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5/25/2018 Trajano Vieira - Ilada Recriada
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REVISTA USP, So Paulo, n.50, p. 119-129, junho/agosto 2001 119
V
Ilada
recriada
TRAJANO
VIEIRA
rias caractersticas da Ilada, o poema mais
antigo da literatura ocidental, tm sido conside-
radas, ao longo da histria, insuperveis. Em
estudo recente, no qual discute a formao do
cnone literrio, Leyla Perrone-Moiss registra que
Homero o autor mais referido por oito dos principais
escritores-crticos modernos (1). Tendo tido a oportuni-
dade de acompanhar o trabalho de traduo daIlada
que Haroldo de Campos vem realizando nos ltimos
anos, pude ouvir dele o seguinte comentrio acerca da
excelncia homrica: Homero no decai; aIlada no
tem recheio. Oscila entre o pico de Agulhas Negras e oHimalaia. A ausncia de enchimentono poema surpre-
ende sobretudo quando pensamos em sua extenso:
quase dezesseis mil versos distribudos em vinte e qua-
tro cantos.
Cabe a ns, em nossas releituras daIlada, encontrar
os motivos dessa recepo to positiva. De minha parte,
apresento a seguir alguns aspectos do poema que me
tm chamado a ateno, a partir da leitura do texto gre-
go, da verso que Haroldo de Campos est em vias de
publicar, da vasta bibliografia sobre o tema e de conver-
TRAJANO VIEIRA
professor de Lngua eLiteratura Grega naUnicamp.
1 Ver, em particular, o segundocaptulo de Altas Literaturas(So Paulo, Companhia das Le-tras, 1998).
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sas mantidas com o tradutor. Embora o
motivo inicial da Guerra de Tria seja o
resgate de Helena, raptada pelo troiano
Pris, o verdadeiro drama que envolve a
participao helnica nos dez anos de con-
fronto se deve ao rompimento de relaes
entre Agammnon, lder mximo dos
aqueus, e Aquiles, o guerreiro supremo.
Esse episdio, narrado logo no primeiro
canto, , de certo modo, o mais importante
daIlada, prenunciando seu carter dram-
tico e trgico.
Essa disputa entre companheiros nos
mostra que a guerra entre gregos e troianos
um aspecto de outra luta mais intensa,
travada no interior dos prprios persona-
gens, que nos remete, em ltima instncia,ao tema da morte. No creio ser possvel
concordar, ainda hoje, com a opinio da
filsofa Simone Weil que, num estudo
importante, escrito sob o impacto da Se-
gunda Guerra Mundial, alertava para o tra-
tamento dado por Homero violncia (2).
Se, por um lado, a guerra apresentada de
maneira monumental naIlada, cabe assi-
nalar, por outro, que ela sempre mencio-
nada como um acontecimento nefasto. Ocombate (plemos) qualificado negativa-
mente (argalos, penoso; polydakrus,
multilacrimoso;phthisnor, destruidor-
de-homens) e o deus da guerra, Ares, cu-
jos eptetos mais comuns so brotoloigs
(funesto aos mortais) e styguers(odi-
oso), jamais objeto de louvor. No canto
5 (890-1), o prprio Zeus dirige-se a Ares
nos seguintes termos:
duas-caras,
fica longe de mim com teus queixumes.
[Mais
que nenhum deus, s para mim odioso.
O que faz de Aquiles o melhor dos
Aqueus no apenas sua condio de guer-
reiro imbatvel, mas o drama de descender
de uma imortal, Ttis, e de um mortal, Peleu.
Superior aos demais em fora, Aquiles
possui a mesma natureza perecvel de seus
antagonistas. Se, do ponto de vista huma-
no, a origem do heri lhe garante distino
militar, da perspectiva olmpica, o perso-
nagem carrega o desprezvel atributo da
vulnerabilidade. Do ngulo dos deuses, esse
ltimo aspecto suficiente para anular a
natureza paradoxal de Aquiles: a mortalida-
de um acontecimento absolutamente ne-
gativo. Recorde-se, a esse respeito, as pala-
vras de Apolo a Posidon (Ilada, 21, 462-6):
Treme-Terra, no dirs de mim que,
[doente
da cabea, contigo lutarei por vis
mortais, que, feito folhas, viam por um
[tempo
florescentes, nutridos dos frutos do campo;
logo, porm, exnimes, perecem.
A presena do parmetro olmpico acen-tua o carter trgico do poema, evidencian-
do, de certo modo, a insignificncia dos
conflitos humanos. No canto de abertura,
ao solicitar o empenho da me contra os
gregos, Aquiles lembra sua triste condio
mortal, o que ser repetido, em tom de la-
mento, pela prpria Ttis, na resposta que
d ao filho e na solicitao que far a Zeus:
Me, que me dotastede uma vida to curta, no devia o Olimpo
cumular-me de honras?
(352-4)
Ai de mim! Te criei nutrido de infortnio:
Sem lgrimas, sem dor, assim eu te quisera
sentado junto s naves, pois te espreita a
[Moira,
tens vida breve.
(414-7)
Zeus Pai, se alguma vez a ti, entre imortais,
com palavras e obras te ajudei, atende
o que te peo. Aquiles, o-que-a-Moira-
[espreita,
meu filho, honra-o.
(503-5)
Aquiles retira-se da guerra e permane-
ce em seu acampamento, ao lado de seus
subordinados. Se, no canto 2 (771-9), ele
se distraa com jogos e treinamentos mili-
tares, no canto 9, Homero apresenta-o de
maneira surpreendente, como um aedo, can-
2 Simone Weil, LIliade, ou lePome de la Force (1940), inLa Source Grecque, Paris,1952.
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tando e tocando a lira! O impacto da cena
aumenta ainda mais quando nos revelado
o teor de seu canto, kla andrn, a glria
dos heris (9, 189), expresso com que
Homero identifica a poesia pica, como fica
claro, por exemplo, na Odissia, onde o
aedo Demdoco canta a glria dos heris
(kla andrn, Odissia, 8, 73), referindo-
se aos feitos do prprio Aquiles. Ou seja,
Aquiles canta um poema pico nos moldes
daIlada, do qual deixa de ser personagem
ao sair da guerra.
Esse episdio nos permite entender
melhor o tratamento que recebe o tema da
imortalidade na pica e a prpria funo da
poesia na sociedade oral. Pouco depois da
referncia ao canto de Aquiles, h a famosapassagem em que o heri recorda o futuro
que lhe fora previsto por Ttis (9, 410-6):
ou ele retornaria para casa, garantindo as-
sim a prpria longevidade (nostos, retor-
no, o tema da Odissia), ou participaria
da guerra e teria morte precoce, alcan an-
do, porm, klos phthiton, a glria impe-
recvel. Em outras palavras, o heri torna-
se personagem pico se aceita de antemo
a brevidade da vida. O que curioso nopoema homrico que dada a Aquiles a
liberdade de escolha entre ser ou no ser
um personagem pico, ou, de modo mais
preciso, entre continuar a ser ou desistir
dessa funo. A aceitao do papel pressu-
pe duas situaes: morte prematura e gl-
ria imperecvel. Como ningum luta para
alcanar a primeira condio, lcito dedu-
zir que o heri pico combate para atingir
a imortalidade que lhe propicia a poesia elhe nega a vida.
Em seu canto, Aquiles recorda saudo-
samente o tempo em que, como persona-
gem do poema, possua klos (glria).
Percebe que h equivalncia entre a eterni-
dade da poesia e a do guerreiro. Se a poesia
garante a eternidade do klos porque ela
eterna. Colocando de outro ngulo: o aedo
necessita que seus personagens ganhem
renome imperecvel para que a poesia ad-
quira sobrevida. Os prodgios hericos so
uma necessidade potica. A dramaticidade
do mundo herico reflete a dramaticidade
da atividade potica, pois ambos, heri e
poeta, trabalham para superar a transitorie-
dade. Da a insistncia homrica em afir-
mar, a todo instante, o carter transtemporal
dos feitos herico e potico. Diramos que
h um aspecto obsessivo na maneira como
o rapsodo se concentra na temtica das rea-
lizaes hericas, da qual ele no se afasta,
pois em sua valorizao que seu prprio
valor, enquanto poeta, perdura.
Talvez, por esse motivo, a metalingua-
gem seja um trao to importante na poesia
grega, desde os seus primrdios. O materi-
al com que o rapsodo trabalha transcende o
registro fatual e o tempo histrico. Na
Grcia, o mito , em grande parte, fruto da
criao potica. Trata-se de uma narrativa
que possui, por um lado, carter tradicio-nal, e, por outro, funo exemplar. Mas,
como outras produes verbais gregas, o
mito submetido a toda sorte de anlise e
crtica, sofrendo mutao constante. Assim,
na obra do segundo poeta grego, Hesodo,
j h referncias indiretas a Homero, que
ser posteriormente citado por Pndaro
numa ode em que, apesar de reconhecer o
efeito mgico de sua linguagem, o autor
dasNemias critica o modo positivo comoele trata Ulisses (h algo de sagrado em
suas mentiras,Nemia 7, 22). A conscin-
cia mitolgica no se fundamenta numa
hipottica religiosidade visionria do poe-
ta, mas no carter transtemporal do reper-
trio que ele transmite. Segundo Homero,
as musas e no os poetas so oniscientes
(Ilada 2, 485); Hesodo, retomando o ver-
so homrico, dir que, alm de conhece-
rem o passado e o presente, elas prevem ofuturo (Teogonia, 38). Se as musas impe-
lem o aedo a cantar a glria dos heris
(kla andrn), o que atinge o alto cu
(ourann euryn) o klosque ele prprio
cria (Odissia 8, 73-4). Em lugar de
consider-lo um receptor passivo de infor-
maes controladas pelas musas, Homero
o v como co-autor da obra, num processo
em que inspirao divina e contribuio
pessoal se fundem. Isso fica evidente no
famoso episdio da Odissia (22, 347-8)onde o heri reencontra seu aedo em taca
e ameaa mat-lo por ele ter servido os
pretendentes durante a sua ausncia. O que
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salva Fmio da morte um argumento de
cunho esttico-religioso: autodidata sou,
e um deus fez crescer [implantou:
enphysen] em minha mente toda sorte de
vias do canto. Se, por um lado, Fmio
registra que o domnio de sua linguagem
reflete uma prtica pessoal e independe de
terceiros, ele caracteriza, por outro, a ins-
pirao divina no como um estado de es-
prito especial, mas como o processo cria-
tivo: o que o deus fez surgir em sua mente
foram vias (oimas), metfora que, no
caso, pode ser interpretada como formu-
laes verbais. Ao mesmo tempo que es-
sas formulaes despontam, so submeti-
das ao labor potico.
Conforme escreveu Jean-Pierre Vernantem La Belle Mort et le Cadavre Outrag
(3):
Mas para que a honra herica permanea
viva no corao de uma civilizao, para
que todo o sistema de valores como que
receba a marca de sua chancela, necess-
rio que a funo potica, mais que objeto
de divertimento, tenha conservado um pa-
pel educativo e formador, que atravs delae nela se transmita, se ensine, se atualize na
alma de cada um esse conjunto de saberes,
crenas, atitudes, valores de que feita uma
cultura. Somente a poesia pica, devido ao
seu estatuto e sua funo, pode conferir
ao desejo de glria imperecvel que domi-
na o heri essa base institucional e essa
legitimao social sem as quais ele no
passaria de uma fantasia subjetiva.
H um complexo sistema de valores
disseminados na pica homrica, que teve
carter exemplar na cultura oral grega.
Trata-se de uma questo bastante estuda-
da, no sculo XX, por especialistas em
oralidade, e a essa funo paidutica da
Ilada e da Odissia que Vernant se refere
no trecho acima. Chamo a ateno do leitor
para a funo que a oralidade, em seu as-
pecto dialgico, acaba tendo na prpria
estrutura daIlada: dos 15.690 versos do
poema, pouco menos da metade, 7.018
(45%), aparece em discurso direto (4).
Devemos ter presente que Homero viveu
no sculo VIII a.C., poca do alvorecer da
plis (cidade-estado), e que, embora aIlada
seja o produto hbrido de momentos hist-
ricos distintos, com elementos bastante
remotos, alguns dos quais remontam ao
sculo XIII a.C. (quando Tria teria sido
destruda por uma guerra, segundo dados
arqueolgicos), possvel encontrar no
texto registros culturais contemporneos do
poeta. H, por exemplo, na Odissia, refe-
rncias nova estrutura urbana da plis,
com a presena da gora (espao pblico
de convvio), conforme a seguinte descri-
o feita por Nauscaa do pas dos fecios:
Porm quando estivermos prximos de
[entrarno precinto da plis de altos muros, belo
porto vers, de um e outro lado, abrindo
[estreita
boca; nas docas, naus bicurvas se recolhem
ao varadouro; ali, o santurio de Posidon;
perto, embasada em ljeas fixas no solo, a
[gora.
(Odissia 6, 262-5)
A importncia do debate pblico que,sculos mais tarde, ocuparia lugar central
na plis ateniense, notvel logo no pri-
meiro canto daIlada (490), onde Aquiles,
ofendido por Agammnon, resolve aban-
donar a guerra:
nem a glria da gora o atraa agora
ou, ainda, no canto 9 (443-4), em que o
tutor de Aquiles, Fnix, lembra as instru-es recebidas de Peleu para a educao de
seu filho:
Por isso me mandou, para que te fizesse
na oratria eminente, eficiente nas obras.
No se deve concluir, todavia, que a
instituio da cidade-estado (plis) tenha
tido peso extraordinrio no poema
homrico. Como observei, aIlada contm
sedimentos de perodos diversos e muitodistantes entre si. A questo sobre se o tex-
to homrico herdaria noes culturais do
sculo do poeta (VIII a.C.), particularmen-
3 Journal de Psychologie, 2-3,1980, pp. 220-1.
4 Cf. Jasper Griffin, HomericWords and Speakers, in
Journal of Hellenic Studies, CVI,1986, p. 37.
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te no que concerne instituio das assem-
blias, ou do perodo anterior, aristocrti-
co, centrado na vida palaciana, tem alimen-
tado discusses entre especialistas. Segun-
do alguns autores, predominariam, na
Ilada, valores ticos aristocrticos, basea-
dos em virtudes competitivas (5). Palavras
como aret (excelncia), agathn
(bem), ou kaktes (vcio) e kakn
(mal) definiriam sucessos ou fracassos
em funo de resultados concretos. Recu-
sando-se a entregar Briseida, Aquiles ava-
lia a sua prpria situao, nas palavras que
dirige a Agammnon (Ilada 1, 293-4):
Poltro, Dnao de nada assim me
[chamariam se acaso eu me dobrasse s coisas que tu
[dizes.
Ao ceder, a Agammnon, Briseida, que lhe
fora destinada como butim de guerra, em
reconhecimento de sua honra, Aquiles tor-
na-se deils(vil), destitudo de seu esta-
tuto de agaths. NaIlada, o sucesso fi-
xado por signos de distino, cujo carter
representativo fundamental no mbito daschamadas culturas da vergonha, nas quais
a opinio pblica preponderante na fixa-
o de valores (6).
Embora reconheam a presena, na so-
ciedade homrica, de virtudes competiti-
vas, outros helenistas preferem destacar
as virtudes cooperativas (7): os persona-
gens no agiriam apenas em funo de re-
sultados, nem seus valores se restringiriam
a uma dimenso funcional, balizada pelofracasso ou pelo sucesso. Palavras como
dikaiosyne(justia) ou sophrosyne(pru-dncia, sabedoria, moderao) seri-
am utilizadas abstratamente (valores si-
lenciosos), e seu valor conceitual resulta-
ria de longas prticas de debate. Os valores
consensuais tomariam o lugar dos valores
individuais aristocrticos.
Como se v, estamos diante de duas
noes diferentes de sociedade, a herica,
cujo ncleo o reinado e a famlia (oikos),e a urbana, cujo elemento central a gora
(assemblia, praa, mercado). ine-
gvel a existncia em Homero da represen-
tao urbana e do debate pblico, como,
por exemplo, na seguinte descrio do es-
cudo de Aquiles (18, 497-506):
Na gora, o povo discutia sobre uma rixa:
alternados, dois homens altercavam
[quanto
ao resgate acertado pela morte de outrem;
um jurava perante o povo ter saldado
o dbito; que nada recebera argia
o outro; ambos pediam uma sentena
[ arbitrada.
O povo, dividido, tomava partido,
aos gritos, por um deles ou pelo outro;
[arautos
os continham, enquanto os gerontes
[sentavam-seem sdes de polida pedra, sacro crculo;
Entretanto, como se observou recentemen-
te, no plano narrativo, os valores decorren-
tes desse tipo de instituio so ainda dor-
mentes e no alteram os fundamentos ti-
cos do cdigo herico (8).
Sobre o cdigo herico, destaque-se o
papel central da noo de tim, honra,
termo que define a posio do personagemna sociedade homrica, em virtude de sua
influncia poltica e de seu reconhecimen-
to pblico. No canto 1, Aquiles repete qua-
tro vezes que Agammnon tirou-lhe a tim
(honra, 171, 244, 355-6, 411-2) e lembra
que a expedio fora organizada para sal-
var a honra de Agammnon e Menelau
(159). A distribuio da timvaria de acor-
do com a posio do personagem. O que
torna possvel a Agammnon tirar a timdeAquiles a sua condio militar superior.
Nenhum outro heri questiona-lhe o ato,
que contraria, contudo, as regras de amiza-
de. Termos derivados dephilos (amigo)
so particularmente relevantes na defini-
o do comportamento herico. O verbo
philen significa muitas vezes hospedar
em Homero e aparece relacionado a ksnos
(estrangeiro). Na Odissia (8, 208),
Odisseu, hspede de Laodamas, aceita par-
ticipar de competies esportivas, mas se
nega a enfrentar seu anfitrio, pois ele
meu ksenos; quem poderia enfrentar al-
gum que o acolhe (philonti)?. A relao
5 Ver, por exemplo: A. Adkins,Homeric Values and HomericSociety, inJournal of HellenicStudies, XCI, 1971, pp. 1-14.
6 E. R. Dodds, The Greeks andthe Irrational, Berkeley, 1951,pp. 17 e seg.
7 Ver A. Long, Morals andValues in Homer, inJournal ofHellenic Studies, XC, 1970,
pp. 121-39.8 Ve r R i cha rd Seafo rd,
Reciprocity and Ritual, Homerand Tragedy in the DevelopingCity-State, Oxford, 1994, pp.4 e seg.
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entre anfitrio e hspede era selada pelo
symbolon, signo de reconhecimento, anel
rompido de que os parceiros conservavam
as metades correspondentes. O pacto efeti-
vado sob o nome dephiltes faz dos con-
tratantesphloi: a partir de ento se com-
prometem com a reciprocidade de favores
que constitui a hospitalidade (9). A rela-
o estabelecida entre osphloi fundamen-
ta-se na reciprocidade um sistema de
troca no qual o retorno do benefcio ou dano
no compelido nem por lei nem pela for-
a (10) , que deixa de existir entre
Agammnon e Aquiles, to logo o primei-
ro seqestra o prmio (gras) do segundo,
tirando-lhe a honra.
Emblemtico da questo da reciproci-dade e da hospitalidade na sociedade hom-
rica o episdio em que se encontram os
inimigos Glauco (troiano) e Diomedes (gre-
go). A construo da passagem magis-
tral, com elementos temticos de grande
repercusso na literatura do Ocidente
(Ilada 6, 119-236). Note-se, por exemplo,
a sutileza com que Glauco altera o sentido
dado no contexto ao substantivo genen
(145) que, usado com o significado de es-tirpe, raa, no relato sobre os antepassa-
dos, ganha, em sua fala, a outra acepo
possvel, gerao, para introduzir o tpi-
co da brevidade da vida, retomado posteri-
ormente por tantos poetas, como Mimnermo
(frag. 2 West) e Simnides (frag. 8 West: O
que de mais notvel disse o homem de Quios:
/ quais a gerao das folhas, assim tambm
a dos homens):
Tideide, ardoroso de nimo, por que
perguntas minha origem (genen)? Smile
[ das folhas,
a gerao (gene) dos homens: o vento faz
[cair
as folhas sobre a terra. Verdecendo, a selva
enfolha outras mais, vinda a primavera.
[Assim,
a linhagem dos homens: nascem e
[perecem.
(Ilada 6, 145-50)
Mas fixemo-nos no tema central desse
episdio, o da instituio da ksena(hos-
pitalidade) e da reciprocidade. Ele apare-
ce, desde logo, no relato de Glauco sobre
seus ancestrais, particularmente Belero-
fonte. Hspede de Proitos, rei de Argos,
Belerofonte acusado de assdio pela rai-
nha, depois de no corresponder a suas
investidas amorosas. Impossibilitado de
matar um hspede, Proitos envia Belerofonte
ao sogro Iobates, fazendo-o portador de uma
carta (168: smata lygr, mensagem fu-
nesta, nica referncia homrica a um tex-
to escrito) com instrues para mat-lo (nas-
ce da a expresso latina Bellerophontis
litterae). Novamente, a condio de hs-
pede de Belerofonte impede que Iobates
cumpra a solicitao do genro. Iobates en-
to destina ao heri uma srie de tarefasaparentemente irrealizveis (matar a Qui-
mera, as Amazonas), nas quais Belerofonte
obtm vitria, sendo finalmente recompen-
sado pelo rei. Ao ouvir esse relato, Diome-
des recorda que Belerofonte havia sido
hspede de seu av, Eneu, o que impossi-
bilitaria a ele, Diomedes, enfrentar Glauco:
De fato considero que s e desde mui-
to / um hspede paterno (215-6). No
belo desfecho da passagem, no s os doisadversrios desistem do duelo, como de-
cidem trocar suas armas, selando o pacto
de hospitalidade respeitado pelos ances-
trais. Conclui Diomedes:
Em Argos, para mim, sers hspede e
[amigo;
se um dia eu for Lcia, tu me hospedars.
Evitemos, portanto, cruzar nossas lanas,
ainda que seja em campo de batalha. Bravos
Tricos e aliados h muitos para abater,
os que um deus me oferea e aqueles que eu
[persiga;
muitos Aqueus ters para matar, podendo.
Troquemos, pois, as armas; do penhor
[paterno,
orgulho nosso, saibam todos.
(Ilada 6, 225-33)
Homero d tratamento fabular a esse
tema, no episdio dos Ciclopes (Odissia,
9), cuja imagem selvagem e primitiva de-
corre do desrespeito s regras de acolhi-
mento. No espao de 15 versos, o poeta
9 mile Benven is t e, LeVocabulaire des Institutions Indo-europenes, Paris, vol. 1, p.341.
10 Cf. Seaford, op. cit., p. XVII.
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repete trs vezes a expresso dom da hos-
pitalidade (355-6, 365, 370), solicitado por
Odisseu como um direito, e negado por
Polifemo, motivo de sua punio posteri-
or. No verso 366, h o famoso ardil do heri,
que se autodenomina Ningum (Outis),
a fim de no ser perseguido pelos compa-
nheiros do monstro, depois de ceg-lo. O
episdio se destaca no plano formal, pois o
autor emprega, em posio de quiasmo com
Kyklops (Cclope), o verbo kiklskousi
(chamam-me Ningum), sugerindo
ironicamente o que est por vir, o modo
como o prprio Ciclope ir chamar Odisseu.
importante assinalar que essa estratgia
astuciosa do personagem parte de uma si-
tuao efetiva da perspectiva das relaessociais no mundo homrico: o desrespeito
s regras de hospitalidade torna o estran-
geiro um ser indistinto, um ningum,
como Odisseu prefere dizer.
Outra passagem que faz lembrar o en-
contro entre Glauco e Diomedes, na qual o
valor tcnico dephiltes tambm se desta-
ca, a que narra o duelo entre Hctor e
jax no canto 7. Depois do longo combate,
ao cair da noite, tanto os gregos quanto ostroianos exortam os dois guerreiros a sus-
pender o duelo. Isso de fato ocorre, no
sem antes Hctor e jax se ligarem por
philtes (302), um acordo fraterno entre
inimigos, selado pela troca de armas:
Troquemos, pois, dons memorveis,
para que algum, Troiano ou Grego, possa
[vir
a dizer: Combateram-se os dois na pelejadevora-coraes. Separaram-se amigos.
Falou. E deu a espada ao Dnao, cravejada
em prata, com talim bem-trabalhado e
[bainha;
jax o cinturo prpura fulgurante
lhe ofertou. Separaram-se ento. Aos
[Aqueus
um se dirigiu; outro, multido troiana.
(Ilada 7, 299-307)
No canto 9, Agammnon envia embai-
xadores para junto de Aquiles, com o intui-
to de convenc-lo a retornar guerra. J
houve quem classificasse a atitude de A-
quiles, que recusa o pedido de desculpas e
os prmios oferecidos, como romntica
(auto-exlio do heri alheio a regras soci-
ais) ou negativa (incapacidade de superar o
ressentimento). Essas interpretaes
desconsideram o fato de Aquiles se manter
fiel ao cdigo herico. O personagem re-
gistra que a compensao ofertada por
Agammnon tem objetivo prtico rever-
ter a situao desfavorvel dos gregos , e
no restabelecer a philtes (amizade).
Tanto que seu retorno luta ocorrer no
em funo da causa grega, mas de sua
amizade por Ptroclo. Se a Guerra de Tria
tem como objetivo inicial resgatar a tim
(honra) de Menelau e Agammnon, ela
se conclui para que o valor dephiltes (a-mizade) seja preservado.
Com a morte de Ptroclo, Aquiles
retorna guerra e pe fim s agruras
helnicas. A glria de seu feito depende,
portanto, da morte do amigo. Para que se
tenha uma idia do nvel de elaborao
verbal a que chega a poesia homrica, ob-
serve-se que essa histria sintetizada no
nome dos dois heris:Akhilles, aquele
cujo povo (las) tem dor (khos), obtm aglria que, no futuro, ser recordada como
a glria dos homens do passado (9, 524-
5: tn prsthenkla andrn), com a morte
de Patrokls, isto , a glria kls, de
klos dos ancestrais patros,de patr,
pateres (11).
Como se pode imaginar, com base nes-
se jogo etimolgico, a linguagem daIlada
elaboradssima, ao contrrio do que at
pouco tempo atrs entendiam algunscomentadores. O enorme impacto que ti-
veram, no campo homrico, os estudos
sobre a oralidade explica uma srie de co-
locaes que hoje, com a distncia tempo-
ral, dificilmente se sustentam. Se verdade
que aIlada apresenta caractersticas for-
mais que indicam sua natureza oral reto-
mada de expresses fixas ao longo do tex-
to, repetio de cenas tpicas, predomnio
da sintaxe parattica , isso no implica
que, no plano esttico, sua linguagem sejasimples ou despojada. Diversos estudos
antropolgicos sobre culturas orais regis-
tram que a grande poesia oral trabalhada
11Gregory Nagy discute aetimologia desses nomes emThe Best of the Acheans ,Concepts of the Hero in AchaicGreek Poetry (Balt imore,1979).
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muitssimo antes de ser apresentada ao p-
blico, no sendo, pois, composta de impro-
viso. No passado recente, alguns especialis-
tas chegaram inclusive a observar que os
personagens homricos teriam perfil unifor-
me, devido padronizao da linguagem
pica. Poucos continuam a defender esse
ponto de vista hoje em dia. Nem os persona-
gens homricos so uniformes, nem a lin-
guagem daIladae da Odissia simples. O
leitor do traslado de Haroldo de Campos
poder notar esses dois aspectos, graas
radicalidade de seu projeto tradutrio.
Desconheo outra traduo to fiel
complexidade formal daIlada quanto a do
poeta paulistano. Entre as mais criativas a
que tenho tido acesso nos ltimos anos estoas de Robert Fagles e Stanley Lombardo,
ambas para o ingls (12). As duas so ex-
celentes e trazem a marca da dico colo-
quial dos Cantosde Ezra Pound. Entretan-
to, ao adotarem esse registro, deixam de
lado aspectos estilsticos relevantes do tex-
to grego. No caso da traduo de Haroldo
de Campos, esses traos ressurgem de uma
perspectiva paramrfica, e no isomrfica,
isto , so reinventados de modo original,e no reproduzidos mecanicamente. Mas,
antes de comentar passagens do texto de
Haroldo de Campos, talvez seja interessante
fazer algumas observaes sobre a com-
plexidade dos personagens homricos, par-
ticularmente de Aquiles.
Jasper Griffin escreveu um ensaio
esclarecedor sobre a linguagem de Aquiles,
onde examina o carter trgico, a persona-
lidade explosiva e complexa do heri (13).
Destaca-se, na epopia homrica, o uso de
smiles, ora curtos (como um deus, como
um leo) ora desenvolvidos numa seqn-
cia de versos. No canto 4 (241-6), lemos a
seguinte admoestao:
Flecheiros fanfarres, Aqueus
[vexaminosos,
no tendes brio? Por que como filhotes
[tmidos
de cora que, depois de correr pelo prado,exnimes, estacam ficais inermes,
[pvidos,
sem fibra para a luta?
No canto 3 (10-4), ao falar do avano da
tropa, Homero compara:
Como Noto de nvoa espessa coifa o cume
das montanhas, infenso ao pastor, aos
[ladres
mais que a noite propcio (no se enxerga
[um tiro
de pedra adiante), um vrtice de p se eleva
dos ps que em marcha rpida transpem o
[plaino.
Aquiles o personagem que maior uso
faz de smiles naIlada, desenvolvendo-os
alm da mdia. So smiles com forte apelo
emocional, que tm, s vezes, a prpria ira
como objeto de comparao (18, 110). Nocanto 9 (323-7), ele profere:
Como a ave-me leva ao filhote implume
[o que acha
para comer e fica mngua, assim tambm
privado do repouso de Hipnos, muitas
[noites
tresnoitei, aps dias a fio de sanguinosas
pelejas, por mulheres alheias pugnando
com bravos.
Outra marca da linguagem de Aquiles o
saudosismo com que muitas vezes evoca
lugares longnquos, como no canto 1,
onde menciona sua terra natal, Ftia, num
verso cujo ritmo ondulante (157) subi-
tamente abre uma vista ampla e inumana,
o mundo do espao vazio, distante dos
confrontos de Tria (14), em contraste
com o ritmo staccato e o teor violento doverso seguinte (o ritmo torna-se ofegan-
te, com uma interjeio espordica de
puro abuso) (15), composto de palavras
que s Aquiles usa na Ilada . Tambm
nessa passagem, o leitor da traduo de
Haroldo de Campos ter acesso ao que
ocorre no original:
Muitos montes medeiam
sombreados entre ns, e o mar sempre-
[soante.A ti, Gro Sem-Pudor, olho-de-co, viemos
seguir, satisfazer, salvar a honra em Tria,
e a Menelau.
12 A traduo de Robert Fagles foipublicada pela Penguin(1990); a de Stanley Lombardo,pela Hackett (1997).
13 Op. cit.
14 Cf. Jasper Griffin,Homer on Lifeand Death, Oxford, 1979, p.75.
15 Cf. G. S. Kirk, The Iliad: aCommentary, Cambridge, vol.1, p. 69.
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Aquiles emprega muitas palavras jamais
utilizadas por outro personagem naIlada:
101 nos 823 versos que profere, contra, por
exemplo, 58 nos 588 versos que Agamm-
non pronuncia. Mais significativo do que a
questo numrica ser registrar o teor con-
tundente de boa parte desses vocbulos,
entre os quais se destacam demobros
(devorador-do-povo), kynpa(olho-de-
co),philokteantate (o-mais-vido-de-
riquezas) e, como no poderia faltar, hybris
(violncia; s Aquiles usa essa palavra, e
Atena, quando lhe devolve o termo, 1, 214).
Num ensaio anterior ao de Griffin, tam-
bm centrado na linguagem de Aquiles,
James Redfield e Paul Friedrich (16) cha-
mam a ateno para a riqueza de detalhesdas descries elaboradas por Aquiles,
como em relao ao cetro (1, 233-9):
Mas algo te direi e um magno juramento
por este cetro sim proferirei: nem folha,
nem ramo nele viaro jamais, depois
que arrancado do tronco foi-se da
[montanha
e jamais tornar a verdecer; o bronze
a seu redor cortou folhame e casca.[Portam-no
agora os juzes.
Leia-se, no mesmo sentido, a terrvel men-
o ao cadver de Lcaon, lanado ao rio
(21,122-7):
jaz entre peixes: um cardume ictioferoz
agora h de lamber-te a ferida sangrenta;
tua me, em pranto, ao catafalco no virdepor-te. O trbido Escamandro ao mar
[salino
te arrojar. Ictiossaltante, um peixe, em
[negra
espuma, cevar-se- no alvor ndio de
[Lcaon.
Como observei, o apuradssimo labor
verbal de Homero encontra, na traduo
de Haroldo de Campos, correspondncias
surpreendentes, que fazem dela um marco
no s da literatura de lngua portuguesa.
Seleciono alguns trechos apenas com o
intuito de introduzir o leitor no trabalho
diria homrico do tradutor (17).
No canto 18 (39-49), h o famoso cat-
logo das Nereides, composto de 33 nomes
(ou 34, se incluirmos Ttis). Desde a Anti-
gidade, esse elenco tem causado perple-
xidade nos comentadores, entre outros
motivos, por evocar formulaes da poe-
sia hesidica. Para Aristarco, seria resulta-
do de interpolao. Trata-se de um epis-
dio marcado pela dico mgico-
encantatria, cujos nomes todos! so
falantes, isto , correspondem a palavras
ou razes que em grego se referem s cores,
s luzes, s espumas, s grutas do mar (18).
William Arrowsmith, poeta, helenista e
tradutor de linhagem poundiana, realizou,
nos anos 60, uma traduo bastante criati-va dessa passagem para o ingls (19). Uti-
lizando o verso livre, verteu os nomes das
ninfas, elucidando seu sentido em
sintagmas to concisos quo musicais:
Seagreen and Shimmer, the goddess
[Blooming and Billow
and those who are names of the islands,
[those who are called for the caves
and She-who-skinson-the-water, and[Spray with the gentle eyes.
Haroldo de Campos preferiu manter o
mesmo nmero de versos do grego e pre-
servar a misteriosa sonoridade nominal,
fazendo uso, aqui e ali, de eptetos e de
expresses que esclarecem o significado
dos vocbulos:
Eram Glucia azul-mar e Tlia florida; a
[ndula
Cimodcea; a insular Nesia; a caverncola
Espia; Toa, nado-aglima; Hlia,
[cinza-sal,
olhos-redondos; Mlita, mel; Iera grcil;
Anfite circum-nadante e gave bem-nada;
Cimote, onda rpida; Actia e Limnria;
Doto e seus dons; Proto, primcias; frtil
[Frusa;
Dexamene, cisterna-amena; Dinamene,
dnamo-fluente; a circum-prxima
[Anfinome;
Calianira, encanta-homens; Dris;
[Panpeia,
16Speech as a Personali tySymbol: the Case of Achilles,in Language, 54, 1978, pp.263-88.
17 Outros comentrios sobre a tra-duo encontram-se em:Haroldo de Campos e TrajanoVieira, MHNIS, a I ra deAquiles, So Paulo, NovaAlexandria, 1994; Haroldo deCampos e Odorico Mendes,Os Nomes e os Navios, SetteLetras, 1999.
18 Iliade, Giovanni Cerri (tradu-o), Antonietta Gostoli (co-mentrio), Rizzoli, 1999, vol.2, p. 981.
19 Arion, 6.3, 1967, pp. 347-8.
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pan-vidente; a gloriosa Galatia; Nemertes;
Apseude, Inira, Ianassa, Climene, Cali-
-nassa, Mara, Oritia, Amtia eis as
[Nereides
abissais, todas.
No verso 264 do canto 23, destaca-se o
enorme polisslabo, que ocupa todo o se-
gundo hemistquio do verso (caso nico em
Homero):
ka trpod otenta dyokaieikosmetron.
Na traduo em portugus (262-4):
Primeiro aos qites velozes, galas
[grandesdeu em dons: uma escrava hbil em lavor
[fino
e alada trpode vintenomesurante.
No mesmo canto, o verso (116) que descre-
ve o galope dos animais, com apoio na re-
petio de anta:
poll dnanta ktanta pranta te
[dkhmia tlthon.
Haroldo de Campos:
multivo, rampa-acima, abaixo-rampa,
[aos flancos.
O pesado verso 221 do mesmo canto,
formado s de slabas longas, referente ao
funeral de Ptroclo:
psykhn kiklskon Patroklos deiloo.
Haroldo de Campos:
invocando a penada psiqu patroclia.
A manuteno da reduplicao vocabular
no verso 363 do canto 2:
hs frtre frtrephin argue, fyla d
[fylois.
Que a tribo tribo ajude, como
a famlia famlia.
A epanfora presente em quatro versos (2,
436-9), mantida tal e qual:
fora lanam a ncora, as amarras prendem;
fora saem todos mais na areia o mar
[rebenta;
fora a hecatombe sacra expem a Apolo
[Arqueiro;
fora da nave singradora, eis, sai Criseida.
O acmulo de ditongo eu (23, 69), talvez
imitando um lamento (20):
hedeis,autr emeo lelasmnos pleu,
[Akhille.
Embeveceu-te o sono, Aquileu que[esqueceu-me!
A complexa rede de repeties dos versos
199-204 do canto 22, com o recurso do
poliptoto (d ynatai /d ynatai /d ynato;
fegonta/hypofeguein/hypeksfyguen ;
dikein/dikein):
hs d en onero u dynataiphegonta[dikein;
ut ar ho tn dynatai hypofegueinuth
[ho dikein;
hs ho tn u dynatomrpsai posn, ud
[hs alyksai.
ps d ken ktor kras hypeksfyguen
[thantoio,
ei m hoi pymatn te ka hystaton entet
[Apllon
engythen, hos hoi eprse mnos laipser
[te gona;
como no transe onrico ao quefoge no
sepode alcanar; como ningumpode re-
-fugir do outro, nem pode este alcan-lo,
[p-
-veloz, um nopodia furtar-se e o outro
[fisg-lo.
Hctor, como esfugir Quere fatal, no
fora, no extremo, o auxlio de Febo? Este
[esperta
seus joelhos de relmpago.
Os jogos onomsticos so recorrentes
na epopia homrica. Na Odissia (1,62),
20 Cf. Mark Edwards,Homer,Poetof the Iliad, Baltimore, 1987,p. 118.
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por exemplo, ao indagar a Zeus o motivo
de sua ira contra Odisseu, Atena emprega
as seguintes palavras: t ny tson odysao,
Zeu; (por que lhe s to hostil, Zeus?),
num verso em que odysao, Zeu ecoa o pr-
prio nome de Odyseos (Por que tanto dio,
Zeus, por Odisseu?). No canto 1 daIlada
(240-1), Homero aproxima Akhi lles
(khos, dor + las, povo), deAkhain
(aqueus) e akhnmenos(da mesma raiz
de khos, dor), sugerindo relaes assim
reimaginadas por Haroldo de Campos:
os Aqueus de saudade ho de clamar:
[Aquiles!
Aquiles, Dor-do-Povo! E tu no poders,
ainda que dorido.
No canto 16 (142-4), o nome de Peleu, pai
de Aquiles, introduzido pelo verbo do qual
deriva etimologicamente:pllein, cujo sig-
nificado brandir a lana. Segundo
Homero, s Aquiles era capaz de mover a
lana, feita de freixo plio, tirada do monte
plio, ofertada a seu pai (Peleu) por Quron.
Na traduo de Haroldo de Campos:
s a megalana,
poderosa, pesada, no tomou do imculo
Ecida. S o Peleide, ningum mais podia
sopesar o pelineo freixo, dom de Quron
a Peleu.
Demdoco, o aedo fecio, visto nor-
malmente como uma representao ideali-
zada do poeta pico, j que seu canto tem,
como objeto, kla andrn (glria dos he-
ris). A etimologia deDemdoco, aco-
lhido pela comunidade, indica o reconhe-
cimento pblico desse profissional e sua
atividade itinerante na Antigidade. De
certa maneira, Demdoco seria o alter ego
do prprio Homero. At onde chega meu
conhecimento, os especialistas no tm
apontado que essa identificao se d no
plano da linguagem: ao falar do canto do
aedo fecio, o autor da Odissia escreve (8,
499) hormethes the rkheto. Note-se que
o primeiro vocbulo, hormethes(inspi-
rado), evoca o prprio nome do poeta,
Hmeros: Demdoco (Homero?) iniciou
o canto inspirado pelo deus a traduo
literal do verso. Por outro lado,Hmeroscompe-se de hom(raiz cujo sentido jun-
to, comum) e ros (derivado de ar, ajus-
tar); numa traduo aproximada, a pala-
vra significaria algo como aquele que ajus-
ta conjuntamente. um termo tcnico que
descreve a habilidade homrica em ajustar
e afinar a linguagem. H uma outra palavra
que etimologicamente no tem relao com
Hmeros, mas que, de som semelhante, nos
vem mente quando pensamos no trabalhorealizado por Haroldo de Campos: o verbo
homero, da mesma raiz do substantivo
hmeros. Verto os dois vocbulos que, num
desses lances do acaso (?), sintetizam, creio
eu, a singularidade da presente traduo:
no seu encontro com (homero) O-que-
ajusta-o-canto (Hmeros), Haroldo de
Campos nos oferece a garantia (hmeros)
da originalidade potica do rapsodo grego.