11
REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 119  V Ilíada recriada T R A J A NO V I E I R A árias características da  Ilíada, o poema mais antigo da literatura ocidental, têm sido conside- radas, ao longo da história, insuperáveis. Em estudo recente, no qual discute a formação do cânone literário, Leyla Perrone-Moisés registra que Homero é o autor mais referido por oito dos principais escritores-críticos modernos (1). Tendo tido a oportuni- dade de acompanhar o trabalho de tradução da Ilíada que Haroldo de Campos vem realizando nos últimos anos, pude ouvir dele o seguinte comentário acerca da excelência homérica: “Homero não decai; a  Ilíada não tem recheio. Oscila entre o pico de Agulhas Negras e o Himalaia”. A ausência de enchimento no poema surpre- ende sobretudo quando pensamos em sua extensão: quase dezesseis mil versos distribuídos em vinte e qua- tro cantos. Cabe a nós, em nossas releituras da  Ilíada, encontrar os motivos dessa recepção tão positiva. De minha parte, apresento a seguir alguns aspectos do poema que me têm chamado a atenção, a partir da leitura do texto gre- go, da versão que Haroldo de Campos está em vias de publicar, da vasta bibliografia sobre o tema e de conver- TRAJANO VIEIRA é professor de Língua e Literatura Grega na Unicamp. 1 Ver, em particular, o segundo capítulo de Altas Literaturas (São Paulo, Companhia das Le- tras, 1998).

Trajano Vieira - Ilíada Recriada

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    1/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 119

    V

    Ilada

    recriada

    TRAJANO

    VIEIRA

    rias caractersticas da Ilada, o poema mais

    antigo da literatura ocidental, tm sido conside-

    radas, ao longo da histria, insuperveis. Em

    estudo recente, no qual discute a formao do

    cnone literrio, Leyla Perrone-Moiss registra que

    Homero o autor mais referido por oito dos principais

    escritores-crticos modernos (1). Tendo tido a oportuni-

    dade de acompanhar o trabalho de traduo daIlada

    que Haroldo de Campos vem realizando nos ltimos

    anos, pude ouvir dele o seguinte comentrio acerca da

    excelncia homrica: Homero no decai; aIlada no

    tem recheio. Oscila entre o pico de Agulhas Negras e oHimalaia. A ausncia de enchimentono poema surpre-

    ende sobretudo quando pensamos em sua extenso:

    quase dezesseis mil versos distribudos em vinte e qua-

    tro cantos.

    Cabe a ns, em nossas releituras daIlada, encontrar

    os motivos dessa recepo to positiva. De minha parte,

    apresento a seguir alguns aspectos do poema que me

    tm chamado a ateno, a partir da leitura do texto gre-

    go, da verso que Haroldo de Campos est em vias de

    publicar, da vasta bibliografia sobre o tema e de conver-

    TRAJANO VIEIRA

    professor de Lngua eLiteratura Grega naUnicamp.

    1 Ver, em particular, o segundocaptulo de Altas Literaturas(So Paulo, Companhia das Le-tras, 1998).

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    2/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001120

    sas mantidas com o tradutor. Embora o

    motivo inicial da Guerra de Tria seja o

    resgate de Helena, raptada pelo troiano

    Pris, o verdadeiro drama que envolve a

    participao helnica nos dez anos de con-

    fronto se deve ao rompimento de relaes

    entre Agammnon, lder mximo dos

    aqueus, e Aquiles, o guerreiro supremo.

    Esse episdio, narrado logo no primeiro

    canto, , de certo modo, o mais importante

    daIlada, prenunciando seu carter dram-

    tico e trgico.

    Essa disputa entre companheiros nos

    mostra que a guerra entre gregos e troianos

    um aspecto de outra luta mais intensa,

    travada no interior dos prprios persona-

    gens, que nos remete, em ltima instncia,ao tema da morte. No creio ser possvel

    concordar, ainda hoje, com a opinio da

    filsofa Simone Weil que, num estudo

    importante, escrito sob o impacto da Se-

    gunda Guerra Mundial, alertava para o tra-

    tamento dado por Homero violncia (2).

    Se, por um lado, a guerra apresentada de

    maneira monumental naIlada, cabe assi-

    nalar, por outro, que ela sempre mencio-

    nada como um acontecimento nefasto. Ocombate (plemos) qualificado negativa-

    mente (argalos, penoso; polydakrus,

    multilacrimoso;phthisnor, destruidor-

    de-homens) e o deus da guerra, Ares, cu-

    jos eptetos mais comuns so brotoloigs

    (funesto aos mortais) e styguers(odi-

    oso), jamais objeto de louvor. No canto

    5 (890-1), o prprio Zeus dirige-se a Ares

    nos seguintes termos:

    duas-caras,

    fica longe de mim com teus queixumes.

    [Mais

    que nenhum deus, s para mim odioso.

    O que faz de Aquiles o melhor dos

    Aqueus no apenas sua condio de guer-

    reiro imbatvel, mas o drama de descender

    de uma imortal, Ttis, e de um mortal, Peleu.

    Superior aos demais em fora, Aquiles

    possui a mesma natureza perecvel de seus

    antagonistas. Se, do ponto de vista huma-

    no, a origem do heri lhe garante distino

    militar, da perspectiva olmpica, o perso-

    nagem carrega o desprezvel atributo da

    vulnerabilidade. Do ngulo dos deuses, esse

    ltimo aspecto suficiente para anular a

    natureza paradoxal de Aquiles: a mortalida-

    de um acontecimento absolutamente ne-

    gativo. Recorde-se, a esse respeito, as pala-

    vras de Apolo a Posidon (Ilada, 21, 462-6):

    Treme-Terra, no dirs de mim que,

    [doente

    da cabea, contigo lutarei por vis

    mortais, que, feito folhas, viam por um

    [tempo

    florescentes, nutridos dos frutos do campo;

    logo, porm, exnimes, perecem.

    A presena do parmetro olmpico acen-tua o carter trgico do poema, evidencian-

    do, de certo modo, a insignificncia dos

    conflitos humanos. No canto de abertura,

    ao solicitar o empenho da me contra os

    gregos, Aquiles lembra sua triste condio

    mortal, o que ser repetido, em tom de la-

    mento, pela prpria Ttis, na resposta que

    d ao filho e na solicitao que far a Zeus:

    Me, que me dotastede uma vida to curta, no devia o Olimpo

    cumular-me de honras?

    (352-4)

    Ai de mim! Te criei nutrido de infortnio:

    Sem lgrimas, sem dor, assim eu te quisera

    sentado junto s naves, pois te espreita a

    [Moira,

    tens vida breve.

    (414-7)

    Zeus Pai, se alguma vez a ti, entre imortais,

    com palavras e obras te ajudei, atende

    o que te peo. Aquiles, o-que-a-Moira-

    [espreita,

    meu filho, honra-o.

    (503-5)

    Aquiles retira-se da guerra e permane-

    ce em seu acampamento, ao lado de seus

    subordinados. Se, no canto 2 (771-9), ele

    se distraa com jogos e treinamentos mili-

    tares, no canto 9, Homero apresenta-o de

    maneira surpreendente, como um aedo, can-

    2 Simone Weil, LIliade, ou lePome de la Force (1940), inLa Source Grecque, Paris,1952.

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    3/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 121

    tando e tocando a lira! O impacto da cena

    aumenta ainda mais quando nos revelado

    o teor de seu canto, kla andrn, a glria

    dos heris (9, 189), expresso com que

    Homero identifica a poesia pica, como fica

    claro, por exemplo, na Odissia, onde o

    aedo Demdoco canta a glria dos heris

    (kla andrn, Odissia, 8, 73), referindo-

    se aos feitos do prprio Aquiles. Ou seja,

    Aquiles canta um poema pico nos moldes

    daIlada, do qual deixa de ser personagem

    ao sair da guerra.

    Esse episdio nos permite entender

    melhor o tratamento que recebe o tema da

    imortalidade na pica e a prpria funo da

    poesia na sociedade oral. Pouco depois da

    referncia ao canto de Aquiles, h a famosapassagem em que o heri recorda o futuro

    que lhe fora previsto por Ttis (9, 410-6):

    ou ele retornaria para casa, garantindo as-

    sim a prpria longevidade (nostos, retor-

    no, o tema da Odissia), ou participaria

    da guerra e teria morte precoce, alcan an-

    do, porm, klos phthiton, a glria impe-

    recvel. Em outras palavras, o heri torna-

    se personagem pico se aceita de antemo

    a brevidade da vida. O que curioso nopoema homrico que dada a Aquiles a

    liberdade de escolha entre ser ou no ser

    um personagem pico, ou, de modo mais

    preciso, entre continuar a ser ou desistir

    dessa funo. A aceitao do papel pressu-

    pe duas situaes: morte prematura e gl-

    ria imperecvel. Como ningum luta para

    alcanar a primeira condio, lcito dedu-

    zir que o heri pico combate para atingir

    a imortalidade que lhe propicia a poesia elhe nega a vida.

    Em seu canto, Aquiles recorda saudo-

    samente o tempo em que, como persona-

    gem do poema, possua klos (glria).

    Percebe que h equivalncia entre a eterni-

    dade da poesia e a do guerreiro. Se a poesia

    garante a eternidade do klos porque ela

    eterna. Colocando de outro ngulo: o aedo

    necessita que seus personagens ganhem

    renome imperecvel para que a poesia ad-

    quira sobrevida. Os prodgios hericos so

    uma necessidade potica. A dramaticidade

    do mundo herico reflete a dramaticidade

    da atividade potica, pois ambos, heri e

    poeta, trabalham para superar a transitorie-

    dade. Da a insistncia homrica em afir-

    mar, a todo instante, o carter transtemporal

    dos feitos herico e potico. Diramos que

    h um aspecto obsessivo na maneira como

    o rapsodo se concentra na temtica das rea-

    lizaes hericas, da qual ele no se afasta,

    pois em sua valorizao que seu prprio

    valor, enquanto poeta, perdura.

    Talvez, por esse motivo, a metalingua-

    gem seja um trao to importante na poesia

    grega, desde os seus primrdios. O materi-

    al com que o rapsodo trabalha transcende o

    registro fatual e o tempo histrico. Na

    Grcia, o mito , em grande parte, fruto da

    criao potica. Trata-se de uma narrativa

    que possui, por um lado, carter tradicio-nal, e, por outro, funo exemplar. Mas,

    como outras produes verbais gregas, o

    mito submetido a toda sorte de anlise e

    crtica, sofrendo mutao constante. Assim,

    na obra do segundo poeta grego, Hesodo,

    j h referncias indiretas a Homero, que

    ser posteriormente citado por Pndaro

    numa ode em que, apesar de reconhecer o

    efeito mgico de sua linguagem, o autor

    dasNemias critica o modo positivo comoele trata Ulisses (h algo de sagrado em

    suas mentiras,Nemia 7, 22). A conscin-

    cia mitolgica no se fundamenta numa

    hipottica religiosidade visionria do poe-

    ta, mas no carter transtemporal do reper-

    trio que ele transmite. Segundo Homero,

    as musas e no os poetas so oniscientes

    (Ilada 2, 485); Hesodo, retomando o ver-

    so homrico, dir que, alm de conhece-

    rem o passado e o presente, elas prevem ofuturo (Teogonia, 38). Se as musas impe-

    lem o aedo a cantar a glria dos heris

    (kla andrn), o que atinge o alto cu

    (ourann euryn) o klosque ele prprio

    cria (Odissia 8, 73-4). Em lugar de

    consider-lo um receptor passivo de infor-

    maes controladas pelas musas, Homero

    o v como co-autor da obra, num processo

    em que inspirao divina e contribuio

    pessoal se fundem. Isso fica evidente no

    famoso episdio da Odissia (22, 347-8)onde o heri reencontra seu aedo em taca

    e ameaa mat-lo por ele ter servido os

    pretendentes durante a sua ausncia. O que

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    4/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001122

    salva Fmio da morte um argumento de

    cunho esttico-religioso: autodidata sou,

    e um deus fez crescer [implantou:

    enphysen] em minha mente toda sorte de

    vias do canto. Se, por um lado, Fmio

    registra que o domnio de sua linguagem

    reflete uma prtica pessoal e independe de

    terceiros, ele caracteriza, por outro, a ins-

    pirao divina no como um estado de es-

    prito especial, mas como o processo cria-

    tivo: o que o deus fez surgir em sua mente

    foram vias (oimas), metfora que, no

    caso, pode ser interpretada como formu-

    laes verbais. Ao mesmo tempo que es-

    sas formulaes despontam, so submeti-

    das ao labor potico.

    Conforme escreveu Jean-Pierre Vernantem La Belle Mort et le Cadavre Outrag

    (3):

    Mas para que a honra herica permanea

    viva no corao de uma civilizao, para

    que todo o sistema de valores como que

    receba a marca de sua chancela, necess-

    rio que a funo potica, mais que objeto

    de divertimento, tenha conservado um pa-

    pel educativo e formador, que atravs delae nela se transmita, se ensine, se atualize na

    alma de cada um esse conjunto de saberes,

    crenas, atitudes, valores de que feita uma

    cultura. Somente a poesia pica, devido ao

    seu estatuto e sua funo, pode conferir

    ao desejo de glria imperecvel que domi-

    na o heri essa base institucional e essa

    legitimao social sem as quais ele no

    passaria de uma fantasia subjetiva.

    H um complexo sistema de valores

    disseminados na pica homrica, que teve

    carter exemplar na cultura oral grega.

    Trata-se de uma questo bastante estuda-

    da, no sculo XX, por especialistas em

    oralidade, e a essa funo paidutica da

    Ilada e da Odissia que Vernant se refere

    no trecho acima. Chamo a ateno do leitor

    para a funo que a oralidade, em seu as-

    pecto dialgico, acaba tendo na prpria

    estrutura daIlada: dos 15.690 versos do

    poema, pouco menos da metade, 7.018

    (45%), aparece em discurso direto (4).

    Devemos ter presente que Homero viveu

    no sculo VIII a.C., poca do alvorecer da

    plis (cidade-estado), e que, embora aIlada

    seja o produto hbrido de momentos hist-

    ricos distintos, com elementos bastante

    remotos, alguns dos quais remontam ao

    sculo XIII a.C. (quando Tria teria sido

    destruda por uma guerra, segundo dados

    arqueolgicos), possvel encontrar no

    texto registros culturais contemporneos do

    poeta. H, por exemplo, na Odissia, refe-

    rncias nova estrutura urbana da plis,

    com a presena da gora (espao pblico

    de convvio), conforme a seguinte descri-

    o feita por Nauscaa do pas dos fecios:

    Porm quando estivermos prximos de

    [entrarno precinto da plis de altos muros, belo

    porto vers, de um e outro lado, abrindo

    [estreita

    boca; nas docas, naus bicurvas se recolhem

    ao varadouro; ali, o santurio de Posidon;

    perto, embasada em ljeas fixas no solo, a

    [gora.

    (Odissia 6, 262-5)

    A importncia do debate pblico que,sculos mais tarde, ocuparia lugar central

    na plis ateniense, notvel logo no pri-

    meiro canto daIlada (490), onde Aquiles,

    ofendido por Agammnon, resolve aban-

    donar a guerra:

    nem a glria da gora o atraa agora

    ou, ainda, no canto 9 (443-4), em que o

    tutor de Aquiles, Fnix, lembra as instru-es recebidas de Peleu para a educao de

    seu filho:

    Por isso me mandou, para que te fizesse

    na oratria eminente, eficiente nas obras.

    No se deve concluir, todavia, que a

    instituio da cidade-estado (plis) tenha

    tido peso extraordinrio no poema

    homrico. Como observei, aIlada contm

    sedimentos de perodos diversos e muitodistantes entre si. A questo sobre se o tex-

    to homrico herdaria noes culturais do

    sculo do poeta (VIII a.C.), particularmen-

    3 Journal de Psychologie, 2-3,1980, pp. 220-1.

    4 Cf. Jasper Griffin, HomericWords and Speakers, in

    Journal of Hellenic Studies, CVI,1986, p. 37.

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    5/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 123

    te no que concerne instituio das assem-

    blias, ou do perodo anterior, aristocrti-

    co, centrado na vida palaciana, tem alimen-

    tado discusses entre especialistas. Segun-

    do alguns autores, predominariam, na

    Ilada, valores ticos aristocrticos, basea-

    dos em virtudes competitivas (5). Palavras

    como aret (excelncia), agathn

    (bem), ou kaktes (vcio) e kakn

    (mal) definiriam sucessos ou fracassos

    em funo de resultados concretos. Recu-

    sando-se a entregar Briseida, Aquiles ava-

    lia a sua prpria situao, nas palavras que

    dirige a Agammnon (Ilada 1, 293-4):

    Poltro, Dnao de nada assim me

    [chamariam se acaso eu me dobrasse s coisas que tu

    [dizes.

    Ao ceder, a Agammnon, Briseida, que lhe

    fora destinada como butim de guerra, em

    reconhecimento de sua honra, Aquiles tor-

    na-se deils(vil), destitudo de seu esta-

    tuto de agaths. NaIlada, o sucesso fi-

    xado por signos de distino, cujo carter

    representativo fundamental no mbito daschamadas culturas da vergonha, nas quais

    a opinio pblica preponderante na fixa-

    o de valores (6).

    Embora reconheam a presena, na so-

    ciedade homrica, de virtudes competiti-

    vas, outros helenistas preferem destacar

    as virtudes cooperativas (7): os persona-

    gens no agiriam apenas em funo de re-

    sultados, nem seus valores se restringiriam

    a uma dimenso funcional, balizada pelofracasso ou pelo sucesso. Palavras como

    dikaiosyne(justia) ou sophrosyne(pru-dncia, sabedoria, moderao) seri-

    am utilizadas abstratamente (valores si-

    lenciosos), e seu valor conceitual resulta-

    ria de longas prticas de debate. Os valores

    consensuais tomariam o lugar dos valores

    individuais aristocrticos.

    Como se v, estamos diante de duas

    noes diferentes de sociedade, a herica,

    cujo ncleo o reinado e a famlia (oikos),e a urbana, cujo elemento central a gora

    (assemblia, praa, mercado). ine-

    gvel a existncia em Homero da represen-

    tao urbana e do debate pblico, como,

    por exemplo, na seguinte descrio do es-

    cudo de Aquiles (18, 497-506):

    Na gora, o povo discutia sobre uma rixa:

    alternados, dois homens altercavam

    [quanto

    ao resgate acertado pela morte de outrem;

    um jurava perante o povo ter saldado

    o dbito; que nada recebera argia

    o outro; ambos pediam uma sentena

    [ arbitrada.

    O povo, dividido, tomava partido,

    aos gritos, por um deles ou pelo outro;

    [arautos

    os continham, enquanto os gerontes

    [sentavam-seem sdes de polida pedra, sacro crculo;

    Entretanto, como se observou recentemen-

    te, no plano narrativo, os valores decorren-

    tes desse tipo de instituio so ainda dor-

    mentes e no alteram os fundamentos ti-

    cos do cdigo herico (8).

    Sobre o cdigo herico, destaque-se o

    papel central da noo de tim, honra,

    termo que define a posio do personagemna sociedade homrica, em virtude de sua

    influncia poltica e de seu reconhecimen-

    to pblico. No canto 1, Aquiles repete qua-

    tro vezes que Agammnon tirou-lhe a tim

    (honra, 171, 244, 355-6, 411-2) e lembra

    que a expedio fora organizada para sal-

    var a honra de Agammnon e Menelau

    (159). A distribuio da timvaria de acor-

    do com a posio do personagem. O que

    torna possvel a Agammnon tirar a timdeAquiles a sua condio militar superior.

    Nenhum outro heri questiona-lhe o ato,

    que contraria, contudo, as regras de amiza-

    de. Termos derivados dephilos (amigo)

    so particularmente relevantes na defini-

    o do comportamento herico. O verbo

    philen significa muitas vezes hospedar

    em Homero e aparece relacionado a ksnos

    (estrangeiro). Na Odissia (8, 208),

    Odisseu, hspede de Laodamas, aceita par-

    ticipar de competies esportivas, mas se

    nega a enfrentar seu anfitrio, pois ele

    meu ksenos; quem poderia enfrentar al-

    gum que o acolhe (philonti)?. A relao

    5 Ver, por exemplo: A. Adkins,Homeric Values and HomericSociety, inJournal of HellenicStudies, XCI, 1971, pp. 1-14.

    6 E. R. Dodds, The Greeks andthe Irrational, Berkeley, 1951,pp. 17 e seg.

    7 Ver A. Long, Morals andValues in Homer, inJournal ofHellenic Studies, XC, 1970,

    pp. 121-39.8 Ve r R i cha rd Seafo rd,

    Reciprocity and Ritual, Homerand Tragedy in the DevelopingCity-State, Oxford, 1994, pp.4 e seg.

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    6/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001124

    entre anfitrio e hspede era selada pelo

    symbolon, signo de reconhecimento, anel

    rompido de que os parceiros conservavam

    as metades correspondentes. O pacto efeti-

    vado sob o nome dephiltes faz dos con-

    tratantesphloi: a partir de ento se com-

    prometem com a reciprocidade de favores

    que constitui a hospitalidade (9). A rela-

    o estabelecida entre osphloi fundamen-

    ta-se na reciprocidade um sistema de

    troca no qual o retorno do benefcio ou dano

    no compelido nem por lei nem pela for-

    a (10) , que deixa de existir entre

    Agammnon e Aquiles, to logo o primei-

    ro seqestra o prmio (gras) do segundo,

    tirando-lhe a honra.

    Emblemtico da questo da reciproci-dade e da hospitalidade na sociedade hom-

    rica o episdio em que se encontram os

    inimigos Glauco (troiano) e Diomedes (gre-

    go). A construo da passagem magis-

    tral, com elementos temticos de grande

    repercusso na literatura do Ocidente

    (Ilada 6, 119-236). Note-se, por exemplo,

    a sutileza com que Glauco altera o sentido

    dado no contexto ao substantivo genen

    (145) que, usado com o significado de es-tirpe, raa, no relato sobre os antepassa-

    dos, ganha, em sua fala, a outra acepo

    possvel, gerao, para introduzir o tpi-

    co da brevidade da vida, retomado posteri-

    ormente por tantos poetas, como Mimnermo

    (frag. 2 West) e Simnides (frag. 8 West: O

    que de mais notvel disse o homem de Quios:

    / quais a gerao das folhas, assim tambm

    a dos homens):

    Tideide, ardoroso de nimo, por que

    perguntas minha origem (genen)? Smile

    [ das folhas,

    a gerao (gene) dos homens: o vento faz

    [cair

    as folhas sobre a terra. Verdecendo, a selva

    enfolha outras mais, vinda a primavera.

    [Assim,

    a linhagem dos homens: nascem e

    [perecem.

    (Ilada 6, 145-50)

    Mas fixemo-nos no tema central desse

    episdio, o da instituio da ksena(hos-

    pitalidade) e da reciprocidade. Ele apare-

    ce, desde logo, no relato de Glauco sobre

    seus ancestrais, particularmente Belero-

    fonte. Hspede de Proitos, rei de Argos,

    Belerofonte acusado de assdio pela rai-

    nha, depois de no corresponder a suas

    investidas amorosas. Impossibilitado de

    matar um hspede, Proitos envia Belerofonte

    ao sogro Iobates, fazendo-o portador de uma

    carta (168: smata lygr, mensagem fu-

    nesta, nica referncia homrica a um tex-

    to escrito) com instrues para mat-lo (nas-

    ce da a expresso latina Bellerophontis

    litterae). Novamente, a condio de hs-

    pede de Belerofonte impede que Iobates

    cumpra a solicitao do genro. Iobates en-

    to destina ao heri uma srie de tarefasaparentemente irrealizveis (matar a Qui-

    mera, as Amazonas), nas quais Belerofonte

    obtm vitria, sendo finalmente recompen-

    sado pelo rei. Ao ouvir esse relato, Diome-

    des recorda que Belerofonte havia sido

    hspede de seu av, Eneu, o que impossi-

    bilitaria a ele, Diomedes, enfrentar Glauco:

    De fato considero que s e desde mui-

    to / um hspede paterno (215-6). No

    belo desfecho da passagem, no s os doisadversrios desistem do duelo, como de-

    cidem trocar suas armas, selando o pacto

    de hospitalidade respeitado pelos ances-

    trais. Conclui Diomedes:

    Em Argos, para mim, sers hspede e

    [amigo;

    se um dia eu for Lcia, tu me hospedars.

    Evitemos, portanto, cruzar nossas lanas,

    ainda que seja em campo de batalha. Bravos

    Tricos e aliados h muitos para abater,

    os que um deus me oferea e aqueles que eu

    [persiga;

    muitos Aqueus ters para matar, podendo.

    Troquemos, pois, as armas; do penhor

    [paterno,

    orgulho nosso, saibam todos.

    (Ilada 6, 225-33)

    Homero d tratamento fabular a esse

    tema, no episdio dos Ciclopes (Odissia,

    9), cuja imagem selvagem e primitiva de-

    corre do desrespeito s regras de acolhi-

    mento. No espao de 15 versos, o poeta

    9 mile Benven is t e, LeVocabulaire des Institutions Indo-europenes, Paris, vol. 1, p.341.

    10 Cf. Seaford, op. cit., p. XVII.

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    7/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 125

    repete trs vezes a expresso dom da hos-

    pitalidade (355-6, 365, 370), solicitado por

    Odisseu como um direito, e negado por

    Polifemo, motivo de sua punio posteri-

    or. No verso 366, h o famoso ardil do heri,

    que se autodenomina Ningum (Outis),

    a fim de no ser perseguido pelos compa-

    nheiros do monstro, depois de ceg-lo. O

    episdio se destaca no plano formal, pois o

    autor emprega, em posio de quiasmo com

    Kyklops (Cclope), o verbo kiklskousi

    (chamam-me Ningum), sugerindo

    ironicamente o que est por vir, o modo

    como o prprio Ciclope ir chamar Odisseu.

    importante assinalar que essa estratgia

    astuciosa do personagem parte de uma si-

    tuao efetiva da perspectiva das relaessociais no mundo homrico: o desrespeito

    s regras de hospitalidade torna o estran-

    geiro um ser indistinto, um ningum,

    como Odisseu prefere dizer.

    Outra passagem que faz lembrar o en-

    contro entre Glauco e Diomedes, na qual o

    valor tcnico dephiltes tambm se desta-

    ca, a que narra o duelo entre Hctor e

    jax no canto 7. Depois do longo combate,

    ao cair da noite, tanto os gregos quanto ostroianos exortam os dois guerreiros a sus-

    pender o duelo. Isso de fato ocorre, no

    sem antes Hctor e jax se ligarem por

    philtes (302), um acordo fraterno entre

    inimigos, selado pela troca de armas:

    Troquemos, pois, dons memorveis,

    para que algum, Troiano ou Grego, possa

    [vir

    a dizer: Combateram-se os dois na pelejadevora-coraes. Separaram-se amigos.

    Falou. E deu a espada ao Dnao, cravejada

    em prata, com talim bem-trabalhado e

    [bainha;

    jax o cinturo prpura fulgurante

    lhe ofertou. Separaram-se ento. Aos

    [Aqueus

    um se dirigiu; outro, multido troiana.

    (Ilada 7, 299-307)

    No canto 9, Agammnon envia embai-

    xadores para junto de Aquiles, com o intui-

    to de convenc-lo a retornar guerra. J

    houve quem classificasse a atitude de A-

    quiles, que recusa o pedido de desculpas e

    os prmios oferecidos, como romntica

    (auto-exlio do heri alheio a regras soci-

    ais) ou negativa (incapacidade de superar o

    ressentimento). Essas interpretaes

    desconsideram o fato de Aquiles se manter

    fiel ao cdigo herico. O personagem re-

    gistra que a compensao ofertada por

    Agammnon tem objetivo prtico rever-

    ter a situao desfavorvel dos gregos , e

    no restabelecer a philtes (amizade).

    Tanto que seu retorno luta ocorrer no

    em funo da causa grega, mas de sua

    amizade por Ptroclo. Se a Guerra de Tria

    tem como objetivo inicial resgatar a tim

    (honra) de Menelau e Agammnon, ela

    se conclui para que o valor dephiltes (a-mizade) seja preservado.

    Com a morte de Ptroclo, Aquiles

    retorna guerra e pe fim s agruras

    helnicas. A glria de seu feito depende,

    portanto, da morte do amigo. Para que se

    tenha uma idia do nvel de elaborao

    verbal a que chega a poesia homrica, ob-

    serve-se que essa histria sintetizada no

    nome dos dois heris:Akhilles, aquele

    cujo povo (las) tem dor (khos), obtm aglria que, no futuro, ser recordada como

    a glria dos homens do passado (9, 524-

    5: tn prsthenkla andrn), com a morte

    de Patrokls, isto , a glria kls, de

    klos dos ancestrais patros,de patr,

    pateres (11).

    Como se pode imaginar, com base nes-

    se jogo etimolgico, a linguagem daIlada

    elaboradssima, ao contrrio do que at

    pouco tempo atrs entendiam algunscomentadores. O enorme impacto que ti-

    veram, no campo homrico, os estudos

    sobre a oralidade explica uma srie de co-

    locaes que hoje, com a distncia tempo-

    ral, dificilmente se sustentam. Se verdade

    que aIlada apresenta caractersticas for-

    mais que indicam sua natureza oral reto-

    mada de expresses fixas ao longo do tex-

    to, repetio de cenas tpicas, predomnio

    da sintaxe parattica , isso no implica

    que, no plano esttico, sua linguagem sejasimples ou despojada. Diversos estudos

    antropolgicos sobre culturas orais regis-

    tram que a grande poesia oral trabalhada

    11Gregory Nagy discute aetimologia desses nomes emThe Best of the Acheans ,Concepts of the Hero in AchaicGreek Poetry (Balt imore,1979).

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    8/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001126

    muitssimo antes de ser apresentada ao p-

    blico, no sendo, pois, composta de impro-

    viso. No passado recente, alguns especialis-

    tas chegaram inclusive a observar que os

    personagens homricos teriam perfil unifor-

    me, devido padronizao da linguagem

    pica. Poucos continuam a defender esse

    ponto de vista hoje em dia. Nem os persona-

    gens homricos so uniformes, nem a lin-

    guagem daIladae da Odissia simples. O

    leitor do traslado de Haroldo de Campos

    poder notar esses dois aspectos, graas

    radicalidade de seu projeto tradutrio.

    Desconheo outra traduo to fiel

    complexidade formal daIlada quanto a do

    poeta paulistano. Entre as mais criativas a

    que tenho tido acesso nos ltimos anos estoas de Robert Fagles e Stanley Lombardo,

    ambas para o ingls (12). As duas so ex-

    celentes e trazem a marca da dico colo-

    quial dos Cantosde Ezra Pound. Entretan-

    to, ao adotarem esse registro, deixam de

    lado aspectos estilsticos relevantes do tex-

    to grego. No caso da traduo de Haroldo

    de Campos, esses traos ressurgem de uma

    perspectiva paramrfica, e no isomrfica,

    isto , so reinventados de modo original,e no reproduzidos mecanicamente. Mas,

    antes de comentar passagens do texto de

    Haroldo de Campos, talvez seja interessante

    fazer algumas observaes sobre a com-

    plexidade dos personagens homricos, par-

    ticularmente de Aquiles.

    Jasper Griffin escreveu um ensaio

    esclarecedor sobre a linguagem de Aquiles,

    onde examina o carter trgico, a persona-

    lidade explosiva e complexa do heri (13).

    Destaca-se, na epopia homrica, o uso de

    smiles, ora curtos (como um deus, como

    um leo) ora desenvolvidos numa seqn-

    cia de versos. No canto 4 (241-6), lemos a

    seguinte admoestao:

    Flecheiros fanfarres, Aqueus

    [vexaminosos,

    no tendes brio? Por que como filhotes

    [tmidos

    de cora que, depois de correr pelo prado,exnimes, estacam ficais inermes,

    [pvidos,

    sem fibra para a luta?

    No canto 3 (10-4), ao falar do avano da

    tropa, Homero compara:

    Como Noto de nvoa espessa coifa o cume

    das montanhas, infenso ao pastor, aos

    [ladres

    mais que a noite propcio (no se enxerga

    [um tiro

    de pedra adiante), um vrtice de p se eleva

    dos ps que em marcha rpida transpem o

    [plaino.

    Aquiles o personagem que maior uso

    faz de smiles naIlada, desenvolvendo-os

    alm da mdia. So smiles com forte apelo

    emocional, que tm, s vezes, a prpria ira

    como objeto de comparao (18, 110). Nocanto 9 (323-7), ele profere:

    Como a ave-me leva ao filhote implume

    [o que acha

    para comer e fica mngua, assim tambm

    privado do repouso de Hipnos, muitas

    [noites

    tresnoitei, aps dias a fio de sanguinosas

    pelejas, por mulheres alheias pugnando

    com bravos.

    Outra marca da linguagem de Aquiles o

    saudosismo com que muitas vezes evoca

    lugares longnquos, como no canto 1,

    onde menciona sua terra natal, Ftia, num

    verso cujo ritmo ondulante (157) subi-

    tamente abre uma vista ampla e inumana,

    o mundo do espao vazio, distante dos

    confrontos de Tria (14), em contraste

    com o ritmo staccato e o teor violento doverso seguinte (o ritmo torna-se ofegan-

    te, com uma interjeio espordica de

    puro abuso) (15), composto de palavras

    que s Aquiles usa na Ilada . Tambm

    nessa passagem, o leitor da traduo de

    Haroldo de Campos ter acesso ao que

    ocorre no original:

    Muitos montes medeiam

    sombreados entre ns, e o mar sempre-

    [soante.A ti, Gro Sem-Pudor, olho-de-co, viemos

    seguir, satisfazer, salvar a honra em Tria,

    e a Menelau.

    12 A traduo de Robert Fagles foipublicada pela Penguin(1990); a de Stanley Lombardo,pela Hackett (1997).

    13 Op. cit.

    14 Cf. Jasper Griffin,Homer on Lifeand Death, Oxford, 1979, p.75.

    15 Cf. G. S. Kirk, The Iliad: aCommentary, Cambridge, vol.1, p. 69.

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    9/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 127

    Aquiles emprega muitas palavras jamais

    utilizadas por outro personagem naIlada:

    101 nos 823 versos que profere, contra, por

    exemplo, 58 nos 588 versos que Agamm-

    non pronuncia. Mais significativo do que a

    questo numrica ser registrar o teor con-

    tundente de boa parte desses vocbulos,

    entre os quais se destacam demobros

    (devorador-do-povo), kynpa(olho-de-

    co),philokteantate (o-mais-vido-de-

    riquezas) e, como no poderia faltar, hybris

    (violncia; s Aquiles usa essa palavra, e

    Atena, quando lhe devolve o termo, 1, 214).

    Num ensaio anterior ao de Griffin, tam-

    bm centrado na linguagem de Aquiles,

    James Redfield e Paul Friedrich (16) cha-

    mam a ateno para a riqueza de detalhesdas descries elaboradas por Aquiles,

    como em relao ao cetro (1, 233-9):

    Mas algo te direi e um magno juramento

    por este cetro sim proferirei: nem folha,

    nem ramo nele viaro jamais, depois

    que arrancado do tronco foi-se da

    [montanha

    e jamais tornar a verdecer; o bronze

    a seu redor cortou folhame e casca.[Portam-no

    agora os juzes.

    Leia-se, no mesmo sentido, a terrvel men-

    o ao cadver de Lcaon, lanado ao rio

    (21,122-7):

    jaz entre peixes: um cardume ictioferoz

    agora h de lamber-te a ferida sangrenta;

    tua me, em pranto, ao catafalco no virdepor-te. O trbido Escamandro ao mar

    [salino

    te arrojar. Ictiossaltante, um peixe, em

    [negra

    espuma, cevar-se- no alvor ndio de

    [Lcaon.

    Como observei, o apuradssimo labor

    verbal de Homero encontra, na traduo

    de Haroldo de Campos, correspondncias

    surpreendentes, que fazem dela um marco

    no s da literatura de lngua portuguesa.

    Seleciono alguns trechos apenas com o

    intuito de introduzir o leitor no trabalho

    diria homrico do tradutor (17).

    No canto 18 (39-49), h o famoso cat-

    logo das Nereides, composto de 33 nomes

    (ou 34, se incluirmos Ttis). Desde a Anti-

    gidade, esse elenco tem causado perple-

    xidade nos comentadores, entre outros

    motivos, por evocar formulaes da poe-

    sia hesidica. Para Aristarco, seria resulta-

    do de interpolao. Trata-se de um epis-

    dio marcado pela dico mgico-

    encantatria, cujos nomes todos! so

    falantes, isto , correspondem a palavras

    ou razes que em grego se referem s cores,

    s luzes, s espumas, s grutas do mar (18).

    William Arrowsmith, poeta, helenista e

    tradutor de linhagem poundiana, realizou,

    nos anos 60, uma traduo bastante criati-va dessa passagem para o ingls (19). Uti-

    lizando o verso livre, verteu os nomes das

    ninfas, elucidando seu sentido em

    sintagmas to concisos quo musicais:

    Seagreen and Shimmer, the goddess

    [Blooming and Billow

    and those who are names of the islands,

    [those who are called for the caves

    and She-who-skinson-the-water, and[Spray with the gentle eyes.

    Haroldo de Campos preferiu manter o

    mesmo nmero de versos do grego e pre-

    servar a misteriosa sonoridade nominal,

    fazendo uso, aqui e ali, de eptetos e de

    expresses que esclarecem o significado

    dos vocbulos:

    Eram Glucia azul-mar e Tlia florida; a

    [ndula

    Cimodcea; a insular Nesia; a caverncola

    Espia; Toa, nado-aglima; Hlia,

    [cinza-sal,

    olhos-redondos; Mlita, mel; Iera grcil;

    Anfite circum-nadante e gave bem-nada;

    Cimote, onda rpida; Actia e Limnria;

    Doto e seus dons; Proto, primcias; frtil

    [Frusa;

    Dexamene, cisterna-amena; Dinamene,

    dnamo-fluente; a circum-prxima

    [Anfinome;

    Calianira, encanta-homens; Dris;

    [Panpeia,

    16Speech as a Personali tySymbol: the Case of Achilles,in Language, 54, 1978, pp.263-88.

    17 Outros comentrios sobre a tra-duo encontram-se em:Haroldo de Campos e TrajanoVieira, MHNIS, a I ra deAquiles, So Paulo, NovaAlexandria, 1994; Haroldo deCampos e Odorico Mendes,Os Nomes e os Navios, SetteLetras, 1999.

    18 Iliade, Giovanni Cerri (tradu-o), Antonietta Gostoli (co-mentrio), Rizzoli, 1999, vol.2, p. 981.

    19 Arion, 6.3, 1967, pp. 347-8.

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    10/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001128

    pan-vidente; a gloriosa Galatia; Nemertes;

    Apseude, Inira, Ianassa, Climene, Cali-

    -nassa, Mara, Oritia, Amtia eis as

    [Nereides

    abissais, todas.

    No verso 264 do canto 23, destaca-se o

    enorme polisslabo, que ocupa todo o se-

    gundo hemistquio do verso (caso nico em

    Homero):

    ka trpod otenta dyokaieikosmetron.

    Na traduo em portugus (262-4):

    Primeiro aos qites velozes, galas

    [grandesdeu em dons: uma escrava hbil em lavor

    [fino

    e alada trpode vintenomesurante.

    No mesmo canto, o verso (116) que descre-

    ve o galope dos animais, com apoio na re-

    petio de anta:

    poll dnanta ktanta pranta te

    [dkhmia tlthon.

    Haroldo de Campos:

    multivo, rampa-acima, abaixo-rampa,

    [aos flancos.

    O pesado verso 221 do mesmo canto,

    formado s de slabas longas, referente ao

    funeral de Ptroclo:

    psykhn kiklskon Patroklos deiloo.

    Haroldo de Campos:

    invocando a penada psiqu patroclia.

    A manuteno da reduplicao vocabular

    no verso 363 do canto 2:

    hs frtre frtrephin argue, fyla d

    [fylois.

    Que a tribo tribo ajude, como

    a famlia famlia.

    A epanfora presente em quatro versos (2,

    436-9), mantida tal e qual:

    fora lanam a ncora, as amarras prendem;

    fora saem todos mais na areia o mar

    [rebenta;

    fora a hecatombe sacra expem a Apolo

    [Arqueiro;

    fora da nave singradora, eis, sai Criseida.

    O acmulo de ditongo eu (23, 69), talvez

    imitando um lamento (20):

    hedeis,autr emeo lelasmnos pleu,

    [Akhille.

    Embeveceu-te o sono, Aquileu que[esqueceu-me!

    A complexa rede de repeties dos versos

    199-204 do canto 22, com o recurso do

    poliptoto (d ynatai /d ynatai /d ynato;

    fegonta/hypofeguein/hypeksfyguen ;

    dikein/dikein):

    hs d en onero u dynataiphegonta[dikein;

    ut ar ho tn dynatai hypofegueinuth

    [ho dikein;

    hs ho tn u dynatomrpsai posn, ud

    [hs alyksai.

    ps d ken ktor kras hypeksfyguen

    [thantoio,

    ei m hoi pymatn te ka hystaton entet

    [Apllon

    engythen, hos hoi eprse mnos laipser

    [te gona;

    como no transe onrico ao quefoge no

    sepode alcanar; como ningumpode re-

    -fugir do outro, nem pode este alcan-lo,

    [p-

    -veloz, um nopodia furtar-se e o outro

    [fisg-lo.

    Hctor, como esfugir Quere fatal, no

    fora, no extremo, o auxlio de Febo? Este

    [esperta

    seus joelhos de relmpago.

    Os jogos onomsticos so recorrentes

    na epopia homrica. Na Odissia (1,62),

    20 Cf. Mark Edwards,Homer,Poetof the Iliad, Baltimore, 1987,p. 118.

  • 5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada

    11/11

    REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 129

    por exemplo, ao indagar a Zeus o motivo

    de sua ira contra Odisseu, Atena emprega

    as seguintes palavras: t ny tson odysao,

    Zeu; (por que lhe s to hostil, Zeus?),

    num verso em que odysao, Zeu ecoa o pr-

    prio nome de Odyseos (Por que tanto dio,

    Zeus, por Odisseu?). No canto 1 daIlada

    (240-1), Homero aproxima Akhi lles

    (khos, dor + las, povo), deAkhain

    (aqueus) e akhnmenos(da mesma raiz

    de khos, dor), sugerindo relaes assim

    reimaginadas por Haroldo de Campos:

    os Aqueus de saudade ho de clamar:

    [Aquiles!

    Aquiles, Dor-do-Povo! E tu no poders,

    ainda que dorido.

    No canto 16 (142-4), o nome de Peleu, pai

    de Aquiles, introduzido pelo verbo do qual

    deriva etimologicamente:pllein, cujo sig-

    nificado brandir a lana. Segundo

    Homero, s Aquiles era capaz de mover a

    lana, feita de freixo plio, tirada do monte

    plio, ofertada a seu pai (Peleu) por Quron.

    Na traduo de Haroldo de Campos:

    s a megalana,

    poderosa, pesada, no tomou do imculo

    Ecida. S o Peleide, ningum mais podia

    sopesar o pelineo freixo, dom de Quron

    a Peleu.

    Demdoco, o aedo fecio, visto nor-

    malmente como uma representao ideali-

    zada do poeta pico, j que seu canto tem,

    como objeto, kla andrn (glria dos he-

    ris). A etimologia deDemdoco, aco-

    lhido pela comunidade, indica o reconhe-

    cimento pblico desse profissional e sua

    atividade itinerante na Antigidade. De

    certa maneira, Demdoco seria o alter ego

    do prprio Homero. At onde chega meu

    conhecimento, os especialistas no tm

    apontado que essa identificao se d no

    plano da linguagem: ao falar do canto do

    aedo fecio, o autor da Odissia escreve (8,

    499) hormethes the rkheto. Note-se que

    o primeiro vocbulo, hormethes(inspi-

    rado), evoca o prprio nome do poeta,

    Hmeros: Demdoco (Homero?) iniciou

    o canto inspirado pelo deus a traduo

    literal do verso. Por outro lado,Hmeroscompe-se de hom(raiz cujo sentido jun-

    to, comum) e ros (derivado de ar, ajus-

    tar); numa traduo aproximada, a pala-

    vra significaria algo como aquele que ajus-

    ta conjuntamente. um termo tcnico que

    descreve a habilidade homrica em ajustar

    e afinar a linguagem. H uma outra palavra

    que etimologicamente no tem relao com

    Hmeros, mas que, de som semelhante, nos

    vem mente quando pensamos no trabalhorealizado por Haroldo de Campos: o verbo

    homero, da mesma raiz do substantivo

    hmeros. Verto os dois vocbulos que, num

    desses lances do acaso (?), sintetizam, creio

    eu, a singularidade da presente traduo:

    no seu encontro com (homero) O-que-

    ajusta-o-canto (Hmeros), Haroldo de

    Campos nos oferece a garantia (hmeros)

    da originalidade potica do rapsodo grego.