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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 TRAMAS URBANAS: OS GUARANI E A COMPANHIA DE JESUS GIL, FLÁVIO ANTONIO CARDOSO Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura [email protected] RESUMO A presente proposta busca destacar ações e condições que geraram a estrutura urbana das missões jesuíticas na bacia do Rio da Prata durante os séculos XVII e XVIII. Para isso, considera-se o processo de formação das missões, discutindo questões políticas e a adaptação à cultura Guarani, apresentando um cenário social e espiritual que influenciou as práticas da Companhia de Jesus. O processo de conversão dos Guarani efetuado pelos padres consistia em reunir os índios em reduções onde os jesuítas ensinavam-lhes os princípios do Evangelho, como tentativa de adaptar os nativos à condição de súditos da Coroa Espanhola. A partir da segunda metade do século XVII até a expulsão dos jesuítas do território espanhol em 1767, trinta povoados se estabeleceram. À medida que algumas reduções iam se reestruturando, outras iam sendo fundadas, todas recebiam um patrono escolhido pelos jesuítas. É possível entender esta prática como uma estratégia para fixar as devoções de interesse da Ordem religiosa: dar o nome de padroeiros aos povoados que fundavam. Assim incentiva-se a promoção do culto para fortalecer a crença. O caráter de intercessor e protetor de uma localidade pode ajudar a estabelecer a popularidade de um santo. Palavras-Chave: Companhia de Jesus; Devoções Jesuíticas; Urbanismo Missioneiro.

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TRAMAS URBANAS: OS GUARANI E A COMPANHIA DE JESUS

GIL, FLÁVIO ANTONIO CARDOSO

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura

[email protected]

RESUMO

A presente proposta busca destacar ações e condições que geraram a estrutura urbana das missões jesuíticas na bacia do Rio da Prata durante os séculos XVII e XVIII. Para isso, considera-se o processo de formação das missões, discutindo questões políticas e a adaptação à cultura Guarani, apresentando um cenário social e espiritual que influenciou as práticas da Companhia de Jesus. O processo de conversão dos Guarani efetuado pelos padres consistia em reunir os índios em reduções onde os jesuítas ensinavam-lhes os princípios do Evangelho, como tentativa de adaptar os nativos à condição de súditos da Coroa Espanhola. A partir da segunda metade do século XVII até a expulsão dos jesuítas do território espanhol em 1767, trinta povoados se estabeleceram. À medida que algumas reduções iam se reestruturando, outras iam sendo fundadas, todas recebiam um patrono escolhido pelos jesuítas. É possível entender esta prática como uma estratégia para fixar as devoções de interesse da Ordem religiosa: dar o nome de padroeiros aos povoados que fundavam. Assim incentiva-se a promoção do culto para fortalecer a crença. O caráter de intercessor e protetor de uma localidade pode ajudar a estabelecer a popularidade de um santo.

Palavras-Chave: Companhia de Jesus; Devoções Jesuíticas; Urbanismo Missioneiro.

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A Companhia de Jesus foi fundada por Santo Inácio de Loyola. Em 1534, Loyola e alguns

acadêmicos, entre eles Francisco Xavier e Pedro Fabro (canonizado pelo Papa Francisco

em 2013), iniciaram um plano missionário que possibilitou a organização da Ordem, cuja

regra escrita foi aprovada pelo Papa Paulo III em 1540. As primeiras linhas do documento

definem o compromisso da Companhia de Jesus com a propagação e defesa da fé e

salvação das almas através da doutrina cristã.

Em Paris, Loyola uniu em torno de si um grupo de homens letrados: Pedro Fabro (1506-

1546), Francisco Xavier (1506-152), Nicolau Bobadilla (1510-1590), Simão Rodrigues (1511-

1579), Diogo Láines (1512-1563) e Alonso Salmerón (1515-1585), criando laços de amizade

com estes estudantes. No ano de 1534, capitaneados por ele, os acadêmicos formaram um

grupo missionário cuja meta era evangelizar na Terra Santa para converter mulçumanos.

Os primeiros companheiros fizeram os votos de pobreza, castidade e obediência na Colina

de Montmartre em Paris. A caminho da Terra Santa, foram levados à Espanha (1535) e

depois Veneza (1536), onde receberam ordenação sacerdotal em 1537. Não conseguindo

embarcar para o Oriente devido à instabilidade política no Mediterrâneo, os já padres

resolveram seguir em direção a Roma no ano de 1538 onde Santo Inácio sofreu novamente

a perseguição da Inquisição.

Na cidade sede da Igreja Católica decidiram o futuro da confraria, pois todos já haviam feito

sua confirmação sacerdotal, porém sem a disposição em dioceses. Comprometeram-se

então, a constituir uma nova ordem religiosa com perfil internacional (O’MALLEY, 2003, p.

17).

Com a resposta afirmativa do Pontífice, iniciaram a elaboração de um breve texto

descrevendo as intenções do grupo para que fosse submetido à aprovação oficial da Santa

Sé. O documento foi denominado Formula Vivendi, que equivalia à regra das outras ordens

religiosas. A nova instituição religiosa previa o voto especial de padres e irmãos de

obediência ao Papa com o abandono da vontade individual, a fim de desenvolver os

princípios norteados pelo Vaticano, em qualquer centro urbano ou missão a que fossem

destinados (com ou sem recursos), sob o lema Ad Majorem Dei Gloriam (para maior glória

de Deus).

Eleito primeiro Superior Geral da Companhia de Jesus em 1541, Inácio de Loyola começou

a escrever as Constituições em 1547, com a ajuda de seu secretário e de outros padres

competentes. Para tanto, permaneceu em Roma até a sua morte em 1556, sempre revendo

e aperfeiçoando as regras para a estabilização organizacional da Ordem.

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Os jesuítas participaram ativamente do esforço de renovação teológica da Igreja Católica.

Desejavam levar a fé a todos os campos do saber, dedicando-se às mais diversas ciências

e artes: Matemática, Física, Astronomia, Direito, Arquitetura. O trabalho jesuítico foi

instrumento eficaz da Reforma Católica nos séculos XVI e XVII para a conversão dos

heréticos e a serviço da Igreja.

Para diferenciar das ordens monásticas, padre Guillermo Furlong cita Ives de Brière, este

escreveu que a Companhia não se ligou às diversas observâncias exteriores, consideradas

como inseparáveis da vida religiosa. Os jesuítas não serão monges, porém sacerdotes

regulares (FURLONG, 1942, p. 14) sempre prontos a todo chamado da Igreja a serviço das

almas.

Preparados para suas funções com uma longa formação espiritual e intelectual, garantida

por uma iniciação paciente e por uma rígida seleção, os jesuítas foram enquadrados em

uma organização hierárquica, pela qual valorizava-se a capacidade de todos e de cada um

para as necessidades variadas do ministério. Os religiosos de votos solenes acrescentaram

aos três votos substanciais de pobreza, castidade e obediência de toda ordem religiosa, um

quarto voto solene de especial dependência ao Sumo Pontífice para todo o trabalho

apostólico em qualquer lugar do mundo.

Os ministérios exercidos pelos jesuítas foram os mesmos praticados pelos sacerdotes, além

disto, os jesuítas foram catequistas, pregadores, confessores, homens de ação, educadores,

escritores e cientistas. Estas especificidades em sua formação serviram para fazer frente,

segundo as circunstâncias, a tudo que o serviço e a Glória de Deus exigiam além do

apostolado da Igreja nos países católicos, nos países cismáticos e heréticos, nos países

infiéis, em todo o mundo, conforme o chamado do representante e vigário de Cristo, o Papa.

As bases e as concepções éticas e pedagógicas da formação da Ordem são estruturadas

pela prática dos Exercícios Espirituais e pela obediência aos ordenamentos advindos das

Constituições.

A essência espiritual jesuítica vem dos Exercícios Espirituais (FURLONG, 1942, p. 15).

Neles, Santo Inácio firma os alicerces de sua Ordem, pondo-se a serviço do Senhor

universal. Os Exercícios Espirituais constituem a experiência prática a ser feita por todos

aqueles que pretendem ingressar na Companhia de Jesus. Através dela, o candidato deve

examinar a própria consciência, revolvendo toda a vida passada e contemplando cenas da

vida de Cristo, segundo a capacidade de cada um. Usados duplamente como instrumento

de prática e de ensino pelos jesuítas, os Exercícios são considerados a expressão viva do

espírito inaciano, pelo qual se deve regular e interpretar todas as leis da Ordem.

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O livro parte da própria experiência espiritual de Inácio de Loyola, que criou um roteiro a fim

de ajudar os cristãos em seu crescimento espiritual. A obra começou a ser escrita em 1522,

mais tarde foi enriquecida com sua experiência apostólica (Veneza, 1536-1537) e sua

formação intelectual em Paris (1528-1535). Os Exercícios Espirituais consistem em uma

metodologia totalmente fundamentada em sua própria experiência, para ajudar as pessoas a

perceber e acolher a íntima ação de Deus em sua vida, em uma dinâmica de participação

cada vez mais efetiva na Vida e na Missão de Cristo. A proposta dos Exercícios Espirituais é

a de educar a mente; seu contexto e seu conteúdo são calcados na revelação bíblica,

propondo uma disciplina metódica de pensamento e de vida.

É um convite a “imaginar”, a partir dos sentidos interiores, cenas onde ocorrem ações

dolorosas e gloriosas (sobre a Paixão de Cristo), através das quais o praticante entra nesta

teologia dos afetos, condicionando-se a moldar sua vontade e envolver sua vida com Deus.

Sobre esta base, o predicador assume a situação de guia espiritual e, mediante

procedimentos retóricos específicos, consegue pintar verbalmente a cena e representar o

sofrimento e a satisfação dos atores, segundo sua condição e conduta.

As Constituições da Companhia de Jesus foram redigidas por Inácio de Loyola em cinco

capítulos. Descreveu, neste documento, todas as normas que deveriam ser seguidas pelos

jesuítas, com o objetivo de manter a mesma essência em todas as localidades da

Companhia e, ao mesmo tempo, adequar as Constituições às diferentes culturas das mais

diversas regiões do mundo. Antes da conclusão, as Constituições passaram pela aprovação

de diversos Padres. Em 1556, foi aprovada pela Congregação Geral, sendo difundida nas

diversas Províncias onde a Ordem estava instalada.

As intenções do fundador da Ordem foram contemplar regras funcionais que deveriam ser

seguidas por membros da Instituição. Os seguidores precisavam estar cientes de que,

necessariamente, serviriam integralmente a Deus e, para isso, estariam despojados do

mundo material, desapegados dos familiares, conforme escrito nas Constituições (2004),

deveriam dedicar-se exclusivamente à vida espiritual e cristã.

Tudo o que fosse para a Maior Glória de Deus, haveria de ser campo de apostolado para a

Companhia de Jesus, o que fez com que as Missões entre os infiéis tenham sido uma

preocupação maior para a Ordem. Pela sua Constituição a Companhia de Jesus é

essencialmente missionária. A 3ª. Tomada das Constituições (parte 3, c. 2) textualmente diz:

“Nossa vida é para discorrer e fazer vida em Deus e ajuda às almas”. E, a Fórmula do

Instituto aprovada pelo Papa Paulo III e confirmada por Julio III diz que os jesuítas devem

obedecer ao Pontífice Romano: “já nos enviem aos turcos ou a quaisquer infiéis ainda nas

partes chamadas de Índias e a quaisquer hereges e cismáticos.” A Companhia é, por sua

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Constituição, na totalidade de seu corpo e em cada um de seus membros juridicamente

missionária (FURLONG, 1942, p. 15).

A Reforma Protestante e o estabelecimento da influência europeia no além-mar

representaram um duplo desafio para a Igreja da Reforma Católica: o norte da Europa viu-

se diante da tarefa de converter protestantes hostis, enquanto havia no resto do mundo

milhões de pagãos a serem catequizados. O número de missões no além-mar tinha de ser

muito grande e a forma de seus ensinamentos também tinha de ser diferente, já que os

protestantes haviam rejeitado o Catolicismo, e os pagãos nunca haviam ouvido falar dele.

No contexto das Reformas religiosas, a Igreja Romana temia pelo abandono dos fiéis. Isto

motivou os primeiros Jesuítas a dedicarem-se aos ministérios sacerdotais tradicionais como

pregação, confissões, catequese, juntamente com novas iniciativas e estratégias pastorais:

os Exercícios Espirituais, as Missões, as associações de leigos e o uso do teatro na

pregação, liturgia e catequese.

Aproveitando as descobertas de além-mar efetuadas por Espanha e Portugal, os Jesuítas

estiveram presentes, desde muito cedo, nos novos mundos que se abriam à atividade

missionária da época. São Francisco Xavier percorreu Índia, Indonésia, Japão, chegando às

portas da China. No Brasil, Manoel da Nóbrega e José de Anchieta ajudaram a fundar as

primeiras cidades: Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Já a missão da Etiópia foi

comandada por João Nunes Barreto e Andrés de Oviedo (BACHETTINI, 2002, p. 40).

Nas cidades centros do poder político e econômico, a atividade evangelizadora e educativa

da Companhia ficou a cargo das igrejas e colégios; nas zonas distanciadas a ação

apostólica teve a meta de estruturar as missões dos índios, também chamadas doutrinas ou

reduções. De todas as fundações jesuíticas na América, as missionárias são as mais

conhecidas e melhor estudadas. Localizadas em regiões pouco exploradas pelos vice-

reinados, os jesuítas tiveram que conquistar o território. Navegaram rios, atravessaram

montanhas e cruzaram selvas, bosques e desertos para assentar suas doutrinas, e em seu

empenho levantaram cartas geográficas, algumas das quais mudaram a visão que se teria

da América (BACHETTINI, 2002).

Os jesuítas fundaram reduções desde muito cedo no Brasil, as primeiras se estabeleceram

em 1553, poucos anos depois de sua chegada em 1549. Na América hispânica, o processo

missionário começou em 1576 em Juli no Vice-reino do Peru, logo considerada uma missão

modelo, com mais de dez mil índios. Os jesuítas enviados para o Vice-reino do Peru tiveram

como superior Jerônimo Ruiz Del Portillio. O padre Diego Torres criou em a Província

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Jesuítica do Paraguai, que incluía os territórios de Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, parte

do Brasil e Paraguai, com sede provincial em Córdoba1 (ALCALÁ, 2002, p. 14).

Em 1587 chegaram a Santa Cruz de La Sierra, uma das cidades mais afastadas do Vice-

reino do Peru, entrando em contato com os índios chiriganos, como em outras áreas

remotas, passou-se muito tempo até o assentamento das reduções, já no século XVII, o

impulso fundacional das doutrinas deu-se no século XVII. Em1609, a Companhia de Jesus

entrou na Tarahumara, atual Estado de Chihuahua no México, aonde chegou a construir

cem igrejas, e estabeleceu a primeiras missões dos índios guaranis na bacia do Prata. O

século XVIII foi de consolidação e cristalização, quando os jesuítas puderam aplicar o

quanto haviam aprendido sobre os mais eficazes métodos evangelizadores (ALCALÁ, 2002,

p. 52).

As Missões dos Jesuítas tiveram o perfil de adaptação à cultura do povo a quem se dirigiam.

Exemplos significativos deste fenômeno são as reduções do Paraguai. Esta adaptação fez-

se presente nas reduções missioneiras que se localizam hoje no território do Rio Grande do

Sul, Argentina e Paraguai. Segundo Myriam Ribeiro, a eficiência jesuíta foi a capacidade de

adaptação a condições locais de natureza e de cultura completamente diversas do mundo

europeu de onde vinham (OLIVEIRA, 2000, p. 80).

A obra missionária dos jesuítas estabeleceu ações nos diferentes grupos nativos

americanos em diversas regiões, desde o Chile meridional até o México. O sul do continente

foi explorado pelos espanhóis a partir de 1516, com a descoberta da foz do Rio da Prata,

por Juan Díaz de Solís.

No período que antecede as reduções o território que cabia à Espanha pelo Tratado de

Tordesilhas, de 1494, era extenso demais para um povoamento de imigrantes espanhóis,

fazendo-se necessário que a região fosse ocupada para inibir o avanço português em

direção ao ocidente. Para tanto Felipe II, rei da Espanha, estimulou o desenvolvimento das

Missões. A chamada “conquista pela cruz e espada” expandiu os limites políticos espanhóis

na região platina (Kern, 1998, p. 9) e dessa forma, parte dos índios foi aculturada e o nativo

transformado em súdito da coroa, participando da manutenção da fronteira.

Os Guarani dessa região encontraram por outro lado nas reduções solução para os grandes

problemas como o da defesa contra ataques como os que sofriam. Na época, foram vítimas

dos paulistas que caçavam escravos. Também eram vulneráveis aos abusos do sistema de

encomenderos (MELIÁ, 1972, p. 166) que explorava o trabalho dos índios no território

espanhol.

1 Córdoba, Argentina na geopolítica atual.

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Outro problema enfrentado pelas tribos era o sistema de alimentação, pois a produção

agrícola se esgotava por falta de tecnologia, e a busca por novas terras para cultivo ficava

cada vez mais difícil. Na redução, além de seguros, os índios contavam com a tecnologia

que o jesuíta trouxera para a produção agrícola (BACHETTINI, 2002, p. 50).

Atendendo a interesses diversos, mas confluentes, as reduções eram estimuladas e tiveram

grande crescimento. As primeiras missões jesuíticas tinham uma estrutura muito simples e

foram constituídas por volta de 1610 e 1628, mas os constantes ataques dos bandeirantes

levaram-nas a mudar inúmeras vezes de território2.

O espaço físico ocupado inicialmente pelas reduções Guarani estava inserido na Província

Religiosa do Paraguai (Paraquária) que, no período, era de posse exclusivamente

espanhola. A ação missionária era exercida nas regiões do Itatin, Guairá e Tape que na

geopolítica atual compreendem áreas pertencentes ao Paraguai, Argentina e Brasil.

O processo de conversão dos Guarani efetuado pelos padres consistia em reunir os índios

em reduções onde os jesuítas ensinavam-lhes os princípios do Evangelho, como tentativa

de adaptar os nativos ao trabalho organizado e também às condições de súditos da coroa

espanhola. Desenvolviam, assim, atividades como agricultura, pecuária, carpintaria,

marcenaria, pintura e escultura.

A migração dos índios para as reduções foram fatores complicadores, pois os Guarani,

antes de serem reduzidos, viviam dispersos ao longo do território em pequenos grupos,

distantes entre si. O tamanho destes grupos variava a partir de uma casa, reunindo uma

grande família, até uma pequena aldeia com algumas casas. A dispersão dos índios era um

obstáculo a sua conversão pelos sacerdotes, e facilitava práticas abusivas contra eles

perpetradas pelos encomenderos.

O teko guarani, isto é, o espaço físico e existencial desta etnia, era caracterizado por um

território no qual ele vivia livre, porém dentro de uma perspectiva material e espiritual. O seu

eventual nomadismo prendia-se à busca de novas terras para cultivo, refletindo-se no plano

espiritual na procura da terra sem mal, denominada yvymarane’y, que foi substituído por

uma solução material proporcionada pela redução que passou a ser o teko novo.

Segundo Meliá (1986, p. 105), esta forma de organizar-se no espaço que antecede a

redução guaranítica, era considerada uma estrutura essencial de sua cultura por seus

próprios líderes, ainda que isso só se tenha tornado explícito após a redução. O índio tinha a

característica de ser caminhante, estando sempre em busca da “terra sem mal”3, mudando

2 Os constantes ataques dos bandeirantes levaram as missões a mudarem inúmeras vezes de território. 3 “A terra sem mal é antes de tudo a terra boa, fácil de ser cultivada, produtiva, suficiente e amena, tranqüila e

aprazível, onde os Guaranis podem viver em plenitude seu modo de ser autêntico” (MELIÁ, 1988, p. 23, 29).

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de local rotineiramente. As casas eram bem feitas, armadas com pilastras e cobertas de

palha, e eram maiores ou menores, podendo comportar várias famílias. De acordo com

relato da época:

Cada una (casa) es una gran pieza donde vive el cacique com toda su parcialidad, o vasallos, que suelen ser viente, treinta, cuarenta y a veces más de cien familias, según la calidad del cacique: ni tienen otra división o apartamiento estas casas, que unos pilares que correm por medio del edificio a trechos, y siervem para sustentar la cumbre, y de señalar el término de la vivienda de cada familia, que es el espacio que hay entreuno y outro pilar, una de esta banda, otra de aquélla (MELIÁ, 1986, p. 161).

No dos séculos XVII e XVIII, foram constituídos 30 povos Guarani-jesuíticos na Região

Platina4. O espaço missioneiro constituiu-se através de religiosos de diferentes formações e

nacionalidades, que já chegavam à região guaranítica com conhecimento prévio da

natureza, dos costumes e da língua dos Guarani.

O traçado urbano das reduções manifestava-se em construções arquitetônicas relacionadas

com o núcleo da igreja e dos prédios de função pública, uma variação do modelo recorrente

em outras áreas da América Latina. As reduções eram formadas a partir do edifício do

templo e da praça, locais que ficavam em destaque dentro do povoamento, provocando

grande impacto visual, evidenciando assim o poder da Igreja. Esta era uma das formas de

que os padres dispunham para atrair os habitantes das reduções para sua conquista

espiritual.

A primeira condição para o jesuíta introduzir o sistema de redução na estrutura material e

espiritual da sociedade guaranítica fazia-se gerando um novo espaço físico comunitário.

Obedecendo à legislação da época, as Ordenanzas sobre descubrimiento nuevo y

población, editadas por Felipe II, em 1573, foram consideradas por Benévolo a primeira lei

urbana da idade moderna (Benevolo, 1983, p. 487). Estas Ordenanzas regulavam os mais

variados aspectos físicos dos povoados indígenas, inclusive uma estrutura mais adequada

para êxito na conversão religiosa (MARTINS, 1992, p. 32).

Outras ordenanzas foram editadas pelos governadores Irala e Hernandarias entre outros,

para adequar as normas mais gerais à realidade local das reduções. Em 1681, essa

legislação esparsa, constituída de cédulas reais e ordenanzas de governadores, foram

reunidas sob o título Recopilación de leyes de Indias.

4 15 povoados, no atual Paraguai; 8, na atual Argentina. É somente na segunda metade do século XVII que

vão surgir as sete Missões dos Índios Guaranis, a saber: São Francisco de Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista e Santo Ângelo Custódio, que se desenvolveram no oeste do atual território do Rio Grande do Sul integradas ao modelo missionário espanhol.

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A localização de uma redução segundo a legislação específica deveria ser em um terreno

elevado, com os recursos de rios e florestas próximos. O plano urbano das reduções

consistia em praça central de quatro lados: em um de seus lados ficavam a igreja, o colégio,

as oficinas e outros edifícios de interesse social, os outros três eram ocupados pelas

residências conformando quadras ordenadas em traçado xadrez5:

lo diferencia de los modelos urbanos hispano-coloniales conocidos hasta ese momento, porque, además, los ejes no sólo determinan el desarrollo concentrado de las actividades previstas en el programa sacral religioso frente al programa civil, sino que guían y controlan el crescimiento, y la expansión urbanos en tres direcciones sobre referencias físicas y datos concretos [...] se controla el acceso exclusivo, y es este sector donde se localizan los principales lugares de servicios, producción y apoio de bienes y excedentes, y lo que es definitorio, están ubicados los principales reservatorios de agua en lagunas y atajados (SALAS, 1995, p. 421).

Os edifícios da igreja, do colégio e das oficinas juntamente com o cemitério e o pátio,

apresentavam-se alinhados, formando o núcleo de maior destaque, constituindo o espaço

sagrado; a planta jesuíta diferenciava-se, aparentemente, da disposição de outras cidades

americanas. Ao ser aplicado, este planejamento sistemático resultou em adaptações que

fizeram-se necessárias porque a igreja e a habitação dos padres eram localizadas sempre

na parte inferior da praça, em uma posição elevada, mas não central. A intenção era a de

criar um impacto sobre a população indígena, marcando o contraste criado pelo pequeno

tamanho das casas dos nativos e a vastidão notável da praça.

A escolha do terreno de cada redução guarani sempre foi de vital importância, sendo nesse

sentido de particular interesse as indicações que Padre Diego Torres deu aos primeiros

missionários por volta de 1609: "O traçado ao modo do Peru, mais a gosto dos índios, com

suas ruas e quadras, um plano para cada um e cada casa tem sua Huertezuela". Este

conceito expressado por Padre Torres, refere-se à lei espanhola que não foi plenamente

implementada. O religioso descreveu um modelo organizacional que foi inspirado na maloca

indígena (MARTINS, 1992, p. 34).

Tudo isso demonstrava claramente o entendimento que os religiosos da Companhia tinham

da necessidade de adaptar o modelo europeu à cultura dos nativos. Da mesma forma a

disponibilidade de água, a pesca, a boa terra de cultivo e pasto foram fatores essenciais e

prioritários na seleção do local.

5 Em todas as reduções, o centro topográfico foi representado por uma grande praça, de um lado ficava a

igreja, a escola eo cemitério; situando-se nos outros três lados, as casas dos povos indígenas e alguns laboratórios.

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Fotografia 2 – Plano da redução de São João Batista, por volta de 1550.

Arquivo de Simancas, Valladolid, Espanha

Fonte – Disponível em: <www.music.ucsb.edu>. Acesso em: 5 abr. 2016.

Possivelmente o traçado típico das missões não foi gerado a priori, mas entendendo

também o resultado de uma construção que necessitou de quase um século em que fatores

uniram-se até formar o esquema estrutural de interesse religioso que ilustra a Companhia de

Jesus.

As primeiras igrejas, semelhantes àquelas que ainda estão de pé em Chiquitos (Fotografia

2)6, foram construídas de cedro do Paraná, com os telhados apoiados nas paredes. Essas

igrejas foram mais tarde reconstruídas com estruturas de pedra, cuja grandeza manteve-se

no nível de prosperidade dos povoados. Com o tempo, os interiores passaram a incluir

retábulos de madeira com talha dourada, duas ou quatro capelas laterais, púlpitos e

imagens produzidos nas oficinas da redução. As torres eram construídas separadamente da

igreja com até seis ou mais sinos pendurados.

O colégio e as habitações dos religiosos lembram a tipologia de um mosteiro, localizado

próximo à mesma igreja, onde havia os quartos dos padres, refeitório, despensa, adega e

6 As antigas missões jesuíticas de Chiquitos na Bolívia são os únicos assentamentos que mantém boa parte de

sua estrutura urbana, arquitetura e cultura intactos após a expulsão da ordem do território espanhol.

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sala de reuniões destinada aos exercícios da música e dança. Os quartos localizavam-seno

outro lado, na galeria do pátio.

Fotografia 2 – Santana, Chiquitos, Bolívia

Os primeiros complexos funcionais foram construções efêmeras, contruídas com meios e

materiais simples. Os telhados enormes foram construídos com estruturas de madeira,

cobertas por palha e galhos, com paredes externas de tijolos e adobe. Em meados do

século XVIII, começaram a utilizar a pedra e a incorporação de um novo pátio, ligado ao

primeiro.

No pátio principal (Fotografia 4) arquitetonicamente mais cuidado, existia, entre outros

equipamentos, uma escola para as crianças e, em algumas reduções, também um relógio

de sol e um poço.

Fotografia 3 – pátio interno de São Miguel de Velasco, Bolívia

O segundo pátio era, por vezes, maior e onde funcionavam as oficinas para os índios. Seu

telhado era coberto de telhas e apoiado por colunas de pedra e vigas de madeira.

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Esta organização de dois pátios manteve-se quase inalterada até o momento da expulsão7.

O pátio principal media cerca de 70 ou 80 varas de cada lado.

O cemitério localizado à esquerda da igreja originou um grande espaço aberto, nem sempre

com as mesmas dimensões. Em algumas reduções, galerias foram construídas para cercá-

lo parcial ou totalmente. Era do lado oposto ao pátio dos padres, separados pela igreja.

Havia um muro no entorno, com uma grande cruz no centro e era dividido em quatro

quartéis por vias margeadas de arbustos. Cada quadra era reservada a corpos de índios por

sexo e idade (crianças, idosos e adultos).

Outros equipamentos urbanos eram o coty-guazú e o hospital, usado em casos de

epidemias. Ocoty-guazú localizava-se na frente da igreja ou em um canto da aldeia, era a

habitação para as mulheres solteiras (viúvas, abandonadas, órfãs etc.), mantidas pela

comunidade.

No início das reduções as habitações dos índios eram edificações simples, assemelhando-

se às suas antigas choças construídas com adobe até transformarem-se em casas com

tecnologia de pedra com argamassa de barro e cobertura de telhas de cerâmica. Tais

edificações eram geminadas, com paredes divisórias, às vezes móveis, marcando cada

grupo familiar, mudando o costume Guarani de aglomerar vários grupos em espaço único.

No interior destas casas persistia a tradição de montar-se um fogão primitivo sem chaminé.

Havia um alpendre na fachada interligando-as, percorrendo todo o perímetro da quadra.

Depois das destruições das reduções causadas pelos bandeirantes e, consequentemente,

êxodos dos Guarani, houve a chamada consolidação das missões8. A partir da segunda

metade do século XVII até a expulsão dos jesuítas do território espanhol em 1767, trinta

povoados se estabeleceram. À medida que algumas reduções iam se reestruturando, outras

iam sendo fundadas, todas recebiam um patrono escolhido pelos jesuítas. É possível

entender esta prática como uma estratégia para fixar as devoções de interesse da Ordem:

dar o nome de padroeiros aos povoados que fundavam. Assim incentiva-se a promoção do

culto e consequentemente, a necessidade de imagens processionais, retabulares e

domésticas para fortalecer a crença. O caráter de intercessor e protetor de uma localidade

pode ajudar a estabelecer a popularidade de um santo.

7 A expulsão dos Jesuítas de Portugal e suas colônias incluindo o Brasil ocorreu em 1759. Expulsos também

da França em 1764 e da Espanha e suas colônias 1767. A pressão da casa dos Bourbons, reinantes nesses países, acabou levando o Papa Clemente XIV a suprimir a Companhia de Jesus em 1773.

8 Após sucessivos ataques dos bandeirantes, os jesuítas conseguiram permissão da coroa para uso de armas para defesa em 1640.

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Fausto Martins entende que as devoções promovidas pela Companhia de Jesus

fundamentam a espiritualidade de seus membros de forma decisiva. O historiador divide em

quatro vertentes: trinitária, cristológica, mariológica, e hagiográfica (Martins, 2004, p. 116).

Fotografia 5 – Mapa das 30 reduções jesuítico-guaranis

Fonte – Disponível em: <http://confins.revues.org/8501>. Acesso em: 30 jun. 2016.

A visão de 14 de julho de 1537 em La Storta9, que lhe revelou o Mistério Trinitário foi

decisiva para formação da Companhia. Esta invocação deu nome ao Povoado da

“Santíssima Trinidad”, fundado em 1706 (MAEDER; GUTIÉRREZ, 2009) hoje, pertencente

ao território do Paraguai.

A Devoção Cristológica conduz os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. O

manual de meditação sugere a Composição do Lugar, que é a recriação imaginativa do sítio

em que se realiza o ministério da vida de Cristo a contemplar, inclusive um fundamento

muito abstrato do tema que compõe a meditação. A Composição do lugar inaciana se

encontrava já em La Vita Christi do cartucho Ludolfo da Saxônia, que foi lida por Santo

Inácio durante a recuperação da ferida recebida em Pamplona (ALCALÁ, 2002, p. 46).

9 Esta passagem foi muito representada em gravuras e pinturas e será abordada com mais detalhes no

terceiro capítulo.

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Outra referência cristológica manifesta é a Cruz que ocupa um lugar essencial na

espiritualidade Jesuíta. Por carregar o nome de Jesus e tê-lo como direção de vida, os

jesuítas promoveram as passagens de sua vida terrena em culto. Foram três povoados

guaranis batizados com Devoções Cristológicas (Ver Quadro 1).

A invocação mariana está vinculada à história da Companhia: em 27 de Setembro de 1540,

Paulo III aprovou a primeira Fórmula da Companhia de Jesus e, no dia 22 de Abril, do ano

seguinte, na Basílica de S. Paulo, diante do altar de Nossa Senhora, Santo Inácio e seus

companheiros pronunciaram os votos, instituindo-se a festa da Virgem Maria, Mãe da

Companhia de Jesus, para comemorar o natalício da Ordem (O’Malley, 2003).

Luisa Elena Alcalá (2004, p. 46) destaca o papel dos jesuítas na introdução de novos cultos

na América Latina como a Virgem da Luz, que alcançou enorme popularidade em suas

fundações e foi mantida após a sua expulsão, além de renovarem devoções tradicionais

como a Nossa Senhora das Dores, transformando o culto em um uma marca da

religiosidade colonial (Alcalá, 2002, p. 46).

A presença da Virgem na espiritualidade inaciana é desta forma muito frequente, os jesuítas

foram promotores incessantes da hiper-dulia. Foram sete povoados Guarani dedicados a

diferentes vocações marianas (Ver Quadro 2).

Quanto às invocações hagiográficas (Ver Quadro 3), podemos encontrar nos Exercícios

Espirituais modelos para seguir uma verdadeira vida cristã. Durante todo o transcorrer do

texto são citados os santos e mártires que viveram em defesa da Igreja e contra os inimigos

de Deus, segundo o entendimento de Loyola.

Não houve ordem religiosa, nem templo que não promovesse algum culto a uma imagem

determinada, com suas novenas e celebrações litúrgicas. O fiel podia escolher entre uma

grande lista de santos, além das imagens de Cristo e da Virgem, especializados em distintos

e variados tipos de favores. No caso das práticas de devoção de caráter popular sua

promoção deveu-se, em maior parte, a uma ordenação controlada por seus promotores.

Myriam Ribeiro (2000, p. 65-70) lembra que cada ordem adotava os santos que necessitava

para atender aos fieis em determinado lugar de atuação, sem perder de vista as normativas

internas e o apelo à afetividade sugerida pela Igreja tridentina.

Dentro deste grupo devocional encontram-se homenageados os santos que fazem parte da

Santa família de Jesus: Santa Ana, São José e São João Batista, este um santo

fundamental para o cristianismo. O perfil apostólico da Ordem teve também reflexo nos

santos mensageiros da doutrina cristã. Três reduções foram a eles dedicadas: Santiago,

Santo Tomás e, a terceira homenageia Pedro e Paulo. As biografias de Santo Inácio contam

que médicos concluíram que não resistiria às feridas do cerco de Pamplona, no entanto foi

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curado no dia dos referidos apóstolos, 29 de junho. Os anjos também receberam reduções

com seus nomes: São Miguel e Santo Ângelo Custódio.

Os santos mártires medievais São Cosme e Damião, São Nicolau e São Lorenço também

foram eleitos patronos de reduções dos Guarani. Outros santos da Igreja reformada

serviram como protetores de aldeamentos: Santa Rosa de Lima e São Carlos Borromeo.

Além desses, os jesuítas promoveram seus próprios santos e beatos. Santo Inácio de

Loyola teve duas reduções com seu nome, além de São Francisco Xavier, Santos Mártires

do Japão, São Luiz Gonzaga e São Francisco Borja10.

Quadro 1 – Devoção Cristológica

DEVOÇÃO CRISTOLÓGICA

Povoado Ano de Fundação Localização11

Corpus Christi

1622 Argentina

Cruz 1628 Argentina

Jesús 1685 Paraguai

Fonte – O autor (2016).

Quadro 2 – Devoção Mariológica

DEVOÇÃO MARIOLÓGICA

Povoado Ano de Fundação Localização

Nuestra Señora de Loreto 1611 Argentina

Nostra Senhora da Encarnación de Itapúa

1615 Argentina

Nuestra Señora de La Concepción

1619 Argentina

Nuestra Señora de los Tres Reyes de Yapeyú

1626 Argentina

Nuestra Señora de la Candelaria

1627 Argentina

Santa María la Mayor 1633 Argentina

Santa María de Fé 1647 Paraguai

Fonte – O autor (2016).

10 As invocações de Santos jesuítas serão desenvolvidas com mais profundidade no decorrer da pesquisa. 11 Considerando a geopolítica atual.

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Quadro 3 – Devoção Hagiográfica

DEVOÇÃO HAGIOGRÁFICA

Povoado Fundação Localização

Santo Ignacio Guazú 1610 Paraguai

San Juan Bautista 1620 Brasil

San Javier 1622 Argentina

San Ignacio Miní 1631 Argentina

Santo Tomás Apóstol 1632 Argentina

San Nicolás 1632 Brasil

São Carlos Borromeo 1632 Argentina

San José 1633 Argentina

Santa Ana 1633 Argentina

Apóstolos Pedro e Paulo 1633 Argentina

San Cosme y Damián 1634 Argentina

Santos Mártires del Japón 1639 Argentina

Santiago 1651 Paraguai

San Luiz Gonzaga 1687 Brasil

San Miguel 1687 Brasil

San Francisco Borja 1690 Brasil

Santa Rosa de Lima 1698 Paraguai

San Lorenzo Mártir 1690 Brasil

Santo Ángel Custodio 1707 Brasil

Fonte – O autor (2016).

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