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Trajetórias biografadas: memórias de transplantados e transplantadores na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre/RS VÉRA LUCIA MACIEL BARROSO 1 1 A Misericórdia da capital do extremo-sul do Brasil: memória preservada Em 1803 foi criada a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, por ato do Príncipe Regente D. João, após apelos feitos pelo Irmão Joaquim Francisco do Livramento, também idealizador de outras obras sociais no Brasil. Após sua maior crise institucional, em 1986, quando do seu processo de revitalização, – tendo como aliada a sociedade regional, foi definida a criação de um Centro de Documentação e Pesquisa/CEDOP, atualmente denominado Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre (CHC). O entendimento, naquela altura, era de que a ressurreição da Misericórdia da capital gaúcha, passaria necessariamente, pelo reconhecimento de que a Santa Casa era um patrimônio da cidade e do estado, e como tal haveria que preservar seus suportes de memória. Assim, se justificava a organização de seu acervo e a contratação de uma equipe de profissionais da História e da Arquivologia, ainda que em época de dificuldades para sua recuperação financeira. Sua finalidade precípua: recolher, conservar/organizar e disponibilizar a documentação arquivística e museológica da Misericórdia de Porto Alegre. A missão de conservar seu rico acervo transformou, inicialmente, o Arquivo da Santa Casa, sobretudo, em centro de referência histórica no cenário regional. Ao revelar sua organização e potencialidade de pesquisa, instituições privadas, para além das públicas, foram motivadas a conservarem suas memórias e disponibilizá-las à sociedade, como estratégia de cidadania. A seguir, para melhor compreensão do projeto desenvolvido, apresentam-se traços da história da Santa Casa de Porto Alegre, bem como informações sobre o potencial do seu acervo arquivístico, dando-se destaque, a seguir, aos documentos orais produzidos pela equipe do CHC, no seu Núcleo de História Oral. 2 A Santa Casa de Porto Alegre: patrimônio do Rio Grande do Sul/Brasil Saúde, cultura e história constituem, entre outros, direitos de todo cidadão. O direito ao passado, à memória coletiva, ao estado saudável de vida, ao usufruto das manifestações da criação humana, produto cultural que expressa a condição dos sujeitos através dos tempos, * Doutora em História, Historiógrafa do Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre.

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Trajetórias biografadas:

memórias de transplantados e transplantadores

na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre/RS

VÉRA LUCIA MACIEL BARROSO1

1 A Misericórdia da capital do extremo-sul do Brasil: memória preservada

Em 1803 foi criada a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, por ato do Príncipe

Regente D. João, após apelos feitos pelo Irmão Joaquim Francisco do Livramento, também

idealizador de outras obras sociais no Brasil.

Após sua maior crise institucional, em 1986, quando do seu processo de revitalização,

– tendo como aliada a sociedade regional, foi definida a criação de um Centro de

Documentação e Pesquisa/CEDOP, atualmente denominado Centro Histórico-Cultural Santa

Casa de Porto Alegre (CHC). O entendimento, naquela altura, era de que a ressurreição da

Misericórdia da capital gaúcha, passaria necessariamente, pelo reconhecimento de que a Santa

Casa era um patrimônio da cidade e do estado, e como tal haveria que preservar seus suportes

de memória. Assim, se justificava a organização de seu acervo e a contratação de uma equipe

de profissionais da História e da Arquivologia, ainda que em época de dificuldades para sua

recuperação financeira. Sua finalidade precípua: recolher, conservar/organizar e disponibilizar

a documentação arquivística e museológica da Misericórdia de Porto Alegre.

A missão de conservar seu rico acervo transformou, inicialmente, o Arquivo da Santa

Casa, sobretudo, em centro de referência histórica no cenário regional. Ao revelar sua

organização e potencialidade de pesquisa, instituições privadas, para além das públicas, foram

motivadas a conservarem suas memórias e disponibilizá-las à sociedade, como estratégia de

cidadania.

A seguir, para melhor compreensão do projeto desenvolvido, apresentam-se traços da

história da Santa Casa de Porto Alegre, bem como informações sobre o potencial do seu

acervo arquivístico, dando-se destaque, a seguir, aos documentos orais produzidos pela equipe

do CHC, no seu Núcleo de História Oral.

2 A Santa Casa de Porto Alegre: patrimônio do Rio Grande do Sul/Brasil

Saúde, cultura e história constituem, entre outros, direitos de todo cidadão. O direito

ao passado, à memória coletiva, ao estado saudável de vida, ao usufruto das manifestações da

criação humana, produto cultural que expressa a condição dos sujeitos através dos tempos,

* Doutora em História, Historiógrafa do Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre.

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tem sido cultivado nos canteiros da história da mais antiga Misericórdia do estado do Rio

Grande do Sul.

Eis que a Santa Casa de Porto Alegre, portadora de 210 anos de vida, traz para si, com

muito empenho, a responsabilidade de não só gerenciar com maior competência a

modernização do seu complexo institucional, como também a de estreitar com a comunidade

regional – sua permanente usufrutuária –, laços de parceria, a fim de proporcionar condições

para atender à saúde, à cultura, à história da sua cidade e à do seu estado, fazendo assim a sua

parte.

A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre é um patrimônio da sua cidade e do Rio

Grande do Sul. Ela é um bem. E, um bem – se cuida, e tudo se faz para conservá-lo. Sua

dimensão patrimonial se estende mais, por abrigar uma significativa parcela de evidências

documentais, sob vários suportes, reveladoras da história e da cultura desses espaços aos quais

está estreitamente relacionada. O exame do seu acervo arquivístico e museológico (incluindo-

se o Cemitério) demonstra que é impossível recompor a história de Porto Alegre e a do Rio

Grande do Sul sem passar pelo mais antigo hospital em funcionamento no estado, que é a

Santa Casa de Porto Alegre. Na verdade, suas histórias se confundem.

As trajetórias da formação da cidade e do Rio Grande do Sul iniciam no século XVIII.

A da Santa Casa também. Recordando: Porto Alegre foi elevada à condição de freguesia em

1772, em tempo de disputa de território entre espanhóis e portugueses. Vários tratados foram

firmados entre os reinos ibéricos, até que em 1801 o Rio Grande do Sul passou aos domínios

de Portugal.

A Santa Casa de Porto Alegre foi fundada por aviso do Príncipe Regente D. João,

anunciado em 19 de outubro de 1803. Portanto, dois anos depois da incorporação definitiva

do Rio Grande do Sul ao Brasil, “a nossa Misericórdia" iniciava a sua trajetória. E, desde

então, através da atuação de sua Provedoria, ela deveria cumprir a sua missão: a de prover. E

foi o que fez, sobretudo a partir de 1º de janeiro de 1826, quando foram inauguradas suas

primeiras enfermarias, sendo seu provedor o Visconde de São Leopoldo.

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Assim, a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, no cumprimento de suas

finalidades, durante dois séculos, foi registrando suas ações e deixando rastros:

documentando, gravando e fixando em diferentes suportes as suas decisões, ações e rumos.

De tudo ficaram recortes e indícios do passado: fontes documentais que o Centro Histórico-

Cultural (CHC) guarda, conserva e oferece à comunidade para a pesquisa e a produção do

conhecimento. E franquear à comunidade regional o seu acervo é, na verdade, mais que um

dever, é uma responsabilidade social que vem sendo ampliada, especialmente neste momento

em que a Santa Casa se prepara para inaugurar a sede do seu Centro Histórico-Cultural, em 5

de junho deste ano – 2014.

Em parte do amplo quarteirão que abriga o Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto

Alegre, oito sobrados geminados, situados na Avenida Independência, serão o abrigo de um

arsenal de documentos, constituindo-se em fontes imprescindíveis para a escrita da história da

cidade e dos municípios que compõem o estado, bem como de lugares de outros estados e

países vizinhos. Afinal, no de redor há sempre alguém que cite um parente, um colega, um

amigo, um conhecido que tenha passado pela Santa Casa de Porto Alegre, como paciente ou

funcionário, ou acompanhando um familiar que procurou o Complexo Hospitalar ou seu

Cemitério, selando vínculos, constituindo elos ou traços que revelam a indissociabilidade da

Santa Casa com a comunidade local, e a regional, sobretudo.

Sede do Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre.

O acervo do CHC anima pelo que oferece e disponibiliza: a produção do

conhecimento nos âmbitos das histórias política, social, econômica, cultural e das religiões.

Atende à história do cotidiano, do trabalho, da saúde, das doenças, da morte, da

escravidão/liberdade, da loucura, da imigração, do abandono, da infância e tantas outras.

Diferentes ciências podem ser trabalhadas com base no acervo que custodia: Arqueologia,

Geografia, Estatística, Antropologia, Sociologia, Genealogia, Arquitetura, Engenharia,

Biomédicas e Artes. E não poucos já obtiveram informações para completar o processo de sua

dupla cidadania, especialmente a italiana.

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3 O Programa de História Oral do CHC Santa Casa de Porto Alegre

Com perspectiva alargada de atuação, a equipe do Centro Histórico-Cultural decidiu,

na década de 1990, iniciar o seu Programa de História Oral, voltado para os protagonistas da

Instituição: dirigentes, funcionários, médicos, enfermeiros, pacientes, vizinhos e locatários

das propriedades da Santa Casa. Através da aplicação da Metodologia da História Oral,

ampliava-se assim, as possibilidades de fontes documentais do acervo do CHC, e o acesso a

informações, antes lacunares acerca da atuação da institucional.

O trabalho de História Oral ampliou-se, na década de 2000-2010, motivado,

sobretudo, por “datas comemorativas” de hospitais do complexo, e também por homenagens

prestadas na Instituição. Não se faria um trabalho na perspectiva da história tradicional, por

entender-se que “a memória é um campo de batalhas”. (THOMSOM, 1998, grifo meu).

É reconhecido, que a difusão da importância da história dos diferentes hospitais da

Santa Casa, que o Centro Histórico-Cultural vem realizando desde 1986, fez com que as

direções hospitalares tivessem interesse em realizar exposições de curta duração para que suas

equipes de trabalho se “apropriassem” e se sentissem parte do lugar onde atuam

cotidianamente. Por consequência, uma rede de depoentes foi constituída para cada uma

delas, cujas falas serviram de alicerce para a perspectiva histórica do tempo presente se firmar

e se afirmar, no seio da Instituição e da sua comunidade que dela usufrui dos seus serviços.

Assim aconteceu com: o Hospital São Francisco – voltado para a Cardiologia; o Hospital

Santa Rita, o seu centro de câncer e o Pavilhão Pereira Filho – de pneumologia. Projetos de

História Oral foram desenvolvidos para cada um, com colheita abundante e muito

interessante.

Nesta esteira, aproximando-se os 10 anos da criação do Hospital Dom Vicente

Scherer, a equipe do CHC foi chamada para participar do grupo que preparava a sua

comemoração. O desejo manifesto era de se “fazer um histórico” do “1º Centro de

Transplantes” que o Brasil passara a ter, sediado na Santa Casa de Porto Alegre. Quais fontes

para “essa escrita”?

A sugestão dada foi a de se ouvir seus protagonistas, sendo de imediato aceita e

iniciado o trabalho. Tempo para fazê-lo: quatro meses, incluindo-se exposição e produção de

vídeo, a partir das entrevistas realizadas.

4 Primeiro Centro de Transplantes da América Latina: o hospital do renascimento

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Em novembro de 2010 foi iniciado o projeto de História Oral voltado para o Hospital

Dom Vicente Scherer. E, de imediato, definiu-se quais seriam as categorias de entrevistados.

Sem dúvida, na lista estavam os diretores médico e administrativo do Hospital de

Transplantes, assim como os diretores – geral e médico – atuais da Santa Casa, e os que, na

ocasião da criação do hospital, estavam à testa da Instituição. Afinal, como alerta Jim Sharpe:

[...] história oral tem sido muito usada pelos historiadores que tentam estudar a experiência das pessoas comuns, embora, é claro, não haja razão por si só evidente do motivo pelo qual o historiador oral não deva gravar as memórias das duquesas, dos plutocratas e dos bispos, da mesma forma que dos mineiros e dos operários fabris. (In: BURKE, 1992, p. 48-49).

Assim, o projeto de História Oral desenvolvido não se voltaria apenas para a atuação

dos dirigentes do hospital de transplantes, e do centro de poder que o orienta. Ele buscou, sim,

colher depoimentos, para o entendimento da trajetória do hospital, desde sua idealização, sua

construção, inauguração e funcionamento, ouvindo-se outras vozes. Tomou como baliza,

também, registrar as falas das pessoas comuns, sem desconsiderar a análise da estrutura

institucional, bem como o jogo das relações políticas do contexto de um hospital pioneiro em

transplantes e suas repercussões. Foi o que se buscou fazer: entrevistar os funcionários da

Nutrição, da Hotelaria, da Secretaria, da Limpeza, da Enfermagem, da Manutenção e outras

áreas que garantem o funcionamento do hospital para que os transplantes aconteçam com

sucesso; para que as vidas sejam salvas.

E a escuta de transplantados, que viveram a fronteira entre a vida e a morte, como se

faria? Quais cuidados na seleção de depoentes para cada órgão? Como seria feito o roteiro?

Que questões levantar?

Como historiadora do tempo recente, tem-se a clareza de que o oralista é um criador

do arquivo da palavra, ao registrar as falas dos atores sociais dos objetos que estuda e

pesquisa. Mas há que ter cuidados, especialmente quando os depoentes vivem situações

dramáticas. Mais ainda, como oralista de histórias traumáticas, sua prática deve ser

seguramente conduzida por técnica cuidadosa de recolha dos depoimentos. A prática da

História Oral tem uma metodologia própria e específica, e segui-la é condição de êxito do

trabalho. A propósito, Aspásia Camargo destaca: “O gravador é técnica, não é metodologia.”

(CAMARGO, apud D’ARAUJO, 1999). E em outro texto, ela complementa: “Nas entrevistas

gravadas, a fonte histórica é o Homem e sua memória, reavivada pela presença ativa do

entrevistador-pesquisador.” (CARMARGO, 1978, p. 293)

Portanto, a constituição de um conjunto sistemático, diversificado e articulado de

depoimentos que o historiador grava sobre seu objeto de estudo, sejam de histórias de vida ou

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de ordem temática, lhe permite não só colher informações. Trata-se de um instrumento de

compreensão das ações humanas e das suas relações com a sociedade organizada e as tramas

do poder constituído.

Sempre é oportuno lembrar Paul Thompson em sua clássica obra A voz do passado:

História Oral quando destaca:

Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta. Se assim é porque não aproveitar essa oportunidade que só nós temos entre os historiadores [...]. (THOMPSON, Paul, 1992, p. 197).

Roberto Franck animou este trabalho: “É uma grande sorte para o historiador do

presente, graças às testemunhas que interroga, poder fazer a arqueologia da memória

coletiva.” (Apud D’ARAÚJO, p. 174). E o traço mais significativo da memória coletiva é a

organização ativa das experiências vividas.

Eis a riqueza dessa operação feita a partir das memórias individuais para a arqueologia

da memória coletiva dos transplantados e transplantadores. Assim, conforme Paul Thompson,

se devolverá às pessoas que fizeram e vivenciaram a história, um lugar fundamental,

mediante suas próprias palavras. (1992, 4ª capa).

Toynbee, a propósito, afirmou:

O conhecimento pessoal dos fatos é de tamanha valia que se torna necessário que a História comece a ser escrita pelos que participaram dela. A ação do tempo, o enfoque da perspectiva, o amadurecimento dos homens possibilitarão, sem dúvida, uma revisão proveitosa. E, exatamente porque o estudo da História é a sua revisão constante, ela precisa começar a ser escrita com o depoimento dos seus protagonistas. Faz muito pouco tempo que os homens se convenceram de que o presente é também História. (Apud, EW, Atelaine, M. Normann, p. 142).

Foi com esse entendimento que as 42 entrevistas foram realizadas, focadas no Hospital

de Transplantes Dom Vicente Scherer, destacando-se que foram colhidos depoimentos de,

pelo menos, um – transplantado de pulmão, de coração, de fígado, de pâncreas, de fígado e

pâncreas, de medula, de rim e de córnea. A seguir, o roteiro é dado por recortes de memórias,

que formam uma história, cujos atores se entrecruzam na luta pela vida. Como afirma o Dr.

Camargo, transplantador de pulmão: “A tristeza pode esperar” – título de obra que publicou

em 2013.

5 Vidas biografadas: transplantados, transplantadores e aliados em defesa da vida no

Hospital Dom Vicente Scherer – Santa Casa de Porto Alegre

A seguir a palavra é dada a protagonistas que se aliaram para desafiarem a morte, a

partir da morte. Para muitos, o tempo de vida é contado, dia a dia, até que um órgão

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compatível possa lhe devolver a esperança de renascer. Para tanto, a morte de doadores é a

condição do renascimento. Trata-se de uma luta dialética, mesclada de esperança e dor; de

luta e resistência, de um lado e outro.

Com a palavra, o idealizador do hospital, médico que transplanta pulmão:

[...] Nós estávamos almoçando, num sábado, no Plaza São Rafael, comendo feijoada. [...] a diretoria da Santa Casa. E aí durante a conversa aconteceu [...]: Já fizemos muito, já melhoramos as coisas básicas, queremos traçar diretrizes futuras, alguém tem alguma ideia? Por onde a Santa Casa vai? Aí todos falaram, e eu, por último disse: Eu acho que tem um projeto que está latente para meu gosto, que é o seguinte: Santa Casa é o único hospital que faz todos os transplantes. E como é que ela se comporta? Cada grupo treina pessoas no seu pequeno feudo, para fazer melhor o que faz. Mas nós estamos todos dispersos pela Instituição. Por que não reunirmos num lugar só, treiná-los na mesma direção, no que os pacientes transplantados têm em comum, que é a necessidade de extremo cuidado na profilaxia de infecção, porque são pacientes com a imunidade deprimida pelas drogas anti-rejeição. Esse é um ponto de união de todos os transplantes, independente de que órgão seja. Eu construiria um Centro de Transplantes, usando os fatos de que nós temos aqui o que é mais difícil, que é ter as pessoas treinadas, e mais do que isso, as pessoas atuantes. [...] Na segunda-feira eu recebi um telefonema da Provedoria e ouvi: “Você pode vir para cá, que nós precisamos conversar um pouco mais sobre aquela sua ideia maluca.” “Sim, mas se é maluca, esquece!” Não era tão maluca. Daí em diante, foi uma bola de neve, porque todo mundo foi se encantando com... e todo mundo trazia alguma coisa, e as coisas foram crescendo. (Depoimento de José de Jesus Peixoto Camargo em 13 de dezembro de 2011).

Sua ideia foi compartilhada com o colega, Dr. Valter que transplanta rim:

No final dos anos 1990, o Dr. Camargo me procurou. Disse-me que tinha uma ideia, e queria saber se não era uma loucura. Ele tinha uma ideia de construir um hospital. [...] O Camargo gosta de chamar para almoçar no Plaza São Rafael. E quando ele chama é porque tem algo novo ou uma decisão a tomar. Em 97, 98, um dia ele me chamou e disse: “Olha, parece loucura minha, mas o que tu achas da gente fazer um hospital para transplantes?” Respondi: “Maravilha! Muito bom!” Ele indagou: “Tu concordas?” “Claro!” A ideia é que se tivesse um hospital que congregasse todos os transplantadores, que as pessoas estivessem próximas, pudessem conversar, trocar ideias e experiências, pois os cuidados nos transplantes são muito semelhantes. [...] Todos eles são imunossuprimidos, têm mais risco de infecção e outros riscos. (Depoimento de Valter Duro Garcia em 07 de dezembro de 2011).

E o médico Dr. Vitola, que transplanta pâncreas e rins assim registrou:

[...] A expectativa era muito grande, porque era uma perspectiva de futuro, não é? De repente as coisas se abrindo magicamente na nossa frente, depois de um trabalho muito exaustivo, de um trabalho desbravador. Isto é uma coisa que desgasta muito. O desbravador perde muito tempo ajeitando as coisas, abrindo caminho, construindo os primeiros passos, mas isto, para nós, se mostrava como quase uma utopia. No início parecia uma utopia: “Nós vamos ter um hospital só para transplantes? Não é possível! Não, mas isto vai sair. A comunidade está aí. A comunidade está disposta. Vai doar. Vai sair.” E saiu. (Depoimento de Santo Pascual Vitola em 01 de dezembro de 2011).

Ele prossegue, recordando do apoio dado pelo ex-diretor geral da Santa Casa:

[...] E junto com o Cardeal Dom Vicente Scherer veio o Dr. João Polanczyk. Eu acho que este é o nome, esta é a figura chave do desenvolvimento do transplante na Santa Casa. O Dr. João viu o futuro, ele viu longe, e resolveu investir nos transplantes. Convidou-nos para realizarmos os transplantes no Bloco Cirúrgico do

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Hospital São Francisco. Então, todo reformado, com material de primeira, um Bloco Cirúrgico de primeiro mundo. E nos estimulou muito. E com o desenvolvimento do transplante renal, vieram outros atrás. E aí, em 15 de agosto de 1987, nós realizamos o 1º transplante conjugado de rim e pâncreas da América do Sul. [...] Hoje nós temos mais de 100 desses transplantes realizados. (Depoimento de Santo Pascual Vitola em 01 de dezembro 2011).

A enfermeira Cinara Maisonette recordou de detalhes do projeto de implantação do

novo hospital:

Nós não saímos fora no mercado para olhar coisas novas. [...] Na realidade, ele foi construído a partir das nossas experiências, pelo menos na parte da UTI. Nós tínhamos muito mais experiências do que muitos locais. Então se pensou: vamos colocar a nossa vivência, o nosso dia a dia, as nossas dificuldades sentidas. [...] Eu não lembro que a gente tivesse medo, que ficasse insegura em fazer. [...] A gente jogou aquela energia na agilidade da construção. (Depoimento de Cinara Maisonette Duarte em 06 de dezembro de 2011).

O Provedor Dr. Sanseverino destacou o pioneirismo do novo hospital:

Então, lançamos a pedra fundamental do novo Hospital, que seria o primeiro Centro de Transplantes da América Latina. [...] E Porto Alegre e o Rio Grande do Sul ficaram então com a glória de terem organizado o primeiro Hospital de Transplantes nesse recanto da nossa terra. (Depoimento de José Sperb Sanseverino em 30 de novembro de 2011).

O Hospital D. Vicente Scherer foi inaugurado em 20 de dezembro de 2001, com

investimento de R$ 10 milhões. O novo hospital da Santa Casa de Porto Alegre foi construído

com 75% de doações de grandes empresas e 25% de recursos do governo federal. A maioria

das cirurgias é custeada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). São poucos os convênios que

pagam transplantes. A Santa Casa utiliza o lucro propiciado por convênios e pacientes

privados para cobrir o que falta no SUS. (Dossiê Hospital Dom Vicente Scherer. Arquivo do

CHC).

Fachada principal do Hospital Dom Vicente Scherer, situado no quarteirão da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. (Acervo fotográfico do CHC).

Sobre a inauguração, lembrou o Dr. Valter Garcia:

Era uma noite muito bonita e estrelada! Se fez um palco aqui, na frente do Hospital. Tudo muito bonito. Eu fiquei realmente emocionado. Eu voltei no tempo e fiquei lembrando da nossa Enfermaria 30, onde nós começamos a fazer transplantes de rins, lá na década de 1970, e agora a Santa Casa ganhava um hospital só para transplantes. [...] É uma trajetória vitoriosa. É um sonho que o Camargo teve, que se

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realizou, e nós auxiliamos. (Depoimento de Valter Duro Garcia em 07 de dezembro de 2011).

As possibilidades de novas chances de vida aumentaram significativamente, com um

centro de transplantes, onde tudo foi pensado e projetado para a situação específica. Da

arquitetura à engenharia, dos equipamentos à formação das equipes de apoio: uma usina

humana se formou em defesa dos pacientes com necessidade de transplante. E a fila era muito

longa. A morte ronda a vida! “O transplante é o ultimo processo terapêutico, é a última

oportunidade terapêutica, e sem ela, o paciente, fatalmente, vai falecer.” (Depoimento de

Santo Pascual Vitola em 01 de dezembro de 2011).

A enfermeira Cinara Maisonette registrou: “A gente vê a vida renascer. [...] É um

renascer, porque a pessoa muda de cor, muda de pele, ela muda de olhar, porque todo o seu

organismo, a parte fisiológica começa a funcionar novamente.” (Depoimento de Cinanra

Maisonette Duarte em 06 de dezembro de 2011).

O Dr. Vitola nesse sentido, assim se manifestou: “É este sentimento que nos faz

levantar de madrugada. É este sentimento que nos fez buscar órgãos no interior, durante anos,

sem nenhuma remuneração, de forma amadora. Esse é o grande sentimento que nos move e

que nos mantêm nessa atividade.” (Depoimento de Santo Pascual Vitola em 01 de dczembro

de 2011).

O transplantado Joaquim Ricardo dos Santos Aperta relatou que foi bem difícil a fase

pré-transplante:

A assistente social vinha conversar, os médicos e os enfermeiros vinham conversar. Aí a gente vai aceitando melhor e de uma forma mais tranquila. Mas, no inicio é bem estranho assim. Tu sabes que para ti continuar vivo, tu depende de uma pessoa que, de repente, precisa falecer, e que essa família precisa autorizar que o órgão seja doado. Quer dizer, tem todo um contexto difícil.

E depois que o transplante aconteceu, uma nova vida de boas surpresas começou:

Assim que eu tive insuficiência renal, vim para a Santa Casa, onde fiquei fazendo hemodiálise durante nove anos. [...] Meu transplante foi feito no dia 5 de agosto de 2011. [...] E achei formidável, porque a estrutura é fantástica, os profissionais são excelentes. [...] as pessoas reclamam tanto do SUS, dizendo que o SUS não funciona. [...] Mas internado no [Hospital] Dom Vicente, para fazer o transplante, vi que a realidade é bem outra. Ali a gente vê que é igual a qualquer um que tem convênio, ou qualquer outra pessoa que tem dinheiro para pagar. Somos tratados da mesma maneira, as dependências são espetaculares. A gente fica num lugar muito bom para se recuperar. E isso foi uma coisa que me surpreendeu bastante. (Depoimento de Joaquim Ricardo dos Santos Aperta em 20 de janeiro de 2012).

Ele segue com a palavra:

[...] continuo sendo sempre acompanhado. Antes era de semana em semana, agora é de 15 em 15 dias. Então, eu sou monitorado, praticamente 24 horas por dia É um casamento para a vida inteira, [...] porque eu vou depender deles para continuar me mantendo com uma saúde boa. [...] Eu casei com eles, e estou bem feliz com esse

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casamento. [...] não quero divórcio de jeito nenhum. [...] Estou tendo a oportunidade de agora, mais do que nunca, depois de transplantado poder me formar. [...] a gente continua vivendo, a Santa Casa proporciona uma qualidade de vida sensacional para a gente. Que eu posso continuar tendo sonhos na vida.

Entretanto, a retomada da vida, não foi fácil para todos, conforme relatos dos

depoentes. Cleide Ludimila de Castro Silva, transplantada de rim e pâncreas, fez um relato

dramático das dificuldades que enfrentou após a cirurgia:

Fiz um mês de hemodiálise. Mas eu vi como é muito complicado, e o pessoal sofre muito fazendo hemodiálise; as pessoas sofrem. Eu, foi pouco tempo, mas também não gostei nem um pouco. Gostar não, quem vai gostar? É muito sofrimento. Só sabe quem passa e quem trabalha; quem é do meio que sabe. Tem que ter uma sensibilidade mesmo para analisar e ver. É bem complicado. [...] Tu vai numa porta: fecha. Tu vai na outra e sempre fecha alguma. Mas, uma se abre e acontece o que tem que acontecer. Essas fases foram todas meio complicadas. Então, passa a primeira, a segunda, e na terceira é quando tu faz o transplante. Aí tu sai bem. Mas, aí tu encaras toda a sociedade. Tu tens que explicar o teu problema. E tu precisas de medicação, mas tem o problema de distribuição de medicação. Até que de um tempo para cá, agora, estabilizou um pouco. Mas, eu tive muitos problemas com isso ai. Então, aí tu enfrentas a sociedade. No teu trabalho, todas as pessoas aceitam, mas algumas não compreendem. Até vamos dizer assim, surgir aquele esclarecimento, mesmo, e uma compreensão, é difícil. Tem que se passar um bom pedaço. Depois tudo se estabiliza. Mas, tu tens que enfrentar aquilo, e tu tens teu problema, e tu és frágil, e és sensível. Aí tu chegas, e tem que se expor. Tu enfrentas tudo aquilo, e aquilo vai te desgastando. Mas, se tu não fizer isso, as pessoas também não entendem, porque é não muito fácil para nós vivermos nesse mundo. Tem pessoas que nem sabem de nada, não conhecem, não tem esclarecimento. Depois tu passas essa fase, que tu já te cansou, ai tu vai para uma fase mais estável. Aí tu toma consciência de tudo e diz: “Vou cuidar de mim.” Mas tu já estás desgastada mesmo. Mas, repito: “Vou cuidar de mim, vou tentar, vou ter um bloqueio para eu não ficar doente. Tenho um bloqueio e vou tratar com mais clareza, então, dos meus problemas. Vou levar minha vida com mais clareza, e vou pensar mais em mim.” Aí tu ficas bem. Então, depois que tu passas tudo isso, então fica aquela estabilidade. Mas até tu chegares numa estabilidade para saber como tu deves agir em varias situações, tem que passar por todo esse período muito difícil, mesmo. (Depoimento em 16 de janeiro de 2012).

Por outro lado, é animador o depoimento da Drª Clotilde Garcia que trabalha com a

Nefrologia Pediátrica, desde 1976. Ela destacou as emoções que sente ao acompanhar a

recuperação de crianças transplantadas:

[...] Somos, hoje, então, um dos maiores centros de transplantes. E atendemos, transplantamos, em torno de 40, 50 crianças ao ano. [...] E a cada transplante, eu tenho o mesmo nervosismo, porque é uma cirurgia de alta complexidade, e a mesma felicidade de assistir o milagre. A criança entra cinza e saí corada, linda. Nas primeiras 24 horas a gente já sente a vida mais vibrante naquela criança. [...] Cada transplante é um renascer. Eu me emociono em ver uma criança que não urina, fazer um monte de xixi. Então, a felicidade do nefrologista é ver aquele monte de xixi. E as pessoas não valorizam. Fazer xixi é uma maravilha! (Depoimento de Clotilde Druck Garcia em 13 de dezembro de 2011).

Para Valdira Boff Tezzari, transplantada de córnea, sua vida renasceu.

Eu estava enxergando as letras todas quebradas. Eu consultei do Dr. Marcon e ele me disse: “A senhora tem Distrofia de Fuchs’. [...] Fiquei animada quando o médico me disse que eu não ficaria cega, pois poderia fazer transplante.” Eu comecei uma

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nova vida depois do transplante. [...] Foi uma ressurreição na minha vida. (Depoimento de Valdira Boff Tezzari em 24 de janeiro de 2012).

O Dr. Vitola chamou atenção para o custo dos transplantes:

[...] o transplante de rim e pâncreas é um dos transplantes mais caros, pela lenta recuperação do paciente, pela exigência de UTI por um tempo prolongado. Enfim, é um dos mais dispendiosos. E o Dr. João Polanczyk bancou estes transplantes até o ano de 1999, quando então foram regularizados os transplantes de pâncreas, através de uma portaria do Ministério.

Ele prosseguiu frisando que:

[...] a Santa Casa investiu. E investiu pesado neste processo de transplante. Posteriormente veio o fígado. Daí nós realizávamos rim, rim pediátrico, rim e pâncreas e fígado. E depois se somou o Dr. Camargo (pulmão), Dr. Lucchese (coração), a medula, e a pele com o Dr. Roberto Corrêa Chem. Enfim, hoje o Hospital Dom Vicente Scherer realiza todos os transplantes.

Destacou o Dr. Guido Cantisani que: “[...] na década de 1980, nós fomos o primeiro

grupo, no Brasil, a realizar um transplante conjugado de pâncreas e rim. Tinha sido, na década

de 60, realizado o transplante de pâncreas isolado, no Rio de Janeiro, mas conjugado de rim e

pâncreas não tinha sido feito.” (Dr. Guido Pio Cracco Cantisani em 05 de dezembro de 2011).

Silvia Rosinha Voldo Littoni, transplantada de fígado recordou do seu limite de vida e

da nova que ganhou:

Foi difícil porque a doença vai se agravando, vai se agravando. E aí eu tive muitas crises de encefalopatia. Eu tinha que vir voando para a Emergência. Eu vinha toda semana tirar líquido. Tirava bastante por semana. Eu tive várias vezes internada aqui na Santa Casa, por causa desse problema. Eu comecei a ter problema de pulmão, porque o líquido estava indo para o pulmão. Aí eu tinha que tirar o líquido do pulmão também e fazer todos esses procedimentos. Eu tinha muita falta de ar. Mas foi indo, foi indo, até que eu procurei o Dr. Guido Cantisani. [...] Aí eu entrei na fila do transplante. Fiquei quase dois anos na fila. [...]. É um orgulho para nós, dos brasileiros, e principalmente para nós gaúchos, porque ali nos corredores, ali no saguão, quando estou esperando a vez da minha consulta, a gente fica conversando com as pessoas, e vem gente de tudo que é lugar fazer a cirurgia aqui. [...] E uma coisa que é inteiramente grátis [...] é do Governo. [...] Estou com uma saúde maravilhosa. [...] Eu agradeço de coração tudo o que a Santa Casa fez por mim. [...] No período que eu fiquei doente, eu ficava muito em casa, na cama, não tinha vontade de fazer nada [...]. Mas depois que eu fiz o transplante, nossa! Só não fui a bailão ainda. O resto eu faço tudo. (Depoimento de Sílvia Rosinha Voldo Littoni em 18 de janeiro de 2012).

Recordou a Drª Maria Lúcia que: “[...] o transplante de fígado iniciou em junho de

1991, uma longa noite do dia 15 de junho de 1991. Foi realizado no Hospital São Francisco.

[...] foi tão forte o primeiro transplante [...].” (Depoimento de Maria Lúcia Zanotelli em 09 de

dezembro de 2011). E ela prosseguiu: “[...] O nosso primeiro paciente sobreviveu e está viva,

a transplantada de fígado, a primeira do Rio Grande do Sul e a primeira do Brasil a ter tido

filhos. E está viva até hoje.”

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A enfermeira Carmen deu seu nome: “A gente acompanhou toda a gravidez da

Marilene, o nascimento do filho dela. [...] Foi uma coisa fantástica, [...] a gente se

emocionava, aquilo era o filho da gente [...]. O filho da Marilene era uma vitória nossa [...] a

Marilene foi a nossa primeira emoção mesmo.” (Depoimento de Carmen Eulalia Pozzer em

15 de dezembro de 2011).

O transplantado de fígado Jorge Luiz Kraemer Borges em 01 de fevereiro de 2012

recordou do drama vivido, da nova vida ganha e de sua liderança em defesa dos

transplantados:

Eu fiquei muito debilitado. [...] Sempre fui um cara obeso. Fiquei oito meses em lista. Nos últimos dois meses, que faltavam para completar os oito meses, eu comecei a ficar muito debilitado. De cento e dezoito quilos, fiquei com sessenta e sete quilos. Eu só vivia assim: vegetando em cima de uma cama, porque eu não tinha condições de fazer nada. Não tinha condições de passear, não tinha condições de participar de qualquer coisa com a minha família, a não ser dentro de casa. E o transplante veio me dar uma vida. Fiz transplante de fígado no dia 21 de abril de 1998. [...] Sou o número 59, parece. O pessoal diz que eu sou o piloto de provas do transplante hepático. [...] Nossos médicos são referência internacional. Sou presidente da Associação dos Transplantados de Fígado do Rio Grande do Sul. Ela foi fundada em 25 de novembro de 1998. [...] Hoje ajudamos todos os tipos de transplantes. [...] É até meio difícil eu explicar o que foi o transplante, e o que é o Dom Vicente Scherer na minha vida. É quase que uma parte de minha casa, porque boa parte da minha vida mesmo, eu vivi aqui dentro.

A Drª Maria Lúcia chamou atenção sobre um tempo novo na medicina, com os

transplantes:

[...] e o cirrótico era visto como um doente que não havia o que ser feito. E as pessoas que queriam mostrar uma realidade diferente do que a natureza, a mãe natureza determinava, eram considerados, não digo como loucos, mas fora do juízo, da realidade da época. [...] E houve quase que uma década, pelo menos, para que os colegas entendessem que os pacientes cirróticos não precisavam morrer, porque havia uma alternativa. E que a alternativa do transplante não era experimental, era institucional, e era instituída como uma metodologia terapêutica. Então, se precisou trabalhar muito em cima disso. [...] Então, nós tivemos que mudar conceitos médicos, nós tivemos que provar para os colegas, nós tivemos que fotografar as pessoas e dizer: “Olha, um transplantado de fígado existe, ele não é um extraterrestre, e é uma pessoa normal.” (Depoimento de Maria Lúcia Zanotelli).

A enfermeira Emi ficou emocionada, lembrando de situações traumáticas como a de

um paciente que chegou ao hospital em situação crítica:

[...] tivemos pacientes que estavam à beira da morte, como um paciente de fígado, por exemplo, que estava tão magro, estava numa UTI, e esse não conseguia nem mais falar de... tão mal o estado geral que estava. Mas, depois do transplante, quando começou a conseguir a falar, a comer, dar o primeiro passo, meu Deus! É uma alegria inigualável, de dizer: Puxa, valeu a pena! (Depoimento de Emi Sakamoto Suda em 27 de dezembro de 2011).

Em situação difícil, o paciente Luiz Carlos Vieira Christofoli não teve outra

alternativa, que não a de fazer transplante de pulmão, como contou: “Eu só vivia assim:

vegetando em cima de uma cama, porque eu não tinha condições de fazer nada, não tinha

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condições de passear, não tinha condições de participar de qualquer coisa com a minha

família, a não ser dentro de casa.” Mas, mesmo em situação dramática, lembrou que não

queria fazer transplante:

Eu não dava muita bola para isso: “Não. Transplante não é coisa para mim não.” Fugi da raia. Voltei a me internar outras vezes na Santa Casa, mas só para tratamento das minhas pneumonias. Quem me convenceu a entrar para a fila de transplante foi o meu pneumologista clínico, Dr. Eduardo Garcia. Lutou muito comigo, me carregou muito nas costas, por causa das minhas repetidas pneumonias, e ele sempre correndo comigo. Até que um determinado momento, ele disse assim: ‘Olha tchê, tá feia a coisa! Quem sabe tu falas com o Dr. Camargo?’ Aí que eu fui fazer uma entrevista com o Dr. Camargo. Isso foi lá por 2000. Estive com o Dr. Camargo, ele me fez avaliação e disse: “Olha, realmente, eu acho melhor tu fazeres isso. Vamos ter que fazer o transplante do pulmão esquerdo.” Não foi o que aconteceu. Dois anos na espera, aí um dia surgiu um pulmão direito, na medida para mim, do meu tamanho, ele achou melhor fazer o direito. E deu certo. Dia 24 de setembro de 2002. [...]. Eu só vivia assim: vegetando em cima de uma cama, porque eu não tinha condições de fazer nada, não tinha condições de passear, não tinha condições de participar de qualquer coisa com a minha família, a não ser dentro de casa. O transplante veio me dar uma vida. Hoje, eu posso, praticamente, ir a qualquer lugar, tomando certos cuidados, me resguardando; mas me deu uma perspectiva de vida muito boa. [...]. Ter uma oportunidade nova na vida. Isso aí foi o mais importante. Eu nunca me entreguei, nunca me deixei levar pela doença, mas a simples oportunidade de ver meus filhos se criarem, se formarem! [...]. É até meio difícil explicar o que foi o transplante e o que é o [Hospital] Dom Vicente Scherer na minha vida. É quase que uma parte de minha casa, porque boa parte da minha vida mesmo, eu vivi aqui dentro. (Depoimento de Luiz Carlos Vieira Christofoli em 17 de janeiro de 2012).

O temor da morte atravessa o dia a dia, em tempo de espera para o transplante. A

reação de Romeu Valentino Adegas, transplantado de medula, em depoimento concedido em

19 de janeiro do 2012, lembrou que em meio ao susto da descoberta procurou dissimular seu

nervosismo brincando com sua médica: “Quando foi diagnosticada a minha doença, eu entrei

no consultório da doutora Laura e eu disse assim para ela: “Doutora, posso encomendar o

caixão?” Como ele, os demais transplantados revelaram seus temores e angústias na fila de

espera e diante do que o futuro lhes reservaria. Ou se deram conta do valor da vida, quando

ela estava por um fio, como frisou o transplantado de medula Alexandre Hoeper:

Nós vivemos as nossas vidas achando que a doença, e, principalmente, a doença grave, como o câncer, por exemplo, só acontece com o vizinho, com o cara da esquina. A pessoa só se dá conta quando precisa. O meu caso não foi diferente. Eu, na realidade, só me dei conta da importância real da Santa Casa, do Complexo todo, na medida em que eu necessitei. E aí, quando eu precisei, realmente, porque era a minha única chance de continuar vivendo, eu tive, aqui, dentro da Instituição, todo o apoio necessário, realmente, para mim vencer uma situação bem, bem difícil, bem grave. Recordo que, às vezes, eu fazia uma quimioterapia, por exemplo, estava meio abalado fisicamente, e até psicologicamente, e de repente entrava uma técnica de enfermagem ou uma menina dos Serviços Gerais, sempre com sorriso, e batia no meu ombro ou simplesmente dizia assim: “Bah, vamos lá! Vamos vencer essa parada. Nós estamos juntos nessa.” E, com certeza, eu posso dizer, com total tranquilidade, que isso fez toda a diferença. (Depoimento em 17 de janeiro de 2012).

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O Dr. Camargo, diretor do Hospital Dom Vicente Scherer, reconhecido médico de

transplantes de pulmão recordou:

Quando a gente achou que tinha chegado no limite, aconteceu a vinda para Porto Alegre do Henrique Busnardo [...]; na época tinha 12 anos, uma história dramática. Ele tinha tido uma infecção viral, em Curitiba, e a partir daí desenvolveu uma doença chamada bronquiolite. [...] dormia ajoelhado. Foi uma das coisas mais dramáticas que eu vi [...] e eu quase não ouvia a voz dele antes do transplante, porque ele não conseguia falar mesmo. Eu tinha estado num Congresso na Califórnia, onde havia um serviço do Dr. Starnes, que tinha começado a fazer transplantes de pulmão com doadores vivos, que é um transplante em que se usa metade de um pulmão de adulto para cada lado, para substituir, com a metade de um pulmão de adulto, o pulmão inteiro do paciente doente. [...] E eu voltei meio picado com aquela ideia de usar partes de doadores vivos. [...] Quando o Henrique apareceu, a ideia estava completamente madura, mas tinha que executá-la, com todos os riscos. E é uma coisa meio apavorante a ideia de operar três pessoas ao mesmo tempo. [...] Quando terminou a operação, que demorou em torno de seis horas, eu estava tão exausto como se tivesse carregado a família Busnardo nas costas, eu me sentei no chão. Quando eu estou muito cansado, eu sento no chão. E aí veio o Felicetti, sentou do meu lado e chorou. Abraços, beijos e choro. [...] Transplantes intervivos foi um upgrade em relação ao que a gente pode experimentar de emoção, quando pensa que se já esgotou todas. (Depoimento do Dr. José de Jesus Peixoto Camargo em 13 de dezembro de 2011).

Gilberto Lehnen, transplandado de coração brincou: “O marido da minha colega disse:

‘Como é Gilberto, tu pretendes ter um órgão de cadáver?’ ‘Bom, eu, pretender, eu não

pretendo nada. Eu pretendo conservar o meu. Mas, sendo possível, bem-vindo seja o órgão, o

coração de cadáver.’” E seu médico que fez o transplante, Dr. Fernando Lucchese lhe disse:

“Olha, te deixei por último aqui Gilberto, porque eu já vi o teu exame, e a situação está

definida. O teu assunto é transplante mesmo.” “Como eu me sinto, Lucchese? Bom, não sei se

tu conheces, mas eu... gosto muito de uma poesia do I-Juca Pirama: sou forte, sou rígido, sou

filho do norte... a morte... a morte não temo. Sou índio Tupi.” E reconhecido pela vida

oportunizada, assim falou:

Para comemorar os dez anos do transplante, eu pretendo fazer um bolinho, primeiro ir à missa, agradecer a Deus, em ação de graças a toda a equipe que me tratou, e, particularmente, um detalhe que eu considero importante: eu não conheci, porque não é dado o nome de quem foi o doador. Eu não conheço, portanto, seus familiares, mas diariamente, eu rezo por sua alma, e pelo bem estar e saúde de sua família. Então, a intenção também é sempre válida, os abnegados, esses familiares, que num momento de dor, oferecem o órgão de seu familiar para que outras pessoas dele desfrutem. (Depoimento de Antônio Gilberto Lehnen em 19 de janeiro de 2012).

O transplantado Alexandre Hoeper, em 17 de janeiro de 2012 assim recordou:

[...] quando eu precisei, realmente, porque era a minha única chance de continuar vivendo, [...] eu tive todo o suporte do Hospital e das pessoas que aqui trabalham, de uma forma muito maravilhosa. E se eu estou aqui, realmente só tenho que agradecer a Instituição, aos funcionários e médicos. [...] De repente entrava uma técnica de enfermagem ou uma menina dos serviços gerais, sempre com sorriso, e batia no meu ombro ou simplesmente dizia assim: “Bah, vamos lá, que vamos vencer essa parada. Nós estamos juntos nessa.” E com certeza, eu posso dizer, com total tranquilidade, que isso fez toda a diferença. Porque além de questão técnica, questão profissional de cada um, que é, realmente, de alto nível, tem essa coisa humana. [...] Não são

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mais enfermeiros, técnicos, médicos, não. Todos são amigos mesmo. Eu recordo com bastante carinho cada dia que passa, por tudo que eu recebi aqui dentro. [...] agradeço de coração mesmo, porque elas fizeram a diferença no meu tratamento.

A Drª Laura chamou atenção sobre os graves riscos dos pacientes da área que

transplanta: “O transplante de medula óssea tem várias particularidades, porque ele difere

muito do transplante dos órgãos sólidos [...] a imunossupressão do paciente é mais grave, o

tempo de recuperação é mais grave, o paciente faz muitas infecções.”

Ela afirmou que: “Em 2000, 2001 nós transplantávamos cinco pacientes, mais ou

menos, e hoje nós transplantamos, dentro do Dom Vicente, em torno de cinquenta pacientes

ao ano. Isso equivale quase ao número dos maiores hospitais universitários transplantadores

do Brasil.” Em outras duas passagens, assim falou:

[...] Tem alguns pacientes que comemoram os dois aniversários: o nascimento e o renascimento. [...] Nós fazemos, todo fim de ano, uma festa com os pacientes transplantados, e sempre é uma festa muito alegre [...]. A gente tenta ter o perfil de um serviço acolhedor, antes de tudo. Com técnica, com competência, mas com muito acolhimento, porque sem dúvida, são pessoas que vêm com uma expectativa.

[...] Eu acho que a energia que flui do [Hospital] Dom Vicente, ela já está estampada [...] na fotografia dos pacientes transplantados [...] Eu acho que é um hospital que tem vida, do térreo até o final. [...] Acho que é o hospital da esperança aqui na

Santa Casa. Acho que se diferencia por isso. É um hospital em que a gente deposita nossa esperança, os pacientes depositam a esperança. [...] O Dom Vicente [...] é um hospital, hoje, em que a gente deposita toda a nossa confiança. (Depoimento de Laura Maria Fogliatto em 27 de dezembro de 2011, grifo nosso).

Em 30 de novembro de 2011, o Dr. Eduardo Mainieri Chem revelou alguns detalhes

do processo de implantação do Banco de Pele e dos transplantes que ele vem oportunizando:

[...] E à medida que o Hospital foi criado, nós nos damos conta: Puxa, nós trabalhamos no grande Centro de Transplantes, talvez uns dos maiores do Brasil, se não da América Latina, e o que falta? Falta um tipo de transplante na nossa área, na Cirurgia Plástica. E esse transplante é o transplante de pele. E a partir daí, nós temos o local, nós temos o hospital destinado a isso. Começou um trabalho árduo, grande. Uma batalha contra uma série de burocracias. [...] A burocracia, a legislação é tamanha. É muito grande. Foram necessárias ‘n’ viagens à Brasília. Algumas delas eu fui junto em Ministérios para conseguir papéis, documentos que viabilizassem o nosso Serviço. Cito em exemplo: após inaugurado o Banco de Pele, no início dos anos 2007, final do ano 2006, nós não tínhamos autorização legal, nós não tínhamos a portaria para retirar pele de cadáver. Utilizávamos peles que sobravam de cirurgias estéticas. Se fazia uma plástica de abdômen, uma abdominoplastia e aquele segmento que foi ressecado da paciente, que teoricamente é desprezado, se utilizava. Se raspava uma fina camada de pele e se preservava aquela pele. Aquela pele ia para todo um processo de limpeza, para vir para o Banco de Pele. Então, nós não tínhamos autorização legal para retirar a pele do cadáver. E com o trabalho árduo dele (Roberto Chem – seu pai falecido em acidente de aviação), se conseguiu uma liberação, uma portaria, uma criação, para poder retirar pele de cadáver. Isso aconteceu no final do ano de 2007, início do ano de 2008.

E, para que os transplantes sejam bem sucedidos, o Laboratório de Imunologia é

imprescindível, como destaca seu diretor Dr. Neumann:

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[...] Cada doador que entra no sistema, a gente analisa e olha quem é que está esperando esse enxerto. Ele está apto a receber isso ou não? É risco? É risco baixo? É risco alto? Não é melhor correr esse risco, abandonar esse doador, esse receptor, e pegar outro, que é mais seguro? Isso é o que a gente faz. Essa é uma função 24 horas por dia. (Depoimento de Jorge Milton Neumann em 08 de dezembro de 2011).

A Drª Clotilde esclareceu que:

O transplante não é uma cura. É um tratamento. Então, uma vez que a criança transplanta, nunca mais ela nos deixa. Nós ficamos com a criança, no [Hospital] Santo Antônio, até os 18, e depois dos 18 aos 24 anos, a Dr.ª Roberta, que trabalha conosco na Pediatria, ela já atende como uma transição, no ambulatório de adultos. E só aos 24 anos, nós entregamos esse paciente aos cuidados dos nefrologistas que só trabalham com adultos. Então, um paciente é sempre paciente. Quem faz transplante não cura, ele se trata. Então, ele, toda a vida está ligado a nós. (Depoimento da Drª Clotilde Druck Garcia em 13 de dezembro de 2011).

Agradecer a vida é atitude de muitos dos transplantados, como disse o Dr. Valter Duro

Garcia em 07 de dezembro de 2011. “Reconhecimento dos transplantados? Isso é o melhor de

tudo! Também tem a gratificação da sociedade, dos colegas, das instituições.” O Dr. Leonardo

Martins Fernandez, em seu depoimento de 26 de janeiro de 2012 a respeito falou: “No Natal

sempre aparecem transplantados que vêm trazer algo para agradecer.”

O técnico em Enfermagem da UTI, do Hospital Dom Vicente Scherer – Alcindo Luis

Santos das Neves, em 30 de janeiro de 2012, tem lembranças a respeito:

A gratidão da pessoa que recebe dos familiares do doador é fantástica. Para nós é uma gratificação muito grande ver aquela pessoa renascendo. A gente vê como a pessoa chega, com o estado de saúde crítico, e ele recebe aquele órgão. Ele recebe o órgão e depois vê como ele está deixando a Instituição, bem recuperado. É muito gratificante para a gente fazer parte desse processo todo. [...] Sejam doadores de órgão, porque é uma atividade séria, é uma atividade que salva vidas, que faz toda a diferença para muitas pessoas.

A enfermeira Emi Sakamoto Suda, em 27 de dezembro de 2011, relatou outro fato

marcante de suas vivências no Dom Vicente Scherer, sobre a importância dos doadores:

[...] outra coisa que me marcou, quando eu atuei numa entrevista para doação de córnea. [...] A primeira entrevista que eu fiz, era um filho que chorava muito, [...] mas quando eu falei da possibilidade da doação de órgãos, ele me abraçou tanto, chorou tanto. E eu, dentro de mim, pensava assim: “Eu não posso chorar, porque eu sou profissional.” Mas eu não pude me conter e chorei junto. Ele concedeu a doação, saiu muito agradecido, muito gratificado.

A respeito, Joaquim Ricardo dos Santos Aperta, transplantado de rim, em seu

depoimento concedido em 20 de janeiro de 2012 afirmou:

As pessoas, às vezes, as famílias não doam o órgão. Eu não consigo criticar as famílias que não doam o órgão, [...] porque não é fácil. Eu acho até muito difícil, num momento de uma perda, de uma pessoa querida, de um ente querido, tu teres aquele discernimento da hora, e pensar na dor das outras pessoas. [...] Então, eu sempre agradeço bastante, peço muita proteção às famílias que doam órgãos. [...] É um ato de grandeza a família [...] nesse momento de dor, conseguir ter o discernimento: vai lá e doa, porque tem pessoas que precisam.

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Movida pela esperança, a Drª Clotilde Druck Garcia registrou em 13 de dezembro de

2011:

Espero um dia chegarem doações, o suficiente para essas pessoas não ficarem sofrendo ou morrendo na lista. Então, o meu sonho é um dia não precisar sofrer ou chorar, e ver alguém perder a vida, ou sofrer, por falta de um órgão. Então, meu sonho de vida é que a gente possa oferecer transplante a todos aqueles que necessitam.

Quando a vida está por um fio, o transplante representa a esperança de uma nova

chance de vida.

Estar na fila do transplante é se acostumar ao insuportável. É assistir à morte de estranhos que deixaram de ser estranhos e se tornaram amigos, na rotina exasperante da espera. É experimentar uma contradição essencial: a morte de outro pode significar a própria salvação. É sobreviver à espera da misericórdia das famílias de possíveis doadores. (Fabíola Bach e Humberto Trezzi em matéria de imprensa. S/d).

O Banco de depoimentos de História Oral com os depoimentos de transplantados e

transplantadores, bem como dos diretores e toda a equipe de funcionários que registraram

suas memórias, está tratado e disponível no Arquivo do Centro Histórico-Cultural Santa Casa.

Conclusão

O desafio proposto aos historiadores do Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto

Alegre (entrevistas concedidas à autora do presente trabalho; transcrições realizadas pela

historiadora Edna Ribeiro de Ávila), com o trabalho de História Oral realizado, entre os meses

de novembro de 2011 e março de 2012, foi de ordem temporal (reduzido tempo para dar conta

de todas as fases da metodologia, mais a produção de uma exposição e de um vídeo) e de

ordem emocional, marcado por muita sensibilidade: dos depoentes e da entrevistadora.

As escutas dos transplantados, ao relatarem os dramas vividos, diante da “morte

anunciada” foram impactantes. De um lado, pelos temores e, de outro, pela esperança

emergente com o novo hospital na Santa Casa, focado para suas necessidades.

Pode-se dizer, com convicção, que o projeto, mais que exitoso, foi para os depoentes

de todas as categorias, uma rica oportunidade de voltarem-se para suas histórias de vida, e

reencontrarem-se consigo mesmos e com o coletivo, cuja memória social permite vislumbrar

fragmentos de uma história profusa, movida pela possibilidade cidadã, de se verem como

protagonistas do primeiro hospital de transplantes na América Latina, situado na sua cidade,

no seu estado, e, simbolicamente referenciado a mais antiga Misericórdia do Rio Grande do

Sul.

Referências

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Depoimentos

Alexander Hoeper, transplantado, em 17 de janeiro de 2012.

Antônio Gilberto Lehnen, transplantado, em 19 de janeiro de 2012.

Carmen Eulária Pozzer, enfermeira, em 15 de dezembro de 2012.

Cinara Maisonette Duarte, enfermeira, em 06 de dezembro de 2012.

Clotilde Druck Garcia, médica transplantadora, em 13 de dezembro de 2011.

Eduardo Mainieri Chem, médico transplantador, em 30 de novembro de 2011.

Emi Sakamoto Suda, enfermeira, em 27 de dezembro de 2011.

Guido Pio Cracco Cantisani, médico transplantador, em 05 de dezembro de 2011.

Joaquim Ricardo dos Santos Aperta, transplantado, em 20 de janeiro de 2012.

Jorge Luiz Kraemer Borges, transplantado e Presidente da Associação dos Transplantados, em

01 de fevereiro de 2012.

Jorge Milton Neumann, médico do Laboratório de Imunologia, em 08 de dezembro de 2011.

José de Jesus Peixoto Camargo, médico transplantador e Diretor do Hospital Dom Vicente

Scherer, em 13 de dezembro de 2011.

José Sperb Sanseverino, Provedor da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto

Alegre, em 30 de novembro de 2011.

Laura Maria Fogliatto, médica transplantadora, em 27 de dezembro de 2011.

Leonardo Martins Fernandez, médico e chefe da Emergência, em 26 de janeiro de 2012.

Luiz Carlos Vieira Christofoli, transplantado, em 17 de janeiro de 2012.

Maria Lúcia Zanotelli, transplantadora, em 09 de dezembro de 2011.

Santo Pascual Vitola, médico transplantador, em 01 de dezembro de 2011.

Sílvia Rosinha Toldo Sittoni, transplantada, em 18 de janeiro de 2012.

Valdira Boff Tezzari, transplantada, em 24 de janeiro de 2012.

Valter Duro Garcia, médico transplantador, em 07 de dezembro de 2011.