)=

poJ”;). A resposta é vaga (v. 541):

Sou de lá [i.e, de Argos], mas ainda criança fui de lá arrancada.

3 Na Electra, de Sófocles, Orestes retorna à casa incógnito e anuncia sua própria morte como forma de pegar desprevenidos Clitemnestra e Egisto. Sua irmã Electra, no entanto, se desespera com a notícia, pois contava com o irmão para vingar a morte do pai.

Page 6: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

O interrogatório prossegue e Ifigênia sofre com a notícia da morte do pai,

Agamenão, pelas mãos da mãe, Clitemnestra (v. 549). Por fim, ao inquerir sobre Orestes,

descobre que após matar a mãe vive num exílio perpétuo (v. 567). Esta última informação é

crucial para o desenrolar da trama, pois a moça fica sabendo, ironicamente da boca do

próprio irmão, de que se enganara ao interpretar o sonho (v. 569, yeudei=j o)/neiroi,

xai/ret”: ou)de\n h)\t” a)/ra.):

Sonhos mentirosos, adeus! Nada éreis, enfim.

Com um dos obstáculos ao reconhecimento removido – Ifigênia sabe agora que

Orestes vive –, o poeta começa a prepará-lo. A esperança de rever a terra natal e a família

renasce em Ifigênia que propõe a Orestes poupar sua vida, desde que ele entregasse uma

carta para os conhecidos dela em Argos (v. 584)4. Mas Orestes declina da oferta em nome

de Pilade, que arriscou a vida para acompanha-lo – não fosse por lealdade a ele, nenhum

perigo estaria correndo.

Ifigênia e Orestes, ainda ignorando o vínculo que os une, ironicamente, exprimem

desejos relacionados a seus irmãos “ausentes”. Ifigênia declara sua admiração pelo caráter

de Orestes e faz votos que seu irmão seja assim nobre (611-613). Orestes, por sua vez,

diante da morte próxima, expressa a vontade de ser sepultado por sua irmã5. Na

impossibilidade de ver cumprido este desejo, Ifigênia se compromete a prestar-lhe as

honras fúnebres. Ou seja, indiretamente Ifigênia vê em Orestes alguém que poderia ser o

seu irmão e se apieda dele, ao mesmo tempo, ele receberá da parte dela os cuidados de uma

irmã. Essa proximidade espiritual entre os jovens é tocante, sobretudo neste momento em

que o vínculo que os une é a morte – dele por parte dela.

Ifigênia sai de cena um instante para buscar a carta que Pílade deve entregar (640-

641)6. Orestes, uma vez mais, se pergunta sobre a identidade da sacerdotisa, que parece

4 Sobre as cartas na tragédia e esta em particular, cf. Hirata, Filomena Y. As cartas na tragédia grega. In Clássica, v. 13/14, p.315-322, 2000-2001.5 Em Antígone, de Sófocles, a heroína homônima transgride um decreto da cidade para poder prestar os ritos fúnebres ao irmão, Poliníces.6 Ifigênia explica que um dos estrangeiros que sacrificou à deusa, comovido com sua história, escreveu por ela a carta, que ela guardou na esperança de fazer chegar aos seus um dia. Trata-se de uma ressalva para salvar as aparências, uma vez que não seria verossímil que ela mesma a escrevesse, uma vez que as mulheres não recebiam uma educação formal.

Page 7: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

conhecer intimamente sua família (660-668), mas Pílade não compartilha suas dúvidas.

“Dos sofrimentos dos reis todos sabem” (670-671), diz ele pondo fim à discussão. Depois

de prometer erguer um monumento em memória do amigo em Argos e desposar sua irmã,

Electra, Pílade declara (721-722, a)ll” e)/stin e)/stin h( li/an duspraci/a | li/an

didou=sa metabola/j, o(/tan tu/x$.):

Mas a infelicidade em demasia

traz mudanças em demasia, se há sorte.

A fala de Pílade prepara os espectadores para a reviravolta na tragédia, reviravolta

esta coincidente com a cena de reconhecimento7. Vale lembrar que o termo usado para

indicar a mudança (de estado, da infelicidade para a felicidade), metabolh/, é empregado,

na Poética, tanto na definição de peripécia – ei)j to\ e)nanti/on tw=n

prattome/nwn metabolh/ –, quanto na de reconhecimento– e)c a)gnoi/aj ei)j to\

gnw=sin metabolh/. É isso que faz desta cena tão especial aos olhos de Aristóteles (cf.

quadro).

Mas, afinal de contas, como se dá o reconhecimento? Pílade aceita fazer o papel de

mensageiro, mas diante da insistência de Ifigênia para que preste um juramento de que fará

as notícias suas chegarem aos seus sob pena de vir a morrer se descumprir a promessa,

prevê o caso de que venha a sofrer um naufrágio em que ele se salve, mas a carta, não.

Ifigênia, então, resolve ler a carta (760 ss.) para que Pílade fixe seu conteúdo e possa repeti-

lo de viva voz aos interessados, caso as tabuinhas se percam.

Logo no começo dessa leitura8, revela-se a Orestes a identidade da sacerdotisa (769-

771):

Anuncia a Orestes, filho de Agamenão:

a que foi sacrificada em Aulis envia esta carta

estando viva, Ifigênia [...].

7 Esta passagem pode ser mais um indício do grau de consciência que os tragediógrafos tinham da estrutura da tragédia. Neste caso, metábole poderia já ser empregado como um termo técnico.8 Não obstante, ela sabe ler (cf. n. 6)!

Page 8: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

A notícia é tão espantosa que ele, num primeiro momento, não associa a sacerdotisa

à irmã, que reafirma sua identidade (772 e 773):

OR.: Onde está ela? Está de volta após ter morrido?

IFI.: É esta que está diante de teus olhos.

O reconhecimento se dá em duas etapas. Primeiro, Orestes reconhece Ifigênia ao

tomar conhecimento do teor da mensagem. A força da revelação faz com que ele

interrompa várias vezes a leitura da carta, incomodando Ifigênia. Finda a leitura, Pílade

cumpre o juramento e, recebendo a tabuinha das mãos de moça, a entrega a Orestes (791-

792):

Veja, trago e te entrego,

Orestes, esta carta da parte de tua irmã.

Orestes, tomado de alegria, faz um movimento para abraçar a irmã, que, no entanto

o afasta. Nem ela, nem o coro, formado por cativas gregas, podem crer que o estrangeiro

seja Orestes. Embora a história dela seja mais difícil de aceitar do que a dele, já que

envolve a sua miraculosa troca pela corça na cena do sacrifício, troca que passou

desapercebida dos que a testemunharam, não é fácil acreditar na declaração do jovem

condenado à morte, que poderia passar por oportunista. Assim, Ifigênia pede que ele prove

o que diz (808, tekmh/rion).

As provas de identidade que Orestes oferece são evocações de objetos ou de fatos

cuja memória é compartilhada por ambos. São eles: 1) um bordado, feito por Ifigênia, que

mostrava a disputa entre Atreu e Tiestes pelo Carneiro do tosão dourado; 2) detalhes da

breve passagem da moça em Aulis – banho nupcial e o corte dos cachos de cabelos para

oferenda fúnebre; 3) a lança de Pélope, pendurada na parede do quarto da moça em Argos9.

Diante dessas evidências, Ifigênia se rende e também ela reconhece o irmão, entregando-se

a uma longa celebração do encontro (827-901).

9 Na verdade, apenas a última prova decorre da observação direta de Orestes (v. 822, a(\ d” ei)=don au)to/j, ta/de fra/sw tekmh/ria:). Das outras duas, ele sabe a partir de Electra (811, le/goim” a)\n a)ko$= prw=ton Hle/ktraj ta/de.) e, provavelmente, de Clitemnestra (818 e 820).

Page 9: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

Cumpri-se, assim, a predição de Pílade (721-722) com a mudança da infelicidade

extrema para a felicidade completa, apesar dos problemas dos jovens estarem longe de

acabar – eles devem encontrar um meio de deixar a ilha e regressar a sua pátria, burlando a

severa vigilância dos taúrios, tema de que se ocupará a tragédia daqui por diante. O

sentimento jubiloso, no entanto, se justifica tendo em vista 1) o que há de implausível no

reencontro e 2) o fato de a revelação abortar a ação fratricida.

A implausibilidade do reconhecimento é notada pelo coro, que após testemunha-lo,

declara (900-901):

Maravilhoso e além das palavras

o que eu mesma vi – não ouvi de um outro.

O outro caso, é discutido por Aristóteles na Poética, ao comentar a relação entre o

agente e a consciência do ato (XIV, 1453b 23). Nota o Filósofo que o agente age tendo

plena consciência de seus atos (o exemplo é Medeia quando mata os próprios filhos), ou

age sem ter pleno conhecimento da ação (Édipo que mata Laio e desposa Jocasta ignorando

que sejam estes seus pais biológicos), ou, então, está pretes a agir em ignorância, mas

percebe a tempo o erro e evita a ação. Esta última é a situação trágica ideal (1454a 1):

“Mas superior a todos é o último, por exemplo, o que se dá no Cresfonte,

quando Mérope está para matar o filho, e não Mara porque o reconhece;

e na Ifigênia, em que a irmã vai matar o irmão; e na Helle, onde o filho,

quando vai entregar sua mãe, então a reconhece.”

A vantagem de estruturar a fábula desta forma é que o ato criminoso é evitado sem

que se perca o prazer advindo do reconhecimento. Este prazer é até mesmo mais intenso na

medida em que alivia a tensão advinda da possibilidade do ato criminoso vir a acontecer.

Daí a exploração que fazem os poetas, muito especialmente Eurípides, do potencial

emocional do reencontro.

Apesar de admirar a solução encontrada por Eurípides para aproximar os irmão na

Ifigênia em Tauris, Aristóteles julgava a primeira revelação, da identidade da irmã, superior

Page 10: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

à segunda, da identidade do irmão. Isso porque, no primeiro caso, a carta surge como algo

necessário e verossímil no curso da trama, pois, como diz o Filósofo, “é natural que ela

quisesse enviar alguma carta” (XVI, 1455a 20). Já, no segundo caso, Orestes “diz o que o

poeta quer que ele diga, e não o que o mito exige” (XVI, 1454b 31). Para Aristóteles é

como se Orestes “levasse em si qualquer sinal” (XVI, 1454b 31), revelando assim o que há

de arbitrário nessa espécie de reconhecimento – o poeta pode produzir qualquer evidência

de parentesco que queira, sem que estas decorram da ação10. Assim, Aristóteles menciona

uma outra solução, mais do seu agrado, para a revelação de Orestes, criada pelo sofista

Poliido (XVI, 1455a 4):

“Reconhecimento por silogismo é também aquele inventado pelo sofista

Poliido para Ifigênia, porque verossímil seria Orestes discorrer que, se a

irmã tinha sido sacrificada, também ele o havia de ser.”

Embora esta sugestão entusiasme tanto Aristóteles que ele a mencione duas vezes na

Poética (enxerto 5), fico imaginando como então Ifigênia provaria ser quem é sem recorrer

a memórias comuns ou a algum objeto de família. Como a identidade dela é mais difícil de

se estabelecer que a do irmão, então, talvez Eurípides tenha sido sábio ao faze-la revelar-se

primeiro.

Apesar deste reparo, se juntarmos as observações que Aristóteles faz sobre a

Ifigênia em Tauris nos capítulos XIV e XVI, podemos concluir que a tragédia de Eurípides

leva pequena vantagem sobre o Édipo Rei, de Sófocles, no conceito do Filósofo, já que traz

o melhor reconhecimento aliado à melhor forma de ação trágica.

ANEXOS

Enxertos da Poética, de Aristóteles: sobre o reconhecimento

Partes da fábula poética (complexa): peripécia (mudança dos acontecimentos no seu contrário);

reconhecimento e catástrofe (pathos: ação perniciosa e dolorosa). (Poética, XI)

10 Nesse sentido, é admirável que, no Édipo Rei, de Sófocles, os pés inchados do herói não sejam mencionados como evidência de seu abandono pelos pais, mas que sua identidade venha à tona a partir do testemunho do Mensageiro de Corinto, que vem à sua procura para informar-lhe da morte do pai adotivo.

Page 11: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

“Reconhecimento é, como o nome indica, a passagem da ignorância para o conhecimento, que se faz para a

amizade ou inimizade dos que estão delineados para a fortuna ou o infortúnio.” (Aristóteles, Poética, XI,

1452a 22)*

“A mais bela de todas as formas de reconhecimento é a que com peripécia, como, por exemplo no Édipo” [...],

“porque o reconhecimento com peripécia suscitará terror e piedade, e nós mostramos que a tragédia é

imitação de ações que despertam tais sentimentos.” (Aristóteles, Poética, XI, 1452a 33)

“Posto que o reconhecimento é reconhecimento de pessoas, certos casos há em que o é somente de uma por

outra, quando claramente se mostra quem seja esta outra; noutros casos, ao invés, dá-se o reconhecimento

entre ambas as personagens. Assim, Ifigênia foi reconhecida por Orestes pelo envio da carta, mas, para que

ela o reconhecesse a eles, foi mister outro reconhecimento”. (Aristóteles, Poética, XI, 1452b 3)

“Chegado [Orestes a Taurida] é preso, mas quando ia ser sacrificado foi reconhecido (ou à maneira de

Eurípides, ou à maneira de Poliido, dizendo Orestes, como é plausível que o dissesse, que não só irmã tivera

que ser imolada, mas também ele tinha de ser) e assim ficou salvo”. (Aristóteles, Poética, XVII, 1455b 10)

CLASSIFICAÇÃO DOS RECONHECIMENTOS (Poética XVI)

Derivado da própria intriga Os melhores Édipo Rei; Ifigênia em

Tauris

Por Silogismo ou

paralogismo

Os segundos melhores Coéforas, Ifigênia de Poliido

Através da memória Odisséia: Odisseu entre os

Feácios

Urdidos pelo poeta Inartístico Ifigênia em Tauris

Através de sinais: congênitos

ou adquiridos

Menos artístic0, embora mais

freqüente

Odisséia: a cicatriz

* Aristóteles. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentários e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986.

Page 12: Tragédia e Reconhecimento Em Ifigênia Em Tauris, De Eurípedes - Adriane Da Silva Duarte

A lenda de Ifigênia na tragédia grega

1. Agamenão sacrifica sua filha Ifigênia a Ártemis em Aulis (Ifigênia em Aulis, de

Eurípides).

2. Vitorioso em Tróia, retorna à casa onde é assassinado por sua esposa, Clitemnestra,

e pelo amante dela, Egisto. Dentre as motivações para o crime está a morte de

Ifigênia (Agamenão, de Ésquilo).

3. Orestes, filho caçula de Agamenão, foge e é abrigado por amigos do pai. Ao

crescer, por determinação de Apolo, volta do exílio para vingar sua morte,

assassinando a mãe e Egisto (Coéforas, de Ésquilo; Electra, de Sófocles; Electra, de

Eurípides).

4. Após o crime, passa a ser perseguido pelas Eríneas, divindades que punem o

derramamento de sangue entre parentes consangüíneos. Segundo algumas versões:

a) quando está prestes a ser lapidado pela população de Argos, faz

reféns e foge. Apolo assume a responsabilidade pelos seus atos e

o envia à cidade da Atenas para ser purificado (Orestes, de

Eurípides);

b) é julgado pelo tribunal do Areópago, em Atenas, e absolvido

pelo “voto de Minerva” de Palas Atena (Eumênides, de

Ésquilo);

c) é enviado à Tauris por Apolo com a missão de resgatar a estátua

da deusa Ártemis e levá-la a Atenas. Encontra Ifigênia, a irmã

que julgara morta, servindo como sacerdotisa da deusa e

encarregada de preparar para sacrifício os estrangeiros que lá

aportam. Os dois fogem rumo a Grécia (Ifigênia em Tauris, de

Eurípides).