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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Geografia Programa de PósGraduação em Geografia Humana SÃO PAULO 2011 FLAVIA CHRISTINA ANDRADE GRIMM Trajetória epistemológica de Milton Santos uma leitura a partir da centralidade da técnica, dos diálogos com a economia política e da cidadania como práxis

Trajetória epistemológica de Milton Santos

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  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Geografia Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana

    SO PAULO 2011

    F LAV IA CHR I ST INA ANDRADE GR IMM

    Trajetria epistemolgica de Milton Santos

    uma leitura a partir da centralidade da tcnica, dos dilogos com a economia poltica

    e da cidadania como prxis

  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Geografia Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana

    SO PAULO 2011

    Trajetria epistemolgica de Milton Santos

    uma leitura a partir da centralidade da tcnica,

    dos dilogos com a economia poltica e da cidadania como prxis

    Flavia Christina Andrade Grimm Orientadora: Professora Doutora Mara Laura Silveira

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutora

  • ao Z Luiz em memria

  • Resumo

    O objetivo desta tese de doutorado analisar a trajetria

    epistemolgica do gegrafo Milton Santos (1926-2001) a partir

    da gnese e evoluo de conceitos e categorias que foram pila-

    res de seu sistema terico. A escolha pelo autor foi pautada por

    sua inegvel importncia na histria da Geografia brasileira,

    sobretudo em seu movimento de renovao a partir de meados

    da dcada de 1970.

    Como partido de mtodo, adotamos a abordagem contex-

    tual (Berdoulay, [1981] 2003) e as relaes entre os eixos de

    anlise aqui elaborados para esse fim: centralidade da tcnica,

    dilogos com a economia poltica e a busca pela cidadania

    como prxis. Nesse exerccio, foi central reconhecer, nos gran-

    des temas trabalhados pelo gegrafo, o processo de internali-

    zao de categorias externas Geografia e os contextos histri-

    cos por ele vividos durante essas mais de cinco dcadas de

    trabalho.

    Partimos do pressuposto que esse processo de internaliza-

    o de categorias externas Geografia tais como, tcnica,

    tempo, totalidade, social, formao scio-econmica, diviso

    do trabalho, forma, funo, processo, estrutura, objetos, aes,

    norma e intencionalidade, entre outras teve um papel extre-

    mamente dinamizador na releitura de categorias e conceitos

    internos disciplina, como regio, paisagem, espao geogrfico

  • e territrio, e, portanto, na construo de uma teoria geo-

    grfica.

    Podemos afirmar que, embasado em mais de quatro dca-

    das de estudos e pesquisas, o gegrafo baiano alcanou na

    dcada de 1990 uma complexa sistematizao terica. Desta-

    camos a elaborao iniciada na dcada de 1970 de novos

    conceitos e categorias que vieram enriquecer os debates epis-

    temolgicos da geografia. Podemos mencionar a elaborao da teoria dos circuitos da economia urbana e a nfase na necessi-

    dade do espao geogrfico ser compreendido como objeto da

    disciplina, elevando-o instncia da sociedade. Somam-se

    ainda a elaborao de categorias e conceitos como formao

    socioespacial, circuitos espaciais de produo e crculos de

    cooperao, meio tcnico-cientfico e, posteriormente, meio

    tcnico-cientfico informacional, entre outros. Quanto a con-

    tribuies para um debate ontolgico sobre o espao geo-

    grfico, o autor passou da noo de fixos e fluxos ao conjunto

    indissocivel de sistemas de objetos e sistemas de aes (1991).

    Foi exatamente durante os anos de 1990, partindo do en-

    tendimento da tcnica vista em sua totalidade como fen-

    meno tcnico, que Milton Santos props que a Geografia fosse

    compreendida como uma filosofia das tcnicas e como uma

    epistemologia da existncia. Elaborou ainda a categoria de

    territrio usado, proposto como sinnimo de espao geo-

    grfico.

  • Abstract

    This doctorate thesis aims at analyzing the complete epis-

    temological path of geographer Milton Santos (1926-2001) de-

    parting from the Genesis and evolution of concepts and cate-

    gories which were the pillars of his theoretical system. The

    choice for this author was done based on his unquestionable

    importance in the history of Brazilian Geography and on the

    course of its renewal from the mid-1970s on.

    As a methodical outset, we have adopted the contextual

    approach (Berdoulay, [1981] 2003) and the relations between

    the analisys axis that were elaborated to support them: the

    centrality of the technique, the dialogues with the political

    economy and the search for the citizenship as praxis. During

    this exercise, it was Paramount to recognize, within the greater

    themes with which the geographer has worked, the proccess of

    internalization of categories external to Geography and the

    historical contexts in which he has lived during more than five

    decades of work.

    We have assumed that this process of internalization of ca-

    tegories external to Geography such as technique, time, tota-

    lity, social instance, socio-economic formation, labor division,

    form, function, process, structure, objects, actions, norm and

    intentionality, among others has had an extremely dinami-

    zing role in rereading categories and concepts which are inter-

  • nal to the discipline, such as region, landscape, geographical

    space and territory, and consequently in the construction of a

    geographic theory.

    We can affirm that, relying on more than four decades of

    study and research, the geographer from Bahia has reached a

    complex theoretical systematization during the 1990s. We wish

    to highlight the elaboration of new concepts and categories

    that happened during the 1970s and came to enrich the epis-temological debates of Geography. We can mention the formu-

    lation of the theory of the circuits in urban economy and the

    emphasis on the need for the geographical space to be unders-

    tood as the object of the discipline, elevating it to an instance

    of society. We can add to that the elaboration of categories and

    concepts such as the scio-spatial formation, the spacial circu-

    its of production and the cooperation circles, the technical-

    scientific medium (later on reconceived of as technical-

    scientific-informational) among others.

    It was precisely during the 1990s, departing from the un-

    derstanding of technique, viewed in its totality as a technical

    phenomenon, that Milton Santos proposed that Geography

    should be comprehended as a philosophy of techniques and as

    an epistemology of existence. He has, furthermore, conceived

    the category of used territory, which was proposed as a sino-

    nimous of geographical space.

  • Agradecimentos

    O primeiro agradecimento que quero fazer a Mara Laura

    Silveira, pela sua seriedade e comprometimento como gegrafa

    e professora, pelos cuidados na orientao e, principalmente,

    pela confiana que depositou em mim durante todo este

    processo.

    Quero agradecer tambm a professores que marcaram

    minha escolha e permanncia na geografia.

    A Maria Silvia Arajo que, nos tempos do ento colegial,

    l pelos idos do final da dcada de 1980, me proporcionou

    reconhecer nesta disciplina uma maneira crtica de ver o

    mundo.

    A Sandra Lencioni que, com muito carinho e compro-

    metimento, me guiou pelos primeiros caminhos da pesquisa

    durante a realizao de meu trabalho de graduao individual,

    entre os anos de 1996 e 1997.

    Ao professor Milton Santos, que vi pela primeira vez no dia

    10 de maro de 1992 quando, caloura no curso de Geografia da

    Universidade de So Paulo, assisti sua aula inaugural da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, denomi-

    nada 1992: a redescoberta da natureza. Passados alguns anos,

    a partir de 1998, tive a oportunidade de participar de sua

    equipe de pesquisa e, tambm, de ser sua orientanda de

    mestrado. Em seus escritos tive a oportunidade de conhecer

  • uma grande geografia e sinto-me privilegiada de t-lo como

    um mestre.

    s professoras Adriana Bernardes e Maria Amlia Masca-

    renhas Dantes pelos apontamentos feitos a este trabalho na

    ocasio do exame de qualificao.

    s instituies que deram o suporte na realizao deste

    projeto atravs de bolsas de pesquisa: Fundao de Amparo

    Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) e Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES). Contei

    ainda com o apoio da CAPES (Brasil) e do Ministerio de Ciencia,

    Tecnologa e Innovacin Productiva (Argentina) para a

    realizao de uma misso de estudos durante o ms de maio de

    2010 na Argentina.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana do

    Departamento de Geografia, nas gestes do professor Andr

    Martin (coordenador) e professora Mnica Arroyo (vice-

    coordenadora) e, posteriormente, das professoras Mnica

    Arroyo (coordenadora) e Rita de Cssia Ariza da Cruz (vice-

    coordenadora), que manteve um ambiente propcio ao

    desenvolvimento desta e tantas outras pesquisas. Sou grata

    tambm aos funcionrios da Secretaria de Ps-Graduao, com

    ateno especial Rosngela, Cida, Jurema e Ana, que me

    acompanharam com ateno e cuidado durante esses anos de

    ps-graduao, iniciados em 1999 a partir da elaborao de

    meu mestrado.

    Aos amigos da Copiadora L&M que desde 1992 sempre me

    acolheram com carinho. Nestes muitos anos de convivncia

    agradeo por tudo que me ajudaram, pela ateno aos pedidos

    de ltima hora e tambm pelas descontradas conversas. Um

    muito obrigada Mrcia, ao Andr, Joise, ao Marcos e,

    especialmente, ao Z (carinhosamente chamado por todos de

    Zezinho) que sempre trabalhou com todo cuidado ao manusear

  • documentos raros, jornais e outros materiais importantes para

    a realizao desta pesquisa.

    Quero agradecer tambm a amigos e amigas que tenho a

    imensa alegria de ter por perto.

    Muito especialmente a Paula Borin, para quem no existe

    uma palavra que comporte todo meu amor e alegria por t-la

    em minha vida. A essa grande gegrafa, agradeo a leitura

    cuidadosa e os comentrios feitos a esta tese. A Cntia Nigro e Fabola Pagliarani, amigas queridas de

    longa data, que tanto companheirismo e carinho me propor-

    cionaram nos ltimos 20 anos (!). A Mnica Arroyo e Perla Zusmann, mulheres e gegrafas

    por quem minha admirao no tem tamanho.

    s queridas Eliza Almeida e Maria Alice Oliva de Oliveira,

    sempre acolhedoras e atenciosas professoras em meus

    primeiros passos na docncia. Aqui um agradecimento muito

    especial tambm a Vicente Eudes Lemos e Doraci Zanfolim

    que, com delicados empurres, literalmente me tornaram

    professora.

    Ao Carlos Manoel Pimenta Pires, amigo querido,

    companheiro desde as primeiras escolhas profissionais s

    conquistas de agora.

    A Antonio Toledo Poso, Fabio Betioli Contel, Renato

    Emerson dos Santos e Pierre Alves Costa, grandes gegrafos

    com os quais tenho a alegria de conviver desde o IX Encontro

    Nacional de Gegrafos (ocorrido em Presidente Prudente no

    ano de 1992) e que, carinhosamente, incentivaram a realizao

    desta pequisa.

    Ao Jacques Lvy que, sem imaginar, fez de mim algum

    que sou hoje.

    Uma palavra especial a Silvia Borin e a Anna Nigro, lindas

    mulheres que sempre estiveram carinhosamente por perto e,

  • tambm, a Ivan Borin, pelos dilogos ocorridos numa ponte

    virtual entre Paris e So Paulo.

    Dulce Senna que, sem indicar a orientao geogrfica,

    me acompanhou e me confortou numa longa (e interminvel)

    caminhada que, alis, desconfio estar apenas comeando...

    Um muito obrigada especial tambm ao Rafael Sanches,

    que com seus cuidados me manteve firme e disponvel para

    vida. A Maria Teresa Buco Porto, com quem comecei a aprender

    os inmeros cuidados que pedem um trabalho de edio.

    A amigas queridas que me acompanharam muitssimo de

    perto nesta empreitada. A Marina Regitz Montenegro, grande

    companheira num cotidiano marcado por tantas alegrias e

    angstias que, juntas, certamente formariam um lindo cordel!

    A Virna Carvalho David, que com sua doce presena me acom-

    panhou nessa empreitada. Tambm ao Villy Creuz, sou grata

    por seus silenciosos e pequenos cuidados.

    Nesta caminhada, tenho ainda um especial agradecimento

    aos meus primeiros e queridos alunos do curso Prestes

    Vestibulares do Centro de Formao e Educao de

    Carapicuba (Carapicuba) que sofreram nas mos de to

    novata professora a partir de 2003. Tambm aos alunos da

    Faculdade Dom Domnico (Guaruj) e da Universidade

    Bandeirante (So Paulo).

    Agradeo aos alunos da Universidade de Cabo Verde (em

    Praia) e da Universidade Santiago (em Assomada) que

    atenciosamente me receberam e escutaram em junho de 2011.

    Nestas instituies agradeo tambm aos professores

    Clementina Furtado e Joo Carvalho (Uni-CV) e ao professor

    Carlos dos Santos pela recepo calorosa. Aqui sinto-me a

    vontade para cham-los de amigos. Um agradecimento

    especial ao meu amigo maranhense cabo-verdiano Samarone

  • Marinho, que me apresentou com tanto carinho lindos

    pedacinhos deste pequenino e adorvel pas.

    Alcanar um momento como este seria impossvel sem o

    apoio e carinho de meus familiares.

    Aos meus amados pais, Vilma de Andrade e Ludovico

    Grimm, sou grata por tudo que pude realizar e pela formao

    que me deram para toda a vida.

    A Judith de Siqueira Andrade que, em sua mineirice, uma sbia e divertida av.

    Aos meus amados irmos Sylvia e Lus Henrique, agradeo

    de todo o corao o amor sempre presente, bem como aos seus

    companheiros Eduardo e Simone.

    minha irm Lilian e ao seu companheiro David, agra-

    deo imensamente o apoio cotidiano nestes to delicados me-

    ses de redao e neste ltimo ano de vida.

    s minhas queridas sobrinhas por ordem cronolgica de

    chegada ao mundo Anabel, Isadora e Clara, fonte de muita

    alegria e muito amor sempre!

    Agradeo tambm a Marion Stolarski que, docemente,

    esteve por perto durante todo o tempo de elaborao de

    redao desta tese.

    Em memria, com todo amor, sou imensamente grata a

    Zelma Grimm e a Geraldo Siqueira, verdadeiros pilares nessa

    minha caminhada.

    Quero ainda agradecer, muito especialmente, a Marie-

    Hlne Tiercelin dos Santos que, ao me convidar para traba-

    lhar na organizao do Acervo Milton Santos, talvez no

    imaginasse o papel que teria em minhas escolhas.

    Ao Andr, muito mais que grata por todo cuidado com que

    me cercou nos ltimos trs anos, sou feliz pela possibilidade do

    reencontro que apenas to fortes amores tm.

  • Certamente, como diria Vincius de Moraes, a vida a arte

    do encontro embora haja tanto desencontro pela vida. Aqui

    estamos e permaneceremos, como a linha e o linho ...

    * No poderia deixar de mencionar o Leo, o Simba e a Zoey que, apesar de ficarem sobre os papis, derrubando-os inmeras e repetidas vezes, foram grandes companheirinhos em diferentes momentos do dia, das noites e das madrugadas.

  • Sumrio

    Introduo, 18

    captulo 1

    A tcnica como elemento descritivo e a geografia regional

    Introduo, 31

    1.1. Geografia regional e a noo de tcnica, 32

    1.1.1. Formao e primeiras reflexes geogrficas, 32

    1.1.2. A importncia da Associao dos Gegrafos Brasileiros, 42

    1.1.3. Estudos sobre a zona cacaueira: gnero de vida

    e habitat, 51

    1.2. Crticas geografia regional e o papel das modernizaes, 63

    1.2.1. Dilogos com a geografia aplicada: regionalizao

    e planejamento, 63

    1.2.2. Revendo a noo clssica de regio: dilogos com a

    geografia ativa e o papel das modernizaes, 78

  • captulo 2

    Modernizaes, dilogos com a economia poltica e uma

    teoria geogrfica da urbanizao

    Introduo, 88

    2.1. Das primeiras reflexes sobre geografia urbana s anlises sobre a

    urbanizao nos pases subdesenvolvidos, 90

    2.1.1. Partindo de conceitos clssicos: estudos sobre a Bahia, 90

    2.1.2. As especificidades da urbanizao no Terceiro Mundo

    e dilogos com a economia urbana, 97

    2.2. Teoria dos circuitos da economia urbana, 109

    2.2.1. Modernizaes e seus impactos no Terceiro Mundo, 109

    2.2.2. Trabalho, capital e organizao: sobre os circuitos

    superior, superior marginal e inferior da economia

    urbana, 114

    captulo 3

    Perodo tecnolgico e a necessidade de uma reviso

    epistemolgica na Geografia

    Introduo, 134

    3.1. Economia poltica, totalidade e espao geogrfico, 136

    3.1.1. Espao geogrfico: primeiras reflexes e contextos, 136

    3.1.2. O retorno ao Brasil e a publicao de Por uma geografia

    nova, 145

    3.1.3. O espao geogrfico como instncia da sociedade e a

    formao socioespacial, 153

  • 3.2. A tcnica como elemento constitutivo e ontologia do espao, 164

    3.2.1. O perodo tecnolgico e o meio tcnico-cientfico, 164

    3.2.2. Relendo categorias e conceitos geogrficos, 167

    3.2.3. Pensando o espao geogrfico: fixos e fluxos, sistemas de

    objetos e sistemas de aes, 171

    3.3. Territrio: dialtica e cidadania, 176

    3.3.1. O territrio e seus movimentos: diviso territorial do

    trabalho, circuitos espaciais de produo e crculos de

    cooperao, 176

    3.3.2. Pensar a cidadania a partir do territrio, 181

    captulo 4

    O fenmeno tcnico e uma teoria social crtica do espao

    geogrfico e do territrio usado

    Introduo, 185

    4.1 Globalizao: novos contedos do espao, novos conceitos, 187

    4.1.1. A globalizao como perodo e como crise: uma nova

    abordagem, 194

    4.1.2. As unicidades e a universalidade emprica 199

    4.1.3. Acelerao contempornea e o meio tcnico-cientfico

    informacional, 202

    4.1.4. Espaos da racionalidade, tecnoesfera e psicoesfera 206

    4.1.5. Meio tcnico-cientfico informacional e urbanizao no

    Brasil, 209

  • 4.2. Uma nova proposta epistemolgica para a geografia: partir

    do fenmeno tcnico, 218

    4.2.1. O espao geogrfico como hbrido: objetos e aes, 224

    4.2.2. A maturidade da Geografia e a possibilidade

    de construo de uma metadisciplina, 228

    4.2.3. Geografia como filosofia das tcnicas e como

    epistemologia da existncia, 235

    4.3. Territrio e cidadania, Geografia e Poltica, 239

    4.3.1. Uma categoria para a disciplina: o territrio usado, 239

    4.3.2.Crticas ausncia de um projeto nacional, 244

    4.3.3. O papel dos intelectuais e da universidade, 254

    Concluses, 260

    Bibliografia, 279

  • [] a nica continuidade que me caracteriza a busca

    Milton Santos

  • Introduo

    Nesta tese de doutorado apresentamos uma leitura da tra-

    jetria epistemolgica do gegrafo Milton Santos (1926-2001) a

    partir da gnese e evoluo de conceitos e categorias que, a

    nosso ver, foram pilares de seu sistema terico. Nossa escolha

    por este autor foi pautada por sua inegvel importncia na

    histria da Geografia brasileira, sobretudo em seu movimento

    de renovao1.

    Quando buscamos identificar essa gnese e evoluo de

    conceitos e categorias, ou seja, quando almejamos elaborar

    uma histria das idias, ela inevitavelmente cronolgica.

    1 Soma-se a isso, o fato de acreditarmos que as pesquisas voltadas para a anlise da participao de determinados autores nos debates tericos ocorridos na disciplina representam uma significativa contribuio para a construo da histria da Geografia. Como so os casos, entre tantos outros, dos trabalhos de Silvio Bray (1983) sobre Pierre Monbeig; de Manuel Correia de Andrade (1985) e de Daniel Hiernaux-Nicolas (1999) sobre lise Reclus; de Janurio Megale (1984) sobre Max. Sorre; e de Antonio C. R. Moraes (1990) sobre Friedrich Ratzel. Da ltima dcada, queremos destacar, as teses de doutorado de Rita de Cssia Martins de Souza Anselmo (2000) sobre Everardo Adolpho Backheuser; de Aldo Dantas (2002) sobre Pierre Monbeig; de Sergio Adas (2006) sobre Orlando Valverde; e de Rui Ribeiro de Campos (2004) e Alfredo Carvalho (2007) sobre Josu de Castro.

  • INTRODUO

    19

    Todavia, embora inscrita no tempo, ela no necessariamente

    linear. Num percurso terico-epistemolgico h idas e vindas,

    sucessivas escolhas que acabam por definir continuidades e

    descontinuidades, rupturas e permanncias. Trata-se de um

    processo dialtico e ininterrupto.

    Um dado marcante da trajetria de Milton Santos foi a

    constante reviso e aprimoramento de categorias e conceitos

    internos Geografia, tais como regio, paisagem, espao geo-grfico e territrio. Isso se deveu em parte insatisfao do

    autor com o prprio contedo da disciplina em determinados

    momentos de sua histria mas, principalmente, porque a cada

    mudana no mundo e nos lugares algumas categorias podiam

    perder sua capacidade explicativa. Nessas ocasies, era preciso

    rev-las a partir dos novos contedos do territrio.

    Nesse exerccio incansvel de crtica e reviso terica, o

    processo de internalizao de categorias externas Geografia

    teve um papel dinamizador. Aqui podemos mencionar, entre

    tantas outras, tcnica, tempo e totalidade; formao scio-

    econmica e diviso do trabalho; forma, funo, processo e

    estrutura; objeto, ao, norma e intencionalidade. Este um

    ponto essencial na trajetria do gegrafo e procurar reconhecer

    alguns momentos desse processo foi um dos passos decisivos

    no encaminhamento desta pesquisa.

    Para realizar essa interpretao da trajetria epistemolgi-

    ca de Milton Santos, outros passos foram realizados. Entretan-

    to, no foram rgidos, nem operacionalizados numa ordenao

    especfica, mas entendidos como um caminho a percorrer no

    qual amos e voltvamos segundo a necessidade de cada mo-

    mento na reconstruo dessa gnese e evoluo de conceitos e

    categorias.

    Um deles foi identificar grandes temas trabalhados por

    Milton Santos ao longo de mais de cinco dcadas de estudos e

  • INTRODUO

    20

    pesquisa. Foram eles, estudos urbano-regionais na Bahia,

    especificidade da urbanizao nos pases subdesenvolvidos,

    epistemologia da geografia e ontologia do espao geogrfico e

    teorizao sobre o territrio brasileiro no perodo da globali-

    zao.

    Outro passo foi buscar reconhecer contextos2 que marca-

    ram essa trajetria, j que o exerccio de elaborao terica no

    ocorre de maneira isolada das conjunturas histricas e geo-grficas. Aqui nossa nfase dada aos lugares onde Milton

    Santos viveu e lecionou, proporcionando-lhe distintas possibi-

    lidades de estudo, pesquisa, dilogos e participao em debates

    tericos, e que foram decisivos na construo de sua viso de

    mundo. Apresentar, portanto, esses contextos como pano de

    fundo e as relaes estabelecidas entre eles e a produo e

    reviso de idias elaboradas pelo autor foi outro aspecto da

    pesquisa.

    Para a realizao dessa leitura, adotamos como partido de

    mtodo a abordagem contextual, proposta por Vincent Ber-

    doulay ([1981] 2003). Para esse gegrafo francs, a abordagem

    contextual nos trabalhos sobre a histria da Geografia acom-

    panhada das seguintes orientaes metodolgicas. Um primei-

    ro pressuposto considera que os sistemas de pensamento po-

    dem tanto mudar quanto manter a continuidade de determi-

    2 Alguns trabalhos, que enfatizaram debates conceituais na Geografia

    e contextos histricos, foram referncia para a nossa pesquisa. Destacamos, entre outros, os trabalhos de Camille Vallaux (1923), Carl Sauer (1927; in Lobato Corra, 2000), Milton Santos (1978), Vincent Berdoulay (1981 e 1988), Manuel Correia de Andrade (1982), Jos Estebanez (1982), Antonio Carlos Robert Moraes (1983 e 2002), Horcio Capel ([1984], 1989a e 1989b), Carlos Augusto Figueireido Monteiro (1980), Paul Claval (1995), Joaqun Bosque Maurel e Francisco Ortega Alba (1995), Paulo C. da Costa Gomes (1996), Lia Osrio Machado (2000), Eliseu Sposito (2003) e Silvio Bray (2008).

  • INTRODUO

    21

    nadas idias e que no existe uma dicotomia radical entre fato-

    res internos e externos na elaborao desses sistemas de pen-

    samento. O segundo pressuposto que no devemos desconsi-

    derar nenhuma tendncia geogrfica, mesmo que algumas

    delas no tenham sobrevivido; enquanto o terceiro postula a

    necessidade de identificao e estudo aprofundado das princi-

    pais questes que envolvem uma sociedade, ainda que, num

    primeiro momento, algumas delas no paream ter influenciado a evoluo de idias geogrficas. O quarto pressu-

    posto no adotar um conceito de comunidade cientfica to

    estreito como o que freqentemente encontrado na sociolo-

    gia da cincia. J o quinto e ltimo pressuposto que a aborda-

    gem contextual consiste menos em examinar a possvel

    influncia de uma idia do que em verificar as razes que

    esto por trs da demanda ou uso dessa idia (Berdoulay,

    [1981], 2003, pp. 51-53).

    Ainda como recurso de mtodo, elaboramos trs eixos de

    anlise: a centralidade da Tcnica, os dilogos com a Economia

    Poltica e a busca pela Cidadania como prxis. Associados

    abordagem contextual e aos passos da pesquisa acima mencio-

    nados com nfase no processo de internalizao de categorias

    externas disciplina os eixos embasaram a leitura aqui pro-

    posta da trajetria do gegrafo baiano.

    A Tcnica foi estabelecida como eixo por se tratar de uma

    categoria que esteve sempre presente e que foi se tornando

    central na dmarche do gegrafo baiano. crucial enfatizar

    que o exerccio de internalizao desta categoria no se deu

    isoladamente.

    Os dilogos estabelecidos com a Economia Poltica, cuja

    intensidade ficou mais evidente a partir da dcada de 1970,

    possuem tambm um papel crucial nessa trajetria, possibili-

    tando, entre outros aspectos, releituras da prpria Tcnica.

  • INTRODUO

    22

    Quanto busca pela Cidadania como uma prxis, tambm

    a propomos como um dos eixos de anlise por sua forte pre-

    sena na vida e na produo terica de Milton Santos.

    preciso frisar que os eixos, como instrumentos de anli-

    se, no so vistos de forma isolada, ou seja, como se apontas-

    sem trajetrias estanques na nossa interpretao do autor. Ao

    contrrio, ao longo do texto buscamos que eles aparecessem de

    maneira imbricada, apresentando maior ou menor fora e, principalmente, enquanto fio condutor de cada um dos quatro

    captulos e da concluso. Em nosso esforo, buscamos fazer

    com que eles fossem todo o tempo transversais na leitura da

    trajetria epistemolgica do gegrafo.

    Em nosso universo de seleo para a realizao dessa leitu-

    ra foram considerados livros, publicaes menores, artigos em

    revistas cientficas, artigos em livros coletivos, editorias e arti-

    gos em jornais e revistas de maior circulao publicados por

    Milton Santos. No tivemos acesso apenas a alguns poucos

    artigos publicados em revistas italianas e argelinas, bem como

    a eventuais trabalhos que no constam em seu curriculum

    vitae.

    Quanto ao critrio para a seleo dos trabalhos aqui men-

    cionados, optamos principalmente por aqueles cuja relevncia

    nos diferentes momentos de sua trajetria fra marcada por

    uma maior sistematizao das idias s quais o autor vinha se

    dedicando. Esses casos correspondem, majoritariamente,

    grande parte de seus livros. Adicionalmente, foram seleciona-

    dos trabalhos que marcam a apario de uma idia ou proposi-

    o, dos quais a maioria composta por artigos, muitos deles

    resultado de apresentaes pblicas, como conferncias e pa-

    lestras. fundamental ressaltar que o critrio para a seleo

    dos trabalhos efetivamente apresentados e analisados aqui teve

    o cuidado de no partir de uma metodologia estabelecida a

  • INTRODUO

    23

    priori. Tal seleo foi se estabelecendo e fortalecendo conforme

    o encaminhamento da pesquisa.

    No que diz respeito ao acesso ao conjunto da obra do ge-

    grafo, queremos destacar a importncia do trabalho realizado

    junto ao Acervo Milton Santos3, iniciado em agosto de 2005. Na

    realidade, muito mais que a possibilidade de acesso obra, a

    aproximao do acervo representou sobretudo um forte cha-

    mado para o aprofundamento no conhecimento e anlise da teoria elaborada pelo gegrafo baiano.

    Parece-nos fundamental ressaltar aqui que no optamos

    por um estudo da obra de Milton Santos, mas sim como j

    apontado por uma anlise abrangente de sua trajetria epis-

    temolgica a partir de uma histria das idias. preciso tam-

    bm enfatizar que no tivemos a pretenso de realizar uma

    sociologia do conhecimento ou uma histria da cincia. Tam-

    pouco pretendemos elaborar uma biografia do gegrafo baia-

    no.

    Apesar de ter convivido com Milton Santos entre os meses

    de junho de 1998 e junho de 20014, seja como orientanda de

    mestrado, seja como colaboradora na organizao de seus tra-

    balhos cotidianos no Departamento de Geografia da Universi-

    3 O Acervo Milton Santos, doado ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo, composto pela biblioteca pessoal do gegrafo e seu arquivo de documentos. A pesquisa em seu arquivo de documentos incluiu a organizao e a sistematizao das referncias de consulta catalogadas em seu banco de dados, elaborado pelo professor Manoel Lemes da Silva Neto (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Catlica de Campinas). O contedo do Acervo no foi tratado nesta tese. Sobre alguns aspectos da composio e organizao do arquivo de documento: Flavia Grimm (2011a).

    4 Um depoimento a respeito desses anos de convvio: Flavia Grimm (2011b).

  • INTRODUO

    24

    dade de So Paulo, juntamente gegrafa Paula Borin, nunca o

    entrevistei sobre sua prpria trajetria terica. Contudo, alguns

    depoimentos e conversas realizadas sobre sua vida profissional

    e acadmica e sobre a histria da disciplina encontram-se aqui

    presentes a partir de algumas lembranas.

    As inmeras entrevistas por ele concedidas a jornais e re-

    vistas cientficas, principalmente a partir de meados dos anos

    1990, tambm representam um rico material para pesquisa. De algumas dessas entrevistas buscamos recuperar apenas aspec-

    tos contextuais de sua vida acadmica, evitando assim eventu-

    ais influncias da anlise que ele prprio fazia de sua trajetria.

    Com base, portanto, na abordagem contextual (Berdoulay,

    [1981] 2003), nas relaes entre os eixos adotados, bem como

    no processo de internalizao de categorias externas Geo-

    grafia, propomos a seguinte leitura da trajetria epistemolgica

    de Milton Santos exposta nesta tese.

    O texto encontra-se dividido em quatro captulos e uma

    concluso. O captulo 1, A tcnica como elemento descritivo e a geo-

    grafia regional, traz alguns apontamentos sobre a importncia

    das primeiras leituras de textos e livros de gegrafos franceses

    em sua formao, bem como a participao em reunies pro-

    movidas pela Associao dos Gegrafos Brasileiros. Nele anali-

    samos alguns escritos sobre a zona cacaueira na Bahia a partir

    do enfoque de uma geografia regional e das tcnicas como

    formas de fazer, formas de organizar o meio geogrfico. Apon-

    tamos ainda como a aproximao com a geografia aplicada

    promoveu uma primeira reviso, por parte do gegrafo, da

    chamada geografia regional clssica. Por fim, busca demonstrar

    como as reflexes sobre as modernizaes vistas aqui como

    um dilogo efetivo entre as noes de tcnica e tempo e seus

    impactos nos pases perifricos levaram a uma crtica mais

  • INTRODUO

    25

    contundente noo clssica de regio. Foram aqui tratados

    trabalhos realizados enquanto Milton Santos vivia na Bahia

    (entre 1948 e 1964) e alguns pontos do livro O trabalho do ge-

    grafo no Terceiro Mundo ([1971a] 1978a).

    Neste captulo o eixo da tcnica foi enfatizado, num pri-

    meiro momento, destacando-se sua formao na geografia

    clssica francesa e o entendimento dessa noo como formas

    de fazer e, posteriormente, nos dilogos com a noo de tem-po. Sobre o eixo cidadania, foram destacadas sua formao em

    Direito e suas atuaes como jornalista, professor, pesquisador,

    planejador, enfim, como homem pblico.

    J o captulo 2, Modernizaes, dilogos com economia

    poltica e uma teoria geogrfica da urbanizao tem como

    ponto principal a formulao da teoria dos circuitos da econo-

    mia urbana (1971). Comeamos este captulo apontando refle-

    xes e dilogos que antecedem sua formulao, tais como os

    primeiros estudos sobre uma geografia urbano-regional da

    Bahia e tambm trabalhos sobre a especificidade da urbaniza-

    o nos pases do Terceiro Mundo, com nfase nos dilogos

    com a economia urbana. Aqui esto alguns escritos que abor-

    dam mais especificamente aspectos sobre a Bahia, publicados

    ao longo dos anos 1950 at meados de 1960, e outros voltados

    para as grandes cidades do Terceiro Mundo e as especificidades

    de seu processo de urbanizao, elaborados principalmente

    aps 1964, ano em que, exilado do Brasil, foi viver na Frana

    (onde permaneceu entre dezembro de 1964 e meados de 1971).

    Partimos do pressuposto que esses debates antecedentes,

    somados anlise do impacto das modernizaes no Terceiro

    Mundo e ao aprofundamento dos dilogos com a economia

    poltica embasaram a elaborao da teoria dos circuitos da

    economia entre o final da dcada de 1960 e princpios da dca-

    da de 1970. Encerrando este captulo, apresentamos algumas

  • INTRODUO

    26

    consideraes sobre certos trabalhos que tambm evidenciam

    a aproximao entre uma teoria geogrfica da urbanizao e a

    economia poltica realizados a partir de meados dos anos 1980,

    quando Milton Santos j havia voltado para o Brasil.

    Quanto aos eixos de anlise, a partir do incio da dcada de

    1970 podemos afirmar que os dilogos com a economia poltica

    se aprofundaram e passaram efetivamente a integrar suas re-

    flexes. Ao longo desses anos, a noo de tcnica, que j fra associada de tempo nos debates sobre as modernizaes, foi

    revista e relacionada a foras produtivas e relaes de produ-

    o. J o eixo da cidadania permite destacar a constante preo-

    cupao de Milton Santos com as desigualdades sociais e regi-

    onais, bem como as disparidades existentes entre pases cen-

    trais e perifricos.

    No captulo 3, denominado Perodo tecnolgico e a neces-

    sidade de uma reviso epistemolgica na Geografia, encon-

    tram-se debates que, paralelos formulao e aprofundamento

    da teoria dos circuitos da economia urbana e tambm embasa-

    dos num rico dilogo com a economia poltica, voltaram-se

    para aspectos da epistemologia da geografia e de uma ontolo-

    gia do espao geogrfico. Aqui so enfatizados alguns trabalhos

    elaborados aps meados da dcada de 1970 e ao longo dos anos

    1980. Durante os anos 1970 (entre meados de 1971 e de 1977), o

    gegrafo baiano viveu e lecionou em diferentes pases, como

    Estados Unidos, Canad, Venezuela e Tanznia, retornando ao

    Brasil em meados de 1977. Principalmente durante os anos

    vividos na Tanznia e, novamente, nos Estados Unidos (Co-

    lumbia University), entre 1974 e 1977, ganham fora as refle-

    xes sobre epistemologia da geografia e ontologia do espao.

    Momento marcado pelos debates colocados pela geografia

    radical e, no Brasil, pela geografia crtica.

  • INTRODUO

    27

    Foi ao longo desses anos que partindo da internalizao da

    categoria totalidade e da incorporao de categorias e concei-

    tos oriundos da economia poltica, Milton Santos props o

    entendimento do espao geogrfico visto como objeto da

    disciplina como uma totalidade e como instncia da socieda-

    de. Isso certamente representou um salto epistemolgico em

    sua trajetria, juntamente a noo de forma-contedo. So-

    mam-se a essas novas propostas tericas os dilogos sobre modo de produo e Estado-nao que, vistos a partir dos con-

    tedos do territrios, fomentaram a elaborao da categoria de

    formao socioespacial (1977).

    Quanto ao eixo centralidade da tcnica, podemos afirmar

    que mais uma vez esta categoria alcana um novo patamar em

    sua teorizao, com a proposio do conceito de meio tcnico-

    cientfico (1980). Dando continuidade s suas reflexes sobre

    epistemologia da geografia, pautado nos novos contedos do

    territrio possibilitados pelo perodo tecnolgico, o gegrafo

    props a releitura de categorias internas disciplina, como

    paisagem e regio, e aprimorou seus debates ontolgicos sobre

    o espao geogrfico, alm de levantar questionamentos sobre a

    categoria territrio. Sobre o eixo cidadania, podemos acrescen-

    tar, s inquietaes j existentes, os apontamentos sobre o

    territrio, o consumo e a ausncia de uma cidadania plena

    num Brasil marcado pelo milagre econmico, bem como a

    sua participao, a partir da Geografia, dos debates que ante-

    cederam a Constituinte de 1988.

    J o captulo 4, O fenmeno tcnico e uma teoria social

    crtica do espao geogrfico e do territrio usado, inicia-se

    com apontamentos sobre o perodo de globalizao (dcada de

    1990), marcado por uma acelerao contempornea, pela unici-

    dade da tcnica, a convergncia dos momentos e o motor nico

    e pela constituio de um meio tcnico-cientfico informacional,

  • INTRODUO

    28

    onde se destacam uma tecnoesfera e uma psicoesfera. Como

    em outros momentos de sua trajetria, o fenmeno da urbani-

    zao relido a partir de seus novos contedos, especialmente

    no Brasil.

    O contexto de globalizao, principalmente devido aos

    seus contedos territoriais, autoriza a empiricizao da univer-

    salidade, j apontada por Milton Santos em meados dos anos

    1980. Trata-se de um momento nunca visto na histria que, em nosso entender, permite que na trajetria epistemolgica do

    gegrafo a categoria tcnica seja entendida em sua totalidade,

    ou seja, como fenmeno tcnico, alcanando efetivamente uma

    centralidade em seu corpus terico. A sistematizao mxima

    de sua teoria crtica do espao deu-se no livro A natureza do

    espao. Tcnica e tempo. Razo e emoo (1996).

    Tendo o fenmeno tcnico como aporte para a elaborao

    de uma epistemologia interna geografia, Milton Santos enfa-

    tizou a necessidade de entendermos o espao geogrfico com

    um hbrido, cujo contedo inclui, alm dos sistemas de objetos

    e sistemas de aes funcionando indissocivel e contraditoria-

    mente, as normas e a intencionalidade. Aqui, mais do que nas

    etapas precedentes, o processo de internalizao de categorias

    teve um efeito extremamente dinamizador.

    Enfatizamos ainda sua constatao de que a disciplina te-

    ria alcanado, nessa passagem dos sculos XX ao XXI, sua ma-

    turidade epistemolgica e tambm sua proposio em pensar-

    mos a geografia como uma filosofia das tcnicas e como uma

    epistemologia da existncia.

    O mesmo momento histrico, que permite a existncia de

    espaos da racionalidade hegemnica, intensifica e aprofunda as

    desigualdades entre as pessoas, os lugares, os pases. Os diversos

    atores sociais indivduos, empresas, instituies apresentam

    cada vez mais distintas possibilidades de uso desse espao geo-

  • INTRODUO

    29

    grfico compreendido como um hbrido. Em meados dos anos

    1990, Milton Santos formulou a categoria territrio usado, pro-

    posta como sinnimo de espao geogrfico.

    Aprofundando nossa anlise a partir do eixo da busca da ci-

    dadania como prxis, ao longo dos anos 1990 Milton Santos foi

    bastante enftico em seus escritos e aparies pblicas quanto

    aos problemas causados pela ausncia de um projeto nacional.

    Somam-se ainda duras crticas ao papel do intelectual pblico e da Universidade.

    Certamente, em seus trabalhos realizados ao longo da dca-

    da de 1990, at o ano de seu falecimento em 2001, as conexes

    entre os eixos da tcnica, da economia poltica e da cidadania

    tornam-se cada vez mais sofisticadas.

    Na concluso, apresentamos uma proposta de periodizao

    para a trajetria epistemolgica de Milton Santos, na qual reto-

    mamos os trs eixos de anlise e demais aspectos levantados ao

    longo dos quatro captulos. Buscamos ainda enfatizar continui-

    dades existentes em sua trajetria.

    Finalizando queremos mais uma vez reforar a opo por

    uma anlise abrangente da trajetria de Milton Santos, a partir da

    gnese e evoluo de conceitos e categorias, por acreditarmos

    que tal esforo pode colaborar para um debate epistemolgico da

    geografia.

    Temos total conscincia que o estudo sobre o percurso teri-

    co de um grande pensador jamais se esgota em um trabalho ou

    nas proposies de um pesquisador. Ao contrrio, da pluralida-

    de de posies que os debates se enriquecem.

    Parafraseando Pierre Daix (1995), em seu livro Fernand Brau-

    del. Uma biografia, no temos a pretenso de ensinar Milton

    Santos a seus pares ou a seus alunos, mas sim em tempos de

    uma busca desenfreada pelas especializaes que fragmentam o

  • INTRODUO

    30

    saber de chamar a ateno para a importncia de uma grande

    geografia, uma geografia totalizante.

  • 31

    CAPTULO 1

    A tcnica como elemento descritivo e a geografia regional

    Introduo

    inegvel a centralidade da categoria tcnica nos debates

    e teorizaes realizados por Milton Santos, a tal ponto de ter-

    mos determin-la como um partido de mtodo, como um dos

    eixos que propomos para a leitura de sua trajetria. Aqui vale

    ressaltar que tal centralidade uma leitura nossa j que em seus primeiros trabalhos no sero encontrados debates ou

    definies para a tcnica entendida como categoria na anlise

    geogrfica. Todavia, suas primeiras leituras acabariam por

    determinar uma escolha que acompanharia suas reflexes ao

    longo de dcadas.

    Neste captulo, apontaremos a importncia, em sua forma-

    o, das primeiras leituras realizadas ao longo dos anos 1950,

    bem como a participao em reunies promovidas pela Associ-

    ao dos Gegrafos Brasileiros, oportunidade de debates e de

    aproximao a diferentes bibliografias. Interessado principal-

    mente em autores vinculados chamada geografia regional

    francesa, teve contato com trabalhos nos quais entendemos

    que a tcnica corresponde a um elemento descritivo do meio

  • CAPTULO 1

    32

    geogrfico. Aqui os conceitos de gnero de vida e de habitat

    foram pilares em seus estudos, principalmente, sobre a zona

    cacaueira baiana.

    A partir da dcada de 1960, devido aos dilogos com a geo-

    grafia aplicada promovidos principalmente pelo convvio

    com seu orientador de doutorado Jean Tricart , a noo clssi-

    ca de regio fortemente presente nas monografias regionais

    comea a ser revista. Nesse momento, Milton Santos passou a dedicar-se mais aos esforos de regionalizao para a anlise da

    organizao espacial visando, em alguns casos, uma efetiva

    interveno nesta. Nesse contexto, a criao do Laboratrio de

    Geomorfologia e Estudos Regionais (1959) em Salvador (BA) e

    as pesquisas ali realizadas representaram um primeiro questio-

    namento sobre o conceito de regio e o papel da geografia

    regional nos moldes clssicos.

    Essa reviso intensificou-se principalmente a partir do in-

    cio da dcada de 1970, quando o autor buscou um dilogo mais

    efetivo entre as categorias tcnica e tempo. A partir deste mo-

    mento, o papel das modernizaes, presentes nos avanos nos

    meios de transporte e comunicao e nas mudanas ocorridas

    devido a maior internacionalizao da economia, passaria a ser

    um ponto crucial em suas reflexes e, para o gegrafo, eviden-

    ciaria as limitaes da capacidade explicativa da regio clssica.

    1.1. Geografia regional e a noo de tcnica

    1.1.1. Formao e primeiras reflexes geogrficas

    A aproximao aos trabalhos de alguns gegrafos franceses

    foi, indubitavelmente, um marco na formao de Milton San-

    tos. Foi durante seus estudos escolares que tal aproximao se

    deu. Em diferentes ocasies entrevistas ou apresentaes

    pblicas Milton Santos enfatizou a importncia que o livro de

  • CAPTULO 1

    33

    Josu de Castro (1908-1973), Geografia Humana Estudo da

    paisagem cultural do mundo (1939) teve nesse processo5. Do

    mesmo autor, o livro Geografia da fome (1946) marcaria no

    apenas o pensamento de Milton Santos mas tambm os deba-

    tes da poca6.

    5 Em entrevista realizada por Jos Corra Leite, Odette Seabra e Mnica de Carvalho, Milton Santos (Territrio e sociedade. Entrevista com Milton Santos, 2000, p. 75) afirmou que muita coisa que ns hoje damos, em parte, na ps-graduao era ensinada no ginsio, porque havia um compndio de Josu de Castro, chamado Geografia humana, que apresentava, com simplicidade, a geografia francesa.

    6 Segundo Antnio Alfredo Teles de Carvalho (2007, p. 16), esta foi a obra seminal do mdico e gegrafo pernambucano Josu de Castro e constituiu-se num marco; primeiro, por introduzir um tema indito dentro da Geografia no pas, significativamente influenciada pela Escola Francesa que, estudando os gneros de vida, naturalmente voltava-se anlise da alimentao, sem entrementes fazer referncia a fome; segundo, por provar que a fome consistia numa expresso biolgica dos malefcios sociais especialmente nas periferias do capitalismo; e terceiro, em face a essa leitura, pelas possibilidades acenadas anlise do social na Geografia. Como sabido, importante nome da geografia brasileira, Josu de Castro teve um momento de grande visibilidade durante a dcada de 1950, quando presidiu o Conselho para Agricultura e Alimentao da Organizao das Naes Unidas (FAO), entre 1952-1955. No entanto, como apontam Bernardo Manano Fernandes e Carlos Walter Porto-Gonalves (2007, p. 13), durante os quatro anos que esteve na presidncia do Conselho Executivo da FAO, Josu de Castro lutou para implantar princpios essenciais que desempenhassem os objetivos da organizao. Todavia, o que verificou foi que os interesses dos pases ricos e de grupos econmicos impediam a proposio de polticas pblicas como a reforma agrria, a criao de reservas alimentares de emergncia, bem como programas de segurana alimentar.

  • CAPTULO 1

    34

    Certamente a obra Geografia humana foi o primeiro convi-

    te a uma maneira de se pensar a disciplina. Chamamos aqui

    maneira de pensar a geografia o fato de Milton Santos, desde

    muito cedo, se interessar por autores que, em sua maior parte,

    dedicaram-se aos estudos regionais nos quais a tcnica, enten-

    dida aqui como formas de fazer e de organizar o meio geo-

    grfico, estava presente e tinha um papel importante.

    No entanto, a busca pelas obras de gegrafos franceses no foi um movimento exclusivo do gegrafo baiano. notria a

    fora e influncia da chamada escola francesa (ou de determi-

    nados autores a ela pertencentes) em grande parte da geografia

    feita no Brasil na primeira metade do sculo XX (M. Santos,

    1978; Monteiro, 1980; Moraes, 1983; Correia de Andrade, 1994;

    Gomes, 1996; Abreu, 2006). Entre outros aspectos, teve impor-

    tncia nesse contexto a presena do professor Pierre

    Deffontaines na instalao dos cursos de Geografia e Histria

    tanto em So Paulo quanto no Rio de Janeiro.

    Em meados da dcada de 1930, devido cooperao cultu-

    ral francesa, Pierre Monbeig assumiria a ctedra de Geografia

    na Universidade de So Paulo, momento em que, como apon-

    tou Maria Amlia Mascarenhas Dantes e Amlia Imprio Ham-

    burguer (1996), principalmente na rea de humanidades e de

    filosofia da Universidade de So Paulo, estreitaram-se os inter-

    cmbios entre a Frana e o Brasil, com a presena de pesquisa-

    dores daquele pas aqui. No Rio de Janeiro, no incio da dcada

    de 1940, Francis Ruellan tornou-se professor na ento Univer-

    sidade do Brasil (Rio de Janeiro) e assistente tcnico do Conse-

    lho Nacional de Geografia (Monteiro, 1980).

    Falamos na chamada escola francesa de geografia pois

    compartilhamos a idia de Vincent Berdoulay (1981) segundo a

    qual tal escola, sendo formada por diferentes pensadores, no

    pode ser vista como um bloco homogneo. Segundo Berdoulay

  • CAPTULO 1

    35

    (1981), a formao de uma escola francesa de geografia, entre

    os anos de 1870 e 1914, incluiu pensadores com divergncias

    nas vises de mundo e ideolgicas que levariam a distintos

    crculos de afinidade, marcados tambm pelos diferentes

    debates levantados, pelas possibilidades ou impossibilidades de

    acesso a instituies de ensino e pesquisa e, conseqentemen-

    te, maior ou menor visibilidade e influncia de seus trabalhos7.

    A forte presena de pensadores franceses, no apenas ge-grafos, como tambm filsofos, na formao de Milton Santos

    contou com um facilitador que foi o fato dele desde muito

    cedo dominar o idioma. Aqui foi central a educao que rece-

    beu desde criana de seus pais.

    Sobre sua infncia, queremos apontar aqui alguns aspectos

    que nos parecem bastante decisivos no desenrolar de seus

    estudos e de sua vida profissional. Um deles foi o fato de at os

    dez anos de idade ter sido educado em casa pelos pais, profes-

    7 Dentre os crculos de afinidade promovidos nas dcadas mencionadas, Berdoulay (1981) menciona: o de autores do inventrio terrestre; o de especialistas de geografia histrica; o de Drapeyron (fundador da Sociedade de Topografia na Frana em 1876); o de Levasseur (alm de gegrafo, reconhecido tambm como historiador, economista e estatstico, e que atuou em distintas Sociedades e Universidades francesas); o crculo da cincia social (fiel s idias de Le Play e formada por um grupo em torno de Demolins, Tourville e Rousiers); o dos gegrafos em posio marginal (incluindo Elise Reclus e familiares, como seus irmos Elie e Onsime); o dos morflogos sociais e o dos vidalianos. Nota-se os inmeros debates existentes paralelamente s propostas de Paul Vidal de La Blache (1845-1918) e seus discpulos que, corriqueiramente, so compreendidos como a escola francesa de geografia de fins do sculo XIX. Tambm analisando a formao dessa escola a partir dos trabalhos de Paul Vidal de La Blache, enfatizando a produo de Andr Cholley (1885-1968), Armen Mamigonian (2000) escreveu A escola francesa de geografia e o papel de A. Cholley.

  • CAPTULO 1

    36

    sores, Francisco Irineu dos Santos e Adalgisa Umbelina de

    Almeida Santos8. Essa primeira formao, alm da alfabetiza-

    o e dos estudos de lgebra, incluiu o aprendizado do idioma

    francs, o que seria um facilitador em sua aproximao a auto-

    res franceses.

    Em 1937, aos dez anos de idade, Milton Santos seguiu para

    Salvador onde foi estudar no Instituto Bahiano de Ensino, es-

    cola leiga e privada que funcionava tambm como internato para meninos (e externato para meninas). Deixava assim os

    pais que continuaram vivendo em Alcobaa at 1940, quando

    tambm retornariam para a capital. Entre 1937 e 1941, estudan-

    do e vivendo no Instituto, em algumas ocasies, lecionou para

    colegas de turmas mais jovens quando era necessrio substituir

    algum professor. Como j apontamos, foi justamente durante

    esse perodo que teve contato com o livro de Josu de Castro.

    A partir de 1942, enquanto realizava o curso preparatrio

    pr-jurdico9 no Colgio da Bahia (o correspondente ao atual

    8 Nascido em 03 de maio de 1926 na cidade baiana de Brotas de Macabas, na Chapada Diamantina, Milton Santos l viveu por menos de um ano. Como seus pais eram professores recm-formados, tiveram que lecionar em diferentes cidades no interior e no litoral do Estado antes de conseguirem um posto em escolas de Salvador. Dessa forma, em 1927, seguirem de Brotas para Ubaitaba (antiga Itapira), onde permaneceram por trs anos, e da para Alcobaa. Foi nesta cidade litornea no sul da Bahia que o gegrafo viveu a maior parte de sua infncia, entre os anos de 1930 e 1936. Vale relembrar que no nossa inteno aqui recuperar a histria de sua infncia e sim mencionar aspectos que consideramos decisivos em sua formao.

    9 Sobre esse perodo afirmou o gegrafo: aps o bacharelado, para ir para a faculdade havia trs cursos preparatrios, cada um de dois anos, o chamado pr-medicina, o pr-engenharia e o pr-jurdico, que os outros colegas chamavam de pr-judicial. Tnhamos geografia humana, lgica, psicologia, economia

  • CAPTULO 1

    37

    Ensino Mdio), comeou a lecionar geografia no Instituto Ba-

    hiano, onde continuou vivendo, tendo assim o seu sustento.

    Neste mesmo ano criou, com alguns colegas, a Associao dos

    Estudantes Secundaristas Brasileiros (AESB), o que j evidencia

    uma aptido para a participao em diferentes formas de orga-

    nizao poltica (no partidria) e, futuramente, para a atuao

    em cargos pblicos, situao que marcaria o perodo em que

    viveu na Bahia at 1964 (voltaremos a esse tema mais adiante). Milton Santos manteve suas atividades docentes ao ingres-

    sar, em 1944, na Faculdade de Direito da Bahia. A escolha pelo

    Direito esteve em parte vinculada importncia que seu tio

    materno Agenor, advogado, teve em sua vida, mas tambm s

    dificuldades que os jovens negros, numa Bahia dos anos 1940,

    tinham para cursarem outras faculdades, como por exemplo de

    engenharia e de medicina. A escolha pela prpria geografia no

    era possvel nesse momento, j que o curso no era oferecido

    em Salvador.

    Ao longo de sua infncia, quando foi morar em Alcobaa e

    durante a realizao dos estudos escolares e parte do curso de

    Direito em Salvador, o Brasil encontrava-se nos quinze anos de

    governo do presidente Getlio Vargas (governo provisrio,

    entre 1930 e 1934; governo constitucional, entre 1934 e 1937; e

    Estado Novo, entre 1937 e 1945). poca em que o pas via forta-

    lecer seu processo de industrializao a partir, principalmente,

    poltica, histria da literatura, histria da filosofia, histria das idias polticas, histria e vamos de novo Plato na histria da filosofia, da literatura e da poltica. Nos dois anos de preparao para a faculdade lamos Charles Gide, um grande economista francs, uma espcie de papa da formao escolar no Brasil. Tnhamos uma formao confluente, porque vamos esses grandes autores atravs de diversos prismas. Era como que um mundo prprio o mundo do ginsio e o do colgio, que ento se chamava curso complementar (M. Santos, 2000, pp. 75-76).

  • CAPTULO 1

    38

    de investimentos estatais no setor de base, com a criao da

    Companhia Siderrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ),

    no ano de 1941, no ano seguinte a criao da Companhia Vale

    do Rio Doce (CVRD), voltada para a explorao de minrios

    (principalmente de ferro) no Quadriltero Ferrfero, em Minas

    Gerais. Tratava-se de um processo marcado por uma forte cen-

    tralizao poltico-administrativa na esfera federal, um contex-

    to de modernizao centralizadora (Messias da Costa, 1988), que acabaria numa ditadura poltica.

    At formar-se advogado em 1947, Milton Santos viu tam-

    bm o mundo passar por importantes mudanas durante e

    aps a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como o rompi-

    mento entre o governo dos Estados Unidos e o governo soviti-

    co e a criao, em 1948, da Organizao dos Estados America-

    nos (OEA), da qual o Brasil participou ativamente. Tratava-se

    de um mundo que se tornava bipolar e, nesta configurao, o

    Brasil aproximava-se cada vez mais do governo norte-

    americano de Harry Truman (1945-1952). Foi um momento na

    histria em que, a partir da conferncia de Bretton Woods

    (1944), estabeleceram-se as condies para um avano brutal

    do capitalismo, com a adoo do padro dlar e o estabeleci-

    mento de um conjunto de normas, prticas e instituies que

    assegurassem as transaes financeiras para alm das fronteiras

    nacionais. Perodo tambm em que foram criados o Fundo

    Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Internacional para

    Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD), atual Banco Mundial.

    No Brasil, em 1945, Getlio Vargas j havia sido deposto

    aps 15 anos na presidncia do pas. No ano seguinte, a Consti-

    tuinte de 1946 era elaborada e o governo Gaspar Dutra (1946 a

    1951) iniciava-se. Tratava-se de um territrio que, ao longo da

    primeira metade do sculo XX, havia passado por importantes

    mudanas, tais como um intenso crescimento populacional,

  • CAPTULO 1

    39

    marcado pelas crescentes correntes migratrias, uma inten-

    sificao do processo de urbanizao e industrializao10, so-

    bretudo no Sudeste, responsveis pelas novas relaes entre as

    cidades e entre estas e o campo11.

    Foi nesse contexto de meados do sculo XX que, bacharel

    em Direito, Milton Santos realizou em 1948 um concurso para

    o Colgio Municipal de Ilhus, sendo aprovado como professor

    de geografia. A partir de ento passou a viver nesta cidade, onde permaneceria at 1953. Durante esses anos, alm de pro-

    fessor de geografia, foi tambm correspondente do jornal A

    Tarde, a convite de seu proprietrio Simes Filho (Calmon,

    1996), e atuou ocasionalmente como advogado. Como corres-

    10 Segundo Francisco Capuano Scarlato (1996), a populao brasileira passou de cerca de 17,4 milhes em 1900 para 41,2 milhes em 1950. O autor enfatiza ainda o papel do transporte ferrovirio no crescimento da urbanizao no interior do Brasil durante essa primeira metade do sculo XX. Para o gegrafo, a ferrovia foi no Brasil o grande elo de ligao entre a urbanizao do litoral e a do interior. Apesar das grandes cidades brasileiras estarem localizadas no litoral ou em sua proximidade, o transporte martimo teve pouca importncia para a integrao desses centros urbanos litorneos. Isto se explica pelo origem agroexportadora da economia brasileira (Scarlato, 1996, p. 429).

    11 Maurcio de Almeida Abreu (2005) aponta que tais mudanas j comeavam a ocorrer no incio da dcada de 1930. Segundo o gegrafo, a Revoluo de 1930, ao dar impulso industrializao, deu novos estmulos projeo da engenharia no pas. A urbanizao acelerada que lhe foi concomitante produziu, entretanto, transformaes econmicas e sociais de vulto em todo o territrio nacional, alando as cidades a um patamar de importncia jamais atingido anteriormente. O impacto se fez sentir no s sobre a rede urbana, como atingiu tambm a relao cidade-campo. Foi, entretanto, na organizao interna das cidades, e especialmente das grandes cidades, que as mudanas foram mais rpidas e mais gritantes (Abreu, 2005, p. 175).

  • CAPTULO 1

    40

    pondente da zona cacaueira, escreveu vrios artigos para o

    jornal sobre essa importante regio da Bahia que era respons-

    vel por grande parte de sua riqueza12.

    Para participar do concurso, Milton Santos redigiu a tese O

    povoamento da Bahia, que se tornou seu primeiro livro publi-

    cado, no ano de 1948, que consideramos aqui o ponto de parti-

    da para o estudo de sua trajetria epistemolgica.

    O objetivo central do autor, como o prprio ttulo do livro evidencia, foi estudar o povoamento da Bahia determinando as

    principais causas econmicas de sua origem13. As atividades

    econmicas enfatizadas ao longo do livro foram a lavoura da

    cana-de-acar e a indstria aucareira, a criao do gado e a

    minerao, alm do papel da cultura do cacau no sul do Esta-

    do.

    12 No prefcio de Zona do cacau (2 edio, 1957, p. 7): A zona cacaueira da Bahia a mais nova de nossas zonas de produo e, entretanto, a mais rica. Cabem-lhe, no conjunto do pas, cerca de 95% da produo total de cacau, o que nos confere o 2 lugar na estatstica mundial. Tem o cacau, na economia do Estado, um papel de relevo, j que de sua cultura, direta ou indiretamente, beneficia-se o errio com muito mais de metade de seu oramento, constituindo, por si s, o sustentculo de uma vida econmica. Por ora o que queremos destacar aqui apenas o papel dessa regio na Unidade da Federao, j que o livro ser comentado no prximo ponto.

    13 Para tal, o autor estudou primeiro o [...] povoamento num sentido esttico, enumerando os elementos tnicos de nossa formao, no sem apontar as causas econmicas do seu aparecimento (dos brancos e dos negros) e de sua localizao e, depois, [...] o estudo do nosso povoamento no sentido dinmico, investigando as causas de sua expanso no s no sentido do litoral, como na direo oeste (M. Santos, 1948, pp. 11-12). Importante destacar as idias de sentido esttico e sentido dinmico, o que evidencia a preocupao de compreender o povoamento como um processo.

  • CAPTULO 1

    41

    Dentre os autores citados na bibliografia, destacamos Ca-

    pistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Caio Prado Jnior, Sergio

    Buarque de Holanda, Affonso de Taunay, Alcntara Machado,

    Arthur Ramos, Haddock Lobo, Ignacio Accioly, Jos Gabriel de

    Lemos Brito, Angyone Costa, Pedro Calmon, Baslio de Maga-

    lhes, Lindolfo Rocha. Entre os gegrafos, Ayres de Casal, Teo-

    doro Sampaio, Aroldo de Azevedo, Delgado de Carvalho, Arios-

    to Espinheira, Afonso Vrzea (com Geografia do acar), Mrio Travassos (com Geografia das comunicaes brasileiras) e, com

    um trabalho especfico sobre a Bahia, Eduardo Carig. Vale

    enfatizar que o nico gegrafo francs citado foi Pierre Mon-

    beig, com a obra Ensaios de Geografia Humana Brasileira, de

    1940.

    Sobre o tema povoamento da Bahia, outros trabalhos fo-

    ram publicados nos anos seguintes14, incluindo um em co-

    autoria com a gegrafa Jacqueline Beaujeu-Garnier (1917-1995),

    uma importante interlocutora em sua trajetria a partir da

    dcada de 1960 (retomaremos no captulo 2).

    Durante os anos vividos em Ilhus, Milton Santos comeou

    a participar ativamente da Associao dos Gegrafos Brasilei-

    ros (AGB)15, que conheceu em uma de suas viagens ao Rio de

    14 Foram eles, "Distribuio geogrfica da populao bahiana", Revista do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia, Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1957, pp. 115-123; "A populao da Bahia", Boletim Geogrfico, ano XVI, n 146, Rio de Janeiro, set/out, 1958, pp. 622-625; e "La population de Bahia" (em colaborao com Jacqueline Beaujeu-Garnier), Volume Jubilaire de M. A. Lefvre, Bruxelas, 1964, pp. 204-226.

    15 Sobre a importncia da AGB em sua formao, Milton Santos mencionou que ao comear a lecionar em Ilhus, em 1948, [...] j havia encontrado a AGB (Associao dos Gegrafos Brasileiros). Vinha todos os anos para o Rio, para um curso de frias do IBGE. Vinha ouvir os colegas mais velhos que explicavam a geografia e a descobri a AGB. Era uma coisa

  • CAPTULO 1

    42

    Janeiro para participar dos cursos promovidos pelo ento Con-

    selho Nacional de Geografia (CNG). As viagens, fossem ao Rio

    de Janeiro ou So Paulo, representavam tambm uma oportu-

    nidade de acesso a bibliografias, sobretudo a livros de alguns

    gegrafos franceses que no podiam ser facilmente encontra-

    dos na Bahia.

    1.1.2. A importncia da Associao dos Gegrafos Brasileiros

    Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro (1980) denominou

    esse momento da histria da geografia no Brasil, entre os anos

    de 1948 a 1956, como perodo da cruzada agebeana de difuso da geografia. Isto se deve importncia da Associao dos

    Gegrafos Brasileiros (AGB) na elaborao de trabalhos sobre

    diferentes regies do pas e na difuso dos debates que se da-

    vam na geografia brasileira. Soma-se a esta instituio, o men-

    cionado Conselho Nacional de Geografia (CNG), ambos criados

    durante a dcada de 1930.

    sabido que a dcada de 1930 considerada um marco na

    institucionalizao da geografia no Brasil, com o estabeleci-

    mento do curso de Geografia e Histria da Faculdade de Filo-

    sofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo em 1934

    e, no ano seguinte, do curso superior de Geografia na Universi-

    dade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro).

    pequena, que funcionava como escola. Voc se reunia duas semanas, havia apresentao de papers, havia trabalho de campo, de pesquisa, elaborao dos resultados e apresentao. Era outro mundo, podia-se ficar fora 12, 15 dias. E era uma escola. Primeiro no eixo Rio-So Paulo, mas depois foi se estendendo por Pernambuco, Bahia, Minas, o Sul, promovendo um contato com gente de todos os lugares e com os grandes nomes (M. Santos, 2000, pp. 81-82).

  • CAPTULO 1

    43

    A AGB tambm foi criada no ano de 1934, tendo como grande

    promotor o gegrafo francs Pierre Deffontaines16.

    Criado em 1937, durante o governo de Getlio Vargas, no

    incio do Estado Novo, o CNG foi outra instituio de destaque

    para a elaborao e divulgao do conhecimento geogrfico.

    Para Jos Verssimo da Costa Pereira (1956), o Conselho tinha

    por objetivo promover uma cooperao geral entre servios

    oficiais e instituies particulares e de profissionais que se ocupavam da Geografia, sistematizando assim o conhecimento

    sobre o territrio brasileiro.

    Ainda durante a dcada de 1930, dois dos principais meios

    de veiculao das pesquisas realizadas nas diversas instituies

    foram a revista Geografia, uma iniciativa pioneira da AGB e que

    circulou entre os anos de 1935 e 1936, e a Revista Brasileira de

    16 Segundo Perla Zusman (1996), a AGB esteve, desde sua fundao, estreitamente vinculada Universidade de So Paulo, e no apenas cadeira de Geografia desta instituio, bem como prpria elite paulista daquela poca. Para a gegrafa argentina, a AGB apareceria como a primeira Sociedade Cientfica na rea das cincias humanas com vnculo com a Universidade de So Paulo, portanto ligada ao projeto dos mentores da Universidade. E por qu o interesse de formar uma associao de gegrafos em direta relao com a Universidade? Poderamos inferir que mais uma vez existiria uma preocupao especfica de legitimar o projeto poltico atravs de uma fundamentao j utilizada em outras circunstncias histricas no Brasil: o territrio (Moraes, 1992). Especialistas de diversas reas: gelogos, historiadores, engenheiros a partir de seus saberes especficos participam neste projeto poltico contribuindo ao conhecimento das potencialidades econmicas e dos processos de transformao territorial que acontecem em So Paulo. Com este fim, levam-se adiante uma srie de prticas prprias dos mbitos acadmicos e busca construir-se um discurso de base cientfica (Zusman, 1996, pp. 162-163).

  • CAPTULO 1

    44

    Geografia, organizada pelo CNG, que comeou a circular em

    1939.

    Importante ressaltar que no pretendemos determinar a-

    qui o ano de 1934 como o marco inicial dos trabalhos geo-

    grficos feitos no Brasil e sim como um momento decisivo da

    sua institucionalizao, j que a produo de um conhecimen-

    to geogrfico no pas j se dava desde aproximadamente mea-

    dos do sculo XIX, como apontam detalhadamente as pesquisas de Lia Osrio Machado (1995 e 2000), Perla Zusman (1996),

    Sergio Nunes (1997 e 2003), Manoel Fernandes Sousa Neto

    (2004), entre outros, incluindo Rita de Cssia Anselmo (2000)

    que, ao tratar da trajetria de Everardo Backheuser, mostrou

    justamente essa transio entre um momento pr-

    institucionalizao e os ocorridos aps 1934.

    Tambm para Antonio Carlos Robert Moraes (2004), o s-

    culo XIX no Brasil foi marcado por um contexto determinado

    pela importao de novas teorias do centro. Segundo o ge-

    grafo,

    [...] em meio a esse quadro ao longo do sculo XIX que um

    campo geogrfico comea e se conformar no Brasil, porm num processo muito marcado pela disperso e pela falta de identida-

    de disciplinar, logo, de grande indefinio institucional, com as idias europias da geografia moderna emergindo nos diversos aparatos culturais existentes no pas. [...] Em termo institucio-

    nais, a discusso dos temas e das teorias geogrficas pode ser encontrada tanto nas faculdades de direito, quanto nas de me-dicina e de engenharia, e tambm nos colgios e demais rgos

    ligados ao ensino, e ainda em comisses de demarcaes e ou-tros organismos destinados a servios referidos ao territrio. Assim, os institutos geogrficos existentes no monopolizam a

    prtica desse saber, apesar de constiturem os embries da ins-titucionalizao do campo disciplinar, servido de ponto de con-

  • CAPTULO 1

    45

    vergncia para a comunidade dispersa e no especializada dos pioneiros gegrafos brasileiros (Moraes, 2004, p. 32)

    Voltando, portanto, ao papel de destaque das atividades realizadas pela AGB a partir de fins dos anos 1940, mister des-

    tacar a elaborao das monografias regionais resultantes dos

    trabalhos de campo realizados durante os seminrios promovi-

    dos pela instituio.

    Segundo Monteiro (1980), devido a um entusiasmo criado

    aps a reformulao dos estatutos da AGB em 1945, os trabalhos

    de campo ganharam um novo mpeto a partir da Assemblia de

    Lorena, ocorrida em 194617. Desse modo, as monografias regio-

    17 A partir de ento, [...] sobretudo o trabalho de campo conjunto passou a motivar e a interessar cada vez mais os nefitos da geografia. [...] parece certo admitir-se que entre Goinia (1948) e Garanhuns (1955), houve um estilo peculiar e inconfundvel de reunies agebeanas. Sem muitos participantes ainda, trabalhava-se ativamente em equipes de campo e na cidade hospedeira, numa verdadeira extenso do treinamento recebido dos colegas vindos de outras regies. E o que era mais importante um proveitoso debate de idias a propsito das comunicaes ali apresentadas, cultivou um esprito crtico infelizmente fadado a posterior declnio (Monteiro, 1980, p. 15). Tambm sobre a situao da geografia brasileira durante as dcadas de 1940 e 1950, afirma Manuel Correia de Andrade (1977, p. 11) que [...] as principais contribuies ao desenvolvimento do conhecimento geogrfico esto contidas nas teses e contribuies ligadas Universidade de So Paulo e nos artigos publicados na Revista Brasileira de Geografia. Trabalhos esparsos, em bem menor nmero, embora de igual valor cientfico, podem ser assinalados na Bahia, em Pernambuco e em Minas Gerais, conduzidos geralmente pela atividade desenvolvida pela Associao dos Gegrafos Brasileiros, em suas reunies anuais com um grande trabalho de recrutamento de gegrafos em potencial e de professores de Geografia e com a publicao de relatrios de pesquisas feitas durante as suas Assemblias Gerais anuais. Todavia, como aponta Paulo Cesar Scarim (2000), infelizmente, em grande

  • CAPTULO 1

    46

    nais tinham um papel fundamental para, a partir das cidades

    sede das reunies, buscar compreender e analisar um pas que

    mudava, principalmente ao longo do segundo governo Getlio

    Vargas, entre 1950 e 195418.

    parte, estes trabalhos, fruto dos seminrios, continuam inditos, com exceo de alguns resultados publicados em diferentes anos na Revista Brasileira de Geografia.

    18 Nos anos anteriores ao segundo governo Vargas, ao longo do governo Dutra (1946 a 1951), entre outros grandes investimentos em infra-estrutura foi criada a Companhia Hidreltrica do So Francisco (CHESF) e feita a pavimentao da rodovia Rio-So Paulo. Aps o retorno de Getlio Vargas, que governou novamente o pas entre 1951 e 1954, deu-se continuidade ao aparelhamento do Estado e aos investimentos na indstria de bens de produo (indstria de base) e no setor energtico. Apesar de manter uma poltica nacionalista, paralelamente comeou a facilitar a entrada de investimentos de capitais privados estrangeiros no pas. Em 1952 foi fundado o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDE), voltado principalmente para acelerar o processo de diversificao industrial. Por decreto, foi criada a Petrobrs em 1953, empresa estatal responsvel pela prospeco e refino de petrleo em territrio brasileiro. Houve ainda o estabelecimento da Eletrobrs, voltada para a produo e distribuio de energia eltrica no pas. Todavia, permaneciam as disparidades regionais em territrio nacional. Para buscar enfrent-las, estabeleceu-se o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e, em 1952, foi criado o Banco do Nordeste do Brasil (BNB). Quanto regio amaznica, a antiga Superintendncia de Defesa da Borracha (SDB), criada em 1912 para proteger os preos do produto e transformada em Banco de Crdito da Borracha no ano de 1942, tornou-se o Banco de Crdito da Amaznia (BCB) em 1950. Foi durante seu segundo governo que Vargas criou a Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia (SPVEA) em 1953. Ainda sobre essa regio, em decreto-lei definiu-se a Amaznia Legal, rea de interveno para polticas econmico-regionais que inclua os estados do Par, Amazonas, Rondnia, Acre, Roraima, Amap, norte do Mato Grosso, oeste do Maranho e

  • CAPTULO 1

    47

    Sobre a 5 Assemblia dos Gegrafos Brasileiros (ocorrida

    em Belo Horizonte no ano de 1950), Milton Santos publicou

    um comentrio no livro Estudos sobre geografia, de 1953. Neste,

    composto por alguns artigos publicados em A Tarde, encontra-

    se o relato sobre a reunio, na qual estiveram presentes diver-

    sos professores estrangeiros19. Em outro texto do mesmo livro,

    O velho problema da diviso regional (pp. 23-25), foram des-

    tacadas as colocaes dos professores convidados sobre geo-grafia e regionalizao, um tema ao qual Milton Santos se de-

    dicou ao longo dessas primeiras dcadas de sua trajetria.

    Ainda neste livro encontram-se apontamentos sobre o sig-

    nificado da Geografia e sua histria. No texto A geografia de

    hoje (pp. 11-13), publicado anteriormente em A Tarde

    (21/07/1950), Milton Santos afirmou que, devido ao nome geo-

    grafia ser muito antigo, ele foi preenchido por contedos

    dinmicos, o que j demonstra sua preocupao com o uso dos

    termos cujos significados no podem ser petrificados.

    J em Geografia antiga e moderna20 (pp. 15-21), partindo

    do pressuposto que a geografia, entendida como cincia que

    se ocupa da descrio da terra e por isso foi o primeiro ramo

    atual Tocantins, ento norte de Gois (Messias da Costa, 1988; Fausto, 1994).

    19 A quinta Assemblia dos Gegrafos Brasileiros no foi um pic-nic, como, no Brasil, costumam ser os certames dessa natureza. Muito se trabalhou, em Belo Horizonte, durante os dias em que, nessa progressista cidade, se reuniram gegrafos de todos os quadrantes do pas e, mesmo de fora, como os professores Preston James, Francis Ruellan, Jorge Chebataroff, Alberto Pochintesta, alm de outros. A geografia moderna pode dizer-se que ali ganhou uma verdadeira consagrao, pela natureza dos trabalhos realizados, tanto no campo, como em seminrio. (M. Santos, 1953, p. 23)

    20 Publicado tambm na Revista de Educao e Cultura, Salvador, 1952.

  • CAPTULO 1

    48

    do conhecimento humano, props as seguintes etapas para

    sua evoluo: geografia instintiva (quando o homem antigo,

    ao necessitar sair para buscar alimentos, precisou aprender a se

    orientar); geografia designativa (quando, para aprimorar sua

    orientao, passou a designar nomes aos lugares-marcos de

    sua passagem); geografia filosfica (com os egpcios, assrios e

    gregos); geografia numrica (a partir de quando os romanos

    passaram a inventariar informaes e itinerrios); geografia cartogrfica (na Idade Mdia, relacionada feitura de mapas

    que espelhavam as concepes geogrficas dominantes na

    poca); geografia descritiva (do incio da Idade Moderna, reali-

    zada aps as navegaes, vista como uma arte geogrfica, que

    muita vez deixava de parte a realidade e invadia pelo campo

    inseguro da fantasia) e, uma ltima fase que estamos vivendo

    hoje, geografia cientfica. Esta alcanaria o patamar de cincia

    por ultrapassar as descries e os retratos dos fatos geo-

    grficos e buscar explic-los e interpret-los21.

    21 A Geografia ganha foros de Cincia, isto , passa a ser um ramo independente do conhecimento humano, quando chega a essa fase interpretativa de que falamos antes. Mas, o que lhe d realmente o carter cientfico o fato de ter ela princpios prprios, que poderemos chamar de leis, mtodos prprios e objetivos ou fins prprios (M. Santos, 1953, p. 15). Seriam os princpios, o da atividade terrestre, o da unidade terrestre, o da conexo ou correlao, o da localizao que se completa com o da extenso e o da causalidade. Quanto aos mtodos, dois grupos distintos, os fundamentais e os subsidirios. Dentre os do primeiro grupo, o mtodo da observao seria o mais importante e o comparativo de grande eficincia (p. 17). Dentre os subsidirios, foi destacado o mtodo grfico responsvel pela elaborao de mapas, cartogramas etc. e que exclusivo da Geografia. Existiriam ainda mtodos complementares, quais sejam, o mtodo histrico e o mtodo estatstico. No que diz respeito ao seu objetivo, a Gegorafia deveria se incumbir de estudar os fatos fsicos, biolgicos e

  • CAPTULO 1

    49

    Tratava-se de um momento da histria da disciplina em

    que a preocupao em afirm-la como cincia era algo muito

    importante, posio que o gegrafo acabou revendo ao longo

    das dcadas seguintes.

    Ainda no ano de 1953, foi publicado Os estudos regionais e

    o futuro da geografia (1953a). Ao analisarmos o contedo e a

    bibliografia do livro, divulgado cinco anos aps do j citado O

    povoamento da Bahia (1948), fica evidente a importncia das participaes do gegrafo baiano nas reunies da AGB, rico

    ambiente de estudo e debate.

    Neste livro nota-se que Milton Santos j havia se aproxi-

    mado de trabalhos de autores como Paul Vidal de La Blache

    (1845-1918), Lucien Gallois (1857-1941), Emmanuel De Martonne

    (1873-1955), Camille Vallaux (1870-1945), Albert Demangeon

    (1872-1940), Lucien Febvre (1878-1956), Max. Sorre (1880-1962),

    Andr Cholley (1885-1968), Ren Clozier (1888-1987), Georges

    Chabot (1890-1975), Pierre Deffontaines (1894-1978), Maurice

    Le Lannou (1906-1992), Pierre Monbeig (1908-1987) e Jean

    Gottmann (1915-1994). Alm destes, constam tambm na bibli-

    ografia, Delgado de Carvalho e Fbio de Macedo Soares Gui-

    mares22.

    Entre outras consideraes apresentadas no livro mencio-

    nado, o gegrafo enfatizou a importncia da geografia regional

    para que a disciplina alcanasse sua maioridade cientfica23.

    humanos buscando reconhecer causas, correlaes e efeitos entre si.

    22 Os trabalhos citados destes autores foram, respectivamente, Evoluo da geografia humana e A diviso regional do Brasil publicados na Revista Brasileira de Geografia, ano III, n 2, de 1941.

    23 Sendo a geografia, por excelncia, a cincia das relaes e operando sob uma base espacial, a geografia regional que melhor representa os seus anelos de cientificidade. A geografia

  • CAPTULO 1

    50

    Sobre o tema da cientificidade da disciplina, ele foi contrrio

    idia ainda em voga de se pensar a geografia como uma ma-

    neira de ver as coisas, um ponto de vista, posio, entre

    outros, do gegrafo Maurice Le Lannou (1949). Naquele mo-

    mento, para Milton Santos, assim como para alguns dos auto-

    res franceses mencionados acima, a geografia tout-court cor-

    responderia ao que era realizado pelos trabalhos de geografia

    regional. Nesse momento eram intensos os debates acerca do que

    caberia aos trabalhos de geografia regional voltados princi-

    palmente para anlise de distintos elementos em uma deter-

    minada rea e aos de geografia geral preocupados com a

    elaborao de princpios gerais a partir da anlise do compor-

    tamento de um ou mais elementos em diferentes pontos da

    superfcie terrestre. Entre boa parte dos gegrafos franceses, os

    estudos das regies eram tidos como suficientes para a anlise

    geogrfica.

    No entanto, Milton Santos (1953a) j colocava a importn-

    cia do dilogo entre os dois mtodos. Para ele,

    a geografia regional nos aparece, pois, como a cpula de todo

    estudo geogrfico, geografia sem adjetivos, geografia tout court, como da geografia humana diz Le Lannou. No se pode,

    entretanto, por de lado a geografia geral, que deve at ser con-siderada como seu captulo introdutrio. Ambas, ao contrrio, do que pensava Vallaux, que entre as mesmas no via conexo

    possvel, se ajudam mutuamente, porque se uma fornece ou-tra um inventrio das possibilidades entrevistas, de que vai ela

    geral nem por isso pode ser desmerecida. Cumpre, entretanto, fixar o seu papel, evitando consider-la como uma lista de relaes constantes entre os fenmenos das diferentes ou das mesmas ordens ou como capaz de um esforo analtico atravs do qual possamos classificar atos isolados. (M. Santos, 1953a, p. 91).

  • CAPTULO 1

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    se servir como ponto de partida para suas investigaes, recebe, por outro lado, atravs dos estudos in concreto a confirmao

    ou negao do que admitia um novo subsdio, de qualquer for-ma, para as suas dedues (M. Santos, 1953a, p. 34).

    Como veremos adiante, o